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Aula 08
José Sarney: redemocratização e diplomacia latino-americana (1985-1990)
Rubens Ricupero, 27 de maio de 2021
Pude viver e testemunhar esses fatos em primeira mão, pois fui um dos membros da
equipe de Tancredo herdada por Sarney. Desde 1984, eu me tornara assessor de política
externa do então candidato. Após sua eleição, acompanhei-o na viagem à Europa, aos Estados
Unidos, a vários países da América Latina e fixei aquele fugaz “instante presidencial de
Tancredo” (fórmula feliz de Celso Lafer) num diário de bordo que publiquei em 2009. Muito
do que vou contar procede não dos livros e sim do “saber só de experiências feito”.
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O Cruzado talvez tenha sido em toda a história brasileira o exemplo mais notável de
uma política econômica capaz de mobilizar o entusiasmo e a quase unânime participação
popular, ao menos no começo. De um dia ao outro, a inflação desabou de modo súbito e a
taxa mais elevada não passou de 1,4% em maio. Dava a impressão de que o Brasil tinha
descoberto a pedra filosofal, um milagre que promovia a queda brutal dos preços ao mesmo
tempo em que a produção, o emprego e o salário disparavam!
Política externa marcada pela crise da dívida: Além da ameaça da hiperinflação, o regime
militar legou aos civis uma dívida externa impagável. Tanto Tancredo quanto Sarney tiveram
no início a ilusão de que o governo norte-americano faria um esforço para ajudar a débil
democracia brasileira a firmar os primeiros passos. Não se tinha ainda percebido que a radical
guinada à direita de Ronald Reagan dera aos interesses financeiros e bancários um peso
determinante nas decisões do governo dos EUA.
1Luís Felipe de Seixas Corrêa, A Política Externa de José Sarney, in Crescimento, Modernização e Política
Externa, obra já citada, p. 377.
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democrática, enfrentava os mesmos problemas. Nem sempre sincronizados, os ciclos
históricos dos dois países coincidiam na semelhança dos desafios políticos e econômicos,
entre os quais se destacava na área internacional a crise da dívida externa. Por que então não
buscar formar uma frente comum de devedores para negociar a dívida? Uma barganha
coletiva não seria capaz de arrancar dos credores concessões melhores?
A ideia não chegou a se concretizar porque os obstáculos eram muitos. Embora não
tivesse prosperado, essa abordagem inicial serviu para aproximar os dois presidentes, abrindo
a porta para o que veio depois no comércio e na integração. Os argentinos também se
inquietavam naquele momento com problema antigo: o crescente desequilíbrio em favor do
Brasil no intercâmbio comercial bilateral.
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Não conheço, na área de não-proliferação nuclear, caso comparável de êxito de um
processo diplomático que tivesse liquidado em alguns anos décadas de desconfiança entre
dois vizinhos. Basta olhar, para comparação, ao contraexemplo da Índia-Paquistão ou da
Coréia do Norte. Para isso serve a diplomacia: dar aplicação concreta ao valor da paz e da
confiança recíproca.
A solução viria apenas com o Plano Brady, que em parte correspondeu àquilo que
Seixas Corrêa denomina de “visão de Sarney” sobre a questão da dívida, “que deveria ser
tratada em dois patamares distintos, mas interligados: um patamar financeiro, restrito às
negociações [...] e outro patamar político, no qual se consideraria a questão sob o prisma de
seu impacto para o universo das relações de Estado a Estado”2. Pena que o Plano Brady só se
consubstanciaria depois do governo Reagan, a partir de 1989, último ano do governo Sarney
e final da “década perdida” na América Latina.
Cuba, América Latina e ONU: Sarney possuía atributos para se tornar o primeiro presidente
brasileiro genuinamente latino-americano no sentimento e na empatia. Exceção em relação à
maioria, ele lera e relera quase todos os grandes poetas e romancistas andinos, caribenhos e
de outras origens. Orgulhava-se no final do mandato de haver visitado todos os países da
América do Sul, além do México, de ter recebido em Brasília praticamente todos os chefes de
Estado sul-americanos. Inaugurou estilo mais informal, pessoal e direto de comunicação com
os presidentes. Antes, a tradição do Itamaraty evitava felicitar vitoriosos em eleições
estrangeiras previamente à diplomação ou à posse, por receio de parecer ferir o princípio de
não ingerência. Tampouco existia o costume do presidente participar de cerimônias de posse
de colegas. Tudo isso mudou depois da redemocratização e os encontros presidenciais, em
especial com os presidentes da Argentina e do Uruguai, passaram a ser quase rotina.
Coube a Sarney romper com o derradeiro tabu herdado dos militares e restabelecer as
relações com Cuba (junho de 1986). Também no seu mandato e com seu ativo encorajamento,
o Brasil criou juntamente com a Argentina, o Peru e o Uruguai, o Grupo de Apoio a Contadora
(México, Colômbia, Venezuela e Panamá). Mais tarde, os dois grupos se fundiriam para formar
o Grupo do Rio, a primeira vez que surgia na América Latina “um canal autônomo de ação
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diplomática, habilitado a discutir e influenciar políticas sobre as principais questões regionais
sem a participação ou a tutela dos EUA”, nas palavras de Seixas Corrêa3.
Assim como fizera em relação aos tratados de direitos humanos, Sarney teve o acerto
de adotar em meio ambiente atitude proativa oposta ao negacionismo defensivo anterior.
Recrudesceu nessa época a campanha internacional pela defesa da Amazônia contra as
queimadas. As pressões atingiram o auge em fins de 1988, quando foi assassinado no Acre,
Chico Mendes, seringalista e líder da defesa da floresta. O presidente tomou a decisão de
apresentar a candidatura do Brasil para sede da grande Conferência das Nações Unidas sobre
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Meio Ambiente e Desenvolvimento, que se reuniria no Rio de Janeiro em 1992, sob a
presidência de Collor. Audaciosa e excepcional na tradição brasileira, a iniciativa abria o Brasil
ao escrutínio universal. Se o risco era grande, também grande poderia ser o efeito catalizador
para obrigar o governo a adotar política ambiental eficaz.
Epílogo: Nos últimos dois anos do mandato, Sarney passou a dedicar cada vez mais tempo às
viagens internacionais, visitando a União Soviética, pouco antes de sua desintegração e a
China, no começo de sua ininterrupta ascensão econômica e política. O ano de 1989 não foi
somente o da queda do muro de Berlim e do começo do fim do comunismo na Europa Central
e Oriental. Marcou também na América do Sul a convulsão do governo que havia
reinaugurado a democracia na Argentina em meio ao júbilo e à esperança. Compelido pela
hiperinflação e pelos saques ao comércio, Alfonsín antecipou as eleições para maio e passou
o cargo ao sucessor, Carlos Menem, em julho, cinco meses antes do término do mandato.
No Brasil, o final do governo também foi difícil. Nas eleições de 1989, mais de vinte
candidatos disputaram a presidência. Entre eles, o veterano Ulysses Guimarães, Leonel
Brizola, Lula, Mário Covas, Aureliano Chaves, Paulo Maluf, e o neófito ex-governador de
Alagoas, Fernando Collor de Mello. Participaram do primeiro turno (15/11/89) mais de 82
milhões de eleitores (88% do total do eleitorado), que deram vantagem de 28,5% a Collor
contra 16% a Lula. No segundo turno (17/12/89), Collor de Mello sairia vencedor com 42,7%
contra 37,8% de Lula.
Talvez nenhum outro governo da História recente do país tenha deixado de receber a
justa valorização que merece como o de Sarney. O exagero e irrealismo das expectativas
reprimidas durante o longo ocaso da ditadura, a frustração com a morte de Tancredo, a
decepção com o anticlímax do extraordinário êxito seguido do malogro do Cruzado, foram
alguns dos fatores que concorreram para um juízo demasiado severo do primeiro governo de
uma nova era. Não havia então paralelos históricos democráticos com que cotejar aqueles
cinco anos inaugurais.
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Passados agora 30 anos do seu fim e contraposto aos sete governos que o sucederam, o
governo Sarney aparecerá a olhos isentos como o que semeou muito do que outros haveriam
de colher, como a fase inevitavelmente árdua de lançamento das bases sobre as quais deveria
ser edificada a democracia de massas no Brasil. Sobretudo, a comparação tornará claro que
esse já distante passado foi muito melhor que nosso triste presente. Se não formos capazes
de resgatar os valores daquele começo, estaremos condenando o futuro a ser pior que nosso
passado.