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O NEUROPSICÓLOGO DEVE SER UM GRILO FALANTE? MÁXIMAS DO
ACONSELHAMENTO NEUROPSICOLÓGICO
Mas a avaliação não pode se prolongar por muito tempo. Os clientes com nível
educacional mais baixo não conseguem distinguir bem avaliação de terapia.
Freqüentemente as mães relatam que o menino melhorou após começar a avaliação. E
isso acontece e decorre da atenção positiva que a criança recebe durante a avaliação.
As crianças com dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem recebem
pouca atenção de boa qualidade dos adultos. A atenção dos adultos geralmente se fixa
no problema de comportamento ou de aprendizagem. Assim, não é surpreendente
que a criança mude de atitude ao receber atenção de boa qualidade, individualizada,
de um adulto que lhe é simpático e estimulante.
O neuropsicólogo não precisa ser uma tela em branco sobre a qual se projetam os
anseios do cliente, mas deve procurar ser o menos diretivo possível. Isso nem sempre
funciona. Mas é um ideal a ser almejado e perseguido sempre que possível. O ideal
contemporâneo é a assistência colaborativa de saúde (Haase, 2009a,b, von Korff et al.,
1997). Segundo o modelo colaborativo, o paciente deve funcionar como um membro
da equipe multiprofissional. O paciente deve ser informado e deve participar
ativamente no processo de tomada de decisões diagnósticas e terapêuticas. O ideal de
assistência colaborativa à saúde se coaduna com os princípios bioéticos de autonomia
e decisão informada (Beauchamp & Childress, 2002).
Esse modelo funciona muito bem com pessoas educadas e com capacidade de insight.
Seus resultados podem ser contraproducentes em indivíduos com menor educação
formal e menor capacidade de insight. Nesses casos o neuropsicólogo pode e deve ser
mais diretivo. O não-intervencionismo excessivo pode causar confusão e aumentar o
sofrimento do cliente e da família. Por vezes, as pessoas precisam receber uma
orientação mais diretiva para se sentirem mais seguras.
A manutenção da qualidade de vida face a deficiências pode ser explicada por diversos
mecanismos de coping, tanto ativos quanto passivos. O engajamento ativo no cuidado
da sua própria saúde, a participação na equipe multiprofissional e a ajuda a outros
pacientes afetados constituem um importante mecanismo de enfrentamento
(Schwartz & Sendor, 1999). Outro mecanismo é a “response shift” ou recalibração dos
parâmetros pelos quais o bem estar é aferido. À medida que as incapacidade vão se
acumulando, o indivíduo pode ir recablibrando suas expectativas, mudando seus
critérios de performance e engajamentos. O engajamento pode ser retirado de uma
atividade que se tornou impossível para uma que permanece viável e promove o
desenvolvimento pessoal (Schwartz et al., 2007).
Fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “Você me ajudou a compreender melhor
a minha filha”. O objetivo último da avaliação neuropsicológica é que os diversos
consumidores do relatório compreendam melhor o funcionamento do cliente, seus
receios, suas limitações e potencialidades.
Está muito em voga a crítica da neuropsicologia como medicalização do ensino (Frias &
Júlio-Costa, 2013). Ouve-se que os problemas da educação são de natureza sistêmica e
política, relacionados à desigualdade social e mecanismos de opressão dos mais
pobres etc. etc. Segundo essa cantilena é condenável rotular a criança, atribuindo-lhe
responsabilidade por problemas estruturais sociais.
Também fico muito feliz quando a mãe me fala assim: “É impressionante como você
conseguiu descrever tudo no relatório com fidelidade ao que eu disse. Com as minhas
próprias palavras”. A fenomenologia aqui é aquela fenomelogia descritiva dos
sintomas de Karl Jaspers e não a fenomenologia de Edmund Husserl (Oyebode, 2015).
Falar isso é uma obviedade. Deveria ser desnecessário. Infelizmente não é. A julgar
pelo número de famílias que passam por diversos neuropsicólogos sem que tenham
encontrado um rumo. Uma falácia frequente na neuropsicologia é aquilo que pode ser
chamado de a “ilusão dos números”. Ou seja, a crença de que a avaliação
neuropsicológica se reduz a um processo objetivo de aplicação de testes,
levantamento de escores e conferência de um referencial normativo.
Nada mais errado. Os testes são sujeito a erros, sistemáticos e não sistemáticos. Os
escores nos testes não dizem nada, a menos que sejam interpretados à um luz de um
referencial neurocognitivo. Os testes neuropsicológicos constituem apenas uma
tentativa honesta de aumentar a fidedignidade das medidas e de operacionalizar o
teste de hipóteses diagnósticos da maneira mais formal possível.
Mas, por si só, os escores dos testes podem não ter quaisquer implicações para o
aconselhamento, para aquilo que o cliente e a família podem ou devem fazer. Para
compreender aquilo que pode funcionar e aquilo que pode não funcionar. As
intervenções neuropsicológicas são complexas e exigem capacidade de insight e
cooperação por parte do cliente e/ou da família. Isso somente é possível quando o
neuropsicológico realmente conhece aquela pessoa, sem reduzí-la a um padrão de
escores preservados ou deficitários. As ferramentas para isso são clinicas e consistem
pura e simplesmente da empatia e da fenomenologia.
O neuropsicológo deve ser um grilo falante: Sim, na medida em que conseguir dar
bons conselhos. Mas ao mesmo tempo, não pode ser tão chato quanto o grilo falante.
O animalzinho irritante, sô!. Mania de dar liçãode moral nos outros. Quando eu era
pequeno, eu detestava o grilo falante. O neuropsicólogo não deve ser um moralista.
Referências
Albrecht, G. L., & Devlieger, P. J. (1999). The disability paradozx: high quality of life
against all odds. Social Science & Medicine, 48, 977-988.
Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2002). Princípios de ética biomédica (4ª. ed.). São
Paulo: Loyola.
Frias, L., & Júlio-Costa, A. (2013). Os equívocos ea certos da campanha "não à
medicalização da vida". Psicologia em Pesquisa UFJF, 7, 3-12.
Schwartz, C. E., Andresenm E. M., Nosekm M. A., Krahnm G. L., & RRTC Expert Panel on
Health Status Measurement. (2007). Response shift theory: important implications for
measuring quality of life in people with disability. Arch Phys Med Rehabil. Archives of
Physical Medicine and Rehabilitation, 88, 529-636.
von Korff, M., Gruman, J., Schaeffer, J., Curry, S. J. & Wagner, E. D. (1997).
Collaborative management of chronic illnesses. Annals of Internal Medicine, 127, 1097-
1102.