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História da Diplomacia Brasileira – Do Império ao Século XXI

Aula 08
José Sarney: redemocratização e diplomacia latino-americana (1985-1990)
Rubens Ricupero, 27 de maio de 2021

O desafio da redemocratização: O desafio da redemocratização apresentou extraordinária


dificuldade dadas as condições em que os militares abandonaram o poder: crise da dívida
externa, inflação descontrolada, destruição da democracia e dos direitos humanos, golpe
adicional da morte de Tancredo Neves. José Sarney possuía experiência política, mas carecia
de apoio junto ao PMDB, partido majoritário e de seu líder Ulysses Guimarães.

Pude viver e testemunhar esses fatos em primeira mão, pois fui um dos membros da
equipe de Tancredo herdada por Sarney. Desde 1984, eu me tornara assessor de política
externa do então candidato. Após sua eleição, acompanhei-o na viagem à Europa, aos Estados
Unidos, a vários países da América Latina e fixei aquele fugaz “instante presidencial de
Tancredo” (fórmula feliz de Celso Lafer) num diário de bordo que publiquei em 2009. Muito
do que vou contar procede não dos livros e sim do “saber só de experiências feito”.

A Constituinte: Removido o “entulho autoritário” (restabelecer eleições diretas em todos os


níveis, por exemplo), o maior desafio político era dotar o país de uma constituição garantidora
de estabilidade e progresso. A fórmula que acabaria por se impor foi a tradicional de
assembleia constituinte, que se converteria depois em congresso regular. Impulsionado pela
euforia do sucesso inicial do Plano Cruzado, o PMDB recebeu dos 69 milhões de votantes na
eleição de 15 de novembro de 1986 posição majoritária nas duas Casas do Congresso e na
seleção dos governadores de 22 dos 23 Estados da federação. Em 1º de fevereiro de 1987,
instalava-se a Assembleia Nacional Constituinte; no dia seguinte, o deputado Ulysses
Guimarães, já presidente do PMDB e da Câmara dos Deputados, era eleito também presidente
da Assembleia. O processo culminou com a promulgação em 5 de outubro de 1988 da
Constituição, chamada de Cidadã em homenagem aos inegáveis avanços que trouxe em
participação popular e direitos sociais.

O fantasma da hiperinflação: O regime militar legou à democratização o risco da


hiperinflação. A história econômica dos dez primeiros anos da era constitucional se resume
na tentativa de combater esse perigo por meio de sucessivos planos. Somente no governo
Sarney, sucederam-se três ou cinco, (segundo a contagem) programas de estabilização. O mais
importante foi o Plano Cruzado (28/2/86), desfechado pouco depois que a inflação mensal
atingira 16,2% em janeiro de 1986 e as projeções apontavam para um patamar de 400% a
500% ao ano. O programa incluía a adoção de nova moeda, o cruzado (valendo mil cruzeiros)
e o tabelamento de preços, a serem vigiados pelos “fiscais de Sarney” recrutados entre a
população.

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O Cruzado talvez tenha sido em toda a história brasileira o exemplo mais notável de
uma política econômica capaz de mobilizar o entusiasmo e a quase unânime participação
popular, ao menos no começo. De um dia ao outro, a inflação desabou de modo súbito e a
taxa mais elevada não passou de 1,4% em maio. Dava a impressão de que o Brasil tinha
descoberto a pedra filosofal, um milagre que promovia a queda brutal dos preços ao mesmo
tempo em que a produção, o emprego e o salário disparavam!

A miragem não enganava os observadores atentos, que se davam conta do


desaparecimento dos produtos tabelados, da incorreção dos índices inflacionários, do
excessivo e célere aquecimento da economia. Faltando poucos meses para a decisiva eleição
da Assembleia Constituinte, o governo esperou até uma semana depois da vitória eleitoral
para tentar corrigir os erros com o Cruzado II, um banho de água gelada nas ilusões populares.
Daí para a frente, o ritmo de aumento dos preços se multiplicaria por sete, saltando de 230%
(1985) a 1.780% (1989)!

Política externa marcada pela crise da dívida: Além da ameaça da hiperinflação, o regime
militar legou aos civis uma dívida externa impagável. Tanto Tancredo quanto Sarney tiveram
no início a ilusão de que o governo norte-americano faria um esforço para ajudar a débil
democracia brasileira a firmar os primeiros passos. Não se tinha ainda percebido que a radical
guinada à direita de Ronald Reagan dera aos interesses financeiros e bancários um peso
determinante nas decisões do governo dos EUA.

A “revolução conservadora” de Reagan (1981 a janeiro de 1989) encontrava-se no


apogeu quando Sarney tomou posse. Quase todo o primeiro governo da Nova República se
processou sob a sombra desfavorável de um poder americano que tardaria a flexibilizar sua
posição em relação à dívida. O embaixador Luís Felipe de Seixas Corrêa, que me substituiu na
assessoria do presidente em meados de 1987, observou com justeza:

“O presidente Sarney, ao assumir o governo, depositava grandes esperanças na relação


com os EUA e viu-se até certo ponto frustrado tanto pela incompreensão revelada pelo
governo norte-americano diante das vicissitudes encontradas pelo Brasil no caminho da
transição, quanto por sua incapacidade em sinalizar políticas claras de cooperação”. E conclui:
“No final de seu mandato, um presidente que sempre vira na cooperação com os EUA um pilar
fundamental da política exterior brasileira, parecia levado a descrer a possibilidade de sua
implementação em bases efetivamente equitativas”1.

A redemocratização e a aproximação com a Argentina: A frustração das expectativas sobre


a ajuda dos Estados Unidos ajudou a empurrar Sarney na direção do que teria sido de qualquer
modo a tendência natural do realinhamento da política externa às prioridades impostas pela
redemocratização. A Argentina, principal vizinho, que completara pouco antes a transição

1Luís Felipe de Seixas Corrêa, A Política Externa de José Sarney, in Crescimento, Modernização e Política
Externa, obra já citada, p. 377.

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democrática, enfrentava os mesmos problemas. Nem sempre sincronizados, os ciclos
históricos dos dois países coincidiam na semelhança dos desafios políticos e econômicos,
entre os quais se destacava na área internacional a crise da dívida externa. Por que então não
buscar formar uma frente comum de devedores para negociar a dívida? Uma barganha
coletiva não seria capaz de arrancar dos credores concessões melhores?

A ideia não chegou a se concretizar porque os obstáculos eram muitos. Embora não
tivesse prosperado, essa abordagem inicial serviu para aproximar os dois presidentes, abrindo
a porta para o que veio depois no comércio e na integração. Os argentinos também se
inquietavam naquele momento com problema antigo: o crescente desequilíbrio em favor do
Brasil no intercâmbio comercial bilateral.

Da integração Brasil-Argentina para o Mercosul: A fim de superar o desequilíbrio comercial,


colocou-se em marcha um processo de reuniões bilaterais que culminaria com a assinatura
em Buenos Aires da Ata para a Integração Brasileiro-Argentina e o Programa de Integração e
Cooperação Econômica, que abarcava as áreas de bens de capital, comércio, empresas
binacionais, investimentos, energia, serviços, tecnologia de ponta, assuntos nucleares,
transportes, comunicações, siderurgia (junho de 1986). Àquela altura, juntara-se a Alfonsín e
Sarney o presidente do Uruguai, Júlio Sanguinetti, que formaria com os dois outros uma
espécie de trindade democrática no Cone Sul, anos antes do retorno do Chile à democracia,
que somente se concluiria em 1990. Uma vez aceito o princípio do ingresso dos orientais, não
se podia fechar as portas ao Paraguai, cuja democratização se desejava encorajar.

O ambicioso desígnio da união aduaneira do Mercosul, que só tomaria corpo mais


tarde, teve origem na ampliação de um projeto bilateral, daí derivando talvez alguns dos seus
problemas vindouros.

O presidente da República revelou desde o início um interesse e gosto pelos temas


internacionais até então pouco habituais entre nós, salvo exceções como a de Jânio Quadros.
O processo de integração com a Argentina encontraria em Sarney seu maior garante e
impulsionador. Mais nítido ainda se manifestaria o papel presidencial na questão nuclear,
objeto de emulação e suspeitas entre Brasília e Buenos Aires.

A construção da confiança na área nuclear: Em novembro de 1985, durante o encontro entre


os dois presidentes na fronteira do Iguaçu, se assinou também uma Declaração Conjunta
sobre Política Nuclear, que anunciava a intenção de enfrentar outro desses tabus: a rivalidade
em torno dos programas militares “paralelos” de ambos, que se suspeitava escondessem a
intenção de fabricar armas atômicas. O desmantelamento dos programas paralelos é uma das
histórias de sucesso mais impressionantes da evolução diplomática argentino-brasileira na era
contemporânea. O processo de edificação da confiança recíproca se estendeu pelos diversos
governos seguintes sem retrocesso e culminou no devido tempo na criação de uma agência
bilateral de inspeção de salvaguardas, fruto de acordo bilateral, na assinatura de acordo
triangular de salvaguardas entre ambos os países e a Agência de Energia Atômica de Viena.

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Não conheço, na área de não-proliferação nuclear, caso comparável de êxito de um
processo diplomático que tivesse liquidado em alguns anos décadas de desconfiança entre
dois vizinhos. Basta olhar, para comparação, ao contraexemplo da Índia-Paquistão ou da
Coréia do Norte. Para isso serve a diplomacia: dar aplicação concreta ao valor da paz e da
confiança recíproca.

A moratória: Sem apoio e compreensão do exterior, Sarney terminaria por suspender os


pagamentos, gerando um abalo de confiança do sistema financeiro internacional. Seria
exagero querer atribuir tudo à indiferença do governo norte-americano. Não se pode negar,
por outro lado, que esse fator atuou para agravar ainda mais os problemas herdados pela
primeira presidência pós-regime militar. A suspensão dos pagamentos começaria em 20 de
fevereiro e duraria até 3 de janeiro de 1988, alcançando-se, em fins de junho, ajuste preliminar
que possibilitou ao país retomar a negociação. Recheada de peripécias, as tratativas só
conduziriam a um acordo definitivo sob Itamar Franco em 1994.

A solução viria apenas com o Plano Brady, que em parte correspondeu àquilo que
Seixas Corrêa denomina de “visão de Sarney” sobre a questão da dívida, “que deveria ser
tratada em dois patamares distintos, mas interligados: um patamar financeiro, restrito às
negociações [...] e outro patamar político, no qual se consideraria a questão sob o prisma de
seu impacto para o universo das relações de Estado a Estado”2. Pena que o Plano Brady só se
consubstanciaria depois do governo Reagan, a partir de 1989, último ano do governo Sarney
e final da “década perdida” na América Latina.

Cuba, América Latina e ONU: Sarney possuía atributos para se tornar o primeiro presidente
brasileiro genuinamente latino-americano no sentimento e na empatia. Exceção em relação à
maioria, ele lera e relera quase todos os grandes poetas e romancistas andinos, caribenhos e
de outras origens. Orgulhava-se no final do mandato de haver visitado todos os países da
América do Sul, além do México, de ter recebido em Brasília praticamente todos os chefes de
Estado sul-americanos. Inaugurou estilo mais informal, pessoal e direto de comunicação com
os presidentes. Antes, a tradição do Itamaraty evitava felicitar vitoriosos em eleições
estrangeiras previamente à diplomação ou à posse, por receio de parecer ferir o princípio de
não ingerência. Tampouco existia o costume do presidente participar de cerimônias de posse
de colegas. Tudo isso mudou depois da redemocratização e os encontros presidenciais, em
especial com os presidentes da Argentina e do Uruguai, passaram a ser quase rotina.

Coube a Sarney romper com o derradeiro tabu herdado dos militares e restabelecer as
relações com Cuba (junho de 1986). Também no seu mandato e com seu ativo encorajamento,
o Brasil criou juntamente com a Argentina, o Peru e o Uruguai, o Grupo de Apoio a Contadora
(México, Colômbia, Venezuela e Panamá). Mais tarde, os dois grupos se fundiriam para formar
o Grupo do Rio, a primeira vez que surgia na América Latina “um canal autônomo de ação

2 Luís Felipe de Seixas Corrêa, obra citada, p. 379.

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diplomática, habilitado a discutir e influenciar políticas sobre as principais questões regionais
sem a participação ou a tutela dos EUA”, nas palavras de Seixas Corrêa3.

O Grupo do Rio se converteria numa espécie de contrapeso, ao menos em termos de


consciência moral e jurídica, à política intervencionista de Reagan e, em continuação, de
George H. Bush, no “momento unipolar” do poder americano. O Grupo condenou, por
exemplo, a violenta intervenção americana no Panamá (dezembro de 1989), culminando com
a prisão do ex-presidente Noriega. Nesse episódio, de igual forma que nas operações
clandestinas contra guerrilhas na América Central ou o sandinismo na Nicarágua, o poder dos
EUA acabou por se impor. Nem por isso deixou de ter razão o Grupo do Rio, ao chamar a
atenção para a natureza estrutural dos problemas econômico-sociais da região e para a
insustentabilidade de soluções impostas pela força. Basta olhar para a América Central de
nossos dias para perceber como se revelou fugaz e falsa a “normalização” instituída pelas
armas.

As Nações Unidas representaram, ao lado da América Latina, o outro setor das


relações internacionais de interesse e predileção pessoal do presidente. Graças em parte a
essa valorização, em parte devido à redemocratização, o Brasil retornaria ao Conselho de
Segurança (eleição em 1987 para o biênio 1988/89), depois de quase duas décadas de
ausência. No contexto multilateral, os direitos humanos constituíam a área de mais
escandaloso atraso brasileiro devido à ojeriza dos militares. Coube a Sarney assinar ou
submeter à ratificação alguns dos pactos principais que fazem parte do “core”, do núcleo
central da grande obra de sistematização levada avante pela ONU, das convenções das Nações
Unidas e da OEA contra a tortura e do Pacto de São José sobre o Sistema interamericano de
Direitos Humanos. Também se deve a ele a iniciativa de propor a Zona de Paz e Cooperação
no Atlântico Sul, aprovada pela Assembleia Geral.

Os direitos humanos e a proteção do meio ambiente formam quase que o binômio


incontornável pelo qual se reconhece a essência democrática e progressista de qualquer
política exterior genuinamente democrática e avançada. Não é por mera coincidência que
andaram ambas ausentes das diplomacias do regime militar. Do mesmo modo, não poderiam
deixar de ocupar melhor posição na política externa da redemocratização. A realidade
nacional nesses setores continuaria gravíssima, embora os problemas aparecessem sob forma
diferente.

Assim como fizera em relação aos tratados de direitos humanos, Sarney teve o acerto
de adotar em meio ambiente atitude proativa oposta ao negacionismo defensivo anterior.
Recrudesceu nessa época a campanha internacional pela defesa da Amazônia contra as
queimadas. As pressões atingiram o auge em fins de 1988, quando foi assassinado no Acre,
Chico Mendes, seringalista e líder da defesa da floresta. O presidente tomou a decisão de
apresentar a candidatura do Brasil para sede da grande Conferência das Nações Unidas sobre

3 Luís Felipe de Seixas Corrêa, obra citada, p. 373.

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Meio Ambiente e Desenvolvimento, que se reuniria no Rio de Janeiro em 1992, sob a
presidência de Collor. Audaciosa e excepcional na tradição brasileira, a iniciativa abria o Brasil
ao escrutínio universal. Se o risco era grande, também grande poderia ser o efeito catalizador
para obrigar o governo a adotar política ambiental eficaz.

Epílogo: Nos últimos dois anos do mandato, Sarney passou a dedicar cada vez mais tempo às
viagens internacionais, visitando a União Soviética, pouco antes de sua desintegração e a
China, no começo de sua ininterrupta ascensão econômica e política. O ano de 1989 não foi
somente o da queda do muro de Berlim e do começo do fim do comunismo na Europa Central
e Oriental. Marcou também na América do Sul a convulsão do governo que havia
reinaugurado a democracia na Argentina em meio ao júbilo e à esperança. Compelido pela
hiperinflação e pelos saques ao comércio, Alfonsín antecipou as eleições para maio e passou
o cargo ao sucessor, Carlos Menem, em julho, cinco meses antes do término do mandato.

No Brasil, o final do governo também foi difícil. Nas eleições de 1989, mais de vinte
candidatos disputaram a presidência. Entre eles, o veterano Ulysses Guimarães, Leonel
Brizola, Lula, Mário Covas, Aureliano Chaves, Paulo Maluf, e o neófito ex-governador de
Alagoas, Fernando Collor de Mello. Participaram do primeiro turno (15/11/89) mais de 82
milhões de eleitores (88% do total do eleitorado), que deram vantagem de 28,5% a Collor
contra 16% a Lula. No segundo turno (17/12/89), Collor de Mello sairia vencedor com 42,7%
contra 37,8% de Lula.

Balanço final: No momento em que se vive um processo sistemático de erosão das


instituições criadas na democratização e na Constituição de 1988, deve-se reagir às ameaças
à democracia com o exemplo do mais importante que nos ficou do governo Sarney. O legado
que distingue Sarney dos governos anteriores e sucessores consistiu na reconstrução da
democracia, da liberdade, dos direitos humanos.

O Brasil daqueles dias respirava tolerância, inventividade, ousadia cultural. Em tudo,


no espírito de liberdade, de reforma social, na política exterior, na relação com a Argentina,
no meio ambiente, na cultura, não se pode imaginar contraste mais chocante com os atuais
tempos de retrocesso democrático, ódio político, baixeza de sentimentos, demolição da
tradição diplomática, do prestígio internacional, dos avanços ambientais, de aviltamento e
degradação da política cultural.

Talvez nenhum outro governo da História recente do país tenha deixado de receber a
justa valorização que merece como o de Sarney. O exagero e irrealismo das expectativas
reprimidas durante o longo ocaso da ditadura, a frustração com a morte de Tancredo, a
decepção com o anticlímax do extraordinário êxito seguido do malogro do Cruzado, foram
alguns dos fatores que concorreram para um juízo demasiado severo do primeiro governo de
uma nova era. Não havia então paralelos históricos democráticos com que cotejar aqueles
cinco anos inaugurais.

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Passados agora 30 anos do seu fim e contraposto aos sete governos que o sucederam, o
governo Sarney aparecerá a olhos isentos como o que semeou muito do que outros haveriam
de colher, como a fase inevitavelmente árdua de lançamento das bases sobre as quais deveria
ser edificada a democracia de massas no Brasil. Sobretudo, a comparação tornará claro que
esse já distante passado foi muito melhor que nosso triste presente. Se não formos capazes
de resgatar os valores daquele começo, estaremos condenando o futuro a ser pior que nosso
passado.

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