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A língua
Nelson Rodrigues falou e escreveu nessa língua. Mas deixemos isto claro: é
preciso que uma língua seja, pelo menos em certa medida, concentrada. Hoje,
não temos quase nada. Do diluído só nos sobrou a pior parte. Não temos um
Goethe nem um Shakespeare. Pior: os nossos antepassados são tão
estrangeiros quanto Flaubert, tão remotos quanto um jardim longínquo – o
jardim longínquo de Augusto Frederico Schmidt.
Hoje, podemos pensar: quanto austríaco não foi parar nos EUA, e, por isso,
quanto a língua alemã não perdeu em possibilidade de desenvolvimento?
Lendo as conversações de Eckermann com Goethe, percebe-se claramente o
grande vigor com que aquela gente se dedicava ao idioma.
A língua de Mowbray, a língua inglesa: para ele, bem possível que não fosse
ela apenas a forma da comunicação, mas mais propriamente a forma fixa de
uma vida, a forma fixa da sua própria biografia. Quando nos deparamos com
alguém que se dedicou a vida inteira a um idioma – e Goethe fez isso, Ele
praticou uma arte, e praticou-a com maestria: escrever em alemão -, quando
nos deparamos com alguém assim, é possível sentir a grande força, o grande
vigor de uma speechless death.
Para quê
Não faz muito tempo. Comecei a ler literatura em 2008. Antes, não havia lido
nada. Não sabia usar crase e pensava que “subjugar” era uma forma inferior de
julgamento, algo como um juiz bêbado e com sono que decide contendas
judiciais. Meu entendimento era precário, meu domínio gramatical era nulo.
O que eu esperava?
Anos antes, eu havia persistentemente fugido do Ensino Médio. Portanto não
aprendi nada de morfologia, sintaxe ou fonética – para dizer a verdade, até
pouco tempo atrás eu ainda usava a técnica da campainha pra descobrir a
sílaba tônica: Antôôônia! There it is.
Mas nada sério. Aliás, não escrevi nada sério até hoje. No entanto, lá atrás eu
escrevia mal, muito mal, tão mal que um Noel Rosa bêbado rabiscaria umas
cores mais vivas.
Os nomes
A sensação era exatamente essa. Não tendo onde tatear, onde sentir as coisas,
o caminho era qualquer caminho, de modo que esquerda e direita, frente e trás,
norte e sul e leste e oeste: tudo a mesma coisa.
A primeira tarefa era a de saber dar nome às coisas. Difícil. Nunca me enganei
quanto a isto. Lembro-me de quando li pela primeira vez a palavra itinerário. Foi
num livro de Filosofia do Direito. Procurei-lhe o significado num dicionário de
bolso que eu tinha em casa – apesar de já estar bastante confortável com a
internet, àquela época eu ainda não havia descoberto o priberam – e dali
aproveitava qualquer ocasião para repetir a palavra. Ia viajar: peraí, vou checar
aqui o itinerário. Escrever um texto: itinerário do trabalho. Enfim.
Depois considerou. A virtude era tão boa, Deus deve ter pensado; esse negócio
de saber dar o nome devido às coisas é tão poderoso que nenhum cabeludo
que não me prefira a umas maçãs merece tê-lo sob seu poder. Aí criou os
idiomas. Impediu a Torre. Dividiu os povos e separou as línguas (hoje a coisa
piorou tanto que já nem sabemos como dizer que dois pães são dois pães.
Dizemos, em vez, que dois pães são dois pão – assim, junto aos nomes, o
homem vai trancando no porão as primeiras conquistas da aritmética).
A vocação
Difícil.