Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira
Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e
estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja
eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.
G464rGilbert, Henry
Robin Hood / Henry Gilbert ; traduzido por Pepita de Leão. – Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2022.
(Grandes Histórias de Todos os Tempos)
Formato: epub com 3,1 MB
ISBN: 978-65-5640-643-5
1. Literatura inglesa. I. Leão, Pepita de. II. Título.
CDD: 810 CDU: 821.111(73)
livre. Os homens não podiam viver onde queriam, nem trabalhar para
quem lhes agradasse. Naqueles tempos — o tempo do regime feudal — a
sociedade estava pela maior parte dividida em duas classes principais:
lordes e camponeses. Os lordes recebiam as terras das mãos do rei, e os
camponeses ou plebeus eram considerados parte do próprio solo, que
tinham de cultivar para o sustento, não só de si próprios, como também
dos seus senhores. Suponhamos que João, ou Pedro, escravo de um feudo,
não gostasse da maneira como o tratava o senhor, ou o seu mordomo: ele
não podia ir para outro ponto do país e trabalhar ali para um proprietário
mais bondoso. E se o tentasse, seria considerado criminoso; tinha de
voltar e era punido a chicotadas, ou marcado a ferro em brasa, quando não
era metido na prisão!
Se a colheita era abundante, e o senhor bondoso, ou indiferente, creio
que o camponês não havia de achar tal servidão tão insuportável. Quando,
porém, a fome se alastrava pela terra, e o camponês e sua família sofriam
necessidades; ou quando o senhor era por natureza mau ou exigente, e o
servo obrigado a executar excessivo trabalho — e além disso tratado com
rigor, então creio eu que se aquecia o velho sangue galês ou germânico do
campônio inglês e ele ansiava pela liberdade.
Naqueles dias reinava o silêncio e a verde paz das matas em léguas e
léguas de terra, onde hoje cresce denso o cereal dourado, ou
vagabundeiam vacas em ricas pastagens — e até em lugares onde vemos
agora subúrbios de cidades, cobertos de casas. E essas florestas de então
deviam ter sido lugares de terror e fascínio para o pobre camponês que as
avistava do sítio onde cavava a terra do seu campo. Nas clareiras
sossegadas corriam os cervos reais, e nos densos cerrados escondiam-se os
javalis — caça reservada ao rei e alguns de seus amigos, os grandes nobres
e os príncipes da Igreja. Um pobre, camponês ou lavrador, que matasse
uma dessas bestas reais da floresta, era cruelmente mutilado, para castigo.
E, se não conseguiam apanhá-lo, fugia e ia esconder-se no recesso dos
bosques, e ficava proscrito. Quem quer que o encontrasse tinha o direito
de matá-lo.
Foi em tais condições que viveu Robin Hood, e praticou ousadas
façanhas, conforme narram as canções e as lendas que chegaram até
nossos dias.
Há quem duvide da existência de Robin Hood, porque seu nome não é
encontrado nos enfadonhos registros de jurisconsultos e outros que tais.
Eu, porém, tenho certeza de que ele existiu: era homem vivo, e muito vivo
até. É bem possível que os poetas desconhecidos que compuseram as
canções o tivessem idealizado um pouco, isto é, que o descrevessem como
uma criatura mais ousada, mais bem-sucedida, mais heroica, talvez, do que
ele foi na realidade; mas é isso mesmo o que se espera sempre dos
escritores e poetas.
As baladas que temos de Robin Hood e seu bando de proscritos são
cerca de quarenta. As melhores são as mais antigas, por serem as mais
naturais e entusiásticas. A maior parte dos poemas mais recentes são
muito pobres: muitos deles não passam de exaustivas repetições de um ou
dois incidentes, enquanto outras são rimas grosseiras em maus versos,
sem espírito nem imaginação.
Servi-me, para as histórias que conto neste livro, de alguns dos melhores
episódios relatados nessas canções, mas imaginei também outras histórias
a respeito de Robin e acrescentei incidentes e fatos inventados, para
apresentar uma fiel pintura dos tempos em que ele viveu.
Exatamente como o rei Artur foi o herói da cavalaria inglesa, nos tempos
feudais, foi também Robin Hood o herói ou figura popular entre os
homens de condição inferior. O servo e o camponês eram algemados aos
seus campos e ao ciclo de labor invariável, pelos grilhões do costume; e
qualquer desrespeito à lei era castigado com pronta e duríssima punição.
Era doce, pois, nas horas de lazer, ouvir cantos que falavam do audacioso
bandoleiro Robin Hood, que em outros tempos tinha sido tão tolhido
como eles pelas peias da lei, mas que tinha fugido para a liberdade da
floresta, onde, com fria audácia e ousadia altaneira, zombava das leis que o
rei impunha sobre a agreste floresta densa, e movia guerra contra todos
aqueles ricos lordes e orgulhosos prelados que eram os inimigos
declarados da gente humilde.
Nem as virtudes atribuídas a Robin Hood pelos compositores de baladas
eram inferiores às que ornavam o rei Artur. É certo que Robin era um
ladrão, mas esse traço era resgatado pelas grandes qualidades de seu
caráter — a nobreza e a generosidade. Era sempre alegre e jovial, e recebia
com boa sombra uma derrota. Nobre na conduta, sua dignidade cheia de
cortesia elevava-o muito acima das maneiras rudes, comuns no seu tempo.
Era, além disso, religioso, tendo em especial reverência à Virgem Maria,
por cujo respeito tratava todas as mulheres com a maior cortesia e jamais
fazia mal algum a quem as acompanhasse. E, acima de tudo, auxiliava os
pobres, os famintos e os infelizes, e se roubava os ricos, dava liberalmente
à gente humilde.
Robin Hood é na verdade um herói tão valente e generoso como os que
mais o forem na literatura inglesa, e, enquanto existir no coração da
juventude sadia — rapazes e meninas — o amor das matas verdes e o
interesse pelas coisas silvestres —, estou certo de que as histórias de
Robin Hood e de seus bandoleiros serão sempre bem recebidas.
Henry Gilbert
i
Robin Hood torna-se bandoleiro
v
- — um dia de verão — e a floresta parecia adormecida. A brisa
ERA MEIO DIA
é a bem-aventurança, rapazes!
-MAS ISTO
[ 01 ] Anel ou círculo de cogumelos, que aparecem na grama úmida, e onde a crendice dizia que as
fadas vinham dançar à meia-noite.
[ 02 ] Puck é o nome de um duende e também de uma espécie de cogumelos. Daí o trocadilho,
intraduzível em nossa língua. — N. da T.
[ 03 ] Eram assim denominados os proscritos, cuja cabeça era posta a prêmio.
iii
Robin combate com o mendigo-espião, e
prende o xerife
v
ACABARA Oinverno; o fraco sol da primavera introduzia seus raios por entre
as árvores escuras e despidas da floresta de Sherwood, o vento brando
agitava os cachos de flores da aveleira, do salgueiro e do álamo, e o tordo,
que vivera na clareira cinco invernos, ia pousar alto, no topo do olmeiro
mais alto, e gritava para quem quisesse escutá-lo que não via mais neve em
parte alguma, que os brotinhos de todas as árvores estavam crescendo o
mais depressa que podiam, que os vermes já começavam a espiar do chão,
e que, enfim, o alimento, e a vida, e o amor iam voltando de novo ao
mundo, que durante longas semanas parecera morto e envolto para todo o
sempre em sua mortalha.
Diante dele estendia-se uma vasta clareira, inteiramente livre de moitas
e arbustos, mas tendo a um dos lados dois grandes cupins verdes, quase
lado a lado. Um deles ficava meio defendido pela sombra das árvores da
orla do mato.
Em toda a vasta clareira não se via sinal algum de vida humana. É
verdade que de um ponto da face do montículo mais afastado parecia
partir um caminho mal delineado, que se dirigia para a floresta; mas aquilo
podia ser apenas a trilha de um casal de lebres que tivesse feito seu lar no
cupim, pois é sabido que elas sempre seguem o mesmo caminho para
procurar alimento.
Subitamente, porém, do lado mais comprido da clareira surgiu da
floresta uma figurinha, que correu para um dos cupins; corria tão depressa
como uma lebre, e, chegando ao alto do montículo, pareceu sumir-se de
repente na terra. Era Hob do Morro. Dali a pouco, do lado do cupim que
dava para a floresta, caiu um bocado da turfa verde, e as duas figurinhas de
Hob do Morro e seu irmão Ket saíram de dentro. Olharam com atenção
em derredor, a relva tornou a fechar-se atrás deles, e, a passos leves, foram
indo pelo estreito caminho. Olhavam para trás de vez em quando, de
modo que iam conservando sempre o cupim entre si e algum olhar
bisbilhoteiro que por acaso estivesse a espiar na floresta, no ponto de onde
viera Hob.
Em pouco tempo alcançavam a fímbria da floresta, correndo então pelas
suas naves de árvores nuas e escuras. Por alguns instantes não se ouviu
rumor algum na clareira. Mas depois, daquele lado da floresta de onde
viera Hob, ouviu-se tropel de cavalos, ruído de armas, e pelo caminho
estreito desembocaram oito cavaleiros, que olharam para a frente, ao sair
na clareira.
O que vinha à frente era um homem de excelente aparência, quase
elegante até, e de belas feições. Trazia o vasto peito protegido por uma
couraça de malha, tinha na cabeça um capacete de aço, e na mão direita
uma lança. A seu lado, cavalgando um palafrém, vinha um homem de
humilde aparência e ar benévolo, que parecia um capelão, pois usava o
traje semimonacal dos clérigos. Atrás vinham seis homens, todos de lança,
couraça e capacete, aljava às costas, e arco ao alcance da mão, pendente do
arção da sela.
Tinham todos o olhar franco do homem livre e eram evidentemente a
guarda de corpo de proprietários livres.
— Então, senhor Gammell — disse o clérigo, olhando para os lados —,
que caminho é este? Neste caos de árvores e clareiras e cômoros, eu
gostaria de saber onde esperas achar esse teu parente proscrito.
— Pois é tão claro como a luz do meio-dia — disse Gammell, rindo. —
Que disse o bom rústico de Outwoods? “Para além dos dois vales,
atravessar o bosque na extensão de uma milha, até chegar aos rochedos. Vá
então até aqueles rochedos a pique de Clumber, do outro lado do rio, e…
provavelmente ali uma flecha, vinda Deus sabe de onde, entrando nas suas
costelas, lhe dirá que seu homem o avistou, ainda que o senhor não tenha
visto o menor sinal dele.” Já vês, bom Simão, que o caminho para o sítio
onde Robin está invernando é muito simples, e é só tocar para diante.
E metendo as esporas no cavalo, o chefe, Alfredo de Gammell, ou
Gamwell, tocou para diante, entrando na clareira, seguido do escrivão e
dos seis besteiros.
— Não vamos passar muito perto daqueles montinhos verdes — disse
Simão. — Dizem que dentro deles moram demônios, que podem fazer
feitiçarias contra nós, se passarmos dentro do círculo do seu poder.
— Bem se vê que não és camponês — disse Gammell rindo ainda. Há
muitos desses montículos espalhados no campo, por toda parte, e nunca
homem algum sofreu nada deles, que eu saiba. De fato, havia um na minha
grande propriedade de Locksley, e, apesar de meus camponeses me virem
pedir que não lavrassem em cima dele, eu disse que não podia deixar
aquilo ali, estorvando, quando podia dar um bom trecho de terra lavradia,
e mandei arrasá-lo; nada de mau se achou dentro dele, a não ser uma cova
no meio e uma talha velha, com alguns ossos queimados, além de tranças
de cabelo e pedaços de pedra. São túmulos antigos.
— Contudo, contam alguns livros — continuou o escrivão — que é por
esses grandes montes, em lugares solitários, que a gente penetra em terras
encantadas, onde reina um crepúsculo esverdeado, onde moram amáveis
demônios; e é ali que feiticeiros medonhos trabalham em suas artimanhas
e encantamentos, para perder as almas.
— Ora, creio que essas histórias não são mais verdadeiras do que os
cantos e contos dos menestréis mentirosos, que só servem para encher
uma ou duas horas vazias, mas não merecem o crédito de homens
instruídos.
Entretanto, o escrivão não tirava os olhos dos montículos verdes,
enquanto passavam por eles, como se esperasse ver a cada momento sair
dali alguma coisa misteriosa e perversa, para envolvê-lo nas malhas de
algum estranho encantamento.
Quando entraram na floresta, do outro lado, ainda continuava a volver
os olhos de um lado e outro pelos caminhos sombrios. A verdade é que
Simão não gostava dos bosques escuros. Vivera muito tempo na cidade, e
para ele não havia som mais suave do que a vozearia de homens e
mulheres regateando no mercado, nem vista mais agradável do que a rua,
com aquela faixa estreita de céu, limitada pelos altos telhados inclinados.
Já tinham andado cerca de meia milha pela floresta, quando ressoou de
repente, acima de suas cabeças, um grito agudíssimo. Parecia o grito de um
pássaro nas garras do falcão, e, instintivamente, todos ergueram os olhos
para ver a ave agonizante.
Mas uma voz poderosa bradou:
— Parem, viajantes! Não se movam!
A estas palavras baixaram imediatamente os olhos e, procurando em
roda, verificaram que onde tinham visto primeiro apenas escuros troncos
de árvores, havia agora uns vinte homens trajando túnica, calções e capuz
de cor parda, todos de arco entesado e com a mão já sobre a pena de uma
seta, erguida à altura da orelha.
Um ou dois dos soldados a cavalo soltaram pragas, baixinho, lá atrás do
amo, olhando ferozmente para todos os lados, como em busca de alguma
escapada. Mas os besteiros os cercavam por todos os lados. A cor parda da
túnica e das calças os igualavam tanto às árvores, que alguns pensaram por
um momento que o que viam era um tronco nodoso, quebrado de algum
carvalho; e foi só ao verem luzir a ponta da seta que se desenganaram.
Mordendo os lábios, Alfredo de Gammell sentiu-se a princípio
irritadíssimo. Mas sobrelevou o natural bom humor, e ele perguntou:
— Então, meus amigos, que querem de mim?
— Lança fora tuas armas! — disse um homem alto e forte, parado ao pé
do tronco de um carvalho, justamente em frente dele.
Obedeceram os seis besteiros de mau humor à ordem do ladrão, e
quando todas as armas jaziam no chão, veio outra ordem:
— Dez passos para a frente!
Então determinou que três de seus homens fossem buscar as armas
espalhadas no chão.
— Agora — disse ele a Gammell — vais ver o nosso amo, que governa
estes bosques.
— Mas quem pode ser o teu amo, homem grande? — perguntou
Gammell furioso —, enquanto o homem segurou as rédeas do seu cavalo e
levou-o para a frente.
— Ele to dirá. Mas é de esperar que tua bolsa esteja bem guarnecida,
pois ele te dará um bom jantar, e à tua companhia, mas terás de pagar a tua
parte.
Gammell não chegou a responder, porque nesse momento ouviram um
grito que vinha do lado das árvores; vinha de lá um homem muito alto,
tendo de cada lado um homúnculo. O homem alto estava de verde, com
uma capa ou capote, que lhe chegava aos joelhos; tinha à cabeça um capuz,
que lhe ocultava o rosto.
O ladrão que segurava as rédeas deteve o cavalo de Gammell quando o
homem de verde se aproximava e disse:
— Chefe, aqui está um grupo de homens tolos, todos armados; andavam
feitos malucos pelos teus matos, como se tivessem a tua palavra de paz,
que nem o próprio rei te tirou. Queres dar-lhes o jantar, ou devemos tirar
o pedágio de suas bolsas, deixando-os seguir para diante, mais leves e mais
sábios do que vieram?
Por um momento o homem de verde ficou considerando em silêncio,
olhando atentamente para o que estava a cavalo. Depois, soltando uma
alegre risada, aproximou-se dele de mão estendida, e, arrancando o capuz,
para que o outro lhe visse o rosto, disse:
— Dá-me a tua mão, meu primo, e perdoa as rudes maneiras de meus
homens!
Gammell, espantado, olhou intensamente para o rosto de Robin Hood,
porque era ele o homem de verde; depois, apertando a mão que ele lhe
estendia, disse alegremente:
— Robin! Robin! És tu, maroto! Eu devia ter reconhecido que eram
estes os teus fiéis companheiros! Pois vim até aqui expressamente para te
ver!
Saltou do cavalo e abraçou-se com o primo, e ambos se beijaram nas
faces. Depois Gammell afastou Robin, segurando-o sempre pelo braço, e
examinou, meio admirado, meio risonho, o rosto tisnado do sol, os olhos
brilhantes e destemidos, a cabeça coberta de cabelos escuros, a força e o
tamanho dos membros.
— Pelas Santas Relíquias! — disse enfim. — Dificilmente poderia eu
reconhecer-te, tamanho foi o desenvolvimento de teus membros, desde
que nos separamos em Locksley, há cinco anos! Robin, fiquei muito triste
ao saber que foste forçado a fugir para a floresta… É pena que tenhas tido
sempre tão livre a língua, e tão pronta a ação!
— Quanto a isso, rapaz — replicou Robin gravemente —, nada feito.
Nunca poderemos estar de acordo nesse ponto. Sempre achaste melhor
cortejar o forte lorde cujas terras confinam com as tuas, e fechar os olhos
para muitas coisas, contra as quais eu sentia que devia falar e combater.
Mas dize-me agora, primo: Quem te trouxe até cá?
— Vim ver-te, Robin, e agradecer-te; e também trazer-te um aviso!
— Agradecer-me?
— Sim, por aquele teu nobre feito em Havelond! Não foi mais do que
justiça o que fizeste àqueles traidores e ladrões de nossa pobre prima,
depois que ela em vão implorou justiça ao tribunal do rei — em verdade,
ao próprio rei.
Fora aquele um ato que granjeara quase tanta fama para o bandoleiro
como o que primeiro executara, matando os soldados do lorde abade. É
que uma sua prima, lady Alice de Havelond, recorrera a ele para obter
justiça. É o caso que seu marido, um fazendeiro rico de Scaurdale, no
Yorkshire, chamado Bennett, fora preso há dois anos por um daqueles
cavaleiros escoceses, que andavam à pilhagem, como gatos-monteses, e
posto a resgate. Na ausência dele, seus vizinhos Tomaz de Patherley e
Roberto de Prestbury se haviam apoderado de seus campos, repartindo-os
entre si, derrubando as casas e expulsando a dona, lady Alice, que não
conseguiu obter justiça nem da corte do rei, nem do mordomo do feudo.
Ela conseguiu pagar o resgate do marido, depois de um ano de prisão
deste: mas quando ele voltou, e foi reclamar a restituição do que lhe
pertencia, deram-lhe tamanha sova que quase perdeu a vida. Então ela se
dirigiu à Corte e pediu justiça, que não obteve, e os dois ladrões cruéis iam
continuando na posse do que haviam pilhado. Recorreu ela a Alfredo de
Gammell, seu parente, que prometeu falar ao rei, mas, já desesperada de
encontrar justiça na Corte, lady Alice montou a cavalo e, acompanhada de
uma serva e de um criado, fora à floresta em busca de seu primo Robin
Hood, a quem pediu auxílio. O bandoleiro prometeu ajudá-la, e ela a
ninguém contou o que fizera. Dali a poucos dias ardiam duas casas em
Scaurdale — era a vingança que caía sobre os dois ladrões. E Robin
cumpriu a promessa: os campos de Bennett de Havelond voltaram-lhe às
mãos.
— Pois o que te digo — disse Alfredo de Gammell — é que aquele teu
ato levou todos os senhores arrogantes que viviam ao pé das florestas a
considerar que, se oprimirem os outros com muita crueldade, poderá
acontecer-lhes a mesma coisa.
E Gammell, apesar da repulsa que sentia, como homem bem-educado,
pelos atos violentos, não escondia a sua admiração pelo bandoleiro.
— Assim o espero — disse este, com ar severo. — Se os que cometem
tais iniquidades ficarem impunes, como foi o caso dos que roubaram
Bennett e a nossa prima, então a quem irão recorrer, para pedir socorro, os
que se virem oprimidos? Não será certamente aos teus suaves padres, meu
primo — que esfolam os pobres como qualquer barão ladrão, e que
enchem a bolsa com o dinheiro extorquido aos pobres camponeses… Mas
dize-me agora contra quem me vens avisar?
— Contra sir Guy de Gisborne e seus pérfidos planos. Estive ontem em
Outwoods, que está agora nas mãos do mordomo do rei, até que decorra
um ano e um dia da data da tua proscrição. Lá procurei falar com Cripps,
velho administrador, que sei ser teu amigo; disse-me ele que sir Guy
guarda no coração cheio de ódio a derrota que tu lhe infligiste com teus
companheiros. Antes que o fizesses sair da casa em chamas, era já um
homem odiento, mas agora está mais malvado e mais duro. E jurou, com
pragas temerosas, apanhar-te, vivo ou morto.
— De que planos falava Cripps?
— Ele é agora unha e carne com Rodolfo Murdach, o xerife de
Nottinghamshire, e os camponeses dizem que ouviram de alguns homens
que andavam vagabundeando por ali que sir Guy e Murdach andam
subornando bandidos para se disfarçarem de mendigos, peregrinos e
mascates e saírem a andejar pelas florestas à procura de teus esconderijos,
de modo que um dia eles consigam apanhar-te com os seus soldados.
— Agradeço-te o conselho — disse Robin, que não parecia, entretanto,
dar muita importância ao caso. — Agora jantarás comigo — tu e teus
homens.
Já então tinham chegado a um lugar secreto, em um morro abrupto e
coberto de mato, ao lado de um arroiozinho, e acharam preparado em uma
caverna um festim, a que todos renderam inteira justiça.
Robin e seus homens indagaram de Gammell se sir Guy tratava agora os
vilões do feudo com mais rigor do que dantes.
— Dizem que não, e isso por uma boa razão: conta-se que quando o
abade Roberto de Santa Maria soube que tinhas matado os soldados, e do
combate de teus homens, ficou furioso com sir Guy, dizendo-lhe que ele
tinha esgotado a paciência do povo do feudo e que devia ter mais cuidado,
senão não o suportaria mais ali. De modo que os homens já não são
tratados com tanta desumanidade como dantes, ainda que sir Guy lhes
tenha mais ódio do que nunca.
— Milagre! — disse Scarlet desdenhosamente. — Uma palavra de
misericórdia daquele beiçudo, cara larga, o abade de Santa Maria!
ç g
— Quem sabe, tio — disse Gilberto da Mão Branca, que sempre desejara
ser padre e aprender a ler —, quem sabe se o abade nunca disse a sir Guy
que oprimisse a gente do feudo, mas ele mesmo o fazia porque tem um
coração de tirano, não é?
E era isso mesmo o que pensavam alguns dos proscritos, que dali em
diante já não faziam tão má ideia do abade.
Dali a pouco despediam-se Gammell e sua gente, e Robin Hood e alguns
outros os acompanharam até a orla da floresta, deixando-os no caminho
da aldeia de Locksley, que ficava ao sul, além da cidadezinha de Sheffield.
Uns três dias depois, ia Robin andando uma tarde ao lado da estrada
larga que vai de Pontefract, pelo meio da floresta, para Ollerton e
Nottingham. Ia pensando no que lhe dissera o primo sobre os planos de
Guy de Gisborne de capturá-lo, morto ou vivo, quando ouviu passos, e viu
um mendigo que vinha pela estrada.
Robin, do meio das árvores, podia ver o homem, sem que este o
observasse, e, quando o viu andando com uma grande haste de lança na
mão, perguntou consigo se aquele homem seria de fato um verdadeiro
mendigo, ou um dos espiões a quem Guy de Gisborne encarregara de
vigiá-lo.
A capa do homem estava remendada em cinquenta lugares, de sorte que
mais parecia uma coleção de pedaços de capotes; calças rasgadas cobriam-
lhe as pernas, e calçava grandes botas de couro curtido. Pendia-lhe do
pescoço, preso por uma larga correia, o saco do farnel, e do cinto uma
longa faca, metida na bainha de couro. O chapéu, de tão grosso e pesado,
parecia feito de três chapéus sobrepostos.
O que despertou as suspeitas de Robin foi que o homem parecia vestido
intencionalmente, e não dava a impressão de ser mendigo de fato. Além
disso, olhava incessantemente para um lado e outro, como se procurasse
entre as árvores alguma trilha disfarçada.
Já o mendigo tinha passado por ele, quando o bandoleiro gritou:
— Para, mendigo! Por que vais com tanta pressa?
O homem não respondeu, mas apressou mais ainda os passos. Robin
correu-lhe no encalço, mas ele voltou-se zangado, reboleando a vara. Era
de má catadura, tendo uma cicatriz que lhe ia da sobrancelha à face.
— Que me queres, mateiro? Então não pode um homem andar
pacificamente pela estrada, que é do rei, sem que qualquer vagabundo
ocioso venha estorvá-lo?
— És muito grosseiro, mendigo. Já te vou dizer por que te ordenei que
parasses: tens de pagar pedágio antes de prosseguir pela floresta adentro.
— Pedágio — disse o mendigo, dando uma boa risada. — Se esperas que
te pague pedágio, vagabundo, não sairás daqui antes de um ano.
— Vamos, vamos, desata a capa, homem, e mostra-me o que tens na
bolsa! Pela roupa se vê que és um mendigo rico — se és mendigo de
verdade, e não um patife disfarçado em um honesto pedinte.
O homem, apertando a vara na mão, olhou suspeitoso e ameaçador para
Robin.
— Não, rapaz — disse este de bom humor —, não agarres teu cajado
com tanta ferocidade. Com certeza hás de ter na bolsa ao menos uma
moeda com que pagar o pedágio a um pobre mateiro.
— Vai ganhar teu dinheiro, patife, gatuno — resmungou o mendigo. —
De mim não tiras nada! Não tenho medo de tuas setas, e muito me
alegraria de te ver pendurado à forca — como espero mesmo ver dentro
em pouco.
— E certamente, se puderes ganhar moedas indignas com uma traição
— disse Robin —, não te vais contentar com um trabalho qualquer, não?
Pois olha, parecias mesmo um mendigo verdadeiro! Traição e patifaria é o
que se vê estampado na tua cara. Agora escuta! Sei que és um traidor, a
soldo de um homem perverso, mas não ficarei na falta de meu pedágio.
Atira ao chão a tua bolsa, ou eu te atravessarei com uma grande flecha!
Enquanto falava, ia Robin se aprestando para ajustar uma seta à corda
do arco. Para andar mais depressa olhou para a corda, e isso lhe foi fatal.
Com um salto de gato-do-mato, o mendigo pulou para a frente e vibrou-
lhe uma pancada, e num instante voaram da mão do bandoleiro arco e
flecha.
Ele saltou para trás e puxou da espada, mas, rápido como o pensamento,
o mendigo lhe deu outra pancada violenta, desta vez na cabeça. Robin caiu,
desmaiado, justamente no instante em que ressoavam gritos entre as
árvores ao lado da estrada. O mendigo olhou para todos os lados, levou a
mão ao cabo da faca pontuda que tinha no cinto e agachou-se, para cair
sobre o homem prostrado e dar cabo dele.
Mas do meio de uns arbustos, alguns metros mais adiante, saltou um
homem de roupa parda, e mais dois o seguiram. Olharam para o mendigo,
que imediatamente assumira um ar despreocupado, e foram andando,
desaparecendo logo em uma volta do estreito caminho.
Dois eram jovens recrutas do bando de proscritos, o outro era Dodd, o
soldado que se rendera a Robin, quando este matara Hugo de Lynn.
Quando estavam indo, ele avistou repentinamente o arco e a flecha que
tinham escapado da mão de Robin, e parou.
— Mas… que se passou aqui? — disse ele. — É o arco do nosso chefe.
Conheço-o pelo tamanho, porque não há outra mão que possa abarcá-lo.
— Olha! Olha — disse um dos outros, correndo para trás da moita onde
Robin estava caído. — Aqui está um homem ferido… pela Santa Virgem! É
o nosso chefe! Mas, por São Pedro, quem teria feito esta malvadez?!
Dodd ajoelhou-se ao pé do seu chefe e meteu-lhe a mão por dentro do
gibão, para ver se o coração ainda batia. E gritou:
— Graças aos Santos, rapazes! Ele está vivo! Corram ao arroio, ali junto
do espinheiro-branco, e tragam água nos capuzes!
Com a frescura da água, Robin logo tornou a si. Suspirou
profundamente, levando a mão à cabeça dolorida, e abriu os olhos.
— Ó chefe — disse Dodd —, dize-nos quem te tratou com tamanha
vilania! Certamente foi à traição. Quantos te atacaram?
Robin sorriu, ainda fraco, ao ver os três rostos curvados acima dele, mas
dali a pouco se sentia bastante recobrado para poder sentar-se. E disse:
— Não era mais que um; um patife disfarçado de mendigo. Atirou-se a
mim, com uma grande lança, quando eu acertava a seta ao arco, e, antes
que pudesse me defender, prostrou-me aqui, sem sentidos.
— Por minha fé! — disse Dodd —, era aquele maroto que encontramos
na estrada, e que parecia tão inocente!
Voltando-se para os outros, ordenou:
— Corram, rapazes, mostrem agora a sua capacidade: prendam-no e
tragam-no aqui, para que o nosso chefe possa matá-lo, se quiser.
E Robin acrescentou:
— Mas sejam cautelosos ao se aproximarem do patife. O que me perdeu
foi a minha tolice, pois cheguei muito perto do mariola. Se o permitem, ele
os põe fora de combate.
Prometeram os dois aproximar-se com cuidado e saíram depressa,
enquanto Dodd ficou junto de Robin, até que este se sentisse bastante
forte para andar e seguir para o acampamento.
Enquanto isso, os dois jovens bandoleiros, sabendo que o mendigo não
podia afastar-se da única estrada que havia na floresta, correram para
apanhá-lo. Um deles, chamado Bat, lembrou que podiam ir por um atalho
e esperar o mendigo em um ponto em que a estrada era mais estreita. E
assim fizeram. Eram fortes de pernas, e se tivessem a inteligência tão viva
como os sentidos, tudo lhes teria saído bem. Mas tinham abandonado
apenas há três semanas o arado e os duros trabalhos do campo de seu
senhor, e não eram ainda tão vivos de espírito como se haviam de mostrar
mais tarde, já adestrados pelos perigos da floresta.
Lá iam eles correndo por entre as árvores, atravessando clareiras e
brejais, sem que os detivessem lagos ou pântanos, barrancos nem outeiros.
Afinal chegaram de novo à estrada real, num sítio onde esta atravessava
um fosso. Embaixo havia um grosso toro de madeira, e ali a estrada
estreitava-se, e eles se esconderam, cada um de um lado da estrada, atrás
das árvores.
Não tardou que ouvissem o som de passos, vindo do morro, e, espiando
para o caminho, viram que era o mendigo que tinham encontrado próximo
ao lugar onde o chefe desmaiara.
Quando o homem fronteou o seu esconderijo, ambos se atiraram a ele, e
enquanto um lhe arrancava a vara da mão, o outro lhe tirava a adaga da
cinta, virando-a contra o peito do dono.
— Sujeito traiçoeiro! Não penses em resistir, senão vais morrer sem
confissão!
Com o rosto congestionado de raiva, o mendigo olhava para os lados, a
ver se achava escapula. Mas não via meio de fugir, e resolveu recorrer à
astúcia para se livrar de apuros.
— Bondosos senhores — disse humildemente —, poupem-me a vida!
Tirem daí essa medonha faca tão pontuda, senão eu morro de puro medo.
Que fiz eu para que queiram assim me matar? E que lhes aproveitará a
minha morte, se matarem e roubarem um pobre mendigo?
— Mentes, patife disfarçado! — gritou Bat, indignado. — Acho que é
melhor cravar-te imediatamente a tua própria faca nas costelas malditas.
Estiveste a ponto de matar o homem mais delicado e mais valente que
existe em Sherwood e Barnisdale! E agora vais voltar, bem amarrado e
entrouxado, e ele julgará se deves morrer feito alvo de quatro flechas, ou
enforcado em uma árvore, por seres indigno de agasalhar na vil carcaça
quatro boas flechas.
— Bondosos senhores — disse o mendigo com voz lamentosa —, então
aquele mateiro que eu feri há pouco ficou quase morto? Oh! Pela Santa
Cruz! Mas foi apenas para me defender que lhe bati. Sinto muito que
minha pancada desastrada quase o matasse…
— Maldito serias, se o tivesses matado! — disse Bat. — Não penses que
aquela vida havia de estar à disposição de teu sujo cajado! Ele há de viver,
para te dar a paga nesta mesma hora, podes ter certeza disso.
Voltando-se para o camarada, disse:
— Agora, Micael, vamos enfardar este patife, amarrando-o com o seu
próprio cinto de corda, e arrastá-lo para onde está nosso chefe. Estás agora
bem feio, maroto, mas vais ficar mais feio ainda quando estiveres
sacudindo-te e fazendo caretas, com o pescoço em uma laçada!
Viu o mendigo que Bat era homem decidido, e que, se não forjasse
imediatamente alguma velhacada para lhe escapar das mãos, sairia tudo
como o outro dizia.
Então disse, com a voz trêmula:
— Ó valentes cavaleiros, sejam bondosos e poupem a vida de um pobre
mendigo. Sinto muito ter feito algum mal ao bravo nobre, seu chefe. Mas
farei de boa vontade uma boa compensação por algum dano que lhe tenha
causado. Deixem-me livre e dar-lhes-ei vinte marcos que trago no saco,
assim como outro tanto em moedas de prata, que tenho escondidas nos
meus trapos.
A estas palavras os olhos de ambos os rapazes faiscaram. Nunca tinham
tido dinheiro na vida, e a oportunidade de ganhar dez marcos — soma
fabulosa para eles — teve mais poder do que a sua lealdade ao chefe.
— Mostra-nos o dinheiro, velho vagabundo — disse Bat. — Acho que
estás mentindo. Mas vamos lá ver isso!
Soltaram o mendigo, e ele desamarrou a capa, deixando-a no chão.
Depois tirou dois grandes sacos, onde os rapazes supunham que trazia
comida, carne e pão, pondo-os também no chão, diante de si.
Por fim tirou do pescoço a grande correia que prendia outro saco.
— Neste — disse ele — escondo meu dinheiro para estar mais seguro.
Está cheio de trapos, com os quais forro minha roupa, quando o frio é
muito forte, e meus sapatos, para aquecer os pés.
Quando o homem erguia o cinto para o tirar pela cabeça, viu Bat que ele
trazia metida debaixo do braço esquerdo uma bolsa, suspensa por uma
correia fina. Parecia tão destramente escondida, que o bandoleiro pensou
que havia de conter alguma coisa de grande valor, e já suspeitava que o
mendigo, com todos aqueles preparativos que fazia, pretendia subtrair-
lhes a parte mais importante de sua riqueza.
Curvou-se para a frente, segurou com força a correia, e com um gesto
rápido cortou-a com a faca, ficando com a bolsa na mão. O mendigo
tentou arrancar-lha, mas viu-se impedido pelo grande saco que tinha
diante de si. Lutou para apanhá-la, mas ambos os rapazes apontaram-lhe a
faca ao peito.
— Vamos, patife — disse Bat —, fica quieto, senão te tiramos já a vida, e
também teus bens. E trata de não armar ciladas, senão vais te ver mal.
Viu o mendigo que Bat já estava ficando desconfiado, e não procurou
mais apanhar a bolsa, que o bandoleiro escondera no peito da túnica.
Deitando olhares furiosos, descansou no chão o enorme saco e curvou-se
para ele, ficando os bandoleiros atentos, para impedir que recorresse a
alguma astúcia.
Meteu as mãos no saco e, de repente, lançou-lhes à cabeça uma nuvem
de farinha. Cegos, os dois bandoleiros imediatamente recuaram, gritando
imprecações e ameaças contra o mendigo, que não viam onde se achava.
Dali a um momento, porém, sentiram-lhe o peso do cajado na cabeça,
pois ele apanhara mais que depressa a vara, atacando-os a pancadas rijas.
Bat, com os olhos ainda a doer, cheios de farinha, sentiu a mão do
mendigo que lhe tateava a túnica, mas deu-lhe um golpe com a adaga, que
conservara, e viu confusamente que o outro retirava a mão ensanguentada
e se preparava para lhe vibrar uma grande paulada na cabeça.
Compreendeu então que aquela bolsa continha alguma coisa de valor.
Esquivou-se justamente no momento em que a vara caía com um golpe tão
pesado, que, se o tivesse alcançado, lhe partiria o crânio. Sem olhar para
trás, Bat tratou de correr o mais depressa que pôde, seguido pelo
camarada. Por algum tempo seguiu-os o pedinte, mas via-se tolhido pela
roupa pesada, e não levou muito longe a perseguição.
Era já quase noite, e foi em um triste estado que os dois rapazes se
dirigiram para o acampamento.
— Não passamos de dois grandes tolos — disse Bat — e oferecerei de
boa vontade as costas para as lambadas do nosso chefe.
— As minhas doem tanto — disse Micael — das pancadas daquele
bruto, que por enquanto não pedirei mais sova alguma a ninguém. Creio
que me vou esconder, até que me ache menos chagado, e que a cólera do
chefe tenha esfriado.
— Foge então, asno! — disse Bat, irritado consigo mesmo e com o
camarada. — E vai rebentar de fome no mato, ou volta para o feudo, servo
fugido, para seres surrado pelo mordomo do senhor — porque é o que vai
acontecer.
Mas Micael tinha tanto receio da solidão do bosque como do braço forte
do carrasco do amo, então preferiu ir com Bat e suportar o castigo que
Robin lhes destinasse.
Chegaram ao acampamento justamente quando os bandoleiros iam
sentar-se para cear, e Bat contou tudo com uma franqueza que provava
quão envergonhado se sentia. Robin ouviu-o pacientemente, depois disse:
— Tens ainda a bolsa que tiraste do vagabundo?
Bat não se lembrara mais da bolsa, mas verificou que ainda estava
dentro da túnica e entregou-a ao chefe, que lhe ordenou segurasse uma
tocha, enquanto ele examinava o conteúdo.
Tirou primeiro três moedas envolvidas em farrapos, depois um anel com
um desenho gravado, e por último, do fundo da bolsa, extraiu um pedaço
de pergaminho dobrado. Abriu-o e alisou-o sobre o joelho, e leu,
devagarinho, é verdade, pois que aprendera o latim, em menino, na casa de
seu tio em Locksley, mas poucas oportunidades tivera depois de fazer
leituras.
Devagarinho, pois, foi lendo as palavras latinas, e, quando lhes
compreendeu o sentido, seu rosto se tornou duro e severo. Aqui estão as
palavras traduzidas:
“Ao respeitável senhor Rodolfo Murdach, xerife dos condados de
Nottingham e de Derby, saudações.
“O portador desta, Ricardo Malbête, é aquele de quem te falei, e que me
foi recomendado pelo meu amigo, sir Niger le Grym. É um homem
astucioso e arrojado, que não enjeita tarefa sendo boa a paga, nem se
esquiva a atos extremos: esperto, espírito vivo e fértil em velhacadas e
emboscadas. Mas deves mantê-lo longe do vinho, senão é homem inútil.
Ele te ajudará a engendrar planos e ciladas que nos trarão às mãos aquele
bárbaro ‘cabeça de lobo’, Robin, e que darão cabo do bando, sempre
crescente, de ladrões que o acompanham. Espero ter dentro em breve
notícias muito boas.”
Não trazia assinatura, porque naquele tempo os homens não assinavam
as cartas com o seu nome, mas com o selo, e aquela tinha uma obreia de
cera azul com o sinete de sir Guy de Gisborne — uma espada, encimada
por uma cabeça de homem de má catadura.
Robin olhou para Bat e Micael, que, de cabeça baixa, pareciam muito
envergonhados.
— Vocês não servem para bandoleiros — disse severamente. — Não
passam de gatunos e ladrões vulgares, devem ir para a cidade e emboscar-
se em tabernas, para roubar os bêbedos, que não se podem defender.
Quando dou ordem para que façam uma coisa, essa coisa deve ser feita,
seja qual for a tentação que apareça diante dos seus olhos. Mas, como
vocês são recém-saídos do arado, fica por isso mesmo, desta vez.
Depois acrescentou, em tom mais benigno:
— Vão cear, e não se esqueçam de que espero que sejam daqui por
diante rapazes bons e diligentes.
Bat jamais ouvira, até então, uma palavra bondosa de um superior, e
sentiu-se profundamente comovido com o que ouvira do chefe. Disse-lhe,
pondo um joelho em terra:
— Chefe, fui um louco e mereço castigo. Mas, se não queres punir-me
com pancadas, dá-me então uma tarefa bem difícil, para que eu possa
varrer da memória a lembrança da minha estupidez.
— E deixa-me ir com ele, bom amo — disse Micael —, porque eu te
servirei com valentia.
Por um momento Robin olhou para eles, sorrindo de sua vivacidade.
— Vão cear agora, rapazes. Pode ser que lhes dê uma tarefa dentro em
breve.
Terminada a ceia, chamou João Pequeno e disse-lhe:
— João, aquele soberbo oleiro de Wentbridge já foi para a cidade?
— Sim, senhor. Ele passou ontem, levando a carroça carregada de potes
e panelas. É um sujeito decidido aquele, e assim que a neve derrete, não
fica feito gata borralheira, não!
Indagando onde poderia o oleiro estar alojado naquela noite, Robin
chamou Bat e Micael.
— Vocês pediram trabalho, pois vou lhes dar serviço. Talvez seja difícil,
mas vocês devem executá-lo, por fás ou por nefas. Conhecem bem os
caminhos da floresta, daqui a Mansfield, pois ambos vieram fugidos de seu
senhor, do feudo de Warsop. Quero agora que vão a Mansfield esta noite e
procurem o orgulhoso oleiro de Wentbridge. Digam-lhe que eu lhe peço
um serviço: desejo que me ceda sua roupa, seus potes, carroça e cavalo,
porque quero ir disfarçado ao mercado de Nottingham.
— Nós faremos tudo bem-feito e de boa vontade, chefe. Vamos buscar
os cajados, espadas e escudos, pondo-nos a caminho imediatamente.
João Pequeno ria às gargalhadas.
— Falas como se isso fosse só chegar e dizer: “Dito e feito!” Mas se não
conheces o altivo oleiro de Wentbridge, logo ele sanará essa falta no teu
corpo com o auxílio de seu grosso cajado!
— Sei disso, João Pequeno — disse Bat, rindo também. — Sei que ele te
deu aquela lição…
— É verdade — disse o honesto João. — Saí-me mal, quando lhe
ordenei que pagasse o pedágio aos bandoleiros na última colheita, porque
ele me deu três pancadas que jamais hei de esquecer!
— Toda a Sherwood soube disso — continuou Bat —, mas o altivo
oleiro é um homem muito cortês, segundo tenho ouvido dizer. Entretanto,
queira ou não queira, há de fazer a vontade ao nosso chefe!
— Então — disse Robin —, irei encontrá-los esta madrugada, na floresta
de Herne, na encruzilhada além de Mansfield.
— E nós não falharemos, chefe; cumpriremos todas as tuas ordens.
E juntos partiram, Bat e Micael, dirigindo-se para Mansfield.
No dia seguinte, entrava na praça do mercado de Nottingham um
pequeno pônei escuro, puxando uma carrocinha cheia de potes e panelas
da boa louça de barro de Wentbrigde. O oleiro, homem forte de membros,
gordo e corado, vestia túnica e capa escuras, de pano grosseiro,
remendadas em vários lugares; o cabelo não parecia ter muitas relações
com o pente. Na verdade, Robin estava muito bem disfarçado.
Granjeiros, verdureiros, mercadores e carniceiros amontoavam-se na
praça do mercado, e alguns já tinham assentado suas barracas ou tendas,
enquanto outros estavam atarefados em descarregar seus carrinhos, ou em
tirar os cestos do lombo dos burros. O oleiro acomodou suas bilhas ao
lado do carro, depois de dar ao cavalinho a ração de cevada e aveia, e só
então começou a apregoar sua mercadoria.
O lugar que escolhera ficava apenas a cinco passos da porta da casa do
xerife; era uma casa de madeira, adornada com muitos desenhos, e
ocupava um lugar proeminente em uma das faces da praça do mercado. Os
olhos do oleiro voltavam-se constantemente para a porta daquela casa,
agora aberta, por onde entravam e saíam as pessoas que tinham negócios
com o xerife.
— Bons potes de barro! — gritava o oleiro. — Comprem meus potes!
Potes e panelas! Barato e bom hoje! Venham, damas e damiselas!
Guarneçam suas cozinhas com a minha boa louça!
E tanto gritou que dali a pouco se via rodeado de uma multidão de
camponeses, que tinha vindo ao mercado para fazer compras e começou a
regatear com ele. Mas ele não cessava de vender; cada um levava a bilha ou
caçarola pelo preço que oferecia. O ruído daquelas vendas de potes tão
baratos em breve correu toda a praça, e não tardou que ficassem apenas
uns seis ou oito potes para vender.
— O sujeito é um asno — disse uma mulher —, não é louceiro, não.
Pode ser que ele faça bons potes, mas não entende nada de vendas. Não
vai enriquecer no negócio, que esperança!
Nisto vinha saindo de casa do xerife uma criada, e Robin chamou-a,
pedindo-lhe que apresentasse à mulher do xerife os cumprimentos
respeitosos do oleiro de Wentbridge e lhe perguntasse se queria aceitar o
resto da louça, de presente. Dali a pouco lá estava a própria Dona
Margarida.
— Muito obrigada pelos potes, bom freguês.
Tinha os olhos muito risonhos e falava com muita amabilidade.
— Estou muito contente com eles, pois é louça excelente, e sem uma
trincadura. Quando vieres outra vez, bom freguês, avisa-me de chegada,
que comprarei todo o sortimento.
— Madama — disse Robin, tirando o chapéu e fazendo uma mesura, à
moda da gente do campo —, terás o que houver de melhor no meu carro.
Não te darei louça rachada, nem falhada, pela Santa Hóstia! Mas cada peça
cantará com uma nota límpida, quando lhe deres uma pancada.
Achou a mulher do xerife que aquele oleiro era um homem muito cortês
e bem-educado, e pôs-se a conversar com ele. Nisto tocou uma sineta
dentro de casa e a dama disse:
— Entra, se quiseres, bom freguês, e jantarás comigo e com o xerife.
Era o que ele queria… Agradeceu à dama, que o conduziu à sala onde
suas criadas estavam costurando. Naquele momento, abriu-se a porta e
entrou o xerife. Robin olhou com atenção para aquele homem, que vira
apenas uma vez. Sabia que o xerife, Rodolfo Murdach, era um rico
sapateiro que comprara o cargo, por muito dinheiro, do ambicioso bispo
de Ely, e que, para se indenizar, agora extorquia do povo tudo o que podia.
— Olha o que este mestre oleiro nos deu — disse dona Margarida,
mostrando os potes, que estavam sobre uma banqueta, ao pé dela. — Seis
potes de excelente louça, tão bons como os que são feitos em Low
Countries.
O xerife, um homem alto e magro, de olhar duro e impertinente, mal
olhou para Robin, que se curvou diante dele.
— O bom freguês pode almoçar conosco, xerife? — perguntou a dama.
— Será bem-vindo — disse o xerife desabridamente. — Vamos lavar as
mãos e tratar de comer!
Estava de mau humor, porque vinha faminto, e, além disso, se vira
logrado em um negócio.
Foram para o salão, onde estavam já uns vinte homens esperando o
xerife e sua senhora. Alguns eram empregados e homens da casa do xerife,
outros eram ricos fregueses do mercado.
Quando o xerife e sua mulher tomaram lugar, à cabeceira da mesa, todos
os outros se sentaram; designaram a Robin um assento, no meio da outra
ponta. À frente de cada conviva havia uma colher de chifre e uma enorme
fatia de pão; mas para as bebidas havia apenas um copo de estanho para
servir a dois vizinhos. Entraram os bichos da cozinha, trazendo carnes
assadas em espetos de prata, que giravam de mão em mão entre vários
hóspedes; então cada um deles tirava a faca do cinto, esfregava-a na perna,
para limpá-la, e cortava o pedaço que queria do próprio espeto, deitando a
carne sobre a grossa fatia de pão. Depois, servindo-se dos dedos como
garfos, ia comendo o jantar — isto é, seu fatacaz de pão com carne.
No soalho coberto de palha, cães e gatos lutavam pela carne ou os ossos
que lhes atiravam, e da porta espiavam mendigos, gritando por alguma
esmola, ou restos de carne. Às vezes algum dos convivas da ponta inferior
da mesa lançava um osso a um deles, com a intenção de feri-lo, mas o
mendigo apanhava-o destramente e se punha a roê-lo. Mas quando — o
que não era raro — os mendigos se mostravam muito audaciosos e
aventuravam-se a chegar quase até a mesa, um servo atirava-se a eles de
vara em punho, malhando-os e espancando-os, até lançá-los fora da porta.
De repente um mendigo insolente entrou resolutamente pela porta
adentro e caminhou por entre os cães até a cabeceira da mesa.
Imediatamente um servo correu e segurou-o, pretendendo arrancá-lo dali.
Mas o mendigo lutava com o servo, gritando:
— Eu tenho de falar com o xerife! Trago uma mensagem de um
cavaleiro!
O servo não queria saber de nada e começou a empurrá-lo para a porta.
O rumor da luta chamou a atenção dos convidados, e Robin, olhando para
o grupo, reconheceu o mendigo. Era o espião de sir Guy de Gisborne, que
encontrara na véspera e que enganara os dois bandoleiros mandados por
ele para apanhá-lo — Ricardo Malbête, ou como o chamaria um inglês,
Illbeats. E tudo isso quer dizer “Má besta”.
Lutava o mendigo valentemente por se libertar, mas o servo era um
sujeito de grande força, e seu esforço era inútil. De repente, gritou:
— Mercê, senhor xerife! Trago uma mensagem de sir Guy de Gisborne!
Então o xerife ergueu os olhos, e viu aquele par aos socos.
— Deixa o maroto falar! — ordenou ele.
O servo cessou de lutar, sem contudo largar o mendigo, e ambos
pararam ali, ofegantes, enquanto Ricardo Illbeast lançava olhares
assassinos para o servo.
— Fala, patife, como te ordena sua senhoria — disse o servo —, e não
me degoles com esses olhos malvados, espantalho!
— Venho da parte de sir Guy de Gisborne — disse o mendigo, voltando-
se para a cabeceira da mesa — e tenho uma mensagem particular só para
os teus ouvidos, sir xerife.
Este olhou-o, suspeitoso, dizendo asperamente:
— Pois dize qual é a mensagem, patife.
O pedinte olhou, em desespero, para os convivas, todos voltados para
ele. Alguns riram da sua hesitação; outros zombavam dele.
— Ele tem uma mensagem particular para os teus ouvidos, xerife —
disse um gordo lavrador, rindo —, e dedos leves para as tuas joias.
— Ou quem sabe se alguma adaga pequena para ti — acrescentou outro,
no meio das risadas gerais.
— Dá-me alguma prova de que trazes palavra dele, além do teu
palavrório — disse o xerife já irritado —, ou mandarei expulsar-te da
cidade a pau!
— Uma dúzia de ladrões me atacaram na floresta, e roubaram-me a
bolsa em que trazia a mensagem de sir Guy de Gisborne para ti!
Uma tempestade de risadas ergueu-se então em toda a sala. Porque
todos pensaram, naturalmente, que aquilo era uma lorota, e aqueles
homens também gostavam de trocar gracejos e anedotas.
— Por que te mandou ele a mim? — gritou o xerife. — Provavelmente
isto tudo é invenção tua.
— Ele me mandou aqui para te ajudar a apanhar aquele ladrão proscrito,
Robin Hood! — bradou Ricardo Illbeast, já fora de si com as risadas e
motejos dos hóspedes, e perdendo de todo a cabeça, de tanta cólera.
Ao ouvir isto, o riso não teve mais limites. E gritavam todos:
— Ah! Ah! Ah!… É boa esta!
— O apanha-ladrão despojado pelos ladrões!
— Olha a raposa, corrida pela lebre que ela queria apanhar!
— Expulsem-no daqui! — ordenou o xerife, rubro de cólera. — Ponham
este patife mentiroso fora da cidade!
— Eu não sou patife! — gritou Ricardo. — Eu combati na cruzada!
Eu…
Mas não lhe foi permitido dizer uma palavra mais do que fizera. Doze
servos se atiraram a ele, e em um momento estava lá fora, na praça do
mercado, a roupa despedaçada, os sacos arrancados das correias. Parecia
que brotavam varas e cajados em roda dele, e, entre uma saraivada de
pancadas, o miserável, cujo coração era tão cruel como o dos outros,
naqueles tempos de crueldade, e cujas mãos se haviam manchado tantas
vezes em atos horríveis, foi levado sem misericórdia para a estrada da
floresta.
Ainda continuaram os hóspedes a rir da farsa do mendigo, mas depois a
conversa versou sobre um torneio que se realizaria depois do jantar, entre
os homens que formavam os oficiais do xerife, que oferecera um prêmio
de quarenta xelins. Os alvos tinham sido erguidos fora da cidade.
Terminado o jantar, portanto, muitos convidados dirigiram-se para o
campo de tiro, onde os homens do xerife atiraram, cada um por sua vez. É
claro que era Robin um atento espectador do jogo; e viu que nenhum dos
homens do xerife pôde alcançar o alvo, ficando os que mais se
aproximaram a cerca de meia seta do ponto.
— Pela Santa Cruz! — disse ele. — Apesar de não ser hoje mais que um
louceiro, já fui bom besteiro, no meu tempo; e até hoje gosto do tinido do
cordão e do voo da minha flecha. Permites que um estranho dê um ou dois
tiros, sir xerife?
— Sim, podes experimentar, pois pareces rijo e forte, apesar de que tuas
faces vermelhas demonstrem que gostas de erguer teus potes à boca, com
bons licores dentro…
Robin riu com os outros, àquela zombaria, e o xerife ordenou a um
camponês que trouxesse três arcos. Robin escolheu um deles, o maior e
mais forte, experimentando-o com as mãos.
— Isto não passa de um pau miserável — disse, ao empurrar o arco, ao
mesmo tempo que puxava a corda para junto da orelha. — Já está
gemendo só com o tirão, de tão fraca que é a madeira.
Tirou uma flecha do carcás de um dos homens do xerife e ajustou-a à
corda. Então, distendendo o cordão em toda a extensão, deixou voar a
seta. Os homens olhavam atentamente para diante, e os camponeses
soltaram um grito quando viram a sua flecha a pouca distância do alvo e
alguns centímetros mais perto que as outras.
— Atirem de novo — disse o xerife aos seus homens — e deixem o
mercador de louça atirar com vocês.
Cada um deles se esforçou por se sair melhor que os outros naquele
segundo turno. Mas nenhum chegou mais perto do alvo do que o louceiro.
E depois que o último atirou ficaram ali, meio desapontados, olhando para
o camponês que, dando uns passos à frente, firmava a seta na corda.
Parecia preocupar-se menos agora do que da primeira vez. A seta saiu
zunindo, e os espectadores, que olhavam no maior silêncio e com toda a
atenção, ouviram distintamente o ruído dela ao se cravar no alvo, a
noventa metros de distância. Não podiam crer no que lhes diziam os olhos
penetrantes: a seta se cravara no centro mesmo do olho de boi, ou muito
perto dele.
O encarregado do alvo, que se conservava perto deste para verificar
exatamente cada tiro, aproximara-se do escudo, e saiu dali correndo, para
ir ter com os besteiros.
— Partiu a cavilha em três! — gritou ele.
Cavilha era o toro de madeira que ficava mesmo no centro do “olho de
boi”. Um grande brado saiu então do peito de todos os espectadores, e foi
agitar as últimas folhas dos choupos, e muitos mercadores e lavradores
vinham apertar a mão de Robin, ou batiam-lhe nas costas.
— Pela Santa Cruz! — dizia um. — És um vendedor maluco, mas, como
arqueiro, és tão bom como qualquer couteiro!
— Ou como o próprio Robin Hood, o rei dos arqueiros, por mais
“cabeça de lobo” que seja — disse outro, um moleiro da cidade, muito
brincalhão.
Quando os homens do xerife se viram vencidos por aquele oleiro rude,
ficaram irritados, mas o xerife ria deles, e disse a Robin:
— Louceiro, és um homem de verdade! És digno de usar um arco onde
quer que vás.
— Sempre gostei do arco, desde criança; atirava então aos passarinhos,
e derrubava-os. Já tenho apostado com mais de um bom arqueiro, e tenho
lá no meu carro um arco que ganhei daquele maroto Robin Hood, com
quem apostei uma vez.
— O quê? — disse o xerife, de sobrecenho franzido e ar desconfiado. —
Pois tu apostaste com aquele canalha? Sabes então o ponto da floresta
onde ele está agora entocado, louceiro?
— Creio que é lá para o Mato da Bruxa — disse prontamente o oleiro.
— Ouvi dizer isso quando vinha pela estrada. Mas no outono passado ele
me deteve, exigindo que eu lhe pagasse pedágio. Respondi-lhe que nas
estradas do rei eu não pagava pedágio, a não ser para o rei, e disse-lhe que
até poderia apostar com ele, a lança ou a tiro, um turno de vinte flechadas,
para ver se não era melhor arqueiro do que ele. E o maroto atirou mesmo
quatro turnos comigo, e disse que, pela minha cortesia, eu ficava livre de
andar pela floresta, até onde minhas rodas pudessem alcançar.
E era verdade. E foi em virtude dessa amizade que Bat pôde obter com
tamanha facilidade o empréstimo das roupas, carroça e mercadorias do
ç
orgulhoso louceiro para Robin.
— Pois eu daria cem libras, louceiro — disse o xerife com ar de tristeza
—, para ter o bandoleiro nas mãos.
— Pois bem, se queres ouvir meu parecer, sir xerife, vai comigo amanhã,
leva teus homens, e eu te levarei a um sítio onde, segundo ouvi dizer, o
patife se alojou para passar o inverno.
— Por minha fé! Eu te pagarei bem, se fizeres isso. És um homem digno,
e valente!
— E devo mesmo dizer-te, xerife, que deves pagar muito bem, porque se
Robin sabe que levei os cães à sua toca, o lobo me perseguirá, e não ficarei
com a pele inteira!
— Hás de ser bem pago; dou-te minha palavra de oficial do rei!
Bem sabia ele — e o louceiro também não o ignorava — que a promessa
valia pouco, pois tinha muito amor ao dinheiro. Contudo, o oleiro fingiu-
se satisfeito. Quando o xerife lhe ofereceu, porém, os quarenta xelins do
prêmio do concurso de tiro ao arco, o louceiro não os quis aceitar,
ganhando com esse gesto o coração de todos os homens do xerife.
— Não, não — disse ele. — Fica para o que fez o melhor tiro entre os
seus homens. Quem sabe se não foi por causa de algum golpe de vento que
a minha seta partiu a cavilha?
Ceou naquela noite com o xerife e seus homens, que todos beberam à
sua saúde — um camarada tão digno, e tão bom homem! Terminado o
alegre serão, deram-lhe uma cama em um canto abrigado do salão de
entrada, e todos foram descansar.
De manhã cedo, antes que raiasse a aurora, já estavam todos de pé. Cada
um bebeu uma caneca de cerveja e comeu um pequeno pão de centeio.
Depois trouxeram os cavalos, e com eles a carroça e o pônei do oleiro, e
este saiu para a floresta, acompanhado do xerife e de seus homens.
Internou-se pela mata, por entre clareiras solitárias e trilhas estreitas de
veados, por onde nenhum dos homens do xerife tinha jamais andado. E em
mais de um lugar, onde não era difícil topar com uma emboscada, tanto
eles como o amo olhavam, amedrontados, em volta de si, perguntando lá
consigo se chegariam ao fim daquele dia com a pele intacta.
— Tens certeza de conhecer bem o caminho, louceiro? — perguntava o
xerife de vez em quando.
E Robin respondia, rindo:
— Sem dúvida! Não é debalde que há vinte anos ando abaixo e acima, a
caminho de Sherwood. É natural que estranhes levar-te eu por caminhos
tão solitários. Mas pensas então que um patife de um proscrito como
aquele vai fazer seu ninho perto da estrada real, onde qualquer cão
faminto pode farejá-lo?
— E como sabes que o falso bandoleiro está invernando no lugar que
dizes? — perguntou ainda o xerife, meio suspeitoso.
— Porque assim me disseram os camponeses que encontrei, quando
vinha de Wentbridge. Eu te levarei até meia milha do Mato da Bruxa, e tu
farás teus planos para apanhar o biltre.
— Que espécie de lugar é esse Mato da Bruxa?
— É um lugar medonho, segundo tenho ouvido dizer. É o antro de uma
feiticeira temível, cheio de ossos de defuntos. Por fora é fresco, à sombra
das árvores, mas lá dentro há cavernas e rochedos, onde a feiticeira mora
com seus maus espíritos, no meio daqueles ossos cinzentos; e os rústicos
dizem que Robin Hood é parente próximo dela, e que, dentro da floresta,
está debaixo da sua proteção, e nenhum mal lhe pode acontecer!
Os dez homens espiavam assustados para todos os lados, e o xerife
perguntou:
— Como assim?
— Dizem que ela é o espírito da floresta e que pelo seu poder secreto
pode matar qualquer homem que entre debaixo das árvores, ou encerrá-lo
vivo dentro de um tronco de árvore, ou mergulhá-lo em um sono
encantado.
— E o que é aquilo lá? — perguntou o xerife, apontando para a frente.
Tinham chegado a uma aberta do mato, onde as árvores rareavam e
aparecia um trecho de chão em aclive, coberto de arbustos rasteiros. No
meio havia uma lomba, sobre a qual se erguia um enorme carvalho, cujos
galhos imensos cobriam um grande espaço, abrigando também à sua
sombra três altas pedras retas, inclinadas umas para as outras, como se
estivessem cochichando.
— Aquilo é a Lomba das Três Pedras. Dizem que de dia elas são três
pedras cinzentas, como estás vendo, mas que, quando a coruja pia e o
vento da noite sopra nas moitas, elas viram bruxas, que andam em roda
como o vento, executando as ordens da grande feiticeira da floresta —
espalhando a gafeira e a peste, deitando mau-olhado às colheitas e
causando outros males às gentes.
Os homens olharam fixamente nos olhos uns dos outros, depois
voltaram rapidamente a cabeça, envergonhados de encontrar o medo
estampado neles, porque cada um sabia que era o que se lia nos seus
próprios olhos. Todos os homens daquele tempo acreditavam em
feiticeiros e bruxas — até o próprio rei e os mais sábios homens de
Estado.
— Eu acho — disse por fim o xerife asperamente — que nos devias ter
dito essas coisas antes de partirmos, porque então teria trazido um padre.
Agora…
Nesse momento ressoaram gritos agudos e risadas no meio das árvores
sombrias, ao lado deles. Tão repentinos e tão temerosos eram aqueles
gritos, que os cavalos pararam e começaram a tremer, enquanto os
cavaleiros faziam o sinal da cruz, espiando para a escuridão das árvores.
Afinal alguém gritou:
— Vamos dar volta!
E um ou dois deram volta aos cavalos, naquele caminho estreito, e
deitaram a fugir.
De novo soou a risada de louco. Parecia vir de todos os lados daquela
rude floresta escura que os cercava. A maior parte dos homens meteu as
esporas nos cavalos e, a despeito dos gritos do xerife, ordenando-lhes que
ficassem, todos eles tocaram-se a trouxe-mouxe para longe dali.
O oleiro, de pé no seu carrinho, e o xerife, de olhar sombrio, escutavam
o eco surdo dos cascos, que ia amortecendo aos poucos.
— Covardes imbecis! — gritou o xerife, rangendo os dentes.
Contudo, com toda aquela bravata, ele mesmo estava com medo, e
continuava a olhar para todos os lados, por entre as árvores.
De repente o oleiro fez estalar o chicote. Imediatamente as notas claras
de uma buzina soaram na clareira, e logo apareceram uns vinte homens de
roupa escura, que pareciam brotar da terra, ou sair dos troncos das
árvores. Alguns até caíram dos ramos que ficavam justamente acima do
lugar onde estava o xerife.
— Então, mestre oleiro — disse um sujeito alto, barbudo e de cabeça
nua. — Como te foste lá por Nottingham? Vendeste toda a mercadoria?
— Sim, na verdade, assim foi! Vendi tudo, e alcancei um alto preço. Vê,
João Pequeno, trouxe o próprio xerife em troca da minha louça.
— Por minha fé, chefe! Será muito bem-vindo! — gritou João Pequeno,
soltando uma gostosa gargalhada.
E todos os proscritos fizeram-lhe coro, quando viram o espanto e a raiva
que se refletiam no rosto do xerife.
— Patife, fingido — gritou ele, rubro de vergonha e aflição. — Se eu
tivesse sabido quem eras tu!…
— Graças à Virgem Maria, não o sabias!
E Robin foi tirando as roupas do oleiro, que tinham sido forradas de
trapos, para lhe dar aparência de homem mais corpulento.
— Mas agora, já que estás aqui, xerife, vais jantar conosco um gordo
veado real… E depois, para pagar o pedágio, me deixarás teu cavalo e tuas
armas, e outros petrechos.
E assim se fez. O xerife, quisesse ou não, teve de comer um pedaço de
excelente veado, regado com vinho doce das Canárias; e como estava com
fome, sentia-se agora mais à vontade.
E depois de entregar seu cavalo e todas as armas a Robin Hood,
preparava-se para voltar para a cidade a pé, quando o bandoleiro mandou
que trouxessem um palafrém e ordenou-lhe que o montasse.
— Volta para tua casa, xerife, e cumprimenta tua mulher em meu nome.
Tua esposa é tão cortês e amável como tu és impertinente e rezingão. Este
palafrém é um presente que mando à senhora tua mulher, e espero que ela
guarde boa recordação do louceiro, ainda que tu, bem o sei, não faças
muito boa ideia de mim.
Sem dizer palavra, lá se foi o xerife. Esperou que escurecesse para se
apresentar no portão de Nottingham, pedindo entrada. O porteiro
admirou-se da estranha volta do chefe — montado em um palafrém de
senhora, sem um única arma na cintura, e sem o capacete de aço. A
história da vergonhosa disparada dos seus homens, que tinham chegado
antes dele, se espalhara entre os que andavam nas ruas da cidade;
apressaram-se, pois, em arrancar dos homens a confissão da fuga, e o
xerife, que esperava esgueirar-se para dentro de casa sem ser visto,
encontrou, com a maior surpresa, as ruas cheias de gente embasbacada.
Respondeu de má sombra às perguntas que lhe faziam, mas, ao apear-se,
ouviu o riso que se ia alastrando entre a multidão estacionada à sua porta,
e já lá dentro, chegou-lhe aos ouvidos a gargalhada atroadora de mil
gargantas.
No dia seguinte não havia ninguém mais enfurecido que o xerife
Murdach. Toda a cidade ria — desde o orgulhoso alcaide do castelo, com
seus cem cavaleiros, até os garotos que limpavam as cavalariças —, todos
riam ao se lembrar da figura do xerife, que partira com o seu esquadrão,
guiado por um falso oleiro, para capturar o proscrito Robin Hood (o qual
não era outro senão aquele mesmo oleiro), vindo a terminar a história com
a captura e saque do próprio xerife, pelo astuto Robin Hood.
iv
Robin Hood encontra o padre Tuck
v
o verão, e a vida na floresta era muito agradável. Por mais ardente
VOLTARA JÁ
que fosse o sol nos campos abertos, onde os pobres servos se fatigavam e
suavam, nos bosques era sempre fresco e sombrio, e sob as árvores
sopravam brisas suaves, e o zumbido das moscas, esvoaçando na sua dança
perpétua, parecia convidar a gente a dormitar.
Muitos dos pobres vilões, curvados sobre a terra, a cavar ou a semear, ou
a colher o que tinham plantado, pensavam nas sombras frescas das árvores
que o vento agitava, lembravam-se então daqueles que tinham escapado da
servidão e hoje estavam lá longe, vagando por onde lhes apetecia, livres do
trabalho, da censura e de duras fadigas. Muitos deles perguntavam consigo
por que não haviam de ser também assim arrojados, por que não
romperiam as cadeias forjadas pelo hábito e pela rotina dos anos, fugindo
à lei, subtraindo assim aos seus senhores uma peça valiosa do material do
feudo — pois era esta a verdadeira qualidade de um servo, de um vilão,
perante a lei daqueles tempos obscuros.
Já a fama de Robin Hood e de seus homens se espalhara pelos campos,
ao redor das florestas. Mascates, pelotiqueiros e mendigos errantes
contavam histórias de seus ousados feitos, e já os menestréis, quando
encontravam um grupo de vilões em uma taberna de aldeia, compunham
toscas rimas a respeito dele — que não era mau para os pobres, e tirava
dos ricos, dos prelados orgulhosos, dos mercadores e cavaleiros.
E quando chegavam os tempos mais difíceis, quando os trabalhos da
semeadura, da colheita ou da lavra caíam com mais peso sobre os pobres
vilões, exigindo deles mais do que lhes era humanamente possível fazer,
quando já não podiam mais suportar aquela vida — então um que outro,
em cada feudo, pensava na liberdade, e, dando forma aos seus
pensamentos, aproveitava a primeira ocasião e fugia da aldeola de
telheiros humildes, indo ter à floresta.
E assim o bando de Robin Hood, formado a princípio de vinte homens,
foi aos poucos crescendo, até contar 35 vilões fugitivos, quando não fazia
mais de um ano que ele próprio se internara na floresta. Ele tinha, porém,
outra maneira de obter bons companheiros. Sempre que ouvia falar em um
bom arqueiro, ou em alguém que se servia bem da lança, ou em um bom
espadachim, mandava procurar o referido homem, e desafiava-o para um
combate amigável.
Muitas vezes vencia, mas houve ocasiões em que topou com homens
mais destros do que ele próprio, ou mais afortunados nos golpes. Fosse
qual fosse, contudo, o resultado, o fato é que eles eram quase sempre
conquistados pela cortesia e a coragem de Robin, e reuniam-se ao seu
bando, à sombra das verdes copas das árvores.
Foi assim que conquistou aquele valente guarda de animais, Sim de
Wakefield, com quem combateu; lutaram, conforme conta o menestrel
Jocelyn,
último feixe de lenha ao rústico carrinho, que ele próprio fizera, mal
imaginava ele que naquele mesmo momento estava vindo ao seu encontro
uma mensagem que iria ter grande influência na sua vida. Era um rapaz de
vinte anos, forte, bem-proporcionado, bonito, de pele manchada de sardas
e olhos escuros e vivos. A cabeça, coberta de cachos castanhos, andava
sempre exposta ao ar livre, a não ser quando caía neve e soprava o vento
penetrante do oriente, espalhando o granizo.
Era servo do feudo de Cromwell, cujo senhor era sir Walter de
Beauforest, pai de lady Alice. O senhor mal sabia da existência de Jack; via
de vez em quando o rapaz, quando ia à caça, ou quando vinha de volta,
mas não se dignava retribuir-lhe o cumprimento e nem sequer tomava
conhecimento do movimento de cabeça com que Jack o saudava. Mas
João, o Magriço, mordomo do senhor, sabia que era ele um dos mais
laboriosos, entre os trabalhadores mais jovens do feudo. É certo que
muitos anos antes, quando Jack tinha 12 anos, o mordomo não o via com
bons olhos, porque notara que lady Alice, menina de seus 14 anos,
escolhera o menino para um de seus falcoeiros. Quando, entretanto,
morreu o pai de Jack, o rapaz se vira obrigado a trabalhar para pagar o
telheiro e as poucas braças quadradas de terra que lhes davam o sustento,
a ele e à mãe. Já quase não via então lady Alice, embora continuasse
sempre disposto a se lançar ao fogo ou à água por um sorriso ou uma
palavra bondosa da senhora.
No grande rolo de pergaminho do feudo, que o mordomo guardava, que
continha a genealogia de todos os servos que viviam na terra de sir
Beauforest, Jack estava inscrito como João, filho de Wilkin. O nome de seu
pai era Will, mas, como era baixinho, chamavam-no Wilkin, que significa
Guilherminho. Mas o sobrenome de Jack não era uma coisa assentada,
porque os vilões e gentes pobres não o usavam naquele tempo.
Chamavam-no às vezes Jack, filho de Will, ou Jack do Espinheiro, por
causa de um espinheiro-branco que havia ao pé do seu rancho, ou ainda
Jack, filho de Alice, do nome de sua mãe. Mas, como ele era esperto e de
gênio alegre, sabia sempre quando era a ele que chamavam, e não se atinha
a cerimônias.
Gostava muito de cavalos, de cães e de falcões. Conhecia todos os
cavalos do feudo pelo nome, e muitos dias passara com eles, quando
andava por campos e tapadas, seguindo os longos e estreitos sulcos da
charrua, na faixa de terra do amo, que tinha de lavrar. Muitos dias felizes
passara também com lady Alice, nos campos abertos e incultos, caçando
com falcão ou esmerilhão, falcão treçó ou francelho.
Todos os guaipecas da aldeia estavam em bons termos de amizade com
Jack, mas não havia lá nenhum cão grande, como mastins, galgos ou
perdigueiros, porque ficavam muito próximas as florestas do rei, onde
pastava a caça brava, e todos os cães de grande porte eram mortos pelos
couteiros, ou tinham as patas mutiladas, para que não pudessem servir
para a caça.
A grande ambição de Jack era obter a liberdade. Ser livre e lavrar a sua
própria terra, como fazia Nicolau do Penhasco, ou Simão, o flecheiro,
parecia-lhe a maior felicidade que um homem poderia alcançar. Não que
seu senhor fosse mau, ou que João, o mordomo, fosse cruel, mas, ainda
assim, Jack preferia ser livre a se ver preso à terra, como era. Sua mãe
explicava aquele estranho desejo dizendo que, quatro gerações atrás, nos
tempos sossegados do abençoado rei Eduardo, o Confessor, quando aquela
terra ainda não conhecera senhores ferozes e barões violentos e ladrões,
os antepassados de Jack tinham sido livres; mas, quando os malvados
normandos vieram, escravizaram todos eles.
Achava Jack que era grande injustiça que, pela morte de seu pai, a mãe
tivesse de entregar ao mordomo o que tinha de melhor — a vaca, Moolie,
uma esplêndida leiteira, além do melhor caldeirão da casa e os melhores e
mais sãos instrumentos de trabalho. Disseram que aquilo era em
pagamento ao senhor, para que lhes permitisse ficar morando na terra, que
seus antepassados tinham possuído por gerações e gerações…
Ainda dez meses atrás, o mundo fora da aldeia parecera a Jack uma
região sombria, misteriosa e terrível. Ele conhecia tudo perfeitamente
dentro de três milhas a partir da igreja, no centro da aldeia, mas jamais
ousara penetrar na floresta, a leste, mais longe do que isso. Considerava
suspeitos todos os estranhos, e quando topava com algum ao seguir para a
aldeia, escondia-se até que o estrangeiro passasse.
O que sabia da floresta é que era um lugar medonho, a crer nas terríveis
histórias que contavam os outros vilões. De monstros, que saíam a voar de
noite, escondendo-se durante o dia nos tufos escuros de matagal, para
saltar sobre os viajantes incautos; de morros, em cujos topos ardiam fogos
na escuridão da noite e que eram a morada de pequenos elfos escuros ou
duendes. E de fato o temor de diabinhos maliciosos não abandonava o
espírito de Jack, naquele tempo. Essas coisas ruins podiam tomar qualquer
forma e viviam nas águas do rio, no mato, ao pé da estrada, e nos tufos de
relva, nos campos que ele arava ou ceifava. Toda a aldeia — e milhares de
aldeolas, em toda a vasta Bretanha — acreditava nesses espíritos maus,
portanto não era Jack pior do que seus companheiros, nem do que homens
famosos naquele tempo por sua sabedoria, e que até tomavam assento nas
sessões de conselho de reis.
Aquela velha gralha cor de fuligem, que desce sobre os sulcos do arado,
ou o corvo que pousou num torrão, quando ele lavrava a terra, e fixou nele
os olhos redondos como umas contas, talvez seja algum feiticeiro que veio
ver se podia lhe pregar alguma peça — e não apenas a ave que procura
vermes ou insetos na terra. Era por essa razão que Jack tinha de fazer uma
cruz com os dedos e rezar um padre-nosso, sempre que passava pela ave
agourenta. Do mesmo modo, se ele via a flutuar no arroio um grosso toro
de madeira, que, uma vez seco, daria para cozinhar uma sopa, não o
pescava inconsideradamente, como o faria um rapaz de hoje. Não: antes
de tocar naquilo, fazia sobre o madeiro o sinal da cruz, porque podia estar
oculto ali dentro algum dos perversos demônios da água, pronto a deitá-lo
abaixo, se ele não o desarmasse com o sagrado sinal.
Grande sorte era achar uma ferradura perdida, ou guardar uma já gasta e
inútil. Ele tinha uma sobre a porta do rancho, outra à janela, para que não
entrasse ali nenhum feiticeiro ou bruxa. Sabia também a maneira de
pendurar a ferradura, para que produzisse efeito. Na véspera de Finados,
na época em que as coisas más andam ao redor da gente, Jack prendia no
cinto um galhinho de freixo bravo.
Nunca vira um elfo, nem um duende, mas sabia que esses entes viviam
em tocas, nos morros, ou em lugares secretos dos bosques. Contava-se que
há muitos, muitos anos, um homem chamado Sturt de Norwell, um servo,
ouvira alguém gritar em um mato, onde perdera a picareta. Indo ver quem
gritava, o homem viu que era um anão. Mesmo assustado como estava,
Sturt procurou a picareta e achou-a, e o duende convidou-o para ir jantar
com ele em sua casa. Depois disso ele ia muitas vezes ao morro da floresta,
e um ano mais tarde casou com a filha do anão e sempre viveu em
prosperidade. Seus filhos ainda viviam em Norwell; um era homem livre, e
todos eles eram de pequena estatura, mas amáveis e fortes, sempre bem
recebidos em toda a parte, porque todos gostavam de seus cantos e de
suas boas maneiras.
Tal era a ideia que Jack fazia do mundo e das coisas, até pouco tempo;
mas um dia lady Alice, bela e graciosa como uma visão celeste, encontrou-
o em um lugar solitário e deu-lhe um pergaminho enrolado em um pedaço
de seda, pedindo-lhe que o entregasse ao seu namorado, que vivia oculto
em certo sítio da floresta de Lancaster. Era ele o único homem em quem
ela podia confiar, disse a moça; e suas palavras tinham feito o coração de
Jack crescer dentro do peito.
Era ele um bravo rapaz, mas aquela primeira viagem pelo interior dos
matos, levando a preciosa mensagem, foi uma experiência que jamais
havia de esquecer, pelos temores que passou. Mas, por puro devotamento
à bela Alice, cujo amor por Alan de Dale era conhecido em todo o feudo,
sua lealdade vencera todos os receios, e ele tinha desempenhado fielmente
a sua missão.
Fizera ainda mais três vezes aquela viagem, e cada vez sentia que lhe
voltava o medo das estradas estranhas e do vasto campo inculto, que ficam
entre Sherwood e Werrisdale; mas, graças à sua decisão e astúcia, saíra
são e salvo de várias aventuras.
Nunca tinha visto um proscrito, ou verdadeiro ladrão dos bosques.
Mascates, mendigos vigorosos ou menestréis descarados tinham tentado
assustá-lo, ou despojá-lo de seus poucos haveres, ou do saco de farnel, mas
não vira nenhum desses homens terríveis, fugidos de seus senhores
legítimos, abandonando terra e lar, e os costumes antigos de seus
antepassados. Muitas vezes considerava que deviam ser homens
desesperados e indiferentes a tudo, sempre prontos a matar ou a ferir os
outros.
Naquela tarde, quando amarrava o último feixe ao carrinho, perguntava
consigo o que teria feito se em uma daquelas viagens saísse de repente um
sujeito desses do meio da mata e lhe pedisse o guardado precioso que lady
Alice lhe confiara. Oh! Combateria até o último suspiro, antes do que
entregá-lo!
Deu um estalo com a língua, para avisar o pônei que puxava o carrinho, e
o foi guiando para o caminho, fora da floresta. Olhou para o poente e viu lá
muito longe, sobre a linha sinuosa da floresta, a borda superior do enorme
sol vermelho, a cuja luz os troncos das árvores pareciam rubros e
brilhantes como sangue.
Ouviu o rumor de um graveto partido e viu a seu lado um homem, que
saía de trás do tronco de uma árvore e lhe barrava a passagem,
perguntando-lhe em tom autoritário:
— És Jack, o filho de Wilkin?
Jack recuou, levando a mão ao cabo da faca que trazia à cinta. Olhou
atentamente para o homem, que era baixinho e vigoroso. Trajava túnica e
calções verdes, já muito usados e com alguns rasgões, como se tivesse
andado por algum espinheiro. Trazia às costas o arco e, preso à cinta, junto
de uma espada, o feixe de setas.
Olhava Jack para o estranho, perguntando de si para consigo quem
poderia ser. Pelas roupas, parecia couteiro de algum senhor, e o rosto,
coberto por uma grande barba grisalha, era severo, mas dava impressão de
honestidade. Contudo, aquele homem tinha ar de quem não tinha outro
senhor senão ele próprio. Via-se estampado o cunho da liberdade no olhar
franco e penetrante, e na postura altiva da cabeça.
Foram pensamentos que passaram como um relâmpago pelo espírito de
Jack, que disse:
— E que te importa quem eu seja?
— É a ti que te importa quem tu és — disse o outro, rindo. — Escuta,
rapaz: não te quero fazer mal algum.
Havia naquele riso um timbre de franqueza, que agradou a Jack. O
estrangeiro meteu a mão esquerda no bolso e tirou de lá alguma coisa.
Puxou então a adaga e enfiou-lhe na ponta dois anéis — um de ouro, outro
de prata — e ergueu a arma. Os raios do sol poente fizeram brilhar um
diamante no delgado aro de ouro, de sorte que este luzia e irradiava, como
uma luz faiscante, no sombrio crepúsculo do mato.
— Conheces algum deles, rapaz?
— De onde os tiraste? — perguntou Jack, com uma sombra de raiva no
semblante. — Ah! Tu os roubaste daquelas que os usavam? Se assim foi,
não sairás daqui vivo!
— Devagar, valente rapaz! — replicou o outro, observando o
involuntário movimento de Jack, que se curvara, como se lhe fosse saltar
em cima. — Meu chefe recebeu-os das mãos de suas lindas donas, Lady
Alice, tua senhora, assim lhe disse: “Jack é valente e gosta de me fazer a
vontade. Ele conhecerá que isto me pertence, e fará o que o portador lhe
disser com a maior alegria, por amor a mim.”
— Lady Alice disse essas palavras? — perguntou o rapaz.
E corou; parecia que o sangue lhe refluíra, cheio de calor, para o coração,
e ele irradiava de prazer, ouvindo o louvor de sua ama, mesmo pela boca
daquele rude couteiro velho.
— E então, que deseja a senhora que eu faça? — indagou ele.
— Que vás comigo, ter com Alan de Dale — disse Will, o besteiro.
Hesitou o moço por um momento. Ir com aquele estranho pela selva
bruta, para as solitárias terras do Peak! Mas sua lealdade não o deixou
refletir mais tempo:
— Eu irei, amigo. Dize-me teu nome e quem és tu.
— Chamo-me Will, o besteiro. Robin Hood é meu chefe.
— O quê?! —disse Jack, recuando. — Então és um proscrito! Um dos
homens de Robin Hood?
— Sou, sim; e muito me orgulho de servir um chefe tão bravo e tão
sábio.
Jack ficou por um momento assombrado. Aquele homem não era um
degolador terrível e disposto a tudo, como imaginara; era um homem de
feições simples, cujos olhos talvez fossem severos, mas que também
sabiam sorrir. Estendeu a mão em um impulso, e o outro apertou-a.
— És tu o primeiro proscrito que encontro — disse o rapaz, rindo de
boa mente — e se teu chefe e teus companheiros são como tu, diz-me o
coração que vocês são honestos e bons camaradas. E Robin Hood vai
ajudar minha senhora?
— Sim, vai; mas agora deixemos de prosa e vamos para a floresta, antes
que seja noite.
Nada mais disseram. Jack pôs carro e cavalo na direção da aldeia e deu
uma pancadinha no cavalo; quando este saiu a trote, viu que chegaria logo
e em segurança à aldeia. Antes, porém, de despedi-lo, apanhou uma haste
de clematite da sebe e amarrou-a ao pescoço do animal; avisava assim sua
mãe de que tinha sido outra vez enviado repentinamente a recado de sua
senhora.
Depois que tinham andado uma milha para além da floresta, disse Will:
— Não me perguntaste que mensagem veio com o anel de prata.
— Não — disse Jack, rindo. — Não perguntei. Primeiro, porque o
recado de minha ama me varreu isso da cabeça; segundo, porque imaginei
que não havia de ser uma mensagem muito suave.
— Era recado de uma moça; e é meio amarga e meio doce, como de
certo já sabes. Então já vejo que a jovem Netta de Meering tanto te diz
palavras boas como escarnece de ti?
— És mais velho do que eu — replicou Jack, com um sorriso acanhado
—, e sem dúvida conheces os costumes das moças melhor do que eu. Que
foi que ela me mandou dizer?
Disse-lho Will, e o rosto de Jack tornou a corar ao ouvi-lo. Disse então,
com uma sombra de altivez: “Eu não preciso da rudeza de sua língua para
me mover a serviço de minha senhora.”
Dali em diante não falou mais, mas Will notou que ele apressou o passo
e parecia muito pensativo. Quando os últimos restos de luz desapareceram
do céu, iam já pelos caminhos mais ínvios da floresta. Descansaram um
pouco e comeram seu farnel, enquanto esperavam o luar. Àquela luz
amável recomeçaram a andar, e pareciam demônios de formas escuras
naquela negrura profunda; mas, quando saíam da sombra e andavam nas
clareiras iluminadas, pareciam antes fadas, cobertas de um brilho mágico.
Dali a dois dias, os camponeses da aldeia de Cromwell andavam aos
grupos, pelos ranchos, falando no triste acontecimento que ia se realizar
naquela manhã, e que dizia respeito à sua bem-amada senhora. Todos
sabiam que ela dera seu coração a Alan de Dale, mas que o duro fado que
regula a vida de cavaleiros e damas a obrigava a casar com Ranulfo de
Greasby, o velho malvado de cabeça branca, que vivia nas terras
pantanosas do leste.
Alguns vilões estavam no pátio da igreja em que se ia realizar a
cerimônia. Olhavam para a estrada muitas vezes, para o lado do norte,
porque era de lá que havia de vir a comitiva do casamento. Já tinham visto
o padre, no seu passo miúdo, dirigir-se para a casa senhorial, de onde
provavelmente acompanharia a noiva à igreja.
— Lá vai ele, levar conforto àquela a quem não pode confortar — disse
uma jovem que tinha um nenê nos braços. — Coitada! Por que não há de
ela casar com quem mais ama no mundo?
— Isso lhe custaria a cabeça, se viesse hoje aqui — disse o homem que
estava ao pé dela. — É um proscrito, um homem arruinado.
— Não — disse um rapaz mais novo. — Receio muito que não haja
remédio a dar à pobre moça! Ela se consumirá de mágoa quando estiver
casada, e nunca mais tornará a ser a linda e alegre jovem que era até agora.
— Oh! Isto é uma grande injustiça! — bradou uma mocinha. — Não
haverá ninguém na família que possa salvá-la?
— Seus parentes são gente fraca, Mawkin — disse uma velha toda
enrugada —, e seriam o mesmo que ratinhos nas garras de Isenbart de
Belame, se se opusessem à sua vontade.
Naquele momento ouviu-se tropel de cavalos na estrada maltratada que
vinha do norte, e apareceram dez soldados com a libré de Ranulfo de
Greasby. Eram de aspecto duro e grosseiro, e, sem uma palavra, foram
guiando os cavalos para o portão, e dali para o pórtico da igreja,
espalhando os pobres vilões, que tiveram de escapar como puderam às
patas dos animais. Postaram-se aos dois lados do pórtico, e, desmontando,
ficou cada um junto do seu cavalo, olhando insolentemente para os
camponeses, agora amontoados junto ao portão.
— É de semelhante refugo que o velho receia um rapto? — perguntou
um dos soldados.
Riram os outros a esta graçola, e um respondeu:
— Há tanto tempo que a linda e jovem namoradeira zomba de nosso
velho amo, que agora, tendo-a já quase nas mãos, ele receia que algum
mau lance a arrebate.
— Sim, ela zomba dele há muito tempo — disse outro. — Mas eu não
dou grande coisa pelas suas zombarias, quando ela estiver no castelo dele,
lá em Hagthorn Waste! Ele tem meios de domar a dama mais altiva, como
sua última esposa bem sabia, segundo dizem.
— Sim, ela era linda, de olhos escuros; seu olhar ora parecia uma
espada, ora era tão suave como o de uma criança — disse outro.
— Lembro-me dela — retrucou o que falara primeiro. — Durou só dois
anos. Escapou dele em uma noite de inverno, e foram achá-la de
madrugada no Brejo de Grimley, entorpecida de frio.
Então disse o que parecia chefe:
— Vocês são alegres padrinhos de casamento, pela Santa Cruz! Vamos,
aquele menestrel que venha cantar um canto animado, mais próprio para
um noivado! Olá, vem cá, maroto!
Um menestrel alto, de gibão de festa já no fio e calções remendados,
viera da aldeia e juntara-se ao grupo de camponeses, e ria com eles,
enquanto ia tangendo a harpa, pendurada ao pescoço por uma fita
encarnada. Ao chamado do soldado, foi até o portão, tirou o barrete de
veludo, fazendo uma cortesia.
— Que preferis, nobres cavaleiros? Um canto de guerra e pilhagem, ou
um dos que falam de jovens amáveis, ou de caçadas, da boa caça brava?
— Canta o que mais te agradar, desde que seja um canto bonito —
ordenou o chefe dos soldados.
Então, depois de dar alguns acordes preliminares e limpar a garganta, o
menestrel cantou uma canção popular, “A Rosa de Woodstock”. Tinha
uma rica voz de tenor, e a música era viva, com um coro em que todos
tomavam parte. Depois cantou-lhes uma balada que falava de um noivado,
que agradou imensamente aos soldados. Quando o menestrel quis
despedir-se, o chefe disse-lhe:
— Fica, alegre camarada, porque, se não me engano, vamos ter
necessidade de ti. Certamente vai chegar, daqui a pouco, uma noiva de
cara tristonha, e talvez teus cantos alegres possam animá-la, e meu senhor
então ficará contente de vê-la. Se agradares hoje ao nosso amo, terás uma
boa recompensa, podes crer nisso!
O menestrel não desgostava de ficar, e preparava-se para cantar outra
canção, quando avistaram quatro cavaleiros que se dirigiam depressa para
a igreja. O mais alto era sir Ranulfo de Greasby, um velho grisalho, de
rosto vermelho e feio. Tinha a boca dura e os olhos vermelhos e ferozes.
Trajava um rico manto de seda carmesim, o cinto era incrustado de
diamantes, e o punho da espada também cravejado de pedras preciosas. Os
outros três cavaleiros eram mais jovens, com ar de gente capaz de tudo,
bem-vestidos, mas de porte desalinhado. Um era o sobrinho de sir
Ranulfo, sir Heitor de Harelip, que quer dizer “leporino”, homem com ar
de malfeitor, cuja fama de crueldade era tão grande como a do tio.
O velho cavaleiro entrou de corrida portão adentro, como se viesse com
muita pressa.
— A dama já veio? — gritou ele, com voz rouca, para os seus soldados.
E seus olhos vermelhos, de raposa, pousaram suspeitosos em um e
outro.
— Não, senhor.
— Maldição! — gritou arrebatadamente.
E o velho cavaleiro, voltando-se na sela, olhou, furioso, para um e outro
lado da estrada, depois para a multidão de vilões e para os ranchos, que se
viam lá longe. E disse entre dentes:
— Ela ainda me faz esperar!
E ouviram todos que rangia os dentes, e viam-lhe os olhos vermelhos se
cerrarem, sem ocultar, contudo, o brilho feroz que luzia neles.
— Há de chegar a sua vez de esperar, dentro em pouco, se não me falar
com delicadeza!
Avistando de repente o menestrel, que estava parado perto do seu
cavalo, perguntou:
— Quem és tu, patife?
— Sou Jocelyn, o menestrel, sir cavaleiro — replicou o homem,
tangendo a harpa.
— Tens cara de patife — disse sir Ranulfo, desconfiado —; és pouco
delicado para um músico.
— Contudo, sir cavaleiro, eu sou um pobre músico e venho dar prazer a
Sua Alteza com meu canto simples, se desejais ouvi-lo — disse o
menestrel, tangendo de novo a harpa.
— Canta, então, velhaco; e que teu canto seja apropriado, senão só
ganharás bastonadas.
O músico levantou duas cordas da harpa e começou:
De novo a risada retiniu; desta vez mais escarninha. Sir Ranulfo olhou
para o cantor e disse, muito irritado:
— Que barulho é este, maroto? Trouxeste contigo algum companheiro?
— Não, senhor; não trouxe nenhum companheiro.
Então um dos homens, cujos olhos denunciavam grande terror, disse ao
amo:
— É provável, senhor, que lá na torre esteja algum demônio…
— É provável, maluco — trovejou sir Ranulfo —, que leves uma grande
sova, quando voltares! Vão, rodeiem a igreja, indo pelos dois lados, e
vejam se não há por aí algum vilão escondido! E, se o encontrarem,
tragam-mo cá, que lhe arrancarei a língua pela boca fora! Hei de lhe
ensinar a zombar assim de mim!
Saíram quatro homens, enquanto outros iam procurar entre os túmulos;
podia haver alguém oculto atrás das tábuas erguidas sobre algumas
sepulturas. Mas ambos os grupos voltaram sem ter encontrado ninguém.
O cavaleiro estava furioso, e determinou que cinco de seus homens fossem
dispersar os vilões que estavam junto ao portão do cemitério, espantados
com o estranho caso. Mas os camponeses, sem esperar as pancadas dos
soldados, já tinham voado para os seus casebres.
— Agora, malandro — gritou sir Ranulfo ao menestrel —, canta outra
copla da tua canção; e, se eu ouvir outra risada, saberei então que é coisa
tua mesmo. Pensas tu que não conheço as artimanhas de bruxedo da tua
raça de impostores?
— Juro pela salvação da minha alma — disse o trovador gravemente —
que não fui eu quem deu aquelas risadas. Contudo, cantarei outra estrofe e
esperarei o resultado.
E, acompanhando-se de sua harpa, cantou:
Durante todo esse tempo viviam felizes, na floresta, Robin e Marian. Ela
perdera sua vasta propriedade, é verdade, e em vez de morar em um
castelo de grossas paredes, em vez de trajar ricas e finas roupas, vivia em
uma cabana de madeira e vestia-se de pano verde, comum e grosseiro, de
Lincoln, e de peles de animais. Contudo, jamais se sentira tão feliz, pois
estava junto daquele a quem mais amava no mundo e sentia ao redor de si
aquela vida livre dos frescos bosques e o vento indomável que soprava
entre as árvores.
Robin desejava tanto que o seu rei se libertasse que, quando soube
daquelas taxas exigidas para obter o resgate do rei, reuniu a metade de
todo o seu depósito de ouro e prata, vendeu muitas vestimentas ricas e
objetos de luxo, e enviou para Londres todo o dinheiro assim obtido,
muito bem protegido por uma forte guarda, que devia entregar tudo ao
corregedor em pessoa. Quando este abriu o pacote que lhe entregaram os
visitantes, achou dentro um pedaço de pele de gamo, em que estavam
escritas estas palavras:
E dali por diante, Robin separava sempre a metade de tudo o que tomava
aos viajantes e guardava à parte, em um lugar especial e secreto, para
mandar para o resgate do rei. E também quando ouvia dizer que algum
rico rendeiro livre, burguês ou camponês abastado, ou algum avarento —
fosse cavaleiro, abade ou cônego — ainda não pagara a taxa devida, fazia,
em companhia de alguns companheiros escolhidos, uma visita à casa do
que negara para a liberdade do seu rei; se o camponês ou cavaleiro não lhe
resistia, tomava somente a taxa devida, mas se, como sucedia algumas
vezes, o homem recalcitrava e lhe dava combate, então Robin tirava tudo o
que podia encontrar, deixando o avarento e seus homens feridos e com as
bolsas vazias.
E desse modo, receando perder muito mais, muitos se apressavam a
pagar imediatamente a taxa que, a não ser assim, jamais teriam pagado; e
acontecia às vezes que algum daqueles a quem Robin tomara o que era
devido era obrigado a pagar de novo aos coletores do rei.
As histórias sobre o procedimento de Robin espalharam-se por toda a
parte, até que chegaram aos ouvidos do próprio Hamelin, o forte conde de
Warenne, um dos tesoureiros do rei; e ele declarava abertamente que era
uma lástima que o rei não tivesse um exator como Robin em cada
condado, porque se assim fosse estaria liberto dentro de poucas semanas.
Indagou tudo quanto pôde a respeito de Robin, e disse ao ouvido de
muitos nobres e lordes poderosos que gostaria de ver aquele camponês
forte, porque lhe parecia ver nele afinidades consigo próprio.
Quando afinal o rei Ricardo foi libertado da prisão, muitos de seus
inimigos, que tinham se apossado de castelos em nome de seu irmão João,
que maquinara para ficar com a coroa, os abandonaram e fugiram,
temendo o castigo do rei. Outros se viram sitiados pelos amigos do rei
Ricardo, rendendo-se dentro de pouco tempo. Certos cavaleiros tinham
tomado conta do castelo de Nottingham para o conde João; esses
ofereceram resistência séria e não abriram mão da presa. Quando o rei
Ricardo desembarcou em Sandwich, depois que voltou da Alemanha,
ouviu dizer que aquele castelo ainda se recusava a capitular e entregar-se
aos seus conselheiros; irritadíssimo, marchou para aquela cidade e
acampou diante do castelo com um forte exército. Efetuou um assalto, e
com tanto êxito, que capturou parte das obras exteriores, deixando-as em
ruínas, e matando muitos dos defensores.
Dois dias depois os guardas do castelo, entre os quais estava Roberto
Murdach, irmão do xerife que Robin matara, saíram de lá e declararam que
o castelo se rendia, e entregaram-se mercê do rei. Este os recebeu de má
catadura, determinando que fossem presos e guardados à vista.
Um dia, quando rei e seus lordes estavam à mesa jantando, contaram-lhe
que havia um bandoleiro altivo e insolente, que vivia com muitos
proscritos nas florestas de Clipstone, Sherwood e Barnisdale, perto de
Nottingham. Entre todos, o chanceler William de Longchamp mostrou-se
particularmente indignado à enumeração dos crimes de Robin.
— É um desses homens, meu senhor — dizia ele —, que teu pai, o rei
Henrique, de bendita memória, não teria permitido que cometesse tantos
crimes durante todos estes anos; o mais certo é que ele teria mandado um
exército de besteiros às florestas onde ele se oculta, dando caça a todos os
patifes e enforcando-os imediatamente.
— A ti pertencia, senhor bispo, fazer isso — retorquiu Ricardo
energicamente. — Entreguei-te esta terra, para que a governasses com
justiça, acabando com os roubos, assassínios e contendas, mas parece que
ainda aumentaste a confusão e a desordem.
Muitos nobres, que odiavam o bispo, sorriram ao ver a tristeza do olhar
de William de Longchamp. Eles o tinham expulsado da Inglaterra por
causa da sua arrogância e opressão, e a réplica do rei lhes agradara
imensamente.
— Contudo, senhor — disse Hamelin, conde de Warenne —, se o
senhor bispo tivesse podido enforcar aquele forte proscrito, é provável que
Vossa Alteza ainda estivesse na prisão.
Os outros olharam, admirados, para Hamelin, e viram-no a sorrir.
— Como é isso, Hamelin? perguntou o rei. — Que há de comum entre
esse patife e a minha libertação?
— Há isto, sir: se é certo que ele ama muito os veados do seu rei, no que
peca com muitos outros, tanto ricos como pobres, parece que também
ama ao seu rei, e nesse amor ele excede a muitos de teus cavaleiros e
lordes. Ele vive do pedágio que cobra dos viajantes que atravessam as tuas
florestas, e, segundo me informaram, reuniu muita armadura e roupa rica
e dinheiro. Mandou metade dessa riqueza ao corregedor-mor de Londres;
era o resgate de um conde. E mandou também uma mensagem escrita:
“De Robin Hood e dos homens livres de Sherwood, para o seu bem-amado
rei, a quem Deus livre depressa dos inimigos, na pátria e nas terras
estrangeiras.”
E, enquanto os outros homens se entreolhavam, assombrados, o conde
de Warenne continuou:
— Por último, sir, ele arvorou-se em exator desta região, e muito abade
gordo, cônego ou prior, que não tinha pago a taxa que havia de te libertar,
e muito burguês, cavaleiro e camponês avarento receberam uma visita
noturna do bandoleiro, que os obrigou a pagar a taxa. E, por minha fé!
disseram-me que esses tiveram de pagá-la duas vezes — uma a Robin
Hood e outra aos esbirros — o que muito sentiram!
O rei riu francamente, e seus nobres o acompanharam nessa alegria.
— E o pedágio e as taxas que ele assim conseguiu reunir — continuou
Hamelin —, o bandoleiro enviou também, conforme me disseram, ao
corregedor-mor, com esta mensagem: “Para libertar meu senhor, o rei. De
cavaleiros, monges e outros marotos de má vontade, que não o amam nem
um bocadinho — pelas mãos de Robin Hood e seus homens da floresta.”
— Por minha fé! — exclamou o rei, cujo olhar era tão entusiasmado
como o tom da voz. — É um homem que deve ter um senso muito claro do
direito e da justiça! É evidente que ele conhece e ama profundamente a
liberdade, por isso tem muita pena daqueles que se veem encarcerados e
só percebem a luz do sol pelo teto da cela! Pela alma de meu bendito pai,
se eu tivesse outros vassalos tão amorosos e tão preocupados com o meu
bem-estar como este bandoleiro, não teria penado no castelo de Hagenau
tantos meses!
Deitou um olhar sombrio ao redor da mesa, e muitos rostos
empalideceram, porque alguns sabiam que não tinham sido muito zelosos
na obtenção da elevada soma necessária ao resgate do seu rei. Muitos
outros, também, tinham-se deixado seduzir pelas promessas daquele
traidor irmão do rei, o conde João de Mortaigne.
— Mas digo-lhes! Quero ver esse proscrito! Quero saber que espécie de
homem é ele. Em que foi que transgrediu a lei?
— Foi matando meu irmão, sir — disse William de Longchamp. — Ele
matou sir Rogério na estrada real e ainda matou mais cinco soldados do
abade de Santa Maria, em York, daí para cá não têm mais conta os
assassínios e ladroeiras que tem praticado.
— Creio — interveio Hamelin tranquilamente — que ele matou teu
irmão, o lorde bispo, porque sir Rogério tinha raptado a filha de
FitzWalter, lady Marian. Não foi assim? Teu irmão, com um grupo de
criados, atacou-a, e aos seus fâmulos, na floresta, e a teriam levado para o
seu castelo, a que alguns chamam o Castelo da Malvadez, segundo ouvi
dizer; mas aconteceu que aquele bandoleiro andava escondido por ali e
matou sir Rogério, atravessando-lhe a viseira com uma seta.
— Pela Santa Virgem! — disse o rei Ricardo, que sempre tinha um
louvor para os atos de bravura praticados em favor de mulheres
ameaçadas de opressão, ou maltratadas. — Foi esse um feito digno, se,
como penso, não era essa a primeira dama que teu irmão Rogério ofendia,
não, senhor bispo?
William de Longchamp olhou furioso para o conde de Warenne, que
sorria, indiferente aos olhares indignados do seu inimigo.
Voltando-se de novo para o rei, disse o chanceler William:
— Tenho a dizer-te, sir, que se não podes considerar uma grande perda a
morte de meu pobre irmão, ainda assim esse ladrão e assassino, Robin
Hood, praticou ultimamente atos que seguramente não lhe valerão o teu
favor. Matou o xerife de Nottingham, Rodolfo Murdach; casou com lady
Marian, uma de tuas pupilas, e, além disso, induziu um cavaleiro, cujas
terras ficam próximas deste castelo, a acompanhá-lo e roubar e pilhar com
ele nas tuas matas.
— Como se chama esse cavaleiro? —perguntou o rei, indignado.
Parecia muito encolerizado, porque, posto que estivesse disposto a
desculpar muita coisa em um simples camponês, pouca misericórdia devia
esperar dele o cavaleiro que esquecesse sua honra a ponto de se tornar um
bandoleiro.
— É sir Ricardo de Lee, e seu domínio fica perto de Linden Lea, em
Nottingham.
— Eu lhe confisco as terras — disse o rei, muito irritado —, e sua cabeça
lhe rolará dos ombros! Aquele apóstata!
E, dirigindo-se a um dos escribas do tesouro, que ficava por detrás de
sua cadeira, ordenou:
— Escreve a declaração: Que quem quer que apanhe aquele cavaleiro e
lhe corte a cabeça e a traga para mim, ficará com as suas terras!
Mas nisto um velho cavaleiro, saindo de um grupo de lordes muito bem
trajados, que esperavam atrás do rei, adiantou-se e disse:
— Se me dás licença, sir, direi que não existe homem vivo que seja capaz
de se apossar das terras do cavaleiro, enquanto seu amigo Robin e seus
homens puderem andar pela floresta e entesar um arco.
— E quem és tu? — perguntou o rei. — E como o sabes?
— Sou João de Birkin, sir, e sir Ricardo de Lee era meu amigo. Desde que
sir Ricardo fugiu, o novo xerife tem lutado por tomar conta do castelo e
das terras em teu nome, mas nenhum homem poderá morar ali. Quando
andam pelos campos, são varados por setas que vêm dos matos, seus
criados são surrados, ou fogem, e todos os vilões do domínio já se foram
reunir ao seu senhor, lá nos bosques.
— Pela alma de meu pai! — disse o rei, erguendo-se da cadeira. — Se o
que dizes é verdade, então os melhores homens estão nos matos, e os
homens vis são os loucos obedientes à lei, que pretendem governar em
meu lugar, enquanto me deixam penar na prisão. Vou ver esse
bandoleiro… Escuta, Birkin, manda dizer a esse patife fora da lei que terá
a minha proteção para vir e voltar, porque falarei de boa vontade a quem
me ama, ainda que ele mate meu xerife e meus cavaleiros.
Quando o castelo de Nottingham se rendeu ao rei, ele foi caçar na
floresta de Sherwood, que nunca vira, e apreciou muito as árvores
gigantescas que lá encontrou, e as belas clareiras relvosas, os morros
escarpados e as extensas planícies. Naquele dia o grupo do rei tinha
levantado um veado perto de Rufford Brakes; era animal tão veloz e tão
forte que arrastou atrás de si cavaleiros e cães algumas milhas para o
norte, na floresta de Barnisdale, onde, já ao lusco-fusco, o perderam de
vista. Naquela noite o rei ficou na casa dos Monges Negros de Gildingcote,
e no dia seguinte mandou que seus caçadores atravessassem os matos e
proclamassem, pelas diversas aldeias, castelos e cidades, que o veado que
o rei perseguira e perdera de vista na véspera era daquela hora em diante
um “veado real apregoado”, e que ninguém podia matar, ferir, ou perseguir
o dito veado, que era descrito com seus sinais distintivos, pelos quais
qualquer bom mateiro o reconheceria imediatamente.
Diariamente saía o rei para a floresta a caçar, e não ficava sempre em um
sítio; mas não conseguia saber onde se ocultava Robin Hood. Afinal
chamou o monteiro-mor de Sherwood, sir Rodolfo Fitz-Stephen, e
perguntou-lhe:
— Não sabes, sir monteiro, onde meu mensageiro poderá falar com esse
bandoleiro? Não cuidas direito de tuas florestas, visto que permites que
140 proscritos vivam nelas tranquilamente, matando meus veados à
vontade. Vai descobrir onde está esse Robin Hood, senão perdes o teu
cargo.
Ao que Rodolfo Fitz-Stephen, que era homem altivo, respondeu:
— Senhor meu rei, o caso aqui é este: não se trata de saber se eu ou
Vossa Majestade podemos encontrar Robin Hood, mas se ele consentirá
em ser encontrado. Porque não me envergonho de dizer, sir, que nestes
últimos anos tenho trabalhado para capturá-lo e ao seu bando, e tenho
auxiliado xerifes de todos os condados vizinhos dos matos, mas este
bandoleiro é uma verdadeira raposa para se esconder da gente, e tem
muitas tocas. Não obstante, farei tudo o que puder para trazê-lo à tua
presença.
E imediatamente Fitz-Stephen tratou de reunir todos os seus couteiros e
guardas, repetindo-lhes as palavras do rei, e consultou-os sobre a melhor
maneira de satisfazer o desejo de Sua Majestade. Uns davam um parecer,
outros davam outro, até que o couteiro-mor perdeu de todo a paciência e
bradou:
— Sumam-se daqui, patifes sem préstimo! Ainda que aquele bandoleiro
velhaco tivesse só metade da astúcia que tem, poderia mesmo assim se
divertir com sujeitos tão covardes como vocês. Não é de admirar que
nunca se tenham aproximado sequer uma milha dele! Fora daqui com seus
“meios”, que eu conto somente com os recursos do meu engenho!
Saíram os guardas, muito desanimados, a tratar dos seus diversos
deveres. Muitos deles traziam as cicatrizes de ferimentos recebidos em
rixas com Robin e seus homens, e compreendiam que, a não ser que seu
chefe achasse algum jeito de descobrir o bandoleiro e trazê-lo ao rei, todos
eles perderiam seus postos de couteiros; ora, este posto, ainda que de vez
em quando lhes acarretasse golpes e pancadas, dava-lhes várias
oportunidades de ganhar muito dinheiro e de oprimir gentes pobres,
extorquindo-lhes ainda dinheiro e gêneros.
Dali a dois dias, apareceu Fitz-Stephen no castelo de Drakenhole, onde
se alojava o rei, pedindo-lhe uma audiência. Dobrou o joelho diante do rei,
que lhe ordenou que falasse.
— Sir, vim a saber que desde que estás nesta região do norte, o
bandoleiro Robin Hood tem caçado nas estradas próximas de Ollerton,
atacando viajantes ricos e tomando-lhes o que levam consigo. Agora,
deixa-me dar-te conselho sobre a maneira de te aproximares daquele
biltre. Leva contigo cinco ou seis de teus lordes — os que não são muito
levianos, nem de temperamento impulsivo, senão trairiam o teu incógnito
antes que falasses com o proscrito — e pede emprestados ao abade de
Maddersey, do outro lado do rio, hábitos de monge. Eu te guiarei até a
estrada onde Robin e seus camaradas caçam, e aposto minha cabeça que
hás de ver o patife antes que chegues a Nottingham.
— Por minha fé! — disse o rei, alegremente. — Gosto do teu conselho,
monteiro. Vai pedir ao abade roupas de monge para mim e para ti e meus
cinco lordes, e iremos contigo.
Posto que já fosse tarde, Ricardo queria partir imediatamente, e assim
que lhe trouxeram as roupas enfiou o grande hábito negro por cima do seu
rico sobretudo, em que rutilavam os leopardos de Anjou e a flor-de-lis de
França; depois enfiou na cabeça o capuz e um chapéu de abas largas, como
usavam os eclesiásticos em viagem. Estava muito entusiasmado com a
antecipação daquela aventura tão estranha, e caçoava e ria com os cinco
cavaleiros que escolhera para acompanhá-lo. Eram Hamelin, conde de
Warenne, Ranulfo, conde de Chester, Rogério Bigot, William, conde de
Ferrers, e sir Osberto de Scofton.
Dentro de uma hora achavam-se a caminho, e apresentava o grupo a
aparência de cinco monges ricos ou oficiais superiores de alguma grande
abadia, viajando a negócios de sua casa.
Seguiam-nos dois cavalos levando a bagagem, e atrás iam mais três
animais maiores, carregados de provisões, louça de mesa e outros ricos
implementos. Encarregavam-se dos cavalos dois couteiros, disfarçados de
monges serventes.
Andaram uma hora, e afinal escureceu; Ricardo ia todo tempo a caçoar
com seus cavaleiros, e de vez em quando ainda cantava, de tão alegre.
Quando se viram compelidos, devido à escuridão, a fazer alto, lembrou-se
Rodolfo Fitz-Stephen que poderiam fazer um pequeno desvio e ir à casa
dos cônegos de Clumber, onde encontrariam certamente pousada.
Concordou com isso o rei, e depois de um curto trajeto pela floresta foram
recebidos no quarto de hóspedes dos cônegos. A não ser um mercador e
seus três serviçais, que já estavam comendo, e outro homem que pela
aparência e traje descuidado, e pela cítara ou harpa pequena que trazia,
devia ser um menestrel ou trovador, não havia mais ninguém no salão. Os
companheiros do rei não disseram a pessoa alguma quem eram, senão
teriam sido convidados para cear com os cônegos, no salão particular, mas
o rei Ricardo queria permanecer incógnito.
Trouxeram, pois, o farnel, do que tinham trazido as bestas de carga, e o
rei, seus cavaleiros e Rodolfo Fitz-Stephen comeram sobre uma das mesas
do salão, que era escassamente iluminado por três ou quatro tochas que
crepitavam, e brilhavam e fumegavam nos seus socos, presos aos pilares.
De repente o mercador falou, irritado:
— Digo-te que és um louco!
Parecia estar altercando com o trovador, que ria e tangia a cítara,
quando dava alguma resposta mordaz. E continuou:
— Um mãos-rotas como tu não conhece o valor do dinheiro, por isso
não te importas de perdê-lo.
— Quanta canseira e quanto cuidado te causa teu dinheiro, bom
mercador! — replicou o menestrel. — Tu te condenaste pela própria
boca… Aquele que tem dinheiro parece que vive sempre no temor de
perdê-lo. Escuta: Podes dormir tranquilamente à noite? Não estás sempre
com medo que algum salteador te ataque e te corte a garganta por causa da
riqueza? Não! Aquele que tem dinheiro carrega consigo um inimigo
encarniçado, que o tortura e atormenta continuamente. Quanto a mim…
mas eu não tenho dinheiro, e por isso não tenho cuidados.
Tangeu a cítara e rompeu alegremente a entoar um canto jovial.
Dali a um momento voltou a falar, enquanto o outro o olhava, irado:
— Escuta, mercador, eu nunca tive mais de duas libras ao mesmo
tempo, e tinha tanto receio de que algum louco miserável dissesse que eu
as roubara, ou que tentasse tirá-las de mim, que me apressei a gastá-las; e,
quando a última se foi, senti-me de novo feliz. Tenha eu um canto
abrigado do vento para passar a noite, um bocado de carne e de pão, um
gole de vinho à hora de comer, minha cítara e a estrada aberta diante de
mim — e tu, sir mercador, podes ficar com teus livros de contas, teus
fardos de ricas mercadorias e tuas aborrecidas lamentações, porque um
audacioso bandoleiro te tirou algumas miseráveis libras!
— Aquele bandido! — gritou o mercador. — Mas hão de lhe arrancar as
orelhas, hão de lhe queimar os olhos! Se eu tivesse dito exatamente
quanto levava, não me veria agora despojado de todos os vinténs que
ganhara na feira de Nottingham!
— Ah! — exclamou o menestrel, rindo alegremente. — É aí que está o
busílis, não? O bandoleiro armou-te a velha cilada, e tu caíste — tua alma
miserável não podia dizer a verdade; por isso, quando ele verificou que
tinhas mais dinheiro do que confessaste, tirou-te tudo! Ah! Ah! Ah! Sir
mercador, se amasses menos um pouco teu dinheiro, terias agora ainda
algum no bolso.
— Que dizes? — perguntou o rei do seu lugar. — Quem foi que te
roubou?
Ora, os monges não eram bem-vistos entre os mercadores por causa dos
altos direitos e impostos que deles cobravam, para deixá-los vender
gêneros nos mercados, que pertenciam aos padres. Foi, pois, em tom de
zombaria que o mercador respondeu:
— Quem me roubou, senhor padre? Mas quem mais havia de ser, senão
aquele filho de Satanás, aquele patife, o vagabundo Robin Hood? E se
viajares por aquela estrada amanhã, senhor padre, espero que ele faça
contigo o mesmo que fez a mim.
— Oh! Homem! — disse o menestrel, rindo. — Estás tão furioso que
até pareces um urso, com as orelhas mordidas de cachorro! Fala com mais
reverência com a Igreja e seus servidores. Lembra-te, velho rabugento, que
foi um destes que te batizou — se é que algum dia foste batizado, e não és
um cão descrido de maometano — e de que é somente com o seu auxílio
que podes morrer e ser enterrado — se não acabares atirado numa
estrada, como já tenho visto outros mais ricos e com melhor fama do que
tu!
O mercador olhou indignado para o menestrel, soltou alguns grunhidos
e voltou-se para outro lado, envolvendo-se na capa, como se quisesse
esquecer no sono a perda que sofrera.
— Não te agastes com as palavras dele, lorde abade — disse o trovador
—; não é o homem quem fala, mas o mercador despojado de seus lucros.
Olá! Aí vem outro, tão alegre como este mercador é rabugento.
Era outro viajante que batera à porta; aberta esta, entrou um casal de
gente pobre, um casal de velhos; foram se aproximando, andando por
sobre a palha e junco espalhados no chão. Vinham esfarrapados, trazendo
cada um uma pequena trouxa, que continha, sem dúvida, tudo quanto
possuíam.
— Deus vos guarde a todos, cavalheiros — disse o velho.
E era todo sorrisos, enquanto tirava o chapéu rasgado, primeiro para os
monges vestidos de preto, depois para o menestrel; este lhe retribuiu o
cumprimento, curvando-se cerimoniosamente e varrendo o chão com a
pluma esfarrapada do chapéu. Depois disse:
— Eu te saúdo, velho coração contente! Se não soubesse que a taberna
mais próxima fica a 12 compridas milhas daqui, eu te acusaria de trazer no
corpo o bendito licor das rubras uvas. Que há de novo, tiozinho?
— Senhor — disse o velho jovialmente, pondo o saco debaixo de um
banco. — Acabo de topar com a mais bela aventura e com o cavaleiro mais
nobre que poderia imaginar. Nunca ouvi falar sequer de semelhante coisa!
Foi a umas quatro milhas curtas de Ollerton, e… mas que medo eu tive
dos matos! As árvores eram tão cerradas, que a cada momento me parecia
que ia saltar daquela escuridão algum ladrão temeroso, que nos atacaria,
cortando-nos a garganta, por amor dos nossos miseráveis vinténs.
— Porque nós somos gente pobre, senhor — interrompeu a velha, cujo
rosto era belo, apesar da vida de trabalho que atestavam suas mãos calosas
—, somos pobres e não estamos habituados a viajar. Nós vamos tirar
nosso pobre filho da prisão de Tickhill.
— E por que está preso teu filho, senhora? — perguntou lá do meio dos
monges uma voz bondosa, a voz do rei.
A velha ficou quase atordoada, vendo-se assim interpelada por uma
pessoa que falava com um ar de nobreza — porque era apenas uma pobre
mulher de Nottingham. Fez uma mesura e continuou:
— Oh! Senhor padre, ele estava cansado do trabalho tão duro de mestre
Pedro Greatrex, o armeiro, e saiu para ver se melhorava, por mais que eu
lhe pedisse que ficasse conosco. E muitos meses depois soubemos que
tinha sido preso por andar vagando por aí; e esteve tanto tempo
acorrentado na prisão de Tickhill que perdeu um pé. E agora nós vamos
buscá-lo e levá-lo outra vez para casa.
— Mas, boa criatura — disse o rei —, eles não vão tirar teu filho da
prisão para entregá-lo a ti.
— Ah! Mas somos seus pais, senhor padre — disse a velha, com os olhos
cheios de lágrimas —, e estamos certos de que o nosso Dickon não fez
nada de mal. Sim, com certeza nos vão restituir o nosso filho!
— Ah! Menina — disse o marido —, enxuga tuas lágrimas e deixa isso
comigo. Pois o próprio Robin Hood não nos disse que ia providenciar para
que quando chegarmos lá nos entreguem o nosso Dickon?
— E foi Robin o nobre cavaleiro que encontraste hoje, bom velho? —
indagou o rei.
— Sim, senhor padre, com tua licença, era ele. Porque ele mandou um
de seus homens ter conosco — é que estavam nos espiando por entre a
folhagem, quando íamos pela medonha estrada — e quando eu pensava
que era algum ladrão que vinha despojar-nos, imagine! era um mensageiro
de Robin, porque ele queria falar conosco.
— Eu tinha vontade era de fugir, senhores — disse a velha —, tanto
medo tinha desse Robin Hood, porque ele é um grande bandido, segundo
ouço dizer. Mas meu velho disse que…
— Pedi-lhe que não tivesse medo, senhor — continuou o velho,
impaciente com as interrupções da mulher —, e disse-lhe que Robin era
um homem muito bom, conforme me disseram, para roubar assim de
gente pobre, e provavelmente quereria apenas saber se viria atrás de nós
algum rico mercador ou padre — com perdão dos senhores. Mas ele não
nos perguntou nada disso.
E, já agora muito excitado, o rosto corado, os olhos luzindo, falava com
muitos gestos:
— Não, senhores! Tudo o que perguntou era a respeito de nós mesmos,
quem éramos, de onde vínhamos, se andávamos viajando, e por quê.
Mandou então que nos trouxessem comida e vinho — obsequiou-nos
como se fôssemos um lorde e uma lady, servindo-nos por suas próprias
mãos. Senhores, o que estou lhes dizendo é a pura verdade, e o céu me é
testemunha disso. Depois ainda meteu carne e pão na minha trouxa, e uma
garrafa de vinho, e tornou a nos guiar para a estrada. E deu-me ainda isto.
E o velho ergueu na mão uma moeda que luzia fracamente à luz da
tocha. Era uma moedinha de prata. E continuou a narração:
— E suas últimas palavras foram estas: “Velho camarada, vou
providenciar para que teu filho te seja entregue, quando chegares a
Tickhill. E se algum patife te detiver na estrada, e quiser maltratar-te ou
roubar, dize-lhe que Robin te deu passagem livre pela floresta e ordena-lhe
que te deixe prosseguir, senão terá a mesma sorte de Ricardo Illbeast.”
O mercador, que tudo ouvira, gritou com voz estridente:
— Já se viu um patife mais perverso do que este Robin? De mim tirou
tudo o que trazia, e a este vilão velho, que nem conhece o valor de um
vintém, dá um pêni de prata — provavelmente um dos que me roubou! O
bandido!
— Oh! Cala-te, velho tratante! — gritou energicamente o trovador. —
Digo-te que, quando soar a grande trombeta, Robin passará adiante de ti
para o lado de São Pedro — ou senão eu não sei o que seja um homem
bom, um homem de nobres ações. Vou fazer um poema da história que
acabas de contar, velho, porque na verdade é uma ação digna do louvor de
um poeta, e da fama que lhe pode dar um canto de poeta!
Sentaram-se então a comer do seu farnel o velho e a mulher; o
menestrel ficou silencioso e absorto, fechando a meio os olhos e
murmurando palavras entrecortadas lá consigo mesmo: começara a
compor o seu poema, e o mercador e seus homens tornaram a se enrolar
nos capotes, acomodando-se para dormir nos leitos de rodas dispostos
pelo salão.
Entretanto o rei chamara Hamelin, e perguntara-lhe o que queria dizer
Robin com aquelas palavras “a sorte de Ricardo Illbeast”. Contaram-lhe
então o conde e Rodolfo Fitz-Stephen tudo quanto se passara em York, a
fuga do chefe do motim que massacrara os judeus, a captura de Ricardo
Illbeast pelo bandoleiro, que o executara pelos seus grandes crimes, na
presença do próprio sir Lourenço de Raby, chefe dos inspetores da justiça
do rei. Quando acabaram de falar, o rei ficou silencioso por algum tempo,
mergulhado em profunda meditação. Afinal disse:
— Parece-me que este Robin Hood não é um homem vulgar. Quase
chego a crer que ele faz justiça a despeito das leis, e que não agiram bem,
se de fato o forçaram a fugir para os bosques e viver à margem da lei. Ele
rouba dos ricos e dos orgulhosos, que por sua vez tinham roubado para
saciar sua avidez e sua arrogância; mas dá aos pobres e os conforta, coisas
que, ao que parece, ninguém deseja fazer. Verei com prazer esse homem, e,
com a graça de Deus, farei dele um amigo.
O rei ordenou então que preparassem camas, depois retirou-se para
descansar.
No outro dia, ainda muito cedo, não tinha o bando do rei andado ainda
mais de cinco milhas pela estrada solitária de Ollerton, quando de repente
saiu da floresta um homem de elevada estatura, vestido com uma velha
túnica verde e calções largos da mesma cor. Empunhava um enorme arco,
mais alto ainda que ele, e pendia-lhe do flanco uma boa espada; à cinta
trazia ainda uma adaga de aço espanhol. Do seu chapéu de veludo pendia
uma comprida pena de faisão.
Era de porte varonil e olhar penetrante; tinha o rosto e o pescoço
bronzeados pelo sol do verão e o cabelo castanho caía-lhe em cachos sobre
os ombros. Ergueu os olhos vivíssimos para o cavaleiro que ia à frente e
disse, levantando a enorme mão morena:
— Espera, senhor abade. Com licença… mas tens de ficar um momento
comigo.
Levou dois dedos à boca e deu um agudo assobio. Quase imediatamente,
de cada lado da estrada, apareceram uns vinte besteiros, saídos da sombra
das árvores. Vestiam túnica e calções verdes, já gastos e rasgados em
vários pontos, mas eram homens de músculos fortes, de olhar altivo, e
cada um trazia também um arco.
— Somos burgueses desta floresta, senhor abade — disse Robin —,
porque era o próprio chefe o primeiro homem que aparecera — e vivemos
dos veados do rei que por aqui andam, e do que os ricos — lordes,
cavaleiros e padres — nos dão de sua riqueza. Dá-nos, pois, um pouco do
dinheiro que trazes, antes que vás adiante, senhor abade.
— Bom burguês — disse o rei —, não tenho comigo mais de quarenta
libras, porque fiquei com o nosso rei em Blythe e gastei muito lá com os
fidalgos, mas, ainda assim, dar-te-ei com prazer o que tenho.
Ordenou que um dos que figuravam de padres, mais atrás, trouxesse a
sua bolsa, que entregou logo a Robin. Examinando-a, declarou o
bandoleiro:
— Senhor abade, falaste como um homem honesto e nobre. Por isso não
vou procurar teus alforjes, para verificar se disseste a verdade. Aqui estão
vinte libras que te devolvo, pois não desejo que continues tua viagem sem
dinheiro. As outras vinte são o pedágio para que viajes a salvo. Boa viagem,
senhor abade!
Afastou-se o bandoleiro para deixar passar os cavalos e tirou o chapéu,
em uma saudação cheia de dignidade. Mas o abade meteu a mão no peito e
tirou um pedaço de pergaminho, que desdobrou; e a pele esticada estalava.
Nela estavam escritas algumas palavras, e pendia da parte inferior uma
grande bola de lacre vermelho, com um selo gravado.
— Obrigado, bom burguês — disse o rei —, mas trago comigo os
cumprimentos do nosso bom rei Ricardo. Manda-te ele seu selo e uma
ordem: que vás visitá-lo em Nottingham, daqui a três dias — e aqui está
um salvo-conduto para poderes ir e vir.
Robin olhou intensamente para o rosto do abade, meio oculto na sombra
do capuz, quando se aproximou para pegar no pergaminho. Dobrou então
o joelho, em sinal de respeito pela carta do rei, e disse:
— Senhor abade, a nenhum homem, em todo o mundo, amo tanto como
ao meu nobre rei. Sua carta é muito bem-vinda, e visto que me trazes tão
boas notícias, senhor abade, fica para jantar conosco, à nossa moda da
floresta.
— Obrigado; aceito com prazer.
Imediatamente foram o rei e seus cavaleiros acompanhados até um sítio
mais adentro da floresta, onde, à sombra das árvores, os bandoleiros
faziam suas assembleias e onde também era preparado o jantar. Robin
ergueu a trompa e dela tirou um som esquisito. Mal se haviam extinguido
as últimas notas e, de todos os pontos da floresta ao redor da clareira onde
se achavam, apareceram homens de verde, de arco na mão e espada à
cinta. E todos eles tinham aquela aparência de vivacidade e valentia dos
homens habituados ao ar livre e a uma vida de liberdade; e todos eles, ao
se acercarem de Robin, tiravam o chapéu diante do seu chefe.
— Pela alma de meu pai — murmurou Ricardo ao ouvido do conde de
Warenne —, é uma vista soberba esta, mas triste, ao mesmo tempo. Estes
rapazes são belos homens e obedecem mais às ordens deste bandoleiro do
que meus cavaleiros às minhas.
Tanto o rei como seus cavaleiros fizeram honra ao bom jantar que lhes
foi servido, e, terminado este, disse Robin:
— E agora, senhor abade, já viste qual é a maneira de vida que levamos
aqui; e quando estiveres de volta podes dizer ao rei o que viste.
Depois foram instalados alvos, e um grupo de bandoleiros escolhidos
atirou; e tão pequeno era o alvo, e tão distante ficava, que o rei se
maravilhava de que algum deles pudesse acertar. Mais ainda aumentou seu
assombro quando Robin ordenou que fosse assentada uma vara, de cujo
topo pendia uma guirlanda de rosas.
— Aquele que não fizer passar a seta por dentro da guirlanda —
declarou ele — perderá seu arco e setas, e terá de levar uma bofetada do
que for proclamado o melhor besteiro.
— É um tiro maravilhoso — disse Ricardo, sentado junto de seus
cavaleiros. — Oh! Se eu pudesse reunir quinhentos arqueiros tão bons
como estes, para atravessarem o mar comigo! Eu transformaria a cota de
malha do rei de França numa peneira e obrigá-lo-ia a se curvar diante de
mim!
Duas vezes Robin atirou naquele alvo, e em ambas fendeu a vareta. Mas
outros falharam, e muitos foram os que lhe suportaram as bofetadas. Até
Scarlet e João Pequeno tiveram de lhe sentir o peso do braço, mas Gilberto
da Mão Branca era já então quase tão bom no arco como o próprio Robin.
Então este atirou pela terceira vez, mas foi infeliz, porque sua seta escapou
de alcançar a grinalda por três dedos. Os arqueiros riram a bom rir, e
gritaram:
— Um erro! Um erro!
— Eu o confesso — declarou Robin, rindo com eles.
Nesse momento avistou por entre as árvores do outro lado da clareira
um grupo de gente a cavalo que se dirigia para lá. Eram a Bela Marian, sua
mulher, vestida de verde, trazendo também seu arco e flechas, e sir
Ricardo de Lee, Alan de Dale e dona Alice, sua mulher.
Voltando-se para o abade, disse Robin:
— Entrego-te meu arco, senhor abade, porque és meu mestre. Dá-me o
maior murro que puderes.
— Isso não fica bem à minha ordem — disse o abade, puxando o capuz
para furtar o rosto ao agudo olhar de Robin e aos olhos do grupo que se
vinha aproximando.
— Bate de rijo, senhor abade — instou Robin. — Dou-te plena
autorização.
Sorrindo, o rei arregaçou a manga e deu um murro tão forte no peito de
Robin, que o bandoleiro recuou alguns passos e quase caiu ao chão.
Conseguiu, contudo, ficar de pé e, dirigindo-se de novo ao rei, cujo capuz
caíra com a violência do gesto, disse:
— Pela Santa Virgem! Mas tens tutano nesse braço, senhor abade — se
é que és abade ou monge — e és na verdade um homem vigoroso!
Foi justamente nesse instante que sir Ricardo de Lee saltou do cavalo, e,
tirando o chapéu, correu para a frente, gritando:
— Mas é o rei! Ajoelha-te, Robin! É o rei!
E o cavaleiro ajoelhou-se diante do rei, que tirou então inteiramente o
capuz, descobrindo a cabeça castanha e revelando o rosto de olhos azuis,
em que ardia uma chama altiva, sim, mas alegre, o belo rosto de Ricardo
Coração de Leão. Arrancou então as roupagens negras que trazia, e
apareceu o rico sobretudo de seda ornado com os leopardos de Anjou e a
flor-de-lis da França.
Robin e seus bandoleiros e Alan de Dale ajoelharam-se, e a Bela Marian e
dona Alice, ainda montadas, cumprimentaram humildemente.
— Pela alma de meu pai! — disse Ricardo, rindo alegremente . — Mas é
a mais bela das aventuras! Por que te ajoelhas, Robin? Não és o rei da
floresta?
— Meu senhor, rei da Inglaterra, amo-te e suplico a tua graça para mim e
para meus homens, por todos os atos que temos praticado contra as tuas
leis. Por tua bondade e por tua misericórdia, perdoa-nos!
— Levanta-te, Robin, porque, pela Santa Trindade, nunca encontrei na
floresta um homem tão chegado ao meu coração como tu!
E, dizendo estas palavras, o rei tomou a mão de Robin, fazendo-o
levantar-se e ficar de pé.
— Mas — continuou o rei — deves abandonar esta vida — pela Santa
Virgem! — deves ser meu vassalo e viver segundo a lei.
— Eu o farei de boa vontade, senhor meu rei, pois antes quero obedecer
à tua lei e fazer todo o bem que puder abertamente do que viver proscrito
e à margem dela.
— Assim seja — replicou o rei. — Já me contaram tudo quanto tens
feito. Casaste com uma de minhas pupilas ricas, contra todo o meu direito
e justiça! É aquela a bela dama que abandonou riqueza, honras e terras,
por amor a ti?
A Bela Marian ajoelhou-se diante do rei, que lhe deu a mão a beijar,
depois do que ela se levantou.
— Vem — disse Ricardo —, tu abriste mão de muita coisa para casar
com o teu bom arqueiro, linda dama. Mas só posso concordar contigo,
declarando que escolheste um homem valente e altivo. És minha pupila, e
dou-te agora com grande prazer o que já tinhas tomado por ti mesma.
Dizendo isso, o rei uniu as mãos de Robin e Marian, que se sentiram
muito felizes, recebendo da boca do próprio rei o perdão da falta que
tinham cometido, agindo deliberadamente contra a sua lei.
— Mas — continuou o rei sorrindo — tens praticado tantos feitos
ousados, Robin, que tenho de te condenar a algum castigo. Vai agora viver
uma vida tranquila, depois de todos estes anos de brigas e fugas. Leva tua
bela senhora e vai morar com ela nas terras de Malaset, que lhe
pertencem, vivendo em paz com meus veados e todos os súditos teus
camaradas. Apoia as leis que meus sábios conselheiros organizam para a
paz e a prosperidade deste reino. Assim fazendo, ganharás meu perdão.
— Senhor meu rei — disse Robin —, profundamente comovido com
tanta generosidade, por esta grande mercê e por todos os teus favores,
serei sempre teu fiel e leal servidor.
— Providencia, Hamelin, para que Robin, por ter casado com dona
Marian, seja investido na posse de todas as terras e direitos que a ela
pertencem.
— Assim o farei, sir — respondeu o forte conde Hamelin — e com com
muito interesse, pois já antevejo o bom ajutório de Robin na cobrança de
tuas taxas com a devida prontidão, nos feudos e burgos de Lancashire.
O rei riu e voltou-se para Robin:
— Agradeço-te o teu auxílio na coleta do meu resgate.
Robin apresentou sir Ricardo de Lee ao rei, que ouviu seu pedido e
declarou que se alegrava de lhe restituir suas terras, perdoando-lhe o
agravo que fizera às leis, prestando auxílio a Robin.
Finalmente Alan de Dale e dona Alice vieram ajoelhar-se diante do seu
rei, a quem narraram como tinham incorrido, do mesmo modo que sir
Walter de Beauforest, pai de Alice, na ira de sir Isenbart de Belame,
vivendo desde então sempre receosos de um repentino ataque daquele
cavaleiro aos seus feudos e terras. O rei indagou minuciosamente dos atos
dos senhores de Wrangby, e seu rosto se ensombrou, ao ouvir a enorme
enumeração de seus atos de opressão e crueldade.
Afinal disse, muito triste:
— São uma raça malvada! Mas eu e os outros filhos desobedientes de
meu querido pai somos os culpados, porque mergulhamos o reino em
guerras e confusão. E meu irmão João fez o mesmo, enquanto eu combato
pelo Santo Sepulcro e aqueles lordes perversos prosperam na companhia
dele. Hamelin, falarei mais tarde com aqueles senhores do Castelo da
Malvadez! Deixem-me somente regular as contas com aquele traidor,
Filipe de França, e expulsá-lo de minhas terras da Normandia e da
ç
Aquitânia, e voltarei para varrer aqueles castelos perversos da face da terra
e destruir os ninhos de víboras e serpentes que se abrigam por detrás de
suas fortes muralhas!
Dali a dois dias o mensageiro do rei entregava um pergaminho ao guarda
do castelo de Wrangby, e não ficava ali para jantar nem para dormir —
sinal do desagrado do rei. Quando Isenbart de Belame leu o que estava
escrito no pergaminho, fez uma horrenda careta de desprezo e fúria.
Depois, disse, motejando:
— Ora! O rei se engraça assim dos bandoleiros, porque quer bons
arqueiros para as suas guerras na Normandia. E ele me comunica que
qualquer dano causado a sir Walter de Beauforest, Alan de Tranmire ou
dona Alice, ou às terras, aos feudos, vilões ou outros bens de qualquer
deles é crime contra o rei e será punido como ato de traição.
Atirou o pergaminho ao chão, ao passo que em seus olhos luzia um
brilho feroz. E continuava a resmungar:
— Devo esperar a minha vez com paciência. Quem sabe? O rei vai jogar
as cristas com Filipe de França. Pode ser morto qualquer dia, e então,
quando o conde João subir ao trono, terei licença de fazer o que quiser
daquele insolente bandoleiro e de todos os seus amigos. Esperarei a minha
vez…
Conforme lhe determinara o rei, Robin foi com a Bela Marian para as
terras de Malaset, recebendo-as das mãos de Scrivel de Catsty, que as
detinha como curador, e que entregou tudo — castelo, feudo e as belas e
vastas terras — de muito má vontade. Lá ficou Robin vivendo em paz e no
maior conforto, administrando as propriedades de sua mulher como um
bom lavrador, defendendo as terras de usurpação por parte dos lordes
vizinhos, e atraindo a simpatia de todos os seus servos e trabalhadores
livres por sua bondade e franqueza.
Foram com ele Hob do Morro e Ket, o anão, e suas duas irmãs. Sua mãe
havia morrido na toca onde moravam, no morrinho verde, pouco tempo
antes, e eles não quiseram ficar lá. João Pequeno também acompanhou
Robin, assim como Gilberto da Mão Branca, que casou com Sibbie, uma
das irmãs fadas; ficaram morando em um chalé que Robin lhes deu, e a
outra irmã, Fenella, casou com Wat Graham, de Car Peel, um bravo
guerreiro da fronteira, e diziam que os filhos do casal possuíam dons
encantados — segunda vista, invisibilidade e força sobrenatural.
g ç
Todos os outros bandoleiros se renderam ao oferecimento do rei
Ricardo, que lhes assegurou grandes salários e ricos despojos de guerra, e
foram com ele à Normandia, para combater o rei francês e os “ventoinhas”
rebeldes do Poitou. Muitos lá deixaram os ossos; voltaram uns vinte ou
trinta, depois de morto o rei Ricardo, alguns trazendo grande fruto da
pilhagem, outros tão pobres como dantes, e todos se iam aos poucos
reunindo em Malaset, onde o “Escudeiro Robin”, como o chamavam, os ia
instalando em suas terras.
Entre os que voltaram da França, vieram Will o Besteiro, Scarlet e Much,
o filho do moleiro. Artur de Bland foi morto na tomada do castelo de
Chaluz, onde o rei também encontrou a morte; e Scadlock pereceu no
mar, durante uma tempestade, próximo de Rye. Com os velhos
bandoleiros remanescentes, formou Robin um belo corpo de combatentes
tão destemidos como aqueles que marcharam para o sul sob as bandeiras
dos barões quando, em 1215, resolveram afinal combater com o seu rei
para se libertar da tirania e da opressão.
Já 16 anos tinham passado sobre a cabeça de Robin e de sua bela esposa
Marian, e apesar da perturbação e da confusão que agitavam o espírito dos
homens, introduzindo a desordem no reino quando o rei João desafiou o
papa, os anos corriam felizes em Malaset.
Mas no castelo de Wrangby sir Isenbart de Belame ainda meditava na
vingança que pretendia fazer contra Robin Hood, e esperava a sua hora
com paciência. E muitas vezes lá foi ter com ele sir Guy de Gisborne, e
também sir Balduino, o Matador, sir Rogério de Doncaster e sir Scrivel de
Catsty — e todos se reuniam em conselho secreto, maquinando a melhor
maneira de apanhar e matar Robin Hood, quando chegasse a hora.
x
Incêndio do Castelo da Malvadez
v
ERA UMA fria manhã de inverno, no ano de 1215. Um grupo de homens
atravessava os brejos a leste das terras incultas do Peak. À frente deles
marchava Robin Hood, vestindo cota de malha e tendo à cabeça o elmo,
que luzia ao sol. Seguiam-no sessenta homens, camponeses bronzeados e
de rosto honesto, levando cada um o seu arco e carcás, e a espada ao lado.
Uns vinte eram seus antigos companheiros de proscrição, e entre eles, e
acima deles, aparecia João Pequeno, cuja cabeça e ombros sobressaíam
acima dos outros. Seus olhos escuros e penetrantes investigavam
acuradamente os vastos brejais que se estendiam de ambos os lados,
avermelhados. Imediatamente atrás de Robin ia Ket, o Gnomo, um
combatente robusto na sua pequenez, cuja astúcia transparecia em cada
olhar, em cada gesto. Não muito longe vinham Scarlet, Will Stuteley e
Much, o filho do moleiro.
Robin estava pensativo, triste mesmo. Fora com os barões quando estes
tinham arrancado a carta de liberdade das mãos tirânicas de João; e ficara
com eles no sul, julgando ganha a luta pela liberdade. E tinham sabido um
dia, subitamente, que estrangeiros mercenários estavam desembarcando
para auxiliar o rei contra os seus barões rebeldes. As hordas estrangeiras,
sedentas de sangue e saque, eram tão fortes, que os barões, quase
desanimados, se haviam retirado. Muitos deles foram defender seus
castelos e suas terras, quando souberam que os mercenários do rei
assolavam o norte, pilhando, incendiando, matando; e Robin Hood fizera o
mesmo, receando que sucedesse algum mal à sua gentil esposa, no pacífico
vale de Malaset, nos brejos de Lancaster.
Ia considerando agora, se perguntando se não chegaria muito tarde. A
cada passo, no caminho para o norte, iam vendo as marcas de rapinagem e
massacre por onde o rei tinha passado com suas hordas estrangeiras. Cada
casa, cada aldeia, fora destruída pelo fogo; viam-se cadáveres hirtos na
neve, outros atirados na lareira, no salão que agasalhara as risadas de
alegria em vida daqueles que agora jaziam mortos. No horizonte sombrio
erguia-se a fumaça, assinalando onde ainda continuavam os incêndios e
morticínios, isto é, onde se achava o exército brutal do rei impudente. Um
castelo por onde passaram era uma ruína fumegante, e no salão enegrecido
e cheio de fumo sufocante encontraram duas moças — uma emudecida
pelo desespero, e outra meio louca de terror e tristeza — curvadas sobre o
corpo do pai, um velho cavaleiro, a quem o rei torturara até a morte, para
lhe arrancar a confissão do lugar onde escondera o seu dinheiro.
Andando, Robin de vez em quando erguia a cabeça e olhava para diante.
Temia ver uma nuvem de fumo, denunciando algum bando do maldito
exército do rei que tivesse ido para o oeste, alcançando Malaset. Mas
contra as nuvens cor de violeta do céu nublado, onde o sol já se punha,
não havia manchas de rolos de fumaça.
Afinal a estrada começou a descer dos rochedos calcários e escalavrados
para os vales de Malaset. Quase inconscientemente, Robin pôs-se a andar
mais depressa, ansioso por chegar a um ponto onde, de uma curva da
estrada, podia avistar o castelo. Chegou finalmente à curva e deteve-se um
momento; seus homens, que se iam aproximando, tiveram tempo de ouvir
o grito espantoso que soltou. Cravando então as esporas nos flancos do
cavalo, atirou-se em desabalada corrida monte abaixo, pelos declives do
caminho.
Chegando por sua vez à curva da estrada, eles olharam para a torre baixa
do castelo. Erguia-se da fogueira uma fumaça acinzentada, de madeira
queimada. Os homens, soltando gritos de aflição, de mistura com brados
de vingança e desespero, lançaram-se em uma doida corrida para os lares
em ruínas e para os seus amados mortos.
Robin apeou-se no pátio, aparentando uma calma fria e estranha: corpos
de homens jaziam ainda aqui e ali, imóveis e contorcidos. Entrou no salão,
que estava cheio de fumaça: tinham-lhe ateado fogo, mas este não pegara.
Apenas alguns bancos quebrados fumegavam em um montão, onde os
corpos dos defensores e dos assaltantes entrelaçavam-se ainda no abraço
feroz e apertado em que se tinham mutuamente matado. Ele tomou a
escada de caracol, que levava para o quarto da senhora.
A porta estava fechada, mas ele abriu-a devagarinho. Ali, à luz do sol
poente, jazia estendida na cama uma figura de rosto muito branco e
repousado. Era Marian. Seu corpo imóvel estava vestido de negro, e ele viu
que estava morta. Tinha as longas e belas mãos cruzadas sobre o peito, e o
cabelo escuro emoldurava-lhe o peito e o rosto de beleza suave. Ao lado do
corpo estava uma seta curta.
Agitou-se subitamente o pano de arrás e uma leve figurinha de mulher
entrou, atirando-se de joelhos diante dele. Era Sibbie, mulher de Gilberto
da Mão Branca, a fada, que fora criada de quarto de Marian. Ela não
chorava, mas seus grandes olhos escuros e fiéis fitavam-no com tristeza.
— Quem foi, Sibbie? — perguntou Robin, em voz baixa e tranquila.
— Quem mais, senão aquele demônio, Isenbart de Belame? — disse ela,
numa voz irritada e contida. — Matou-a enquanto falava com ele, da sala
do porteiro. Com esta seta — a mesma seta que meu irmão Hob atirou
sobre a mesa no Castelo da Malvadez — ele tirou-lhe a vida. Ela caiu em
meus braços, sorriu-me, mas não pôde falar, e assim morreu. No segundo
dia — foi somente ontem que saíram daqui — deram assalto ao castelo,
mas o combate no pátio e no saguão foi duro e terrível; e então, temendo a
tua volta, eles pilharam toda a casa, e foram embora, levando Hob, meu
irmão, ferido, e um prisioneiro, e mais dez outros que prometeram
torturar quando chegassem no Castelo da Malvadez.
Ket, que entrara no quarto imediatamente atrás de Robin, tudo ouvira.
Sua irmã voltou-se para ele, e ambos apertaram-se as mãos em silêncio.
Depois, desprendendo as mãos, ambos ergueram o indicador direito,
fazendo com ele um gesto rápido e estranho, como se escrevessem uma
letra no ar, ou assinalassem uma divisa. Era o signo de vingança
indestrutível, pelo qual o povo do Mundo Subterrâneo jurava passar pelo
fogo e pela água, suportar penas e dores, e nunca esmorecer na sua busca,
enquanto não tivessem vingado a morte de sua senhora.
Robin inclinou-se e beijou a fronte gelada de sua mulher. Depois,
descobrindo-se, ajoelhou-se ao lado dela e orou. Não dizia palavra, mas
rogava à Virgem o seu auxílio no voto que fazia de espezinhar
completamente a vida e o poder do senhor do Castelo da Malvadez e de
todos os seus companheiros de perversidade.
Naquela noite, à luz das tochas, o corpo de Marian foi depositado no
túmulo ao lado de seu pai e seus parentes, na pequena igreja de Malaset,
enquanto no castelo, todos os vilões e homens livres que tinham fugido de
suas granjas e fazendas à aproximação de Belame e sua horda maléfica
estavam febrilmente ocupados em preparar armas e arneses. Todos eles se
achavam tomados de resolução firme, e cada um prometia a si mesmo
lutar até a morte, na tentativa de deitar abaixo o Castelo da Malvadez e seu
poder.
Ao raiar do dia, em silêncio, Robin e seu bando partiram. Não olharam
para trás uma só vez, mas subiram obstinadamente a estrada que costeava
o brejo, sempre de rosto voltado para leste. Ao mesmo tempo Robin
mandou um mensageiro a sir Herbrando de Tranmire, já agora um velho,
lembrando-lhe a promessa de ajudá-lo a destruir o castelo de Wrangby;
dizia-lhe que, se não pudesse vir em pessoa, mandasse ao menos todos os
homens de que pudesse dispor, bem armados, para se encontrarem com
ele no Carvalho da Baliza, perto do atoleiro de Wrangby. Mandou ainda
mensagens semelhantes a outros cavaleiros e homens livres, que tinham
sofrido sob a mão de Belame. Muitos tinham prometido ao “Escudeiro
Robin” auxiliá-lo quando ele precisasse, porque tinham todos reconhecido
nele um homem bravo e generoso; e todos sabiam que algum dia teriam de
reunir suas forças com as dele para acabar com as vilanias e perversidades
do Castelo da Malvadez.
De caminho para Wrangby, Robin foi chegando nos castelos e fazendas
de outros cavaleiros para pedir auxílio. Achou alguns pilhados e em ruínas,
mortos seus bravos defensores, vítimas da maligna crueldade do seu rei.
Muitos homens, entretanto, responderam prontamente ao seu apelo, de
modo que, ao escurecer, quando descia o crepúsculo sobre o brejo
nevoento, Robin chegava à vista do castelo de Wrangby à frente de
trezentos homens, que seriam suficientes, ao menos, para evitar que a
guarnição saísse.
Ele parou a um tiro de besta do grande portão e fez soar a trompa. Na
torre acima do portal apareceram dois homens completamente cobertos
de malha de aço, tendo à cabeça capacetes de bronze, que à fraca luz do
crepúsculo tinham um brilho embaciado.
— Quero falar com Isenbart de Belame! — gritou Robin.
E a resposta veio logo, e parecia o rosnar de um lobo:
— “Cabeça de lobo”! Estás falando a Isenbart de Belame, senhor de
Wrangby e de Fells! Que queres tu, e mais a tua gentalha?
— Eu te digo! Entrega-te, com os prisioneiros que trouxeste! Teus pares
julgarão tuas más ações e o assassínio de minha mulher, lady Marian. Se
não o fizeres, então tomaremos de assalto teu maldito castelo, e a tua
morte e a de teus homens cairão sobre a tua cabeça!
— Se não abandonas minhas terras pela madrugada — foi a orgulhosa
réplica —, tu e tua cauda de guaipecas surrados e vilões, eu os surrarei até
matá-los, com o chicote dos cães! Vai-te daqui, “cabeça de lobo”, patife!
Não tornarei a falar contigo!
E, com um gesto de quem não dava mais atenção a criaturas tão vis,
voltou-se e pôs-se a falar com o outro cavaleiro que estava com ele.
Tinham ambos a viseira abaixada, e à luz do crepúsculo suas figuras iam-se
apagando cada vez mais. De repente uma figurinha adiantou-se, no lusco-
fusco, foi parar em frente do cavalo de Robin, e ouviu-se o som da corda
do arco retesado. Logo em seguida, o cavaleiro que estava ao lado de
Belame levou as mãos à viseira e depois cambaleou. Mas recobrou-se
imediatamente e arrancou a flecha que ficara entre as barras do elmo. Com
um gesto de raiva, atirou-se sobre as ameias e gritou algumas palavras de
escárnio, que ninguém entendeu.
Foi Ket, o Gnomo, quem deu aquele tiro maravilhoso ao lusco-fusco, e
todos se admiraram de ter a seta alcançado o alvo com tamanha certeza.
Entretanto, como o tiro partia de um ângulo muito grande, ela apenas
rasgara a carne da fronte do cavaleiro.
Naquela noite Robin e seus homens cercaram o castelo de modo tão
cerrado, que ninguém poderia entrar nem sair sem ser visto. À sombra do
Carvalho da Baliza reuniu ele em conselho os cavaleiros que o tinham
acompanhado. E um deles, sir Fulk do Dykewall, disse:
— Escudeiro Robin, não vejo meio de deitarmos abaixo aquela torre tão
forte… Não temos máquinas de guerra, não podemos fazer brechas nas
muralhas em sítio algum, o fosso está cheio d’água, e eu não duvido que
um homem como Belame esteja bem provido para um longo cerco.
— Pois eu não vejo razão por que não possamos tomar o castelo —
acudiu o jovem escudeiro Denvil de Toomlands, audacioso e valente como
um falcão. — Podemos reunir os camponeses de Wrangby, que odeiam
seus senhores, para cortar árvores e fazer jangadas para nós. Com elas,
abrigados por nossos escudos, podemos atravessar o fosso e cortar as
correntes da ponte levadiça. Poderemos então levantar a ponte, e, uma vez
dentro, arrombar o portão.
Depois de longa discussão, pareceu este o único meio que poderiam
empregar para tomar o castelo. Isso importaria a perda de muitas vidas,
sem dúvida, mas as paredes do castelo eram muito grossas e muito altas, e
não havia outra entrada a não ser o grande portão. Ket, o Gnomo, recebeu
ordem de ir ter com os vilões de Wrangby, nas choças que ficavam a uma
milha do castelo, e pedir-lhes que viessem ajudar Robin a desenraizar
aqueles maus senhores. Depois de uma hora, ele voltou e relatou:
— Fui ao mordomo Cole e dei-lhe o recado. Ele chamou os chefes dos
seus homens e disse-lhes o que tu querias. Nos olhos deles lia-se que
estavam ansiosos por vir, mas pensaram muito tempo em silêncio. Depois
um deles disse: “Já seis vezes o Castelo da Malvadez foi sitiado por
senhores poderosos, mas nunca foi tomado. Satanás ama os seus, e é inútil
combater contra os senhores malvados. Eles sempre tiveram poder, e hão
de mantê-lo para sempre!” E ficaram calados diante de toda a minha
insistência, sacudiram a cabeça e foram embora.
Robin, entretanto, organizou grupos de seus homens para trabalharem
em turnos durante a noite, cortando árvores novas para fazer jangadas e
escadas curtas, para alcançar as correntes da ponte levadiça; e à luz dos
archotes o trabalho continuou toda a noite, enquanto Robin ia de um lugar
a outro, vigiando para que não afrouxasse a vigilância da guarda. Pouco
antes do romper do dia deitou-se, para tomar algum repouso, mas foi logo
despertado pela chegada de um bando de camponeses de Wrangby,
aqueles mesmos que na noite anterior se haviam recusado a auxiliá-lo
contra os seus senhores. Vinha à frente deles um velho grisalho, de grande
estatura e aspecto arrogante. Trazia na mão um enorme alfanje, de lâmina
larga e tão pontuda e brilhante como uma navalha. Ao vê-lo, reconheceu
Robin um dos homens que tinham atirado com ele na competição de
Nottingham, diante do xerife.
— Chefe — disse o velho, dirigindo-se a Robin —, trago-te estes
homens. Eles negaram-te auxílio ontem à noite. Eram então apenas
covardes; mas eu falei com eles, e agora estão dispostos a te ajudar a
derrubar este ninho de lordes bandidos e matadores de mulheres e
crianças e mutiladores de homens.
— Agradeço-te, Rafe do Alfanje — disse Robin, voltando-se para os
camponeses.
Um deles deu alguns passos à frente e falou pelos companheiros:
— Nós fizemos o juramento, e iremos contigo até o fim. Antes queremos
ser mortos agora do que viver mais tempo nesta miséria, dominados por
nossos malvados opressores.
Os coitados pareciam abatidos e deprimidos, como se tivessem sido
despojados de todo o valor naqueles anos e anos de crueldades às mãos de
seus senhores.
— Vocês não falharão, irmãos — disse Rafe, sacudindo sua enorme
adaga, com um brilho de altivez no olhar. — Eu jurei, quando eles me
enxotaram de minha choça na floresta de Barnisdale, e mataram minha
mulher e meu rapaz, jurei que havia de voltar e ajudaria a arrancar aqueles
demônios do seu ninho de pedra. Chegou a hora, irmãos, e Deus e a
Virgem combatem por nós!
— És então Thurstan da Cabana de Pedra? E Belame expulsou-te da tua
chácara há trinta anos? — indagou Robin.
— É como dizes; voltei no tempo marcado.
Sob as indicações deste homem, e com o ajutório eficaz de João Pequeno
e Gilberto da Mão Branca, os preparativos foram feitos depressa, e depois
de terem almoçado bem e ouvido missa, foram levar as jangadas para
dentro do fosso, defronte do portão. Foram recebidos sob uma chuva de
flechadas, mas os que levavam as jangadas eram protegidos por besteiros,
sob o comando de Scarlet e Will Stuteley, e esquadrinhavam atentamente
cada fenda da muralha. Suas setas iam procurar e alcançar tudo o que se
movia por detrás das seteiras, e quem quer que aparecesse nas ameias do
castelo era imediatamente ferido por algumas setas. As jangadas foram
logo lançadas à água e atravessaram o fosso com o auxílio de croques; as
escadas foram içadas e apoiadas às fendas ao lado da enorme ponte que
bloqueava o portão. Não tardou muito que os golpes de ferro contra ferro
anunciassem a força que empregavam os ferreiros para cortar as correntes
que seguravam o lastro da ponte. A princípio pareceu fácil a tarefa, porque
os besteiros de Robin impediam que das ameias fossem alvejados. De
repente, porém, os portões interiores se abriram e uma multidão de
besteiros começou a atirar nos ferreiros, por entre as barras da corrediça.
Um deles caiu da escada e foi parar no fundo do fosso, com uma grande
flecha enterrada no peito; o outro teve a mão traspassada.
Outros, porém, os substituíram imediatamente, e Scarlet, com Will, o
besteiro, e mais dois arqueiros, postados com eles nas escadas, retribuíam
os tiros conforme podiam, ainda que não tivessem meio sequer de entesar
o arco naquele espaço confinado. Afinal soou um grito — uma das
correntes fora cortada, e a ponte sacudiu-se e tremeu. Mais algumas
marteladas do outro lado e a ponte, com um estrondo formidável, caía
atravessada por sobre o fosso, mas tinha sido partida ao meio, em razão do
próprio peso. Robin, com um grupo escolhido de arqueiros, tratou de
atravessá-la imediatamente, pois que oferecia suficiente resistência; e,
atirando por entre as barras da grade corrediça, disparavam tamanhas
nuvens de setas, que a guarnição, mal provida de arqueiros, se viu
compelida a retirar-se, para trás dos portões, que por fim tiveram de
fechar.
Então quarenta mãos diligentes carregaram para a frente um grande
tronco de árvore, a ponte foi toda coberta de vigas, para suportar o peso
extraordinário, e o aríete foi arremessado contra as grades. E isso se
repetiu mais uma vez, e mais outra, enquanto os arqueiros, da margem,
eliminavam os que, da muralha do castelo ou das seteiras, procuravam
atirar sobre os sitiantes. Morreram, entretanto, muitos dos homens de
Robin, porque a defesa era tão cerrada como o ataque; e por toda a parte,
no castelo, ouviam-se as vozes de sir Isenbart e de seus cavaleiros, sir
Balduino, sir Scrivel, ou sir Rogério de Doncaster, incitando enraivecidos
os besteiros e fundibulários, para que não esmorecessem. Alguns arqueiros
de Robin e os do grupo do aríete, ainda que estivessem abrigados sob os
escudos, foram mortos ou inutilizados pelas setas, ou esmagados por
pedras enormes, mas ainda assim o enorme tronco de árvore martelava a
grade, sacudindo-a e fazendo-a estalar.
Por fim o portão do castelo abriu-se outra vez e uma chuva mortal de
flechas voou de dentro, espalhando a morte, de entre as barras da
corrediça. Mas Robin comandava seus arqueiros, e a guarnição teve de se
retirar pela segunda vez, enquanto outros soldados tomavam o posto junto
do aríete, cuja cabeça já estava toda rachada e esmigalhada. Mas, ainda
assim, o tronco batia e martelava contra as barras, duas das quais já
estavam curvadas e rebentadas, de sorte que não tardaria que a enorme
grade apresentasse abertura suficiente para que os homens pudessem
entrar.
Robin, sir Fulk e outro cavaleiro, sir Roberto de Staithes, estavam junto
do grupo de homens que trabalhavam com o aríete, incitando-os, tendo o
chefe sempre olhos vigilantes para o interior do portão, para ver se não se
abria de novo, a vomitar flechas.
— Mais três boas pancadas de mestre carvalho, rapazes, e estaremos lá
dentro! A porta de madeira não nos resistirá por muito tempo!
Nesse momento preciso ouviram-se os gritos insistentes de Will, o
besteiro, que estava na margem com seus homens:
— Para trás! Para trás! Eles vão lançar fogo!
— Ao fosso, ao fosso! — bradou Robin, quando ouviu os gritos de aviso.
Muitos o ouviram e saltaram imediatamente. Mas outros — coitados! —
não tiveram tempo.
Descia das ameias um dilúvio de alcatrão fervente, e em seguida
começaram a cair tições ardentes e pedras aquecidas até o rubro. Uns
cinco ou seis homens, que não tinham ouvido os gritos, foram submersos
naquela chuva mortal e perderam a vida. Os tições e pedras aquecidas
puseram fogo instantaneamente nos sarrafos, no soalho da ponte e no
aríete, pois tudo estava coberto de alcatrão, e logo se alastrou uma imensa
fogueira, roubando aos sitiantes a vitória, que momentos antes lhes
parecia quase certa.
Robin e os outros que tinham escapado nadaram para a margem,
enquanto Will e seus arqueiros sondavam as muralhas com as suas setas.
Contudo, não tinham podido impedir que despejassem o alcatrão, porque
os que carregaram o caldeirão para as ameias tinham sido protegidos por
escudos, que outros seguravam, encobrindo-os.
Robin olhou para o golfo de fogo aberto diante dele, e depois para os
rostos enfurecidos de seus homens.
— Não faz mal! — gritou ele. — Eles não podem sair, e quando o fogo
se tiver consumido, tornaremos a atravessar vigas novas. Mais alguns
golpes, e as barras darão passagem suficiente para podermos entrar.
E continuou, dirigindo-se a Will e a Scarlet:
— E vocês dois vigiem, para que nenhum daqueles patifes possa reparar
as barras quebradas.
Ao que o velho proscrito retrucou, rindo:
— Esse teria de remendar primeiro o buraco na sua carcaça! — E voltou
os olhos para as seteiras e as ameias, tendo sempre o arco de prontidão.
Era já mais de meio-dia; enquanto um grupo vigiava a ponte, outro tomava
uma ligeira refeição, e um terceiro ia com os camponeses cortar novas
vigas para a ponte.
Quando Robin dirigia o trabalho dos cortadores, viu um grande grupo de
homens a pé, que vinha pelo brejo, precedido por dois cavaleiros. Sua vista
aguçada examinou os brasões dos escudos, e, avistando três cisnes brancos
em um deles e no outro cinco árvores verdes, abanou a mão em sinal de
boas-vindas. Eram sir Walter de Beauforest e o jovem Alan de Dale, que
dali a pouco lhe apertavam a mão.
— Recebemos teu recado ontem — disse sir Walter —, e viemos o mais
depressa que pudemos. Espero que não seja muito tarde…
— Não; o castelo ainda não me caiu nas mãos, e tuas forças serão bem-
vindas.
Relatou então o que já fora feito, e os planos que tinha para tomar o
castelo — planos que ambos acharam muito bons, prometendo ajudá-lo
até onde pudessem. Alan disse-lhe que sir Herbrando enviava um grupo
para auxiliá-lo, mas, como estava tão velho e fraco, não podia vir em
pessoa, não poderia ajudar, como tanto desejava, abater seus inimigos de
Wrangby.
Enquanto isso, Ket andava pelo campo com ar melancólico. De vez em
quando ia para junto dos arqueiros, ao pé do fosso, e nenhum olhar era
mais penetrante do que o seu para descobrir um movimento em uma
seteira ou nas ameias, e nenhuma seta mais pronta a voar ao alvo. Mas
para ele as coisas arrastavam-se com muita lentidão. Suspirava por uma
vingança rápida e completa para os assassinos de sua bem-amada senhora.
Entretanto, sabia que lá dentro daquele castelo, seu querido irmão Hob
jazia ferido em algum calabouço nauseabundo, sofrendo, talvez, àquela
hora, torturas cruéis.
E Ket andava em volta do castelo, arrastando-se de esconderijo em
esconderijo, os olhos escuros pesquisando a pedra lisa das muralhas, à
procura de algum buraco ou respiradouro por onde pudesse entrar. Já
estivera lá dentro uma vez, quando atirara a mensagem sobre a mesa,
diante de sir Isenbart de Belame, quando Ranulfo de Waste fora morto.
Naquela noite seguira alguns cavaleiros que voltavam de uma excursão de
pilhagem, trazendo ricos trajes e alfaias como despojos, e vários cativos
para resgate. Estivera bem perto de suas costas, e na confusão, entrara
pelo portão e se escondera, mercê da escuridão. Então, à noite, deixara-se
cair por um esgoto que se abria a uns três metros acima do fosso, e,
protegido por uma tempestade, fugira no meio da ventania e da chuva.
Mas agora, por mais que tentasse, as enormes muralhas zombavam dele,
porque não via jeito de entrar naquela forte torre. Uma vez dentro, acharia
certamente o meio de encontrar o irmão, libertá-lo e matar os guardas e
abrir os portões para Robin e seus homens.
Estava deitado em um denso maciço de aveleiras, nos fundos do castelo,
e esquadrinhava as paredes. De vez em quando baixava os olhos,
cauteloso, para os lados do brejal, onde a floresta e os rochedos fechavam
as terras de Wrangby.
Mas… que era aquilo? Num mesmo instante, sucediam duas coisas
estranhas. Vira uma espada flamejar duas vezes, das ameias do castelo,
como se fosse um sinal, e intantaneamente viu um brilho momentâneo,
como o de uma arma que luzisse repentinamente no meio das árvores
quietas de um bosquezinho, à beira da floresta, a cerca de meia milha de
distância. Ket ficou olhando atentamente para aquele ponto, mas tudo
continuava absolutamente tranquilo ali.
“Que coisa estranha!”, pensou consigo. “Será um sinal? Se é, para quem
a pessoa do castelo estava fazendo sinal?”
Não tardou a tomar uma decisão; e, como um furão, foi-se esgueirando,
de moita em moita, a caminho do bosquezinho. Chegou à orla e olhou para
as árvores. E ali, amarrados os focinhos dos cavalos para evitar qualquer
relincho, estavam uns trinta ferozes bandidos, que reconheceu
imediatamente. Eram os homens de Thurstan, de quem ele retomara a
Bela Marian, alguns anos antes. Um homem ergueu a enorme cabeça de
cão d’água, toda branca, e olhou para o campo dos sitiantes, por cima do
brejo. Mostrou os dentes em um riso de zombaria, e Ket reconheceu o
velho Grame, o Leporino, em pessoa, que dizia:
— Dentro de uma hora estará já escuro, e então faremos aquela canalha
voar!
Ket adivinhou tudo, isto é, que aqueles ladrões, parentes de sir Isenbart,
tinham vindo a cavalo para se reunir a ele na pilhagem do rei João, atraídos
pela esperança de matanças e saques. Tinham descoberto que o castelo
ç ç
estava sitiado, deram-se a conhecer aos amigos do castelo, e agora
esperavam ali que acabasse o curto dia de inverno. Então correriam para o
bando de Robin, soltando gritos para que sir Isenbart soubesse que era
hora de sair. Surpreendidos e apanhados entre duas forças, quem sabe,
talvez Robin Hood e seus homens chegassem a ser cortados em pedaços…
Como um gato selvagem, às furtadelas, Ket começou a andar para trás e
a entranhar-se mais na floresta, atrás do lugar onde jaziam escondidos os
cavaleiros. Ia com um cuidado infinito, porque o estalido de um graveto
podia revelar sua presença aos soldados. Depois de voltar assim uns
cinquenta metros, ergueu-se e foi deslizando, como uma sombra, por
entre as árvores, para o campo de Robin.
Os homens de Thurstan ouviam, de onde estavam, os gritos dos
sitiantes, dando aviso à guarnição, e as palavras de comando de Robin e
dos cavaleiros, curtas e incisivas, quando ordenavam e vigiavam a
colocação das vigas de madeira no fosso defronte do portão. Então, dali a
poucos momentos o crepúsculo desceu com um nevoeiro sobre a terra, e a
escuridão se aprofundou rapidamente.
— Agora, rapazes — disse Grame, o Leporino, levantando-se e
segurando a rédea do seu cavalo —, montem e estejam prontos. Vão
andando até uns cem metros do lugar onde veem as fogueiras ardendo; aí
finquem as esporas e soltem o meu grito: “Leporino da Muralha!” Então, a
espada e espora, arrasem-me aqueles cães, e quando Belame ouvir nossos
gritos ele sairá, e a mortandade será uma festa… Agora, montar e correr!
Passaram em silêncio os cavaleiros sobre a grama comprida e áspera, e
depois, com um grito feroz, arrojaram-se sobre os grupos que estavam ao
redor das fogueiras. Mas, coisa estranha, os soldados que eles assim
cercavam voltaram-se como se já os esperassem; três cavaleiros saíram
contra os assaltantes, e, entre os gritos de “Leporino da Muralha!
Leporino da Muralha!”, o combate feroz começou.
Aconselhado por Ket, Robin ordenara que seus homens se retirassem
um pouco para o lado do castelo, de sorte que a guarnição ouviria
claramente quando os homens de fora atacassem; e assim se fez. Os
homens a cavalo seguiam rapidamente, e seus inimigos pareciam voar
diante deles. Os de fora apertaram mais um pouco, ainda soltando seu
grito de guerra. Ouviram de repente gritos que respondiam: “Belame!
Belame!”. Era como um bramido orgulhoso, que vinha do portão do
castelo, que se abriu completamente; foi descida a ponte, e por ela
jorraram cavaleiros e soldados. Robin tinha posto as vigas novas sobre os
barrotes queimados, de modo que a guarnição pudesse sair sem demora, e
sobre esse tabuleiro eles se lançaram em louca corrida, e com o peso os
caibros se curvaram; e os brados de “Leporino” e “Belame” se misturaram,
em doida alegria.
De repente, dominando a algazarra, ouviram-se as notas claras de uma
trompa, que chamava em algum ponto, à retaguarda. Ao mesmo tempo
soaram três notas breves e penetrantes debaixo das muralhas do castelo.
Saindo da floresta do Carvalho da Baliza, vieram a toda brida dez
cavaleiros e cem soldados — a força que sir Herbrando enviara e que
chegara ao escurecer, a tempo ainda de tomar parte no plano que Robin e
os cavaleiros, a conselho de Ket, o Gnomo, organizaram para a destruição
do inimigo.
Os homens que, ao que parece, tinham sido apanhados entre os que
gritavam “Belame” e os que bradavam “Leporino” voltavam agora, e em
número muito maior. A tropa de Belame viu a arrancada de homens lá
atrás deles, onde, ao que supunham, estava apenas a sua guarnição; e os
ladrões de Thurstan voltaram-se quando os gritos de vingança de “Marian!
Marian!” soaram altivos ao redor deles, respondidos pelos brados de
“Tranmire e São Jorge!”.
E foi então que se ouviu, na verdade, o tremendo fragor da batalha.
Apanhados entre as duas alas da gente de Robin, que agora excedia em
número a de Belame e seus amigos, os lordes de Wrangby combatiam para
salvar a vida. Não se dava nem se pedia quartel. Camponês, armado de
acha ou machadinha, combatia com soldados a pé, ou feria o cavaleiro de
cota de malha, montado; e por toda parte, Rafe do Alfanje combatia,
satisfeitíssimo, sua adaga brilhante na mão, procurando o próprio sir
Isenbart. Robin também procurou por toda parte, na escuridão, o matador
de sua mulher. Facilmente reconhecível pelo bronze do elmo, sir Isenbart
andava por toda parte, furioso como um urso, espalhando ferimentos e
morte a cada golpe, cantando, ao mesmo tempo, orgulhoso, o próprio
nome. Viu-o Robin e correu-lhe no encalço, mas o aperto da luta
mantinha-os separados. Logo atrás de Robin estava João Pequeno,
manejando uma enorme acha de dois gumes e alargando ainda o caminho
que seu chefe ia abrindo entre os inimigos. Em dado momento, Robin
gritou-lhe:
— João, por amor da Virgem Santa, deita abaixo aquele elmo de bronze!
É Belame! Pelo amor que me tens, João, não o deixes escapar!
Pouca probabilidade teria neste momento, mesmo que quisesse fugir, o
bravo e altivo tirano. Via-se agora impedido de continuar suas atrocidades,
porque Rafe do Alfanje e vinte vilões de Wrangby o cercaram, ferindo-lhe
os membros, puxando-lhe a armadura, para deitá-lo abaixo. Longos anos
de ódio e miséria ferviam agora em cada nervo, porém, mais destros no
manejo dos humildes instrumentos de trabalho do que no das armas, os
homens caíam diante da espada aguda de Belame, como hastes de trigo aos
golpes da foice. Feria aqui e ali, velozmente, sacudindo de si os assaltantes,
como um urso atira longe os cães. Rafe lutava para alcançá-lo com sua
grande adaga, investindo contra ele, mas o forte escudo de Belame recebia
todos os golpes denodadamente, e por enquanto parecia que sairia
vencedor.
Robin e João conseguiram, afinal, atravessar as filas já enfraquecidas de
inimigos, e, saltando sobre os mortos que jaziam aos montões, atiraram-se
para Belame. Mas era tarde quando o alcançaram. Com um grande golpe,
como quem tosquia, a adaga nas mãos vingadoras do velho Thurstan se
levantara sobre o ombro direito do cavaleiro, cortando-o até o osso. Mais
um momento, e o alfanje teria ceifado a cabeça de Belame, mas Robin
aparou o golpe no seu escudo, gritando:
— Não o mates! Ele pertence à forca!
Rafe baixou a adaga, bradando:
— Sim, tens razão, senhor. Ele não merece morrer aos golpes do aço
honesto… deixemos que o carrasco se ocupe com este traidor!
Belame, posto que com o braço direito paralisado, ainda se conservava
montado, e gritava:
— Mata-me, “Cabeça de lobo”! Mata-me a espada! Eu sou um cavaleiro
de brasão! Eu não me sujeito a semelhante infâmia!
E, metendo esporas no cavalo, tentou escapar-lhes. Os enormes braços
de Rafe o cercaram, arrancando-o da sela.
— Brasão!… — disse o homem altivo, com o maior desprezo. —
Pudesse eu, e hoje te desenharia na pele toda os brasões que tu e teus
sequazes retalharam no corpo dos pobres! O brasão vai fazer boa
companhia hoje a uma boa corda de cânhamo!
— Vocês dois, João e Rafe — disse Robin —, vão agora tratar do
ferimento dele; depois levem-no para o castelo, que sem dúvida já é nosso
a esta hora.
E não se afastou dali enquanto não viu o o ferimento fechado. Então,
solidamente amarrado, foi Belame carregado para o castelo — e ia
silencioso e sombrio.
Já havia cessado a batalha. Poucos dos homens de Wrangby
sobreviveram; tão fero era o seu ódio que apenas uns dez ou 12 tinham
fugido na escuridão, e entre eles um cavaleiro: sir Rogério de Doncaster,
um sujeito matreiro, que preferia conspirar a combater. Dos bandidos a
cavalo, nem um único ficou vivo, e o próprio Leporino praticara ali a sua
última e cruel façanha.
Quanto ao castelo, conforme o plano delineado por Ket, o Gnomo, fora
tomado em pouco tempo. Com o jovem escudeiro Denvil e quarenta
homens escolhidos, Ket se escondera dentro d’água, sem rumor algum, ao
pé das vigas que estavam diante do grande portão. Quando Belame e seus
homens se arrojaram fora do castelo, exultantes de satisfação, ao chamado
de Leporino, e os guardas da porta estavam debaixo da grade da ponte,
certos da vitória, e queixosos por terem sido deixados para trás, sem
participar da matança, viram erguer-se, dos seus próprios pés, por assim
dizer, homens encharcados d’água, e nem chegaram a compreender o que
significava aquela aparição repentina — porque foram mortos
imediatamente. Então, e sempre em silêncio, Ket e o escudeiro de
Toomlands, seguidos de perto pelos seus homens, tinham-se esgueirado
para dentro do castelo, aniquilando todos os que se opunham à sua
entrada. Ganharam a luta sem a perda de um só homem, e como todos os
demais — além daqueles 12 — tinham saído para o que supunham ser a
sortida da vitória, a luta fora breve.
Pouco depois, naquele mesmo salão onde sir Isenbart e os cavaleiros,
seus companheiros, se haviam tantas vezes sentado a beber, ou a torturar
algum pobre cativo, vieram sentar Robin e os cavaleiros que o tinham
auxiliado e tinham saído ilesos da batalha. Sentando-se na cadeira de
Belame, à cabeceira da mesa, com os cavaleiros sentados a um e outro
lado, Robin ordenou que trouxessem os prisioneiros. A luz das tochas, que
ardiam nos pilares do salão, se refletia nas armaduras riscadas e
arranhadas dos conquistadores; e foi com olhar duro e severo que todos
— soldados, camponeses e cavaleiros — olharam para o grupo que
entrava.
Havia apenas dois prisioneiros, sir Isenbart de Belame e sir Balduino, o
Matador, nome que lhe fora posto em razão da crueldade que mostrava e
do grande número de mortes que infligira em anos e anos de rapinagem e
depredações pelas terras de Wrangby e do Peak. Quando se abriu a porta
do salão, os homens ouviram o som distante das machadinhas batendo em
madeira: é que a forca já estava sendo erguida, diante do portão do
Castelo da Malvadez.
— Isenbart de Belame — começou Robin, em voz forte e enérgica —,
aqui, no teu castelo, no teu salão, onde tantas vezes teus infelizes cativos,
homens e mulheres, ricos e pobres, gentis-homens e plebeus, imploraram
tua misericórdia sem nada obter, a não ser gestos brutais ou injúrias
grosseiras — aqui vens, afinal, para ouvir teu julgamento. Todos aqueles
que têm alguma coisa a increpar a este homem de Belame, ou a seu
companheiro de opressões e crueldades, Balduino, apresentem-se! E,
como Deus ouve e vê tudo, diga a verdade, pela salvação de sua alma!
Foi como se a massa inteira de camponeses, burgueses e granjeiros livres
que ali estavam se adiantasse, para acusar dois cavaleiros carrancudos de
atos perversos e cruéis.
— Ele arrancou os olhos de meu pai! — gritou um.
— A colheita falhou um ano — exclamou outro — e como eu não lhe
pude pagar a minha parte anual de trigo, ele torturou meu filho até matá-
lo!
Outros e outros deram um passo à frente, e cada um deles dizia, em
rápidas palavras, a sua história de crueldades. Depois que todos tinham
falado, Ket, o Gnomo, avançou e gritou, apontando com o dedo para
Belame:
— Com a sua própria mão malvada, esse homem matou a dama mais
bondosa que havia, desde Barnisdale até a Terra dos Mouros. Ele matou-a,
quando ela falava com ele no portão do seu castelo, e riu-se, quando a viu
cair!
— Ele estava junto de Ranulfo de Waste, quando este torturou, a fogo,
nosso pai, Colman Grey! — gritou Hob do Morro, que veio coxeando, de
perna e braço ligados.
E ergueu o punho, sacudindo-o diante de Belame, cujo rosto ficou lívido,
ao ver quanto ódio ardia em cada rosto ao redor de si.
— Isso é bastante... e mais do que bastante! — disse Robin afinal. — E
que dizem, senhores cavaleiros? Estes homens são da cavalaria e usam
brasões, e por isso deviam morrer pela espada. Mas eles provaram que não
são melhores do que ladrões e faquistas de estrada, e eu os condeno à
morte vergonhosa da forca!
Um poderoso brado de assentimento ecoou pelo enorme salão:
— À forca! À forca com eles!
— Nós concordamos contigo, escudeiro Robin — disse sir Fulk do
Dykewall, quando de novo se fez silêncio. — Ambos perderam todo
direito à sua categoria. As esporas lhe serão arrancadas dos calcanhares, e
seus corpos se balançarão na forca.
E assim se fez. Entre os gritos de triunfo dos homens excitados que
estavam ao redor deles, João Pequeno arrancou as esporas dos dois
senhores de Wrangby; e então, por entre gritos de alegria enfurecida,
foram levados para fora, pela multidão que era como uma onda
encapelada. As tochas derramavam sua lúgubre luz sobre aqueles rostos
endurecidos e aqueles olhos chamejantes — porque a bondade natural,
usual neles, se transformara naquele momento em selvageria.
Terminado o ato de justiça selvagem, derramaram piche e alcatrão e
azeite por todas as salas do castelo e atiraram tochas lá dentro,
incendiando a palha já amontoada por toda parte. Então todos saíram
correndo, e foram postar-se defronte das muralhas negras, vendo já
escorrer das seteiras a fumaça escura e untuosa, que se enroscava no ar.
Línguas de fogo saltaram, brotando da torre visguenta e dos florões
retorcidos, e dali a pouco, já com a força aumentada, o fogo irrompia
através dos soalhos do grande salão e dos quartos de cima, atirando-se
como uma torrente furiosa para o céu escuro. Ruídos fragorosos se
erguiam quando os grossos barrotes se desprendiam e quando caíam os
caibros e as vigas, as ripas e esteios; as chamas e faíscas iam-se erguendo
cada vez mais alto, mais alto, até que a fogueira imensa brilhou sobre toda
a região. Pastores que cuidavam de suas ovelhas lá longe, nos montes
distantes, olhavam e olhavam, e não queriam crer nos próprios olhos;
depois faziam o sinal da cruz e murmuravam uma oração de graças,
ç g ç
porque, fosse lá como fosse, o Castelo da Malvadez de Wrangby estava
afinal ruindo, no meio das chamas. Bandos de ladrões, do mau exército do
rei, que atravessavam as alturas do Peak, ou os morros de Yorkshire, viram
a fogueira distante, e não sabiam ainda que uma das mais negras fortalezas
do seu rei endurecido e dos seus lordes perversos estava desmoronando,
roída pelas chamas, às mãos daqueles que, há tanto tempo e com tamanha
crueldade oprimidos, se haviam levantado finalmente e conquistado a
liberdade.
No dia seguinte, tudo o que restava do forte castelo que fora o signo do
mal durante duas gerações, pelo menos, era um monte fumegante de
pedras despedaçadas e enegrecidas. Uma fumaça esbranquiçada se erguia
da fornalha rubra que ardia dentro das paredes, que ainda estavam de pé;
mas as pedras estavam tão arredadas e partidas pela ação do fogo, que
jamais poderiam servir para a construção de outra habitação.
Robin saiu da sombra do Carvalho da Baliza, onde passara a noite com
seus homens e foi olhar para as ruínas fumegantes e para as duas forcas
rígidas que se erguiam defronte delas; lá estavam os corpos dos maus
cavaleiros Belame e Balduino.
Tirando seu capacete de aço, curvou a cabeça e, em silêncio, dirigiu uma
prece à Virgem, agradecendo-lhe o auxílio tão grande que lhe dera. Seus
homens o rodearam, tirando os elmos e orando como ele.
Da planície veio então uma multidão de camponeses — uns correndo,
outros andando lentamente, não querendo dar inteiro crédito ao que viam
seus olhos. Alguns foram ter com Robin, e velhos e velhas, cujos rostos,
como as mãos, estavam gastos e envelhecidos no trabalho, pegavam-lhe na
mão e beijavam-na, ou ao menos lhe roçavam com os lábios os pés ou a
fímbria da cota de malha. Uma jovem mãe ergueu o seu nenê, e com os
olhos cheios de lágrimas, disse ao filhinho que olhasse para Robin Hood,
“o homem que tinha matado os maus senhores e incendiado o seu antro”.
— Chefe — disse Rafe do Alfanje —, não vás para longe de nós, senão
outros senhores, tão maus como aqueles, agora ali dependurados, virão
tomar outra vez estas terras e construir outra prisão diabólica, para
torturar esta terra e sua pobre gente!
Então Robin, erguendo a mão direita ao falar, em sinal de juramento,
prometeu:
— Pela doce Mãe dos Céus, enquanto eu for vivo ninguém há de possuir
esta terra, a não ser para governá-la com justiça e misericórdia, como eu
mesmo havia de governá-la!
— Amém! — foi a resposta profunda que ouviu de todos os lados.
xi
A morte de Robin Hood
v
NUNCA MAIS, depois da morte de sua mulher Marian, Robin Hood saiu da
floresta. As terras de Malaset foram ter às mãos de um parente afastado do
conde FitzWalter, que as governou bem, tratando com bondade vilões e
lavradores, sem esquecer o devido respeito às tradições daquele feudo.
Muitos dos que tinham sido proscritos com Robin, e vieram depois a ser
seus rendeiros em Malaset, recusaram-se a tornar ao castelo; tendo
provado mais uma vez a vida livre e rústica da mata, preferiram ficar com
ele. E, tendo aumentado o bando aos poucos, por causa das contínuas
roubalheiras, assassínios, pilhagens e crueldades do rei tirano, não foi
difícil concordarem com a proposta de Robin, de dar cabo do exército real.
Por isso, depois que o castelo de Wrangby ficou arrasado — nivelado com
o chão, de modo que não restava pedra sobre pedra — dirigiu-se ele para o
norte, e, retirando-se para os matos e lugares assolados, deu de rijo nos
flancos dos pilhantes flamengos, brabantinos, saxões e poatevinos, que
compunham o exército do rei. E Robin e seus bravos companheiros caíram
sobre alguns grupos de saqueadores, ocupados em torturar cavaleiros ou
vilões, e em depredações espantosas. Com suas enormes flechas de guerra
derrotava-os, ou os destruía completamente, merecendo assim a gratidão
de muitos cavaleiros e damas, vilões e rendeiros livres, que dali por diante
mostraram sempre grande reverência pelo nome de Robin Hood.
Quando, afinal, o rei João morreu envenenado em Newask, e seu filho
Henrique foi coroado e reconhecido rei por todos os grandes barões e
lordes do reino, Robin tomou posse de seus antigos quartéis em Barnisdale
e em Sherwood. Ainda se achava aquela terra atormentada com opressões
e injustiças, porque o rei era apenas um menino; alguns dos lordes
perversos se recusaram a restituir os castelos que tinham tomado durante
a guerra entre João e seus barões, e, tendo vivido tanto tempo da pilhagem
que exerciam na própria vizinhança, não queriam agora deixar aquele meio
de vida — o roubo e a extorsão sobre os mais fracos. Sempre, entretanto,
que Robin era avisado, por algum vilão ofegante ou mulher lavada em
lágrimas que lhe vinha pedir auxílio, de alguma ação dessas, saía de seus
covis da floresta com seu bando escolhido e passava pela terra com tanta
subtileza, e suas setas voavam por entre os malvados com tamanha
rapidez, que raras vezes falhava: derrotava sempre os senhores patifes e
suas companhia de ladrões, além de incutir neles um medo salutar do seu
nome e de suas setas, que nunca erravam o alvo, e que podiam varar a mais
grossa cota de malha.
Por felicidade, os conselheiros do jovem rei deram as terras de Wrangby
em arrendamento a um lorde justo, parente do conde de Warenne, que
tratava seus vilões e rendeiros com bondade, de sorte que a memória dos
maus dias de opressão e crueldade, sob o tacão de sir Isenbart de Belame,
se foi diluindo aos poucos e chegou a se apagar quase por completo e
parecia até que já ninguém se lembrava desse tempo.
Mas em outras regiões do reino a opressão e a miséria ainda
campeavam. Barões insolentes mandavam grupos de homens armados
tomar conta de terras pertencentes ao rei em vários lugares e repeliam
delas os verdadeiros rendeiros, ou os matavam; vizinhos mais fracos
estavam sempre receosos de um ataque mortal, ou de ver suas terras
arrebatadas. E assim, acobertados por esta desordem, iam eles cometendo
diariamente toda sorte de extorsões e pilhagens. E o fato é que bandos de
ladrões de estrada andavam à tuna, envergando a libré de grandes lordes, e
infestavam as estradas e caminhos solitários da floresta em muitos pontos
do país — sempre prontos a cair sobre mercadores e viajantes com suas
mercadorias e bagagens, e até sobre pobres camponeses ou rendeiros
livres, que iam levar seus produtos ao mercado.
Um dia estava Robin, em companhia de João Pequeno e de Scarlet, no
limite de Sherwood com Barnisdale. Esperavam notícias de um grupo de
homens que tinha começado a infestar aquela parte do país — eram
mercenários à conta de Rogério de Doncaster, aquele mesmo cavaleiro
que, com uns dez soldados, conseguira escapar do combate diante do
Castelo da Malvadez. Robin sabia que o objetivo de Rogério era armar-lhe
emboscadas até que conseguisse matá-lo um dia, mas até então os
bandoleiros ainda não haviam tido contato com os ladrões.
Estavam sentados em uma pequena clareira, toda cercada de densas
moitas de azevinhos, mas dali podiam ver por entre a folhagem, para
ambos os lados, um grande trecho das trilhas da floresta. Nisto ouviu-se o
ronco do esquilo; Robin respondeu, porque era aquilo um sinal entre os
esculcas. Pouco depois entrava na clareira Ket, o Gnomo.
— Chefe — disse ele — , eu e Hob temos vigiado a casa de Rogério de
Doncaster, em Syke. Ele e seus homens saíram esta madrugada e foram
para as Casas de Pedra, por Barnisdale e Four Wents. Creio que estão à
espera ali, para caírem sobre o comboio do bispo, que vai hoje levar
mantimentos e fazendas para a Abadia de Wakefield, em Lincoln.
— Vamos, João! E tu também, Scarlet! Vão depressa a Stane Lea e
reúnam todos os homens que encontrarem; e vão exercitar suas forças
contra aquele cavaleiro ladrão e seus sequazes. Eu os seguirei daqui a
pouco.
Saíram os dois, obedecendo prontamente, e perderam-se depressa nos
meandros da mata. Ket ficou ali, firme, esperando instruções.
— Ket, vai ter com Will, o besteiro, e pede-lhe que traga os vinte
homens de vigia que tem consigo e os espalhe pela estrada e atalhos da
floresta, de Doncaster para cá. Se encontrares teu irmão Hob, manda-o
aqui.
E Ket, fazendo com a mão um gesto, em sinal de que compreendera,
voltou-se e sumiu-se no meio da floresta, um tanto admirado daquelas
ordens. Se, pensava lá consigo, os homens de sir Rogério estavam indo
para o norte, para Barnisdale, e Robin mandara seus homens para lhes
armar ciladas, por que queria que fosse vigiada a estrada sul, que vinha de
Doncaster? Era vivo de espírito, contudo, e pensou: era porque Robin
estava convencido de que a viagem de sir Rogério para Barnisdale era
fingida, e um outro grupo iria para o sul, para ver se apanhava e matava o
próprio Robin. Lembrou-se então de que muitas vezes a viva inteligência
de seu chefe descobria mais do que qualquer dos seus esculcas lhe podia
dizer.
Quando Ket se retirou, Robin saiu da clareira e foi até a estrada, e foi
andando pela sombra tranquila. A cerca de meia milha ao sul, encontrou
uma vereda que se desviava para um lado, por entre as árvores, e avistou
ali um homem de fronte estreita e olhar cruel, vestido de camponês,
deitando olhares furtivos para um e outro lado do atalho. Trazia na mão
um arco, e preso à cinta o carcás cheio de flechas.
— Bom dia, bom homem — disse Robin. — Aonde vais?
O camponês, tomado de surpresa pela aparição silenciosa de Robin,
olhava para todos os lados, mas não diretamente para Robin. E respondeu-
lhe:
— Bom dia, bom mateiro. Perdi-me na mata. Podes dizer-me qual é o
caminho para a Abadia da Rocha?
E, olhando-o aparentemente com indiferença, Robin respondeu:
— Sim, posso mostrar-te o caminho. Estás muito afastado dele.
— Sim, é fácil a gente se perder nesta floresta de má morte! —
resmungou o camponês.
— Quando descobriste que te havias desviado do caminho?
— Oh! Há apenas uma ou duas horas. Disseram-me que o caminho
passava pela aldeia de Scatby, mas parece que há horas ando caminhando,
sem avistar um teto sequer nestes matos bravos!
Robin riu. Poderia dizer àquele homem que ele andava assim vagando
desde o meio-dia da véspera, quando o avistara por entre a folhagem,
escondendo-se como um gato-do-mato pelos atalhos da floresta, como se
andasse a espiar alguém, sem querer que o vissem.
— Tens de andar apenas mais uma ou duas milhas — disse ele — e
encontrarás o caminho certo. Mas, a julgar pelo arco que trazes, deves ser
um bom arqueiro…
— Sim — disse o homem, com um olhar astucioso. — Sou um bom
arqueiro… e melhor, até, do que muitos ladrões fanfarrões que andam
vadiando por estes matos e matam a caça del-rei.
— Pois então vamo-nos divertir um pouco, e ver qual de nós é o melhor
besteiro.
— Concordo — disse o homem, tirando uma flecha do carcás e
cravando em Robin um olhar agudo e mau.
Robin foi até uma aveleira e cortou duas varas direitas, pelando-as na
parte superior, para que assim fossem mais facilmente vistas. Fincou uma
no chão, no lugar onde estavam, e pendurou-lhe na ponta uma grinalda
grosseira de folhas de sorveira, já avermelhadas pelo outono, e que por
isso se diferençariam bem contra a brancura da aveleira.
— Agora vamos medir cinquenta passos. Fincarei esta outra no ponto de
onde vamos atirar.
Enquanto fazia tudo isso, não tirava os olhos do outro homem, que
durante todo este tempo estivera com a flecha meio estirada no arco,
como se estivesse ansioso por atirar. E ria enquanto iam ambos andando
lado a lado, para medir a distância. Afinal o homem disse, num grunhido:
— É um tiro diabólico esse que queres experimentar; estou habituado a
atirar em alvos maiores do que aquela novidade de varinhas e coroas.
Robin não deu atenção ao que o outro dizia, mas continuou a contar até
completar cinquenta passos; e o outro, quase como se fosse a contragosto,
ia andando ao seu lado, de mau humor. Pediu-lhe Robin que atirasse
primeiro, mas o homem preferia ver primeiro o seu tiro. Robin tomou
então duas flechas do carcás e lançou uma ao alvo. A seta atravessou a
grinalda, passando mais ou menos a dois dedos da vara.
— Não gosto dessa maneira de atirar — resmungou o rústico. — É
assim que atiram os escudeiros estúpidos e os malucos da cidade.
Robin não respondeu, e o homem atirou. Como era de esperar, não
acertou na grinalda, e a flecha foi para o lado, longe dela.
— Precisas de mais prática, meu amigo — disse Robin. — Acredita-me,
vale a pena que demonstres tua habilidade em um belo alvo como este.
Não há mérito em subir de rastos e atirar na caça de cima, oculto pela
árvore… muitas vezes um tiro a distância é de mais valor. Vou
experimentar outra vez.
Dizendo isso, Robin mirou com cuidado, e desta vez a flecha deu
verdadeiramente no alvo, porque bateu na fina vareta e partiu-a em duas
partes iguais.
— Esse tiro não valeu! — gritou o outro, irritado. — Uma rajada de
vento levou tua flecha contra a vareta.
— Não, bom camarada — disse Robin tranquilamente —, não digas
asneiras. Foi um tiro perfeito, como bem sabes. Tira agora esta vara daqui
e vai enterrá-la em lugar da que eu quebrei. Vou cortar outra, que
fincaremos a trinta passos, para que pratiques mais um pouco, antes que
eu vá te mostrar o caminho.
O patife, resmungando e deitando olhares sombrios, pegou a vara que
estava onde eles tinham ficado para atirar e foi com passos vagarosos para
o alvo partido, a cinquenta passos dali. Andou uns vinte passos e voltou-se
depressa, então viu que Robin estava — aparentemente — muito ocupado
ao pé de uma moita densa de aveleiras, procurando uma vara bem reta. O
maroto ajustou rapidamente uma seta ao arco, gritando quando ela partiu
pelos ares:
— És tu o alvo que procuro, “cabeça de lobo!”
Robin caiu dentro da moita quando a seta o alcançou, e o homem,
soltando uma risada cruel, chegou mais perto, como se quisesse se
certificar de que de fato matara o bandoleiro, a quem há tanto tempo
espionava. Viu as pernas, que saíam duras e rígidas de dentro da moita, e
fez uma careta de alegria. Depois, pondo os dedos sobre os lábios, soltou
um assobio longo e estridente, e veio correndo olhar a sua vítima.
Mas, de um pulo, o morto levantou-se de repente, tendo na mão a flecha
que o assassino gorado tinha atirado. Já estava agora ajustada ao arco que
Robin tinha na outra mão. O homem estacou de repente, e dos lábios
lívidos saiu-lhe um grito.
— Assassino e ladrão! — disse Robin com um riso de desprezo. — Nem
no alvo que estás mirando há dois dias podes acertar, sequer a vinte
passos! Sim, podes correr, mas é a tua própria flecha que vai te dar a
morte!
O homem tinha-se virado, e saíra a correr vertiginosamente, andando
em zigue-zague, para baralhar a mira de Robin.
Este esticou o arco o mais possível e parou um momento; então a corda
tangeu com um som altíssimo — e a flecha partiu. O homem soltou um
gemido surdo, deu um salto de quase um metro de altura e caiu estirado
no chão, com a seta espetada nas costas.
No mesmo instante ouviu Robin o barulho de ramos quebrados ao seu
lado, e, mal tinha atirado fora o arco, da moita ao pé dele saltou uma figura
estranha. Por um momento, enquanto dava um passo atrás para poder
puxar a espada, o bandoleiro ficou assombrado, tal era o aspecto da figura
— um cavalo escuro, firmado nas patas traseiras, que se ia lançar em cima
dele. Os enormes dentes brancos de fora, como se fosse despedaçá-lo, e a
crina para trás, pronto a arremessar-se em um ataque furioso.
Mas Robin soltou uma risada. A pele do cavalo continha um homem; em
uma das mãos trazia uma espada nua; na outra, um escudo. Era sir Guy de
Gisborne, que, com o fogo do ódio a lhe brotar dos olhos, atirava-se contra
o bandoleiro.
— Ah! Guy de Gisborne, cavaleiro traidor! — gritou Robin, motejando.
— Vieste, afinal, tu mesmo em pessoa? Durante anos e anos tens
mandado teus espiões, teus embusteiros, teus assassinos secretos, para me
matar, e agora vieste em pessoa, para executar o feito… se puderes!
Nada respondeu Guy de Gisborne. Ódio — um ódio feroz luzia-lhe nos
olhos, e ele atirou-se com a fúria de um lobo sobre o seu inimigo. Robin
não tinha escudo, mas tinha consigo alguma coisa que valia quase tanto
como uma proteção: porque enquanto o outro lhe batia na lâmina da
espada, cheio de ódio, ele não perdia nem a serenidade do cérebro nem a
agudeza de vista.
Por algum tempo nada mais se ouviu senão o tinido de espada contra
espada, quando um golpe era aparado. Andavam ambos em roda, naquela
dança feroz que só acabaria com a morte de um deles, cada qual com os
olhos fixos nos olhos penetrantes do outro. De repente a espada de Robin
saltou sobre a guarda da espada do outro, e a ponta foi furar e rasgar o
couro de cavalo, cortando o ombro de sir Guy.
— Tua sorte acabou-se, Guy de Gisborne! — gritou Robin triunfante. —
Escapaste um dia com vida de tua casa em chamas nesta pele de cavalo, e
pensaste que ela te traria sorte contra a ponta da minha espada!
— Cabeça de lobo! Ladrão de estrada! — gritou Guy. — Isto foi apenas
uma esfoladura, mas a minha boa espada ainda há de te arrancar a vida!
Com uma finta rápida e violenta, Guy arremeteu com um golpe debaixo
do braço direito de Robin. A ponta da espada cortou a túnica de pano
verde de Lincoln do bandoleiro, e ele sentiu do lado como uma faísca que
o queimava. A ponta da espada de Guy ferira-o levemente, mas isso não
alterou Robin nem por um instante. Rápido como o relâmpago, o
bandoleiro deu um bote para a frente, e, antes que Guy pudesse se
recobrar, já a espada do adversário lhe varava o peito. O cruel cavaleiro
deixou cair a espada, vacilou um momento, deu uma volta e caiu
pesadamente ao chão, onde ficou imóvel como uma pedra.
Robin, ofegante, curvou-se sobre a espada e olhou para o inimigo morto.
— Minha espada vingou, pois, com o auxílio da piedosa e doce Virgem
Maria, todas as crueldades e opressões que teu mau coração e espírito
cruel causaram — a tortura de homens pobres pela fome, a extorsão e
trabalho excessivo, as dores que padeceram mulheres e crianças, a quem
teu mau coração não poupou nem os golpes nem as lágrimas… Assim
ç g g
minha espada pudesse matar também, e com a mesma facilidade, a tirania
e a injustiça de todos quantos estão hoje em dia com o poder na mão e se
aproveitam dele para fazer as pobres criaturas chorar e padecer!
Voltando-se, viu Hob do Morro que se aproximava. Este veio correndo e
disse-lhe:
— Chefe, vi o bom combate e o golpe acertado que lhe deste. Agora, de
todos os teus inimigos, só resta vivo um — sir Rogério de Doncaster.
— Não, Hob; há muitos inimigos dos homens pobres que ainda vivem
em seus fortes castelos e nas abadias cheias de esculturas, a quem eu
nunca matarei.
— Sim, sim, senhor, dizes a verdade. Enquanto o pobre vilão tiver de
suar no rude trabalho e sofrer pancadas, e ficar sempre preso à tarefa, sem
liberdade, nada possuindo, nem sequer a mulher e o filho que ele beija
quando sai para o trabalho de madrugada — enquanto isso durar, teremos
inimigos. Mas agora, chefe, venho dizer-te que os homens de Rogério de
Doncaster rumaram para o sul, e a esta hora estão em Hunger Wood.
Presumo que obedecem apenas a ordem deste mordomo que aqui está
morto, e te armarão uma emboscada.
— Onde está Will, o besteiro, com seus homens?
— Estão todos espalhados pela estrada do sul, espionando os bandidos
de Rogério.
— Vai a toda pressa falar com João Pequeno. Pede-lhe que volte, se é
que já não soube que os homens de Rogério vêm vindo para o sul. Que vá
no seu encalço, mas sem que eles o descubram. Quando ele estiver ao
norte de Hunger Wood, pede-lhe que faça duas curvas pela mata, de forma
que cerque os bandidos. Então, com os homens de Will, eu os repelirei, e
João providenciará para que não escape um só deles vivo. Será uma boa
lição para que meus inimigos não tornem a meter a cabeça na boca do
lobo.
Hob saiu correndo, enquanto Robin também se dirigia a toda pressa para
a estrada de Doncaster, onde encontrou logo Will, que o esperava em uma
clareira.
— Então agora, chefe — disse o velho Will, já grisalho, mas sempre
robusto e resoluto —, meus esculcas dizem que aqueles patifes são
muitos, e que vêm atravessando as matas como se nada tivessem a temer.
Dizem que quem os guia é um canalha muito finório, um degolador
brabantino, chamado Fulco, o Vermelho, que já guerreou na França, na
Alemanha e na Palestina, e conhece todas as artes da guerra. Nós não
passamos de vinte, e o João Pequeno está com o seu grupo a três milhas
daqui.
— Já mandei Hob chamar João Pequeno. Estará aqui dentro de uma
hora. Até que cheguem, temos de manter aqueles patifes a distância. João
os atacará pela retaguarda, e creio que, apesar de todo o infame
conhecimento que eles têm de incêndio e pilhagem, adquirido no serviço
de nosso rei tirano, aqueles flamengos e brabantinos virão achar a morte
nas nossas mãos inglesas.
Dali a um momento chegou um esculca dizendo que o inimigo marchava
para a clareira de Beverley, e Robin ordenou imediatamente que os vinte
besteiros de Will se escondessem nos tufos à beira da clareira. E logo,
saindo das árvores do outro lado desta, apareceram os capacetes dos
estrangeiros. Eram homens de aparência cruel e resoluta, pois guerreavam
pela mão que lhes pagasse, fosse qual fosse, com a mira na pilhagem e
presa de guerra que assim obtinham. Os camponeses ingleses odiavam
entranhadamente aqueles marotos estrangeiros, que não poupavam nem
mulheres nem crianças, e eram tiranos e cruéis.
Eram uns oitenta; vinte besteiros, e vinha à frente o chefe — um homem
de cara vermelha, de aspecto feroz, e todo coberto de malha de aço, da
cabeça aos pés. Adiantavam-se com prudência, trazendo esculcas nos
flancos, por entre as árvores, e olhavam atentamente para todos os lados,
enquanto andavam. Cada soldado trazia um escudo na mão esquerda, e na
outra flamejava a espada nua. Robin não deu o sinal convencionado senão
quando estavam a uns vinte passos das moitas onde estavam ocultos os
bandoleiros. Então, a um silvo agudo, vinte flechas grandes zuniram no ar,
e tão certa era a pontaria de cada uma que outros tantos inimigos
vacilaram e caíram, cada um com uma grande haste profundamente
cravada no grosso gibão ou na garganta. E entre esses estavam quinze
besteiros.
Outro silvo, e, antes que os patifes tivessem tornado a si do espanto,
outra revoada de flechas era lançada contra eles, e mais doze caíram,
mortos ou feridos.
Então, soltando um brado feroz de comando, Fulco, o Vermelho, atirou-
se para as moitas, seguido pelos sobreviventes, que ainda ultrapassavam
em número os bandoleiros. Rápidos como furões — e como eles furtivos
— retiraram-se os homens de Robin, correndo de árvore em árvore; mas,
sempre que se oferecia uma oportunidade, voava de uma moita inocente
uma seta rechinante, e outro velhaco caía, contorcendo-se, agonizante. Os
outros corriam para todos os lados, procurando ferozmente seus inimigos
ocultos. Três bandoleiros foram mortos na primeira investida, mas quando
os estrangeiros corriam de moita em moita, e procuravam atrás de uma ou
outra árvore, eram observados pelos mateiros manhosos, e sempre o canto
horrendo de uma flecha ia repentinamente acabar em um grito de agonia,
ao penetrar em um coração cruel.
Não obstante, o bando de mercenários prosseguia e os bandoleiros
tinham de recuar, porque não podiam arriscar-se a enfrentar os outros em
campo aberto. E tão cerrada era a perseguição de Fulco, que mais alguns
dos bandoleiros retirantes caíram ao fio da espada, e Robin viu com raiva e
desespero que já perdera oito homens. Perguntava consigo o que faria para
vencer o inimigo, mas não encontrava saída.
De repente viu Fulco arrojar-se para uma moita onde tinha avistado um
bandoleiro emboscado. Era Gilberto da Mão Branca, que, vendo-se
descoberto, e não tendo tempo de distender o arco, procurou salvamento
na fuga. Correu para o lado da árvore atrás da qual se achava Robin, e
Fulco o perseguia, de espada erguida. Quando o brabantino passou, Robin
lançou-se à frente de espada em punho e bateu no estrangeiro. Este parou
o golpe rapidamente com o escudo, logo deu volta e atirou-se a Robin. Em
aceso combate ficaram os dois engalfinhados, andando em roda, tinindo as
espadas quando paravam os golpes. Mas de súbito um dos outros homens
veio se arrastando, resolvido a matar Robin por detrás. Will, o besteiro,
viu o que ele ia fazer e correu para a frente, espada em punho, mas apenas
para ser abatido por outro flamengo, que saíra de trás de uma árvore. O
último alento do velho foi ainda um grito de aviso:
— Cuidado, Robin!
Veio voando, de uma moita, uma seta, e o homem que se arrastava para
o lado de Robin deu um salto, e caiu pesadamente, ficando quieto no chão.
Uma segunda flecha matou o que prostrara Will Stuteley. Então ambos os
grupos, de seus esconderijos, pareciam apenas atentos ao combate entre
os dois chefes.
O brabantino, famoso espadachim, achara contudo seu êmulo. Nunca
vira até então um pulso tão firme, nem golpes tão fortes; e era em vão que
experimentava suas velhacarias e habilidade de mão contra aquele homem
ligeiro, que parecia cercado por um estojo de aço, quando era apenas a sua
espada que saltava tão vivamente, sempre em guarda.
Enraivecido da longa resistência, Fulco já ia enfraquecendo, naqueles
ataques inúteis, ainda que vigorosos. Mas de repente viu luzirem os olhos
de Robin com um brilho estranho, cuja intensidade quase o fascinou. E
percebeu que o bandoleiro dava um passo que lhe deixava a descoberto o
lado esquerdo do peito. Mais que depressa o brabantino, aparando o
passo, atirou a ponta da espada ao peito do adversário. O bandoleiro
saltou para o lado e a espada de Fulco mergulhou no ar vazio, e
imediatamente, curvando largamente o braço, Robin metia a espada,
profundamente, no pescoço do mercenário, que lhe caiu morto aos pés.
Ergueu-se da garganta dos bandoleiros um grande brado de alegria, e os
arqueiros, encorajados pela vitória, saíram em campo aberto à procura dos
inimigos. Estes, porém, perdendo a coragem com a morte do chefe,
começaram a retirar-se, correndo por detrás das árvores, que os
escondiam. Era em vão, contudo, que procuravam abrigo nos seus troncos,
porque as flechas mortíferas, como abelhas enormes, procuravam
empenhadamente seus esconderijos. De vez em quando eles se refaziam
de coragem e voltavam-se para enfrentar os bandoleiros temerários, mas
era apenas por alguns instantes. Viram-se compelidos a retirar-se, diante
da saraivada de flechas que convergia sobre eles, trazendo ferimentos e
morte — de inimigos que desapareciam instantaneamente.
De repente, de três direções — de trás e dos lados — veio o canto de
chamada do galo-da-campina. E retiniu tão audacioso, que rebentaram
risadas dos bandoleiros, escondidos aqui e ali, enquanto outros
perguntavam consigo se seria na verdade João Pequeno — porque era
aquele o seu grito de aviso. Um grito de resposta de Robin tranquilizou-os,
e dali a pouco já avistavam por entre as árvores os casacos de pano verde
de Lincoln.
Compreendendo então que estavam cercados pela retaguarda e pelo
flanco, brabantinos e flamengos, que sabiam não ter mercê a esperar nas
mãos dos ingleses, atiraram-se juntos, resolvidos a vender caro a vida.
É inútil falar desse último combate. Ele só podia acabar de uma maneira.
Os ingleses odiavam aqueles estrangeiros invasores com um ódio tão
entranhado que não podiam ter misericórdia, e quando lançavam suas
flechas sabiam bem que elas iam carregadas de vingança — vingança de
inenarráveis atos de assassínios e crueldades cometidos contra mulheres e
criancinhas indefesas e homens desarmados, quando aqueles pilhantes
miseráveis se haviam espalhado como uma praga por aquela terra, sob a
bandeira do rei João, trazendo ruína, fogo, morte, miséria e fome a
centenas de lares humildes e aldeias pacíficas.
Rogério de Doncaster, que ficara à espera, com meia dúzia de soldados,
na orla da mata, não podia adivinhar por que Guy de Gisborne e Fulco
demoravam tanto.
As sombrias naves de árvores gigantescas não permitiam que ouvisse os
gritos de triunfo, nem que visse o fulgor das espadas desembainhadas, mas
ainda assim mandou muitas vezes dois ou três de seus homens que fossem
pela floresta ao encontro dos vencedores.
Afinal viram um carvoeiro que vinha por entre as árvores, com seu saco
de carvão. Dois soldados o apanharam e levaram-no para onde estava o
cavaleiro. Sir Rogério, do alto da sua sela, perguntou-lhe se não tinha visto
uma tropa de soldados pela mata.
— Não, não — disse ele na sua língua rude —, não vi nenhum homem
vivo, mas vi uma pilha de mortos na clareira de Beverley, e cada um deles
tinha uma seta de uma jarda espetada no corpo. Tinham cara de
estrangeiros. Sessenta deles!
Sir Rogério deu volta ao cavalo, soltando uma praga selvagem.
— Aquele “cabeça de lobo” é o próprio demônio! — bradou ele. —
Ninguém pode lutar com ele nas suas matas!
A toda pressa, ele e seus homens foram saindo dali, deixando o carvoeiro
a olhar para eles. Afinal, disse lá consigo:
— Sim, sim, nenhum de teus bandidos cruéis pode esperar outra coisa
senão a morte, enquanto Robin for o rei destas matas. Eram sessenta ou
oitenta, no morticínio de Easterlings, e cada um deles tinha no corpo a
marca de Robin!
Muitos anos depois, o lugar onde Robin tinha executado aquela vingança
tremenda sobre os mercenários estrangeiros era ainda conhecido por
“Campina da Matança”, em vez do seu nome primitivo, que era Beverley
ç y
Glade, ou Clareira do Castor. E durante muito, muito tempo, não só os
camponeses, mas os outros que passavam perto do montículo que
marcava o local onde Robin enterrara os mortos, contavam esta história
uns aos outros.
Após esses feitos, Robin viveu muitos anos sem ser perturbado nas
florestas de Barnisdale e de Sherwood; e, embora fosse um proscrito,
muitos homens bons lhe respeitavam o nome, mas era temido pelos
opressores. Sempre que um senhor praticava algum ato de crueldade
contra um vassalo, Robin exigia que o cavaleiro soberbo recompensasse o
servo; e quando a propriedade de um pobre era invadida por outro mais
forte, eram ainda os arqueiros ocultos de Robin que tornavam aquele lugar
insuportável para quem quer que não fosse o dono.
Eu teria de escrever outro livro do tamanho deste, se quisesse relatar
todos os feitos e ações famosas que Robin praticou enquanto viveu na
mata por aquele tempo. E foram quinze os anos que lá viveu, e cada ano
sua fama aumentava.
Um de seus grandes feitos foi aquele longo combate em que se
empenhou por amor do jovem Drogo de Dallas Tower, em Westmoreland.
Os fronteiriços, todos eles ladrões e saqueadores, tinham expulsado sir
Drogo de suas terras, porque ele castigara um dos seus companheiros, e o
jovem cavaleiro estava em grandes apertos. Com o auxílio de Robin e de
seus besteiros, conseguiu ele repelir os intrusos, e as flechas compridas
inspiraram tamanho terror, que nunca mais Jordan, Armstrong, Douglas
ou Graham se aventuraram a ofender o amigo de Robin.
Seguiu-se então aquele grande feito, não de guerra, senão de paz, em que
Robin compeliu o jovem escudeiro de Thurgoland a render justiça a sua
mãe, tratando-a com bondade. Ela fora serva, ou vilã, nas terras de sir
Jocelyn de Thurgoland e trabalhava nos campos. Enquanto seu senhor e
marido era vivo, ela era livre e vivia feliz com sir Jocelyn. Tinham um filho,
Estêvão, tão severo e grosseiro, que todos diziam, ao falar nele:
— Nem parece filho do nobre Jocelyn e da meiga Avis!
Quando sir Jocelyn morreu, seu filho tornou-se lorde, mas a lei injusta
daquele tempo declarava que Avis voltava agora à condição de serva na
terra de seu filho, porque, com a morte do marido, perdera a liberdade.
Por ela se opor um dia à ira injusta do filho contra um pobre servo do
feudo, Estêvão jurou que se vingaria da própria mãe. E expulsou-a da casa
senhorial, obrigando-a a sair com roupas esfarrapadas e ir para casa dos
parentes — que também eram dele — em uma aldeia próxima. Avis
censurou vivamente o filho desnaturado, mas voltou, cheia de modéstia e
dignidade, para o duro trabalho em que não pusera as mãos durante trinta
anos; quanto ao filho, uniu-se a maus companheiros, sabendo bem que sua
mãe os detestava, porque sempre o aconselhara a evitá-los.
A história do filho que votou a própria mãe à servidão espalhou-se por
toda parte e indignou todos os homens e mulheres de caráter reto. E
perguntavam, ao passo que iam se passando os dias e as semanas, por que
não caía um castigo do céu sobre um filho tão desnaturado e mau. Ele,
porém, continuava a se divertir, no meio das festas, sem que nada viesse
perturbar a sua vida de distrações de toda sorte.
Mas uma noite, estava o escudeiro Estêvão no meio de seus alegres
companheiros, em grande festim, quando entraram no salão sessenta
homens vestidos de escuro, que arrebataram o cavaleiro do meio de seus
hóspedes aterrorizados, levando-o consigo, a despeito da furiosa
resistência que opunha. Por algum tempo ninguém soube o que fora feito
dele. Espalhou-se depois pela região a notícia de que o escudeiro estava
trabalhando como servo nas terras de um feudo na floresta, e que Robin
Hood o obrigava a viver assim até que ele aprendesse a proceder como um
homem da sua categoria.
Durante meses, o escudeiro Estêvão foi conservado cativo, obrigado a
trabalhar como qualquer dos seus parentes vilões, até que afinal se
envergonhou e se arrependeu, confessando que agira como um rústico e
que não era digno da alta posição que o mero nascimento lhe conferira.
Depois, ainda vestido de vilão, voltou a Thurgoland, foi procurar sua mãe
onde ela trabalhava, na aldeia, e pediu-lhe perdão; e ela beijou-o,
chorando. Então ele a levou pela mão, declarando que era ela a senhora da
casa senhorial. E daí em diante viveu uma vida nobre, como vivera seu pai.
Reconheciam todos que fora este um grande feito, e louvaram os nomes
de Robin e do padre Tuck, que, com seus preceitos e muitos conselhos,
mostrara ao escudeiro Estêvão os erros de sua vida passada.
Outros feitos ainda praticou Robin; o combate com o pirata Damon, o
Monge, que durante tanto tempo e com tamanha crueldade assolara a
costa do Yorkshire. Acabou Robin por matá-lo, em um grande combate
marítimo, na baía que hoje se chama Baía de Robin Hood, onde o navio
pirata foi aterrar, depois de Robin haver enforcado todos os marujos, na
ponta da própria verga grande.
Já haviam passado dez anos desde que Robin começara este segundo
período de proscrição, quando um dia entrou no seu acampamento de
Stane Lea uma dama que, desmontando, se dirigiu ao bandoleiro e
cumprimentou-o. No primeiro instante, ele não a reconheceu. Mas a dama
disse-lhe, sorrindo:
— Pois eu sou tua prima, dona Alice de Havelond. Não te lembras do
auxílio que me prestaste, a mim e a meu marido, há mais de vinte anos,
quando dois vizinhos malvados nos perseguiram?
— Por minha fé! — disse Robin, beijando-a na face. — Faz tanto tempo
que não nos vemos, que não te reconheci mesmo.
Robin recebeu-a com muita amizade, e dona Alice com suas duas criadas
e três servos passaram a noite em um camarim que ele mandou preparar
para ela. Conversaram muito a respeito de seus parentes, falando nos que
tinham viajado e nos outros, que tinham tido também seus dias
tempestuosos. Seu marido, Bennet, morrera há três anos.
— E agora — concluiu ela — estou velha, Robin, e tu também estás
velho. Estás de cabeça branca, e, embora teus olhos conservem o brilho
antigo, e eu não duvide de que ainda tenhas muita força, não é menos
certo que hás de desejar às vezes ter um lugar onde possas viver em paz,
longe dos sustos que tua vida nestes matos há de te proporcionar, não?
Não podes agora despedir teus homens, às ocultas, e ir viver em minha
casa, em Havelond? Lá ninguém te iria perturbar e poderias viver em paz e
tranquilidade o resto de tua vida.
Não hesitou Robin um momento na resposta:
— Não, querida prima; tenho vivido tanto tempo na mata que não posso
desejar mais viver em nenhum outro lugar. Morrerei no mato e, quando
chegar minha hora, peço que me enterrem em alguma clareira, debaixo das
árvores murmurantes, onde em vida eu e meus caros companheiros temos
vagueado à vontade.
— Então, visto que não queres o asilo que te ofereço em lembrança de
tua grande bondade para com meu querido marido, eu vou retirar-me para
Kirklees e passarei o resto da vida no convento em que, como sabes, nossa
tia dona Úrsula é abadessa. E creio que ela, ainda que sempre fale
asperamente de teus atos violentos, te receberá com alegria, pois que és
filho de sua irmã.
Robin prometeu ir visitá-la em Kirklees, e de fato ia lá de seis em seis
meses, não só com o fim de ver a prima, mas também para receber das
mãos dela o tratamento médico que sua idade reclamava cada vez mais.
Naqueles tempos as mulheres tinham grandes conhecimentos de ervas
medicinais, e quando uma pessoa adoecia, em vez de ir procurar um
médico, recorria a alguma mulher reconhecidamente hábil na arte de
aplicar esses remédios. Os homens mesmo acreditavam que, cortar uma
veia do braço e deixar sair um pouco de sangue, era excelente remédio
para algumas moléstias. Era também com este propósito que Robin Hood
ia ao Convento de Kirklees, e lá ficava dois ou três dias de cada vez, para
que o ferimento do braço pudesse sarar completamente.
Nessas visitas via muitas vezes sua tia, dona Úrsula, a abadessa. Era uma
mulher morena e magra, de olhos cheios de astúcia, mas sempre lhe falava
amistosamente. Perguntava-lhe muitas vezes quando é que ele ia comprar
o seu perdão e abandonar aquela vida sem lar, dotando alguma casa
religiosa com as suas riquezas, para obter a salvação de sua alma.
Mas Robin respondia:
— Pouco tenho de meu, e não vou empregar meus bens em alimentar
monges gordos nem freiras preguiçosas. Enquanto meus irmãos da mata
estiverem comigo, e eu puder me servir das pernas que Deus me deu, hei
de viver na mata.
— Contudo — dizia ela —, não esqueças tua tia e tua prima que aqui
estão, e vem quando te der vontade.
Um dia, já no fim do verão, sentiu-se Robin doente e meio atordoado,
então resolveu ir a Kirklees para que sua prima o medicasse. E convidou
João Pequeno:
— Vamos, João, acompanha-me, porque hoje me sinto fatigado e meio
desorientado.
— Sim, querido Robin, irei contigo, mas tua doença vai passar, vais ver.
Eu desejaria, porém, que não fosses àquele convento, porque sempre que
vais lá, e fico à tua espera, sozinho, aqui debaixo das árvores, pergunto
comigo se tornarei a ver teu rosto, ou se não vão te armar alguma cilada
por lá.
— Não, João, elas não me armarão ciladas. Aquelas mulheres são minhas
parentas; e, além disso —, que inimigos temos agora?
— Não sei — replicou João, indeciso, coçando a cabeça grisalha —, mas
Hob do Morro ouviu dizer que sir Rogério de Doncaster é amigo das
freiras de Kirklees.
— Ora, ele está velho, como nós todos, e creio que não há de ter tanto
ódio de mim, depois de tantos anos.
— Não sei… — repetiu João —, mas a cobra morde mesmo que já não
tenha veneno.
Prepararam-se para ir ao convento; Robin e João foram a cavalo e os
outros a pé. Quando chegaram à beira da mata, de onde se avistava o
convento, João Pequeno e Robin desmontaram, deixando ali os cavalos e
os seus homens, que se esconderiam no mato até a volta de Robin. Então,
amparado ao braço de João, Robin dirigiu-se para o portão de Kirklees,
onde João o deixou.
— Deus te guarde, querido Robin — disse ele —, e te faça voltar
depressa para junto de mim. Tenho hoje comigo um pressentimento de
que algo ruim te vai acontecer…
— Não, não, João, não tenhas receio. Senta-te no bosquezinho, e se eu
precisar de ti tocarei a buzina. Tenho meu arco e minha espada, e nada me
pode acontecer de mal entre aquelas mulheres.
E os dois velhos camaradas de armas separaram-se, depois de calorosos
apertos de mão; e Robin, pegando na grande argola de ferro, bateu com ela
no portão, que a abadessa em pessoa abriu imediatamente, pois o vira
aproximar-se, da janela onde estava a observá-lo.
— Entra, Robin — disse ela.
E, enquanto lhe falava com carinho enganador, espiava-lhe furtivamente
para o rosto com o olhar manhoso de sempre. Viu que estava doente, e um
sorriso lhe brincou nos lábios finos.
— Entra; vem tomar uma caneca de cerveja branca, porque hás de estar
fraco da viagem.
— Obrigado, senhora — disse Robin, entrando com passos incertos. —
Mas não comerei nem beberei nada enquanto não for sangrado. Peço-te
que digas à minha prima Alice que estou aqui.
— Ah! Robin, há muito tempo não apareces aqui, e não sabes de nada,
pelo que vejo. Tua prima morreu na primavera; morreu durante o sono, e
está agora enterrada no cemitério.
— Sinto muito sabê-lo — replicou Robin.
E, com o choque que recebeu com esta notícia, vacilou e cairia ao chão,
se a tia não o amparasse com o braço.
— Eu… eu… arrependo-me de não ter vindo aqui mais vezes. Pobre
Alice! Mas estou doente, senhora; corta meu braço e sangra-me, e ficarei
bom e não te incomodarei mais.
— Mas isso não é incômodo, bom Robin.
E a abadessa levou-o para um quarto afastado das salas movimentadas
do convento. Mostrou-lhe uma cama de rodas que estava em um canto do
quarto, e ele deitou-se, com um suspiro de alívio. Então desnudou
vagarosamente o braço, e a abadessa tirou de um saquinho que trazia
preso ao cinto uma faquinha. Pegou no braço trigueiro, agora muito mais
fino do que dantes, e com a ponta da faca deu um talho profundo em uma
grossa veia azul. Amarrando depois o braço, para que ele não pudesse
movê-lo, ela pôs um vaso debaixo do corte deixando o braço fora da cama.
Saiu então do quarto e voltou logo, trazendo um copo com uma bebida.
— Bebe isto, bom Robin, que te vai aliviar do abatimento que estás
sentindo.
Ergueu-lhe a cabeça e ele bebeu o licor até o fim. Soltando um suspiro,
Robin tornou a cair sobre o travesseiro, e disse-lhe, sorrindo:
— Obrigado, muito obrigado, minha boa tia. És muito bondosa com um
homem fora da lei.
Falava já em uma espécie de sonolência; a cabeça descaiu sobre o
travesseiro e ele começou a respirar penosamente. A droga que lhe dera a
abadessa começara a fazer efeito. Com um sorriso maldoso, a dama foi até
a porta do quarto e chamou alguém que estava fora. Entrou a passos
furtivos um homem — um velho magro, de cabeça branca, de olhar astuto
e velhaco, cujo lábio inferior pendia, fraco e débil. Ela apontou com o
magro dedo para a forma de Robin Hood, e os olhos do velho brilharam
àquela vista. Seguia com o olhar as gotas de sangue que escorriam da veia
cortada e iam cair no vaso.
— Se tu te parecesses com um homem, por pouco que fosse — disse ela
desdenhosamente —, puxarias agora da tua adaga e lhe darias morte por
tua mão — e não entregarias à minha lanceta o trabalho de deixar sua vida
ir-se escapando assim gota a gota.
Ao som daquela voz, Robin fez um movimento, e o velho magro voltou-
se e saiu num pulo do quarto, aterrado. A abadessa seguiu-o, tendo os
olhinhos de contas pretas fixos nos olhos velhacos do homem. Tirou uma
chave comprida do saco e fechou a porta do quarto onde Robin jazia.
— Quando estará morto? — perguntou o velho, num cochicho.
— Se o sangue correr livremente, morrerá esta noite!
— Mas se não correr, e ele não morrer? — indagou ainda o velho.
— Então eu e o convento estaremos enriquecidos de mais trinta jeiras
de bons campos — replicou a abadessa, zombeteira —, presente do bom
sir Rogério de Doncaster; e tu, sir Rogério, terás de achar algum outro
meio de matar aquela raposa. Por que não entras e não acabas com ele
agora?
E ela estendia-lhe a chave; mas ele afastou-se, encolhendo-se todo,
roendo as pontas das unhas, os olhos maldosos cravados, com um brilho
de fúria, no rosto da abadessa.
Sir Rogério de Doncaster, covarde poltrão, não tinha coragem de matar
um homem doente; deu volta e saiu. Montou a cavalo e se foi, queixo
fincado no peito, enraivecido ao considerar quanto a abadessa o
desprezava, certo de que ela ainda podia enganá-lo, naquela cruel
conspiração que tinham tramado para a morte de Robin Hood.
João Pequeno ficou sentado, pacientemente, no bosquete da floresta, a
tarde inteira.
Quando as sombras alongadas começaram a arrastar-se pelas planícies,
admirou-se de não ver Robin aparecer no portão como era seu costume.
De tão ansioso, levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro.
Mas… que era aquilo? Fraco, vindo da direção do convento, ouviu os
três sons da trompa de caça — era o chamado de Robin!
Com o rugido de um touro enfurecido, João Pequeno bradou para os
homens ocultos no mato:
— Vamos, rapazes! Ouviram aquelas notas fracas? Atraiçoaram o nosso
pobre chefe!
Pegando arrebatadamente nas armas, o bando inteiro atirou-se para a
frente, seguindo João Pequeno, que corria a bom correr para o portão do
convento. Deitaram-no abaixo a golpes de lança, e, com a mesma arma,
arrombaram a porta; então, entre gritos e súplicas das monjas assustadas,
entraram na casa.
João Pequeno, frio e ríspido, parou diante do bando de mulheres pálidas.
— Acabem com esses gritos! Vão buscar a abadessa!
Mas a abadessa não estava em parte alguma.
— Depressa, então! Levem-me para onde está meu chefe, Robin Hood!
Mas ninguém sabia de sua vinda ao convento. João, enfurecido, triste e
cheio de apreensões, ia ordenar a busca de todo o convento, quando Hob
do Morro se meteu entre os bandoleiros, dizendo:
— Achei o quarto onde jaz o nosso chefe!
Subiram a escada em tropel, atrás de Hob, e, chegando diante da porta,
despedaçaram a fechadura e entraram de roldão no quarto. E que vista
aquela! Ali estava seu chefe, pálido e macilento, de olhos vidrados, meio
reclinado sobre a cama; tão fraco que mal pôde erguer a cabeça para vê-
los.
João Pequeno atirou-se de joelhos ao lado de Robin, derramando um rio
de lágrimas.
— Chefe, chefe! Concede-me uma graça!
— Qual é, João? — perguntou Robin, sorrindo debilmente para o amigo.
Levantando a mão, ele a colocou carinhosamente sobre a cabeça do
velho camarada.
— Que tu nos deixes incendiar esta casa e matar as que te mataram!
Mas, sacudindo a cabeça, quase sem forças, disse Robin:
— Não, não! Esta graça eu não a concederei a ti. Nunca fiz mal a mulher
alguma em toda a minha vida, e não o farei agora que estou no fim. Ela
deixou meu sangue escorrer do corpo e me tirou assim a vida, mas peço-te
que não lhe faças mal. Não, João, não tenho vida para muito tempo… Abre
aquela janela e dá-me meu arco e uma flecha.
Abriram depressa a janela, e Robin olhou, com olhos já turbados e
moribundos, para os campos tranquilos à luz do crepúsculo e para a
grande floresta, que ondulava, lá longe.
— Segura-me enquanto atiro, João, e no lugar onde cair minha flecha, aí
cava a minha sepultura e deixa-me ficar.
Choravam aqueles homens, vendo-o segurar o grande arco com as mãos
enfraquecidas e esticar o cordão, segurando a pena da seta. Dantes
unicamente ele, entre todos os homens, podia curvar aquele arco, mas,
agora, tão esvaído estava que mal tinha força para distendê-lo a meio…
Soltando um suspiro, deixou voar a seta, que saiu rechinando pela janela; e
os homens acompanharam com a vista nimbada de lágrimas o voo dela por
sobre os campos, até que se foi enterrar no chão, ao pé de um caminho
estreito que ia dos prados para a floresta.
Robin caiu para trás, exausto, e João Pequeno deitou-o devagarinho.
— Enterra-me lá, João Pequeno, com o meu arco, porque foi esta a mais
doce música que ouvi em toda a minha vida, e sempre desejei tê-la comigo
quando morresse. Põe um torrão de relva debaixo da minha cabeça e outro
a meus pés, porque eu gostava de dormir na relva da floresta enquanto
vivia e quero descansar nela a cabeça no meu último sono. Farás tudo isso
por mim, João?
— Sim, sim, chefe — respondeu João, com a maior tristeza.
— Agora beija-me, João, e… e… adeus!
Saiu-lhe dos lábios o último alento quando João, de cabeça descoberta,
se inclinou para beijá-lo. Todos se ajoelharam e oraram pela alma que se
alçava, e, com lágrimas abundantes, imploraram a misericórdia divina para
o seu valente e generoso chefe.
Não puderam suportar a ideia de deixar o corpo dentro do convento
naquela noite, então levaram-no para a floresta, velando-o no escuro a
noite inteira. Quando amanheceu, prepararam o túmulo, e quando o padre
Tuck, já todo curvado e de cabeça branca, chegou, ao meio-dia, todos eles
levaram o corpo de seu chefe querido para o lugar onde iria dormir o
último sono.
Mais tarde os bandoleiros souberam da visita de sir Rogério de
Doncaster ao convento enquanto Robin agonizava, e saíram em busca
dele. Para escapar ao cerco apertado que Hob do Morro e seu irmão Ket
lhe faziam, sir Rogério fugiu para Grimsby, e mal pôde escapar para bordo
de um navio com a pele inteira, tão de perto o perseguia Hob. O cavaleiro
foi buscar refúgio na França, e lá morreu pouco depois, solitário e
abandonado.
Depois da morte de Robin, não tardou a desmantelar-se o bando de
proscritos. Alguns foram refugiar-se além-mar, outros se ocultaram em
cidades grandes, e foram-se pouco a pouco transformando em cidadãos
respeitáveis; outros foram empregar-se de novo em feudos distantes,
tornando-se respeitadores da lei, se eram bem tratados pelos senhores.
Quanto a João Pequeno e Scarlet, obtiveram terras em Cromwell, onde
Alan de Dale era então senhor, nas propriedades de lady Alice; Much foi
nomeado mordomo em Werrisdale, que também pertencia a Alan de Dale,
cujo pai, sir Herbrando, já morrera.
Gilberto da Mão Branca não quis ficar ali. Foi para a Escócia, e tão
arrojados feitos praticou, combatendo com o arco e a espada, que durante
muitos anos suas façanhas heroicas foram cantadas ao pé da lareira, nas
terras da fronteira.
Quanto a Hob do Morro e seu irmão Ket, o Gnomo, ninguém soube
nunca ao certo o que fora feito deles. Os dois homúnculos detestavam a
vida sossegada e estável, e, ainda que Alan lhes tivesse oferecido terras
para morar, preferiram vaguear pela mata sombria e pelos morros
solitários.
O túmulo de Robin estava sempre coberto de relva verde, mas ninguém
soube, durante muito tempo, que mãos se ocupavam de cuidar dele.
Começaram então a surgir histórias — que de tempos em tempos saíam
da floresta, pela calada da noite, dois homenzinhos, que iam aparar a
grama do túmulo e pôr ali plantas novas. Ninguém pôs em dúvida que
fossem Ket e Hob, pois ambos tinham amado entranhadamente Robin
toda a vida, e agora, que ele estava morto, não se podiam afastar para
longe da sua sepultura.
CONHEÇA OS TÍTULOS DA COLEÇÃO
GRANDES HISTÓRIAS DE TODOS OS TEMPOS: