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Repetição

O mundo se movimenta de forma cíclica, parece que tudo tende a repetição, dias e noites
se sucedem, assim como as estações do ano e com elas os eventos inerentes a cada etapa,
como por exemplo o cair das folhas das árvores no outono ou o precipitar dos flocos de neve no
inverno e também a inebriante beleza dos floresceres na primavera ou o desabrochar dos frutos
no verão. O revoar dos pássaros típicos de cada época também se sucedem ano após ano, e o
ciclo das águas é um constante fluir e refluir.
A humanidade convencionou registrar a passagem do tempo através dos ciclos de dia e
noite, dividindo cada repetição em períodos, os quais são registrados pelos ponteiros dos relógios,
onde os ponteiros dos segundos, a cada ciclo de sessenta espaços completado marcam um
minuto, a cada ciclo de sessenta minutos temos uma hora, a cada vinte e quatro horas um dia e
dessa forma os ciclos vão se repetindo.
Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, dito um dos filósofos da natureza, nascido entre
500 e 450 a.c. foi o primeiro pensador ocidental do qual existem registros que tenha observado a
característica de fluição inerente ao mundo sensível. De fato, Heráclito é autor do pensamento de
que não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, posto que nem o rio, tampouco o banhista
conservam-se os mesmos ao longo do tempo, ainda que seja por um curto lapso temporal.
Ensinava o filósofo que na natureza tudo está em constante movimento, e que, portanto, a
essência das coisas é a impermanência, com tudo se modificando a todo momento, repetindo-se
em ciclos. Pensamento que ainda hoje surpreende, quanto mais em se considerando a época em
que foi proferido, pois o eminente pensador dada a inexistência de equipamentos aprimorados de
medição, dispunha basicamente de seu raciocínio acerca dos fatos que observava.
Interessante observar que a filosofia oriental também coloca as coisas em termos bastante
parecidos, quando afirma que o mundo que se pode perceber através dos sentidos físicos, sendo
então, empiricamente percebido é um mundo de ilusão, onde nada é ou permanece, denominado
pelos vedas, que são os livros sagrados tanto do hinduísmo quanto do budismo, de mundo de
Maya, que é a deusa ou força da ilusão. Os vedas trazem ainda a noção da roda de samsara,
que seriam ciclos reencarnatórios aos quais os seres estão presos, em contínuos movimentos de
nascimento e morte, na busca da libertação dessa necessidade.
A filosofia chinesa propõe o princípio do yin e yang, que são energias complementares
presentes em tudo o que existe, e que estão constantemente se movimentando, de forma que
todas as coisas existentes possuem as duas energias, ora predominando uma ora predominando
a outra, numa constante dança energética em busca do equilíbrio.
As doutrinas religiosas ocidentais não ofereceram um percurso muito diferente acerca das
amarras existentes quanto à repetição, senão basta se pensar na noção do pecado, que desde
Adão e Eva a humanidade vem repetindo sem cessar em maior ou menor grau, num ciclo
interminável.
A moderna física das partículas propõe que o universo não seja composto de partículas
elementares formadoras de tudo que há (o átomo já proposto por Demócrito de Abdera, outro pré-
socrático), mas que na verdade esteja tudo mergulhado numa espécie de grande “caldo
energético”, onde as fomas que se manifestam empiricamente sejam tão somente uma
manifestação desse caldo naquele dado momento. A interação e troca de posições dentro desse
“caldo” são constantes, num perene movimento de ir e vir.
Para a maioria das pessoas a vida também se desenrola numa sucessão de ciclos, pois há
o despertar diário, as atividades desenvolvidas num emprego que possa garantir a subsistência, o
retorno para o lar, e o sono reparador que permite a retomada do ciclo na manhã seguinte. Cada
período semanal conta com um final de semana, onde como regra são repetidas as mesmas
experiências, numa nova repetição de ciclos. Em algum dia pré-determinado da semana algumas
pessoas tem uma atividade de lazer, que pode ser o futebol semanal com os amigos, o jogo de
cartas, ou de xadrez, ou ainda um encontro com os colegas de trabalho, novamente está aí
estabelecida uma repetição.
Freud observou que essa natureza repetitiva se manifesta também em relação aos
comportamentos, como relata em seu texto “recordar, repetir e elaborar, de” 1914, onde o
neurologista registra suas conclusões tiradas dos atendimentos terapêuticos, momentos nos quais
ele pode constatar que muitos pacientes, a despeito de afirmarem não se lembrarem de eventos
que foram recalcados, tinham o hábito de repetir comportamentos relacionados a esses eventos,
ainda que fossem dolorosos. Freud apresenta nesse texto o exemplo de uma paciente, já idosa,
transcrito abaixo:

“Quero mencionar, como exemplo extremo, o caso de uma velha senhora que repetidamente
abandonava a casa e o marido, em estado de semi ausência e ia para um lugar qualquer, sem
tomar consciência de algum motivo para essas fugas. Ela iniciou o tratamento com uma
transferência afetuosa, bem desenvolvida, intensificou-a com rapidez inquietante nos primeiros
dias, e ao final de uma semana fugiu também de mim, antes que eu tivesse tempo de lhe dizer
algo que pudesse prevenir tal repetição”.

É claro que o paciente não percebe esse padrão de repetição, então, cabe ao analista a
tarefa de trazer luz para essa questão, de maneira a fazer com que ele reconheça a situação e a
compulsão pela repetição, através da transferência, possa ser reconhecida e alterada.

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