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O ACIDENTAL E O ARBITRÁRIO NA IMPROVISAÇÃO MUSICAL EM MEIOS

ELETROACÚSTICOS
Afonso Felipe Romagna1

INTRODUÇÃO
O presente trabalho surgiu a partir de projetos de pesquisa que buscam desenvolver uma prática
musical através da manipulação de instrumentos eletrônicos e acústicos, assim como a construção de
instrumentos virtuais a partir da captação de sons aleatórios do ambiente para manipulação em meio
digital. Durante a prática performática improvisada com o resultado destas pesquisas observamos que
em determinados momentos pode existir uma diminuição de controle do resultado sonoro por parte do
compositor.
Quando definimos aqui os aspectos ditos como acidentais, eles se relacionam aos
comportamentos nos meios eletroacústicos que podem sofrer alterações de uma performance para
outra, não sendo possível a repetição exata como nos meios tradicionais que se utilizam de partituras.
Por mais que em outros estilos musicais improvisados, como o jazz, exista também uma certa
diferenciação do resultado entre as performances, essa ação é arbitrária por parte dos músicos. Com
o uso de efeitos eletrônicos e digitais em instrumentos e meios eletroacústicos, podem existir certos
resultados sonoros e musicais não planejados pelo compositor, o que pode influenciar no
direcionamento tanto da forma musical assim como na intenção inicial de criação dos performers.
Neste sentido, o que propomos como discussão é a compreensão do que pode ser considerado
como resultado de um gesto acidental ou arbitrário por parte do compositor em composições musicais
em meios eletroacústicos, e como esta aleatoriedade impacta no processo de criação musical. Os
estudos sobre as definições de arbitrariedade e aleatoriedade na música por CINTRA (2004) trazem
luz aos conceitos teóricos abordados neste trabalho.

METODOLOGIA
A análise proposta se deu a partir da performance musical “Retalhos nº1”2, realizada pelo autor
deste trabalho. Na obra foram utilizados instrumentos acústicos, sintetizadores analógicos e
instrumentos/efeitos virtuais. Partes da música eram pré-definidas e acionadas através do uso do
software Ableton Live. A partir da abordagem prática, foram utilizados os conceitos sobre aleatório e
arbitrário na música descritos por CINTRA (2004) e BARREIRO (2009), com intuito de determinar níveis
diferentes de controle sobre o resultado sonoro em diversas partes da composição, assim como
classificar formas de aleatoriedade nas técnicas empregadas na performance.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
É relevante trazer para discussão deste trabalho os conceitos principais de improvisação
musical. Neste sentido STOCKHAUSEN (1991), COSTA (2009) e ALBINO (2009) separam duas
abordagens distintas: improvisação idiomática – vinculada esteticamente a um estilo ou gênero musical;

1
Professor de Música no Instituto Federal de Rondônia Campus Cacoal. Graduado em Produção Musical,
Especialista em Educação Musical e Mestre em Comunicação Audiovisual.
2
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YOi7x9Md7sM>
e improvisação livre - baseada na interação e resposta sonora que provém de outros músicos ou
eletrônicos. Como a composição analisada possui características que nos remetem ao jazz, idiomática,
e com a interação de respostas entre o performer e meios eletroacústicos, acreditamos que a nossa
análise teve como resultado uma intersecção entre essas duas abordagens.
Após o entendimento dos conceitos relacionados na performance musical improvisada,
precisamos compreender os estágios definidos do que seria aleatório e arbitrário. Para CAGE (1961)
a principal diferença está no uso da aleatoriedade no próprio ato de compor ou no resultado sonoro de
uma performance que a torna única cada vez que é interpretada. CINTRA E ZAMPRONHA (2003)
também procuram definir e classificar como interpretar a aleatoriedade e arbitrariedade na música.
Barreto faz uma excelente e rápida definição sobre estes estudos:

De maneira geral, atribuímos este termo para músicas que envolvam a renúncia ou
diminuição da escolha do compositor, mesmo que a partir desta renúncia se produza
uma partitura cujos elementos são fixos e que deverão ser interpretados sempre da
mesma maneira (BARRETO, 2010).

Após essa breve contextualização de conceitos, decidimos a partir do que foi apresentado,
propor uma espécie de rubrica que defina os níveis de imprevisibilidade para análise da composição:
Nível de imprevisibilidade alto: Totalmente fora de controle por parte do compositor, performer assume
um caráter quase passivo na dinâmica da interpretação; Nível de imprevisibilidade parcial: existe a
intenção inicial com resultados imprevistos; Nível de imprevisibilidade baixo: programação inicial e final
mais bem definidos, com resultados imprevistos que não afetam o controle da criação.
Como exemplo da classificação efetuada temos: programação que envolva live eletronics e
outros performers sem uma intenção prévia (nível alto); uso de programações randômicas e múltiplos
efeitos como delay e distorções com reverb (nível parcial); e programações prévias com randomização,
efeitos definidos com tempo de duração e controle do espaço acústico (nível baixo).
Aplicando os conceitos de níveis de imprevisibilidade que propomos nesta pesquisa, chegamos
ao seguinte resultado referente a composição Retalhos nº1:
Nível Parcial: Pedal Microcosm, com funções de mosaico e sequenciamento, reverb e
repetições. Em 1’06’’ do vídeo, podemos observar que após a sequência de acordes da guitarra, se
estabelece um sustain das últimas notas captadas. Os resultados sonoros desta sustentação eram
sempre diferentes a cada tentativa e ensaio da composição. Por este motivo definimos que os
momentos que o pedal está ativo nesta configuração o nível de imprevisibilidade é parcial, pois não
obriga o intérprete a mudar a sua intenção musical durante a apresentação.
Outro momento em que consideramos o nível de controle parcial se dá no uso do arpeggiator
pelo Ableton Live configurando o semi modular Moog Subharmonicon na configuração divergente e
aleatória, a partir de 2’17’’ do vídeo. Mesmo que previamente definido através de comandos MIDI
gravados no software, nesta configuração (divergente e aleatória) não é possível executar a melodia
exatamente igual em conjunto com outro instrumento. Desta maneira, no planejamento da
apresentação verificamos que seria necessária uma resposta do intérprete ao que lhe é apresentado,
apesar de estar previamente definido em um período e duração dessa abordagem dentro da
composição.
Nível Baixo: Toda a seção rítmica assim como aplicação de efeitos como filtros e ressonâncias.
Em toda a composição o intérprete tem total controle sobre o efeito dessas ações na música.
CONSIDERAÇÕES
A composição apresentada tem caráter pouco experimental em comparação aos estudos
realizados por outros autores citados neste trabalho. Mesmo assim, toda e qualquer interação musical
improvisada a partir da relação homem e máquina (digital e analógica) se torna relevante para
entendimento das definições de ação e controle do compositor e intérprete. O uso de equipamentos e
efeitos experimentais em uma apresentação musical ao vivo, por exemplo, assume riscos e critérios
imprevisíveis em relação aos ambientes acústicos e setups utilizados. Também é relevante a
abordagem para estudo do processo criativo na criação musical em meios eletroacústicos.
Na proposta deste trabalho, concluímos que em nenhum momento foram estimulados níveis de
imprevisibilidade altos que necessitassem de uma reação do compositor a partir de um evento
imprevisível, ainda assim, resultados sonoros com certos níveis aleatoriedade geram interpretações e
apresentações singulares e inéditas, mesmo em ambientes e definições de forma da música
previamente planejados e arbitrários. O processo criativo das composições se tornou também mais rico
e diversificado, tendo em vista que uma resposta aos acontecimentos aleatórios fazem surgir novas
ideias e interpretações antes não pensadas.

REFERÊNCIAS
ALBINO, C. A. C. (2009), A Importância do Ensino da Improvisação Musical no
Desenvolvimento do Intérprete, Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual Paulista (UNESP),
São Paulo-SP.
BARREIRO, D. L. (2009), “Uma investigação sobre estratégias de interação em tempo-real em
obras eletroacústicas mistas com abertura (composição modular e/ou improvisação)”, Anais do XIX
Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM 2009,
Curitiba, ANPPOM.
CAGE, J. (1961), “Lecture on something”, Silence. Connecticut: Wesleyan University Press.
p.128-145.
CINTRA, C. L. A. (2004), Formas de utilização do acaso na composição musical contemporânea,
Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo-SP.
CINTRA, C. L. A. e ZAMPRONHA, E. S. (2003), “Considerações sobre aleatório e arbitrário na
música contemporânea”, Revista UNICSUL, São Paulo, v. 10, p.205-214.
COSTA, R. L. M. (2009), “A idéia de jogo em obras de John Cage e no ambiente da livre
improvisação”, Per Musi (UFMG), v. 19, p.83-90.
STOCKHAUSEN, K. (1991), “Intuitive Music”, Stockhausen on Music, London, Marion
Boyars, p. 112-125.

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