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ANÁLISE COMPORTAMENTAL DAS "DOENÇAS MENTAIS": DEPRESSÃO COMO FOCO 43

UM MODELO DE APRESENTAÇÃO DE ANÁLISE


FUNCIONAIS DO COMPORTAMENTO 1

A MODEL FOR PRESENTATION OF FUNCTIONAL


ANALYSIS OF BEHAVIOR

Silvana Elisa Gonçalves de Campos COSTA1


Maria Luiza MARINHO2

RESUMO

O termo análise funcional é empregado inúmeras vezes por analistas do


comportamento durante atividades científicas, didáticas, da prática clínica
e outras, como método adotado para o estabelecimento de relações
entre variáveis e comportamento. A forma de apresentação das análises
funcionais pode facilitar ou dificultar a compreensão da mesma. O
principal objetivo do presente artigo é mostrar um modelo de apresentação
de análises funcionais que procura ser simples, claro e conciso, de forma
que tanto alunos como terapeutas principiantes possam compreender
as análises propostas e apresentar análises funcionais seguindo o
mesmo formato. Como demonstração, serão apresentadas análises
funcionais de comportamentos de uma jovem que procurou os serviços
de psicologia da clínica-escola da Universidade Estadual de Londrina.
Palavras-chave: Análise funcional, behaviorismo radical, análise do
comportamento.

ABSTRACT

The term functional analysis is used a lot of times by behavior’ analysts


during scientific, didactic, clinical and other activities as the method

(1)
Monografia apresentada pela primeira autora ao Curso de Especialização em Psicoterapia na Análise do
Comportamento, da Universidade Estadual de Londrina, sob supervisão da segunda autora.
(2)
Endereço para correspondência: Maria Luiza Marinho, Universidade Estadual de Londrina, Deptº de Psicologia
Geral e Análise do Comportamento, Caixa Postal 6001, 86051-990, Londrina - PR. E-mail: apicsabrasil@onda.com.br
Fone/Fax: 0XX43 3385476.realizada pela segunda autora, sob orientação da primeira como exigência do curso de
Especialização em Análise do Comportamento da Universidade Estadual de Londrina.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 19, n. 3, p. 43-54, setembro/dezembro 2002

Mayara Oliveira de Mendonça - mmendonca.psicologa@gmail.com - CPF: 418.705.608-41


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adopted for the establishment of relationships between variables and


behavior. The form of presentation of functional analysis could facilitate
or difficult the understanding of these analysis. The main goal of this
article is to show a model of presentation of functional analysis that looks
simple, clear and concise. The specific purpose is to facilitate that not
only students but also naive therapists can understand the proposed
analysis and present functional analysis based on the same format. As a
demonstration, the functional analysis of a youth’s behaviors referred to
the services of the psychological clinic of the State University of Londrina
will be presented.
Key-words: Functional analysis, radical behaviorism, behavior analysis

O termo Análise Funcional é empregado aplicáveis a um conjunto específico de


inúmeras vezes por analistas do comportamento comportamentos-alvo para um cliente
durante atividades científicas, didáticas e de individual” (p.654). Assim, embora um
prática clínica. Dada a sua ampla utilização, o problema clínico possa ser relatado por um
presente artigo tem como objetivo realizar indivíduo, um grupo ou uma organização, em
uma breve caracterização desse método e qualquer destes casos, o procedimento é o
apresentar um modelo de apresentação de mesmo: decidir a qual informação coletar,
análises funcionais que procura ser simples, delinear o problema, decidir que ações proceder
claro e conciso, exemplificado com e avaliar as mudanças.
comportamentos de uma jovem que procurou Considerando-se que análises funcionais
os serviços de psicologia da clínica-escola da possam ser realizadas não somente de forma
Universidade Estadual de Londrina. restrita a comportamentos de indivíduos,
Gresswell e Hollin (1992) fazem distinção entre
análise funcional idiográfica (a análise de casos
ANÁLISE FUNCIONAL COMO MÉTODO individuais, objeto de estudo do presente artigo)
PARA COMPREENSÃO DO e nomotética (análise funcional de uma
COMPORTAMENTO categoria diagnóstica, como o exemplo
clássico de análise funcional da depressão,
Segundo Carr, Langdon e Yarbrough
publicada por Ferster em 1973). A essas duas
(2000), o behaviorismo operante é, essen-
categorias, Sturmey (1996) adiciona outras
cialmente, a análise científica das intenções,
duas: análise funcional de processos
motivações, objetivos e propósitos. No entanto,
seguindo os pressupostos filosóficos e psicológicos (como imitação, desenvolvimento
epistemológicos do Behaviorismo Radical, infantil, entre outros) e análise funcional de
comportamentalistas operantes evitam utilizar sistemas complexos (como organizações,
termos mentalistas como “propósito” ou afins ambiente terapêutico, prisões).
como “intenção”, “motivação” e “objetivo”. Em O principal instrumento conceitual
seu lugar, optam por falar de variáveis das adotado para a realização de análises
quais o comportamento é função e o nome que funcionais é o conceito de contingência,
se dá ao método para identificar essas variáveis introduzido por Skinner em 1938, e que aparece
é “análise funcional”. depois como central em toda a sua obra:
Haynes e O´Brien (1990) definem análise “Uma formulação das interações entre
funcional como “a identificação de relações um organismo e o seu meio ambiente,
relevantes, controláveis, causais e funcionais para ser adequada, deve sempre

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especificar três coisas: 1) a ocasião na Em relação às análises funcionais, os


qual ocorreu a resposta, 2) a própria autores (Haynes e O´Brien, 1990) destacam,
resposta e 3) as conseqüências reforçado- ainda, as seguintes características:
ras. As relações entre elas constituem a) são mais probabilísticas que
as ‘contingências de reforço’” (Skinner, deterministas;
1975, p.182).
b) são transitórias e podem variar com o
“é apenas quando analisamos o tempo (por exemplo, as variáveis relacionadas
comportamento sob contingências ao início de um problema podem não ser
conhecidas de reforço que podemos aquelas relacionadas a seu desenvolvimento
começar a ver o que ocorre na vida posterior ou manutenção atual);
cotidiana. Fatos que inicialmente
desprezamos começam a comandar a c) são não-excludentes, ou seja, a
nossa atenção, e coisas que inicialmente relação entre duas variáveis não impede a
relação entre essas e outras variáveis;
nos chamavam a atenção aprendemos a
descontá-las ou ignorá-las. (...) Em outros d) variáveis funcionais podem ser de
termos, não mais encaramos o nível macro (como etnia ou classe social) ou
comportamento e o ambiente como variáveis de nível micro (como freqüência de
coisas ou eventos separados, mas nos criticismo social);
preocupamos com a sua inter-relação. e) relações funcionais causais requerem
Procuramos as contingências de reforço. que as variáveis causais sempre precedam o
Podemos então interpretar o evento causado; esta é uma condição
comportamento com mais sucesso” necessária, mas não suficiente para
(Skinner, 1975, p.184). causalidade;
Interpretar um comportamento significa f) eventos privados podem entrar na
compreender sua função, que pode variar de análise funcional em diferentes vias: podem
um indivíduo a outro, entre situações e no ser o comportamento-alvo, podem ser
tempo. De forma geral, as funções dizem antecedentes ou podem ser conseqüências;
respeito à obtenção de estímulos apetitivos
g) identificar as variáveis que atualmente
(ou prazerosos) ou á evitação de estímulos
causam um problema clínico pode ser muito
aversivos. Pesquisas são conduzidas de forma
difícil, já que no ambiente natural há muitas
a especificar, de modo genérico, as funções
outras variáveis que estão correlacionadas
de condutas que tendem a ocorrer dados
com a causa verdadeira;
determinados contextos.
h) podem ter limites; uma importante
Como comentado acima, o método para
limitação é que relações funcionais são difíceis
se buscar compreender um comportamento (a
de serem comprovadas.
chamada análise funcional), passa pelo
estabelecimento de relações entre variáveis Em adição ao apresentado até o
funcionais. Segundo Haynes e O’Brien (1990), momento sobre o tema, é importante destacar
algumas variáveis funcionais são causais, que há autores (Carr, Langdon e Yarbrough,
outras correlacionais; algumas são 2000; Iwata, Vollmer e Zarcone, 1990; Baer,
controláveis ou modificáveis, outras não; Wolf e Risley, 1968; Skinner, 1953) que,
algumas são importantes em magnitude, sensíveis ao problema de que relações
enquanto outras são triviais. O papel do analista funcionais entre variáveis podem ser mais
do comportamento é, justamente, indicar as aparentes que reais, restringem o termo análise
relações existentes entre tais variáveis e o funcional à manipulação experimental de
comportamento em questão. variáveis para demonstrar relações causais

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entre variável independente e comportamento. apropriado tenha uma frágil história de


Segundo esses autores, abordagens não-expe- aprendizagem; ou que atualmente haja
rimentais podem gerar hipóteses, mas não se pouco reforço ou haja punição para a
pode dizer que constituem uma análise resposta adaptativa).
funcional enquanto a hipótese não for testada.
Assim, a aplicação clínica da análise
funcional não visa descrever todas as relações
entre variáveis relevantes. Aquelas que
ANÁLISE FUNCIONAL NA
PRÁTICA CLÍNICA apresentam magnitude insignificante e aquelas
que não podem ser modificadas são excluídas
Quando se vai proceder à analise para simplificar o quadro e para identificar
funcional de um comportamento, de todas as aquelas variáveis que poderiam ser modificadas
informações que se tem sobre a vida atual e durante o tratamento. Nesse contexto, análise
passada do indivíduo, tem-se que selecionar funcional é uma forma idiográfica de avaliação
aquelas variáveis que parecem ter relação que é orientada ao desenvolvimento de um
causal com o comportamento analisado e, na tratamento adaptado individualmente (Sturmey,
verdade, somente se tem certeza da escolha 1996). Pode, inclusive, ser vista como
das variáveis corretas após sua manipulação tratamento em si mesma ou como um
(em geral, durante a processo de intervenção). componente deste (por exemplo, autores como
Num primeiro momento as relações Goldiamond, 1975, recomendam que clientes
estabelecidas são meramente hipotéticas. devam ser incentivados a descobrir sua própria
Segundo Sturmey (1996), algumas análise funcional ao invés de recebê-la pronta
análises funcionais são feitas mais do terapeuta).
minuciosamente na perspectiva da análise
comportamental aplicada, em que o
comportamento do indivíduo deve ser UM MODELO DE APRESENTAÇÃO DE
adequadamente descrito em termos ANÁLISES FUNCIONAIS
seguramente operacionalizados. Além de
especificar o comportamento-alvo, uma análise Para os analistas do comportamento,
funcional adequada deve: independentemente de onde desenvolvam sua
a) especificar os comportamentos atividade e de qual seja ela (ensino, pesquisa,
substitutos tomados durante a extensão, administração, prática clínica, etc.),
intervenção, ou seja, os comporta- a análise funcional ocupa um ponto central.
mentos adaptativos que podem ser Embora pareça de menor importância, a forma
efetivos em servir àquela mesma de apresentação pode contribuir para facilitar
função; ou dificultar a compreensão da análise funcional
b) especificar em termos funcionais as proposta. Algumas formas esquemáticas de
conseqüên cias que mantêm o apresentação ocasionalmente geram confusão
comportamento problema (podem devido às inúmeras setas, níveis e direções
incluir tanto reforço positivo como em que se deve seguir a leitura do esquema.
negativo); O modelo apresentado abaixo visa manter
c) especificar as contingências que têm a concisão de formas esquemáticas de
falhado em manter a resposta apresentação de dados, mas com certa clareza
adaptativa (pode ser que a pessoa e simplicidade, de modo a possibilitar que
nunca tenha aprendido comportamento mesmo alunos e terapeutas principiantes
apropriado; que o comportamento possam compreender a análise proposta e

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apresentar análises funcionais seguindo o nesse período sentia-se muito bem.


mesmo formato. Considerava que o ideal seria casar-se com
A seguir será descrito o caso de uma alguém do grupo; porém, envolveu-se com um
jovem que procurou a clínica-escola da rapaz que conheceu no trabalho e se casaram.
Universidade Estadual de Londrina para O marido era da religião Católica e nunca
atendimento psicológico. Primeiramente, serão participou das atividades da religião de Ana.
apresentadas as principais informações Após casar-se, Ana foi reduzindo sua
relacionadas ao caso e, em seguida, as participação nas reuniões do grupo, até que
relações funcionais de alguns comportamentos parou de freqüentá-las totalmente. Também,
apresentados pela cliente. Não se pretende, logo após seu matrimônio, ocorreu o
aqui, apresentar a análise de todos os falecimento de sua avó.
comportamentos clinicamente relevantes, mas São apresentadas, a seguir, as
daqueles que pareceram ser mais ilustrativos principais informações obtidas nas sessões
ao leitor para demonstrar análises funcionais, iniciais de avaliação, com alguns comentários
apresentadas sob a forma de contingências de sobre seu possível efeito em alguns
três termos (antecedentes, comportamento e comportamentos (públicos e privados)
conseqüências). apresentados por Ana.
a) As queixas apresentadas por Ana ao
Descrição do Caso1 início da terapia foram: desânimo, can-
saço, dores no corpo, dificuldades para
A cliente, a qual chamaremos Ana, é do enfrentar os problemas do dia-a-dia e
sexo feminino, 27 anos de idade na época da em fazer amizades, vontade de fugir e
avaliação, segundo grau completo e nível de dormir e elevada sensibilidade
sócioeconômico médio; trabalhava como diante de acontecimentos ruins.
técnica de laboratório. Estava casada há dois Relatou desejo de mudar esse seu
anos e a queixa apresentada foi depressão. jeito de ser.
Procurou a clínica psicológica encaminhada
b) A cliente relatou que devido às dores
pelo psiquiatra com quem fazia tratamento há
no corpo, não conseguia fazer os
um ano, período durante o qual vinha tomando
serviços de casa e, por isso, contava
antidepressivo. Filha mais velha da família, com a ajuda de sua mãe e de seu
tinha uma irmã e um irmão, ambos também marido: ontem, eu cheguei em casa e
casados. O relacionamento com o pai, segundo fui direto deitar. Tinha um monte de
ela, sempre fora difícil. Na adolescência, ele a coisas para fazer. Meu marido é que
expulsara de casa, alegando que não aceitava foi arrumar as coisas para mim.
que ela saísse à noite com amigos. Por isso, Quando levantei, tomei banho, jantei e
Ana morou por dois anos com a avó em outra deitei de novo.
cidade. Sua mãe, segundo a cliente, nunca c) Observou-se que Ana contava com
tomou nenhuma iniciativa em relação às um número reduzido de pessoas
atitudes do pai. Quando voltou a morar com os significativas em sua vida. A respeito
pais, Ana passou a freqüentar um grupo de disso, relatou que tinha apenas uma
estudos bíblicos da religião Testemunhas de amiga íntima e acrescentou: ela (a
Jeová e fez várias amizades. Permaneceu avó) era a pessoa que mais me dava
nesse grupo por cinco anos e relatou que carinho. Meu pai e minha mãe nunca

(1)
O caso é parte da monografia realizada pela segunda autora, sob orientação da primeira como exigência do curso
de Especialização em Análise do Comportamento da Universidade Estadual de Londrina.

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foram muito carinhosos e ela era. Ela casamento. Nesse período, ela tinha
me faz tanta falta! Se eu perder meu idéias de suicídio, não queria sair de
marido, em matéria de amor, eu não casa e chorava freqüentemente: eu
vou ter mais. me tranquei no banheiro uma vez,
d) A cliente apresentava verbalizações sentei no chão e comecei a chorar,
que indicavam sentir-se inferior às chorar, chorar e ele (marido)
demais pessoas: (...) meu marido já arrebentou a porta.
vai terminar o mestrado, fazer h) Observou-se que a cliente, em geral,
doutorado e eu não fiz nem a sentia-se inadequada em diversas
graduação. Uma hora ele vai conhecer situações, além de, às vezes,
uma pessoa mais interessante, mais comportar-se inassertivamente. Ela,
inteligente, mais estudiosa. freqüentemente, deixava de dar sua
e) Com o casamento, Ana pareceu estar opinião, tinha medo de magoar as
em situação de conflito: consolidar a pessoas e, quando se posicionava,
escolha entre freqüentar o grupo bíblico arrependia-se, como mostram suas
sem o marido ou acompanhá-lo em falas:
suas reuniões sociais que lhe eram Puxa vida! Eu tenho que pensar um pouco
aversivas. Sobre isso, comentou: pra falar, eu fico com a consciência
Eu fico nas festas, no meio daquelas pesada!
pessoas bebendo, me dá uma coisa tão Eu falei para elas (amigas) que havia um
ruim! Parece que não era ali que eu monte de coisas em promoção. Daí, elas
queria estar; eu queria estar com meus foram e não gostaram de nada e na volta
amigos de lá (do grupo religioso), que tomaram chuva ainda. Aí eu falei: ai,
não bebem e nem fumam, não contam meu Deus, eu devia ter ficado quieta!
piada obscena. (...) Quando eu estava lá A minha amiga falou assim: aquilo lá não
(no grupo religioso), eu sentia muita falta é bom (sobre máquina de lavar louça),
de alguém. (...) E agora eu tenho ele, aquilo lá demora, eu não tenho vontade
meu marido, mas não tenho o ambiente de comprar. Eu falei assim: imagina,
que eu gostava, não tenho os amigos. aquilo é uma maravilha, é ótimo, eu
f) Parece que as expectativas de Ana tenho e lavo e a louça fica limpinha (...).
em relação ao casamento não foram Aí, depois, eu fiquei pensando: nossa,
satisfeitas, principalmente nos eu acabei com o pensamento da outra!
primeiros dois anos. Segundo ela, o Para evitar brigas eu peço desculpas,
marido não demonstrava afeto, não mesmo o outro estando errado.
ficava em casa a quantidade de tempo
A gente não pode se prejudicar por ter
que ela gostaria, não tinham em sua
medo de falar e isso acontece muito
rotina realizar atividades conjuntas.
comigo.
Além disso, o marido continuou a
manter a vida social que tinha quando i) Ana mostrou-se muito preocupada
solteiro, com festas nos fins de semana quanto à normalidade/anormalidade
de seus comportamentos: Gosto de
e encontros em bares para beber e
assistir ‘A Bela Adormecida’, será que
conversar durante a semana.
é normal? É normal a gente se
g) Ana sofreu o que foi diagnosticado por preocupar (sobre a briga do irmão com
um psiquiatra como uma forte crise o cunhado)? É normal ter mais
depressiva no final do primeiro ano de afinidade com uma amiga do que com

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outra? Este tipo de preocupação um conjunto de regras de comportamento que,


poderia ser influência da visão dico- segundo ela, a faziam ser uma pessoa melhor.
tômica apresentada por seu médico A Figura 2 apresenta a análise funcional
psiquiatra, presente em conceitos do comportamento que Ana apresentava no
como saúde/doença, normalidade/ início do casamento e que gerava várias
anormalidade. dificuldades em sua interação com o marido:
ficar em casa, e a Figura 3 apresenta a análise
de outro comportamento que a cliente passou
ANÁLISE FUNCIONAL DO CASO: a apresentar na mesma situação, ou seja,
MULTIDETERMINAÇÃO acompanhar o marido às reuniões sociais.

Será apresentada, a seguir, a análise O comportamento de Ana descrito na


funcional de alguns dos comportamentos que Figura 2 parece revelar uma forma de esquivar-
se mostraram relevantes para a compreensão se de estimulação aversiva, mas ele próprio
da situação vivenciada pela cliente. gerava também conseqüências aversivas. O
Comportamentos apresentados anteriormente comportamento alternativo apresentado por
por Ana foram incluídos nessa análise porque Ana (Figura 3) também era mantido mais por
suas conseqüências contribuem para o reforço negativo que positivo. Essas duas
entendimento de comportamentos atuais. figuras explicitam uma situação de conflito na
qual nenhuma alternativa livre de aversividade
A Figura 1 apresenta a análise do
parece existir. Análises teóricas têm indicado
comportamento de Ana ao freqüentar um grupo
ser difícil uma pessoa sentir-se bem e feliz
religioso, antes do casamento, quando voltou
nesse tipo de contingência.
a viver com seus pais. A partir da análise
funcional, observa-se que esse comportamento A Figura 3 mostra o comportamento de
era reforçado positiva e negativamente: redução Ana, atualmente, acompanhar o marido às
de conflitos com o pai, sair com vários outros reuniões sociais. Esse comportamento, apesar
jovens, participar de festas e aprendizagem de de ser punido pelo fato de a cliente sentir-se

ANTECEDENTES
• História de desentendi- CONSEQÜÊNCIA
mento e de punição severa, (reforço positivo)
por parte do pai, por sair
• Ter um grupo de amigos
para divertir-se.
• Ir a festas.
• Morar novamente com os • Aprendizado de um con-
pais. COMPORTAMENTO junto de regras de com-
• Ter passado algum tempo portamento.
afastada dos antigos amigos. Freqüentar reunioes sema-
nais de um grupo religioso
• Interesse por assuntos
CONSEQÜÊNCIA
religiosos. (reforço negativo)
• Insatisfação com a religião
• Redução dos conflitos com
Católica.
o pai.
• Oportunidade para conhecer
um grupo de estudos bíblicos.

Figura 1. Análise Funcional do comportamento de Ana freqüentar um grupo de estudos


bíblicos.

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Época: início do casamento


REGRAS (SD VERBAIS)
• É errado cometer exageros
(bebida, comida, etc.).
• É uma influência ruim
manter contato com pessoas CONSEQÜÊNCIA
que não compartilham os (reforço negativo)
mesmos valores morais que
os meus. • Evita contato com pessoas
com comportamento que ela
• Festas agradáveis são como desaprova.
as que eu freqüentava com o • Evita sentimentos de inade-
grupo de amigos do estudo quação
bíblico.
• Homem casado não vai a
festas sozinho. COMPORTAMENTO CONSEQÜÊNCIA IMEDIATA
(punição)
Ficar em casa
ANTECEDENTES • Preocupação com o marido
(álcool x direção; mulheres).
• Oportunidade para sair com
os colegas de profissão do
marido. CONSEQÜÊNCIA POSTERIOR
• Dificuldade de relaciona- (punição)
mento interpessoal.
• Briga violenta entre o casal.
• Desinformação sobre as- • Iminência de separação
suntos da área profissional conjugal.
do marido.
• Medo do marido conhecer
outra mulher mais inte-
ressante.
• Medo do marido dirigir
alcoolizado.

Figura 2. Análise Funcional do comportamento de Ana ficar em casa enquanto o marido vai a reuniões
sociais.

deslocada nas reuniões, é reforçado por evitar desse comportamento são aversivas; outras,
os estímulos aversivos decorrentes de ficar o comportamento é reforçado pelo fato de o
em casa. Acompanhando o marido, ela não marido deixar de sair à noite por alguns dias e
fica sozinha, tem a companhia dele, reduz realizar alguma atividade doméstica. Essa
preocupações e diminui os desentendimentos intermitência contribui para que este
entre eles. comportamento se mantenha.
A Figura 4 apresenta um comportamento Outro comportamento freqüentemente
freqüente na vida conjugal de Ana: brigar com apresentado por Ana é o de ficar deitada
o marido. A análise funcional indica que a durante horas; a análise deste fato está
cliente possui algumas regras sobre apresentada na Figura 5. Comportando-se
casamento que confrontam com as atitudes dessa forma, Ana obtinha certas conseqüên-
do marido, o que propicia o desentendimento cias reforçadoras, como preocupação por parte
entre eles. Algumas vezes, as conseqüências do marido e o auxílio deste e de sua mãe na

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Época: atual
REGRAS (SD VERBAIS)
• É errado cometer exageros
(bebidas, comidas, etc.).
• É uma influência ruim manter
contato com pessoas que
não compartilham os
mesmos valores morais que
os meus.
• Festas agradáveis são como
as que eu freqüentava com o CONSEQÜÊNCIA
grupo de amigos do estudo (reforço positivo)
bíblico.
• Homem casado não vai a • Fica em companhia do marido.
festas sozinho.
• É muito importante para mim CONSEQÜÊNCIA
estar casada. (reforço negativo)
• Seria horrível se eu perdesse COMPORTAMENTO
• Redução das preocupações
meu marido. com o marido.
Acompanhar o marido • Não fica sozinha em casa
ANTECEDENTES a reunião social • Redução de desentendimen-
• Oportunidade para sair com tos entre eles.
os colegas de profissão do
marido. CONSEQÜÊNCIA
(punição)
• Dificuldade de relaciona-
mento interpessoal. • Sentimentos de inadequação.
· Desinformação sobre assun- • Participar em interaçoes so-
tos da área profissional do ciais conflitivas e desinteres-
marido. santes
• Gostar de ficar em casa.
• Medo do marido conhecer
outra mulher mais interes-
sante e dele dirigir alcooli-
zado.
• Experiência anterior de não
ter acompanhado o marido,
o que foi várias vezes
seguido de conseqüências
aversivas.

Figura 3. Análise Funcional do comportamento de Ana acompanhar o marido a reuniões sociais.

realização dos serviços domésticos. É comentários, ou seja, atuar assertivamente. A


importante ressaltar que esse comportamento, análise deste comportamento indica que
muitas vezes visto como decorrente de um possivelmente a história de punição social
estado de humor, denominado depressão, aqui precoce, freqüente e intensa, gerada pelos
é analisado como decorrente de conseqüências comportamentos de desvalorização e
reforçadoras, apresentadas pelo ambiente. ridicularização por parte do pai e a falta de
O próximo comportamento analisado é reforço positivo advindo de outras fontes,
o de Ana emitir opiniões, sugestões e contribuiu para que ela avaliasse seus

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REGRAS (SD VERBAIS)


• Eu me casei para ter a com-
panhia do meu marido. CONSEQÜÊNCIA
• Homem casado não chega INTERMITENTE
em casa depois das 22:00 hs. (reforço negativo)
• É horrível ficar em casa • Marido realiza alguma atividade
sozinha . doméstica.
• É horrível fazer atividades • Marido não sai à noite durante
sozinha. COMPORTAMENTO o resto da semana.
ANTECEDENTES Brigar com o marido
CONSEQÜÊNCIA
• É noite.
INTERMITENTE
• Marido fora de casa há ho-
(punição)
ras.
• Experiências anteriores com
• Marido comporta-se agressiva-
alcoolismo na família.
mente.
• Medo do marido tornar-se
alcoolis-ta.
• Medo do marido conhecer
outra mulher mais interes-
sante.
• Estar sozinha em casa.

Figura 4. Análise Funcional do comportamento de Ana brigar com o marido, em uma situação específica.

CONSEQÜÊNCIA
(reforço positivo)

• Marido demonstra preocupa-


ANTECEDENTES ção com Ana.
• Casa organizada.
• Rotina.
• Poucas atividades prazero- COMPORTAMENTO CONSEQÜÊNCIA
sas.
Ficar deitada (reforço negativo)
• Marido compreensivo.
• Estar em casa após um dia durante horas • Evita a aversividade da situa-
de trabalho. ção, dormindo.
• Atividades domésticas por fa- • Marido realiza atividades do-
zer. mésticas.
• Dores no corpo. • Mãe auxilia nas atividades do-

mésticas.

Figura 5. Análise Funcional do comportamento de Ana ficar deitada durante horas quando chega em casa
após um dia de trabalho.

comportamentos de emitir opiniões e fazer dos demais. Isto gerava estimulação aversiva
sugestões como sendo inadequados, mesmo sob a forma de ansiedade e de sentimento de
quando não ocorria desaprovação por parte inadequação.

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ANÁLISE COMPORTAMENTAL DAS "DOENÇAS MENTAIS": DEPRESSÃO COMO FOCO 53

REGRAS (SD VERBAIS)


CONSEQÜÊNCIA
• Sou inadequada. INTERMITENTE
• Tenho que tomar cuidado (reforço positivo)
com o que falo para evitar
magoar as pessoas. • Aprovação social.

ANTECEDENTES RESPOSTA PRIVADA


• Situação de contato social. COMPORTAMENTO (efeito colateral da punição)
• História de punição, pelo pai, Emitir opiniões, • Reações fisiológicas de an-
de comportamento assertivo. sugestões, comentários siedade.
• História de desvalorização e (assertividade) • Sentimento de inadequação.
de ridicularização, por parte
do pai.

CONSE QÜÊNCIA
MODELOS INTERMITENTE
• Mãe: passividade. (punição)
• Pai: inadequação em resolver • Desaprovação social.
com conflitos; comportamen-
to crítico.

Figura 6. Análise Funcional do comportamento de Ana comportar-se assertivamente, emitindo opiniões,


sugestões, comentários.

COMENTÁRIOS FINAIS envolvidas (Banaco, 1997). As análises


funcionais apresentadas são hipóteses para
Com base nas análises apresentadas, explicação dos comportamentos analisados e
considera-se que, as principais variáveis são probabilísticas. Hipóteses essas que
relacionadas à ocorrência de um conjunto de devem ser confirmadas ou refutadas através
comportamentos apresentados por Ana e da manipulação de variáveis e da observação
descritos por outros profissionais sob o título de seu efeito sobre o comportamento. Ou seja,
único de depressão, parecem ser: perda de as intervenções propostas devem, necessa-
reforçadores positivos importantes após se riamente, relacionar-se a tentativas de mudanças
casar; não substituição dos reforçadores em variáveis independentes (variáveis funcionais
perdidos por outros; muitos comportamentos antecedentes ou conseqüentes) de forma a
mantidos por reforço negativo. Além disto, produzir mudanças na variável dependente
com a baixa taxa de respostas apresentadas (comportamento).
pela cliente, a probabilidade de obtenção de
reforços positivos contingentes ao seu
comportamento fica também reduzida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Essa é uma forma de compreensão do
BAER, D. M.; Wolf, M. M. e Risley, T. R.
comportamento humano como fruto de
(1968). Some current dimensions of applied
interações do indivíduo com seu ambiente.
behavior analysis. Journal of Applied
Por meio de análise funcional criteriosa, po-
Behavior Analysis, 1, 91-97.
der-se-ia perceber que aquele seria o
comportamento mais provável de ser apresentado BANACO, R. A. (1997). Auto-regras e patologia
por aquele indivíduo, dadas as contingências comportamental. Em: D. R. Zamignani

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