Você está na página 1de 13

Aula 03:

A consideração heideggeriana da história da metafísica como história do


esquecimento do ser confirma a conferência sobre a essência da verdade, onde
a história da metafísica se relacionava com aquela de um errar inicial. A
história da metafísica, já em seu início, renunciou a experimentar a verdade
em sua constitutiva referência à inverdade, deixando de pensar radicalmente

a ligação entre ser (Seyn) e ¢l»qeia" Para Heidegger, porém, este errar inicial

não é consequência de uma falta do homem respeito ao ser, mas representa


um caráter constitutivo do próprio ser, que, ao fundar o ente trazendo-o à luz,
se esconde. No descobrimento do ente se esconde o originário encobrimento
do ser. Com isso, o pensamento de Heidegger que na Kehre se volta para a
história da metafísica, vista como esquecimento do ser, é um salto nesse
esquecimento. Na introdução de Sein und Zeit, como vimos, ele chama
fainÒµenon “o que se mostra, o que se revela”; e imediatamente acrescenta:
O ente pode se mostrar, a partir de si mesmo, de diversos modos, cada vez
segundo o modo de acesso a ele. Há mesmo a possibilidade de que o ente se
mostre como o que ele não é em si mesmo. [...] Tal se mostrar nós o
denominamos parecer ser (Scheinen, aparentar). […] Só na medida em que algo,
segundo seu sentido, pretende em geral se mostrar, isto é, ser fenômeno, é que
ele pode se mostrar como algo que não é, podendo “apenas aparentar ser
como…” Na significação de fainÒµenon como aparência já está incluída a
significação originária (fenômeno: o manifesto) como fundamento da
aparência.40

A “aparência” não é devida a um uso errado do método fenomenológico,


mas ao caráter intrínseco do fenômeno. Daqui o discurso heideggeriano se
desloca para o conceito de aparência: “o anunciar-se de algo que não se mostra
por algo que se mostra”. 41 Desta forma, já em Sein und Zeit Heidegger se
desloca da fenomenologia entendida como ciência rigorosa para uma forma
de decifração do oculto; já aqui a verdade parece ser entendida como
descobrimento que se radica em um fundo de encobrimento essencial.

40
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977. pp.
38-39.
41
Ibid. p. 39.
25
Na primeira aula falamos que a Kehre é um salto (Sprung) que do
iluminado (o ente) busca alcançar o iluminar-se da abertura (o ser), única
região em que o iluminado pode aparecer. Salto que é de fato um passo atrás
do ente ao ser, como tentativa de alcançar a fonte escondida de todas as
possibilidades concedidas ao ente em seu manifestar-se. Salto que é passagem
com a qual o pensamento se faz caminho. O para onde deste caminho é a
própria proximidade do ser. Vizinhança do ser que não é mais o ser do ente,
mas o ser como outro respeito ao ente. Assim, o salto leva para a proximidade
do dar-se da diferença como tal.
A metafísica em seu início coloca-se na diferença, mas para colocar o ser
a serviço do ente, pensando-o em sua manifestabilidade. O ser do ente é
colocado no aberto de seu dominar para que o ente se manifeste; no final o
que domina é o ente enquanto manifesto, e consequentemente disponível.
Assim, a fenomenologia como ciência rigorosa é um ver o fenômeno em seu
puro manifestar-se. Ela busca o verdadeiro do ente na sua evidência (a „dea).
O pensamento como passo atrás, ao invés, se coloca na diferença (Unter-
Schied), na qual o ente é enquanto entra na clareira da retração do ser, na ¢-
l»qeia. O ente não é mais aquilo que encobre a retração do ser, mas aquilo que
salvaguarda o ser. O ente suporta o aberto, ao invés de ocultá-lo. O salto como
passagem não é simplesmente um passar da metafísica a um novo início. A
própria possibilidade de um outro início recebe o seu sentido no início da
metafísica, que se dá na diferença entre ser e ente, ou seja, no aberto, mas que
depois a encobre ao pensar o ser como um ente verdadeiro.42 O pensamento
passa ao outro início retornando ao primeiro início, quando salta para a
proximidade de sua própria fonte. Ele se vira para seu fundamento, para aquilo
que o faz ocorrer (er-eignet), tornando-se aquilo que é. Desta forma, o caminho
do pensamento ocorre na medida em que vai na direção daquilo que o precede.
Precisamente por isso o salto do pensamento em direção de sua origem é um
passo atrás. “O salto é o alcançar saltando (Er-springung) a disposição para a

42
SAMONÀ, L. La svolta e i "Contributi alla Filosofia": l'essere come evento. In: VOLPI,
F. (Ed.). Guida a Heidegger. 3. Roma - Bari: Laterza, 2002. p.159-198. p. 179.
26
pertença na Ereignis”. 43 O salto se realiza já no dispor-se: o preparar-se à
passagem já pertence ao salto. Ele permite ao homem dispor-se à “distância
mais próxima da oscilante recusa”.44
Não é o homem que realiza este salto; ao contrário, pertence à sua
essência ser apropriado pelo ser em seu velar-se. Desta forma, o salto pode
levar até a origem, porque ela é um evento de virada: a origem mantém na
referência a si aquilo que dela brota, dando início ao encobrimento, em uma
espécie de salto inicial em si. O ser torna possível o brotar do ente,
precisamente porque se retrai em si. O brotar do ente ocorre como crepúsculo
do ser.
O acontecer da virada torna possível ao homem, enquanto Da-sein,
colocar-se na referência espaço-temporal da retração do ser. O pensamento
que pretende realizar a virada deve ser essencialmente abertura ao mistério,
isto é, abertura ao esquecimento do ser.
Isso esclarece ulteriormente o significado de ser-lançado, que em Sein
und Zeit indicava o estado efetivo do Dasein, como o simples ser apropriado
por parte do aí (Da) à verdade do ser. O Da do Da-sein é a abertura à retração
do ser, da qual brota, ex-siste. Mas também o sentido do Dasein como ser-para-
a-morte adquire um novo significado essencial: o Dasein não se dissolve pela
morte, mas ao contrário inclui em si o ser-para-a-morte, tornando-se pleno e
abissal, isto é, aquele entre – o seu Da – que oferece o espaço-tempo à Ereignis,
tornando possível a pertença ao ser. No ser-para-a-morte se esconde a pertença
essencial do não ao ser, a não-verdade. A morte entendida como a
possibilidade da impossibilidade de toda outra possibilidade abre o Da-sein ao
seu puro ser caminho para qualquer realização, na possibilidade de não ser
mais. O Dasein é, ou melhor, dá-se apenas onde se abre a referência ao
encobrimento do ser, e apenas assim é possível deixar de lado o ser, esquecê-
lo, perdendo-se no ente: apenas assim é possível algo como a metafísica.
O pensamento que pretende atingir sua fonte, de onde extrai seu
fundamento, deve rever a história da metafísica como evento do esquecimento

43
HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). 3. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 2003. p. 235.
44
Ibid. p. 227.
27
do ser; mas esta virada pode ocorrer apenas quando a metafísica chega a seu
final, ou seja, quando ela se cumpre totalmente. Só então, quando do ser não
sobra mais nada, é possível repensar toda a história da metafísica como
negação do ser.
A especulação sobre a história da metafísica como esquecimento do ser
é concretamente virada a partir do escrito Einführung in die Metaphysik (1935),
onde Heidegger retoma e desenvolve o projeto de uma “destruição da história
da ontologia”.
O escrito começa com a consideração da pergunta fundamental da
filosofia: “Porquê é afinal ente e não antes nada?”. 45 O sentido dessa
interrogação não se exaure simplesmente no “porquê é afinal ente”, mas na
extensão da pergunta “e não antes nada?”. Isso faz que o ente seja mantido na
possibilidade do não-ser. Assim, a pergunta pode ser desta maneira
reformulada: “Porquê é que o ente é arrancado da possibilidade do não-ser?”.46
Colocada desta forma a pergunta diz respeito não ao ente como tal, mas ao
ser do ente. Interroga-se o ente sobre seu ser. Relevando a afinidade entre ser
e nada, a pergunta fundamental obriga a colocação implícita da interrogação:
“Qual a posição do ser?”. 47 Na tentativa de responder a tal questão se
compreende que o ser não está em lugar algum; ele não se encontra grudado
ao ente, nem é determinável em conformidade àquilo que é. Neste sentido ser
e nada dizem a mesma coisa. Com efeito, na tentativa de aferrar o ser do ente,
se compreende que se chega na realidade a tentar agarrar o vazio. Em razão
da estreita afinidade com o nada “a palavra ser termina sendo apenas uma
palavra vazia”. 48 Ora, precisamente esta palavra esvaziada de qualquer
significado concreto, torna-se, na época de Nietzsche, a última exalação de
uma realidade em dissolução. Isso, porém, não depende nem de uma
propriedade desta palavra, nem de uma falta do homem. Talvez a vacuidade
da palavra ser seja devida ao fato “que desde o início atravessa a história do
ocidente, um acontecimento que todos os olhos de todos os historiadores

45
HEIDEGGER, M. Einführung in die Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1983. p. 3.
46
Ibid. p. 31.
47
Ibid. p. 36.
48
Ibid. p. 38.
28
jamais atingirão e que, no entanto, acontece, antigamente, hoje e no futuro”.49
Com a questão vista nestes termos, Heidegger se pergunta se “o ser é uma
mera palavra e o seu significado uma névoa, ou o destino espiritual do
Ocidente?”.50 E enfim, perguntar-se pela posição do ser não significa nada mais
que “repetir (wieder-holen) o início da nossa existência histórico-espiritual,
para o transformar em um outro início”.51 Repetir no sentido de
re-enquadrar, re-conjuntar (zurückfügen) a existência histórica do homem, o
que também implica sempre a nossa própria existência futura, enquanto todo
da história que nos está destinada, no poder do ser a ser descoberto e aberto
de um todo originário; tudo isso, naturalmente, apenas dentro dos limites da
capacidade da filosofia.52

Com este esclarecimento do sentido da repetição da história da


metafísica vista como acontecer do esquecimento do ser, que em seu encobrir-
se desencobre o ente, determina-se também o sentido original da história, que
entendida como “acontecimento é o agir e sofrer, atravessando o presente,
determinado pelo futuro e assumindo o passado, o que já foi (Gewesene). É
precisamente o presente que desaparece no acontecimento”.53 Desta forma, a
temporalidade (Temporalität) do ser, indicada em Sein und Zeit, assume o
caráter de história do ser. Os três êxtases do tempo se manifestam nos modos
destinais pelos quais o ser se dá, abrindo e fundando as várias épocas
históricas, isto é, a própria história. O dar-se do ser é um velar-se que ilumina,
e é por isso que a história do ser é essencialmente a história do esquecimento
do ser.
O problema da vacuidade da palavra ser em nossa época, contudo, deve
ser também colocado na relação entre o homem e a linguagem, enquanto
linguagem transmitida. Com efeito, se a transmissão histórica, que torna
possível a fundação de novas épocas, ocorre essencialmente na linguagem, é a
ela que precisamos nos dirigir com a máxima atenção para compreender por
que nossa época se caracteriza pela perda de sentido da palavra ser. Apenas
na linguagem ocorre algo como o esquecimento do ser. “Uma vez que o destino

49
Ibid. p. 40.
50
Ibid. p. 40.
51
Ibid. p. 42.
52
Ibid. p. 45.
53
Ibid. pp. 47-48.
29
da linguagem tem o seu fundamento na relação particular de cada povo com
o ser, a questão do ser apresentar-se-nos-á intimamente entrelaçada com a
questão da linguagem”.54
O lugar (Ort) de pertença de homem e ser é a linguagem. Assim, se a
história da metafísica é essencialmente a história do esquecimento do ser, que
na época atual ocorre como esquecimento do esquecimento, tornando possível
a realização plena da metafísica, então o pensamento que pretenda repetir a
história do ser, deverá considerar a história essencialmente como história das
palavras, onde se esconde a verdade do ser. Neste caso a primeira palavra a
ser interrogada, com vistas a repetição da história da metafísica, é
precisamente a palavra ser. Heidegger dedica então o segundo capítulo do
escrito de 1935 à gramática e etimologia da palavra ser.
Para os gregos ser significa estabilidade em dois sentidos: o primeiro é
o estar em si no sentido de surgir e repousar em si, como fÚsij; o segundo é o
estar em si como tal, isto é, como algo estável, que permanece constantemente,
como ous…a. 55 Assim, ser quer dizer para os gregos presença, e com isso a
possibilidade de impor o ente em seu limite e em seu termo (teloj). Ou seja, o
ente colocado no estável de seu ser, pode erguer-se no seu limite, e com isso
se propor no aparecer. É neste sentido que, segundo Heidegger, deve-se
entender a palavra fundamental de Aristóteles para designar o ser: “enteleceia,
o manter-se (guardar-se)-na-terminação (limite)”. 56 O impor-se do ente, no
sentido de surgir em si (fÚsij), é o mesmo que dizer que a ¢l»qeia ocorre. O
surgir do ente e seu colocar-se na estabilidade do limite acontece como
encobrimento do ser. Um fragmento de Heráclito diz: fÚsij kpÚptestai file‹
(Frag. 123), “o ser (o aparecer que emerge) tende em si mesmo para um ocultar-
se”.57 Em suma, o vir à presença e o retornar à obscuridade, assim como a
aurora e o crepúsculo, pertencem ao mesmo acontecer.
Contudo, para Heidegger este modo de considerar a palavra ser não foi
assumido até as últimas consequências; a partir de Platão o ser, entendido

54
Ibid. p. 55.
55
Ibid. p. 68.
56
Ibid. p. 64.
57
Ibid. p. 122.
30
como „dea, sofreu uma transformação fundamental. O ser não é mais pensado
com base no acontecer da ¢-l»qeia, ou seja, a partir do encobrimento, mas
como ente supra-sensível, que coloca as bases para a fundação da meta-física.
E ao mesmo tempo dá-se outra importante transformação: do conceito de
lugar (tÒpoj) passa-se ao conceito de espaço definido com base na extensão.
Com efeito, no início os gregos experimentaram aquilo que ocupa o espaço
tendo por base não a extensão, mas o lugar, no sentido daquilo que é ocupado
por aquilo que aí se encontra. O lugar pertence à coisa mesma. E a
transformação atinge também o infinitivo do verbo ser que agora sofre a
abstração de toda referência (Bezug); o infinitivo verbal passa a nos dar apenas
aquilo que é representado em modo geral na palavra: o infinitivo torna-se
apenas conceito verbal abstrato.
Por via da transformação linguística do infinitivo em substantivo verbal o vazio
inerente ao infinitivo acentua-se ainda mais; ser é colocado como um objeto
fixo. O substantivo ser pressupõe que o assim denominado seja por si mesmo.
O ser torna-se agora ele próprio um tal que é, onde aparentemente só é ente,
mas não adicionalmente e de novo o ser.58

A análise heideggeriana da palavra ser se estende também à sua


etimologia, graças à qual ele descobre que seu o significado é resultado da
fusão principalmente de três diferentes significados: viver, abrir-se e
permanecer.
A palavra ser é desta forma resultado tanto da obliteração dos modos
determinados do significado do verbo, quanto da fusão de vários significados.
No final esta análise confirma a precedente: a palavra ser apresenta-se como
uma palavra vazia.
No entanto, precisamente esta palavra vazia designa aquilo que é mais
essencial para qualquer ente. Se tudo aquilo que é, inclusive nós mesmos, é
ente, então a palavra ser, mesmo se vazia, esconde em si a possibilidade que
cada coisa seja aquilo que é; o ente é na medida em que, por assim dizer, é
iluminado em seu ser. E quanto a nós, na palavra ser se esconde o destino
essencial de nosso Dasein histórico.

58
Ibid. p. 73.
31
A análise realizada por Heidegger relevou até este ponto que a palavra
ser, mesmo se vazia, esconde em si o mistério da manifestabilidade do ente.
Com efeito, cada vez que nos colocamos diante do ente percebemos em
primeiro lugar o seu ser, o seu modo de se manifestar, e assim seu ser
presente. Mas, do mesmo modo, se nos perguntamos onde está o ser do ente,
compreendemos imediatamente que o ser não é ente, não é algo que se
acrescenta a qualquer coisa. Assim, se hoje a palavra ser é uma palavra vazia,
não se deve apenas a si mesma, mas também ao modo como foi representada.
A meta-física em toda sua história sempre reduziu o ser a algo que é (ao ente),
para colocá-lo diante de si e interrogá-lo como algo que é.
A investigação que pretendia interrogar o que é o ser não pôde ir adiante,
uma vez que o ser não é ente. Em razão disso, Heidegger dedica a última seção
de seu escrito às limitações do ser; ele procede através de conceitos como
devir, aparecer, pensar e dever-ser, que não são o ser, mas que permitem,
mesmo se vagamente, indagar o próprio ser, considerando-o como outro
respeito a esses conceitos.
Quanto ao que diz respeito às limitações como ser e devir e ser e
aparecer, Heidegger conclui que:
Assim, na averiguação inicial do ser do ente, tem de se contrapor, tal como
acontece com a aparência, o devir ao ser. Por outro lado, o devir, enquanto
emergir (Aufgehen), pertence, contudo, à fÚsij. Se entendermos ambos de
modo grego, o devir como um chegar-à-presença [In-die-Anwesenheit-kommen]
e dela sair, o ser como presença, essencialidade que emergindo aparece
[aufgehend-erscheinendes Anwesen], o não-ser como não-presença, não-
essencialidade, i. é, ausência [Abwesen] a referência recíproca de emergir e
submergir [Aufgehen und Untergehen] será então o aparecer, o próprio ser.
Assim como o devir é a aparência do ser, assim também a aparência como
aparecer é um devir do ser.59

Ser, devir, aparecer e não-ser pertencem ao mesmo acontecer, não no


sentido que são a mesma coisa, mas que no contraste manifestam sua
essência.
Considerada por Heidegger como mais importante, a terceira limitação,
entre ser e pensar, recebe maior atenção no capítulo. Imediatamente ele

59
Ibid. pp. 122-123.
32
ressalta a grande afinidade que existe entre pensamento e lógica, que em toda
história da metafísica representou um espaço comum.
A lógica sempre foi definida como a doutrina do pensar correto. A
palavra lógica deriva de epist»µh logik», isto é, ciência do lÒgoj. Segundo esta
definição, o lÒgoj designa aqui a proposição, o enunciado do verdadeiro. A
lógica é desta forma a ciência da proposição. Ora, é justamente a partir desta
determinação que Heidegger se pergunta o porquê do pensamento se definir
partir da proposição. 60 Qual é o fundamento que liga a proposição ao
pensamento? Para responder a esta pergunta, Heidegger realiza uma análise
da história da palavra lógica. A primeira coisa a ser sublinhada é que a lógica,
como doutrina da proposição, é uma invenção dos mestres de escola e não dos
filósofos. Ela marca o fim do pensamento fundamental dos gregos. No
primeiro pensamento grego essencial há uma profunda pertença entre ser
(fÚsij) e lÒgoj. A palavra lÒgoj, em princípio, não significava proposição mas,
com base no verbo legein, recolha. Legein designa o recolher, como por exemplo
o recolher as espigas, a lenha, a uva; sendo assim, lÒgoj, entendido a partir de
legein, é a recolha deste recolher. Heráclito segundo Heidegger entende o lÒgoj
nestes termos. Mais precisamente, Heráclito entende o lÒgoj como “a recolha
constante, a unidade de recolha em si mesma, isto é, o ser”.61 Para Heráclito
fÚsij e lÒgoj dizem a mesma coisa. Porém, com base no seu princípio dos
contrastes, o lÒgoj – como também a fÚsij – não é um simples colocar junto,
mas mantém em uma pertença recíproca aquilo que tenderia a separar-se e
contrapor-se. O lÒgoj, entendido como o conjunto da recolha, designa também
a ordem (o ser do ente) conforme a qual o ente na sua totalidade se impõe no
aberto.
Outro pensador fundamental aqui considerado por Heidegger é
Parmênides. No fragmento 3 ele trata da ligação que subsiste entre pensar e
ser: tÒ gar autÕ noe‹n est…n te kaˆ e‹nai – “o mesmo, pois, tanto é apreender
(pensar) como também ser”. Parmênides considera pensamento e ser como
reciprocamente pertencentes ao mesmo acontecer. Noe‹n não significa,

60
Ibid. p. 128.
61
Ibid. p. 128.
33
contudo, pensar entendido como uma elaboração do conteúdo do
pensamento, mas apreender, isto é, acolher, deixar vir a si aquilo que se
mostra, no sentido que aparece.62 No noe‹n encontra-se designado o receber
aquilo que aparece levando-o a fixar-se em posição. Assim, se para os gregos
ser significa surgir, manter-se na luz; então, “onde tal acontece, isto é, onde
vigora o ser, aí co-vigora e co-acontece, já que lhe co-pertence, a apreensão, o
fazer-parar receptivo do que se mostra consistente em si mesmo”. 63 O
fragmento 8 esclarece ainda mais este princípio: taÙton d/esti noe‹n te kaˆ
Ûneken œsti nÒhµa – “a apreensão e aquilo pelo qual a apreensão se produz são
a mesma coisa”. A apreensão se produz apenas em vista do ser. Isso não é aqui
uma faculdade do homem, mas representa um acontecer pelo qual e no qual o
homem alcança a sua essência, chegando ao ser. A apreensão assim entendida
determina plenamente o sentido da palavra Da-sein, onde o lugar mesmo do
acontecer da apreensão é o Da do Da-sein. O que aqui se evidencia é a
determinação da essência do homem com base na essência do ser. Desta
forma, além da determinação essencial da comum pertença do ser e da
apreensão, se esclarece também a íntima conexão que subsiste entre lÒgoj e
noe‹n. O fragmento 6 diz crÊ tÕ lege‹n te noe‹n t'eÕn eµµenai – “Necessário é
tanto o colocar em recolha como a apreensão do mesmo: o ente (é) ser”.64 O
lÒgoj e o noe‹n designam o ato decisivo em razão do qual o ser é recolhido em
seu conjunto. A palavra autÕ do fragmento 3 indica a região em que ser e
pensamento se pertencem, e é apenas a partir desta pertença que “a essência
do homem mostra-se aqui como a referência (Bezug) que abre precisamente o
ser ao homem”.65 E mais, sempre e apenas deste mesmo, que aproxima ser e
pensamento, é possível algo como a d…kh, isto é, a ordem predominante do ser
do ente, que o concebe com base em seu ordenamento; mas que também é
possível algo como a tecnh, entendida como aquele saber que coloca em obra
o ser do ente, trazendo-o ao aparecer. A luta que se instaura entre d…kh!e tecnh

62
Ibid. p. 146.
63
Ibid. p. 147.
64
Ibid. p. 177.
65
Ibid. p. 178.
34
é o próprio acontecer do ser, que recolhe os contrastantes no estável, isto é,
no conjunto ordenado.
As palavras fÚsij,! lÒgoj e noe‹n, mas também d…kh! e tecnh, denotam o
mesmo (das Selbe), no sentido do produzir o não-encoberto como tal, o ente
no seu não-encobrimento; elas designam a essência da ¢-l»qeia, e com essa
também a essência do Da-sein, como o lugar mesmo onde o produzir do não-
encoberto ocorre.
Com base nisso, “ser homem significa: assumir a recolha, a apreensão
do ser do ente, o pôr-em-obra da aparição por meio do saber e, assim, gerir
(verwalten) o descobrimento, custodiando-o (bewahren) contra o
encobrimento e a ocultação”. 66
Gerir e custodiar que não ocorrem
simplesmente por vontade do homem, mas tendo por base a referência
originária ao ser; é o ser que, enquanto fÚsij, necessita/exige ser recolhido no
Da do Da-sein.
Segundo Heidegger, com Platão este pensamento sofreu uma
transformação significativa: o ser não foi mais entendido como fÚsij, mas
como „dea, que então designa evidência do ser-presente e estabilidade. Isso em
duplo sentido: “por um lado, há na evidência o estar-fora-do-descobrimento
(Heraus-stehen-aus-der-Unverborgenheit), o simples œstin; por outro lado, nela
se mostra aquilo que tem o aspecto de algo (Aussehende), aquilo que aflora, o
t… ™stin”.67 As palavras œstin!e t… ™stin designam respectivamente aquilo “que”
paulatinamente é um ente, a sua existentia; e “o que” paulatinamente é um
ente, a sua essentia. A doutrina platônica das ideias, assim entendida, indica
tudo o que pode ser apreendido.
Assim, se a fÚsij designa o abrir-se e impor-se no aberto, a „dea designa,
ao invés, a evidência concebida como dar-se à vista, isto é, uma determinação
do estável enquanto, e apenas enquanto, encontra-se diante de um ver. A ideia
como evidência constitui “o que” do ente, o seu quid. O ser do ente é, desta
maneira, colocado na quidditas (a ideia), e isso enquanto constitui o ser
verdadeiro do ente. Ou seja, a ideia assume o papel de modelo (par£deigµa)

66
Ibid. p. 183.
67
Ibid. p. 190.
35
para apreender aquilo que é a essentia (t… ™stin) do ente, isto é, o verdadeiro do
ente.
Com essa determinação, a ideia se torna o ente por excelência, isto é, o
modelo que deve servir de referência para compreender o verdadeiro do ente.
Com a passagem do ser como fÚsij ao ser como „dea se realiza “uma das
formas essenciais de movimento em que se move a história do ocidente”.68 Esta
mesma passagem também determina a transformação do lÒgoj em ciência da
proposição, ou seja, em enunciação do verdadeiro do ente. Se
precedentemente o lÒgoj, enquanto recolha, é o acontecer do não-
encobrimento, agora, ao contrário, se torna a sede da verdade entendida como
correspondência. A verdade perde seu originário significado de ¢l»qeia,
tornando-se adaequatio rei et intellectus. “A verdade da fÚsij, a ¢l»qeia
originária enquanto descobrimento que essencia no vigorar que emerge, torna-
se agora ѵo…wsij e µ…µesij, uma adequação, um regular-se por..., uma correção
e um direcionamento (Richtigkeit) da visão, da apreensão como
representação”.69 Agora é o lÒgoj, a ratio, que decide sobre o ser do ente em
sua totalidade.
Com esta transformação do lÒgoj se esclarece também a proveniência
da ligação da proposição com o pensamento. Se no início lÒgoj e noe‹n, recolha
e apreensão, pertencem ao mesmo, com a sucessiva transformação do lÒgoj
em lógica também o pensamento muda a sua essência, tornando-se um
instrumento da ratio, isto é, da doutrina do pensar correto. É apenas nestes
termos que se pode compreender, segundo Heidegger, o princípio de não-
contradição de Aristóteles, pelo qual “todas as vezes em que uma dicção se
contrapõe a uma outra, em que há uma contradição, ¢nt…fasij, o que se
contradiz não poder ser”.70
Com a transformação do ser em „dea se esclarece também a última
limitação, aquela entre ser e dever. Se o ser encontra-se agora fundado no
pensamento, como „dea, então não pode mais fornecer a medida do ente. Como
ocorre com a idea toà agaqoà, ideia do bem, agora o ordenamento se encontra

68
Ibid. p. 194.
69
Ibid. p. 193.
70
Ibid. p. 196.
36
além do ser, em um dever-ser. Ela é a ideia mais alta (metafisicamente
entendida) e o protótipo de todos os modelos; é ela que designa aquilo que
deve ser. Sendo assim, Heidegger indica, em um esquema que recolhe as
quatro limitações do ser, o dever acima do ser:

dever

devir ser aparecer

pensar

Estas quatro limitações determinaram que:


O ser é, em contraposição ao devir, o permanecer. O ser é, em contraposição ao
parecer, o modelo que permanece, o sempre-igual. O ser é, em contraposição
ao pensar, o que subjaz, o objetivamente dado. O ser é, em contraposição ao
dever, o respectivamente dado enquanto o devido que ainda não está ou já está
realizado. O permanecer, o sempre-igual, o objetivamente dado o que subjaz -
no fundo, dizem todos o mesmo: presença constante [ständige Anwesenheit]:
Ôn como oÙs…a.71

Mas o ser “é aquele poder que ainda hoje suporta e domina todas as
nossas referências ao ente no seu todo, ao devir, ao parecer, ao pensar e
dever”.72!

71
Ibid. p. 211.
72
Ibid. p. 211.
37

Você também pode gostar