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LÍNGUA E ESTILO – PARTE 1 

​Fernando Simões​ 12 de junho de 2017 ​Blog 

 
A língua 

Quando banido da Inglaterra, Thomas Mowbray disse ao Rei: ​What is thy


sentence, then, but speechless death, / which robs my tongue from breathing
native breath? Pouco antes, ele dizia que, por banido, deveria agora esquecer
sua língua nativa – a língua inglesa se tornaria para ele um instrumento sem
corda ou utilidade, um instrumento esquecido, aprisionado num estojo.

A abrangência é a morte da língua. Vejamos: o que é a língua portuguesa? Por


mais que pensemos em Camões ou Machado, o fato é que orbitam em nosso
redor planetas menos remotos, mais íntimos porque mais presentes, embora
mais corroídos e degradados: a fala cotidiana, a música cotidiana, da rua, do
bar.

Nelson Rodrigues falou e escreveu nessa língua. Mas deixemos isto claro: é
preciso que uma língua seja, pelo menos em certa medida, concentrada. Hoje,
não temos quase nada. Do diluído só nos sobrou a pior parte. Não temos um
Goethe nem um Shakespeare. Pior: os nossos antepassados são tão
estrangeiros quanto Flaubert, tão remotos quanto um jardim longínquo – o
jardim longínquo de Augusto Frederico Schmidt.

Enfim. Ninguém sentiria saudades desta nossa língua portuguesa. Ninguém


choraria por Chico Buarque. Ninguém choraria pela última moda sertaneja –
não eu, pelo menos. Olavo de Carvalho de passagem em mão pensando no
Tião Carreira e Pardinho? Meio difícil. Mas imaginamos Mowbray se
distanciando dos portões da Inglaterra: bem agasalhado, algumas roupas numa
sacola jogada sobre os ombros; em choro, em saudade, vai deixando as
marcas dos seus passos na neve.

Hoje, podemos pensar: quanto austríaco não foi parar nos EUA, e, por isso,
quanto a língua alemã não perdeu em possibilidade de desenvolvimento?
Lendo as conversações de Eckermann com Goethe, percebe-se claramente o
grande vigor com que aquela gente se dedicava ao idioma.

A língua de Mowbray, a língua inglesa: para ele, bem possível que não fosse
ela apenas a forma da comunicação, mas mais propriamente a forma fixa de
uma vida, a forma fixa da sua própria biografia. Quando nos deparamos com
alguém que se dedicou a vida inteira a um idioma – e Goethe fez isso, ​Ele
praticou uma arte, e praticou-a com maestria: escrever em alemão -, quando
nos deparamos com alguém assim, é possível sentir a grande força, o grande
vigor de uma ​speechless death.​

Para quê 

Não faz muito tempo. Comecei a ler literatura em 2008. Antes, não havia lido
nada. Não sabia usar crase e pensava que “subjugar” era uma forma inferior de
julgamento, algo como um juiz bêbado e com sono que decide contendas
judiciais. Meu entendimento era precário, meu domínio gramatical era nulo.

O que eu esperava?
Anos antes, eu havia persistentemente fugido do Ensino Médio. Portanto não
aprendi nada de morfologia, sintaxe ou fonética – para dizer a verdade, até
pouco tempo atrás eu ainda usava a técnica da campainha pra descobrir a
sílaba tônica: Antôôônia! ​There it is.

Voltando: em 2008, conheci Dostoiévski. Li todos os romances sob aquela luz


amarela que iluminava a poltrona, os pés nas meias brancas apoiados na parte
vazia da estante.

Àquela época eu escrevia alguma coisa, escrevia influenciado por aquele


espírito baixo de Dostoiévski, e me recolhia naqueles sentimentos
subterrâneos, naquela “consciência verrumante”. E tentava lá, dentro do meu
quartinho, do meu apartamento-cubículo de 39m², perceber o fundo dos
pensamentos que passavam pela minha inteligência, o fundo dos sentimentos
que habitavam meu coração, das intenções que guiavam as minhas virtudes.

Mas nada sério. Aliás, não escrevi nada sério até hoje. No entanto, lá atrás eu
escrevia mal, muito mal, tão mal que um Noel Rosa bêbado rabiscaria umas
cores mais vivas.

Os nomes 

Em 2013, creio, comecei a pensar em gramática. A moçada já começava a rir


das minhas crases antes de substantivo masculino, e o buraco de onde eu
tirava as estruturas sintáticas não tinha luz ou fanal que por lá me guiasse. As
frases iam se formando como reflexo do pensamento e o pensamento
guiando-se sozinho por aquele marulhar-se de um cérebro confuso, posto que
sem muros ou limites.

A sensação era exatamente essa. Não tendo onde tatear, onde sentir as coisas,
o caminho era ​qualquer caminho​, de modo que esquerda e direita, frente e trás,
norte e sul e leste e oeste: tudo a mesma coisa.
A primeira tarefa era a de saber dar nome às coisas. Difícil. Nunca me enganei
quanto a isto. Lembro-me de quando li pela primeira vez a palavra ​itinerário​. Foi
num livro de Filosofia do Direito. Procurei-lhe o significado num dicionário de
bolso que eu tinha em casa – apesar de já estar bastante confortável com a
internet, àquela época eu ainda não havia descoberto o ​priberam – e dali
aproveitava qualquer ocasião para repetir a palavra. Ia viajar: ​peraí, vou checar
aqui o itinerário​. Escrever um texto: ​itinerário do trabalho.​ Enfim.

Ninguém duvida que a semântica seja consequência da Queda. Os filósofos


estão aí para nos por em dúvida quanto a relação entre o nome e a coisa que o
nome significa. O próprio Aristóteles, na Metafísica, jura de pés juntos que a
definição nada mais é do que um indicativo da coisa – ele conclui o pensamento
no Analíticos Posteriores: podemos falar, podemos nomear, mas a coisa
mesma está lá longe, brilhando sozinha num canto distante.

O próprio Adão perdeu o privilégio de dar nome às coisas. Soubesse, talvez,


quanto isso é difícil, jamais teria trocado esse talento por uma maçã
paradisíaca. Deus, nessa ocasião, deve ter inventado Shakespeare: ​Repair thy
wit, good youth, or it will fall​. Maçã. Fruta. Insuficiente. Deus próprio lhe havia
dado o dom, e deixou que o próprio Adão desse às coisas os seus nomes,
tarefa que ele cumpriu mui devidamente.

Depois considerou. A virtude era tão boa, Deus deve ter pensado; esse negócio
de saber dar o nome devido às coisas é tão poderoso que nenhum cabeludo
que não me prefira a umas maçãs merece tê-lo sob seu poder. Aí criou os
idiomas. Impediu a Torre. Dividiu os povos e separou as línguas (hoje a coisa
piorou tanto que já nem sabemos como dizer que dois pães são dois pães.
Dizemos, em vez, que dois pães são dois pão – assim, junto aos nomes, o
homem vai trancando no porão as primeiras conquistas da aritmética).

A vocação 

Imaginem se Hemingway tivesse de ser secretário no Poder Judiciário


brasileiro. Colérico que era, ​you know the fiery quality of the man​, gostava da
África e do ​boxing​. Os períodos curtos, velozes, possantes como um ​jab.​
Imaginem-no no cubículo branco, sentado, a pilha de papéis na mesa:
protocolar, juntar, furar, organizar. Ficaria louco, esmoreceria. A coisa não
andaria bem e o homem ficaria lá, preocupado, tristonho, à cata duma aventura.

Divago. Nunca li Hemingway, mas não duvido eu que tenha acertado.


Graciliano – o nosso – foi assim também (esse eu li). Os períodos curtíssimos e
poderosos. E foi burocrata – contou lá no seu Memórias do Cárcere. Em certa
altura do livro, Graciliano confessa que torcia por uma tragédia, por um
acontecimento agudo que lhe mudasse a cor dos dias. Desejava por usar
aquela sua arma guardada na gaveta, ver um sangue, ouvir uns gritos – não era
mau, só queria se livrar da banalidade do dia.

Difícil.

A vocação não é uma estrada que, se evitada, leva o homem à catástrofe,


contudo ela impõe ao homem uma espécie de barreira que ele não poderá
transpor sem sofrer algum tipo de infelicidade. A vocação, em acréscimo, é um
material versátil e flexível de que o homem, numa circunstância concreta, se
servirá para criar-se a si próprio e, em certa medida, para projetar-se na própria
circunstância.

É possível imaginar Santo Tomás de Aquino trabalhando num escritório de


contabilidade – melancólicos organizam, melancólicos nasceram para estruturar
fluxogramas. Só não é possível imaginá-lo contabilista ​e​ santo.

Também não é possível imaginar o Graciliano no Ministério redigindo pareceres


e portarias num português de boteco. Se Camilo Castelo Branco tivesse sido
comerciante, por certo ansiaria muitíssimo pelo momento de redigir um recibo.
No dia tal, não. Ao dia tal. Com a finalidade de… Tantos reais, em espécie – e
pontuaria por extenso a quantidade. Com gosto.

Nenhum exercício profissional é plenamente satisfatório porque nenhum


exercício profissional é o correspondente pleno da vocação: o homem poderá
exercê-los variadamente, e em cada um deles desenvolver uma parte da sua
vocação. A vocação tem, digamos assim, essa qualidade de esparramar-se, de
adequar-se; tem a flexibilidade das pernas de uma bailarina e a versatilidade da
água que se mistura à terra. O homem bem desenvolvido saberá o que fazer
com ela em qualquer situação – Viktor Frankl lhes vem à cabeça? E olhem que
era um intelectual.

Ofícios e ofícios. Há os mecânicos: neles, qualquer mecanismo substitui o


homem. Há os que são inteiramente dependentes da técnica: e neles o
caminho já está traçado de antemão, restando ao executor a alternativa única
de seguir o guia de forma correta, adequando o qualitativo no quantitativo e
vice-versa. E há aqueles outros em que há, sem dúvidas, a automação, há, sem
dúvidas, a técnica, mas o ofício é de tal natureza abrangente e versátil que
jamais poderia existir sem a afluência constante e persistente da ação criadora,
da liberdade criativa.

A arte é a manifestação mais própria da liberdade criativa. É disso que falarei


em seguida.

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