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Robert E. Howard,

Organização e seleção do conto desta edição: MARCELO


ALVES

Tradução: Marcelo Alves


Revisão: Rodrigo Martins

Edição e Diagramação: MARCELO ALVES


Revisão final: ROBILAM JR.

Colaboradores nesta edição: Rodrigo Martins

Título original do conto: The Coming of El Borak

Design da capa baseado na arte de Tim Bradstreet.

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Vol. I , n0 01 janeiro, 2022

A EQUIPE CRIATIVA DO FORUM....................................6


EDITORIAL...........................................................................8
A CHEGADA DE EL BORAK (conto).................................10
APOIADORES......................................................................44

AS AVENTURAS DE EL BORAK ESCRITAS POR ROBERT E.


HOWARD é um fanzine digital produzido pelo FORUM CONAN, O
BÁRBARO, 2022.

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Por MARCELO ALVES

El Borak. Um pistoleiro do oeste americano enfrentado


seus inimigos ocasionais no distante Afeganistão. Um roteiro um
tanto diferente daqueles no qual Robert E. Howard é lembrado
hoje com suas histórias do embate entre bárbaros contra
feiticeiros, monstros e forças sobrenaturais contido nos contos de
Espada & Fetiçaria. Entretanto, El Borak é um personagem que
foge aos padrões contidos no gênero da Espada & Feitiçaria. Por
quê??? Porque El Borak (cujo nome é Francis Xavier Gordon) é
um personagem criado e escrito para o gênero da Aventura.
Lembram que um dos grandes objetivos de Howard era entrar no
mundo extremamente concorrido das pulps que continham contos

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exclusivamente de aventuras como a revista Adventure?
Assim, Robert E. Howard também começou a escrever
narrativas que se desenrolaram no deserto do Oriente Médio. Suas
novas histórias tinham a intenção de entrar no mercado pulp da
Fantasia e da Aventura. Isso fez com que Howard começasse a
ampliar seu mercado como escritor de pulps, introduzindo outros
gêneros literários aos seus escritos, expandindo suas narrativas
para além do gênero conhecido como Espada & Feitiçaria (gênero
esse no qual ele ficou mundialmente conhecido com o seu
personagem Conan, o Bárbaro). Dessa forma, na metade da
década dos anos de 1930, Howard começou a escrever contos que
continham elementos exclusivamente do gênero da Aventura e
outros com elementos do gênero da Fantasia.
No gênero da Fantasia, ele começou a escrever contos de
detetives (com Steve Harrison, Butch Gorman, Brent Kirby e
Butch Cronin) e no gênero da Aventura começou a escrever
histórias com os personagens El Borak, Kirby O’Donnell e Lal
Sigh.
Tanto o personagem El Borak, quanto Kirby O’Donnell
foram a porta de entrada para que Howard entrasse no mercado
das revistas pulps de aventuras da década de 1930. As primeiras
histórias dele nesse campo foram publicadas nas revistas Action,
Thrilling Adventures e Top-Notch.

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Basicamente, as histórias de El Borak escritas por Howard
são de 18 contos completos e alguns fragmentos, e eu posso
afirmar a vocês, leitores de Howard, que esses contos são todos
inéditos em língua portuguesa, exceto os contos “A Filha de Erlik
Khan” e os “Filhos do Lobo Branco”.
Então, o Forum Conan tem a honra de introduzir um conto
de origem desse personagem aos leitores brasileiros e, quem sabe,
apresentar todos os demais contos de El Borak escritos por
Howard em futuras edições digitais ou, nunca é demais sonhar, em
uma edição impressa com o selo exclusivo do Forum Conan o
Bárbaro.

Marcelo Alves

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Você também pode ler um pouco mais sobre quem foi El Borak
nessa resenha desta edição da revista da A SEMANA
SELVAGEM DO FORUM CONAN, nesse link:

https://drive.google.com/file/d/1nh0oxJhT_b29pB_pXp0KkTko_r
DdjFsv/view
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A CHEGADA DE EL BORAK
The coming of El Borak
De Robert E. Howard

Este relato me contaram em Delhi. O narrador era um


cavaleiro nortenho de olhar de falcão, um afridi, um tal de Khoda
Khan.
— Sahib, não é estranho para você que os britânicos
dominem a Índia quando do outro lado da sua fronteira, vivem
homens como eu?
— Veja, por exemplo, você e eu. Eu poderia te matar com
uma mão.
— O que seria de você se você se encontrasse sozinho nas

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montanhas?
— E apesar de tudo, sua raça domina o mundo.
— Não, não se trata de força física; isso não é decisivo nas
querelas entre nações. É sobre outra coisa. Algo difícil de definir,
que o Ocidente tem e o Oriente não.
— Unidade? Sim, mas não é só isso.
— Considere, por exemplo, a história do mulá Hassan e da
memsahib Marion Sommerland.
— A história?
—Certamente, sahib.
“Entre a miríade de montanhas que se estendem pela
fronteira, a muitos quilômetros do território controlado pelos
britânicos, há uma aldeia em um vale. Esse vale é Kadar, e a
aldeia é a aldeia de Kadar. Essa é minha terra, sahib, e, dentre
todas as tribos afegãs, é uma das mais fortes”.
“Qual é a lei para nós? O que nos importa a lei dos britânicos
ou a do emir? Roubamos caravanas e saqueamos na Índia,
arrebatando as esposas dos hindus e de muitas outras tribos, antes
da chegada de El Borak. Nossa única lei eram as palavras do mulá
Hassan e do chefe Khumail Khan, que era um poderoso
espadachim”.
”De maneira que, sendo eu ainda muito jovem, mal
atingindo a puberdade, aconteceu que, junto com outros jovens da

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aldeia, cavalguei até a fronteira na esperança de arrebatar alguns
rifles dos ingleses. Lá estava eu. E comigo veio Yar Ali Khan —
que era o melhor espadachim da tribo, e Kulam Khan, Abdullah
Din, Mohammed Ali, e Yar Hyder, que era o mais velho dos
quatro, embora Abdullah Din tivesse quase a mesma idade. Yar
Ali Khan, Mohammed Ali e eu, por outro lado, éramos muito
jovens”.
“Estávamos espreitando no meio do território britânico
quando avistamos uma jovem memsahib inglesa, cavalgando
sozinha. O que pode levar uma mulher a galopar sozinha pelas
montanhas é algo que não sei, mas todos sabem que as mulheres
inglesas são excêntricas e imprudentes”.
— Entãaao... —Yar Hyder parou—. Veja. Essa mulher
poderia nos trazer um bom resgate, pois já a vi antes, em
Peshawar, e sei que ela é filha do coronel sahib Sommerland.
“Nos escondemos e armamos uma emboscada; e quando ela
passou por nós, saltamos sobre ela. Yar Ali, Abdullah Din e Yar
Hyder seguraram seu cavalo. Decidi agarrar a garota pela cintura e
puxá-la para fora da sela”.
“Depois de um tempo, conseguimos amarrá-la e amordaçá-la,
e então a colocamos de volta em seu cavalo, amarrando seus pés
aos estribos. Em seguida, partimos para as montanhas”.
“E após percorrermos certa distância, removemos a mordaça,

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pois ela era uma garota linda e suave, e não queríamos lhe causar
o menor dano. Ela nos perguntou para onde a estávamos levando,
e Yar Hyder, que falava inglês melhor do que o resto de nós, disse
que ela seria mantida para pedir resgate. Imediatamente, ela
ordenou que a levássemos de volta, ameaçando-nos com retaliação
do Exército Britânico, o que não pudemos deixar de rir. Então ela
disse que seu pai não pagaria o resgate”.
— Pois então, vamos enviar você a ele em muitos pedaços —
Abdullah Din ameaçou com um sorriso malicioso.
Yar Ali o amaldiçoou e ordenou que ele ficasse quieto.
Abdullah Din era maior do que ele e um guerreiro poderoso, mas
Yar Ali não temia ninguém.
Depois de percorrermos cerca de metade do caminho até
Kadar, paramos sob a sombra de uma montanha para descansar e
comer alguma coisa. Desmontei a garota de seu cavalo, e ela me
lançou um olhar tal que eu a deixaria voluntariamente e teria
fugido para as montanhas se não fosse pela vergonha que isso teria
causado aos meus camaradas. Nós a desamarramos e lhe demos
comida e bebida, e ela parecia tão abatida e desamparada que
todos nós sentimos compaixão por ela. Todos, exceto Abdullah
Din. Ele era um homem forte e muito perverso e sugeriu que
tirássemos a sorte. Nos recusamos.
— Não, por Alá — disse Mohammed Ali—. Somos todos

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parceiros nisso e compartilharemos o resgate em pé de igualdade.
— Vocês são crianças — zombou Abdullah Din —. Mas eu
sou um homem e pego tudo que quero.
E ele se lançou sobre a jovem. Ela lhe deu um tapa e ele a
derrubou no chão.
— Covarde! — Yar Ali Khan exclamou, batendo-lhe no rosto
com a mão aberta. — Atreva-se com um homem, não com uma
garota fraca.
Então Yar Ali Khan e Abdullah Din entraram em confronto
ali mesmo e, eventualmente, Yar Ali acabou jogando Abdullah
Din da borda da montanha.
— Você foi avisado — exclamou Yar Ali, embainhando seu
tulwar—. Que ninguém coloque a mão na memsahib.
Mas nenhum de nós teria essa intenção, mesmo que Yar Ali
não tivesse dito nada.
A jovem não se machucou, mas estava com muito medo e,
pela primeira vez, chorou um pouco e implorou que a levássemos
para casa. Sentimos pena dela quando a vimos chorar, mas nos
lembramos do ouro que seu pai nos daria como resgate. Então, no
final, continuamos nossa jornada até a vila de Kadar.
As pessoas correram para ver o que havíamos trazido e,
quando viram a garota, uivaram como matilhas de lobos
geralmente uivam quando os vales são bloqueados pela neve, e as

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matilhas chegam muito perto das aldeias. Mas nós os forçamos a
recuar e não permitimos que ninguém a tratasse mal. Você diz que
esse não é o estilo dos afridis? Talvez não, sahib, mas todos
sentíamos um misto de pena e admiração pela memsahib e nos
considerávamos seus amigos, mesmo que ela não achasse isso.
Então o líder, Khumail Khan, chegou com o rosto franzido e
o andar decidido de um homem poderoso, e o povo se separou
quando ele chegou. Ele olhou para a garota como um tigre olha
para um jovem cervo.
— Fomos estúpidos em trazê-la aqui — sussurrou
Mohammed Ali para mim, e eu sabia que ele falava sério porque
não seríamos capazes de lidar com o chefe.
— Onde você pegou a garota? — Perguntou Khumail Khan.
— Bem deste lado da fronteira — respondeu Yar Ali
brevemente. O chefe deixou seu olhar vagar entre nós.
— Onde está Abdullah Din? — ele perguntou.
— Eu o matei — respondeu Yar Ali. — Eu o matei com
minha faca khyber e o joguei montanha abaixo.
— Por quê?
— Porque ele se atreveu a colocar as mãos na garota e a teria
tomado para si. Enquanto falava, Yar Ali abaixou a mão,
permitindo que descansasse no cabo de sua faca, e olhou
diretamente para Khumail Khan. Achei que o chefe ia brandir seu

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tulwar e derrubar Ali no chão, mas ele não disse nada. Seus olhos
voltaram-se para a jovem, que baixou o olhar ao notar seu
escrutínio.
— Leve-a para minha cabana — ele ordenou, mas não
fizemos nenhum movimento para obedecê-lo.
— Você não tem ouvidos? — Khumail Khan insistiu
ferozmente, enquanto colocava a mão em seu tulwar.
— Sim, e também temos facas — respondeu Yar Ali. E
imediatamente peguei a minha também. Eu tinha medo de
Khumail Khan, mas não tanto que não apoiasse meu amigo.
Mas quando parecia que o chefe e Yar Ali estavam prestes a
se atacar, o mulá Hassan se colocou entre eles.
— Haja paz, haja paz! — Ele ordenou e o chefe deu um
passo para trás. Até ele temia o mulá, que poderia lançar a
maldição do Alcorão sobre qualquer um que o ofendesse. Mas Yar
Ali manteve o olhar fixo e não deu um passo para trás.
— Não deve haver combates na aldeia de Kadar — ordenou o
mulá. Como ninguém falou, ele continuou: — Esta mulher não
deve ser causa de conflito, por isso vou levá-la comigo ao templo
e tentar convertê-la à fé. — E então vi a mesma expressão em seus
olhos que eu tinha visto nos de Abdullah Din e depois nos de
Khumail Khan.
Nenhum de nós falou, exceto Yar Ali.

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— Bem jogado, sacerdote — ele zombou. — Sim, é claro que
você "converteria" a memsahib. Eu penso que sim! Pela força
desse braço, essa garota pertence a mim e também a Yar Hyder,
Khoda Khan e Mohammed Ali. E somos homens o suficiente para
defender nossas posses!

O mulá hesitou. Yar Ali não temia homem nem diabo algum,
e acho que Hassan tinha medo dele. Portanto, tivemos sorte. O
chefe não se atreveu a ficar com a garota por medo do mulá, e o
mulá também não se atreveu, por medo de Yar Ali Khan.
Mas o mulá era muito astuto.
— Deixemos que o problema se aquiete — sugeriu. — Que
ninguém machuque a jovem, e decidiremos no Conselho o que
devemos fazer com ela.
— Não precisamos de nenhum Conselho para decidir isso —
disse Ali. — A garota será bem tratada até ser resgatada e, então,
retornará aos britânicos ilesa. E o resgate será dividido entre nós
quatro: eu, Khoda Khan, Yar Hyder e Mohamrned Ali.
— Chega — disse o chefe impacientemente. E se afastou a
passos largos.
Nós nos viramos para a garota, que havia permanecido
sentada no cavalo durante toda a discussão, sem entender do que
se tratava, mas assustada de igual maneira. Mesmo assim, ela se

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esforçou para não demonstrar medo demonstrar medo, e nós a
admiramos por isso.
— Vocês já me trouxeram aqui. Agora o que vão fazer
comigo? — Ela perguntou.
— Você será bem tratada até que o resgate chegue,
memsahib. — Foi Yar Hyder quem respondeu. — Ficará em
minha casa e será cuidada por minhas esposas.
— Muito bem — disse ela, solenemente. — Por favor, me
leve lá agora mesmo, porque estou muito cansada.
Yar Hyder era o único dos quatro que era casado, então
colocamos a memsahib aos cuidados de suas esposas, e Yar Ali
não hesitou em fazer todos os tipos de ameaças horríveis sobre o
que poderia acontecer se ela não fosse bem tratada.
Em seguida, Mohammed Ali se encarregou de levar uma
mensagem ao forte onde se encontrava seu pai, indicando que a
garota havia sido sequestrada por bandidos, mas que seria
devolvida em segurança em troca da soma de cinco mil rúpias,
quatro rifles e quinhentas peças de munição. A mensagem (foi
escrita por Yar Hyder, que podia escrever não apenas em pachto,
mas também em urdu), também dizia que se Mohammed Ali não
voltasse para a tribo dentro de um tempo especificado, a jovem
seria morta. Mohammed entrou corajosamente no forte e entregou
a mensagem ao coronel. Não se atreveram a machucá-lo ou

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prendê-lo, por medo do que poderia acontecer com a garota, e ele
não questionou seu bom senso.
Então o coronel retrucou colérico com seu teimoso orgulho
britânico.
— Não vou pagar uma única rúpia! — jurou. — Mas se
Marion não voltar em segurança, irei arrasar as montanhas e
exterminarei sua tribo.
— Sim, sim — zombou Mohammed. — Isso se você
soubesse onde estão minha tribo e minha aldeia!
E o coronel praguejou ao ouvir isso, pois nenhum inglês sabia
onde Kadar estava.
— Se minha filha não me for devolvida como combinamos
— disse o coronel, — enviarei um exército para arrasar as
montanhas.
— E se o resgate não for deixado onde combinamos, naquele
exato momento — respondeu Mohammed Ali — o povo da minha
tribo vai derrubar a garota de um penhasco de três mil metros.
O coronel enrijeceu de raiva, mas não pôde fazer nada.
Quando Mohammed começou a voltar, alguns batedores tentaram
segui-lo, mas como ele era muito experiente nas estradas de
montanha, riu deles e os enganou.

Naquela época, Khumail Khan era o chefe de Kadar, mas

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havia três pessoas que queriam sua posição. Eles eram Kulam
Khan, Darza Shah e Yar Hyder. É claro que havia muitos outros,
mas esses três eram os mais poderosos de Kadar, exceto o mulá e
o próprio Khumail Khan. Dos três, Kulam Khan era o mais
temível, mas, apesar disso, mesmo ele não se atreveu a agir
abertamente para tomar a liderança... pelo menos não ainda. Além
disso, qualquer um dos outros dois ficaria com ciúmes e ambos
teriam se juntado a Khumail Khan contra o terceiro; é assim que
as coisas são feitas no Oriente, especialmente no Afeganistão.
Então, um dia depois de capturarmos a garota, Kulam Khan
veio me ver enquanto eu estava sentado em minha cabana e disse:
— Parece que você, Yar Ali e os outros fizeram a inimizade
de Khumail Khan com o mulá.
— Parece que sim — respondi laconicamente.
— Khumail Khan a quer para si, assim como Hassan —
continuou. — Eles anseiam pelo dinheiro do resgate, mas não o
querem tanto quanto a jovem. Khumail Khan se senta em sua
residência e amaldiçoa o mulá, mas não se atreve a apreendê-lo
por medo dele. E o mulá teme a vingança de Yar Ali e dos
britânicos. Além disso, ele tem medo de influenciar Khumail
Khan e de ir longe demais. Então, é apenas intriga. Há muita
intriga aqui em Kadar.
— Sim — respondi. — E aonde todas essas intrigas nos

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levarão?
— Para o assassinato de homens — respondeu Kulam Khan,
olhando-me nos olhos. — e para a violação de uma garota. Ou
uma possível mudança de liderança.
— Entendo — murmurei, olhando para ele com cuidado.
Por um momento, nenhum de nós falou. Então eu disse:
— Yar Hyder é meu amigo.
— Um chefe precisa de alguém para ser seu braço direito —
respondeu Kulam Khan.
— Fale claramente — eu lhe pedi.
— Pois bem. — Ele olhou em volta para se certificar de que
ninguém estava nos espionando. — Ajude-me quando eu atacar
para assumir o governo de Kadar, e juro que a garota não sofrerá o
menor dano e ninguém questionará seu direito ao resgate total. E
farei com que você vote no conselho e na guerra. Tudo isso eu
farei por você, se Yar Ali e você me ajudarem.
—E quanto a Yar Hyder? —Eu perguntei.
—Se me ajudar, prometo o mesmo para ele. E também para
Mohammed Ali. Mas não diga nada a Yar Hyder ainda, pois ele
pode me trair para Khumail Khan.
Fiquei em silêncio por um momento.
— Pense no que eu disse a você — disse Kulam Khan,
levantando-se. —Confio em você, Khoda Khan, porque não tem

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afeição por Khumail Khan, e também não parece muito dado à
traição, o que parece bastante estranho, sendo um afridi como
você é. Fale sobre isso com Yar Ali.
Então ele saiu e eu o observei ir embora. Alto, ereto e
orgulhoso, ele usava o tulwar como um homem de grande
coragem. Diziam que ele tinha sangue duraniano e eu acreditava
nisso. Kadar ficaria feliz em ter Kulam Khan como seu chefe.
Pouco depois, conheci Yar Ali, que estava sentado em sua
cabana, e contei-lhe tudo o que Kulam Khan me contara.
— É melhor ajudá-lo — eu disse, — ou então o chefe fará o
possível para pegar a garota. E se não o fizer, o mulá o fará. Além
disso, se Kulam Khan alcançasse a liderança sem nossa ajuda, ele
poderia decidir manter a garota ou o resgate.
— Por Allah! — Yar Ali jurou, cravando sua faca khyber no
chão da cabana, como costumava fazer quando estava com raiva.
— Não estou desistindo da garota nem do resgate, apesar de
Khumail Khan, Kulam Khan, o mulá e o próprio diabo!
— Por que deveria ajudar Kulam Khan? Por que deveria
ajudar qualquer afridi?
— Por Allah! Por Allah! Tudo que eu quero é aquele resgate,
que me permitirá deixar essas malditas montanhas para trás e ver
algo do mundo exterior. Você pode ir ver Kulam Khan e dizer a
ele que vou matar Khumail Khan quando quiser, e não antes. E

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quando eu o matar, deixe Kulam, Darza ou Shaitan lutarem pela
liderança e que todos vão para o inferno!
Deixei-o ali, sentado em sua cabana, rosnando e enfiando a
faca no chão repetidamente. Um homem estranho, Yar Ali Khan.
Não ousei transmitir suas palavras a Kulam Khan por medo
de que o chefe suspeitasse, visto que falávamos com tanta
frequência. Também não me dirigi a Yar Hyder, pois ele também
desejava a liderança e teria sido difícil para ele se afastar e assistir
a Kulam Khan conquistá-la.
Mas falei com Mohammed Ali e ele me respondeu que
ajudaria Kulam Khan.
— Contra Khumail Khan, seria capaz de ajudar até mesmo
Darza Shah —ele me disse.
Por fim, chegou o dia de ir buscar o resgate. As tropas
britânicas vasculharam as montanhas, mas não conseguiram
localizar Kadar, então pensamos que o coronel sahib teria recuado
e trazido o resgate.
A ideia era que Yar Ali e eu nos esgueirássemos até o local
onde o resgate deveria ser depositado e, uma vez ali, nos
escondêssemos e espionássemos para ver se ele seria entregue. Se
assim fosse, voltaríamos a Kadar e, se tudo corresse bem, nós
quatro, Yar Ali, Yar Hyder, Mohammed Ali e eu, levaríamos a
garota ao local combinado.

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—E por Alá! — disse Yar Ali ao povo de Kadar. — Se a
garota sofrer o menor dano, vou arrasar Kadar até os alicerces!
Vou queimar e matar. Vou matar todos os homens, mulheres e
crianças de Kadar!
Pouco depois saímos da aldeia.
Não sabia a causa que poderia levar um grupo de bandidos de
zakka khel a se afastar tanto de seu território, já que normalmente
não se atreviam a penetrar nas terras dos afridi, mas o primeiro
indício que tivemos de sua presença foi quando o estrondo de um
tom jezail soou do lado da montanha e a bala que ele disparou
passou roçando meu rosto.
Pulamos atrás das rochas e respondemos ao fogo. O tiroteio
durou alguns minutos, durante os quais nenhum dos lados
conseguiu acertar o outro, mas havia dez dos zakka khels, e eles se
aproximavam cada vez mais, rastejando de pedra em pedra,
atirando enquanto avançavam.
Um deles revelou-se indiscreto e deixou o turbante à mostra
por cima da rocha por um momento. De maneira que, logo depois,
restavam apenas nove zakka khels.
Yar Ali e eu começamos a recuar, deslizando de um toco de
pedra para o outro, acompanhando o ritmo de nossos atacantes.
Então, enquanto rodeava um grande toco de rocha, fiquei cara
a cara com um zakka khel que estava circulando para nos

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surpreender por trás.
Eu estava com o tulwar desembainhado na mão e o esfaqueei
antes que ele pudesse levantar seu rifle.
Então, uivando como selvagens, eles se lançaram sobre nós.
Quando se expuseram, o rifle de Yar Ali abateu um deles, mas o
resto conseguiu nos alcançar. Assisti Yar Ali derrubar três deles,
com três golpes consecutivos de seu tulwar, e então não tive
tempo de continuar assistindo, pois me vi lutando contra um
gigantesco zakka khel, que também era um espadachim feroz. Até
aquele momento pensava que não havia mais do que dez, mas ou
eu estava errado, ou outros se juntaram a eles.
Por Alá, eles se lançaram sobre nós como uma matilha de
lobos contra um tigre!
Eu estava com muita pressa em me defender, e por fim o
zakka khel deu uma risada zombeteira, erguendo seu tulwar para
desferir o golpe que me mandaria para o Iblis. Mas quando ele
ergueu o braço, no alto das montanhas, um rifle retumbou, e o
zakka khel caiu no chão como um fardo.
Yar Ali encostou-se em uma rocha, enquanto lutava por sua
vida. Suas roupas estavam completamente rasgadas e sua faca
khyber estava vermelha até o cabo. Quatro zakka khels jaziam a
seus pés.
Quando eles se reagruparam para nos dominar com seu

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número, o rifle foi ouvido novamente, e outro inimigo caiu no
chão com uma bala no rosto. Os guerreiros olharam ao seu redor e
logo depois um deles caiu morto.
Então assisti uma cena muito estranha. Um homem branco
descia a encosta, vestindo um traje de montaria e um daqueles
capacetes que os ingleses costumam usar quando cavalgam no
deserto. Ele desceu a encosta quase sem tocar na rocha; pelo
contrário, movia-se rapidamente, saltando de um toco de rocha
para outro como uma cabra montesa.
Os zakka khels o notaram. Ficaram parados olhando para ele
e então... Maravilha das maravilhas! Fugiram de lá como se o
próprio diabo estivesse atrás deles!
O homem branco acabou de descer a montanha. Nós o
observamos em silêncio. Ele não era um homem excessivamente
alto, mas um homem de estatura média, magro e delgado. Seus
cabelos e olhos eram pretos e seu rosto exibia um sorriso.
Yar Ali e eu nos entreolhamos em silêncio. O estranho se
aproximou de nós, com um sorriso confiante, como se nada tivesse
a temer. Quando ele estava a poucos metros de nós, pudemos ver
melhor seus olhos negros. Eram uma reminiscência de um lobo.
Ele nos cumprimentou à maneira de nossa terra e, após nos
examinar sem aparente pressa, disse:
— Meu nome é Gordon. Vim buscar a memsahib

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Sommerland.
—Você não traz o resgate contigo?
—Ha! Você realmente acha que eu entraria em uma toca de
lobos com toda essa riqueza? — ele respondeu. — Mas sei bem
onde o escondi e vou levá-los lá assim que tirarmos a garota de
sua aldeia.
Yar Ali e eu ficamos em silêncio. Nada estava saindo da
maneira que esperávamos. Este homem estava nos pedindo para
levá-lo para nossa aldeia, e ele nem mesmo trouxe uma parte do
resgate com ele, como prova de boa fé.
— Agora é você que nos considera tolos — declarou Yar Ali.
— Acha que vamos levá-lo à nossa aldeia para que possa dizer aos
ingleses onde ela fica?
O homem branco fixou nele os olhos negros e brilhantes, e
Yar Ali desviou o olhar.
— Eu não vou traí-los. Leve-me até a garota e eu lhes
entregarei o resgate.
— Vocês têm minha palavra.
Isso pareceu encerrar a questão. Não sei por que decidimos
confiar nele, já que ele não nos deu a menor garantia, mas a
verdade é que fizemos um acordo e partimos. No entanto, meu
parceiro parecia irritado por ter cedido e foi rápido em acrescentar:
— É melhor você ser honesto, sahib, porque se eu vir o

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menor sinal de que está tentando nos trair, estará morto antes que
possa fazê-lo.
— Seria melhor que você se preocupasse menos comigo —
disse o estranho, — e mais com seu próprio povo. Não lhe ocorreu
por que o local de encontro estava lotado de zakka khels?
Yar Ali e eu trocamos um olhar de inteligência novamente.
Sahib Gordon estava certo. Aqueles cães zakka khels tinham ido lá
sabendo que apareceríamos, e que havia um resgate a cobrar. Mas
quem em toda Kadar nos traiu? Nós descobriríamos isso em breve.
E então...

II.

Chegamos à aldeia ao meio-dia. Havia poucas pessoas fora


de suas cabanas, e aqueles que encontramos evitavam nossos
olhares e corriam para entrar em suas casas. Um presságio
sombrio se apoderou de nós e se cumpriu quando chegamos à casa
de Yar Hyder. Lá fora, várias de suas mulheres choraram
inconsoláveis, ajoelhadas ao lado de uma forma inerte. O rosto de
Yar Ali empalideceu de fúria enquanto olhamos para o corpo
maltratado de Yar Hyder, esparramado no solo árido com o cabo
de uma adaga se projetando entre as omoplatas. Mas enquanto Yar
Ali ruminava com fúria e o sahib olhava para nós, preocupado, eu

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me ajoelhei no chão, ao lado de meu velho companheiro e, depois
de me certificar de que ele ainda estava vivo, perguntei a suas
mulheres onde estava a memsahib.
— Khumail Khan a levou — disse a mais velha delas. — Ele
apareceu esta manhã, junto com o mulá e alguns de seus homens
fiéis. Disseram que você foi emboscado pelos ingleses e que
nunca mais voltaria. Yar hyder se recusou a acreditar e não estava
disposto a entregar a memsahib a Khumail Khan, mas então o
próprio mulá o esfaqueou pelas costas.
As mulheres nada sabiam sobre Mohammed Ali e não o
encontramos em sua casa, então presumimos que ele teria sofrido
um destino semelhante. Yar Ali e eu temíamos que ele não tivesse
tido a mesma sorte de Yar Hyder.
— Por Alá! — Yar Ali Khan praguejou entre os dentes. —
Muitos homens vão pagar por essa traição com sangue. Vou cortar
a garganta de Khumail Khan e daquele mulá fedorento, mesmo
que tenha que lutar contra eles e seus homens sozinho.
— Você não estará sozinho — disse uma voz próxima.
Surpresos, porque não tínhamos ouvido ninguém se aproximar,
nos viramos e olhamos para Kulam Khan. — Tenho uma dúzia de
homens fiéis comigo, que me seguirão aonde quer que eu vá.
Além disso, quando o povo da aldeia souber da traição de
Khumail Khan, poucos o apoiarão.

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Yar Ali murmurou uma maldição sobre a estupidez dos
aldeões. Como eu, sabia muito bem que Khumail Khan pretendia
contar a eles uma história muito diferente, e que eles acreditariam
para evitar conflitos. No entanto, meu companheiro olhou Kulam
Khan nos olhos e acenou com a cabeça. Então partimos.
Éramos um estranho grupo aquele que formávamos, enquanto
avançávamos a passos firmes pelos becos de Kadar. Khumail
Khan e seus seguidores, determinados a mudar de mãos a
liderança da aldeia, sahib Gordon, que viera resgatar a memsahib
Sommerland e parecia se adaptar à situação com a maior
facilidade e, finalmente, Yar Ali e eu, sedentos de justiça e
vingança.
A residência de Khumail Khan ficava no alto da aldeia, muito
perto da caverna que servia como residência do mulá Hassan.
Embora esses dois não se dessem muito bem, lembrei que eles
precisaram se aliar para arrebatar a memsahib de nós, e me
perguntei que tipo de acordo haviam feito e quem seria o primeiro
a quebrá-lo. Não me agradava levantar a mão contra o mulá, e sei
que Kulam Khan e seus homens compartilhavam meus escrúpulos,
pois Hassan era famoso por suas constantes ameaças, prometendo
lançar a maldição de Alá sobre todos aqueles que o ofendessem.
Não sei se tais coisas são descritas no Alcorão, mas em mais de
uma ocasião eu o vi acender braseiros e murmurar certas palavras

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e, em tais casos, um homem havia morrido. Fiquei feliz por ter
Yar Ali Khan ao meu lado, pois sabia muito bem que não tinha
medo de nenhum homem ou demônio.
Irrompemos na casa do chefe com a resolução de almas
vingativas, empurrando para o lado os guardas postados na porta.
Os presentes gritaram de surpresa, mas também não estávamos
imunes ao espanto, pois Yar Ali e eu soltamos uma exclamação.
Diante de nós, e dos que estavam ali reunidos, estava a
memsahib Sommerland, vestida como uma huri, conforme
instruída pelos escravos de Khumail Khan para executar a dança
do amor. Ela parecia uma deusa, envolta em sedas leves de
bailarinas, e com seus longos cabelos cor de mel escorrendo pelos
ombros. O rosto de Yar Ali se contorceu de ira e ele
imediatamente desembainhou seu tulwar com um olhar que faria o
mais experiente tremer.
Foi nesse momento que Gordon escolheu agir. Ele conteve a
mão de Yar Ali Khan, lançando-lhe um olhar significativo e
sussurrou algumas palavras para Kulam Khan, que, por sua vez,
murmurou algo para um de seus homens, que saiu da casa. Então
Gordon disse em voz alta:
— Meu nome é Frank Gordon e sou aquele que os árabes
chamam de El Borak. Tenho um acordo com esses homens para
me seja entregue a memsahib Sommerland.

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— O que é isso? O que ela está fazendo aqui, vestida de
prostituta, enquanto os homens que deveriam protegê-la estão em
suas cabanas, esfaqueados?
Khumail Khan nos observou, uma mistura de raiva e espanto
em seus olhos. Não tínhamos dúvidas de quem havia preparado a
armadilha com os zakka khels. Mas o chefe era astuto, rápido e
falava com voz digna e ofendida.
— Esta manhã, depois que aqueles homens partiram, fomos
escaramuçados por um grupo de cães da tribo Zakka Khel. Eles
mataram vários de meu povo, incluindo os que você mencionou.
Fizemos com que fugissem, é claro, mas como a memsahib havia
ficado sem proteção, decidimos levá-la até aqui, para que ela
esperasse em um lugar seguro pelo momento do resgate. A roupa
que você vê nada mais é do que uma amostra de nossa
hospitalidade.
— Você está mentindo, cachorro! — Yar Ali Khan
exclamou, desembainhando sua faca khyber. — Você avisou os
zakka khels para nos tirar do caminho, para que pudesse ficar
sozinho com a memsahib. Mas você não contou que seríamos
homens o suficiente para rechaçá-los! Pois bem! Estamos aqui!
Devolva a garota!
Khumail Khan olhou para Yar Ali com um sorriso cruel no
rosto.

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— Ninguém fala assim com o chefe. Você sabe que posso
matá-lo por isso. Você fez acusações infundadas contra o chefe da
tribo, e isso é um crime que é pago com a punição mais severa.
Ele desviou o olhar, mirando para seus guardas, mas quando
estava prestes a dar a ordem, foi interrompido por uma nova voz.
— Não são sem fundamento! — era a voz de Mohammed
Ali, falando da porta, com a cabeça enfaixada e uma cimitarra na
mão. Ele estava acompanhado por uma multidão composta pela
maioria dos jovens da aldeia. — Você enviou seus cães para me
matar, mas eles não conseguiram. Um deles ainda está vivo e não
teve problemas em contar tudo ao povo da aldeia.
O silêncio que se seguiu a essas palavras não foi longo.
Kulam Khan, que sabia aproveitar uma oportunidade quando a
via, deu dois passos à frente, sacou sua cimitarra e exclamou:
— Khumail Khan! Você demonstrou ser um mau chefe, um
mentiroso e um traidor de seus próprios homens! Eu, Kulam
Khan, cuspo em sua liderança e o desafio!
Khumail Khan rugiu como um leão enquanto sacava sua
arma. Em um instante, todos os homens que estavam entre eles se
afastaram de lado, deixando espaço para o combate.
O chefe e Kulam Khan cruzaram as espadas em um choque
de lâminas rápido e cegante que era difícil acompanhar. Khumail
Khan, apesar de seus muitos defeitos, era, como eu disse no início,

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um espadachim feroz, mas o sangue duraniano de Kulam Khan
parecia soprar fogo em suas veias, e sua habilidade com o aço não
estava muito atrás. Khumail Khan se lançou como um touro,
golpeando à direita e à esquerda. Kulam Khan, mais cauteloso,
iniciou esgrimando furiosamente, mas então começou a contê-lo,
usando o mínimo de sua força. Parecia claro que ele pretendia
cansar Khumail Khan, para depois derrotá-lo com facilidade. Mas
o chefe, cego como estava de raiva e desejo, não pareceu notar.
No entanto o mulá percebeu isso instantaneamente. Eu o vi
dar instruções aos homens que o rodeavam, e eles logo formaram
um círculo defensivo ao seu redor. Então ele começou a arrumar
seus braseiros, exatamente como o vira fazer em algumas
ocasiões.
Gordon e Yar Ali trocaram um rápido olhar e então se
lançaram sobre ele. Os homens de Khumail Khan ficaram em seu
caminho, brandindo cimitarras largas, de modo que em um ponto,
enquanto o chefe e Kulam Khan continuavam seu duelo feroz,
uma segunda escaramuça eclodiu, ainda mais sangrenta se
possível. Os homens de Kulam Khan cuidavam da limpeza do
duelo e não estavam dispostos a deixar seu líder sozinho. A traição
é natural para um afridi e todos nós sabíamos que, deixados
sozinhos, os homens do chefe não teriam hesitado em inclinar a
balança a favor de Khumail Khan.

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Então peguei minha cimitarra e me juntei aos meus amigos.
Quando entrei na luta, Gordon e Yar Ali estavam lutando como
dois tigres feridos, golpeando com tanta força que o sangue de
seus inimigos respingou até nas portas da casa. Atrás da muralha
de homens, ouvimos a sinistra ladainha do mulá e sabíamos que
deveríamos nos apressar se não quiséssemos que nosso suposto
chefe morresse antes que pudesse provar seu valor. Com o barulho
das lâminas e o zumbido do mulá, um novo som se juntou a ele: os
apoiadores de Kulam Khan gemeram de preocupação quando
viram que seu líder parecia estar enrijecendo. Gordon não perdeu
um segundo. Decapitando um oponente com um golpe de sua
espada, ele sacou um revólver e mirou nos braseiros além da
muralha de homens. Um único tiro foi suficiente para derrubar os
estranhos braseiros do mulá, acender os tapetes e assustar a
maioria de nossos oponentes.
O mulá Hassan gritou uma ordem e os que permaneceram,
cerraram as fileiras, impedindo-nos de alcançá-lo. Yar Ali, imune
à exaustão, investiu contra eles, seguido por Gordon e eu. Gordon
lutou como um afegão, com a intensidade furiosa de uma
tempestade, ganhando força à medida que avançava. Sua lâmina
traçou um caminho sangrento, rachando crânios e estripando como
a encarnação do diabo.
Menciono o diabo... e não é por acaso, já que o maligno

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também tem lugar de destaque nessa história. Pois quando a luta
terminou — algo que foi difícil para nós vislumbrarmos no início,
enquanto éramos engolfados pela névoa vermelha do frenesi da
batalha — descobrimos que o astuto mulá se recusou a desistir.
Os gritos de aclamação dos homens atrás de nós nos fizeram
perceber que a luta entre Khumail Khan e Kulam Khan finalmente
havia acabado. Não foi necessário nos virarmos para descobrir
quem havia vencido. Os inimigos que ainda nos enfrentavam
baixaram as espadas e alguns fugiram dali com pressa. Seu chefe
havia caído e não havia sentido em ser morto por causa de um
cadáver. Quando recuperamos o fôlego, olhamos ao nosso redor.
O solo estava empapado de sangue e vísceras, e mais de uma
dúzia de homens jaziam mortos ou morrendo. Atrás de nós, os
homens saudaram Kulam Khan como o novo líder, enquanto
Khumail Khan sangrava no chão, ofegando em agonia. Foi então
que percebi que o mulá não estava lá.
— Onde está a memsahib? — Yar Ali perguntou, ofegando
por causa do esforço da batalha.
Uma risada agonizante foi sua resposta. No chão, Khumail
Khan zombou de nós entre estertores de morte.
— Ele... a... levou para sua caverna... esse era o acordo... ha...
ha... para me livrar dela assim que eu tivesse...
Um súbito vômito de sangue negro interrompeu suas

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provocações. Ficamos em silêncio por um momento, tomados por
um medo sombrio que não podíamos explicar. Gordon então
ergueu sua espada e iniciou a perseguição ao mulá, seguido por
Yar Ali. Mohammed Ali e eu os seguimos para fora,
acompanhados por Kulam Khan e seus homens.

III.
A caverna do mulá abria-se na encosta da montanha, ao lado
da casa de Khumail Khan. Havia sido escavada há tantos anos que
nenhum dos nossos mais velhos sabia quando datava. Mas era
muito antiga e a entrada estava coberta de estranhos símbolos
esculpidos na pedra, como se nos tempos antigos a gruta tivesse
servido de templo a alguma religião pagã, anterior à verdadeira fé.
Alguns anciãos sussurraram que era a morada do diabo. Portanto,
quando o mulá se estabeleceu ali, ninguém duvidou de que devia
ser um homem santo, pois qualquer outro homem não teria
resistido a viver em tal lugar.
Nenhum de nós levava tochas, então nossa única luz vinha de
um estranho isqueiro de metal que Gordon carregava na mão
esquerda, que era forçado a desligar de vez em quando. O lugar
tinha um cheiro estranho e parecia úmido e lamacento. Por fim,
depois de passar por várias curvas de pedra escura e viscosa,
ouvimos o grito da mensahib e aceleramos o passo.

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Ao fundo, à nossa frente, observávamos uma estranha
luminescência esverdeada que parecia permear as paredes
rochosas. O mulá segurou a mensahib, forçando-o a prostrar-se em
uma espécie de altar, enquanto levantava a outra mão em direção
ao teto da caverna... um teto que parecia estar aberto para o céu
noturno... um céu azul escuro, com nuvens de cores estranhas,
entre as quais alguns de nós conseguiram vislumbrar uma forma
vaga e tentacular...
Gordon e Yar Ali irromperam na sala subterrânea como uma
explosão. Enquanto Yar Ali enterrava seu tulwar no peito de mulá
Hassan, Gordon atirou no teto contra algo que nenhum de nós
conseguiu ver. Então ele carregou a mensahib no ombro, como se
não pesasse mais do que um odre de água, e eles correram em
nossa direção.
Naquela época, não havia um único de nós que não tivesse
sido vítima de um terror supersticioso. Não tenho certeza do que
vimos naquele dia na caverna de mulá Hassan, nem tenho certeza
de que você queira saber. Mas sei que existem demônios soltos na
terra, e que alguns parecem estar ligados a certos lugares
amaldiçoados. Eu gostaria de pensar que todos nós imaginamos
ver aquela forma tentacular rastejando do teto até o fundo da
caverna, e é provável que tenhamos. Afinal, sahib, como já disse,
estávamos todos mais ou menos assustados. O que me preocupa é

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aquele céu... um céu noturno cheio de nuvens, enquanto, fora da
caverna, o sol brilhava forte em um céu claro.
Saímos de lá como se o próprio demônio nos perseguisse,
deixando ali o cadáver do mulá, para que ele pudesse encontrar
seu mestre. Kulam Khan, como o novo chefe da aldeia, decidiu
sacrificar dois barris de pólvora e bloquear para sempre a entrada
daquela caverna amaldiçoada.
Quanto à mensahib, sua coragem anterior não a impediu de
entrar em colapso, o que, na opinião de muitos, foi uma sorte para
ela. Quando recobrou a consciência, Gordon a tranquilizou,
prometendo que assim que ela se recuperasse um pouco, a levaria
de volta para seu pai.
Yar Hyder se recuperou do esfaqueamento feito pelo mulá e,
com o tempo, ele até mesmo iria suceder Khumail Khan no
comando da aldeia. Mohammed Ali e eu ficamos com ele, um
pouco mais ricos do que quando esta história começou, mas Yar
Ali foi embora com El Borak, apelido esse o qual Gordon ficou
conhecido em Kadar a partir de então. Você já deve saber que El
Borak significa "O Veloz" em árabe, e Gordon provou seu valor
em todos os aspectos. Graças a ele, Kulam Khan se tornou o chefe
da aldeia, a mensahib recuperou sua liberdade e meus amigos e eu
vivemos confortavelmente, graças à generosidade do resgate. Yar
Ali também conseguiu o que queria, ao acompanhar Gordon em

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mil aventuras pelo Oriente, em algumas das quais tive até o
privilégio de participar.
Mas minha garganta está seca, sahib. E essa é uma história
muito longa, que contarei a vocês outro dia.

FIM

P.S. Gostou desse conto do aventureiro EL BORAK?


Existem mais 17 contos desse personagem criado por
Howard que são inéditos na língua portuguesa. Gostaria de
continuar a lê-los de forma gratuita??? Então é aqui que
pedimos SUA ajuda no nosso APOIA-SE para que esse trabalho
que fazemos pelo FORUM CONAN O BÁRBARO continue!!!

Link do apoia-se: https://apoia.se/forum_conan

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A equipe do Forúm Conan agradece a todos que tem
colaborado para que o nosso trabalho continue forte e
constante e cheio de novas ideias para que novos
projetos sejam realizados com o intuito de divulgar cada
vez mais a obra literária de Robert E. Howard que, em
sua grande maioria, continua ainda inédita aqui no
Brasil e na língua portuguesa.

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