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Título original: Robin Hood

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G464rGilbert, Henry
Robin Hood / Henry Gilbert ; traduzido por Pepita de Leão. – Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2022.
(Grandes Histórias de Todos os Tempos)
Formato: epub com 3,1 MB
ISBN: 978-65-5640-643-5
1. Literatura inglesa. I. Leão, Pepita de. II. Título.
CDD: 810 CDU: 821.111(73)

André Queiroz – CRB-4/2242

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SumÁRiO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Prefácio
I. Robin Hood torna-se bandoleiro
II. Robin Hood encontra João Pequeno
III. Robin combate com o mendigo-espião, e prende o xerife
IV. Robin Hood encontra o padre Tuck
V. O casamento de Alan de Dale e lady Alice
VI. Robin Hood auxilia sir Herbrando
VII. Robin Hood resgata Will Stuteley e justiça Ricardo Má Besta,
o mendigo-espião
VIII. Robin Hood mata o xerife
IX. O rei Ricardo encontra-se com Robin
Incêndio do Castelo da Malvadez
A morte de Robin Hood
Colofão
PrefÁCiO
v
, há muitos, muitos anos, em que a massa do povo inglês não era
HOUVE TEMPO

livre. Os homens não podiam viver onde queriam, nem trabalhar para
quem lhes agradasse. Naqueles tempos — o tempo do regime feudal — a
sociedade estava pela maior parte dividida em duas classes principais:
lordes e camponeses. Os lordes recebiam as terras das mãos do rei, e os
camponeses ou plebeus eram considerados parte do próprio solo, que
tinham de cultivar para o sustento, não só de si próprios, como também
dos seus senhores. Suponhamos que João, ou Pedro, escravo de um feudo,
não gostasse da maneira como o tratava o senhor, ou o seu mordomo: ele
não podia ir para outro ponto do país e trabalhar ali para um proprietário
mais bondoso. E se o tentasse, seria considerado criminoso; tinha de
voltar e era punido a chicotadas, ou marcado a ferro em brasa, quando não
era metido na prisão!
Se a colheita era abundante, e o senhor bondoso, ou indiferente, creio
que o camponês não havia de achar tal servidão tão insuportável. Quando,
porém, a fome se alastrava pela terra, e o camponês e sua família sofriam
necessidades; ou quando o senhor era por natureza mau ou exigente, e o
servo obrigado a executar excessivo trabalho — e além disso tratado com
rigor, então creio eu que se aquecia o velho sangue galês ou germânico do
campônio inglês e ele ansiava pela liberdade.
Naqueles dias reinava o silêncio e a verde paz das matas em léguas e
léguas de terra, onde hoje cresce denso o cereal dourado, ou
vagabundeiam vacas em ricas pastagens — e até em lugares onde vemos
agora subúrbios de cidades, cobertos de casas. E essas florestas de então
deviam ter sido lugares de terror e fascínio para o pobre camponês que as
avistava do sítio onde cavava a terra do seu campo. Nas clareiras
sossegadas corriam os cervos reais, e nos densos cerrados escondiam-se os
javalis — caça reservada ao rei e alguns de seus amigos, os grandes nobres
e os príncipes da Igreja. Um pobre, camponês ou lavrador, que matasse
uma dessas bestas reais da floresta, era cruelmente mutilado, para castigo.
E, se não conseguiam apanhá-lo, fugia e ia esconder-se no recesso dos
bosques, e ficava proscrito. Quem quer que o encontrasse tinha o direito
de matá-lo.
Foi em tais condições que viveu Robin Hood, e praticou ousadas
façanhas, conforme narram as canções e as lendas que chegaram até
nossos dias.
Há quem duvide da existência de Robin Hood, porque seu nome não é
encontrado nos enfadonhos registros de jurisconsultos e outros que tais.
Eu, porém, tenho certeza de que ele existiu: era homem vivo, e muito vivo
até. É bem possível que os poetas desconhecidos que compuseram as
canções o tivessem idealizado um pouco, isto é, que o descrevessem como
uma criatura mais ousada, mais bem-sucedida, mais heroica, talvez, do que
ele foi na realidade; mas é isso mesmo o que se espera sempre dos
escritores e poetas.
As baladas que temos de Robin Hood e seu bando de proscritos são
cerca de quarenta. As melhores são as mais antigas, por serem as mais
naturais e entusiásticas. A maior parte dos poemas mais recentes são
muito pobres: muitos deles não passam de exaustivas repetições de um ou
dois incidentes, enquanto outras são rimas grosseiras em maus versos,
sem espírito nem imaginação.
Servi-me, para as histórias que conto neste livro, de alguns dos melhores
episódios relatados nessas canções, mas imaginei também outras histórias
a respeito de Robin e acrescentei incidentes e fatos inventados, para
apresentar uma fiel pintura dos tempos em que ele viveu.
Exatamente como o rei Artur foi o herói da cavalaria inglesa, nos tempos
feudais, foi também Robin Hood o herói ou figura popular entre os
homens de condição inferior. O servo e o camponês eram algemados aos
seus campos e ao ciclo de labor invariável, pelos grilhões do costume; e
qualquer desrespeito à lei era castigado com pronta e duríssima punição.
Era doce, pois, nas horas de lazer, ouvir cantos que falavam do audacioso
bandoleiro Robin Hood, que em outros tempos tinha sido tão tolhido
como eles pelas peias da lei, mas que tinha fugido para a liberdade da
floresta, onde, com fria audácia e ousadia altaneira, zombava das leis que o
rei impunha sobre a agreste floresta densa, e movia guerra contra todos
aqueles ricos lordes e orgulhosos prelados que eram os inimigos
declarados da gente humilde.
Nem as virtudes atribuídas a Robin Hood pelos compositores de baladas
eram inferiores às que ornavam o rei Artur. É certo que Robin era um
ladrão, mas esse traço era resgatado pelas grandes qualidades de seu
caráter — a nobreza e a generosidade. Era sempre alegre e jovial, e recebia
com boa sombra uma derrota. Nobre na conduta, sua dignidade cheia de
cortesia elevava-o muito acima das maneiras rudes, comuns no seu tempo.
Era, além disso, religioso, tendo em especial reverência à Virgem Maria,
por cujo respeito tratava todas as mulheres com a maior cortesia e jamais
fazia mal algum a quem as acompanhasse. E, acima de tudo, auxiliava os
pobres, os famintos e os infelizes, e se roubava os ricos, dava liberalmente
à gente humilde.
Robin Hood é na verdade um herói tão valente e generoso como os que
mais o forem na literatura inglesa, e, enquanto existir no coração da
juventude sadia — rapazes e meninas — o amor das matas verdes e o
interesse pelas coisas silvestres —, estou certo de que as histórias de
Robin Hood e de seus bandoleiros serão sempre bem recebidas.

Henry Gilbert
i
Robin Hood torna-se bandoleiro
v
- — um dia de verão — e a floresta parecia adormecida. A brisa
ERA MEIO DIA

mal agitava brandamente os grandes leques das folhas de carvalho, e o


único som que quebrava aquele silêncio era o zumbido dos insetos, que
incessantemente esvoaçavam na meia sombra fresca da folhagem.
Poderia se dizer que jamais aquele caminho tinha sido trilhado, desde o
começo do mundo, senão pelo selvagem veado-vermelho e pelo seu feroz
inimigo, o lobo esquivo — tão tranquilo, tão solitário era o sítio. Havia
uma trilha entre as moitas cerradas de aveleiras, pilriteiros e clematites;
mas era tão estreita e apagada, que parecia marcada apenas pelos pés
levíssimos e delicados da corça, ou pelas lebres e coelhos, cujas tocas
ficavam ali perto, em um grande monte de terra, entre as raízes de uma
faia.
Pouca gente passava, na verdade, por aquele caminho, que ficava na
parte mais solitária da floresta de Barnisdale. E quem tinha direito de
andar por lá eram apenas os guardas-florestais do rei, que mantinham
estreita vigilância sobre os veados reais. Contudo, os coelhos que estavam
comendo diante das tocas, ou saltando em loucas travessuras, se haviam
escondido nos buracos, como se tivessem ouvido algum rumor que os
assustara. Depois, dois ou três espiaram, para ver se tudo estava
sossegado. E um coelhinho, mais aventuroso que os outros, saiu de
repente; e, dali a um momento, todos os outros vinham agrupar-se de
novo cá fora.
Um pouco além do sítio onde eles estavam roendo, ou atirando-se em
correrias, o caminho fazia uma curva, e as árvores gigantescas iam
rareando; a ramaria já deixava coar melhor a luz do céu. De repente
cessavam de todo, e o caminho ronceiro ia abrir-se em uma vasta clareira
onde crescia a grama e se viam moitas de aveleiras e de azevinho.
Parado ao pé do trilho, escondido atrás de uma árvore, um homem
olhava para a clareira. Vestia túnica de grosseiro pano verde, aberta no
alto, onde surgia seu pescoço bronzeado do sol. Cingia-lhe o torso um
cinturão de couro, de onde pendiam, de um lado, uma adaga e, do outro,
três longas flechas. Calções curtos, de couro macio, cobriam-lhe as pernas;
trazia meias de lã verde e calçava sapatos de forte couro de porco.
Na cabeça, coberta de cachos castanhos, trazia um capuz de veludo,
ornado de uma pena arrancada à asa de uma tarambola. O rosto,
bronzeado pelos ventos e as intempéries, era franco e leal; os olhos
brilhavam, como os de um pássaro selvagem, e lia-se neles o destemor e a
nobreza. Alto de pernas; parecia dotado de força não comum na sua idade
— não tinha mais de 25 anos. Trazia em uma das mãos um longo arco, e
apoiava-se com a outra ao tronco liso de uma faia.
Olhava com muita atenção para as moitas que via em frente, lá mais
distante, na clareira, e nem um único músculo do seu rosto se movia. De
vez em quando dirigia o olhar para o ponto da clareira onde, à sombra das
árvores, pastavam dois ou três veados, que avançavam lentamente em sua
direção.
De repente viu que a folhagem das moitas se movia devagarinho: surgiu
dali uma cabeça desgrenhada, e ele viu a face macilenta de um homem que
espiava cautelosamente para os lados. Dali a um instante partiu da moita
uma flecha, que voou direito ao grupo de veados e mergulhou no peito da
corça que vinha na frente. O animal correu um instante e caiu; os outros,
espantados, fugiram para o interior do mato.
O homem não saiu logo do esconderijo, para apanhar o animal que
matara; esperou pacientemente — o tempo preciso para contar até
cinquenta —, pois sabia que, se andasse por ali algum guarda-florestal
oculto, e encontrasse os veados fugidos, saberia logo, pelo ar assustado
dos animais, que alguma coisa sucedera, e não deixaria de pesquisar a
causa da fuga.
Escoava-se lentamente o tempo, e nada bulia no mato; nem o homem
escondido nem o que o espreitava se moviam. Nenhum guarda-florestal
apareceu na orla do matagal para onde tinham corrido os veados.
Sentindo-se, pois, seguro, o homem saiu da moita; não trazia arco nem
flechas, pois deixara tudo escondido em lugar seguro, para procurá-los
mais tarde.
Vestia a roupa grosseira e rasgada dos camponeses; uma corda cingia-lhe
a túnica escura, e umas calças largas, mais remendadas e esburacadas do
que a túnica, lhe cobriam os membros inferiores. Olhando para um lado e
outro, foi andando meio curvado para o lugar onde estava a corça e,
inclinando-se sobre ela, arrancou do cinto a faca e pôs-se a cortar, quase
febrilmente, pedaços das carnes mais tenras.
Quando o homem que estava por trás da árvore o viu, pareceu
reconhecê-lo e murmurou entre dentes:
— Coitado!
O camponês enrolou a carne do veado em um pedaço de pano grosseiro
e ergueu-se, desaparecendo entre as árvores. Então, a passos suaves e sem
ruído, o que o espreitava deu volta e embrenhou-se na floresta. Pouco
depois, o camponês, espiando para todos os lados, ia andando também
sem ruído pelo meio das árvores. Parava a cada passo e esfregava as mãos
vermelhas na relva úmida, para apagar as manchas de sangue reveladoras.
De repente, quando emergia de trás do tronco gigantesco de um
carvalho, a alta figura do homem que o estivera espiando atravessou-se em
seu caminho. Instantaneamente levou a mão à faca e fez menção de saltar
sobre o outro.
— Oh! Rapaz — disse o da túnica verde —, que loucura foi essa?
O camponês reconheceu imediatamente o que falava, e deu uma espécie
de risada feroz, antes de responder:
— Loucura! Não, desta vez não é para mim, senhor Robin. Mas meu
gurizinho está com fome, e, enquanto houver veados nas matas, ele não
morrerá!
— Teu gurizinho, Scarlet? Então o filho de tua irmã mora agora
contigo?
— Ah! O senhor tem andado fora estas três semanas, e não sabe de
nada…
Foi com voz dura que disse estas palavras, enquanto iam andando por
um caminho tão estreito que tinham de caminhar um atrás do outro.
— Há uma semana — continuou Scarlet —, o marido de minha irmã,
João de Green, adoeceu e morreu. Que pensa o senhor que fez o mordomo
do nosso chefe? Pois disse à minha irmã: “Vai-te daqui, velhaca, e arranja-
te como puderes para comer. O lugar agora é para um homem, que
prestará serviços em troca de alimento.”
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— Isso é coisa de Guy de Gisborne, o malvado traidor!
— Ela saiu, sem nada, nada, além dos farrapos que a cobriam, levando os
filhos, disse Scarlet, furioso. Se eu estivesse lá, não poderia impedir minha
faca de lhe saltar à garganta… Quando chegou à minha casa, estava
desorientada e doente. A doença dela, na verdade, era fome, mas adoeceu
mesmo, e morreu na semana passada. Os dois menores ficaram com os
vizinhos, e eu tomei conta do Gilberto. Sou sozinho e gosto do menino; se
lhe acontecer algum mal, eu deixarei minha marca no corpo de Guy de
Gisborne!
Ouvindo a curta e trágica narração do desbarato do lar de um pobre
camponês, sentiu Robin que o coração lhe fervia no peito, de ódio contra o
mordomo, sir Guy de Gisborne, que dirigia com tão dura mão o feudo de
Birkencar, dos Monges Brancos da Abadia de Santa Maria. Sabia, porém,
que o mordomo nada fazia que não fosse permitido pelo abade e pelos
monges. Por isso amaldiçoava todo o enxame deles, por mais ricos e
orgulhosos que fossem. Viviam entregues à caça e a uma vida regalada, à
custa do trabalho e das rendas que extorquiam dos pobres camponeses,
considerados apenas parte do solo dos feudos que cultivavam.
Robin, ou Roberto de Locksley, como era conhecido do mordomo e dos
monges, era homem livre, arrendava terras como homem livre, e não como
vilão, e era moço de boa posição, para aquele tempo. Possuía casa e
campo, uma granja de sessenta hectares da terra mais fértil que ficava nos
limites do feudo, e sabia que os monges há muito deitavam olhos
cobiçosos para a sua granja. Ficava ela ao pé da floresta e chamava-se
Outwoods. Ele e seus antepassados sempre mantiveram o arrendamento
daquela terra, desde muitas gerações; arrendaram-na primeiro dos
senhores a quem o rei Guilherme dera aquele feudo e, na última geração,
da Abadia de Santa Maria, à qual o último dono, lorde Guy de Wrothsley, a
legara.
Tendo assim a terra arrendada, enquanto pagasse o arrendamento aos
monges, estes não podiam legalmente esbulhá-lo de sua granja, por mais
que o desejassem. Robin era considerado pelo abade um homem
descontente e maligno. Muitas vezes insultara o abade no próprio
monastério, lançando-lhe em rosto a crueldade com que ele e seus
mordomos tratavam os camponeses e os rendeiros mais pobres dos seus
feudos. Era coisa que até então ninguém ousara fazer, e os monges, assim
como Guy de Gisborne, seu mordomo em Birkencar, odiavam Robin, por
causa de sua linguagem franca, tanto quanto ele mesmo os odiava pela sua
tirania e opressão.
— Pena é que eu não estivesse aqui — disse ele a Scarlet —, mas podias
ter ido a Outwoods, que Scadlook te daria alguma coisa.
— Ah! Senhor Robin, o senhor tem sido sempre o verdadeiro e bom
amigo de todos nós… mas eu também fui sempre um homem livre, e não
posso mendigar. O senhor já tem adquirido muitos inimigos por nossa
causa, é o caso; e eu não queria abusar. Não! Enquanto houver veados no
mato, nem eu nem o menino havemos de morrer de fome. Além disso,
senhor Robin, o senhor também precisa ter cuidado: se seus desafetos
soubessem que estava fora há tanto tempo — é o que se murmura —,
teriam-no declarado proscrito, tirando-lhe a terra na sua ausência, e na
volta o teriam matado.
Robin riu, depois respondeu:
— Ah! Sim, eu soube disso, lá por fora.
Scarlet olhou para ele assombrado. Julgava participar ao seu amigo um
grande e surpreendente segredo.
— O senhor já sabia? Que coisa estranha!
Robin não respondeu. Sabia que seus inimigos andavam à espreita de
alguma oportunidade para o arrastar à ruína. Muitos homens já tinham
sido vítimas de calúnias e acusações injustas; após uma longa viagem,
verificavam ao voltar que um inimigo os acusava falsamente, declarando
que tinham fugido por ter cometido um crime; conseguiam assim que
fossem declarados banidos, e qualquer um podia impunemente lhes cortar
a cabeça.
Scarlet ficou calado, pensando nas estranhas histórias que os aldeões
contavam, quando se reuniam para beber cerveja, depois do trabalho, a
respeito do grande amigo de todos eles, Robin Hood.
De repente ouviu-se um grito, semelhante ao grito do esquilo. Durante
um momento tudo ficou de novo em silêncio, mas depois ouviu-se outro
grito — desta vez um grito triste e solitário, o uivo do lobo.
Imediatamente Robin parou, depôs o arco e as flechas na raiz de um
carvalho e, voltando-se para Scarlet, disse-lhe em voz baixa e enérgica:
— Põe aqui a carne que trazes na túnica… Depressa, homem, antes que
os guardas te vejam com o peito tão volumoso… Tudo te voltará às mãos
daqui a pouco.
A estas palavras imperativas, Scarlet tirou de dentro da túnica, quase
maquinalmente, a carne da corça, que envolvera no pano grosseiro, e
deixou-a junto ao arco. Logo em seguida, Robin recomeçou a andar. Alguns
passos mais adiante, Scarlet olhou para o lugar onde tinham colocado as
coisas. Já lá não estavam!
Sentiu um calafrio no coração, e quase ia parando, mas ouviu a voz
enérgica de Robin:
— Caminha, homem… atrás de mim!
O pobre Scarlet, certo de que estava em presença de alguma feitiçaria,
obedeceu, mas fez o sinal da cruz, para se livrar do mal.
Mais adiante, o caminho estreito por onde seguiam foi bloqueado por
dois corpulentos guardas-florestais, de arco às costas e longos cajados na
mão. Fixaram nos dois homens olhares penetrantes, e por um momento
pareceu que lhes pretendiam barrar o caminho. Mas ao olhar arrogante de
Robin, que não se deteve, mudaram de ideia e deixaram-nos passar.
— Quando homem livre e vilão andam juntos — disse um, motejando
— é que a cerveja do senhor deles vai azedar.
— E quando dois couteiros andam juntos — retrucou Robin, com uma
breve risada — é que algum pobre está com a pele jurada.
— Bem te conheço, Roberto de Locksley, assim como teus superiores te
conhecem — és um homem de língua muito solta!
— E eu também te conheço, Hugo Negro — replicou Robin —, votas teu
melhor amigo à ruína, para juntar o pedacinho de terra dele ao teu.
O rosto do homem escureceu de tanto ódio, enquanto o outro ria,
vendo-o assim derrotado. Hugo Negro olhou para Robin com ar de quem
se ia atirar a ele, mas os olhos destemerosos deste o contiveram a
distância, e, voltando-se, afastou-se sem nada dizer.
Robin e Scarlet continuaram a andar e logo saíram da floresta;
atravessavam agora as moitas e arbustos das vastas terras que separavam
as granjas do feudo, naquele lado da floresta.
Chegaram afinal ao topo de uma colina; diante deles a terra se
escalonava em declive até os campos cultivados e os pastos que cercavam
a aldeia. Lá ao longe, além da aldeia, a meio caminho de outro escalão,
ficava a casa senhorial. Scarlet olhou atentamente para todos os lados, a
ver se alguém o vira sair da floresta: deixara o trabalho da construção do
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dique para ir matar o veado, e perguntava consigo se sua ausência não
teria sido notada. Ora, mesmo que o fosse, que lhe importava agora o
tronco e o chicote no lombo nu — sua única recompensa, talvez, amanhã,
quando a gente do mordomo fizesse a ronda e verificasse que apenas fizera
metade do trabalho… que lhe importava? O seu menino, o Gilberto da
Mão Branca, teria naquela noite uma ceia de rei!
Teria mesmo? Lembrou-se então, e de novo o temor apoderou-se dele.
Onde tinham ido o arco e a flecha, e a sua caça, que sumiram? Teria algum
duende, algum elfo, apanhado tudo e escondido, ou ele vira mal? Quem
sabe até se àquela hora já os guardas não tinham descoberto tudo? Cerrou
os dentes e olhou para trás, já com a mão na faca, esperando ver os dois
guardas que lhe vinham no encalço.
— Olá! — disse então Robin, com ar desinteressado. — Lá estão meu
arco e a tua caça, rapaz.
Voltando-se, viu Scarlet aquelas coisas ao pé de um tufo de grama, e
tinha certeza de que um momento antes olhara para ali e nada vira!
— Senhor — disse então, com a voz trêmula de temor —, isto é
feitiçaria! Eu… eu… receio pelo senhor, se seus desafetos souberem que
os maus espíritos que moram nos bosques o ajudam!
— Oh! Scarlet, julgava-te mais sagaz, mas vejo que és tão idiota como os
outros. Nada receies por mim. Meus amigos dos bosques são
absolutamente inofensivos, e não são piores do que eu ou do que tu.
— Senhor, sinto ter falado levianamente… Peço-lhe perdão das minhas
inconsideradas palavras. Minha língua correu mais que meus
pensamentos, porque me assustei ao ver aquelas coisas ali onde nada vira
um instante antes. Mas sei que não poderá haver nos bosques coisas piores
do que há nos castelos fortes e nos palácios dos abades, cujos donos
oprimem os pobres camponeses. Diga-me, senhor, isto que nos ajudou
agora mesmo… foi um duende, como os chamam os homens… um gênio?
Por um momento, Robin olhou tranquilamente para o rosto de Scarlet,
sem nada dizer. Depois respondeu:
— Scarlet, acho que não tarda o dia em que nós estaremos juntos na
floresta. Então eu te apresentarei os amigos que lá tenho. Mas até esse dia,
Scarlet, nem uma palavra do que se passou hoje aqui! Juras?
— Pela Santa Virgem — disse Scarlet, erguendo a mão.
— Amém — replicou Robin, tirando o chapéu e curvando a cabeça ao
ouvir aquele nome.
Depois continuou:
— Agora tira a tua caça e dá-me o arco e o carcás. Pois tenho de voltar à
floresta. E dize ao teu homenzinho, ao teu Gilberto, que Robin deseja que
sare depressa, porque iremos outra vez caçar tarambolas no morro.
O rosto assustado e faminto de Scarlet iluminou-se:
— Oh! O menino não se cansa de falar no senhor, que se interessou
tanto por ele. E suas palavras me dão novo ânimo, senhor.
Quando se separaram, Robin de novo se embrenhou pela mata, mas
seguiu em direção diferente daquela de onde tinham vindo. Olhou para o
sol e apurou o passo, vendo que eram mais de duas horas. Alcançou logo
as árvores, e, atravessando sem vacilação por entre elas, dirigiu-se para o
sul, para a estrada que seguia por milhas e milhas através da floresta de
Barnisdale, em Nottinghamshire.
A passo rápido e enérgico passou pelas clareiras, porque ia ver a quem
mais amava no mundo inteiro. A Bela Marian, como a chamavam, era filha
de Ricardo FitzWalter, de Malaset. Fora ela sempre a sua companheira de
brinquedos, desde menino, no tempo em que andava atirando com o arco
e divertindo-se em exercícios vários nos parques de Locksley, perto do
lugar onde nascera. E, ainda que ela fosse filha de conde e Robin apenas
um burguês, e não possuísse riquezas, amavam-se ternamente e tinham
jurado que somente casariam um com o outro.
Naquele dia ela devia ir do castelo de seu pai, em Malaset, para Linden
Leam, nas vizinhanças de Nottingham; ia passar algum tempo no castelo
de seu tio, sir Ricardo de Lee, e Robin prometera acompanhá-la pela
floresta.
Chegou sem tardança a uma trilha larga, tapizada de densa relva; nos
lugares enlameados, porém, viam-se sinais profundos de sulco de rodas.
Seguiu rapidamente por esse caminho, só parando quando chegou a um
sítio em que outro o cruzava; ali parou e olhou em redor, com a maior
atenção. Depois desapareceu entre as aveleiras que coroavam um
morrinho junto à encruzilhada.
Andando mais um pouco, chegou a uma baixada onde não havia arbusto
algum. A um lado via-se uma extensão coberta de areia, e para ali se
dirigiu. No chão nu havia alguns galhinhos quebrados, que para olhos
desatentos pareceriam ter sido atirados ali pelo vento, mas Robin,
apoiando as mãos nos joelhos, abaixou-se e examinou-os atentamente.
— Um galho inclinado em cima, e oito direitos — disse consigo —; um
cavaleiro e oito servidores a pé, é o que significa. Fizeram alto na estrada
de oeste, não longe daqui. Mas que significa isto?
Ergueu-se e, dando volta, atravessou depressa a estrada por onde viera,
mergulhando na floresta que marginava a estrada, à direita. Com muita
cautela, andava por entre as árvores, tendo o cuidado de não pisar em
nenhum graveto; enquanto ia andando pela grama, espiava em todas as
direções, procurando varar com os olhos penetrantes a meia sombra da
densa mata.
De repente, deixou-se cair de joelhos e pôs-se a abrir caminho assim, por
entre as árvores. Ouvira o leve tinido de um freio. Dali a pouco, espiando
por entre os galhos de um pinheiro novo, viu, no sítio onde era mais densa
a sombra, um bando de homens armados, tendo no meio um cavaleiro de
cota de malha.
Examinou-os ansiosamente, um por um, no empenho de descobrir a que
senhor serviriam, mas os peões vestiam simples gibões sem mangas, e o
cavaleiro trazia um escudo branco, em formato de losango. Sentiu-se por
um momento desconcertado, por não poder saber quem eram aqueles
homens, nem por que motivo estavam assim escondidos no bosque, como
se pretendessem atacar algum viajante que esperavam por ali passasse.
Nisto o cavaleiro passeou o olhar pela floresta e aquietou o cavalo com um
gesto impaciente e uma praga.
Robin reconheceu-o pela voz; luziu-lhe então nos olhos um clarão de
ódio, e a expressão do rosto endureceu.
— Ah! Rogério de Longchamp — disse consigo —, querias apanhar à
força a minha dama, cujo amor não conseguiste por outros meios!
Pois este Rogério era um cavaleiro orgulhoso e tirânico, que pedira a
mão da Bela Marian, mas seu pai lha recusara. FitzWalter amava a filha e,
conquanto risse do amor que ela votava a Robin, não a daria a um homem
de tão má fama como Rogério de Longchamp, irmão daquele soberbo
prelado, o bispo de Fécamp, e favorito do duque Ricardo.
Muitas vezes Robin se indagava ao pensar que sir Rogério de
Longchamp, ou qualquer outro homem, por pior que fosse, podia visitar
sir Ricardo FitzWalter e conversar livremente com Marian; e perguntava
consigo se não haveria de fato algum fundo de verdade nas histórias que o
velho Estêvão de Gamwell, seu tio, lhe contara a respeito de sua linhagem
nobre. Dissera ele que, há três gerações, os antepassados de Robin eram
donos de vastas terras, possuíam muitos feudos e tinham sido senhores da
cidade de Huntingdon. Mas, por terem tomado parte em uma revolta dos
ingleses contra o conquistador normando, suas terras lhes tinham sido
arrebatadas pelo rei, o conde fora morto e seus parentes perseguidos por
toda parte, até caírem afinal na pobreza e na obscuridade.
Hoje todos sabiam que o condado e as terras de Huntington estavam nas
mãos do rei, e que o título fora dado a Davi, irmão do rei dos escoceses.
Mas Robin indagava muitas vezes consigo se não poderia algum dia reaver
alguma coisa das primitivas honras e da categoria de sua família. Se assim
fosse, iria então pedir audaciosamente a mão de Marian, e não lha
negariam.
Um movimento entre os homens emboscados à sua frente veio
interromper-lhe os pensamentos. Um homem, vindo do meio das árvores,
chegou correndo e, indo direito ao cavaleiro, disse-lhe em voz baixa:
— Eles vêm vindo! A dama e um criado vêm a cavalo e os outros a pé.
São nove ao todo, mas apenas criados rústicos.
— Bem, quando chegarem mais perto, eu lhes sairei ao encontro e
segurarei as rédeas da dama. Se o criado que está a cavalo procurar seguir-
me, deita-o abaixo.
Ouvindo tais palavras, Robin sorriu — um terrível sorriso — e tirou do
cinto uma seta. Quase imediatamente ouviu vozes de homens, que vinham
pelo caminho relvado, e o rumor dos cascos dos cavalos; e dali a um
momento sentia o coração aquecido, ao avistar por entre a folhagem a
gentil figura de Marian, que vinha a cavalo. Trazia o chapéu atirado para
trás e conversava com Walter, o mordomo da casa de seu pai, que
cavalgava a seu lado.
Naquele momento o cavaleiro irrompeu de entre as árvores, seguido de
seus homens. O bravo Walter meteu imediatamente o cavalo diante do de
sua senhora e preparou-se para defendê-la com o cajado que trazia; os
outros homens da comitiva também se puseram à frente da moça. Sir
Rogério atirou-se ao mordomo de espada em punho, tirando com ela uma
grande lasca do cajado que ele empunhava. Walter, voltando rapidamente
o bastão, vibrou-lhe uma pancada tão bem aplicada na mão, que a arma lhe
escapou dos dedos. Ficara presa, porém, ao pulso pela correia, e o
cavaleiro, soltando um grito furioso, tornou a segurar.
Um segundo mais e a espada teria atravessado o corpo do valente
mordomo, mas de repente ele foi lançado do cavalo abaixo por um dos
homens de sir Rogério, e caiu ao chão, sem sentidos. Começava a aquecer-
se a luta entre os homens de Marian e os do cavaleiro, mas os pobres
camponeses, com seus cajados e lanças curtas não levavam a melhor
contra as espadas dos bandidos.
Já a mão de sir Rogério apanhava as rédeas que os dedos de Marian
seguravam, e ela, lançando chispas dos olhos, procurava afastar seu cavalo,
quando se ouviu um zumbido, e, olhando para as barras da viseira do
cavaleiro, viu a moça que alguma coisa se introduzia ali e imediatamente
verificou que era a longa haste amarela de uma seta, que tremia naquele
lugar.
Com um profundo gemido o cavaleiro inclinou-se e caiu do cavalo.
Instantaneamente seus homens cessaram o combate; um, o chefe deles,
correu para o cavaleiro morto e arrancou a seta, que se cravara
profundamente em um olho do seu senhor; e todos eles lançaram rápidos
olhares para o largo caminho e para a verdejante floresta que o marginava.
— Isto é tiro de homem — disse um deles —; veio ali da esquerda.
— Sim, mas eu conheço a flecha — ia dizendo o que a arrancara —, é
de…
Mas não acabou. De novo se ouviu um som que vinha do ar, mas desta
vez era como o assobio de uma ave da floresta, e ele caiu, tendo uma
pequena haste negra de seta segura ao peito. O tiro viera do lado direito,
sinal de que havia mais de um atirador a observá-los.
Instantaneamente os outros espalharam-se e correram para o interior da
floresta, mas, antes que o último desaparecesse, uma flecha, não maior do
que a de caçar passarinho, veio do meio das árvores, à direita, e enterrou-
se no ombro do fugitivo; ele estremeceu, mas continuou a correr.
E logo Marian viu Robin, de chapéu na mão, que saía do bosque, vindo
ao seu encontro. Corando, ela curvou-se para lhe dizer:
— Querido Robin, eu sabia que não me abandonarias. Foi um belo tiro, e
deitaste abaixo aquele cavaleiro traidor. Mas, meu querido, se ele é quem
eu penso, sua morte vai prejudicar-te muito!
Ela estendeu-lhe a mão, que Robin beijou carinhosamente.
— É sir Rogério de Longchamp, querida; mas, fosse o rei Henrique em
pessoa que se houvesse emboscado para te fazer mal, e eu não teria
poupado a minha seta!
Pousando nele o olhar suave, mas ainda assim cheio de altivez, Marian
continuou:
— Mas, Robin querido, o irmão dele, o bispo, vai perseguir-te agora, e te
proscreverá por causa disto. E tu vais perder tuas terras e teu nome por
minha causa! Oh! Robin! Robin!… Mas eu vou aconselhar-me com sir
Ricardo de Lee, que te estima muito, e ele me dirá de que maneira
havemos de conseguir do bispo o teu perdão.
Mas Robin, com voz enérgica e olhar altaneiro, disse-lhe logo:
— Minha boa Marian, eu não quero o perdão de nenhum prelado
orgulhoso por qualquer dano que cause à perversa ninhada dos padres. Eu
sabia que, mais cedo ou mais tarde, havia de fazer alguma coisa contra os
malfeitores que vivem em fortes castelos ou se espreguiçam em cômodas
abadias e oprimem e prejudicam os pobres e os fracos. Afinal está feito, e
sinto-me contente. Não te preocupes por minha causa, querida. Agora vou
conduzir-te a um lugar seguro, antes que aqueles fujões deem o alarme.
Voltando-se então para o pobre mordomo, que, abatido e confuso, se
achava sentado na estrada, disse-lhe:
— Walter, reanima-te, valente rapaz, e vela por tua ama.
E aos pobres vilões, quase todos feridos:
— E vocês, rapazes, não pensem nos seus ferimentos enquanto sua
senhora não estiver a salvo. O cavaleiro morto tem amigos, tão perversos
como ele, que nos podem cair em cima daqui a pouco — e não será tão
fácil escapar-lhes! E agora, sigam para diante, até a encruzilhada, que lá
estarei com vocês dentro em pouco.
Ajudou Walter a montar, e a Bela Marian e seus fiéis servos
prosseguiram a viagem. Depois que partiram, Robin arrastou o cavaleiro
morto para fora da estrada, levando-o para dentro do mato, ergueu-lhe a
viseira, colocou a espada sobre o peito do cadáver, dobrando-lhe os braços
por cima, como se o defunto estivesse beijando a cruz da espada. Depois,
descobrindo-se, ajoelhou-se e disse uma breve oração pelo repouso da
alma do cavaleiro. Fez a mesma coisa com o corpo do patife que fora
morto pela segunda seta. Feito isso, apanhou suas duas setas e a outra
menor, deu uma cutilada na anca do cavalo do cavaleiro, que saiu em
disparada por um caminho da floresta, que o levaria depressa para longe.
Pretendia desse modo despistar seus perseguidores.
Dando então alguns passos pelo mato, na direção que tinham seguido os
fugitivos do cavaleiro, levou a trompa aos lábios e tirou dela um som
penetrante, que terminou em estranhas notas interrompidas.
Dirigiu-se então, apressadamente, para onde estava a Bela Marian, e,
segurando a rédea do cavalo da moça, foi-se afastando da trilha; passando
por caminhos secretos e por estreitas veredas que mal se viam, andava
rapidamente, e dentro em pouco se achavam todos internados no mais
profundo do bosque, em lugares que nenhum dos que o acompanhavam
conhecia.
A Bela Marian, contente porque Robin a acompanhava, não tinha medo
do silêncio nem das sombras que a cercavam, mas muitos camponeses,
andando em coluna pelo estreito caminho, feito pelos cascos dos cavalos,
persignavam-se ao passar por algum grupo mais denso de árvores, ou
quando atravessavam as clareiras solitárias, onde tudo era tão silencioso e
escuro que se diria não ter passado por ali nenhum ser vivo, desde o
começo do mundo.
Para aqueles espíritos simples, estavam arriscando não somente a vida,
mas a sua alma imortal, aventurando-se assim naqueles lugares selvagens,
retiro dos demônios da floresta, de duendes e feiticeiras. Caminhavam
muito juntos, e o último a cada passo olhava para trás, cheio de medo. E
todos deitavam olhares furtivos para um lado e outro, entre os troncos
musgosos das árvores, esperando a cada instante ver os olhos maus de um
elfo a espiá-los. Ou, quem sabe, receando que feiticeiras ou bruxas, de
enormes bocas retorcidas, saltassem de trás de alguma daquelas enormes
cortinas de hera ou de cuscuta, pendentes de algumas árvores muito
antigas.
O único rumor que ouviam era o som abafado dos próprios passos na
grama espessa, ou, de vez em quando, o estalo de um graveto. De tempos
em tempos vinha do meio da densa folhagem, acima deles, o grito de um
pássaro; ou, de algum tufo de arbustos, um estranho e desagradável som
— chip! chip! chip! — mas nada viam. Ouviram também uma ou duas
vezes um murmúrio de água — era um pequenino e solitário córrego,
meio oculto pela vegetação que crescia entre as raízes das árvores.
Passaram por uma vasta clareira, no meio da qual havia dois montículos
verdes, ao lado um do outro. A esta aparição, os pobres rústicos ficaram
ainda mais assustados.
— Casas de duendes! — cochichavam entre si, apressando ainda mais
os passos.
— Não sei se nossas almas escaparão hoje daqui! — disse um, a meia-
voz.
— Por que nos trouxe ele por estes lugares medonhos? — murmurou
outro. — Os gnomos hão de estar nos espiando, e vão fazer alguma
feitiçaria, e nossos ossos ficarão branqueando nesta floresta ímpia, até o
dia do Juízo?
E, de tão aterrados, amontoavam-se contra as ancas do cavalo de Walter,
que os avisou:
— Para trás, camaradas! Vocês não sabem como meu cavalo é fogoso, e
se ele lhes der algum coice, estas cabeças, por mais duras que sejam, não
resistirão aos seus cascos…
Já então se via, pela luz do céu, que não tardava o crepúsculo. Pouco
falara Robin, desde que começara a rápida fuga pela floresta, mas agora
voltou-se para Marian, dizendo-lhe com um sorriso:
— Perdoa-me, senhora, essa aparente grosseria. Mas os amigos de
Rogério de Longchamp, que estão lá no Castelo da Malvadez não são
homens que a gente despreze. Nem teus ouvidos podem ouvir os atos
cruéis que têm praticado! E tratei de me apressar para escapar-lhes. Terei
exigido de ti mais do que o permitiriam as tuas forças?
— Não, não, querido Robin — disse Marian, olhando-o suavemente. —
Eu sabia o que te preocupava. Por isso não quis perturbar-te com
conversas. Mas que Castelo da Malvadez é esse? Não sabia que o castelo
de Wrangby tinha esse nome.
— É assim que o denominam as pobres gentes que pertencem ao seu
dono, por causa dos atos inomináveis que ali são praticados por ele e por
seus divertidos camaradas, Isenbart de Belame, Niger le Grym, Hamo de
Mortain, Ivo de Raby e outros.
Ouvindo tais nomes, Marian empalideceu e disse tremendo, a meia-voz:
— Tenho ouvido falar deles… Vamos, mais depressa! Não estou
cansada, Robin, e sinto-me ansiosa por te ver a salvo no castelo de sir
Ricardo.
— Nada receies por mim — disse ele a rir. — Enquanto tiver meu bom
arco, e a floresta quiser abrigar-me, poderei rir de todos os que me querem
matar. Não tarda que te vejas ao lado de teu tio, e abrigada dentro das
fortes muralhas de seu castelo.
De repente, de alguma parte no lusco-fusco da floresta, ouviu-se um
rumor: parecia o grito de algum animal, seguro nas garras de um falcão.
Robin parou e espiou para a frente. Logo depois ouviu-se o uivo solitário
do lobo — os criados que vinham atrás estremeceram, mergulhando
também os olhos na densa sombra da floresta.
Robin adiantou-se e soltou um grito semelhante ao do galo da campina
chamando a companheira; depois levou o cavalo de Marian para a frente, a
passo. Dali a pouco chegavam ao sopé de uma pequena colina, e,
aproximando-se do cimo, viram o sol poente, que avermelhava por entre
as árvores. Chegando ao alto, viram que as árvores cediam lugar a um
vasto tabuleiro de relva verde, que descia o declive, e, lá adiante, para além
das pastagens, assentava um castelo; e no caminho trilhado, não longe da
floresta, avistaram dois cavaleiros que vinham na sua direção.
— Creio — disse Robin — que aqueles cavaleiros são sir Ricardo e seu
parente, sir Huon de Bulwell.
— E são eles mesmos — replicou Marian —; sem dúvida foram ao meu
encontro, até a estrada real, e hão de estar admirados, a pensar no que
teria acontecido comigo. Chama-os, querido Robin, e tu, Walter, corre
adiante e conta-lhes que, graças ao meu amigo, Roberto de Locksley, aqui
estou, sã e salva.
Robin soprou na sua trompa. Os cavaleiros voltaram a cabeça, ao ouvir o
som, e Marian, adiantando-se, agitou o lenço para eles. Reconhecendo-a
imediatamente, abanaram as mãos para cumprimentá-la, dirigindo-se para
o grupo.
Marian desmontou, para descansar as pernas entorpecidas, e, andando
ao lado do namorado, perguntou-lhe:
— Robin, dize-me agora que queriam dizer aqueles gritos que ouvimos
há pouco? Parecia que alguém te fazia um sinal, e tu lhe respondias.
— Aquilo queria dizer, querida, que um amigo meu lá da floresta viu
aqueles homens a cavalo e achou que podiam ser inimigos. Mas pensei que
não poderiam ter chegado aqui tão depressa como nós e que os homens
haviam de ser camaradas de sir Ricardo, que andavam à tua procura.
Avisei-o então de que me parecia que tudo estava em ordem, e assim era
mesmo.
— E quem são esses amigos que assim velam por ti, quando atravessas a
floresta? Foi esse mesmo quem atirou aquelas setas pequenas nos homens
de sir Rogério?
— Vou dizer-te, minha querida. São habitantes da floresta, que eu livrei
um dia de uma morte horrível, das mãos de homens cruéis e perversos. E
desde então têm sido sempre meus amigos dedicados, que me vigiam e
protegem, quando estou nos bosques.
— Fico contente de saber que tens amigos assim, caro Robin. Tiras-me
um peso do coração, dizendo-me que tens guardas tão fiéis. Porque muito
receio que precises deles dentro de muito pouco tempo!
Já então tinham chegado sir Ricardo de Lee e sir Huon, e grande foi a
sua alegria, ao verem que Marian estava salva; muito os afligira o fato de
não a terem encontrado na estrada por onde costumava vir, e já iam de
volta ao castelo com o fim de reunir um corpo de criados para baterem a
floresta em sua procura.
Quando souberam da tentativa de rapto, e mais, que Robin matara sir
Rogério, ficaram muito sérios, e sir Huon sacudiu a cabeça. Mas sir
Ricardo, um homem já grisalho, de nobre aspecto, voltou-se para o moço e
apertou-lhe a mão com a maior cordialidade, dizendo:
— Livraste a terra de um vil opressor, de um cavaleiro traidor, e eu te
agradeço de todo o coração. O mal que fazia à gente pobre, os roubos
contra órfãos, sua crueldade com as mulheres — todos os seus crimes há
muito que clamavam por vingança. E regozijo-me de saber que foi a tua
boa seta que lhe varou o cérebro perverso.
— O que dizes é verdade — disse gravemente sir Huon —; mas eu
penso no que Robin pode vir a sofrer. O bispo não deixará o irmão sem
vingança, nem os camaradas de Rogério hão de descansar enquanto não
prenderem Robin, levando-o para a casa dos suplícios, a que deram o
adequado nome de Castelo da Malvadez.
— Nada receies por mim — disse Robin, tranquila e firmemente. —
Espero escapar a todas as ciladas e armadilhas deles. Mas tu e o pai de
minha querida dama é que devem tomar o maior cuidado, pois, no seu
despeito, aqueles maldosos cavaleiros são capazes de capturar a Bela
Marian, vingando-se nela. De minha parte, farei tudo quanto puder para
resguardá-la.
— Tens toda a razão — disse sir Ricardo. — Não pensei nisso, mas com
toda a certeza Isenbart de Belame e Niger le Grym hão de querer apanhar
nossa linda sobrinha, que seria para eles uma boa presa. Que Deus e Nossa
Senhora nos defendam a todos de suas perversas maquinações!
— Amém! — disse Robin. — Enquanto isso, ficarei de olho no Castelo
de Wrangby e seus vis senhores.
Durante três dias Robin e Marian, em companhia de sir Ricardo e de
Lady Alice, sua esposa, passaram o tempo muito agradavelmente, caçando
pelos cerrados com falcão ou atirando nos bosques em javalis. À noite, no
salão, jogavam a cabra-cega, ou dançavam ao som das violas, ou jogavam
damas ou xadrez, quando não ficavam a ouvir os menestréis, que cantavam
para eles, ou lhes contavam histórias dos cavaleiros do rei Artur, de
Rolando e de Olivério, seu amigo predileto, de Ogier da Dinamarca, ou
Reinaldo… e de como se haviam todos sumido no reino da Fada Morgana.
No quarto dia, porém, Robin foi à floresta caçar passarinhos. E quando
ali estava, sentado em um cômoro, ouviu umas pancadinhas, que pareciam
de pica-pau. Ergueu os olhos para os galhos da aveleira que o abrigava e
viu o rosto de um homúnculo que espiava por entre a folhagem.
— Desce, Ket, e dize-me que novidades trazes, rapaz.
Num instante o homenzinho escorregava da árvore abaixo e sentava-se
ao lado de Robin. Não tinha mais altura que um menino de 12 anos, mas
era um homem adulto, de peito largo, braços e pernas compridas e
felpudas, cujos músculos sobressaíam como fios de arame. Tinha o cabelo
negro, abundante e crespo, andava descalço e vestia apenas umas calças de
pele de veado, muito justas, e que lhe iam até os joelhos, e uma jaqueta de
couro grosso, amarrada com laços na frente. Um sorriso iluminou-lhe o
rosto franco e jovial, quando olhou para Robin, e seus olhos, vivos e
brilhantes, ainda que meigos como os de um veadinho, pousaram no rosto
de Robin com um respeito que tocava à reverência.
— Seguiste os homens que fugiam. Aonde foram?
— Pela floresta, rumo do noroeste, até que chegaram ao ribeiro;
atravessaram-no em Stakes e atravessaram o pântano de Ridgeway.
Rodearam o Mato da Bruxa e seguiram pela Caverna do Matagal, e vi então
aonde pretendiam ir: pela Árvore Velha, e pela Pedra de Cwelm, subiram o
Morro da Forca, foram pelo Carvalho da Baliza, até que enfim chegaram ao
Morro do Defunto; e então, pela passagem das Pedras Vermelhas, foram
para o Castelo da Malvadez. Vigiei a noite inteira, do Carvalho da Baliza. E,
pela madrugada, vi saírem do castelo três cavaleiros. Um foi para o sueste,
e iam com ele, também montados, dois dos patifes que eu tinha seguido.
Dois cavaleiros se dirigiram para leste, e fui atrás deles. Levavam dez
bandidos montados; foram pela floresta de Barnisdale, e deixei-os já na
estrada de Doncaster.
— Fizeste bem, Ket. E depois?
— Segui para tua casa, para Outwoods, pela floresta de Barnisdale;
encontrei teu mordomo, Scadlock, no Campo do Diabo. Estava muito
triste, porque tinha visto na véspera Guy de Gisborne e dois monges perto
de tuas terras; viu que falavam apontando para os teus campos. Acha que
vão cair sobre o que é teu as pragas daquele Judas, sir Guy, e que vais ficar
arruinado. Está ansioso por falar contigo.
Robin ficou calado, considerando; depois perguntou:
— Nada mais ouviste? Não sabes de Scarlet e do rapazinho?
— Não os vi, mas à noite esgueirei-me até a aldeia e fui escutar por uma
fresta na choça onde os homens bebem cerveja, a que tem o ramo na
porta. E depois de os aldeões haverem bebido um bocado, só saíam de suas
bocas palavras de ódio e de indignação.
— Que diziam eles? E quantos julgas que estariam lá?
Erguendo ambas as mãos, Ket mostrou os dez dedos; depois abaixou
uma e mostrou cinco, e depois mais dois dedos.
— E eram os jovens ou os mais velhos?
— Muitos deles diziam palavras arrebatadas, por isso penso que seriam
jovens. Os que sentiam arder mais as costas falavam com mais amargura.
Parece que as surras tinham sido cruéis no tronco; um ainda ficara no
poço, porque não se pôde mover, de tão maltratado; outro foi marcado
com ferro em brasa, porque o mordomo afirmou que era um ladrão — e
era este o mais encarniçado de todos; e muitos diziam que melhor seria
não terem nascido do que viver semelhante vida. Que o trabalho que têm
de executar nas terras do senhor é acima do que lhes cumpre fazer, e,
enquanto isso, seus campos ficam sem cultivo e terão de morrer de
miséria. Falavam alguns em fugir para a cidade, porque assim poderão
tornar-se homens livres — se ficarem lá um ano e um dia —; outros,
porém, dizem que tanto se pode apanhar a peste e as doenças na choça da
aldeia como no casebre da cidade, e por isso preferem fugir para os matos,
onde poderão viver dos veados do rei.
— Sim! Os pobres não têm amigos hoje em dia — disse Robin,
tristemente. — Os próprios filhos do rei se revoltam e guerreiam contra o
pai; os lordes e os monges brigam pelo poder e para terem terras mais
extensas, e esfregam o rosto dos servos na terra que eles cavam, e os
maltratam… Ket, vou hoje para casa. Vai procurar teu irmão Hob; voltarei
depois de me despedir de meus amigos.
Pegou as aves que tinha matado e voltou para o castelo de sir Ricardo,
para se despedir de Marian. Ket, a quem chamavam o Gnomo, esgueirou-
se por entre as árvores e desapareceu.
Naquele dia, quando a sombra das árvores, à luz do sol poente, se
alongava sobre os campos, e a serenidade da hora só parecia trazer ao
mundo pacífico pensamentos felizes, Robin seguia a passos apressados
pela margem da floresta de Barnisdale, onde esta lindava com o campo.
Dali contemplava a sua casa e as cabanas dos cinco camponeses que
faziam parte de suas terras. A casa parecia estar na maior tranquilidade.
Talvez Scadlock, o mordomo, estivesse em casa, mas os lavradores deviam
achar-se ainda no campo. De repente pareceu-lhe que tudo estava quieto
demais! Não via crianças brincando no chão poeirento, ao pé das choças,
cujas portas estavam todas fechadas. Ia continuar em direção à casa
quando viu uma mulher, uma mulher de servo, que saía da porta do seu
casebre e se dirigia para a sebe. Lá parou, olhando fixamente para alguém
que certamente vinha dos campos, mas do outro lado da casa. E
gesticulava com ambas as mãos, como se fizesse sinal para que a pessoa se
afastasse. Mas Robin não via a quem se dirigiam aqueles sinais.
Afinal parece que ela viu que fora compreendida, porque voltou
cautelosamente e entrou em casa, fechando a porta.
Não! Havia ali alguma coisa estranha, disso tinha ele certeza. Foi-se
aproximando cautelosamente do caminho, ocultando-se entre as árvores.
De repente viu, debaixo de uma grande árvore, um homem armado. Oculto
detrás do tronco de uma faia, Robin observava o homem, que estava de
costas para ele. Era evidente que fora posto ali para impedir que alguém,
vindo da floresta, se aproximasse de sua casa. Do lugar onde estava, o
guarda podia ver bem a frente da casa, e parecia naquele momento muito
empenhado em observar alguma coisa que lá se passava. De vez em
quando ria, ou soltava um grunhido de satisfação.
Era terrível o olhar de Robin. Reconheceu, pela túnica de pano vermelho
e pelo elmo, que era um dos criados armados que o abade de Santa Maria,
senhor do feudo, tinha recrutado para sua guarda de honra e para
aumentar ainda mais a criadagem preguiçosa e opressora. Com a maior
cautela escondeu-se entre duas árvores, oculto pelo tronco a que se
apoiava o homem. Furtivo e silencioso como um gato-do-mato, foi indo
até ficar separado do incauto soldado apenas pelo tronco da árvore.
Ergueu-se então em toda a sua altura, mas nesse movimento sua perna
quebrou um gravetinho de encontro à árvore. O homem, ao ouvir o ruído,
voltou-se, mas já os dedos de Robin lhe apertavam a garganta, deixando-o
impotente entre aqueles tentáculos de ferro. O soldado desmaiou, e Robin,
deitando-o no chão, amarrou-lhe depressa mãos e pés, pondo-lhe uma
mordaça na boca, para que não pudesse gritar dali a pouco, ao voltar a si.
Quando se voltou, para ver o que tinha chamado a atenção do homem,
um rugido escapou-lhe da garganta. Em frente da casa estavam, amarrados
a postes, Scadlock e três camponeses. Tinham as costas nuas, e diante de
cada um estava um corpulento soldado, empunhando uma longa correia
cheia de nós.
Pouco mais além se achavam outros homens armados e o seu chefe,
Huberto de Lynn, a quem Robin odiava por sua insolência, brutalidade e
crueldade. No meio do silêncio da tarde tranquila, seu ouvido aguçado
podia ouvir as risadas de Huberto e de seus homens. E quando tudo estava
já preparado, retiniu a voz do chefe:
— Cem laçaços, primeiro, naqueles cães que resistiram aos criados do
seu senhor; depois uma seta para cada um. E agora… vamos!
Quase como se um só homem movesse os quatro chicotes, ergueram-se
eles no ar e caíram sobre as costas nuas que, desde que serviam a Robin,
nunca tinham sido assim feridas!
Abrigado sob a galharia das faias, Robin pegou no seu arco e nas
compridas setas, que tinha largado para se lançar sobre o homem. Tangeu
a corda do arco, viu que estava em boas condições, e depôs todas as setas
diante de si. Ajoelhou-se então, murmurando uma oração a Nossa
Senhora:
— A luz é pouca, bondosa e doce Mãe de Cristo, mas guia minhas setas
para os malvados corações daqueles homens. Tenho seis flechas e, de tanta
pena que tenho da minha pobre gente, quero ferir primeiro o que tem o
coração mais feroz, Huberto de Lynn; depois os quatro dos chicotes.
Ouve-me, bondosa Nossa Senhora, por amor de teu Filho, que foi tão
enérgico contra a injustiça e tão misericordioso com os fracos. Amém.
Preparou a primeira flecha, visando o peito de Huberto. Cantando seu
canto profundo, como um hino de alegria, a grande flecha arremessou-se
no ar e lá seguiu o seu destino. E quando ela ia apenas a meio caminho,
outra, com um canto tão triunfante como a primeira, zumbia atrás dela.
Soltando um grito, Huberto pôs um joelho em terra, com a seta a tremer
no peito. Tentou arrancá-la, mas a vida já lhe fugia. E ele caiu para um
lado, morto. No mesmo instante o ar parecia se haver enchido de abelhas
enormes. Primeiro um homem soltou o chicote, caindo ao chão, com as
mãos sobre a seta que se lhe cravara do lado. Outro caía sem um
murmúrio; e mais outro. Um, tendo o braço preso ao corpo por uma seta,
correu pelo campo até cair.
Quatro tinham ficado incólumes, mas tão cheios de pavor que saíram
correndo em todas as direções. Tão aterrado estava um deles que veio
correndo justamente para o caminho em cujo extremo estava Robin, ainda
ajoelhado, terrível no seu furor, com a última seta preparada na corda. O
homem corria, de braços abertos, olhos cheios de terror, sem ver por onde
ia.
Chegando a alguns metros de Robin, gritou:
— Ó tu, homem ou demônio! Não atires! Tuas flechas falam, quando
vão pelo ar. Eu me rendo! Eu me rendo!
Caiu diante de Robin, gritando:
— Serei seu servo, senhor! Eu era um homem de bem ainda há dois dias,
e sou filho de homem de bem, e meu coração se revoltava contra o maldito
trabalho que me obrigavam a fazer!
Robin levantou-se, e o homem segurou-lhe as mãos e pôs a cabeça entre
elas, em sinal de fidelidade.
— Pois bem — disse Robin energicamente. — Não vás esquecer a
palavra empenhada. Quanto tempo estiveste com Huberto e seus
homens?
— Somente dois dias, senhor — respondeu o homem, cujos olhos
simples e honestos pareciam já menos dilatados pelo terror. — Sou
Dudda, ou Dodd, filho de Alstan, um bom camponês de Blythe, e foi
porque meu senhor me castigou injustamente que fugi para os matos. Mas
tinha fome, precisava comer, e fui bater à porta da abadia e pedi pão. Eles
me deram comida e, vendo que era forte, disseram que eu iria usar armas.
Por algum tempo senti-me contente, até que, vendo-os se gabarem de
maldades cometidas contra pobres camponeses como eu, comecei a odiá-
los.
— Levanta-te, Dodd; lembra-te daqui por diante do teu sangue plebeu e
não faças mal aos da tua espécie. Vem comigo.
Robin foi até o pátio da sua casa, soltou o pobre Scadlock e os outros
homens, depois entrou em casa e procurou unguentos para untar as costas
pisadas e despedaçadas.
Indagou então de Scadlock o que acontecera.
— Foi ontem, senhor, que eles te declararam proscrito, e hoje de manhã
Huberto de Lynn veio tomar posse de tuas terras para o senhor abade. Nós
— eu, Ward, Godard, Dunn e João — não podíamos suportar que se
consumasse essa injustiça e assim, como loucos, procuramos escorraçá-los
com varas e forcados.
— Ah! Pobres rapazes… ingênuos e fiéis, vocês iriam pagar com a vida
esse gesto. Mas agora venham comer, depois veremos o que havemos de
fazer.
Já era noite fechada. Chamou-se uma das mulheres das choças; aceso o
fogo, não demorou muito que começassem eles a esvaziar as tigelas de
sopa quente, e com isso seu espírito também se reanimava. Nem o soldado
recapturado foi esquecido: deram-lhe alimento e depois o acomodaram
em lugar seguro para passar a noite.
— Senhor — disse Scadlock, quando voltava com Robin daquela tarefa
—, que pensas fazer agora? Será possível que a tua vida seja de hoje em
diante a de um homem fora da lei, que tem de viver refugiado na floresta,
como se não tivesse casa?
— Não há outro remédio — respondeu Robin, com um riso feroz. — E
ficarei contente com isso, porque nos matos hei de ver se consigo dar aos
ricos e aos orgulhosos alguma amostra do que eles dão aos pobres que
governam!
— E eu irei com o meu senhor, com a maior alegria. E o mesmo farão os
outros, porque de hoje em diante eles não podem esperar misericórdia de
Guy de Gisborne.
De repente ouviram que vinha dos campos o som de muitas vozes, e,
escutando atentamente, distinguiram o ruído de passos.
— É Guy de Gisborne com seus soldados! — disse Scadlock. — Senhor,
temos de fugir para os bosques imediatamente!
— Não, não! Pensas então que Guy viria grasnando assim, como um
bando de gansos, para me avisar de sua chegada? São os camponeses do
feudo, embora eu não saiba o que andarão fazendo fora tão tarde. Amanhã
hão de pagar, quando o mordomo vier a saber…
— Não, senhor — disse uma voz —; amanhã eles não estarão na
escravidão, se tu quiseres conduzir-nos.
Era a voz de um dos camponeses mais velhos, que tinha entrado antes
que chegasse a multidão. Era Will Stuteley, conhecido por Will, o besteiro,
um homem sossegado e refletido, de quem Robin sempre gostara. Tinha
sido mordomo, ou chefe de servos no seu tempo.
— Que é isso, Will? Que querem vocês comigo? Para onde havia eu de
conduzi-los?
— Escuta-os, senhor. Eles estão com o coração cheio, mas têm todos o
estômago vazio, tão oprimidos e sacrificados no trabalho foram neste
último ano. Primeiro foi a perda da colheita. Depois veio um inverno
rigoroso, depois um verão de fome, e um senhor ávido, que nos esfola. O
que te digo é que já não posso mais suportar isto, assim mesmo velho
como estou!
— Pois bem, Will, aí estão eles — disse Robin, vendo entrar no pátio
uma multidão de formas escuras. — Então, rapazes! Que querem vocês?
— Nós queremos ir para a floresta, senhor! — gritaram alguns.
— Estamos cansados de tanto sofrer, e não podemos mais suportar isto!
— exclamaram outros.
Como não estavam habituados a falar muito, não podiam exprimir
melhor seus sentimentos; ficaram, pois, à espera, supondo que aquele que
era muito mais sábio do que eles — e ainda tão cheio de bondade — havia
de compreender toda a amargura que traziam no coração.
— Pois bem — disse ele com energia —, mas se vocês fogem para os
bosques, que será de suas mulheres e filhos?
— Nada sofrerão. Nossa saída até lhes dará mais valor aos olhos do
senhor e de seu mordomo. Nós não somos donos deles. São bens móveis,
pertencentes ao senhor — corpos e almas! Se nós formos, sobrará mais
alimento para eles.
Reconheceu Robin que não era errada a conclusão. O senhor e seu
mordomo não exerceriam vingança sobre as mulheres e filhos dos vilões
que fugissem. É preciso que não se interrompa o trabalho do feudo, e as
mulheres e crianças ajudariam muito! Algumas velhas podiam manter
pequenos terrenos, que eram cultivados pelos filhos ou por homens mais
pobres, nas aldeias que não tinham terras arrendadas, os quais se
contentavam em trabalhar para quem lhes desse sustento e abrigo, sem
outra paga.
— Quantos são vocês? Há alguns velhos?
— Somos trinta. Somos quase todos moços, e mais avisados que nossos
pais — resmungou um deles.
— Ou talvez nos dias de hoje haja menos paciência para sofrer! —
replicou outro.
— Assim, vocês querem deixar o trabalho do feudo e os serviços, que
são obrigados a fazer para o senhor, sobre os ombros dos velhos, das
mulheres e das crianças?
Robin tinha já resolvido no seu íntimo que, se aqueles homens iam
abandonar o seu senhor, teriam de considerar primeiro todas as
consequências do seu ato. E continuou:
— Vamos, rapazes! É ação de homem, salvar a pele e deixar toda a
labuta, todo o excesso de trabalho pesado nas costas daqueles que são
justamente os menos capazes de suportar o sol do meio-dia e as chuvas do
inverno?
Muitos deles tinham-se deixado aquecer de entusiasmo ao ouvir as
palavras dos mais exaltados, quando estavam bebendo na taberna, e agora,
na escuridão, o ar frio da noite lhes arrefecia a coragem; olhavam para um
lado e outro, como se procurassem passagem para tornar às suas choças,
onde dormiam mulheres e filhos.
Mas outros, de fibra mais forte, e que tinham sofrido mais, ou que
tinham a sensibilidade mais aguda, não se davam por vencidos. Alguns
disseram que não eram casados, outros que não podiam mais suportar o
governo cruel de Gay de Gisborne.
De súbito ouviram passos rápidos que se aproximavam e retiveram a
respiração para escutar. Os mais covardes, ouvindo aqueles sons, se foram
esgueirando discretamente e fugiram.
Nesse momento rompeu por entre a multidão um homenzinho de
pequena estatura, que veio cair quase aos pés de Robin. Vinha arquejante e
falava com estranho acento de ansiedade:
— Bico calado, rapazes!
— É Much, o filho do moleiro! — disseram os homens.
E ficaram à espera, pois sentiam, por intuição, que sucedera alguma
coisa espantosa; sabiam que Much era um homenzinho destemido e que
não se comovia facilmente.
— Nada de conspirações, rapazes! — continuou ele, com a voz
entrecortada. — Vocês não passam de servos, que não valem mais do que
o gado que tratam, ou os porcos que criam… escriturados nos
pergaminhos dos advogados com os arados, os alviões, as carroças e os
telheiros em que se abrigam, e que o senhor também poderá vender,
quando lhe der na veneta!
E tão grande era o seu desespero, tamanha a comoção que lhe causava o
fato, que chorava enquanto falava.
— Digo-lhes que se vão arrastando para os chiqueiros em que vivem —
continuou ele — e não pensem que têm voz ativa ou vontade, no que lhes
acontecer. Porque o senhor está desgostoso com os seus servos
indomáveis, e amanhã… amanhã ele vai vendê-los para longe de suas
terras!
Ergueu-se então um grande brado de surpresa e raiva de todos aqueles
homens.
— Vender-nos? — gritavam eles. — Ele vai vender-nos?
— Sim, vai vender uns dez de vocês. Já está escrito o pergaminho que
passa vocês a lorde Arnaldo de Shotley Hawe…
— Aquele demônio encarnado! — exclamou Robin. — Inimigo de Deus!
Aquele esfolador da pele dos pobres camponeses! Mas, rapazes — vendê-
los! Oh! O miserável!
Ergueu-se então das gargantas dos vilões um brado terrível como o
bramido de touros enfurecidos. Oh! Era verdade que, pela lei, os pobres
camponeses podiam ser vendidos como gado, mas naquele feudo jamais se
vira semelhante coisa. Tinham todos eles seu quarto de jeira de terra, em
troca dos serviços prestados, e o costume era que o filho herdasse a terra
que o pai cultivava, e todas as coisas eram feitas conforme os mais velhos
diziam — esse era o costume no feudo.
Mas agora… verem-se desenraizados do lugar em que eles e sua gente
tinham vivido durante muitas gerações, e vendidos como gado na feira!
Oh! Isso não se podia suportar!
— Quem te deu estas notícias tão más, homem? — indagou um.
— Foi Rafe, criado do mordomo de lorde Arnaldo. Encontrei-o na
cervejaria, em Blythe, e disse-me isto tudo dando risadas e contou que Guy
de Gisborne dissera ao mordomo que nós éramos uma súcia de patifes
insubordinados e insolentes, que sua senhoria havia de ter prazer em
domar.
— E dizes que somos dez os vendidos? — indagou lá de trás uma voz
tímida. — Sabes quais são?
— Que importa isso? — bradou outro. — Isto nos toca a todos. Quanto
a mim, pela Santa Cruz, fugirei para a mata, mas antes de ir hei de deixar a
minha marca no mordomo!
— Rafe não sabia quais eram — disse Much. — Mas isso não importa
mesmo, como disse Rugo de Forde. São dez. São os que têm dito palavras
mais duras contra Guy de Gisborne e que têm sentido mais o azorrague
nas costas lá no poste.
— Quantos estão aqui, rapazes? — perguntou Will, o besteiro, com voz
rouca.
— Éramos trinta, há pouco — disse um, rindo rispidamente. — Mas
agora somos apenas 14, contando Much.
Lembrou-se Robin, naquele momento, que não vira seu amigo Scarlet
entre os homens, apesar de ter sido o mais ousado na oposição às
exigências injustas e exações opressivas do mordomo.
— Estão aqui Scarlet e seu menino? — perguntou ele.
— Will Scarlet está lá na cova! — informou Much. — Está meio morto,
com os cem laçaços que levou. Amanhã vai ser levado para Doncaster,
onde está a justiça do rei, para que lhe cortem a mão direita, por ter
matado um veado real.
— Pela Santa Virgem! — gritou Robin — Não será assim! Eu vou tirá-lo
da cova!
E ia partir, mas muitas mãos o seguraram e teve de voltar.
— Senhor! Nós vamos contigo! — disseram os outros.
— Escuta, senhor Robin — disse Will, o besteiro, com voz tranquila
mas áspera —, aqui estamos 14 homens, cansados das maldades que
sofremos diariamente. Se nada fizermos agora contra o malvado senhor
que nos tortura debaixo do seu poder, permaneceremos escravos toda a
vida. Eu, por mim, antes quero rebentar de fome na floresta do que
continuar a sofrer tormentos e suportar um senhor injusto! E vocês,
rapazes, que dizem?
— Sim, sim! Iremos para a floresta! Quer o senhor Robin nos leve ou
não — nós iremos do mesmo modo!
Robin não se demorou a tomar uma resolução.
— Rapazes, estarei com vocês! Já executei um ato que devia ter feito há
mais tempo, e certamente a esta hora já fui declarado proscrito e fora da
lei. Os soldados do abade estiveram aqui na minha ausência e
reivindicaram minhas terras. Scadlock e meus bons rapazes resistiram e
iam ser mortos por causa disso. Mas, com meu fiel arco, atirei nos homens
do senhor, e seus corpos lá estão enfileirados ao pé do muro.
— Vi-os quando cheguei — disse Will, o besteiro — e achei esplêndido!
Se já não tivesses matado Huberto de Lynn, eu tinha uma flecha, benta por
um bom ermitão, para o seu coração perverso, pelo mal que ele fez ao meu
querido filho, o Cristóvão. Agora, rapazes, levantem todos a mão e jurem
que serão dedicados e fiéis até o seu último dia ao nosso bravo chefe,
Roberto de Locksley.
Ergueram todos a mão, e em tom solene prestaram o juramento.
Robin disse-lhes então:
— Agora, rapazes, vamos, e depressa!
Num momento o pátio estava vazio e viam-se as sombras escuras de
Robin e seus homens, atravessando os campos, à luz das estrelas.
Ninguém olhou para trás, quando passavam pelo Bosque de Fangthief,
indo dar na planície, atrás da aldeia. Dali avistavam confusamente as
poucas choças, agrupadas sem ordem ao lado da igreja, e a água do arroio
indolente que ali brilhava ainda tranquila; mas chegava-lhes já aos
ouvidos, ainda que fraco, o fragor da torrente que jorrava na calha do
moinho.
Naqueles tempos, sempre que o vilão erguia o dorso curvado sobre os
sulcos que abria na terra, e seus olhos, doridos da luz do sol ou irritados
pela água das chuvas, procuravam a miserável cabana a que chamava casa,
pensando no calor e no alimento — vinha-lhe logo também à memória
que a mínima falta que cometesse, seu senhor ou o mordomo tinha nas
mãos meios expeditos de punição. Pois que, no alto de um morro, bem
próximo das cabanas dos servos, se erguia a frágil forca e, bem perto dela,
jazia a cova, ou poço. Morro da Forca, ou das Galés, é ainda o nome que
ficou apenso até hoje à colina verdejante que ladeia mais de uma linda
aldeia — embora a temível árvore que produzia tão mau fruto já tenha
apodrecido há muito tempo, se é que não foi arrancada. Na rua da aldeia
ficava o tronco, de sorte que aquele que ali era amarrado não podia
escapar ao desprezo, à risota ou aos insultos dos conhecidos.
E assim era em Birkencar. Sobre a planície, ao norte, estavam a forca e a
cova, apenas a alguns metros da casa senhorial, em cuja sala Guy de
Gisborne distribuía publicamente o que ele gostava de denominar
“justiça”.
Àquela hora estava a casa senhorial escura e silenciosa; sem dúvida Guy
dormia, contente do bom negócio que fizera, livrando-se dos seus servos
mais indisciplinados e teimosos.
Na relva espessa e macia, os passos de Robin e de seus homens não
faziam rumor, e, chegando a pequena distância da forca, o chefe ordenou
que os outros ficassem à espera, até que ele desse um sinal. Então,
silenciosamente como um fantasma, aproximou-se da prisão subterrânea,
na qual eram confinados os servos que tinham de esperar uma justiça
ainda mais severa do que a que o senhor do feudo podia ministrar.
A entrada da prisão era por uma porta que ficava junto de alguns degraus
cavados no solo. Robin chegou até os degraus e olhou para baixo. Não
esperava achar ali nenhum guarda, pois o mordomo não podia pensar que
houvesse alguém bastante ousado para tentar livrar dali um prisioneiro.
Quando esquadrinhava com empenho o escuro buraco, em cujo interior
mal filtrava a luz das estrelas, ficou surpreendido de avistar uma figurinha
assentada na porta. Ao ouvir um gemido que vinha de dentro da prisão,
aquela figurinha ergueu-se e achegou-se mais à porta. E Robin ouviu então
uma voz suave, a de Gilberto da Mão Branca, que dizia:
— Ó tio, pensei que estavas dormindo, e que tuas feridas não te doíam
mais… Por isso fiquei aqui quieto, e não chorei… Oh! Se o senhor Robin
estivesse aqui!
— Deves ir para casa, meu filho — disse Scarlet com voz fraca, lá de
dentro da prisão. — Se Guy ou a sua gente te apanham aqui, dão-te uma
surra. E isso eu não posso suportar! Vai, meu querido, e esconde-te em
alguma parte!
— Ó tio Will, eu não posso — disse o menino, chorando. — Corta-me o
coração, deixar-te aqui… pensar que está aqui, na escuridão, com as costas
feridas e lascadas, sem ninguém junto de ti para te dizer uma palavra
boa… Tio, rezei tanto por ti esta noite… tenho certeza de que há de vir
algum socorro de alguma parte. É impossível que a Santa Virgem e o bom
São Cristóvão fiquem surdos às orações de um pobre rapazinho…
— Mas, meu querido, tu também estás doente, meu filho… Se ficares
aqui toda a noite, isso te fará muito mal, e…
— E que me importa isso, se te levarem para longe de mim? — gritou o
menino, que sentia que toda a coragem o abandonava.
Chorava desconsoladamente, empurrando com as mãos a porta
resistente.
— Se eles te matarem, direi que me matem também, porque sem ti
ficarei abandonado e para que quero então a vida, tio Will — meu querido
tio Will?!
Foi então que Robin, começando a descer os degraus, disse
carinhosamente ao menino:
— Então, pequeno, por que todo este barulho?
Levantou-se o menino de um salto, aterrado, mas, vendo quem era,
atirou-se a Robin, tomou-lhe as mãos e cobriu-as de beijos. Depois,
voltando-se para a porta, encostou os lábios a uma fresta e gritou,
contentíssimo:
— Eu bem disse! Eu bem disse! Deus e seus santos e a Virgem me
ouviram… Aqui está Robin, que veio te tirar da prisão, meu tio!
— Eles te pisaram muito, Will?
— Ah! Robin, meu caro Robin… Nem queiras saber!
— Tem paciência um momento, rapaz; vou ver se a machadinha não
poderá desmanchar o que a machadinha fez…
Examinou atentamente a chapa onde encaixava a lingueta da chave. Deu
então duas ágeis pancadas de acha e forcejou com a ponta da adaga — e
estava quebrada a fechadura e a porta se abria. O gurizinho entrou num
ímpeto e começou a cortar com uma faca, e com o maior cuidado, as
cordas que amarravam o tio.
Soltou então Robin o grito da tarambola, e Scadlock, com dois de seus
camponeses, apareceram.
— Depressa, rapazes, tragam Scarlet para cima; temos de levá-lo a
Outwoods, para lhe dar um banho e pôr-lhe unguento nas chagas.
Em poucos momentos, e com tanta delicadeza como lhes permitia o
lugar, tiraram de dentro da cova o pobre Scarlet, depondo-o na grama. Ele
e Robin trocaram então um aperto de mão silencioso e cordial, enquanto o
pequeno Gilberto, com os olhos brilhantes, mas de lábios mudos, de tão
agradecido, beijava e beijava a mão de Robin.
— Onde estão os outros? — perguntou este a Scadlock, quando dois de
seus homens iam descendo o morro, com Scarlet aos ombros.
— Não sei. Estavam cochichando uns com os outros, depois que o
senhor saiu, e de repente não os vi mais. Pensei até que algum feiticeiro os
tinha arrebatado num instante, mas logo depois avistei, à luz das estrelas,
alguns deles, que corriam curvados, morro acima.
— Mas aonde iam eles? — indagou Robin, com uma suspeita no
espírito.
— Para a casa senhorial.
— Vai tu a Outwoods — ordenou Robin —, faze tudo o que for
necessário por Scarlet e espera-me lá.
Subiu então a lomba a passos rápidos, enquanto os outros seguiam,
levando seu fardo para o bosque de Fangthief. Chegando ao alto da
encosta, viu diante de si, toda escura contra o céu estrelado, a casa
senhorial. Dirigiu-se para o alto muro que a cercava, mas não encontrou
ninguém. Viu o grande portão aberto e entrou no pátio, seguindo pelo
largo caminho que ia dar à porta da casa.
Mas uma forma ergueu-se diante dele — era Much, o filho do moleiro.
— Ah! É o senhor Robin — disse em voz baixa, dirigindo-se a alguém.
E de trás de uma árvore vieram saindo Will Stuteley e Kit, o ferreiro.
— Que há, rapazes? Vocês pensam entrar ali e matar Guy? Pois digo-
lhes que esta casa pode resistir ao sítio da tropa armada; e vocês não têm
armas, a não ser seus cajados e facas.
— Robin — disse Will, o besteiro —, eu queria que estivesses presente,
mas sem tomar parte. É um ato vilão, e deve ser feito por vilões. É nosso
direito, e ação nossa. Amanhã, quando estivermos na floresta, nós
obedeceremos às tuas ordens e a ninguém mais atenderemos.
De repente rebentou um clarão, subindo de um monte de gravetos secos
que estava junto de um moirão da casa, em frente deles; depois outro mais
longe, e ainda outro… O sol tinha sido ardente naquelas duas semanas, e
tudo estava seco como isca. Construída na maior parte de madeira, era a
casa senhorial presa fácil para as chamas.
— Mas ao menos devem chamar as mulheres — insistiu Robin. — Mora
aí a velha Makin, e a criada… vocês vão queimar também mulheres
inocentes?
Já os moradores da casa se haviam dado conta do perigo. Apareceu um
rosto em uma janela. Era Guy. Uma pedra bateu no caixilho, quando
olhava para fora, e quase o alcançou.
Enormes pilhas de gravetos e lenha tinham sido amontoadas ao redor da
casa e ardiam furiosamente em muitos lugares, e as tábuas das paredes
tinham pegado fogo, e estalavam e se incendiavam horrivelmente.
— Guy de Gisborne! — gritou a forte voz de Will, o besteiro. — Teus
dias estão contados. Nós te apanhamos, como a raposa na toca. Mas não
temos a intenção de queimar as mulheres. Manda que elas saiam, mas olha
lá — nada de tuas trapaças costumeiras.
Ouviram gritos, e logo abriu-se a porta da frente e duas mulheres
pararam na entrada em brasas. Um dos homens, com uma vara comprida,
varreu o brasido para que elas pudessem passar. Correram então para fora
e a porta fechou-se. Logo em seguida tornou a abrir-se e lá de dentro saiu
uma lança, que foi ferir o camponês que tinha a vara; alcançou-lhe em
cheio a garganta, e ele caiu sem um gemido.
Um brado de fúria ergueu-se dos outros que estavam ali perto, e alguns
correram para diante, para deitar abaixo a porta.
— Pronto! É só vigiar agora! — disse a voz enérgica de Will, o besteiro.
— Não há mais ninguém na casa senão o mordomo, e ele será queimado.
Amontoem a lenha, e olho vivo na porta dos fundos e nas janelas!
De uma das janelas de cima veio voando uma flecha, que foi se cravar em
uma árvore, perto de Will. Este arrancou a haste que tremia ainda e olhou-
a friamente. Depois disse à velha que saíra da casa:
— Vamos a saber, Makin: há arqueiros do abade lá dentro?
— Não — replicou a velha ama —, ninguém, senão o senhor.
— Bem me pareceu. Ainda assim, ele devia atirar uma seta melhor do
que isto.
— É que tu não estás destinado a morrer de uma flechada — disse a
velha.
E ria, mostrando as gengivas amarelas e sem dentes.
— Pode ser que sim, e pode ser que não. Eu não dou fé às tuas tolices,
Makin.
— Nem o senhor morrerá queimado nessa fogueira, que vocês
acenderam com tanto cuidado para ele — continuou a velha, rindo
sempre.
Will, o arqueiro, olhou para as paredes da casa, que ardiam
horrivelmente, e não deu resposta, mas o seu sorriso era terrível. Quem
poderia escapar vivo daquela massa de chamas que se torciam e
redemoinhavam.
Mas de repente ouviram gritos de terror, que vinham dos fundos da casa.
Robin precipitou-se, seguido de Will, e à luz da casa em chamas viram os
aldeões que tinham ficado daquele lado a olhar, amedrontados, apontando
para um vulto, lá longe. Voltaram-se na direção indicada e viram uma coisa
que parecia um cavalo escuro, correndo veloz sobre as plantações.
Olhando então para a casa, viram que a porta de um galpão junto dela
estava aberta, a despeito de estarem em chamas portais e folhas. Soltando
um grito de raiva, Will saiu correndo para o lado do cavalo.
— Volta! Volta! — gritaram os camponeses, aterrados. — É a Égua
Fantasma! Ela te faz em pedaços!
Mas ele continuou a correr, e viram que procurava ajustar uma seta ao
arco que levava.
— De onde saiu aquilo? — perguntou Robin.
— Aquilo surgiu de repente de dentro de casa, com a crina toda em
chamas, e os olhos deitando fogo, e a enorme boca escancarada. Correu ali
para Bat, o carvoeiro, e pensei que tinha chegado a sua hora! Mas o
fantasma deu volta e lançou-se para a plantação.
— E eu creio que Guy lhes escapou — disse Robin, que suspeitava do
que acontecera.
— Mas de que maneira? — indagou o carvoeiro.
— Não duvido que Guy de Gisborne se disfarçasse de algum modo para
assustá-los, e que a esta hora esteja longe.
— Mas aquilo era a Égua Fantasma! — afirmaram os camponeses. —
Nós vimos a crina em fogo, e os olhos vermelhos e a medonha boca, toda
escancarada…
Robin não respondeu. Sabia que era inútil combater a superstição dos
pobres vilões. Voltou para junto da velha aia.
— Escuta, Makin, teu senhor não tinha esfolado um cavalo escuro há
pouco?
— Sim, há dois dias.
— E onde guardou a pele?
— No galpão, atrás da casa.
— Ah! E tu disseste que teu amo não morreria queimado, Makin?
— Sim — respondeu a velha, erguendo para Robin o rosto ressequido e
amarelado.
E seus olhinhos pretos cravaram-se atentamente nos dele.
— Will, o flecheiro foi atirar no teu amo, mas penso que ele não o
alcançará. Creio que não deves ficar aqui, Makin. Ele voltará furioso e
excitado, e não escolherá onde bater, se chega a adivinhar.
A velha riu — uma risadinha suave. Depois, repentinamente tomada de
cólera, com os olhos chamejantes, voltou-se para Robin, dizendo em voz
baixa:
— E que havia eu de fazer? Homem duro é ele, sim, e homem duro será
até o fim da vida — tão duro para mim como para os estranhos. Mas estes
braços o embalaram quando era uma pobre criancinha. Fui eu quem lhe
disse que aproveitasse o couro da velha égua. Que mais havia de fazer?
— Sim, eu sei que serviste de mãe para um homem que tem coração de
lobo. Mas agora vai-te daqui, antes que Will ou Stuteley voltem.
Sem mais palavra, a velha saiu dali e sumiu-se na escuridão.
Pouco depois voltava Will, o besteiro, ressumando ódio.
— Patetas! — exclamou. — Então vocês não têm nessas cabeças
estúpidas o juízo preciso para ver que um sujeito tão velhaco como aquele
havia de achar mil artimanhas? Um fantasma, sim, de verdade, é que é!
Vocês não passam de mulheres velhas, que só servem para cuidar das
vacas e para serem vendidos com elas! Pois então não viram as pernas do
homem, debaixo do couro de cavalo em que ele se enrolou? Lobo na pele
do cavalo, é o que ele é! Voltem agora para as suas tarefas de vilões: vocês
não são dignos de ir para as florestas e viver como homens livres!
E saiu, furioso, sem dizer mais uma só palavra.
Foi só mais tarde que contou a Robin: tinha corrido no encalço do vulto
com figura de cavalo, e vira distintamente pernas humanas debaixo da
pele. Tentara atirar, mas a seta falhou, e a figura correu para diante,
dirigindo-se para a pastagem do banhado. E verificou então que não errara
na sua suspeita, porque vira Guy de Gisborne tirar a pele de cima de si e
saltar para um dos cavalos que pastavam, fugindo e levando o couro.
— Agora, rapazes — disse Robin aos vilões —, é inútil esperar aqui. O
lobo escapou e não tarda a levantar o país inteiro contra nós. Vocês devem
ir para a floresta, porque praticaram uma façanha como jamais camponês
algum executou contra o mordomo de seus senhores.
— Tens razão, senhor — disseram eles. — Agora devemos fugir, para
salvar nosso pescoço. Mas somos na verdade grandes patetas, como bem
disse Will, deixando assim aquele malvado nos escorregar das mãos com
tal astúcia…
Nada mais disseram. Apressaram-se a deixar a casa em chamas, já meio
derrocada.
Desceram rapidamente a encosta; e, depois de se reunir a Scadlock,
Scarlet e seu menino e aos outros camponeses, guiou-os Robin, à luz já
pálida das estrelas, para a linha escura da floresta, que se erguia ao lado de
seus campos.
ii
Robin Hood encontra João Pequeno
v

é a bem-aventurança, rapazes!
-MAS ISTO

Era Much, o filho do moleiro, quem falava. Deu um profundo suspiro, de


pura satisfação, rolando-se na grama, procurando ainda mais comodidade.
E algumas das vinte figuras, estendidas de todo o comprimento à sombra
das árvores, responderam com outros suspiros e grunhidos. Outros,
porém, só replicaram com sonoros roncos, porque o veado que tinham
comido era esplêndido, e o jogo de lanças de manhã fora rude, e para
zumbidos na cabeça o melhor remédio é o sono.
Era no interior da floresta de Barnisdale. De um lado, um ribeirinho
borbulhava sobre os seixos, do outro, erguia-se enorme pedra limosa, um
túmulo certamente, ao pé da qual vinham, em tempos remotos, os
guerreiros vestidos de pele fazer seus rogos ao espírito do grande chefe ali
sepultado. À margem do ribeiro Scadlock ajoelhou-se, ao pé do seu
ajudante de cozinha, lavando com areia as gamelas em que tinham comido.
Por entre a folhagem, caía sobre a água a luz do ardente sol de julho,
cujos raios brilhavam como barras de ouro naquela semiobscuridade. A
maior parte dos camponeses estava deitada de costas, gozando com
profunda alegria a amável visão da massa de folhagem que os cobria,
deixando de vez em quando passar um raio de luz, como uma ponta de
lança, quando a brisa soprava. Depois de uma refeição abundante,
sentindo a brisa suave a acariciar-lhes as faces, aqueles pobres proscritos
experimentavam uma felicidade que jamais haviam sentido. O pequeno
Gilberto, cujo rosto agora irradiava saúde, sentado ao lado do tio, moldava
setas com uma faca.
Robin, sentado no chão, com as costas apoiadas ao tronco de um olmo
caído, tinha o mesmo ar intrépido, o mesmo olhar penetrante e destemido,
a mesma nobreza de porte, do tempo em que — um mês atrás ainda —
não era um proscrito, um banido, a quem qualquer homem obediente à lei
podia matar e assim obter uma recompensa pela sua cabeça.
Organizara regras de vida muito severas para os vinte homens que
tinham vindo com ele para a floresta, escolhendo-o para chefe. Sabia que
eram lentos no andar e nos gestos, e que sua vida agora dependia do uso
rápido da lança, da espada e do arco; todos os dias, pois, obrigava-os a
executar tarefas determinadas. As mãos, endurecidas e calejadas no
trabalho do arado, do alvião e da foice, habituavam-se lentamente ao
manejo mais delicado da espada, da lança e do arco; mas quase todos eram
muito jovens, e ele esperava vê-los adquirir depressa aquelas qualidades —
olho vivo e gesto rápido — além da prática, que lhes ensinaria a seguir a
pista da caça brava e a enfrentar e subjugar o lobo feroz e o javali de
colmilhos brancos, cego de furor.
— Que estaríamos fazendo a esta hora — murmurou Dickson, o
carpinteiro — se ainda fôssemos escravos e estivéssemos na aldeia?
— Eu estaria dando de comer aos porcos do senhor, ou lavrando suas
terras — disse Pedro Grande —, enquanto meus campos ficavam
entregues à macega.
— Eu — disse Will Stuteley com amargura — estaria amaldiçoando o
malvado abade, que despedaçou o coração do meu pobre filho. Quando me
lembro que poderia ser tão feliz, mais triste me sinto. Oh! Se ele estivesse
aqui!…
Por alguns momentos ninguém falou; todos sentiam que — embora
todos tivessem padecido muito, era Will, o besteiro, quem mais tinha
sofrido com a falta de coração do abade de Santa Maria e a traição de Guy
de Gisborne. Will tinha um filho, vilão, é claro, como ele o era, mas o
rapaz fugira para Grimsby, e lá vivera um ano e um dia, a serviço de um
marinheiro, obtendo assim a liberdade. Poupara o mais que podia,
trabalhando dia e noite para ganhar o dinheiro suficiente para comprar a
liberdade do pai. Trabalhara de todo o jeito, passara miséria, para juntar os
vinte marcos que haviam de pôr fim à servidão de seu pai. Conseguiu
afinal reunir a soma, indo então à presença do senhor abade, oferecendo-a
pela liberdade do pai. O abade prendeu-o e meteu-o na cadeia, tomando-
lhe o dinheiro. Obteve testemunhas que juraram que o moço tinha sido
visto na choça do pai durante aquele prazo de um ano e um dia, e com esse
pretexto o abade o reclamava como servo seu. Quanto ao dinheiro que o
rapaz poupara… “Tudo o que o servo ganhava era ganho para seu senhor”,
dizia a velha lei, que ninguém desconhecia. O moço, alquebrado de corpo e
de espírito, fora enfim solto; foi trabalhar nos campos do feudo, mudo e
desorientado de tristeza, e afinal uma noite encontraram-no morto no seu
catre de palha.
— E eu — disse Scarlet, apoiando-se no cotovelo esquerdo e erguendo a
mão direita, de punho fechado —, eu estaria ceifando o trigo do senhor; e
a cada golpe da segadeira havia de sentir sede do dia em que enterraria a
faca no mau coração de Guy de Gisborne — que fez de mim, que era
homem livre, um servo, por causa da pobreza em que caí!
E era verdade: Scarlet era livre, mas em seguida a más colheitas o
mordomo o obrigara a trabalhar como nunca fora exigido de homens
livres; seus campos foram abandonados, e pouco a pouco foi perdendo as
terras, até chegar ao nível dos servos.
— Chefe — disse Much, o filho do moleiro —, todos nós temos sofrido
nas mãos daqueles que têm o poder. Agora, que somos proscritos e fora da
lei, tu nos darás certamente algumas normas, para que saibamos a quem
devemos surrar e amarrar, e a quem deixaremos ir livremente. Não
havemos de mostrar ao menos aos ricos e aos nobres alguma coisa da
pobreza e dos membros doridos dos pobres?
— Pretendia falar-lhes exatamente disso — disse Robin. — Primeiro
que tudo, vocês não molestarão nenhuma mulher, nem os homens,
quaisquer que sejam, que acompanhem uma mulher. Lembro-me da Santa
Virgem, e sempre hei de orar pelo seu amparo e proteção, e desejo,
portanto, que protejam todas as mulheres. Não esqueçam também que
não devem fazer mal algum ao lavrador honesto, que lavra pacificamente o
seu campo, nem aos bons camponeses, onde quer que os encontrem.
Também aos cavaleiros e escudeiros que não forem orgulhosos, mas que
se mostrarem bons camaradas, tratarão com toda a bondade. Mas digo-
lhes — e gravem bem isto na memória: abades, bispos, priores, cônegos e
monges — com estes podem vocês fazer o que quiserem. Quando lhes
roubarem o ouro ou ricos estofos, estarão tirando deles unicamente aquilo
que eles têm extorquido e roubado dos pobres. Portanto, fartem-se nas
suas riquezas, e não lhes poupem as bastonadas nas costas. Eles repetem
os ensinamentos de Jesus Cristo com a boca, mas com o corpo e o coração
O negam a todo instante!
— Sim! Sim! — gritaram os bandidos, comovidos diante do ardor que
vinha dos olhos e da voz de Robin. — Nós cobraremos pedágio desses tais,
quando passarem pelas estradas de nossa floresta.
— E agora, rapazes, posto que estejamos proscritos e fora da lei dos
homens, estamos ainda dentro da misericórdia de Deus. Vocês irão,
portanto, comigo ouvir missa. Iremos a Campsall, e o pároco nos ouvirá
em confissão e pregará para nós a Palavra de Deus.
Dentro em pouco seguiam, em fileira, guiados pelo chefe, por caminhos
desconhecidos, atravessando clareiras e riachos, escalando rochedos e
varando fossos; mas ainda assim seguiam confiantemente, sob a chefia de
Robin.
De repente Much, que ia ao lado de Robin, parou quando iam entrar em
uma grande clareira.
— Olha! — disse ele, apontando para o outro lado. — É um elfo… um
duende! Eu o vi a caminhar. Não é maior que uma criança… Está se
escondendo atrás daqueles fetos… Mas esta flecha o achará, se ainda lá
estiver!
Ergueu o arco e ajustou uma seta, mas Robin bateu-lhe no pulso, e a
flecha foi enterrar-se no chão, a alguns metros dele.
— Os elfos são meus amigos — disse Robin rindo — e o serão também
de vocês, se merecerem a sua amizade. Ouve com atenção, Much — e
vocês também, meus bons camaradas: não atirem nunca em nada do que
pertence à floresta, a não ser para se defenderem, ou para se alimentarem.
Obterão assim os serviços de todos os bons espíritos e forças que se
asilam aqui ou no céu.
Os homens perguntavam entre si que quereria dizer Robin; e, enquanto
durou o passeio, não deixaram um momento de espiar para os lados, a ver
se avistavam o duende de Much. Nada viram, porém, e por fim começaram
a caçoar com ele, dizendo que tinha comido muita caça e por isso
confundia as manchas que lhe dançavam nos olhos com coisas do país das
ç
fadas. Ele, contudo, persistia em afirmar que vira um homenzinho
trigueiro, de pele escura, do tamanho de uma criança.
— Quando caminhava por ali, uma réstia de sol bateu nele e vi seu braço
felpudo.
— Ora! Era um esquilo — disse um. — Você confundiu rabo de esquilo
com braço de homem!
— Ou, senão, é que ele está enfeitiçado — adiantou outro. — Eu digo
que ele dormiu esta noite em um “Anel de Fadas”. [ 01 ]
— É isso mesmo! — retrucou Much, rindo. — Era o próprio Puck em
pessoa, ou o irmão dele.[ 02 ]
Ria agora, porque já não estava longe de duvidar dos próprios olhos, e
desse modo também acabava com as caçoadas, fazendo coro com os
outros.
Na aldeola da floresta, assentada entre olmeiros e carvalhos gigantescos,
foram eles, um por um, confessar-se ao vigário, um velhinho simples, que,
a pedido de Robin, celebrou missa, na capelinha de madeira. Ao ajoelhar-
se, Robin viu ajoelhado a seu lado um moço de belo aspecto, trajando uma
simples couraça de malha. Trazia na mão o capacete de aço, e a espada
pendia-lhe do lado. Era alto e gracioso, de construção forte;
evidentemente um jovem escudeiro de boa família. Robin olhou-o com
atenção e gostou do olhar franco que correspondeu ao seu.
Estava ainda apenas em meio a missa, quando entrou na igreja um
homenzinho franzino, de rosto trigueiro. Esquadrinhou o interior sombrio
da igreja com olhos penetrantes, que, talvez instintivamente, pousaram em
Robin, ajoelhado diante do sacerdote, à frente dos proscritos enfileirados.
Quando estes perceberam aquele vulto flexível que deslizava perto deles,
ergueram os olhos — alguns admirados, outros quase aterrados, para
aquela figura minúscula e meio fantástica.
Viram-no aproximar-se de Robin e tocar-lhe no braço.
O chefe inclinou-se e o homúnculo murmurou-lhe rápidas palavras ao
ouvido.
— Dois daqueles quatro cavaleiros feiosos te seguiram, chefe — foi o
que ele disse — estão a um tiro de arco da porta da igreja. Um servo andou
a espiar-te nestes últimos dias. São vinte homens de armas, com os
cavaleiros.
— Vai vigiar a porta — disse Robin, num sussurro. — Os malfeitores
têm de esperar que acabe o serviço de Deus.
O homenzinho voltou pelo mesmo caminho, e os bandoleiros se
acotovelavam ao vê-lo passar, olhando-o assombrados. Mas Much, o filho
do moleiro, sorria com ar de triunfo.
Acabou a missa, e os bandoleiros tinham respondido na devida forma as
palavras do vigário; mal tinham terminado, e os homens ajoelhados se iam
levantando, quando se ouviu um zumbido, como se tivesse entrado na
igreja um enorme zangão — era uma seta, que, atravessando uma seteira,
voava pela igreja adentro, indo-se cravar na parede fronteira, zunindo.
— São Nicolau nos acuda! — gritou o vigário, fugindo a toda pressa por
uma porta que dava para os fundos da igreja.
— Agora, rapazes — exclamou Robin —, vocês vão mostrar se sabem de
cor aquelas lições diárias de tiro ao arco. Para as seteiras! Os cavaleiros do
Castelo da Malvadez nos perseguiram e querem apanhar nossos corpos,
para torturá-los no tronco!
A estas palavras os bandoleiros cerraram o sobrecenho. Corriam por
toda a extensão das terras de Barnisdale e de Peak as histórias que os
mendigos ambulantes, pelotiqueiros e peregrinos contavam, das
crueldades e torturas que os senhores ladrões de Wrangby infligiam ao
povo. Há muito que o sangue dos camponeses e pobres gentes a quem os
cavaleiros malvados tinham maltratado, mutilado e matado clamava por
vingança. Os bandoleiros voaram para as seteiras enquanto Robin e
Scarlet, depois de fechar a enorme porta de carvalho, tinham o olho fixo
nas seteiras do grosso painel de carvalho. Todas as igrejas, naqueles
tempos cruéis, serviam tanto de lugar de adoração como de fortaleza, e
Robin viu que aquela pequena construção de madeira poderia resistir
algumas horas contra qualquer ação do inimigo — exceto o fogo.
O jovem escudeiro dirigiu-se a Robin, dizendo-lhe:
— Que gente é essa, bom mateiro, que quer fazer-te mal?
— São lordes de alto escalão, mas procedem como gatunos e faquistas
de baixa classe: Niger le Grym, Hamo de Mortain…
— Que dizes?! — interrompeu o cavaleiro abruptamente. — O bando
indigno de Isenbart de Belame, o neto do demônio de Tickhill?
— Esse mesmo!
— Então, bom guarda, deixa-me ajudar-te! Isenbart de Belame é o
cavaleiro mais falso do mundo: mata homens honestos e oprime mulheres
indefesas. É o meu maior inimigo, e desejo ardentemente dar-lhe cabo da
pele.
— De fato, vejo que nos poderás ajudar, pois que teu ódio é tão
profundo. Mas… quem és tu?
— Chamo-me Alan de Tranmire, e sou escudeiro de meu pai, sir
Herbrand de Tranmire. Mas gosto mais do nome que meus amigos me dão
— Alan de Dale.
Enquanto o moço falava, o bandoleiro não tirava o olho da seteira e via
os homens armados, na orla da floresta, reunidos em um só corpo,
chefiado pelos dois cavaleiros, aprestando-se para fazer uma investida
contra a porta da igreja e deitá-la abaixo.
— Espero, jovem cavaleiro, que não precises usar tua espada. Creio que
poderei, com meus bons camaradas, impedir que aqueles patifes cheguem
tão perto que te possas servir dela, pois reconheço que nessa arma meus
homens são ainda muito canhestros.
— Mas eu também gosto do arco — disse Alan —, e lá na floresta que
cerca o castelo de meu pai tenho dado muito bons tiros.
— Muito bem! — disse Robin, que pareceu dar mais apreço ao moço
depois dessa notícia.
E chamou logo:
— Olá! Kit ferreiro! Vem cá! Entrega a este cavaleiro, Alan de Dale, um
daqueles arcos que tens de reserva e um feixe de flechas.
Voltando-se então para seus homens, continuou:
— Depois disso, meus rapazes, coloquem-se nas seteiras que dominam
aquele grupo de canalhas, lá na beira do mato. Eles se estão preparando
para arrombar a porta, pensando que somos pobres servos desertores, que
nada sabemos do uso das armas, e que nos podem degolar, como um cão
de caça faz com os ratos nas tocas! Provem hoje mesmo que são bons
arqueiros. Marque cada um o seu homem, quando eles avançarem, e não
os deixem chegar até a porta!
Os bandoleiros correram céleres para as seteiras que olhavam para o
lugar onde, à sombra do bosquezinho, os soldados pareciam ocupados
com alguma coisa importante. Afinal viram-nos erguer um peso do chão e
ficaram sabendo qual era o seu propósito. Tinham cortado um carvalho
novo, cujos galhos arrancaram, e pretendiam utilizá-lo como um aríete
para deitar abaixo a porta da igreja.
Avançavam agora uns 12 ao lado do tronco que traziam. Em cada seteira
havia dois bandoleiros — um alto atrás, outro baixo na frente, e todos
espiavam pelas seteiras com os olhos brilhantes, segurando as setas
ajustadas ao arco, com a ansiedade do cão tolhido pela trela, que vê na sua
frente a presa.
— Much, Scadlock, Dickson, e os 12 camaradas da direita, marque cada
um o seu homem na árvore — disse Robin em voz baixa —, e veja que não
falhe! Os outros oito apontem as setas para o peito dos outros. Pela Santa
Cruz! Como eles marcham com confiança! Pensam que caçar servos
fugidos é o mesmo que caçar coelhos! Segurem os arcos, até que eu dê a
ordem! Hoje vocês me vão perdoar o trabalho que lhes dei, bons rapazes,
quando os fazia atirar ao alvo noite e dia, nas últimas semanas!
— Oh! Chefe! — disse um dos homens. — Eu fico doente de tanto
esperar! Se não atiro logo, a flecha vai saltar da minha mão.
— Não atires antes que eu ordene! — disse Robin energicamente. —
Quarenta passos, é quanto eu concedo, senão oito daqueles patifes
ficariam de pé. Firmes, rapazes!
Foi um momento terrível aquele, enquanto esperavam a palavra, de
nervos tensos! Os soldados, que marchavam depressa, pareciam já quase à
porta, quando Robin disse:
— Atirar!
Vinte e duas setas voaram das seteiras da parede de madeira e lá se
foram zumbindo, atravessando o espaço que os separava dos atacantes.
Para os homens que espiavam das seteiras da igreja, quase sem respirar, o
efeito parecia de mágica. Viram oito dos que corriam levando o tronco de
árvore parar de repente, vacilar e cair. Dos outros, três ficaram no chão,
um ergueu-se e fugiu, e outros dois, voltando-se, arrancaram as setas dos
braços, enquanto também corriam para o mato. Um dos cavalos dos
cavaleiros caiu, soltando um grito e arrastando seu dono, que se levantou,
olhando por um momento para a igreja, assombrado com o ardor daquela
defesa, absolutamente inesperada.
Quanto aos outros cavaleiros, que ficaram incólumes, disseram-lhe
alguma coisa e, voltando aos cavalos, galoparam a toda brida para o abrigo
da floresta, onde já estavam todos os homens que tinham podido correr.
De repente o cavaleiro desmontado pareceu despertar e correu também
para a floresta, tão depressa como lhe permitia a armadura. Uma seta,
mandada em seu encalço, falhou, e ele logo desapareceu.
Sobre a grama pisoteada, defronte da igreja, jaziam dez corpos imóveis e
o cavalo morto com o coração varado por uma seta.
— E agora, rapazes, para a floresta, a toda pressa, atrás deles!
Sem demora a porta foi destrancada, e os bandoleiros meteram-se no
mato, no lugar onde tinham desaparecido seus atacantes. Seguiram
facilmente as suas pegadas. Alan de Dale foi com eles, e Robin agradeceu-
lhe o ajutório que lhes dera.
— Se um dia precisares de alguns arqueiros de confiança, não te
esqueças de mandar recado a Roberto de Locksley, ou Robin de Barnisdale,
pois por qualquer destes nomes sou conhecido.
— Agradeço-te, Robin de Barnisdale, e talvez te peça auxílio algum dia.
— Que é isso? — disse Robin, rindo. — Um escudeiro tão jovem e tão
valente como pareces, já terá inimigos?
— Ai de mim! — disse Alan, com ar triste. — E pouca probabilidade
vejo, ainda assim, de vencer meu inimigo, que é poderoso e cruel.
— Conta-me a tua história, porque sou teu amigo, e farei por ti tudo o
que puder.
— Agradeço-te, Robin. Pois é este o caso: amo uma linda e boa menina,
cujo pai possui terras perto da floresta de Sherwood. Chama-se Alice de
Beauforest. Seu pai tem o feudo arrendado daquele grande ladrão e
opressor, Isenbart de Belame, que quer que ele faça a linda filha casar com
um velho e rico cavaleiro, tão perverso como o próprio Isenbart. O
cavaleiro de Beauforest preferia casar a filha comigo, pois que ela me
escolheu pelo amor que lhe voto, mas o senhor de Belame ameaçou-o de
arruiná-lo e de deitar fogo à sua casa, se ele não lhe obedecer. E agora não
sei que hei de fazer para obter a mão da minha querida Alice. Ela é tão
corajosa como bela, e suportaria qualquer sofrimento por mim, mas ama o
pai, que já teve uma vida de combates, está velho e quer viver em paz. E,
desse modo, ela vive em uma luta entre sua lealdade filial e seu amor por
mim.
— Já foi fixada a data do casamento?
— Belame jura que, se não se realizar dentro de um ano, Beauforest há
de cozinhar o almoço na fogueira da sua casa.
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— Temos tempo — disse Robin. — Quem sabe? Nesse intervalo muita
coisa pode acontecer… Estou certo de que és bravo. Precisas também de
um pouco de paciência. Farei uma viagem ao sul e irei à alegre Sherwood
dentro de pouco tempo, e então me informarei detidamente deste caso;
havemos de nos encontrar ainda e falaremos disto outra vez. Mas… olha
lá! Quem são aqueles dois — cavaleiro e vilão, que conversam com
tamanha intimidade?
Robin e Alan tinham-se afastado do corpo de bandoleiros e iam entrar
em uma pequena clareira quando viram, na saída do caminho do outro
lado, um homem de armadura, de pé, falando com um sujeito de cara
sinistra, que o escutava de cabeça baixa e trazia uma grosseira túnica de
vilão — sua única vestimenta, a não ser os sapatos de couro cru. Quando
Robin falava, o cavaleiro voltou-se e viu-os, e ambos reconheceram
imediatamente o homem que fora desmontado diante da igreja. O vilão
apontou para eles e disse alguma coisa ao cavaleiro.
— Ah! Patifes! — disse este, avançando pela clareira para o lado deles.
— Vocês dois são daquela súcia de escravos fugidos, bem o sei!
— Podemos ser escravos fugidos — retrucou Robin, ajustando uma
flecha ao arco —, mas o certo é, cavaleiro, que os escravos te obrigaram a
fugir, a ti e a teus homens, de uma maneira que não esperavas!
— Por Nossa Senhora! — disse o cavaleiro, dando uma risada. — Falas
com muita insolência, vilão rebelde! Mas quem vejo ali? Um escudeiro
descarado, que merece uma boa sova, segundo penso.
Já Alan de Dale tinha ajustado o escudo, que até então lhe pendia às
costas, preso pela correia; puxando da espada avançou rapidamente para o
outro.
— Bem te conheço; és Ivo, o Rapinante! — disse ele em voz clara e
sonora. — Conheço-te e sei que és um cavaleiro traidor — roubas pessoas
solitárias, oprimes as mulheres, pilhas os bens dos mercadores. Assim
Deus e Nossa Senhora me ajudem, que hoje mesmo darei cabo de ti!
— Malandro atrevido! — gritou o outro, fora de si.
E lançou-se sobre Alan com grande fúria; e na calma clareira ergueu-se
de repente o fragor do choque do aço contra aço.
Rápido e furioso era o combate, e atiravam-se um ao outro como javalis
ou cervos em luta mortal. Era Alan o mais ágil, porque o outro era homem
de vida desregrada, que gostava de vinho e de boas comidas; e, apesar de
ser ele mais velho, e mais adestrado no manejo da espada, ainda assim o
mais moço lhe levava a vantagem da rapidez de movimentos, agudeza de
vista e força dos golpes. Alan evitava ou esquivava os golpes mais
perigosos de seu contendor, e, com repetidos saltos para trás e fingidos
recuos, conseguiu cansar o outro. Ainda assim não saiu da luta sem
feridas. Trazia apenas uma leve cota de malha e um barrete de aço com
babeira, enquanto o outro tinha uma cota de malha pesada e, seguro a
esta, o elmo de viseira.
Afinal, a despeito de todos os seus esforços para conservar o escudo
erguido, o braço de sir Ivo abaixou-se, os golpes de sua espada iam
enfraquecendo aos poucos e já se lhe ouvia a respiração entrecortada. De
repente Alan derrubou-o, já sem vida.
No mesmo instante Robin, que seguia o combate com a maior atenção,
ouviu o silvo de uma cobra na sua frente, e ao mesmo tempo passos que se
aproximavam por detrás. Saltou rapidamente para um lado, no instante
em que a folha de uma faca brilhava na sua direção. Virando-se, viu o vilão,
que estivera falando com o cavaleiro, quase caído no chão, com a força do
golpe que lhe dirigira às costas. Erguendo-se, porém, correu velozmente
por entre as árvores.
Nisto um pequeno corpo escuro saltou do meio dos fetos, diante dele. O
vilão cambaleou e caiu pesadamente, enovelado com a figurinha cor de
piche. Por um instante pareceu que lutavam em um amplexo mortal,
depois, de repente, o grande corpo do vilão caiu como um tronco de
árvore; o gnomo ergueu-se, sacudiu-se e enxugou a folha da adaga em uma
moita de feto.
— Obrigado, Hob do Morro, tanto pelo aviso da cobra, como pelo teu
golpe, pronto e certeiro. Eu devia estar mais atento… Quem é este sujeito,
Hob?
— É Grull, lavrador do Castelo da Malvadez. Ele andava há três dias
rondando a floresta perto de Stane Lea, onde estava o teu acampamento;
pensei que fosse um servo que desejava a liberdade, e era um espião!
Hob do Morro era irmão de Ket, o Gnomo, mas os dois eram muito
diferentes no aspecto físico. Não era ele mais alto que o irmão mais velho,
mas era de compleição e formas muito mais delicadas. Tinha os membros
delgados, e a palidez do rosto realçava a negrura mágica dos olhos; o
cabelo era negro e crespo, e a barba, curta. Tinha os braços longos, e as
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mãos quase tão delicadas como as de uma moça eram ainda assim fortes e
musculosas. Vestia, como o irmão, túnica de couro fechada com cordões e
calças de couro de veado, que lhe chegavam aos tornozelos, e calçava
sapatos reforçados.
Robin foi ter com Alan, que estava sentado no chão, ao pé do inimigo
morto. O ferimento do ombro enfraquecia-o. Robin pensou-o com um
pedaço de linho que rasgou da camisa do moço e perguntou-lhe o que
queria que fizesse.
— Creio que vou voltar para minha casa — respondeu ele. — Estou
agora no Abrigo da Floresta, em casa de meu irmão colaço, Pedro o Feliz,
mas sei que gritos e imprecações vão erguer-se contra mim, quando se
souber que matei este cavaleiro velhaco, e não quero que meu irmão vá
sofrer por minha causa.
— Conheço Pedro de nome — disse Robin, que sabia alguma coisa de
todos os que viviam na sua amada floresta, ou nas cercanias — e acho que
há de querer ajudar-te, se puder.
— Sei disso, mas não quero que Belame e seu cruel bando coloquem
fogo na casa uma noite destas, deixando meu irmão morrer queimado lá
dentro, para se vingar de mim. Não; voltarei para casa, se puder chegar
onde está meu cavalo, que deixei na cabana de um guarda, a algumas
milhas daqui.
Seguiram, pois, juntos, para a cabana do guarda-florestal.
Enquanto estas coisas se passavam, a milha e meia dali, um homem
andava por um dos trilhos da floresta. Era alto, de membros robustos e
parecia dotado de força enorme. Trajava a roupa grosseira do camponês.
Parecia muito alegre. De vez em quando fazia girar a grande lança que
levava na mão, e também de vez em quando assobiava, ou cantava em altas
vozes alguma canção.
De repente exclamou, falando consigo mesmo:
— João! João! Estás louco mesmo! Devias ficar mudo como um peixe, e
ir de rastos, como um ladrão, de moita em moita… E cantas como um
homem livre, louco! e não és senão um servo fugido, em cujo estúpido
corpo o ar livre da livre floresta entrou como vinho. Mas apenas vinte
curtas milhas te separam dos troncos e pelourinho do velho lorde
Mumblemouth e seu mordomo, e vais aqui cantando ou assobiando, como
se não pudesse saltar daquela moita um guarda-florestal para te desafiar e
prender, com a mira na recompensa do seu senhor… Sossega, louco, olha
para o chão que pisas, e… Mas valham-me todos os Santos! Que rico
cheiro!
Calou-se e, erguendo a cabeça, aspirava o ar da floresta, investigando
para todos os lados com os olhos castanhos, em que brilhava uma
expressão de sarcasmo.
— Certamente — continuou ele, acertei com a cozinha de algum gordo
abade! — Que desperdício, deixar um cheiro tão rico de gordura se perder
assim no ar! Santa Virgem! Que fome sinto! Vamos ver, talvez o dono
deste saboroso odor se compadeça de um pobre andante e me dê um
pouquinho do que lhe sobra…
E João afastou as moitas e foi andando em direção ao cheiro. Pouco
adiante avistou uma árvore no meio de uma clareira, tendo um cavalo
amarrado ao tronco; não muito longe, uma choça de madeira, de teto de
turfa, onde cresciam tufos de goivo de ouro, macela e prímula. Diante da
porta da casa ardia um fogo sem chamas, ao pé do qual, espetadas em
espetos de pau fincados no chão, assavam algumas costeletas. Elas
crepitavam e chiavam ao alegre calor daquele fogo, e produziam o
saboroso cheiro que lembrara repentinamente a João que estava com
fome, e há muito não comia nada.
João olhou para a carne suculenta e sentiu água na boca. Por um
momento julgou que ninguém vigiava o assado e que não seria pecado se
um homem faminto tirasse um ou mesmo dois daqueles bocados. Mas viu
sair da cabana um homem, que se curvou e virou dois espetos, para que a
carne ficasse mais parelha.
O rosto de João perdeu a alegria. O homem era um dos couteiros do rei,
conheceu-o pela túnica verde e calções pardos e a insígnia de prata do
chapéu — uma trompa de caça. Além disso tinha o rosto carrancudo e
áspero — o rosto de um homem que antes queria ver uma pobre criatura
rebentar de fome, do que repartir com ela o seu jantar.
Era aquele Hugo Negro, o couteiro que se mostrara tão rude ao
encontrar Robin e Scarlet na floresta.
João refletiu um momento; depois, voltando sem fazer ruído, retirou-se
para longe da clareira. Dali tornou para a cabana, sem precaução alguma,
entrando na clareira de repente e fingindo-se muito surpreendido do que
via. Tinha deixado cair sua lança entre os arbustos. Do outro lado do fogo,
o guarda-florestal olhou-o.
— Que é isso lá, lenhador basbaque? Quem és tu para te meteres assim
pelas moitas, como um porco? Não tens medo da justiça do rei, que age
contra todos os que vêm perturbar seus veados?
— Peço-lhe perdão, senhor couteiro — disse João, puxando um negalho
de cabelo e fingindo-se um imbecil. — Eu não sabia onde estava, mas senti
o cheiro tão bom de sua comida, e pensei que podia ser que fosse alguma
boa companhia de monges, ou a comitiva de um lorde, que estivesse
preparando o almoço, e podia ser que sobrasse um pedacinho para um
pobre caminhante que nada comeu desde a madrugada, e…
— Segue teu caminho, vilão — disse o couteiro, cujo rosto parecia agora
ainda mais odiento do que quando ouvira João pedir um naco de carne. —
Bem vês que não sou monge, nem lorde, mas estou preparando a minha
comida. Assim, vai andando para a estrada, antes que te tire daqui a
pontapés. Não sabes que não tens direito de sair da estrada? Vai-te, anda!
Hugo Negro falava enfurecido, olhando ferozmente para o vilão, na
aparência abatido, e caminhou para ele, como se pretendesse pôr em
execução a ameaça. João, tornando a puxar o anel de cabelo da testa, foi se
retirando apressadamente, como se estivesse muito assustado. Hugo
Negro ficou por algum tempo a escutar os passos pesados do camponês,
que atravessava as moitas em direção à estrada real; então, voltando à
choça, tirou de uma arca um grande pedaço de pão e cortou uma grossa
fatia. Tornando ao fogo, abaixou-se e arrancou do chão um espeto; tirou
dele a lasca de carne e, com o auxílio da faca, meteu-a dentro da fatia de
pão. Fez o mesmo com o segundo e tornou a curvar-se para o terceiro
espeto.
De repente pareceu que uma pequena vara saltava como uma lança da
moita próxima, voando para o fogo, e uma ponta apanhou o couteiro
inclinado, com uma sonora pancada do lado da cabeça. Ele caiu para um
lado, quase no fogo, atordoado, e o espeto, ainda com o assado, voou no ar.
João, saltando da moita, apanhou-o antes que caísse, dizendo:
— Não gosto de comida com pó, couteiro ranzinza.
Pôs a carne sobre o pão, ao lado das outras, e depois foi virar o couteiro,
que ali jazia prostrado, e examinou o lugar da pancada.
— Foi um golpe destro! — disse, com um muxoxo. — E acertou bem no
lugar! Dois dedos mais abaixo, teria matado o homem, e dois dedos mais
acima, lhe teria partido o mesquinho crânio. Mas, assim como foi, o
entendimento lhe voltará à estúpida cabeça justamente a tempo de me ver
comer o meu jantar.
Ergueu o guarda com tanta facilidade como se fosse uma criança,
colocou-o sentado de encontro a um moirão da cabana e amarrou-o
fortemente ali, com uma corda que encontrou na choça. Então, tendo a
lança ao pé de si, sentou-se junto do fogo e começou a demolir os três
suculentos pedaços de caça.
Dali a um momento Hugo Negro, soltando um grande suspiro, abriu os
olhos, levantou a cabeça e olhou, desorientado, para diante. Vendo João,
que tirava enormes dentadas de pão, voltou inteiramente a si num
instante.
— Vagabundo fugido! — disse ele, vermelho de cólera, tentando em vão
tirar as mãos dos laços de corda. — Hei de te deixar marca, ladrão
gordalhudo! E hás de senti-la bem funda! Hás de te arrepender de me
haver atirado ao chão com teu imundo cajado… Hei de te arrancar as
orelhas, hei de tirar-te a vida, ladrão de estrada, gatuno!
— Não grites tanto, carneiro velho de cara preta! — retrucou João com
uma risada. — Pensa quão melhor teria sido para ti, se tivesses repartido
tua carne comigo. Vê agora, cachorro velho do mato: perdeste tudo porque
quiseste conservar tudo. Tuas costeletas estão assadas a preceito! És um
bom cozinheiro… és melhor cozinheiro, penso eu, do que couteiro. Olha
aqui: lá vai o último bocado. Olha!
Dizendo isto, João acomodou o pedaço de carne remanescente no
último bocado de pão e, abrindo a boca enorme, atirou-os lá dentro, dando
uma gostosa risada ao ver o negro olhar que lhe deitava o outro.
— Agradeço-te, couteiro, pelo bom jantar que cozinhaste para mim —
continuou ele. — Sinto-me inclinado a ser bondoso contigo, apesar dos
olhares indignados que me deitas. Não duvido que tenhas ganas de me
agarrar, e gostaria também de me medir contigo. Vamos lá, queres uma
luta de lança?
— Ah! — disse Hugo Negro, cujos olhos luziam de ódio — se eu te
apanho, vagabundo velhaco, não te deixo um único osso inteiro nessa
carcaça maldita!
ç
— São Pedro me acuda! — disse João, rindo. — És assim tão valente no
luta de lança? Oh! Homem, eu gostaria de ver isso… Ora, vamos lá…
vamos tirar isso a limpo!
Levantou-se e aproximou-se do couteiro com o propósito de desamarrá-
lo, mas nesse momento ouviu vozes no mato. Parou a escutar, enquanto os
olhos de Hugo Negro brilhavam de satisfação. Era muito provável que os
viajantes que se aproximavam fossem gente obediente à lei, e nesse caso
ele seria solto, e poderia se vingar daquele patife. Ouviam-se cada vez mais
perto os passos e vozes, até que de entre as moitas de um lado da clareira
surgiram Alan de Dale e Robin, que olharam para o alto servo e depois para
o couteiro amarrado ao poste.
João inclinou-se e pegou sua lança; depois, voltando-se para Hugo
Negro, disse:
— Duvido muito que aqueles lá sejam teus amigos, bom couteiro, como
quer dar a entender tua cara malvada. Mas não receies que eu te esqueça.
Liquidaremos este assunto dentro de pouco tempo. Graças, repito, por teu
excelente jantar!
E João desapareceu entre os arbustos, sem fazer ruído algum.
Robin e Alan aproximaram-se, e não puderam deixar de rir quando
viram o olhar furioso de Hugo Negro.
— Que é isso? — disse Robin. — Então o couteiro do rei foi amarrado
por algum vagabundo? O quê, homem! E ainda por cima ele te comeu o
jantar?
O silêncio sombrio do couteiro confirmou o que tinham coligido já das
palavras de despedida do enorme vilão, e riram ambos da derrota do
guarda, que se torcia nos laços que o prendiam. Afinal gritou a Robin:
— Acaba com essas risadas, “cabeça de lobo”![ 03 ]
Mas Robin ria tanto, que a clareira retinia com o eco das suas risadas.
— Desata-me! — gritou Hugo Negro, ainda mais enfurecido. — Quero
ensinar-te a rir do couteiro do rei, maroto intrometido! Miserável rebelde!
Ainda Robin ria da cólera inútil do couteiro, cujo rosto estava rubro de
tanto furor.
Alan disse então delicadamente:
— Creio, amigo, que é loucura tua ameaçar este valente caçador
enquanto estás assim amarrado. Seria mais nobre guardar tuas ameaças
para quando estiveres livre. És muito presumido, amigo!
— Não sabes então quem é este patife? É o chefe da quadrilha de servos
escapados, que, pelos crimes que cometeram, de incendiar a casa do seu
senhor e de matar os homens de seu senhor, hão de morrer na forca, ou
pela espada: qualquer homem honesto pode lhes arrancar dos ombros a
cabeça de lobo!
— Podes dizer o que quiseres do meu amigo — disse Alan friamente —;
eu sei que tanto ele como seus homens são valentes e fiéis, e, se fugiram de
um senhor tirano, não os censuro por isso.
E, com olhar altivo, dirigiu-se para o seu cavalo. Robin deixou de rir e
falou ao couteiro:
— Meu coração sente simpatia por aquele vagabundo pernilongo, que te
amarrou aí e comeu o teu jantar. Tu, que com outros da tua espécie, vives à
custa de outras criaturas mais pobres, extorquindo e ameaçando, provaste
agora o que tens dado aos que não te podem resistir. Vou te dar tempo
para pensares em teus pecados, e no teu castigo. Aguentarás essas correias
até que a coruja pie, logo à noite.
Saíram ambos da clareira, deixando o couteiro sozinho, para refrescar a
cólera.
O sol dardejava seus raios sobre a cabeça nua do homem, e, quanto mais
ele forcejava por sair das laçadas, mais as moscas o atormentavam. Pôs-se
então a gritar por socorro, esperando que algum de seus companheiros o
ouvisse, ou que algum viajante que passasse pela estrada viesse libertá-lo.
Mas não apareceu ninguém, e ele cansou de gritar.
O calor do sol trespassava-lhe as calças, ardiam-lhe a língua e a garganta,
de tão secas, e já tinha os braços, amarrados solidamente aos flancos,
quase insensíveis. Ao redor dele, a floresta parecia mergulhada em
silêncio. De vez em quando parecia que um raio de luz atravessava a
clareira, como o brilho de uma joia. Era uma libélula, que pairava e girava
diante das moitas, e, aos raios do sol, parecia um ponto de chama vivente.
Vieram os passarinhos, saltitaram e esgaravataram entre as cinzas do fogo
que ele acendera e até entre os seus pés. De um buraco, na raiz de uma
árvore, um furão veio espiar e, encorajado pelo silêncio que reinava na
clareira, correu de toca em toca, até se sumir na floresta.
Já a tarde estava no fim, o sol se escondia atrás das árvores, e as sombras
se alongavam, até que chegou o lusco-fusco. Então a floresta pareceu
despertar. Pássaros chamavam pássaros pelas frescas ramarias das árvores,
a brisa da noite sussurrava nas folhas, e toda a floresta parecia sacudida
por um imenso tumulto.
O azul do céu ia lentamente ficando cinzento, debaixo das árvores a
escuridão se tornava a cada instante mais densa; dir-se-ia que coisas
estranhas se moviam na penumbra. Uma grande ave pairou sobre a
clareira, voando sem fazer ruído com as asas. Depois abateu-se de repente
e ouviu-se um grito agudo, como se alguma coisa viva se despedaçasse. E
depois o grito agourento — tuiii… tuiii… tuiii!…
O couteiro estremeceu. Aquele grito tinha alguma coisa de sobrenatural.
Além disso, o ar frio se alastrava pelo chão. Moveu os braços, que pareciam
já quase mortos, e viu com assombro que as cordas caíam, que estava livre.
Olhou para trás e para dentro da choça, mas não viu ninguém. Então, com
os dedos amortecidos, levantou a corda que o prendera e viu que tinha
sido cortada à faca.
Olhou em volta, meio morto de medo, e persignou-se. Robin, o
proscrito, dissera que seria livre quando a coruja piasse; mas quem se
havia arrastado até ali e cortado a corda, sem que ele desse fé?
Hugo Negro sacudiu a cabeça e ficou considerando. Acreditava em
gnomos, tanto como acreditava na própria existência, mas até então não
tinha jamais imaginado que os duendes usassem facas. Tornou a sacudir a
cabeça e pôs-se a esfregar os membros gelados, e quando o sangue
recomeçou a circular por eles, sentiu dores tão atrozes, que quase gritou.
Algum dia, pensou ele, havia de se vingar daquele patife de dois metros
de altura, que o amarrara e lhe comera ainda o jantar! Quanto a Robin, o
bandoleiro, havia de lhe cortar a cabeça e a levaria ao juiz supremo, em
Londres, com o que ganharia quatro marcos.
Entretanto, Robin e Alan continuaram seu caminho, falando de vários
assuntos. Tinham ambos muito amor à floresta e achavam que não havia
prazer maior do que, de arco em punho, matar os cervos do rei, ou, com
seus valentes cães, desentocar o feroz javali do covil. Robin guiou Alan até
um atalho que o levaria à sua casa em Werrisdale, e, à despedida,
apertando a mão um do outro, prometeram encontrar-se de novo dentro
em breve.
Voltou então Robin para o lugar de encontro em Stane Lea, onde acharia
seus homens à sua espera, para tomarem juntos a refeição da tarde.
Já ia ele quase ao fim da viagem quando chegou à beira do arroio que,
mais acima, corria junto à clareira onde àquela hora seus homens deviam
estar cozinhando a ceia. Mas naquele ponto o regato alargava-se, a
corrente corria rápida, e a passagem se fazia por uma pinguela, isto é, um
grosso tronco de carvalho, estendido de margem a margem. Tinha apenas
a largura suficiente para dar passagem a um homem, e é claro que não
tinha guardas nem corrimão.
Já Robin dera dois ou três passos sobre a pinguela, quando apareceu na
outra margem um homem corpulento, que saltou para a ponte, começando
também a atravessá-la. Reconheceu Robin imediatamente, pelo tamanho,
o sujeito que amarrara o guarda-florestal e lhe roubara o jantar. Gostaria
de chamar o homenzarrão, pois desejava conhecê-lo, se não fosse o ar
arrogante com que o outro caminhava para o seu lado, como quem dizia:
“Sai do meu caminho, homúnculo, se não queres que eu passe por cima de
ti!”
Robin tinha uns vinte e cinco ou trinta centímetros a menos que o
manjolão e era reconhecido ainda assim como um homem alto e forte;
doíam-lhe, pois, profundamente aquelas polegadas e aquele ar jactancioso
do outro.
Pararam afinal, quando já estavam a pouca distância um do outro, e
encararam-se irados.
— Que modos são esses, camarada? — disse Robin com ar altivo. —
Não viste que eu já estava na ponte quando meteste nela os teus enormes
pés cambaios?
— Pés cambaios tens tu, macaquinho — retorquiu o outro. — Onde se
viu o canjirão dar lugar a uma canequinha?
— Não és destas bandas, estúpido montanhês! Tua língua grosseira te
denuncia. Vou te dar uma boa lição dos costumes de Barnisdale, se não te
arredas para me dar passagem!
Isto dizendo, Robin tirou do cinto uma seta, que ajustou à corda do arco.
Era um arco comprido e forte, que poucos homens poderiam entesar, e o
brutamontes, com um piscar de olhos meio irritado, meio brincalhão, foi
dizendo:
— Se tocas nessa corda, eu te surrarei o couro a mais não poder.
— Que asno! Como poderias dar sovas em alguém, com esta pena de
ganso espetada na estúpida carcaça?
g ç
— Se é esse o teu ensino dos costumes de Barnisdale — retrucou João
—, então é ensino dos covardes. Porque aí estás tu com um bom arco na
mão, pronto a atirar-me uma flecha, quando eu não tenho mais que minha
lança.
Robin deteve-se. Estava furioso com o estrangeiro, mas simpatizava com
aquele ar honesto, másculo e alegre do gigante.
— Espera um pouco! Nós cá de Barnisdale não somos covardes, como já
vais ver. Vou largar meu arco e cortar um cajado. Vou experimentar a tua
força, e se eu não te surrar até fumegares que nem uma fogueira, então que
o diabinho que mora neste riacho me apanhe!
E Robin deu volta e foi para a margem; cortou um forte galho do mais
belo carvalho que encontrou, e, depois de aparelhá-lo, deixando-o com o
tamanho e peso que queria, voltou à ponte, onde o estrangeiro o esperava.
— Agora vamos fazer um joguinho — disse ele. — O que for derrubado
da ponte e cair ao rio está derrotado. Vamos!
À primeira viravolta do cajado de Robin, o estranho pôde ver que não
tinha de se haver com um noviço, e quando as varas tiniam ao se
encontrarem, em uma esquiva, ou quando se punham em guarda, ele
sentia que a força do braço de Robin era quase igual, senão a mesma, que a
do seu.
Levaram tempo assim, as varas a se retorcerem, como as asas de um
moinho, e os estalos da madeira, quando as varas se beijavam, ecoavam
entre as árvores e nas duas margens do arroio. De repente o estrangeiro
esquivou-se duas vezes. Por mais depressa que Robin se pusesse em
guarda, não pôde escapar do terceiro golpe, e a vara do gigante caiu-lhe
sobre o crânio, em violenta pancada.
— É teu o primeiro sangue! — disse Robin, sentindo as gotas quentes
que lhe escorriam pelo rosto.
— E o segundo é teu! — disse o gigante, rindo de boa sombra.
Robin, agora furioso, batia com o cajado como se fosse um mangual.
Seus golpes caíam, rápidos como o relâmpago, já aqui já ali, e por mais
vivo de olho que fosse o adversário, não conseguia livrar-se de pancadas
que lhe faziam chiar os ossos.
Tinham ambos contra si a estreiteza da ponte; cada passo para diante ou
para trás exigia grande cuidado, e a própria força que empregavam nos
golpes ou nas esquivas arriscava-os a cair de um ou outro lado.
Por maior que fosse a força daquele enorme homem, a ligeireza de mão
e de olho de Robin iam-lhe exigindo grande esforço. Já começava na
verdade a “fumegar”, e já o suor lhe escorria das faces em grandes gotas.
De repente Robin descarregou uma pancada na mão do homenzarrão, mas
logo em seguida, com um golpe furioso, este o fez perder o equilíbrio, e o
bandoleiro foi cair na água com um grande ruído.
Por um instante pareceu que João se admirava de já não encontrar
inimigo pela frente; depois, porém, enxugando o suor dos olhos, gritou:
— Olá, onde estás agora, bom menino?
Curvou-se, ansioso, e examinou a água, que corria rapidamente por
baixo da ponte.
— Por São Pedro! Tomara que o valente homem não esteja ferido!
Mas da margem, um pouco abaixo da ponte, veio logo uma voz, entre
risos:
— Por minha fé! Cá estou, grande camarada, direito como uma trempe.
Ganhaste o teu dia! E eu cá não preciso de atravessar a ponte.
Robin dirigiu-se para a margem e, ajoelhando-se, lavou a cabeça e o
rosto na água do riacho. Quando se levantou, viu o enorme estrangeiro
quase a seu lado, atirando água com as mãos para o rosto e a cabeça.
— Que é isso? Então não continuaste a jornada? Estavas com tamanha
pressa de atravessar a ponte, ainda há pouco, que não quiseste me dar
passagem, e agora vens de volta?
— Não rias de mim, bom camarada— disse o gigante, rindo
acanhadamente. — Não tenho onde ir, que eu saiba. Não passo de um
servo fugido do feudo, e esta noite, em vez do meu ninho quentinho, terei
de procurar uma moita ou tufo de ervas, que não seja lá muito ventilada.
Mas eu gostaria de te apertar a mão antes de nos separarmos, porque és o
cavaleiro mais honesto e bom que já encontrei.
Num instante a mão de Robin estava entre os enormes dedos do outro, e
ambos trocavam um aperto de mão significativo de mútuo respeito e
simpatia. Depois João voltou-se, e ia atravessar a ponte, quando Robin lhe
disse:
— Espera um pouco; talvez gostasses de cear antes de continuar tuas
andanças.
E levou a trompa aos lábios, tirando dela um sopro que acordou os ecos;
os melros ergueram o voo das moitas onde se abrigavam, e os animais que
vivem ocultos correram para as tocas mais próximas. O estrangeiro
parecia maravilhado, e Robin ficou escutando, à espera. Não tardou muito
que ouvissem rumores distantes; parecia que os veados e corças corriam
pelas moitas, e apareceram alguns homens, que vinham correndo por
entre as árvores.
Will Stuteley, o arqueiro, foi o primeiro a chegar à margem onde estava
o chefe.
— Mas… que te aconteceu, chefe, que estás molhado até os ossos? —
perguntou, olhando para o estranho com não disfarçada ira.
— Não foi nada — disse Robin, rindo. — Não vês este rapagão?
Combatemos a pau sobre a ponte, e ele me atirou abaixo.
Já então Much, o filho do moleiro, Scarlet e os outros tinham chegado, e,
ao ouvir estas palavras, Scarlet atirou-se para o estrangeiro, e com um
rápido jogo de pés e mãos deitava abaixo o homem. Então os outros
também se lançaram sobre o desconhecido, gritando:
— Sacudam-no, rapazes! Vamos dar-lhe um bom mergulho!
— Não, não! — gritou Robin, no meio de risadas. — Suspendam,
camaradas! Eu não fiquei mal com ele… Nós apertamos as mãos, porque
ele é um camarada bom e valente.
E, dirigindo-se a João, que ficara sem ação às mãos de tantos, e por um
pouco não fora lançado à água:
— Levanta-te, gigante, e escuta: nós somos proscritos, valentes rapazes
que fugimos de nossos amos malvados. Aqui estamos vinte e dois. Se
queres reunir-te a nós, poderás ter a tua parte, como nós, tanto nas
pancadas, como nas boas comidas, e no que de melhor pudermos pilhar
dos ricos padres fanhosos, prelados orgulhosos, lordes malvados e
mercadores sem entranhas que se aventuram pela floresta. És uma boa
mão no cajado; dar-te-ei melhor mão no arco. Agora fala, belo camarada!
— Pelo céu e pela terra, serei teu homem! — disse o estrangeiro,
adiantando-se vivamente e estendendo a mão, que Robin apertou com
força. Nunca ouvi palavras mais belas do que as que disseste, e hei de te
seguir e te servir de todo o coração.
— Como te chamas, bom rapaz?
— João de Stubbs — disse ele rindo —, mas chamam-me João Curto.
Todos riram gostosamente, reunindo-se em volta de João para lhe
apertar a mão, e gritando:
— João, ó João Curto, dá cá a tua mão comprida!
— Pois o seu nome vai ser mudado — disse o forte Will, o arqueiro. —
Nós vamos batizá-lo com boa cerveja preta. E agora, chefe, não seria
melhor voltar ao acampamento, e fazer uma festa de batizado?
— Ah! Rapazes — replicou Robin —, temos razão para estar alegres
hoje, sim. Temos um novo companheiro para o nosso bando e devemos
alegrá-lo com boa cerveja e gorda veação.
Voltaram ao acampamento, onde encontraram Scadlock, ocupado com o
grande caldeirão, que já fervia sobre o fogo; dali se desprendiam os odores
mais apetitosos, para aqueles homens de estômago excitado pelo ar da
mata. Robin mudou a roupa molhada, vestindo outra, tirada de um
depósito secreto que havia em uma caverna; e depois os proscritos
cercaram João Curto, que excedia a todos em altura, empunhando cada
um a sua caneca de madeira, cheia até as bordas de boa cerveja preta. E
Stuteley declarou:
— Agora, rapazes, vamos batizar o novo camarada, que entrou para a
nossa boa e livre companhia de rapazes das matas. Chamava-se até aqui
João Curto, e na verdade é um lindo nenê! Mas daqui por diante será
chamado João Pequeno. Três vivas, rapazes, ao João Pequeno!
E como fizeram retinir o ar do crepúsculo! As folhas das árvores
estremeciam com a vibração dos seus gritos. Depois, atirando longe os
canecos de cerveja, reuniram-se ao redor do caldeirão e mergulharam suas
tigelas no gordo guisado, entregando-se ao festim.
Depois João Pequeno contou-lhes o seu encontro com o couteiro, e
como ele o amarrara e lhe comera depois o jantar, mesmo à sua vista.
Riram a mais não poder, porque todos eles tinham alguma queixa de Hugo
Negro, ou dos outros couteiros, que atraiçoavam e oprimiam os pobres
camponeses que viviam na orla da floresta. Proclamaram João um rapaz
valente e esforçado, dizendo que, se apanhassem cinquenta como aquele,
estariam em condições de deitar abaixo o Castelo da Malvadez, ou o
Castelo dos Ladrões, em Hagthorn Waste.
Robin continuou a história de João Pequeno, contando como deixara o
couteiro amarrado “para pensar nos seus pecados, até que a coruja piasse”.
— Que queres dizer, chefe? — perguntou João Pequeno. — Voltaste lá
para cortar as cordas do patife?
Já estava escuro, e somente a luz do fogo alumiava os rostos trigueiros e
fortes dos homens que ali estavam deitados, ou acocorados.
— Não, eu não cortei a corda do patife! Mas a esta hora ele está livre, e
acredito que chorando de dor nos membros e clamando vingança contra
nós ambos.
— Como, chefe? — disse João Pequeno, assombrado.
Os outros também escutavam, admirados das palavras do seu chefe.
— Tenho amigos na floresta — disse ele — que me auxiliam de muitos
modos. Ainda assim, eles são acanhados com os estranhos e não gostam de
se mostrar, senão quando os conhecem melhor. Hob do Morro, vem cá,
rapaz!
E a estas palavras — com espanto e terror de todos eles — ergueu-se, de
um ponto escuro perto dos pés de Robin, um homúnculo de rosto longo e
pálido, cujos olhos negros brilhavam, como duas ameixas silvestres.
Alguns, sem tirar os olhos de cima do sujeito, se foram esgueirando;
outros persignaram-se; e Much, o filho do moleiro, despiu a túnica e virou-
a do avesso, murmurando:
— São Pedro! Livra-nos do poder dos espíritos maus!
— Estúpidos! — gritou Robin fora de si. — Hob não é um espírito mau,
mas um homem como qualquer de vocês; com pernas menores, talvez,
mas com maior inteligência.
— É um gnomo, chefe — disse um dos bandoleiros —, um duende ou
diabrete, segundo dizem. Ele leva os homens para os atoleiros, ou faz com
que andem toda a noite vagando à toa, nos pantanais.
— Eram os sujeitos da laia dele — disse Rafe, o carroceiro — que
trançavam as crinas dos meus cavalos de noite, deixando-os quase loucos!
— E é essa gente perversa — disse outro — que faz os círculos verdes
nos campos; se os animais comem aquilo, ficam envenenados.
— Não falem com um elfo — disse outro, pondo os dedos em cruz
diante do rosto, para se livrar do “mau-olhado” do duende —; quem fala
com eles morre.
Mas Robin disse desdenhosamente:
— Velhas tontas, é o que vocês todos são. Hob é um homem, digo-lhes,
que pode sofrer tanto como qualquer de vocês — tem o mesmo sangue
para derramar, os mesmos membros para suportar a tortura ou sentir a
queimadura do fogo.
E acrescentou, com a voz endurecida pela cólera:
— Escutem: Hob tem um irmão, chamado Ket. Ambos são meus amigos
fiéis. Muitas vezes me têm ajudado, muitas vezes me têm salvado a vida.
Proíbo-lhes a todos que façam qualquer dano ou mal a qualquer deles!
— Mas, chefe, eles são então teus amigos? — perguntou João Pequeno,
que sorria amavelmente para Hob. — E como chegaste a ganhar sua
amizade?
— Eu te digo. No verão retrasado, andava eu pelo interior desta floresta
e cheguei a uma clareira solitária onde jamais entram os couteiros, porque,
dizem eles, ela é assombrada, e nem os mais arrojados querem chegar
perto dela. Nessa clareira há dois montículos ou cômoros verdes. Ao
passar ao pé deles, vi ali três cavaleiros de pé e dois mortos. E os três
cavaleiros combatiam com dois gnomos — este homem e seu irmão. Hob
estava gravemente ferido, assim como o irmão, e os cavaleiros os
subjugavam. Assombrei-me então do que faziam, pois vi-os acender uma
grande fogueira, e, chegando mais perto, ouvi-os dizer que queriam ver se
aqueles gnomos ardiam como seu pai tinha ardido em Hagthorn Waste, ou
se eram demônios do fogo e se sumiam na fumaça. Então, quando eles
arrastaram os dois homens para o fogo, vi abrir-se uma porta de torrões
em um dos cômoros, e dela saírem três mulheres — uma velha e coxa, mas
as outras jovens, e bonitas, apesar de pequenas demais. Atiraram-se aos
pés dos cavaleiros, implorando piedade para os irmãos, e a velha ofereceu-
se para ser queimada em lugar dos filhos. Os cavaleiros cruéis, a princípio
assombrados com aquela vista extraordinária, pegaram as três mulheres,
jurando que iam queimá-las junto com os seus irmãos gnomos. Então não
pude mais suportar aquilo, e com três flechas do meu cinturão matei
aqueles malvados. Tirei os dois pobres rapazes do fogo, e desde então eles
e os seus companheiros têm sido os amigos mais caros que tenho
encontrado na floresta.
— Chefe — disse João Pequeno com ar sério —, foi um bravo feito o
teu, e isso prova também que ninguém pratica um ato de bondade em vão.
Levantou-se e curvou sua estatura de gigante até o pequeno Hob,
apertando-lhe a mão.
— Dá cá a mão, rapazinho — disse ele —, pois sou amigo de todos os
que amam o bom chefe Robin.
— E eu também — disseram os dois bravos camaradas Will Stuteley e
Scarlet, que se adiantaram.
O homenzinho foi estendendo a mão a todos, de um em um, olhando
atentamente para cada um deles.
— Hob do Morro será irmão de todos os que são irmãos de Robin Hood
— disse ele.
— Escutem, amigos — continuou Robin. — Justamente como nós
temos padecido com a malvadez e a opressão dos senhores cruéis, assim
também têm padecido o nosso amigo e o seu irmão. Os cinco cavaleiros a
quem eu e eles matamos pertenciam àquele bando infame que infesta
Hagthorn Waste e mantém todas as terras da vizinhança em constante
terror, de medo dos seus maus costumes. Sei que Ranulfo de Waste
praticou atos de crueldade contra o pai destes nossos amigos, e talvez não
esteja longe o dia em que possamos ajudar Hob e seu irmão a vingar,
naquele malvado senhor, as torturas que infligiu a seu pai. Que dizes,
Hob? Queres o nosso auxílio, se precisares dele?
— Se precisar dele, sim — replicou Hob, cujos olhos brilharam de furor
—, mas nós, o povo do Mundo Inferior, preferimos tomar vingança por
nossas mãos. Quando chegar a hora, nós a executaremos, e em toda a
extensão. Ainda assim, agradeço-te, Robin, e a teus camaradas, pelo auxílio
que me ofereces.
Falava o homenzinho com dignidade, como se agradecesse a um igual.
Apareceu então o pequeno Gilberto e pôs a mãozinha na mão forte do
homem do cômoro; e depois foi a vez de Much, o filho do moleiro; e todos
os outros, pondo de parte o medo de bruxaria, ao ver que Robin e João
Pequeno e os outros não tinham receio, vieram também dizer uma palavra
de amizade a Hob do Morro.
— E agora — disse Robin — somos todos irmãos da gente livre dos
bosques. Nunca mais vocês precisarão de ter medo de caminhar para além
do círculo de fogo, à noite, e nem recearão ir até a clareira mais afastada e
mais solitária a qualquer hora do dia. Vocês são agora cidadãos da floresta
inteira e familiares de todos os seus recantos.
— O mesmo digo eu — disse Hob. — Eu… o homem cujo povo
antigamente governou toda esta terra! Hoje nós, o Povo Pequeno, estamos
derrotados e somos meio temidos, meio desprezados; nós e nossos atos
inocentes, narrados em contos estúpidos por mulheres malucas e crianças
ç
assustadas ao pé da lareira. Mas eu dou-lhes — a vocês, que são os irmãos
do meu irmão — a velha palavra de paz e de fraternidade, que, antes que
os homens altos e claros viessem praticar suas rapinagens pela nossa terra,
nós, o Povo Pequeno, dávamos àqueles que nos ajudavam e eram nossos
amigos. Eu, que sou parente dos que antigamente foram senhores do
Mundo Inferior e do Mundo Superior, da Gente dos Cupins, da Gente das
Pedras e da Gente das Árvores, eu dou-lhes, meus irmãos, parte igual e
partilha na terra, no bosque, na água e no ar da floresta e do brejo.
Depois destas palavras, o homúnculo trigueiro saiu do círculo de luz e
de repente pareceu que se integrava na sombra das árvores, e dela fazia
parte.

[ 01 ] Anel ou círculo de cogumelos, que aparecem na grama úmida, e onde a crendice dizia que as
fadas vinham dançar à meia-noite.
[ 02 ] Puck é o nome de um duende e também de uma espécie de cogumelos. Daí o trocadilho,
intraduzível em nossa língua. — N. da T.
[ 03 ] Eram assim denominados os proscritos, cuja cabeça era posta a prêmio.
iii
Robin combate com o mendigo-espião, e
prende o xerife
v
ACABARA Oinverno; o fraco sol da primavera introduzia seus raios por entre
as árvores escuras e despidas da floresta de Sherwood, o vento brando
agitava os cachos de flores da aveleira, do salgueiro e do álamo, e o tordo,
que vivera na clareira cinco invernos, ia pousar alto, no topo do olmeiro
mais alto, e gritava para quem quisesse escutá-lo que não via mais neve em
parte alguma, que os brotinhos de todas as árvores estavam crescendo o
mais depressa que podiam, que os vermes já começavam a espiar do chão,
e que, enfim, o alimento, e a vida, e o amor iam voltando de novo ao
mundo, que durante longas semanas parecera morto e envolto para todo o
sempre em sua mortalha.
Diante dele estendia-se uma vasta clareira, inteiramente livre de moitas
e arbustos, mas tendo a um dos lados dois grandes cupins verdes, quase
lado a lado. Um deles ficava meio defendido pela sombra das árvores da
orla do mato.
Em toda a vasta clareira não se via sinal algum de vida humana. É
verdade que de um ponto da face do montículo mais afastado parecia
partir um caminho mal delineado, que se dirigia para a floresta; mas aquilo
podia ser apenas a trilha de um casal de lebres que tivesse feito seu lar no
cupim, pois é sabido que elas sempre seguem o mesmo caminho para
procurar alimento.
Subitamente, porém, do lado mais comprido da clareira surgiu da
floresta uma figurinha, que correu para um dos cupins; corria tão depressa
como uma lebre, e, chegando ao alto do montículo, pareceu sumir-se de
repente na terra. Era Hob do Morro. Dali a pouco, do lado do cupim que
dava para a floresta, caiu um bocado da turfa verde, e as duas figurinhas de
Hob do Morro e seu irmão Ket saíram de dentro. Olharam com atenção
em derredor, a relva tornou a fechar-se atrás deles, e, a passos leves, foram
indo pelo estreito caminho. Olhavam para trás de vez em quando, de
modo que iam conservando sempre o cupim entre si e algum olhar
bisbilhoteiro que por acaso estivesse a espiar na floresta, no ponto de onde
viera Hob.
Em pouco tempo alcançavam a fímbria da floresta, correndo então pelas
suas naves de árvores nuas e escuras. Por alguns instantes não se ouviu
rumor algum na clareira. Mas depois, daquele lado da floresta de onde
viera Hob, ouviu-se tropel de cavalos, ruído de armas, e pelo caminho
estreito desembocaram oito cavaleiros, que olharam para a frente, ao sair
na clareira.
O que vinha à frente era um homem de excelente aparência, quase
elegante até, e de belas feições. Trazia o vasto peito protegido por uma
couraça de malha, tinha na cabeça um capacete de aço, e na mão direita
uma lança. A seu lado, cavalgando um palafrém, vinha um homem de
humilde aparência e ar benévolo, que parecia um capelão, pois usava o
traje semimonacal dos clérigos. Atrás vinham seis homens, todos de lança,
couraça e capacete, aljava às costas, e arco ao alcance da mão, pendente do
arção da sela.
Tinham todos o olhar franco do homem livre e eram evidentemente a
guarda de corpo de proprietários livres.
— Então, senhor Gammell — disse o clérigo, olhando para os lados —,
que caminho é este? Neste caos de árvores e clareiras e cômoros, eu
gostaria de saber onde esperas achar esse teu parente proscrito.
— Pois é tão claro como a luz do meio-dia — disse Gammell, rindo. —
Que disse o bom rústico de Outwoods? “Para além dos dois vales,
atravessar o bosque na extensão de uma milha, até chegar aos rochedos. Vá
então até aqueles rochedos a pique de Clumber, do outro lado do rio, e…
provavelmente ali uma flecha, vinda Deus sabe de onde, entrando nas suas
costelas, lhe dirá que seu homem o avistou, ainda que o senhor não tenha
visto o menor sinal dele.” Já vês, bom Simão, que o caminho para o sítio
onde Robin está invernando é muito simples, e é só tocar para diante.
E metendo as esporas no cavalo, o chefe, Alfredo de Gammell, ou
Gamwell, tocou para diante, entrando na clareira, seguido do escrivão e
dos seis besteiros.
— Não vamos passar muito perto daqueles montinhos verdes — disse
Simão. — Dizem que dentro deles moram demônios, que podem fazer
feitiçarias contra nós, se passarmos dentro do círculo do seu poder.
— Bem se vê que não és camponês — disse Gammell rindo ainda. Há
muitos desses montículos espalhados no campo, por toda parte, e nunca
homem algum sofreu nada deles, que eu saiba. De fato, havia um na minha
grande propriedade de Locksley, e, apesar de meus camponeses me virem
pedir que não lavrassem em cima dele, eu disse que não podia deixar
aquilo ali, estorvando, quando podia dar um bom trecho de terra lavradia,
e mandei arrasá-lo; nada de mau se achou dentro dele, a não ser uma cova
no meio e uma talha velha, com alguns ossos queimados, além de tranças
de cabelo e pedaços de pedra. São túmulos antigos.
— Contudo, contam alguns livros — continuou o escrivão — que é por
esses grandes montes, em lugares solitários, que a gente penetra em terras
encantadas, onde reina um crepúsculo esverdeado, onde moram amáveis
demônios; e é ali que feiticeiros medonhos trabalham em suas artimanhas
e encantamentos, para perder as almas.
— Ora, creio que essas histórias não são mais verdadeiras do que os
cantos e contos dos menestréis mentirosos, que só servem para encher
uma ou duas horas vazias, mas não merecem o crédito de homens
instruídos.
Entretanto, o escrivão não tirava os olhos dos montículos verdes,
enquanto passavam por eles, como se esperasse ver a cada momento sair
dali alguma coisa misteriosa e perversa, para envolvê-lo nas malhas de
algum estranho encantamento.
Quando entraram na floresta, do outro lado, ainda continuava a volver
os olhos de um lado e outro pelos caminhos sombrios. A verdade é que
Simão não gostava dos bosques escuros. Vivera muito tempo na cidade, e
para ele não havia som mais suave do que a vozearia de homens e
mulheres regateando no mercado, nem vista mais agradável do que a rua,
com aquela faixa estreita de céu, limitada pelos altos telhados inclinados.
Já tinham andado cerca de meia milha pela floresta, quando ressoou de
repente, acima de suas cabeças, um grito agudíssimo. Parecia o grito de um
pássaro nas garras do falcão, e, instintivamente, todos ergueram os olhos
para ver a ave agonizante.
Mas uma voz poderosa bradou:
— Parem, viajantes! Não se movam!
A estas palavras baixaram imediatamente os olhos e, procurando em
roda, verificaram que onde tinham visto primeiro apenas escuros troncos
de árvores, havia agora uns vinte homens trajando túnica, calções e capuz
de cor parda, todos de arco entesado e com a mão já sobre a pena de uma
seta, erguida à altura da orelha.
Um ou dois dos soldados a cavalo soltaram pragas, baixinho, lá atrás do
amo, olhando ferozmente para todos os lados, como em busca de alguma
escapada. Mas os besteiros os cercavam por todos os lados. A cor parda da
túnica e das calças os igualavam tanto às árvores, que alguns pensaram por
um momento que o que viam era um tronco nodoso, quebrado de algum
carvalho; e foi só ao verem luzir a ponta da seta que se desenganaram.
Mordendo os lábios, Alfredo de Gammell sentiu-se a princípio
irritadíssimo. Mas sobrelevou o natural bom humor, e ele perguntou:
— Então, meus amigos, que querem de mim?
— Lança fora tuas armas! — disse um homem alto e forte, parado ao pé
do tronco de um carvalho, justamente em frente dele.
Obedeceram os seis besteiros de mau humor à ordem do ladrão, e
quando todas as armas jaziam no chão, veio outra ordem:
— Dez passos para a frente!
Então determinou que três de seus homens fossem buscar as armas
espalhadas no chão.
— Agora — disse ele a Gammell — vais ver o nosso amo, que governa
estes bosques.
— Mas quem pode ser o teu amo, homem grande? — perguntou
Gammell furioso —, enquanto o homem segurou as rédeas do seu cavalo e
levou-o para a frente.
— Ele to dirá. Mas é de esperar que tua bolsa esteja bem guarnecida,
pois ele te dará um bom jantar, e à tua companhia, mas terás de pagar a tua
parte.
Gammell não chegou a responder, porque nesse momento ouviram um
grito que vinha do lado das árvores; vinha de lá um homem muito alto,
tendo de cada lado um homúnculo. O homem alto estava de verde, com
uma capa ou capote, que lhe chegava aos joelhos; tinha à cabeça um capuz,
que lhe ocultava o rosto.
O ladrão que segurava as rédeas deteve o cavalo de Gammell quando o
homem de verde se aproximava e disse:
— Chefe, aqui está um grupo de homens tolos, todos armados; andavam
feitos malucos pelos teus matos, como se tivessem a tua palavra de paz,
que nem o próprio rei te tirou. Queres dar-lhes o jantar, ou devemos tirar
o pedágio de suas bolsas, deixando-os seguir para diante, mais leves e mais
sábios do que vieram?
Por um momento o homem de verde ficou considerando em silêncio,
olhando atentamente para o que estava a cavalo. Depois, soltando uma
alegre risada, aproximou-se dele de mão estendida, e, arrancando o capuz,
para que o outro lhe visse o rosto, disse:
— Dá-me a tua mão, meu primo, e perdoa as rudes maneiras de meus
homens!
Gammell, espantado, olhou intensamente para o rosto de Robin Hood,
porque era ele o homem de verde; depois, apertando a mão que ele lhe
estendia, disse alegremente:
— Robin! Robin! És tu, maroto! Eu devia ter reconhecido que eram
estes os teus fiéis companheiros! Pois vim até aqui expressamente para te
ver!
Saltou do cavalo e abraçou-se com o primo, e ambos se beijaram nas
faces. Depois Gammell afastou Robin, segurando-o sempre pelo braço, e
examinou, meio admirado, meio risonho, o rosto tisnado do sol, os olhos
brilhantes e destemidos, a cabeça coberta de cabelos escuros, a força e o
tamanho dos membros.
— Pelas Santas Relíquias! — disse enfim. — Dificilmente poderia eu
reconhecer-te, tamanho foi o desenvolvimento de teus membros, desde
que nos separamos em Locksley, há cinco anos! Robin, fiquei muito triste
ao saber que foste forçado a fugir para a floresta… É pena que tenhas tido
sempre tão livre a língua, e tão pronta a ação!
— Quanto a isso, rapaz — replicou Robin gravemente —, nada feito.
Nunca poderemos estar de acordo nesse ponto. Sempre achaste melhor
cortejar o forte lorde cujas terras confinam com as tuas, e fechar os olhos
para muitas coisas, contra as quais eu sentia que devia falar e combater.
Mas dize-me agora, primo: Quem te trouxe até cá?
— Vim ver-te, Robin, e agradecer-te; e também trazer-te um aviso!
— Agradecer-me?
— Sim, por aquele teu nobre feito em Havelond! Não foi mais do que
justiça o que fizeste àqueles traidores e ladrões de nossa pobre prima,
depois que ela em vão implorou justiça ao tribunal do rei — em verdade,
ao próprio rei.
Fora aquele um ato que granjeara quase tanta fama para o bandoleiro
como o que primeiro executara, matando os soldados do lorde abade. É
que uma sua prima, lady Alice de Havelond, recorrera a ele para obter
justiça. É o caso que seu marido, um fazendeiro rico de Scaurdale, no
Yorkshire, chamado Bennett, fora preso há dois anos por um daqueles
cavaleiros escoceses, que andavam à pilhagem, como gatos-monteses, e
posto a resgate. Na ausência dele, seus vizinhos Tomaz de Patherley e
Roberto de Prestbury se haviam apoderado de seus campos, repartindo-os
entre si, derrubando as casas e expulsando a dona, lady Alice, que não
conseguiu obter justiça nem da corte do rei, nem do mordomo do feudo.
Ela conseguiu pagar o resgate do marido, depois de um ano de prisão
deste: mas quando ele voltou, e foi reclamar a restituição do que lhe
pertencia, deram-lhe tamanha sova que quase perdeu a vida. Então ela se
dirigiu à Corte e pediu justiça, que não obteve, e os dois ladrões cruéis iam
continuando na posse do que haviam pilhado. Recorreu ela a Alfredo de
Gammell, seu parente, que prometeu falar ao rei, mas, já desesperada de
encontrar justiça na Corte, lady Alice montou a cavalo e, acompanhada de
uma serva e de um criado, fora à floresta em busca de seu primo Robin
Hood, a quem pediu auxílio. O bandoleiro prometeu ajudá-la, e ela a
ninguém contou o que fizera. Dali a poucos dias ardiam duas casas em
Scaurdale — era a vingança que caía sobre os dois ladrões. E Robin
cumpriu a promessa: os campos de Bennett de Havelond voltaram-lhe às
mãos.
— Pois o que te digo — disse Alfredo de Gammell — é que aquele teu
ato levou todos os senhores arrogantes que viviam ao pé das florestas a
considerar que, se oprimirem os outros com muita crueldade, poderá
acontecer-lhes a mesma coisa.
E Gammell, apesar da repulsa que sentia, como homem bem-educado,
pelos atos violentos, não escondia a sua admiração pelo bandoleiro.
— Assim o espero — disse este, com ar severo. — Se os que cometem
tais iniquidades ficarem impunes, como foi o caso dos que roubaram
Bennett e a nossa prima, então a quem irão recorrer, para pedir socorro, os
que se virem oprimidos? Não será certamente aos teus suaves padres, meu
primo — que esfolam os pobres como qualquer barão ladrão, e que
enchem a bolsa com o dinheiro extorquido aos pobres camponeses… Mas
dize-me agora contra quem me vens avisar?
— Contra sir Guy de Gisborne e seus pérfidos planos. Estive ontem em
Outwoods, que está agora nas mãos do mordomo do rei, até que decorra
um ano e um dia da data da tua proscrição. Lá procurei falar com Cripps,
velho administrador, que sei ser teu amigo; disse-me ele que sir Guy
guarda no coração cheio de ódio a derrota que tu lhe infligiste com teus
companheiros. Antes que o fizesses sair da casa em chamas, era já um
homem odiento, mas agora está mais malvado e mais duro. E jurou, com
pragas temerosas, apanhar-te, vivo ou morto.
— De que planos falava Cripps?
— Ele é agora unha e carne com Rodolfo Murdach, o xerife de
Nottinghamshire, e os camponeses dizem que ouviram de alguns homens
que andavam vagabundeando por ali que sir Guy e Murdach andam
subornando bandidos para se disfarçarem de mendigos, peregrinos e
mascates e saírem a andejar pelas florestas à procura de teus esconderijos,
de modo que um dia eles consigam apanhar-te com os seus soldados.
— Agradeço-te o conselho — disse Robin, que não parecia, entretanto,
dar muita importância ao caso. — Agora jantarás comigo — tu e teus
homens.
Já então tinham chegado a um lugar secreto, em um morro abrupto e
coberto de mato, ao lado de um arroiozinho, e acharam preparado em uma
caverna um festim, a que todos renderam inteira justiça.
Robin e seus homens indagaram de Gammell se sir Guy tratava agora os
vilões do feudo com mais rigor do que dantes.
— Dizem que não, e isso por uma boa razão: conta-se que quando o
abade Roberto de Santa Maria soube que tinhas matado os soldados, e do
combate de teus homens, ficou furioso com sir Guy, dizendo-lhe que ele
tinha esgotado a paciência do povo do feudo e que devia ter mais cuidado,
senão não o suportaria mais ali. De modo que os homens já não são
tratados com tanta desumanidade como dantes, ainda que sir Guy lhes
tenha mais ódio do que nunca.
— Milagre! — disse Scarlet desdenhosamente. — Uma palavra de
misericórdia daquele beiçudo, cara larga, o abade de Santa Maria!
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— Quem sabe, tio — disse Gilberto da Mão Branca, que sempre desejara
ser padre e aprender a ler —, quem sabe se o abade nunca disse a sir Guy
que oprimisse a gente do feudo, mas ele mesmo o fazia porque tem um
coração de tirano, não é?
E era isso mesmo o que pensavam alguns dos proscritos, que dali em
diante já não faziam tão má ideia do abade.
Dali a pouco despediam-se Gammell e sua gente, e Robin Hood e alguns
outros os acompanharam até a orla da floresta, deixando-os no caminho
da aldeia de Locksley, que ficava ao sul, além da cidadezinha de Sheffield.
Uns três dias depois, ia Robin andando uma tarde ao lado da estrada
larga que vai de Pontefract, pelo meio da floresta, para Ollerton e
Nottingham. Ia pensando no que lhe dissera o primo sobre os planos de
Guy de Gisborne de capturá-lo, morto ou vivo, quando ouviu passos, e viu
um mendigo que vinha pela estrada.
Robin, do meio das árvores, podia ver o homem, sem que este o
observasse, e, quando o viu andando com uma grande haste de lança na
mão, perguntou consigo se aquele homem seria de fato um verdadeiro
mendigo, ou um dos espiões a quem Guy de Gisborne encarregara de
vigiá-lo.
A capa do homem estava remendada em cinquenta lugares, de sorte que
mais parecia uma coleção de pedaços de capotes; calças rasgadas cobriam-
lhe as pernas, e calçava grandes botas de couro curtido. Pendia-lhe do
pescoço, preso por uma larga correia, o saco do farnel, e do cinto uma
longa faca, metida na bainha de couro. O chapéu, de tão grosso e pesado,
parecia feito de três chapéus sobrepostos.
O que despertou as suspeitas de Robin foi que o homem parecia vestido
intencionalmente, e não dava a impressão de ser mendigo de fato. Além
disso, olhava incessantemente para um lado e outro, como se procurasse
entre as árvores alguma trilha disfarçada.
Já o mendigo tinha passado por ele, quando o bandoleiro gritou:
— Para, mendigo! Por que vais com tanta pressa?
O homem não respondeu, mas apressou mais ainda os passos. Robin
correu-lhe no encalço, mas ele voltou-se zangado, reboleando a vara. Era
de má catadura, tendo uma cicatriz que lhe ia da sobrancelha à face.
— Que me queres, mateiro? Então não pode um homem andar
pacificamente pela estrada, que é do rei, sem que qualquer vagabundo
ocioso venha estorvá-lo?
— És muito grosseiro, mendigo. Já te vou dizer por que te ordenei que
parasses: tens de pagar pedágio antes de prosseguir pela floresta adentro.
— Pedágio — disse o mendigo, dando uma boa risada. — Se esperas que
te pague pedágio, vagabundo, não sairás daqui antes de um ano.
— Vamos, vamos, desata a capa, homem, e mostra-me o que tens na
bolsa! Pela roupa se vê que és um mendigo rico — se és mendigo de
verdade, e não um patife disfarçado em um honesto pedinte.
O homem, apertando a vara na mão, olhou suspeitoso e ameaçador para
Robin.
— Não, rapaz — disse este de bom humor —, não agarres teu cajado
com tanta ferocidade. Com certeza hás de ter na bolsa ao menos uma
moeda com que pagar o pedágio a um pobre mateiro.
— Vai ganhar teu dinheiro, patife, gatuno — resmungou o mendigo. —
De mim não tiras nada! Não tenho medo de tuas setas, e muito me
alegraria de te ver pendurado à forca — como espero mesmo ver dentro
em pouco.
— E certamente, se puderes ganhar moedas indignas com uma traição
— disse Robin —, não te vais contentar com um trabalho qualquer, não?
Pois olha, parecias mesmo um mendigo verdadeiro! Traição e patifaria é o
que se vê estampado na tua cara. Agora escuta! Sei que és um traidor, a
soldo de um homem perverso, mas não ficarei na falta de meu pedágio.
Atira ao chão a tua bolsa, ou eu te atravessarei com uma grande flecha!
Enquanto falava, ia Robin se aprestando para ajustar uma seta à corda
do arco. Para andar mais depressa olhou para a corda, e isso lhe foi fatal.
Com um salto de gato-do-mato, o mendigo pulou para a frente e vibrou-
lhe uma pancada, e num instante voaram da mão do bandoleiro arco e
flecha.
Ele saltou para trás e puxou da espada, mas, rápido como o pensamento,
o mendigo lhe deu outra pancada violenta, desta vez na cabeça. Robin caiu,
desmaiado, justamente no instante em que ressoavam gritos entre as
árvores ao lado da estrada. O mendigo olhou para todos os lados, levou a
mão ao cabo da faca pontuda que tinha no cinto e agachou-se, para cair
sobre o homem prostrado e dar cabo dele.
Mas do meio de uns arbustos, alguns metros mais adiante, saltou um
homem de roupa parda, e mais dois o seguiram. Olharam para o mendigo,
que imediatamente assumira um ar despreocupado, e foram andando,
desaparecendo logo em uma volta do estreito caminho.
Dois eram jovens recrutas do bando de proscritos, o outro era Dodd, o
soldado que se rendera a Robin, quando este matara Hugo de Lynn.
Quando estavam indo, ele avistou repentinamente o arco e a flecha que
tinham escapado da mão de Robin, e parou.
— Mas… que se passou aqui? — disse ele. — É o arco do nosso chefe.
Conheço-o pelo tamanho, porque não há outra mão que possa abarcá-lo.
— Olha! Olha — disse um dos outros, correndo para trás da moita onde
Robin estava caído. — Aqui está um homem ferido… pela Santa Virgem! É
o nosso chefe! Mas, por São Pedro, quem teria feito esta malvadez?!
Dodd ajoelhou-se ao pé do seu chefe e meteu-lhe a mão por dentro do
gibão, para ver se o coração ainda batia. E gritou:
— Graças aos Santos, rapazes! Ele está vivo! Corram ao arroio, ali junto
do espinheiro-branco, e tragam água nos capuzes!
Com a frescura da água, Robin logo tornou a si. Suspirou
profundamente, levando a mão à cabeça dolorida, e abriu os olhos.
— Ó chefe — disse Dodd —, dize-nos quem te tratou com tamanha
vilania! Certamente foi à traição. Quantos te atacaram?
Robin sorriu, ainda fraco, ao ver os três rostos curvados acima dele, mas
dali a pouco se sentia bastante recobrado para poder sentar-se. E disse:
— Não era mais que um; um patife disfarçado de mendigo. Atirou-se a
mim, com uma grande lança, quando eu acertava a seta ao arco, e, antes
que pudesse me defender, prostrou-me aqui, sem sentidos.
— Por minha fé! — disse Dodd —, era aquele maroto que encontramos
na estrada, e que parecia tão inocente!
Voltando-se para os outros, ordenou:
— Corram, rapazes, mostrem agora a sua capacidade: prendam-no e
tragam-no aqui, para que o nosso chefe possa matá-lo, se quiser.
E Robin acrescentou:
— Mas sejam cautelosos ao se aproximarem do patife. O que me perdeu
foi a minha tolice, pois cheguei muito perto do mariola. Se o permitem, ele
os põe fora de combate.
Prometeram os dois aproximar-se com cuidado e saíram depressa,
enquanto Dodd ficou junto de Robin, até que este se sentisse bastante
forte para andar e seguir para o acampamento.
Enquanto isso, os dois jovens bandoleiros, sabendo que o mendigo não
podia afastar-se da única estrada que havia na floresta, correram para
apanhá-lo. Um deles, chamado Bat, lembrou que podiam ir por um atalho
e esperar o mendigo em um ponto em que a estrada era mais estreita. E
assim fizeram. Eram fortes de pernas, e se tivessem a inteligência tão viva
como os sentidos, tudo lhes teria saído bem. Mas tinham abandonado
apenas há três semanas o arado e os duros trabalhos do campo de seu
senhor, e não eram ainda tão vivos de espírito como se haviam de mostrar
mais tarde, já adestrados pelos perigos da floresta.
Lá iam eles correndo por entre as árvores, atravessando clareiras e
brejais, sem que os detivessem lagos ou pântanos, barrancos nem outeiros.
Afinal chegaram de novo à estrada real, num sítio onde esta atravessava
um fosso. Embaixo havia um grosso toro de madeira, e ali a estrada
estreitava-se, e eles se esconderam, cada um de um lado da estrada, atrás
das árvores.
Não tardou que ouvissem o som de passos, vindo do morro, e, espiando
para o caminho, viram que era o mendigo que tinham encontrado próximo
ao lugar onde o chefe desmaiara.
Quando o homem fronteou o seu esconderijo, ambos se atiraram a ele, e
enquanto um lhe arrancava a vara da mão, o outro lhe tirava a adaga da
cinta, virando-a contra o peito do dono.
— Sujeito traiçoeiro! Não penses em resistir, senão vais morrer sem
confissão!
Com o rosto congestionado de raiva, o mendigo olhava para os lados, a
ver se achava escapula. Mas não via meio de fugir, e resolveu recorrer à
astúcia para se livrar de apuros.
— Bondosos senhores — disse humildemente —, poupem-me a vida!
Tirem daí essa medonha faca tão pontuda, senão eu morro de puro medo.
Que fiz eu para que queiram assim me matar? E que lhes aproveitará a
minha morte, se matarem e roubarem um pobre mendigo?
— Mentes, patife disfarçado! — gritou Bat, indignado. — Acho que é
melhor cravar-te imediatamente a tua própria faca nas costelas malditas.
Estiveste a ponto de matar o homem mais delicado e mais valente que
existe em Sherwood e Barnisdale! E agora vais voltar, bem amarrado e
entrouxado, e ele julgará se deves morrer feito alvo de quatro flechas, ou
enforcado em uma árvore, por seres indigno de agasalhar na vil carcaça
quatro boas flechas.
— Bondosos senhores — disse o mendigo com voz lamentosa —, então
aquele mateiro que eu feri há pouco ficou quase morto? Oh! Pela Santa
Cruz! Mas foi apenas para me defender que lhe bati. Sinto muito que
minha pancada desastrada quase o matasse…
— Maldito serias, se o tivesses matado! — disse Bat. — Não penses que
aquela vida havia de estar à disposição de teu sujo cajado! Ele há de viver,
para te dar a paga nesta mesma hora, podes ter certeza disso.
Voltando-se para o camarada, disse:
— Agora, Micael, vamos enfardar este patife, amarrando-o com o seu
próprio cinto de corda, e arrastá-lo para onde está nosso chefe. Estás agora
bem feio, maroto, mas vais ficar mais feio ainda quando estiveres
sacudindo-te e fazendo caretas, com o pescoço em uma laçada!
Viu o mendigo que Bat era homem decidido, e que, se não forjasse
imediatamente alguma velhacada para lhe escapar das mãos, sairia tudo
como o outro dizia.
Então disse, com a voz trêmula:
— Ó valentes cavaleiros, sejam bondosos e poupem a vida de um pobre
mendigo. Sinto muito ter feito algum mal ao bravo nobre, seu chefe. Mas
farei de boa vontade uma boa compensação por algum dano que lhe tenha
causado. Deixem-me livre e dar-lhes-ei vinte marcos que trago no saco,
assim como outro tanto em moedas de prata, que tenho escondidas nos
meus trapos.
A estas palavras os olhos de ambos os rapazes faiscaram. Nunca tinham
tido dinheiro na vida, e a oportunidade de ganhar dez marcos — soma
fabulosa para eles — teve mais poder do que a sua lealdade ao chefe.
— Mostra-nos o dinheiro, velho vagabundo — disse Bat. — Acho que
estás mentindo. Mas vamos lá ver isso!
Soltaram o mendigo, e ele desamarrou a capa, deixando-a no chão.
Depois tirou dois grandes sacos, onde os rapazes supunham que trazia
comida, carne e pão, pondo-os também no chão, diante de si.
Por fim tirou do pescoço a grande correia que prendia outro saco.
— Neste — disse ele — escondo meu dinheiro para estar mais seguro.
Está cheio de trapos, com os quais forro minha roupa, quando o frio é
muito forte, e meus sapatos, para aquecer os pés.
Quando o homem erguia o cinto para o tirar pela cabeça, viu Bat que ele
trazia metida debaixo do braço esquerdo uma bolsa, suspensa por uma
correia fina. Parecia tão destramente escondida, que o bandoleiro pensou
que havia de conter alguma coisa de grande valor, e já suspeitava que o
mendigo, com todos aqueles preparativos que fazia, pretendia subtrair-
lhes a parte mais importante de sua riqueza.
Curvou-se para a frente, segurou com força a correia, e com um gesto
rápido cortou-a com a faca, ficando com a bolsa na mão. O mendigo
tentou arrancar-lha, mas viu-se impedido pelo grande saco que tinha
diante de si. Lutou para apanhá-la, mas ambos os rapazes apontaram-lhe a
faca ao peito.
— Vamos, patife — disse Bat —, fica quieto, senão te tiramos já a vida, e
também teus bens. E trata de não armar ciladas, senão vais te ver mal.
Viu o mendigo que Bat já estava ficando desconfiado, e não procurou
mais apanhar a bolsa, que o bandoleiro escondera no peito da túnica.
Deitando olhares furiosos, descansou no chão o enorme saco e curvou-se
para ele, ficando os bandoleiros atentos, para impedir que recorresse a
alguma astúcia.
Meteu as mãos no saco e, de repente, lançou-lhes à cabeça uma nuvem
de farinha. Cegos, os dois bandoleiros imediatamente recuaram, gritando
imprecações e ameaças contra o mendigo, que não viam onde se achava.
Dali a um momento, porém, sentiram-lhe o peso do cajado na cabeça,
pois ele apanhara mais que depressa a vara, atacando-os a pancadas rijas.
Bat, com os olhos ainda a doer, cheios de farinha, sentiu a mão do
mendigo que lhe tateava a túnica, mas deu-lhe um golpe com a adaga, que
conservara, e viu confusamente que o outro retirava a mão ensanguentada
e se preparava para lhe vibrar uma grande paulada na cabeça.
Compreendeu então que aquela bolsa continha alguma coisa de valor.
Esquivou-se justamente no momento em que a vara caía com um golpe tão
pesado, que, se o tivesse alcançado, lhe partiria o crânio. Sem olhar para
trás, Bat tratou de correr o mais depressa que pôde, seguido pelo
camarada. Por algum tempo seguiu-os o pedinte, mas via-se tolhido pela
roupa pesada, e não levou muito longe a perseguição.
Era já quase noite, e foi em um triste estado que os dois rapazes se
dirigiram para o acampamento.
— Não passamos de dois grandes tolos — disse Bat — e oferecerei de
boa vontade as costas para as lambadas do nosso chefe.
— As minhas doem tanto — disse Micael — das pancadas daquele
bruto, que por enquanto não pedirei mais sova alguma a ninguém. Creio
que me vou esconder, até que me ache menos chagado, e que a cólera do
chefe tenha esfriado.
— Foge então, asno! — disse Bat, irritado consigo mesmo e com o
camarada. — E vai rebentar de fome no mato, ou volta para o feudo, servo
fugido, para seres surrado pelo mordomo do senhor — porque é o que vai
acontecer.
Mas Micael tinha tanto receio da solidão do bosque como do braço forte
do carrasco do amo, então preferiu ir com Bat e suportar o castigo que
Robin lhes destinasse.
Chegaram ao acampamento justamente quando os bandoleiros iam
sentar-se para cear, e Bat contou tudo com uma franqueza que provava
quão envergonhado se sentia. Robin ouviu-o pacientemente, depois disse:
— Tens ainda a bolsa que tiraste do vagabundo?
Bat não se lembrara mais da bolsa, mas verificou que ainda estava
dentro da túnica e entregou-a ao chefe, que lhe ordenou segurasse uma
tocha, enquanto ele examinava o conteúdo.
Tirou primeiro três moedas envolvidas em farrapos, depois um anel com
um desenho gravado, e por último, do fundo da bolsa, extraiu um pedaço
de pergaminho dobrado. Abriu-o e alisou-o sobre o joelho, e leu,
devagarinho, é verdade, pois que aprendera o latim, em menino, na casa de
seu tio em Locksley, mas poucas oportunidades tivera depois de fazer
leituras.
Devagarinho, pois, foi lendo as palavras latinas, e, quando lhes
compreendeu o sentido, seu rosto se tornou duro e severo. Aqui estão as
palavras traduzidas:
“Ao respeitável senhor Rodolfo Murdach, xerife dos condados de
Nottingham e de Derby, saudações.
“O portador desta, Ricardo Malbête, é aquele de quem te falei, e que me
foi recomendado pelo meu amigo, sir Niger le Grym. É um homem
astucioso e arrojado, que não enjeita tarefa sendo boa a paga, nem se
esquiva a atos extremos: esperto, espírito vivo e fértil em velhacadas e
emboscadas. Mas deves mantê-lo longe do vinho, senão é homem inútil.
Ele te ajudará a engendrar planos e ciladas que nos trarão às mãos aquele
bárbaro ‘cabeça de lobo’, Robin, e que darão cabo do bando, sempre
crescente, de ladrões que o acompanham. Espero ter dentro em breve
notícias muito boas.”
Não trazia assinatura, porque naquele tempo os homens não assinavam
as cartas com o seu nome, mas com o selo, e aquela tinha uma obreia de
cera azul com o sinete de sir Guy de Gisborne — uma espada, encimada
por uma cabeça de homem de má catadura.
Robin olhou para Bat e Micael, que, de cabeça baixa, pareciam muito
envergonhados.
— Vocês não servem para bandoleiros — disse severamente. — Não
passam de gatunos e ladrões vulgares, devem ir para a cidade e emboscar-
se em tabernas, para roubar os bêbedos, que não se podem defender.
Quando dou ordem para que façam uma coisa, essa coisa deve ser feita,
seja qual for a tentação que apareça diante dos seus olhos. Mas, como
vocês são recém-saídos do arado, fica por isso mesmo, desta vez.
Depois acrescentou, em tom mais benigno:
— Vão cear, e não se esqueçam de que espero que sejam daqui por
diante rapazes bons e diligentes.
Bat jamais ouvira, até então, uma palavra bondosa de um superior, e
sentiu-se profundamente comovido com o que ouvira do chefe. Disse-lhe,
pondo um joelho em terra:
— Chefe, fui um louco e mereço castigo. Mas, se não queres punir-me
com pancadas, dá-me então uma tarefa bem difícil, para que eu possa
varrer da memória a lembrança da minha estupidez.
— E deixa-me ir com ele, bom amo — disse Micael —, porque eu te
servirei com valentia.
Por um momento Robin olhou para eles, sorrindo de sua vivacidade.
— Vão cear agora, rapazes. Pode ser que lhes dê uma tarefa dentro em
breve.
Terminada a ceia, chamou João Pequeno e disse-lhe:
— João, aquele soberbo oleiro de Wentbridge já foi para a cidade?
— Sim, senhor. Ele passou ontem, levando a carroça carregada de potes
e panelas. É um sujeito decidido aquele, e assim que a neve derrete, não
fica feito gata borralheira, não!
Indagando onde poderia o oleiro estar alojado naquela noite, Robin
chamou Bat e Micael.
— Vocês pediram trabalho, pois vou lhes dar serviço. Talvez seja difícil,
mas vocês devem executá-lo, por fás ou por nefas. Conhecem bem os
caminhos da floresta, daqui a Mansfield, pois ambos vieram fugidos de seu
senhor, do feudo de Warsop. Quero agora que vão a Mansfield esta noite e
procurem o orgulhoso oleiro de Wentbridge. Digam-lhe que eu lhe peço
um serviço: desejo que me ceda sua roupa, seus potes, carroça e cavalo,
porque quero ir disfarçado ao mercado de Nottingham.
— Nós faremos tudo bem-feito e de boa vontade, chefe. Vamos buscar
os cajados, espadas e escudos, pondo-nos a caminho imediatamente.
João Pequeno ria às gargalhadas.
— Falas como se isso fosse só chegar e dizer: “Dito e feito!” Mas se não
conheces o altivo oleiro de Wentbridge, logo ele sanará essa falta no teu
corpo com o auxílio de seu grosso cajado!
— Sei disso, João Pequeno — disse Bat, rindo também. — Sei que ele te
deu aquela lição…
— É verdade — disse o honesto João. — Saí-me mal, quando lhe
ordenei que pagasse o pedágio aos bandoleiros na última colheita, porque
ele me deu três pancadas que jamais hei de esquecer!
— Toda a Sherwood soube disso — continuou Bat —, mas o altivo
oleiro é um homem muito cortês, segundo tenho ouvido dizer. Entretanto,
queira ou não queira, há de fazer a vontade ao nosso chefe!
— Então — disse Robin —, irei encontrá-los esta madrugada, na floresta
de Herne, na encruzilhada além de Mansfield.
— E nós não falharemos, chefe; cumpriremos todas as tuas ordens.
E juntos partiram, Bat e Micael, dirigindo-se para Mansfield.
No dia seguinte, entrava na praça do mercado de Nottingham um
pequeno pônei escuro, puxando uma carrocinha cheia de potes e panelas
da boa louça de barro de Wentbrigde. O oleiro, homem forte de membros,
gordo e corado, vestia túnica e capa escuras, de pano grosseiro,
remendadas em vários lugares; o cabelo não parecia ter muitas relações
com o pente. Na verdade, Robin estava muito bem disfarçado.
Granjeiros, verdureiros, mercadores e carniceiros amontoavam-se na
praça do mercado, e alguns já tinham assentado suas barracas ou tendas,
enquanto outros estavam atarefados em descarregar seus carrinhos, ou em
tirar os cestos do lombo dos burros. O oleiro acomodou suas bilhas ao
lado do carro, depois de dar ao cavalinho a ração de cevada e aveia, e só
então começou a apregoar sua mercadoria.
O lugar que escolhera ficava apenas a cinco passos da porta da casa do
xerife; era uma casa de madeira, adornada com muitos desenhos, e
ocupava um lugar proeminente em uma das faces da praça do mercado. Os
olhos do oleiro voltavam-se constantemente para a porta daquela casa,
agora aberta, por onde entravam e saíam as pessoas que tinham negócios
com o xerife.
— Bons potes de barro! — gritava o oleiro. — Comprem meus potes!
Potes e panelas! Barato e bom hoje! Venham, damas e damiselas!
Guarneçam suas cozinhas com a minha boa louça!
E tanto gritou que dali a pouco se via rodeado de uma multidão de
camponeses, que tinha vindo ao mercado para fazer compras e começou a
regatear com ele. Mas ele não cessava de vender; cada um levava a bilha ou
caçarola pelo preço que oferecia. O ruído daquelas vendas de potes tão
baratos em breve correu toda a praça, e não tardou que ficassem apenas
uns seis ou oito potes para vender.
— O sujeito é um asno — disse uma mulher —, não é louceiro, não.
Pode ser que ele faça bons potes, mas não entende nada de vendas. Não
vai enriquecer no negócio, que esperança!
Nisto vinha saindo de casa do xerife uma criada, e Robin chamou-a,
pedindo-lhe que apresentasse à mulher do xerife os cumprimentos
respeitosos do oleiro de Wentbridge e lhe perguntasse se queria aceitar o
resto da louça, de presente. Dali a pouco lá estava a própria Dona
Margarida.
— Muito obrigada pelos potes, bom freguês.
Tinha os olhos muito risonhos e falava com muita amabilidade.
— Estou muito contente com eles, pois é louça excelente, e sem uma
trincadura. Quando vieres outra vez, bom freguês, avisa-me de chegada,
que comprarei todo o sortimento.
— Madama — disse Robin, tirando o chapéu e fazendo uma mesura, à
moda da gente do campo —, terás o que houver de melhor no meu carro.
Não te darei louça rachada, nem falhada, pela Santa Hóstia! Mas cada peça
cantará com uma nota límpida, quando lhe deres uma pancada.
Achou a mulher do xerife que aquele oleiro era um homem muito cortês
e bem-educado, e pôs-se a conversar com ele. Nisto tocou uma sineta
dentro de casa e a dama disse:
— Entra, se quiseres, bom freguês, e jantarás comigo e com o xerife.
Era o que ele queria… Agradeceu à dama, que o conduziu à sala onde
suas criadas estavam costurando. Naquele momento, abriu-se a porta e
entrou o xerife. Robin olhou com atenção para aquele homem, que vira
apenas uma vez. Sabia que o xerife, Rodolfo Murdach, era um rico
sapateiro que comprara o cargo, por muito dinheiro, do ambicioso bispo
de Ely, e que, para se indenizar, agora extorquia do povo tudo o que podia.
— Olha o que este mestre oleiro nos deu — disse dona Margarida,
mostrando os potes, que estavam sobre uma banqueta, ao pé dela. — Seis
potes de excelente louça, tão bons como os que são feitos em Low
Countries.
O xerife, um homem alto e magro, de olhar duro e impertinente, mal
olhou para Robin, que se curvou diante dele.
— O bom freguês pode almoçar conosco, xerife? — perguntou a dama.
— Será bem-vindo — disse o xerife desabridamente. — Vamos lavar as
mãos e tratar de comer!
Estava de mau humor, porque vinha faminto, e, além disso, se vira
logrado em um negócio.
Foram para o salão, onde estavam já uns vinte homens esperando o
xerife e sua senhora. Alguns eram empregados e homens da casa do xerife,
outros eram ricos fregueses do mercado.
Quando o xerife e sua mulher tomaram lugar, à cabeceira da mesa, todos
os outros se sentaram; designaram a Robin um assento, no meio da outra
ponta. À frente de cada conviva havia uma colher de chifre e uma enorme
fatia de pão; mas para as bebidas havia apenas um copo de estanho para
servir a dois vizinhos. Entraram os bichos da cozinha, trazendo carnes
assadas em espetos de prata, que giravam de mão em mão entre vários
hóspedes; então cada um deles tirava a faca do cinto, esfregava-a na perna,
para limpá-la, e cortava o pedaço que queria do próprio espeto, deitando a
carne sobre a grossa fatia de pão. Depois, servindo-se dos dedos como
garfos, ia comendo o jantar — isto é, seu fatacaz de pão com carne.
No soalho coberto de palha, cães e gatos lutavam pela carne ou os ossos
que lhes atiravam, e da porta espiavam mendigos, gritando por alguma
esmola, ou restos de carne. Às vezes algum dos convivas da ponta inferior
da mesa lançava um osso a um deles, com a intenção de feri-lo, mas o
mendigo apanhava-o destramente e se punha a roê-lo. Mas quando — o
que não era raro — os mendigos se mostravam muito audaciosos e
aventuravam-se a chegar quase até a mesa, um servo atirava-se a eles de
vara em punho, malhando-os e espancando-os, até lançá-los fora da porta.
De repente um mendigo insolente entrou resolutamente pela porta
adentro e caminhou por entre os cães até a cabeceira da mesa.
Imediatamente um servo correu e segurou-o, pretendendo arrancá-lo dali.
Mas o mendigo lutava com o servo, gritando:
— Eu tenho de falar com o xerife! Trago uma mensagem de um
cavaleiro!
O servo não queria saber de nada e começou a empurrá-lo para a porta.
O rumor da luta chamou a atenção dos convidados, e Robin, olhando para
o grupo, reconheceu o mendigo. Era o espião de sir Guy de Gisborne, que
encontrara na véspera e que enganara os dois bandoleiros mandados por
ele para apanhá-lo — Ricardo Malbête, ou como o chamaria um inglês,
Illbeats. E tudo isso quer dizer “Má besta”.
Lutava o mendigo valentemente por se libertar, mas o servo era um
sujeito de grande força, e seu esforço era inútil. De repente, gritou:
— Mercê, senhor xerife! Trago uma mensagem de sir Guy de Gisborne!
Então o xerife ergueu os olhos, e viu aquele par aos socos.
— Deixa o maroto falar! — ordenou ele.
O servo cessou de lutar, sem contudo largar o mendigo, e ambos
pararam ali, ofegantes, enquanto Ricardo Illbeast lançava olhares
assassinos para o servo.
— Fala, patife, como te ordena sua senhoria — disse o servo —, e não
me degoles com esses olhos malvados, espantalho!
— Venho da parte de sir Guy de Gisborne — disse o mendigo, voltando-
se para a cabeceira da mesa — e tenho uma mensagem particular só para
os teus ouvidos, sir xerife.
Este olhou-o, suspeitoso, dizendo asperamente:
— Pois dize qual é a mensagem, patife.
O pedinte olhou, em desespero, para os convivas, todos voltados para
ele. Alguns riram da sua hesitação; outros zombavam dele.
— Ele tem uma mensagem particular para os teus ouvidos, xerife —
disse um gordo lavrador, rindo —, e dedos leves para as tuas joias.
— Ou quem sabe se alguma adaga pequena para ti — acrescentou outro,
no meio das risadas gerais.
— Dá-me alguma prova de que trazes palavra dele, além do teu
palavrório — disse o xerife já irritado —, ou mandarei expulsar-te da
cidade a pau!
— Uma dúzia de ladrões me atacaram na floresta, e roubaram-me a
bolsa em que trazia a mensagem de sir Guy de Gisborne para ti!
Uma tempestade de risadas ergueu-se então em toda a sala. Porque
todos pensaram, naturalmente, que aquilo era uma lorota, e aqueles
homens também gostavam de trocar gracejos e anedotas.
— Por que te mandou ele a mim? — gritou o xerife. — Provavelmente
isto tudo é invenção tua.
— Ele me mandou aqui para te ajudar a apanhar aquele ladrão proscrito,
Robin Hood! — bradou Ricardo Illbeast, já fora de si com as risadas e
motejos dos hóspedes, e perdendo de todo a cabeça, de tanta cólera.
Ao ouvir isto, o riso não teve mais limites. E gritavam todos:
— Ah! Ah! Ah!… É boa esta!
— O apanha-ladrão despojado pelos ladrões!
— Olha a raposa, corrida pela lebre que ela queria apanhar!
— Expulsem-no daqui! — ordenou o xerife, rubro de cólera. — Ponham
este patife mentiroso fora da cidade!
— Eu não sou patife! — gritou Ricardo. — Eu combati na cruzada!
Eu…
Mas não lhe foi permitido dizer uma palavra mais do que fizera. Doze
servos se atiraram a ele, e em um momento estava lá fora, na praça do
mercado, a roupa despedaçada, os sacos arrancados das correias. Parecia
que brotavam varas e cajados em roda dele, e, entre uma saraivada de
pancadas, o miserável, cujo coração era tão cruel como o dos outros,
naqueles tempos de crueldade, e cujas mãos se haviam manchado tantas
vezes em atos horríveis, foi levado sem misericórdia para a estrada da
floresta.
Ainda continuaram os hóspedes a rir da farsa do mendigo, mas depois a
conversa versou sobre um torneio que se realizaria depois do jantar, entre
os homens que formavam os oficiais do xerife, que oferecera um prêmio
de quarenta xelins. Os alvos tinham sido erguidos fora da cidade.
Terminado o jantar, portanto, muitos convidados dirigiram-se para o
campo de tiro, onde os homens do xerife atiraram, cada um por sua vez. É
claro que era Robin um atento espectador do jogo; e viu que nenhum dos
homens do xerife pôde alcançar o alvo, ficando os que mais se
aproximaram a cerca de meia seta do ponto.
— Pela Santa Cruz! — disse ele. — Apesar de não ser hoje mais que um
louceiro, já fui bom besteiro, no meu tempo; e até hoje gosto do tinido do
cordão e do voo da minha flecha. Permites que um estranho dê um ou dois
tiros, sir xerife?
— Sim, podes experimentar, pois pareces rijo e forte, apesar de que tuas
faces vermelhas demonstrem que gostas de erguer teus potes à boca, com
bons licores dentro…
Robin riu com os outros, àquela zombaria, e o xerife ordenou a um
camponês que trouxesse três arcos. Robin escolheu um deles, o maior e
mais forte, experimentando-o com as mãos.
— Isto não passa de um pau miserável — disse, ao empurrar o arco, ao
mesmo tempo que puxava a corda para junto da orelha. — Já está
gemendo só com o tirão, de tão fraca que é a madeira.
Tirou uma flecha do carcás de um dos homens do xerife e ajustou-a à
corda. Então, distendendo o cordão em toda a extensão, deixou voar a
seta. Os homens olhavam atentamente para diante, e os camponeses
soltaram um grito quando viram a sua flecha a pouca distância do alvo e
alguns centímetros mais perto que as outras.
— Atirem de novo — disse o xerife aos seus homens — e deixem o
mercador de louça atirar com vocês.
Cada um deles se esforçou por se sair melhor que os outros naquele
segundo turno. Mas nenhum chegou mais perto do alvo do que o louceiro.
E depois que o último atirou ficaram ali, meio desapontados, olhando para
o camponês que, dando uns passos à frente, firmava a seta na corda.
Parecia preocupar-se menos agora do que da primeira vez. A seta saiu
zunindo, e os espectadores, que olhavam no maior silêncio e com toda a
atenção, ouviram distintamente o ruído dela ao se cravar no alvo, a
noventa metros de distância. Não podiam crer no que lhes diziam os olhos
penetrantes: a seta se cravara no centro mesmo do olho de boi, ou muito
perto dele.
O encarregado do alvo, que se conservava perto deste para verificar
exatamente cada tiro, aproximara-se do escudo, e saiu dali correndo, para
ir ter com os besteiros.
— Partiu a cavilha em três! — gritou ele.
Cavilha era o toro de madeira que ficava mesmo no centro do “olho de
boi”. Um grande brado saiu então do peito de todos os espectadores, e foi
agitar as últimas folhas dos choupos, e muitos mercadores e lavradores
vinham apertar a mão de Robin, ou batiam-lhe nas costas.
— Pela Santa Cruz! — dizia um. — És um vendedor maluco, mas, como
arqueiro, és tão bom como qualquer couteiro!
— Ou como o próprio Robin Hood, o rei dos arqueiros, por mais
“cabeça de lobo” que seja — disse outro, um moleiro da cidade, muito
brincalhão.
Quando os homens do xerife se viram vencidos por aquele oleiro rude,
ficaram irritados, mas o xerife ria deles, e disse a Robin:
— Louceiro, és um homem de verdade! És digno de usar um arco onde
quer que vás.
— Sempre gostei do arco, desde criança; atirava então aos passarinhos,
e derrubava-os. Já tenho apostado com mais de um bom arqueiro, e tenho
lá no meu carro um arco que ganhei daquele maroto Robin Hood, com
quem apostei uma vez.
— O quê? — disse o xerife, de sobrecenho franzido e ar desconfiado. —
Pois tu apostaste com aquele canalha? Sabes então o ponto da floresta
onde ele está agora entocado, louceiro?
— Creio que é lá para o Mato da Bruxa — disse prontamente o oleiro.
— Ouvi dizer isso quando vinha pela estrada. Mas no outono passado ele
me deteve, exigindo que eu lhe pagasse pedágio. Respondi-lhe que nas
estradas do rei eu não pagava pedágio, a não ser para o rei, e disse-lhe que
até poderia apostar com ele, a lança ou a tiro, um turno de vinte flechadas,
para ver se não era melhor arqueiro do que ele. E o maroto atirou mesmo
quatro turnos comigo, e disse que, pela minha cortesia, eu ficava livre de
andar pela floresta, até onde minhas rodas pudessem alcançar.
E era verdade. E foi em virtude dessa amizade que Bat pôde obter com
tamanha facilidade o empréstimo das roupas, carroça e mercadorias do
ç
orgulhoso louceiro para Robin.
— Pois eu daria cem libras, louceiro — disse o xerife com ar de tristeza
—, para ter o bandoleiro nas mãos.
— Pois bem, se queres ouvir meu parecer, sir xerife, vai comigo amanhã,
leva teus homens, e eu te levarei a um sítio onde, segundo ouvi dizer, o
patife se alojou para passar o inverno.
— Por minha fé! Eu te pagarei bem, se fizeres isso. És um homem digno,
e valente!
— E devo mesmo dizer-te, xerife, que deves pagar muito bem, porque se
Robin sabe que levei os cães à sua toca, o lobo me perseguirá, e não ficarei
com a pele inteira!
— Hás de ser bem pago; dou-te minha palavra de oficial do rei!
Bem sabia ele — e o louceiro também não o ignorava — que a promessa
valia pouco, pois tinha muito amor ao dinheiro. Contudo, o oleiro fingiu-
se satisfeito. Quando o xerife lhe ofereceu, porém, os quarenta xelins do
prêmio do concurso de tiro ao arco, o louceiro não os quis aceitar,
ganhando com esse gesto o coração de todos os homens do xerife.
— Não, não — disse ele. — Fica para o que fez o melhor tiro entre os
seus homens. Quem sabe se não foi por causa de algum golpe de vento que
a minha seta partiu a cavilha?
Ceou naquela noite com o xerife e seus homens, que todos beberam à
sua saúde — um camarada tão digno, e tão bom homem! Terminado o
alegre serão, deram-lhe uma cama em um canto abrigado do salão de
entrada, e todos foram descansar.
De manhã cedo, antes que raiasse a aurora, já estavam todos de pé. Cada
um bebeu uma caneca de cerveja e comeu um pequeno pão de centeio.
Depois trouxeram os cavalos, e com eles a carroça e o pônei do oleiro, e
este saiu para a floresta, acompanhado do xerife e de seus homens.
Internou-se pela mata, por entre clareiras solitárias e trilhas estreitas de
veados, por onde nenhum dos homens do xerife tinha jamais andado. E em
mais de um lugar, onde não era difícil topar com uma emboscada, tanto
eles como o amo olhavam, amedrontados, em volta de si, perguntando lá
consigo se chegariam ao fim daquele dia com a pele intacta.
— Tens certeza de conhecer bem o caminho, louceiro? — perguntava o
xerife de vez em quando.
E Robin respondia, rindo:
— Sem dúvida! Não é debalde que há vinte anos ando abaixo e acima, a
caminho de Sherwood. É natural que estranhes levar-te eu por caminhos
tão solitários. Mas pensas então que um patife de um proscrito como
aquele vai fazer seu ninho perto da estrada real, onde qualquer cão
faminto pode farejá-lo?
— E como sabes que o falso bandoleiro está invernando no lugar que
dizes? — perguntou ainda o xerife, meio suspeitoso.
— Porque assim me disseram os camponeses que encontrei, quando
vinha de Wentbridge. Eu te levarei até meia milha do Mato da Bruxa, e tu
farás teus planos para apanhar o biltre.
— Que espécie de lugar é esse Mato da Bruxa?
— É um lugar medonho, segundo tenho ouvido dizer. É o antro de uma
feiticeira temível, cheio de ossos de defuntos. Por fora é fresco, à sombra
das árvores, mas lá dentro há cavernas e rochedos, onde a feiticeira mora
com seus maus espíritos, no meio daqueles ossos cinzentos; e os rústicos
dizem que Robin Hood é parente próximo dela, e que, dentro da floresta,
está debaixo da sua proteção, e nenhum mal lhe pode acontecer!
Os dez homens espiavam assustados para todos os lados, e o xerife
perguntou:
— Como assim?
— Dizem que ela é o espírito da floresta e que pelo seu poder secreto
pode matar qualquer homem que entre debaixo das árvores, ou encerrá-lo
vivo dentro de um tronco de árvore, ou mergulhá-lo em um sono
encantado.
— E o que é aquilo lá? — perguntou o xerife, apontando para a frente.
Tinham chegado a uma aberta do mato, onde as árvores rareavam e
aparecia um trecho de chão em aclive, coberto de arbustos rasteiros. No
meio havia uma lomba, sobre a qual se erguia um enorme carvalho, cujos
galhos imensos cobriam um grande espaço, abrigando também à sua
sombra três altas pedras retas, inclinadas umas para as outras, como se
estivessem cochichando.
— Aquilo é a Lomba das Três Pedras. Dizem que de dia elas são três
pedras cinzentas, como estás vendo, mas que, quando a coruja pia e o
vento da noite sopra nas moitas, elas viram bruxas, que andam em roda
como o vento, executando as ordens da grande feiticeira da floresta —
espalhando a gafeira e a peste, deitando mau-olhado às colheitas e
causando outros males às gentes.
Os homens olharam fixamente nos olhos uns dos outros, depois
voltaram rapidamente a cabeça, envergonhados de encontrar o medo
estampado neles, porque cada um sabia que era o que se lia nos seus
próprios olhos. Todos os homens daquele tempo acreditavam em
feiticeiros e bruxas — até o próprio rei e os mais sábios homens de
Estado.
— Eu acho — disse por fim o xerife asperamente — que nos devias ter
dito essas coisas antes de partirmos, porque então teria trazido um padre.
Agora…
Nesse momento ressoaram gritos agudos e risadas no meio das árvores
sombrias, ao lado deles. Tão repentinos e tão temerosos eram aqueles
gritos, que os cavalos pararam e começaram a tremer, enquanto os
cavaleiros faziam o sinal da cruz, espiando para a escuridão das árvores.
Afinal alguém gritou:
— Vamos dar volta!
E um ou dois deram volta aos cavalos, naquele caminho estreito, e
deitaram a fugir.
De novo soou a risada de louco. Parecia vir de todos os lados daquela
rude floresta escura que os cercava. A maior parte dos homens meteu as
esporas nos cavalos e, a despeito dos gritos do xerife, ordenando-lhes que
ficassem, todos eles tocaram-se a trouxe-mouxe para longe dali.
O oleiro, de pé no seu carrinho, e o xerife, de olhar sombrio, escutavam
o eco surdo dos cascos, que ia amortecendo aos poucos.
— Covardes imbecis! — gritou o xerife, rangendo os dentes.
Contudo, com toda aquela bravata, ele mesmo estava com medo, e
continuava a olhar para todos os lados, por entre as árvores.
De repente o oleiro fez estalar o chicote. Imediatamente as notas claras
de uma buzina soaram na clareira, e logo apareceram uns vinte homens de
roupa escura, que pareciam brotar da terra, ou sair dos troncos das
árvores. Alguns até caíram dos ramos que ficavam justamente acima do
lugar onde estava o xerife.
— Então, mestre oleiro — disse um sujeito alto, barbudo e de cabeça
nua. — Como te foste lá por Nottingham? Vendeste toda a mercadoria?
— Sim, na verdade, assim foi! Vendi tudo, e alcancei um alto preço. Vê,
João Pequeno, trouxe o próprio xerife em troca da minha louça.
— Por minha fé, chefe! Será muito bem-vindo! — gritou João Pequeno,
soltando uma gostosa gargalhada.
E todos os proscritos fizeram-lhe coro, quando viram o espanto e a raiva
que se refletiam no rosto do xerife.
— Patife, fingido — gritou ele, rubro de vergonha e aflição. — Se eu
tivesse sabido quem eras tu!…
— Graças à Virgem Maria, não o sabias!
E Robin foi tirando as roupas do oleiro, que tinham sido forradas de
trapos, para lhe dar aparência de homem mais corpulento.
— Mas agora, já que estás aqui, xerife, vais jantar conosco um gordo
veado real… E depois, para pagar o pedágio, me deixarás teu cavalo e tuas
armas, e outros petrechos.
E assim se fez. O xerife, quisesse ou não, teve de comer um pedaço de
excelente veado, regado com vinho doce das Canárias; e como estava com
fome, sentia-se agora mais à vontade.
E depois de entregar seu cavalo e todas as armas a Robin Hood,
preparava-se para voltar para a cidade a pé, quando o bandoleiro mandou
que trouxessem um palafrém e ordenou-lhe que o montasse.
— Volta para tua casa, xerife, e cumprimenta tua mulher em meu nome.
Tua esposa é tão cortês e amável como tu és impertinente e rezingão. Este
palafrém é um presente que mando à senhora tua mulher, e espero que ela
guarde boa recordação do louceiro, ainda que tu, bem o sei, não faças
muito boa ideia de mim.
Sem dizer palavra, lá se foi o xerife. Esperou que escurecesse para se
apresentar no portão de Nottingham, pedindo entrada. O porteiro
admirou-se da estranha volta do chefe — montado em um palafrém de
senhora, sem um única arma na cintura, e sem o capacete de aço. A
história da vergonhosa disparada dos seus homens, que tinham chegado
antes dele, se espalhara entre os que andavam nas ruas da cidade;
apressaram-se, pois, em arrancar dos homens a confissão da fuga, e o
xerife, que esperava esgueirar-se para dentro de casa sem ser visto,
encontrou, com a maior surpresa, as ruas cheias de gente embasbacada.
Respondeu de má sombra às perguntas que lhe faziam, mas, ao apear-se,
ouviu o riso que se ia alastrando entre a multidão estacionada à sua porta,
e já lá dentro, chegou-lhe aos ouvidos a gargalhada atroadora de mil
gargantas.
No dia seguinte não havia ninguém mais enfurecido que o xerife
Murdach. Toda a cidade ria — desde o orgulhoso alcaide do castelo, com
seus cem cavaleiros, até os garotos que limpavam as cavalariças —, todos
riam ao se lembrar da figura do xerife, que partira com o seu esquadrão,
guiado por um falso oleiro, para capturar o proscrito Robin Hood (o qual
não era outro senão aquele mesmo oleiro), vindo a terminar a história com
a captura e saque do próprio xerife, pelo astuto Robin Hood.
iv
Robin Hood encontra o padre Tuck
v
o verão, e a vida na floresta era muito agradável. Por mais ardente
VOLTARA JÁ

que fosse o sol nos campos abertos, onde os pobres servos se fatigavam e
suavam, nos bosques era sempre fresco e sombrio, e sob as árvores
sopravam brisas suaves, e o zumbido das moscas, esvoaçando na sua dança
perpétua, parecia convidar a gente a dormitar.
Muitos dos pobres vilões, curvados sobre a terra, a cavar ou a semear, ou
a colher o que tinham plantado, pensavam nas sombras frescas das árvores
que o vento agitava, lembravam-se então daqueles que tinham escapado da
servidão e hoje estavam lá longe, vagando por onde lhes apetecia, livres do
trabalho, da censura e de duras fadigas. Muitos deles perguntavam consigo
por que não haviam de ser também assim arrojados, por que não
romperiam as cadeias forjadas pelo hábito e pela rotina dos anos, fugindo
à lei, subtraindo assim aos seus senhores uma peça valiosa do material do
feudo — pois era esta a verdadeira qualidade de um servo, de um vilão,
perante a lei daqueles tempos obscuros.
Já a fama de Robin Hood e de seus homens se espalhara pelos campos,
ao redor das florestas. Mascates, pelotiqueiros e mendigos errantes
contavam histórias de seus ousados feitos, e já os menestréis, quando
encontravam um grupo de vilões em uma taberna de aldeia, compunham
toscas rimas a respeito dele — que não era mau para os pobres, e tirava
dos ricos, dos prelados orgulhosos, dos mercadores e cavaleiros.
E quando chegavam os tempos mais difíceis, quando os trabalhos da
semeadura, da colheita ou da lavra caíam com mais peso sobre os pobres
vilões, exigindo deles mais do que lhes era humanamente possível fazer,
quando já não podiam mais suportar aquela vida — então um que outro,
em cada feudo, pensava na liberdade, e, dando forma aos seus
pensamentos, aproveitava a primeira ocasião e fugia da aldeola de
telheiros humildes, indo ter à floresta.
E assim o bando de Robin Hood, formado a princípio de vinte homens,
foi aos poucos crescendo, até contar 35 vilões fugitivos, quando não fazia
mais de um ano que ele próprio se internara na floresta. Ele tinha, porém,
outra maneira de obter bons companheiros. Sempre que ouvia falar em um
bom arqueiro, ou em alguém que se servia bem da lança, ou em um bom
espadachim, mandava procurar o referido homem, e desafiava-o para um
combate amigável.
Muitas vezes vencia, mas houve ocasiões em que topou com homens
mais destros do que ele próprio, ou mais afortunados nos golpes. Fosse
qual fosse, contudo, o resultado, o fato é que eles eram quase sempre
conquistados pela cortesia e a coragem de Robin, e reuniam-se ao seu
bando, à sombra das verdes copas das árvores.
Foi assim que conquistou aquele valente guarda de animais, Sim de
Wakefield, com quem combateu; lutaram, conforme conta o menestrel
Jocelyn,

todo um dia de verão,


até quebrar as espadas,
que lhes caíram da mão

e Robin confessou que estava satisfeito, rogando ao guarda que ficasse


no seu bando. O guarda bem o desejava, sim, mas era homem honesto, e
disse-lhe que tinha sido eleito pelos outros vilões, seus companheiros,
para o cargo de guarda do curral público, onde eram recolhidos os animais
soltos, até o dia de São Miguel, e que então receberia o salário estipulado
pelo seu trabalho.
— Então, bom Robin — disse ele ao despedir-se, com um aperto de mão
—, virei ter contigo, trazendo a minha espada.
Assim também combateu Robin rudemente com Artur de Blade, de
Nottingham, famoso no manejo do cajado. A luta acabou num empate e
ambos resolveram ficar amigos, juntando-se Artur ao bando. Era primo de
João Pequeno, ficando os dois muito contentes de se encontrarem na
floresta. Tornaram-se quase inseparáveis em todas as façanhas que
praticaram, e eram tão altos os dois, e tão destros na lança e no arco, que,
diziam os outros, juntos valiam por dez homens.
Quando Robin Hood foi para a floresta, encontrou lá muitos bandos de
ladrões — homens proscritos por crimes de roubo e de assassínio; tinham
eles recrutado companheiros entre os servos fugidos e homens pobres da
cidade e outros rebeldes, não realmente viciosos, mas que por uma ou
outra razão iam buscar nas florestas um esconderijo para escapar a alguma
punição.
Recorrera Robin a meios muito simples para limpar os bosques daqueles
bandos de ladrões, que viviam entregues à pilhagem, e não faziam
distinção entre ricos e pobres, e que tanto tiravam o último naco de porco
salgado ou o saco de comida de um pobre servo, como a bolsa recheada de
ouro de um rico padre. Quando sabia que havia algum esconderijo deles, ia
até lá secretamente com seus homens e caía sobre eles de surpresa, antes
que pudessem fazer uso das armas. Então, ao passo que cada um deles via
apontada para o seu lado uma flecha de meio metro, dizia:
— Sou Robin Hood, a quem vocês conhecem, e dou-lhes a escolher: ou
vocês cessam essas gatunices em que não respeitam pobres nem
necessitados, e reúnem-se ao meu bando sob juramento, ou hão de lutar
comigo em combate de vida ou de morte. É escolher!
Em geral os ladrões cediam e juntavam-se ao bando de Robin, prestando
todos os juramentos — não fazer mal algum a nenhum pobre, nem a
camponês honesto, nem a cavaleiro ou escudeiro cortês; não maltratar
mulher alguma, nem as pessoas que as acompanhassem; mas ajudar os
pobres e necessitados, e socorrê-los sempre que pudessem. Alguns desses
chefes tinham contudo aceito o desafio e combateram com ele; matou três
deles em combate, e quatro declararam-se rendidos, ficando entre os seus
homens.
Um dia, no mês de julho, estava ele com muitos de seus homens nas
suas cavernas de Barnisdale. Tudo lá fora estava encharcado, pois a chuva
caía incessantemente, como enormes espadas cinzentas. As folhas
escorriam água, como se fossem torneiras, os caminhos da floresta
transbordavam; sobre as covas e regos flutuava um nevoeiro denso, que
serpenteava pelos caminhos. Só quem não tinha outro remédio se
aventurava a sair para as estradas, transformadas em rios de lama, e todos
os mendigos, mascates, curandeiros, peregrinos, pelotiqueiros e outros
viajantes, tinham corrido a se refugiar na cervejaria da aldeia, ou nas raras
estalagens que então se encontravam pela estrada.
Mas lá nas cavernas de Elfwood Scar, Robin e sua gente estavam
abrigados e bem acomodados, contando histórias, ou ouvindo a narração
das viagens de um peregrino que Will Scarlet encontrara naquela manhã, a
coxear, com um pé muito inchado. Gilberto da Mão Branca tinha lavado e
tratado o ferimento, e o agradecido peregrino, um homem simples, de
rosto bronzeado, narrou as suas experiências maravilhosas e tudo o que
vira nas longas estradas de Roma, e os dias terríveis que passara no mar, na
sua viagem de Veneza a Jaffa.
Achavam-se ali outros viajantes. Um deles era um charlatão — um
vagabundo magro e faceto, que muitas vezes se esquecia, no calor da
conversa, de manter o ar de sábio que queria impingir. Usava uma capa de
veludo muito velha, adornada de pele já quase toda gasta, e trazia no
chapéu sinais cabalísticos que, afirmava ele, somente os homens mais
sábios do mundo — inclusive ele próprio — podiam ler. Tinha em seu
poder, dizia também, um pouco do verdadeiro elixir que dera a Hércules
aquela força quase divina, e um bocadinho do pó que fizera Helena de
Troia tão bela.
— Pois muito me admira — disse João Pequeno, rindo — que não
tenhas bebido também um gole do licor de Hércules, porque tua figura
magricela não te ajudou muito quando aquele grande biltre, na Feira dos
Gansos, lá em Nottingham, te abateu com o punho, porque disseste que
lhe ias curar o nariz vermelho…
— É que então não precisava de força de braço — disse o charlatão, com
um brilho divertido nos olhos. — Confessas ou não, seu grandalhão, que a
minha língua o chamuscou? Então minhas palavras não levaram o homem
do xerife a expulsar o sujeito alto, que saiu a correr? E por que hei de me
servir da força dos membros, se tenho esta, que vale mais que todos os
músculos — a inteligência, que pode vencer a força bruta?
E o charlatão apontava para a própria fronte.
Então, lá do canto mais afastado da caverna, ouviu-se uma voz:
— Duvido que teu espírito te servisse de muita coisa, quando tiveste
aquele encontro com o ermitão, no Vale das Fontes! Conta a esta amável
assembleia o que te aconteceu lá naquele dia…
O rosto do pequeno charlatão cobriu-se de uma sombra escura,
enquanto o que falara, o homem pálido vestido de peregrino, ria sem
maldade.
— Conta-nos isso, doutor! — gritaram os bandoleiros, gozando já com
o desapontamento do curandeiro.
Alguns rogavam ao peregrino que narrasse a história. Mas o charlatão,
rubro de cólera, fez ouvidos de mercador a todos os apelos e ia mastigando
pragas contra a língua solta do peregrino-vagabundo e o ermitão.
— Conta, bom peregrino! — disse João Pequeno.
Mas no mesmo instante o curandeiro esbravejou:
— Aquele mandrião não é peregrino! Conheço aquela cara patibular! É
um escravo fugido do abade de Newstead, e eu podia ganhar um marco se
me desse ao trabalho de levar notícias suas ao mordomo do abade!
Olharam todos para o peregrino.
Era um homem de grande porte, mas via-se, pela fisionomia, que tinha
padecido alguma doença.
— Sim; ele diz a verdade — disse o homem. — Sou Nicolau, ferreiro de
meu senhor, o abade de Newstead. Mas…
Interrompeu-se um momento, e continuou, com a voz dura e forte:
— Não voltarei vivo para a servidão em que vivi até a abençoada manhã
de ontem. Procuro apenas trabalhar em liberdade, para um amo que me
pague o bom trabalho que eu fizer. Posso fazer qualquer trabalho de
ferreiro, bem-feito e direito — sei fazer e consertar arados, rebitar rodas,
fabricar grades; e já tenho até feito espadas de toda espécie. Mas, por ter
caído doente, fiquei sem poder trabalhar, e o mordomo de meu senhor
expulsou minha pobre mãe do campo que ela arrendara. Sim! Debaixo de
bordoada e palavras atrevidas, ele a expulsou de lá! Eu estava tão fraco
que nem me podia mover, mas tiraram-me da miserável cama de palha em
que estava deitado e lançaram-me na estrada, enquanto o vilão insolente
que puseram no nosso campo nos atirava toda espécie de zombarias e
palavras feias. E assim, contra todo o direito e contra todo antigo costume
da terra, fomos despojados!
— Pela Santa Virgem! Que ação baixa! — disse Robin. — Mas não
podias esperar outra coisa de padres e prelados, e de seus servos, rapaz!
Eles têm pedras em vez de coração. Então, resolveste fugir? Fizeste bem.
Mas e tua mãe, que é feito dela?
— Graças a Deus, está livre de tudo isto! Está agora debaixo da relva do
cemitério, onde já nenhum mordomo de senhor algum lhe pode fazer mal
— disse Nicolau com voz solene.
— Rapaz, se queres trabalhar em liberdade, fica comigo e terás serviço.
Receberás o salário todos os anos, no dia de São Miguel. Há muito chuço e
folha de espada para consertar. Queres ficar conosco?
— Sim, senhor, de boa vontade.
E Nicolau adiantou-se e apertou a mão de Robin, em sinal de
assentimento e mútuo acordo.
Tirou então o ferreiro suas roupas de peregrino, e seu grande corpo,
vestido de gibão e calças grosseiras, parecia magro e abatido.
— Estás um pouco descaído, rapaz — disse Robin, com um sorriso —,
mas vejo que és de boa estofa, e com um mês do ar de nossa floresta, o
nosso leite gordo, boa caça e boa cerveja, hás de ficar tão recheado que
ainda te verei maior que ali o João Pequeno.
Este riu alegremente, fazendo amigáveis acenos para o novo recruta.
— E agora — disse o chefe — conta-nos, Nico, quem é o ermitão do
Vale das Fontes, e o que fez ele aqui ao nosso amigo, o doutor Peter.
— Oh! — disse Nico, a sorrir. — Eu não quero mal a Peter. Muitas vezes
suas pílulas curaram nossos camponeses, quando comiam muita carne de
porco; e minha mãe — que Deus haja! — dizia que não havia debaixo do
sol nada que se comparasse com o seu eletuário de Saint Evremond.
— Estão ouvindo, camaradas? — gritou o pequeno curandeiro, cujo
bom humor voltara, às amáveis palavras do ferreiro. — Sou estimado de
todos os meus clientes, mas…
Interrompeu-se um momento, e foi com os olhos cheios de ódio que
continuou:
— Mas aquele grande imbecil, aquele frade ermitão, cabeça de porco —
chama-se Tuck, ou Tock, e quem me dera poder tocá-lo mesmo por diante,
até que se sumisse no fundo do Brejo do Moinho! — aquele bruto sujeito
induziu-me a contar-lhe as virtudes dos meus fármacos. Com aqueles
olhos tão grandes e tão suaves como os de uma vaca, parecia tão inocente
como uma menina, e perguntou-me isto e mais aquilo a respeito de curas
que tenho feito, mostrando-se cada vez mais embasbacado e maravilhado
da minha sabedoria e do meu poder. A serpente imunda! Estava era
tecendo a sua teia em redor de mim, para conseguir a minha ruína. Depois
de ouvir tudo, e quando eu já esperava que me comprasse um frasquinho
de óleo de serpente de Jasper (um fármaco certo e seguro, meus bons
amigos, contra febres e entorpecimento dos membros), pois me disse que
as chuvas do inverno já lhe iam endurecendo um pouco as juntas, o patife
me segurou pelo pescoço e tirou-me a minha caixa de medicamentos!
Depois amarrou-me à árvore que fica ao pé da sua mísera morada e tirou
os remédios mais preciosos do meu sortimento, águas e eletuários
soberanos, e obrigou-me a engolir tudo aquilo. Apre! Aquele coxo
maldito! Disse que eu era muito altruísta — dava tudo aos outros, sem
aproveitar nenhuma daquelas bênçãos; e que quando tivesse acabado as
suas aplicações, eu estaria forte como Hércules, belo como Vênus, sábio
como Salomão, hábil como Páris e fino como Ulisses. Aplicou-me depois
emplastros quentes, que me causaram dores e sofrimentos terríveis. Em
uma palavra, não fosse o fato de ter eu sempre guardado os meus remédios
mais fortes e poderosos em um bolso secreto, estaria a esta hora não
somente morto, mas arruinado, porque…
Mas as últimas palavras não foram mais ouvidas, perderam-se, por
completo, no meio do riso estrondoso que as abafou. Fizeram-lhe mil
perguntas sobre o efeito que produzira a aplicação de tantos remédios
poderosos, e a todas respondeu sempre de bom humor.
— Mas dize-nos agora — pediu Robin —, quem é esse ermitão que te
aplicou assim o teu método de cura completo? Onde mora ele?
— Já te digo — replicou o curandeiro. — Tenho ouvido dizer que desde
que vieste para as matas não permites que os ladrões pilhem e roubem a
gente pobre, nem que os ricos a oprimam; pois bem: o tal sujeito não
reconhece a tua autoridade. É um homem que atira nos veados do próprio
rei, com um enorme arco; tem tamanha destreza com a lança, que tem
abatido ladrões da altura dele. Leva uma vida perversa e farta. Tem cães
enormes para defendê-lo, e estou até convencido de que são demônios
disfarçados em cães. É um grande gatuno, e de boa gana combateria
contigo, Robin Hood, pois te julga inferior.
— Não é verdade — disse Nico, irritado com as palavras de Peter. — O
padre Tuck não é um ermitão hipócrita, não; não vive uma vida de
malvadez, como tantos outros falsos eremitas. Ele sempre vai à nossa
aldeia e alivia os pobres quando estão doentes, e faz-lhes todo o bem que
pode, sem receber paga alguma. É alto e pode combater bem com o arco, a
vara ou a espada, mas não é ladrão. É humilde e de coração bondoso, mas
fica valente como um leão, quando vê alguém prejudicar ou maltratar um
pobre, homem ou mulher. Perversos cavaleiros errantes é que têm
procurado expulsá-lo de seu asilo, mas, com a força de seu braço e o
auxílio de seus grandes cães, tem saído vitorioso, de modo que nem
cavaleiro, nem lorde ou ladrão consegue vencê-lo.
— É um patife forte e rebelde, aquele frade porteiro — repetiu Peter —,
um homem que não reconhece superioridade em nenhum outro. Dizem
que foi expulso da Abadia das Fontes e mandado para o norte, por causa da
sua má vida, e veio esconder-se nos bosques. Se tu és verdadeiramente o
senhor das florestas, sir Robin, será bom que dês uma olhada naquele
altivo e truculento ermitão e lhe apares as unhas.
Dali a pouco cessava a chuva, e o sol brilhava, acendendo em cada folha
de árvore pérolas principescas; os viandantes retornaram à estrada, e os
bandoleiros separaram-se, ocupando-se com as suas tarefas. Uns faziam
arcos e flechas, outros cortavam túnicas de fazenda nova, ou cerziam as
calças rasgadas nos espinheiros do mato. Outros ainda tomavam posição
entre as árvores, à beira da estrada real, à espera de um rico comboio do
bispo de York que, segundo tinham ouvido dizer, seguia de Kirkstall para
Ollerton, pois já havia falta de alimentos, de roupas e outras coisas boas, e
que só poderiam obter do sortimento de algum prelado rico.
Alguns dias depois disto, Robin resolveu viajar para o sul, em busca do
ermitão de quem Peter e o servo fugido tinham falado. O arrojo e a
independência do eremita, padre Tuck, tinham-lhe excitado a curiosidade,
e estava ansioso por experimentar a perícia do sujeito. Ordenou que João
Pequeno o seguisse, com mais 12, dentro de uma hora, e dirigiu-se para a
Abadia de Newstead, próximo à qual soubera que o padre Tuck tinha o seu
“asilo”, ou morada fortificada.
Para chegar mais depressa, ia a cavalo. Vestia seu gibão de couro curtido
e tinha a protegê-lo um capacete de aço, e do lado pendiam-lhe espada e
escudo. Ele nunca dava um passo sem o seu bom arco; levava-o, pois, a
tiracolo, e do cinto pendia também o carcás, cheio de flechas.
O sol estava quase a pino quando saiu, e andou algumas horas pelas
estradas da floresta, antes de se aproximar da morada do monge. Afinal
chegou às solidões do Bosque de Lindhurst. Quando ia por entre as
árvores ouviu um som, que o levou a deter o cavalo e escutar. Olhava para
todos os lados, espiando por entre os galhos gigantescos das árvores
cinzentas da floresta. E via em derredor troncos e mais troncos, erguendo
seus braços nodosos, cheios de musgo esbranquiçado, com enormes
barbas. Naquele crepúsculo esverdeado nada se movia, e ainda assim
Robin tinha a intuição de que algo o vigiava. Guiou o cavalo na direção de
um atalho que parecia ir dar em uma clareira. As patas do animal
afundavam, sem ruído algum, no tapete encorpado de musgo e folhas,
vegetação de anos e anos. Alcançou a aberta entre as árvores enormes e,
fosse o movimento de folhas agitadas, fosse a forma de um lobo
escondido, pareceu-lhe que à sua esquerda, debaixo das árvores sombrias,
alguma coisa passara, silenciosa como uma sombra, sutil como um
espírito.
Tornou pelo mesmo caminho, espiando para os lados. Afinal chegou a
um ponto onde as árvores iam rareando e viu que se ia aproximando do rio
a cuja margem ficava a morada do ermitão. Desmontou, amarrou o cavalo
a uma árvore e soltou um pio, baixo e prolongado, como o de uma ave.
Teve de repeti-lo, e então outro pio semelhante respondeu-lhe, de um
lugar afastado, à direita. Esperou alguns instantes, e dali a pouco um
esquilo chiou bem acima da sua cabeça, na copa de um carvalho. Sem
voltar os olhos, Robin disse:
— Viste mais alguém na floresta, Ket, a não ser eu, que vim de Eldritch
Oaks?
Não veio resposta imediata; dali a um instante, porém, Ket respondeu:
— Ninguém, senão um rapaz, carvoeiro, creio eu.
— Tens certeza de que não é alguém que andava a espiar-me?
— Não, estou certo de que não era ninguém que te quisesse fazer mal.
Não era uma resposta direta, e Robin hesitou. Mas não havia razão para
crer que alguém soubesse da sua presença em Lindhurst, e portanto nada
mais indagou. Disse apenas:
— Vigia meu cavalo, Ket.
E dirigiu-se para o rio. Mais adiante, na clareira, viu a água que brilhava
ao sol. Investigando para todos os lados, avistou uma casinha baixa à
esquerda, junto à margem. Era de tábuas grossas e já enegrecida pelo
tempo. Cercava-a por três lados um fosso largo e profundo, e, diante de
uma porta de arcada baixa, via-se uma tábua grossa, que servia para o
morador da casa atravessar o fosso. A referida tábua era munida de
correntes, de modo que podia ser levantada, impedindo algum ataque ou
assalto, a não ser que o atacante viesse de bote.
— Bem defendida a casa do ermitão, por minha fé! — disse Robin. —
Mais parece a morada de um ladrão do mato do que a cela de um austero
monge, que açoita de dia o magro corpo e jejua e ora durante a noite…
Mas onde estará o humilde ermitão?
Olhou com mais atenção por entre as árvores e viu um caminho estreito
que descia até a água, como se ali houvesse vau, e notou que na outra
margem o caminho tornava a aparecer, como se saísse do rio, e seguia
como um túnel por entre as árvores, que desciam até a beira da água.
Sentado, como se meditasse, ao pé de uma árvore, estava um homem, com
o hábito grosseiro de monge. Parecia grande e largo de ombros; os braços
eram musculosos e fortes.
— Que monge vigoroso! — exclamou Robin. — Parece imerso em
profunda meditação, como um santo, que cogita em seus pecados… Pela
Cruz! Mas vou provar a sua humildade na ponta de uma boa flecha!
Aproximou-se silenciosamente do monge, que parecia mergulhado em
profunda meditação, ou em sono solto. Ajustou uma seta à corda do arco,
adiantou-se mais e disse:
— Olá, santo homem! Preciso passar para a outra margem. Acorda e
leva-me nas costas que são largas, senão terei de molhar os pés!
O grande monge moveu-se vagarosamente, ergueu o rosto e olhou com
ar aparvalhado para Robin, como se não entendesse bem o que ele dizia.
Robin riu daquela simplicidade e gritou:
— Acorda, pateta! Passa-me no teu lombo preguiçoso, senão esta seta
irá fazer-te cócegas nas costelas!
Sem uma palavra levantou-se o monge, curvando-se diante de Robin,
que o cavalgou. Então o frade começou a andar vagarosamente pelo meio
da água e, caminhando pela passagem empedrada, foi ter ao outro lado.
Parou um momento, como se quisesse tomar fôlego. Depois subiu para a
margem, e Robin preparou-se para saltar em terra, mas sentiu no mesmo
instante a perna esquerda segura em um círculo de ferro, enquanto recebia
do lado direito um grande soco nas costelas. Foi então sacudido e atirado
de costas no chão, e o monge, apertando-o com um joelho e, aferrando-lhe
os dedos enormes ao pescoço, disse:
— Agora, meu belo camarada, leva-me de volta ao lugar de onde vim,
senão pagarás caro!
Robin, furioso ao ver que sua cilada se voltava contra ele próprio, tentou
puxar a adaga, mas o monge segurou-lhe o pulso e apertou-o com tanta
força, que teve de reconhecer que, ao menos nisto, o monge o vencia.
— Apanha a tua sova quieto, rapaz — disse o monge, com um sorriso
tranquilo. — És muito ousado, mas ainda não alcançaste a plenitude da
força. E agora, vamos: levanta-te e carrega-me para o outro lado!
E o frade soltou-o, o que deixou Robin muito admirado, apesar da sua
raiva. Por que não lhe batera ele até moê-lo, nem o matara, tendo-o assim
em seu poder? Qualquer outro homem o teria feito sem que ninguém o
censurasse. Já Robin lamentava, no íntimo, o tratamento insolente que
dera ao monge. Via agora que, por ignorância, tratara com desprezo o
padre Tuck.
Sem uma palavra, entretanto, curvou o dorso; vagarosamente o monge
escarranchou-se nele, passando os braços pelo pescoço do bandoleiro —
não o apertando, mas de modo que ele compreendesse que, se tentasse
pregar-lhe outra peça, estaria preparado para isso.
Chegando ao meio do rio, onde a corrente era mais profunda e mais
rápida, de boa vontade atiraria o bandoleiro aquele monge à água; mas,
como todas as vantagens estavam do lado do frade, achou melhor
continuar quieto o caminho.
Quando ia chegando perto da margem, ouviu de repente uma risada, que
vinha da casa do monge, e olhando para cima, viu em uma janelinha que
dava para aquele lado o rosto de uma dama. Ela tinha covinhas e era muito
linda; mas, quando ele olhou, desapareceu imediatamente. Ele não sabia
quem poderia ser, mas quase enlouqueceu de fúria à ideia de que
aparecera aos seus olhos de maneira tão burlesca. Chegou à margem, e
quando o monge lhe saltou das costas, voltou-se e disse-lhe:
— Não penses que será esta a última vez que me vês, falso ermitão e
grande patife! Quando nos encontrarmos de novo, eu te meterei uma
flecha na enorme carcaça.
— Vem quando quiseres — disse o monge, rindo alegremente. — Tenho
sempre um pastelão de caça e uma ou duas garrafas de Malvasia para os
bons amigos. Quanto às tuas setas, guarda-as para os veados do rei, meu
belo camarada. Agora ouve: tem mais cautela com tuas habilidades, e não
tornes a experimentar tuas brincadeiras com os outros, enquanto não te
certificares se elas estão ou não ao alcance da tua força.
As palavras insolentes do monge enraiveceram tanto o bandoleiro que se
lançou a ele e num instante estavam ambos atracados, lutando cada qual
para jogar o outro no rio. E o resultado foi rolarem ambos, sempre
engalfinhados, e caírem na água.
Levantaram-se logo, e Robin, ainda cego de ódio, correu para o seu arco,
que ficara na margem, e, assestando nele uma seta, virou-se para o monge,
mas este desaparecera! Não tardou em voltar, porém, armado de espada e
escudo, e protegido por um capacete de aço. Robin ergueu o arco e a flecha
voou, zunindo.
Ficou olhando, para ver a seta espetar-se no corpanzil do seu inimigo,
mas, em vez disso, o que viu foi este apará-la a rir no escudo e ela cravar-se
no chão, onde ficou vibrando, como uma haste de planta estranha, agitada
pelo vento.
Lançou-lhe Robin ainda mais três flechas, que o monge apanhou
destramente sobre o escudo, e o bandoleiro, cada vez mais enfurecido, via
que não levava a melhor com aquele monge temível.
— Continua a atirar, meu belo sujeitinho — gritou ele. — Se quiseres
ficar atirando o dia inteiro, eu serei teu alvo, visto que te dá alegria
desperdiçar tuas setas.
— Não tenho mais que soprar na minha trompa, para ver a meu lado
aqueles que podem cravar tantas setas na tua carcaça, que ficarás feito um
ouriço morto!
— Pois eu, seu gabarola, é só dar três assobios nos dedos e num instante
meus cães te farão em postas!
Enquanto o monge falava, Robin notou que havia um ruído entre as
árvores. Olhou e viu um jovem esbelto, que corria para ele; trazia um
capuz, que lhe ocultava quase todo o rosto. Tinha um cajado na mão, e o
arco pendia-lhe das costas. Julgou o bandoleiro que o rapaz vinha atacá-lo,
então ergueu o escudo, puxando a espada. No mesmo instante vieram do
mato outros sons; parecia que vinham homens correndo. Ouviu-se um
assobio agudo, e logo a seguir um grito de animal preso nas garras do
falcão: Robin reconheceu o sinal de perigo de Ket, avisando-o da
aproximação de inimigos.
Pensou que o mocinho, que parara um momento ao ouvir o assobio,
fosse algum espião de Guy de Gisborne, que dirigia uma emboscada contra
ele. Ergueu a espada e lançou-se a ele. Achava-se apenas a um metro do
outro, e notou que o rapazinho estava ofegante, como quem tinha vindo a
correr. Nesse instante ergueu os olhos, e Robin avistou uma nesga do rosto
debaixo do capuz.
— Marian! — gritou ele, porque era ela, a sua namorada. — Que é isto?
O que…
— Robin — disse ela, quase sem poder respirar —, toca a tua trompa,
chama teus homens, senão estás perdido!
Estava muito corada ao falar-lhe. Deu volta imediatamente e correu para
o monge, a quem disse algumas palavras rápidas. As notas da buzina de
Robin vibraram no ar, claras e agudas, retinindo pelas aleias sombreadas.
Quase no mesmo instante o monge ergueu dois dedos, metendo-os na
boca, e soltou um silvo tão agudo que quase rompia os tímpanos. Saíram
correndo da mata alguns homens, que Robin reconheceu: eram os
soldados do abade de Santa Maria.
— Depressa, Marian! — gritou ele. — Corre para a casa do monge!
Ainda é tempo!
Procurou com os olhos um ponto de apoio, de onde pudesse se
defender, e viu uma ponta de terra que entrava na água. Ajustou uma
flecha, atirou no que vinha à frente, que caiu, e correu para a ponta de
terra, ao mesmo tempo que ia preparando outra flecha. Marian e o monge
chegaram ali ao mesmo tempo que ele.
— Não, não — disse Robin —, atravessa a ponte e vai para a casinha do
monge. Se meus camaradas não estão perto e não me ouviram, o combate
será terrível, e não te quero ver ferida, Marian!
— Não, Robin. Posso entesar um arco, como bem sabes, e o bom monge
Tuck nos vai ajudar. Olha… lá vêm seus cães!
Já os soldados estavam apenas a uns dez metros; Robin já ferira dois e
matara um, com três flechadas. Chefiava-os Hugo Negro, que gritava:
— Rapazes! Vamo-nos juntar e atirar-nos a ele! Se nos puder apanhar a
distância com aquelas setas, somos todos homens mortos!
No instante mesmo em que acabava de falar, cessava o zunido de uma
flecha, e o homem que estava junto dele caía com a haste espetada na
garganta.
Os homens começaram a juntar-se, mas as enormes flechas lhes
aconselhavam mais prudência. E, enquanto hesitavam, ouviram
repentinamente uns latidos, e antes que pudessem descobrir de onde
vinham, já dez enormes cães lhes saltavam em cima. Eram ferozes, do
tamanho de cães de caça, e traziam coleiras largas, cheias de pregos
agudos.
Os homens combatiam cegamente, de espada e adaga, contra aqueles
inimigos estranhos e terríveis. De repente soou um assobio agudo, e um
gigante em forma de monge, armado de escudo, começou a chamá-los
pelos nomes, ordenando-lhes que ficassem quietos. Cinco cães estavam
estendidos no chão, mortos ou feridos, mas os outros, ao ouvir a voz do
dono, deram volta, lambendo as feridas.
Hugo Negro enxugou o suor do rosto tisnado e olhou ao redor — e suas
faces escuras ficaram repentinamente brancas. Na planície ou aberta que
ficava aquém da casa do monge apareciam uns vinte homens vestidos de
verde, correndo para eles a toda pressa; e mesmo na corrida vinham
assestando as flechas à corda dos arcos.
— Salvem-se! — gritou ele. — Lá vêm tantos bandidos, que não
poderemos enfrentá-los.
Os soldados deitaram um olhar para a planície e, dando volta
imediatamente, correram para se abrigar sob as árvores. Os bandoleiros
fizeram alto, e uma nuvem de flechas zumbiu no ar, cortando os leques de
folhas e desaparecendo nos arbustos. Três soldados morreram, mas os
outros deitaram a correr desabaladamente pela sombria mata, separando-
se, para dificultar a perseguição.
Quando o último proscrito sumiu, no encalço dos soldados, Robin
voltou-se para Marian, que, excessivamente corada e respirando a custo,
procurava atalhar a cólera que, supunha ela, devia sentir seu namorado.
— Não te irrites comigo, Robin! Mas eu receava tanto por ti, que tive de
vir à floresta, para saber o que se passava contigo. Já não te lembras?
Quantas vezes atiramos e caçamos juntos, quando éramos crianças, nas
tapadas de Locksley? Por que não poderia eu tornar a fazê-lo agora?
— Por quê, minha querida? Porque eu sou um proscrito, e tu és a filha
de um fidalgo. Minha cabeça está à disposição de quem puder apanhá-la, e
os que me auxiliam correm o mesmo perigo… Mas dize-me, Marian, desde
quando usas essas roupas, que te dão a aparência de um belo rapaz, e
como é que conheces este monge patife?
— Ele não é nenhum patife, Robin — respondeu a moça. — É um bom
amigo de sir Ricardo de Lee; sempre fala bem de ti, e me fala com
bondade, quando me vê triste por tua causa. E quando resolvi adotar este
trajo, e vir para a floresta, para ver se conseguia saber notícias tuas, falei ao
padre Tuck, e ele prometeu ajudar-me. Porque ele tem amigos por toda a
floresta, e assim foi que vim a conhecer teus amigos, os anões. Vi-te no
mato, quando vinhas para cá; e Ket sabia que eu estava aqui.
Enquanto falava, ia Marian levando Robin pela ponte levadiça, e
achavam-se agora na morada do monge. A sala servia a um tempo de
cozinha e de oratório. A um canto via-se um genuflexório, à frente de um
crucifixo; do outro lado, cotas de malha, elmos de aço, uma espada de dois
gumes, duas ou três achas de armas, muito brilhantes, e um feixe de setas,
ao pé de um grande arco. Ao longo da terceira parede erguiam-se
prateleiras rústicas, onde se acomodavam sacos de mantimentos e dois ou
três pedaços de presunto salgado, ou de peças de caça. No centro da sala
havia uma mesa.
Quando eles entraram, uma senhora ergueu-se da cadeira em que estava
sentada, e Marian correu para ela de mãos estendidas, puxando-a para a
frente, dizendo:
— Alice, este é o meu Robin.
O bandoleiro reconheceu a dama da janelinha. Era a que o vira
carregando o monge às costas e rira dele. Tinha um rosto alegre e vivo, e
os olhos muito brilhantes. Estendeu a mão e disse:
— Então é o senhor o valente e audacioso proscrito, cuja cabeça sir
Ranulfo de Greasby jura todas as noites, antes de ir, bêbedo, para a cama,
que há de pendurar nos muros do Castelo de Hagthorn!
E ela deu uma risada tão divertida, e seus olhos proclamavam com tanta
eloquência a sua admiração pelo belo proscrito, que o coração de Robin se
rendeu, inteiramente ganho. Dobrou o joelho e beijou com muita galhardia
a mão da dama.
— Sou Roberto, ou Robin Hood, como me chamam, e creio que a
senhora deve ser dona Alice de Beauforest, a quem Alan de Dale tanto
ama.
O rosto da moça, um momento coberto de rubor, empalideceu, e seus
olhos se velaram, revelando grande dor. Ela voltou-se, e Marian foi ter com
ela, passando-lhe o braço pelo pescoço. Nesse momento entrava o monge.
— Por minha fé! — disse ele. — Caro me saiu o auxílio que te prestei!
Quatro de meus cães soltaram seu último latido e roeram seu derradeiro
osso em teu serviço.
— Bom ermitão — disse Robin, indo para ele de mão estendida. — Sei
agora que tens sido um verdadeiro amigo da dama a quem mais amo no
mundo, e queria que fosses também meu amigo.
— Robin, meu rapaz — respondeu o padre Tuck, com um sorriso a
iluminar-lhe o rosto largo e alegre —, fiquei teu partidário desde que
soube como castigaste sir Guy, ajudando a incendiar a sua casa. Creio que
no fundo não somos inimigos, rapaz. Desde que mantenho esta casinha
aqui, com o auxílio de meu bom amigo, sir Ricardo de Lee, nunca ouvi
falar de homem algum cujos feitos aprecie tanto como os teus. Como tu
lançaste o ridículo sobre o brutal xerife de Nottingham! Nunca ri tanto,
desde o dia em que atirei meus santos irmãos no viveiro dos peixes, na
Abadia das Fontes, feito que me valeu a expulsão da minha perversa
pessoa!
E o monge segurou a mão de Robin, apertando-a com uma força que
teria reduzido a cacos os ossos de um homem fraco. Mas Robin
respondeu-lhe com outro aperto quase tão forte, o que provocou um
sorriso de admiração do frade.
Depois generalizou-se a conversação. Marian contou como fora o padre
Tuck o seu guia nos caminhos da floresta durante aquele verão,
ensinando-lhe a conhecer os matos e mostrando-lhe a serventia de muitas
ervas e remédios. Contou também a Robin que fizera amizade com Ket, o
gnomo, e com Hob do Morro, e com sua mãe e irmãs, e por eles era
sempre informada de tudo quanto lhe acontecia, e aos seus homens.
— Robin — disse o padre Tuck —, deves na verdade sentir-te altivo de
ver que uma donzela tão linda fez tudo isso por amor da ti!
— E altivo estou, de fato! Contudo, meu coração se entristece ao me
lembrar de que sou um proscrito, e somente posso lhe oferecer — a ela,
que sempre teve existência tão suave — a vida nua e despida de conforto,
a vida sem lar da floresta selvagem… Eu não trocaria minha vida por coisa
alguma que o rei me oferecesse, mas aceitar que a minha menina case
comigo contra a vontade de seus parentes, seria condená-la a uma vida
que eu não poderia… não! que eu não quero partilhar com ela!
— Robin — disse Marian —, eu amo-te, a ti, só a ti, e não casarei com
nenhum outro. Amo a vida das matas, tanto como tu a amas, e seria feliz,
embora tivesse de abandonar toda a minha família. Pensas, sem dúvida,
que me arrependeria quando as folhas caíssem das árvores, quando o
vento uivasse nos caminhos escuros, ou quando os fiapos de neve
dançassem nos dias amargos do inverno… Mas é que meu coração se
aquecerá, tendo-te a meu lado, e jamais me arrependerei de abandonar as
paredes abrigadas do castelo de meu pai. Ele é bom para mim, mas
ridiculariza-me e me injuria diariamente, porque te amo; e, ainda que sinta
muito deixá-lo, virei imediatamente, se precisares — e quando precisares
de mim.
Já as lágrimas lhe embaciavam os olhos tão corajosos, e a voz lhe tremia,
ao dizer as últimas palavras. Tomando-lhe as mãos, Robin beijou-as com
fervor.
— Chegas quase a persuadir-me, querida — disse ele. — Sei que me
amas, mas não é direito que uma moça vá para os bosques com um
proscrito, para viver em constante susto, vigiando noite e dia, no temor
dos inimigos. Prometo-te, porém, Marian, que se, em qualquer ocasião, te
vires em perigo, e te vires sozinha, e perseguida por aqueles que desejam
fazer-te mal, se me chamares, eu virei: este bom monge nos casará, e então
sofreremos juntos seja o que for que a sorte nos destinar.
— Muito bem, Robin Hood! — disse o monge com simpatia sincera. —
És muito prudente. Vejo que és homem de bem, como na verdade eu já
sabia. E não é fora de propósito pensar que antes que role muita água por
baixo da ponte do Went, esta linda menina terá necessidade de teu forte
braço e do amor de um homem bom, e bastante poderoso para protegê-la
contra a má vontade dos maus.
Dizia isto, porque sabia que o pai de Marian estava bem doente, e, se ele
morresse, muitos barões e prelados poderosos, cobiçando as terras e as
riquezas de lady Marian, haviam de se mancomunar para tê-la em seu
poder, de modo que se pudessem aproveitar de seus bens, vendendo-a a
algum marido que lhes desse bom preço pelo rico dote.
Soou uma buzina do lado da mata, e Robin, indo até a porta, viu João
Pequeno e os outros bandoleiros. Informou aquele que os soldados do
abade e os couteiros do rei tinham sido corridos, na estrada real, para além
do Bosque de Harlow, estando alguns deles feridos. E que dois cavaleiros,
que pareciam esperá-los, tinham tentado tornar a reuni-los, mas as flechas
dos bandoleiros os derrotaram num instante, dando eles volta
imediatamente; um dos cavaleiros levava uma seta cravada no flanco.
— Não havia nada que denunciasse quem eram? — indagou Robin.
— Um tinha um escudo branco, o outro tinha no seu uma torre
vermelha.
— Não conheci o da torre vermelha — disse Scarlet —, mas o do escudo
branco era um daqueles que nós batemos no ano passado, na igreja de
Campsall.
— É isso mesmo — disse Will, o arqueiro —; é Niger le Grym. E creio
que o outro, pelos rosnados e pelo furor das pragas que soltava, era o
endemoniado Isenbart de Belame em pessoa.
— Não o duvido — disse Robin. — Isso mostra que seus espiões nos
espreitam continuamente. Agora voltem para a floresta, e fiquem ao
alcance da minha trompa. Estão aqui duas damas, a quem devemos
acompanhar até chegarem a suas casas.
Lá dentro, o padre Tuck estava preparando um repasto, todo fornecido
pela mata, e, depois que Marian mudou de trajo, voltando a usar os seus de
costume, sentaram-se todos à mesa.
Terminada a refeição, trouxeram dois cavalos, que estavam escondidos
na floresta, e as duas damas despediram-se do monge e montaram,
partindo com Robin para o castelo de sir Ricardo de Lee, onde ambas
estavam residindo por algum tempo.
Quando iam andando pelas trilhas da floresta, então iluminadas pelo sol,
Robin notou que lady Alice ainda parecia triste e pensativa, e perguntou a
Marian por que suas palavras tinham despertado na moça aquela tristeza.
— É que ela já não pode resistir, e tem de casar com aquele velho e
perverso sir Ranulfo de Greasby. Já está marcado o dia, e seu bem-amado
Alan de Dale está proscrito e anda fugido nas montanhas agrestes de
Lancaster.
— Não sabia disso! E por que foi proscrito o moço?
— Sir Isenbart de Belame conseguiu isso, porque ele matou Ivo, o
Rapinante. Além disso, lançou uma multa muito pesada sobre as terras de
sir Herbrando, pai de Alan, e certamente dentro em pouco ele estará
arruinado, e o filho, morto. E é por todos estes tormentos que a minha
querida Alice está tão triste.
— Sim, é verdade que ele matou Ivo, o Rapinante, mas foi em combate
leal; eu estava presente. O que não posso compreender é como podiam
saber que foi ele, pois não havia lá nenhum partidário do Rapinante na
hora da luta, a não ser um vilão, mas esse foi morto pelo gnomo Ket.
E Robin contou-lhe como se passara o combate na floresta, entre Alan e
Ivo, o Rapinante.
— Agora me lembro — disse Marian —; contou-me sir Ricardo que a
notícia veio por um couteiro; disse o homem que no dia em que o
cavaleiro foi encontrado morto, Alan de Dale fora buscar um cavalo que
lhe entregara para guardar, e que tinha um ferimento grave em um ombro.
— Foi Hugo Negro que veio hoje com os soldados. Disse ele mais
alguma coisa? Não falou na pessoa que acompanhava Alan, quando foi
procurar o cavalo, nem no que lhe aconteceu, a ele, Hugo?
— Não, creio que não.
Contou então Robin a Marian que tinham encontrado Hugo amarrado
na porta da casa, enquanto um homem enorme, sentado diante dele,
comia os nacos de carne assada que o couteiro preparara para jantar.
Marian riu de boa vontade, dizendo que sir Ricardo ia gostar imensamente
de ouvir história tão engraçada.
— Vês aquele sujeito alto ali? — perguntou Robin. — Pois foi ele quem
amarrou o guarda, e não creio que possa haver camarada mais folgazão,
nem combatente mais leal.
E Robin mostrou a Marian a bela figura atlética de João Pequeno, que,
esbelto e ágil, lá ia adiante deles, andando a passos largos, espiando para
todos os lados com o olhar perscrutador.
Marian desejou falar ao gigante, que foi chamado; e João Pequeno,
muito corado, se viu a conversar com a primeira senhora nobre que
encontrava na vida. Ainda assim, portou-se com a dignidade de um
homem livre, porque na vida franca da floresta, ao ar livre, as maneiras
acanhadas e rudes do servo depressa desaparecem nas naturezas nobres.
Enquanto conversavam, e Marian indagava de João Pequeno muita coisa
a respeito da vida dos proscritos no meio da mata, Robin adiantou-se e foi
falar com lady Alice, que cavalgava ao lado de sua criada.
— Lady Alice — disse ele —, sinto muito que minhas palavras
despertassem no teu coração pensamentos tão tristes. Mas peço-te que me
digas — porque conheço o jovem Alan, e nunca encontrei escudeiro mais
bravo, nem mais cortês de palavras, e mais bondoso de gestos —, peço-te
que me digas qual é a data aprazada para o teu casamento com o velho
cavaleiro que aqueles tiranos de Wrangby querem que seja teu marido.
— Sir proscrito — disse a dama, cujos olhos escuros se iluminaram —,
agradeço-te as palavras tão bondosas com que te referes àquele a quem
amo. Ele fala de ti, nas poucas cartas que me tem escrito desde que, há um
ano, fugiu, proscrito também, para a mata selvagem; e fala sempre com
calor na tua amizade. Meu odioso casamento está marcado para daqui a
três dias, na festa de S. James, na igreja de Cromwell. Meu pobre pai não
pode mais resistir aos perversos pedidos de sir Isenbart, que o ameaça
com ferro e fogo, se ele não se submeter à sua vontade, casando-me com o
velho tirano sir Ranulfo. E nós não temos amigos grandes e poderosos a
quem pedir proteção, e meu noivo está proscrito e não me pode salvar!
As lágrimas que lhe brotavam dos olhos tão generosos caíam no coração
de Robin. E foi de sobrecenho carregado que ele ficou a pensar por alguns
instantes. Depois disse:
— Tem coragem, querida menina. Ainda é possível esperar alguma coisa
de braços fortes e corações animosos, apesar de ser escasso o tempo. Tens
alguém que possa levar uma mensagem minha ao teu amado?
— Obrigada, bom Robin! — replicou a jovem, sorrindo por entre as
lágrimas. — Há um servo de meu pai que conhece o esconderijo do meu
amado e já lhe levou quatro mensagens minhas, apesar de ser longo e
medonho o caminho para um pobre vilão sem prática de viagens. Mas ele é
valente, e obedece com alegria às minhas ordens.
— Como se chama ele, e onde mora?
— Chama-se João, ou Jack, filho de Wilkin, e mora em Cromwell, perto
do espinheiro-branco.
— Dá-me então alguma coisa tua, que ele reconheça; mandarei um de
meus homens ter com ele hoje mesmo, antes que soem as vésperas.
Lady Alice tirou do dedo um anel, entregando-o a Robin:
— Ele reconhecerá isto, e fará alegremente seja o que for que o portador
lhe disser, por amor a mim.
Nesse momento a camareira, que cavalgava ao lado da ama, e era uma
bela jovem de cabelos castanhos, faces rosadas e olhar altivo, estendeu a
mão a Robin, entregando-lhe também um anel de prata e dizendo-lhe:
— Valente Proscrito, peço-te que deixes teu camarada levar também isto
a Jack, dizendo-lhe da minha parte — porque ele diz que me ama — que
se não fizer o que lhe determinas, e isso o mais depressa possível, então
que fique com o seu anel, que devolvo; e, quando eu o enxergar, há de
ouvir que palavras duras a minha língua lhe dirá, além da minha maldição!
Porque se ele não movimentar sua enorme carcaça por amor de minha
ama, que está em tamanha dificuldade, então ele não é homem para ser
marido de Netta de Meering!
— Farei o que pedes, bela menina — disse Robin, sorrindo. — E como
não duvido que seja um homem valente aquele de quem aceitaste este
anel, espero que tudo acabará bem.
Dali a pouco chegavam ao castelo de sir Ricardo, em cujo salão as duas
senhoras se viam afinal em segurança. Já ia adiantada a tarde, e Robin
sabia que não havia tempo a perder. Chamou Will, o besteiro, deu-lhe os
dois anéis e confiou-lhe a missão que planejara. E em poucos minutos,
montado no veloz cavalo do próprio Robin, galopava Will à rédea solta
pelos caminhos da floresta, em direção ao oriente, para as águas do Trent.
v
O casamento de Alan de Dale e lady
Alice
v

Jack, filho de Wilkin, quando amarrava, no seio da mata, o


MAL PODIA IMAGINAR

último feixe de lenha ao rústico carrinho, que ele próprio fizera, mal
imaginava ele que naquele mesmo momento estava vindo ao seu encontro
uma mensagem que iria ter grande influência na sua vida. Era um rapaz de
vinte anos, forte, bem-proporcionado, bonito, de pele manchada de sardas
e olhos escuros e vivos. A cabeça, coberta de cachos castanhos, andava
sempre exposta ao ar livre, a não ser quando caía neve e soprava o vento
penetrante do oriente, espalhando o granizo.
Era servo do feudo de Cromwell, cujo senhor era sir Walter de
Beauforest, pai de lady Alice. O senhor mal sabia da existência de Jack; via
de vez em quando o rapaz, quando ia à caça, ou quando vinha de volta,
mas não se dignava retribuir-lhe o cumprimento e nem sequer tomava
conhecimento do movimento de cabeça com que Jack o saudava. Mas
João, o Magriço, mordomo do senhor, sabia que era ele um dos mais
laboriosos, entre os trabalhadores mais jovens do feudo. É certo que
muitos anos antes, quando Jack tinha 12 anos, o mordomo não o via com
bons olhos, porque notara que lady Alice, menina de seus 14 anos,
escolhera o menino para um de seus falcoeiros. Quando, entretanto,
morreu o pai de Jack, o rapaz se vira obrigado a trabalhar para pagar o
telheiro e as poucas braças quadradas de terra que lhes davam o sustento,
a ele e à mãe. Já quase não via então lady Alice, embora continuasse
sempre disposto a se lançar ao fogo ou à água por um sorriso ou uma
palavra bondosa da senhora.
No grande rolo de pergaminho do feudo, que o mordomo guardava, que
continha a genealogia de todos os servos que viviam na terra de sir
Beauforest, Jack estava inscrito como João, filho de Wilkin. O nome de seu
pai era Will, mas, como era baixinho, chamavam-no Wilkin, que significa
Guilherminho. Mas o sobrenome de Jack não era uma coisa assentada,
porque os vilões e gentes pobres não o usavam naquele tempo.
Chamavam-no às vezes Jack, filho de Will, ou Jack do Espinheiro, por
causa de um espinheiro-branco que havia ao pé do seu rancho, ou ainda
Jack, filho de Alice, do nome de sua mãe. Mas, como ele era esperto e de
gênio alegre, sabia sempre quando era a ele que chamavam, e não se atinha
a cerimônias.
Gostava muito de cavalos, de cães e de falcões. Conhecia todos os
cavalos do feudo pelo nome, e muitos dias passara com eles, quando
andava por campos e tapadas, seguindo os longos e estreitos sulcos da
charrua, na faixa de terra do amo, que tinha de lavrar. Muitos dias felizes
passara também com lady Alice, nos campos abertos e incultos, caçando
com falcão ou esmerilhão, falcão treçó ou francelho.
Todos os guaipecas da aldeia estavam em bons termos de amizade com
Jack, mas não havia lá nenhum cão grande, como mastins, galgos ou
perdigueiros, porque ficavam muito próximas as florestas do rei, onde
pastava a caça brava, e todos os cães de grande porte eram mortos pelos
couteiros, ou tinham as patas mutiladas, para que não pudessem servir
para a caça.
A grande ambição de Jack era obter a liberdade. Ser livre e lavrar a sua
própria terra, como fazia Nicolau do Penhasco, ou Simão, o flecheiro,
parecia-lhe a maior felicidade que um homem poderia alcançar. Não que
seu senhor fosse mau, ou que João, o mordomo, fosse cruel, mas, ainda
assim, Jack preferia ser livre a se ver preso à terra, como era. Sua mãe
explicava aquele estranho desejo dizendo que, quatro gerações atrás, nos
tempos sossegados do abençoado rei Eduardo, o Confessor, quando aquela
terra ainda não conhecera senhores ferozes e barões violentos e ladrões,
os antepassados de Jack tinham sido livres; mas, quando os malvados
normandos vieram, escravizaram todos eles.
Achava Jack que era grande injustiça que, pela morte de seu pai, a mãe
tivesse de entregar ao mordomo o que tinha de melhor — a vaca, Moolie,
uma esplêndida leiteira, além do melhor caldeirão da casa e os melhores e
mais sãos instrumentos de trabalho. Disseram que aquilo era em
pagamento ao senhor, para que lhes permitisse ficar morando na terra, que
seus antepassados tinham possuído por gerações e gerações…
Ainda dez meses atrás, o mundo fora da aldeia parecera a Jack uma
região sombria, misteriosa e terrível. Ele conhecia tudo perfeitamente
dentro de três milhas a partir da igreja, no centro da aldeia, mas jamais
ousara penetrar na floresta, a leste, mais longe do que isso. Considerava
suspeitos todos os estranhos, e quando topava com algum ao seguir para a
aldeia, escondia-se até que o estrangeiro passasse.
O que sabia da floresta é que era um lugar medonho, a crer nas terríveis
histórias que contavam os outros vilões. De monstros, que saíam a voar de
noite, escondendo-se durante o dia nos tufos escuros de matagal, para
saltar sobre os viajantes incautos; de morros, em cujos topos ardiam fogos
na escuridão da noite e que eram a morada de pequenos elfos escuros ou
duendes. E de fato o temor de diabinhos maliciosos não abandonava o
espírito de Jack, naquele tempo. Essas coisas ruins podiam tomar qualquer
forma e viviam nas águas do rio, no mato, ao pé da estrada, e nos tufos de
relva, nos campos que ele arava ou ceifava. Toda a aldeia — e milhares de
aldeolas, em toda a vasta Bretanha — acreditava nesses espíritos maus,
portanto não era Jack pior do que seus companheiros, nem do que homens
famosos naquele tempo por sua sabedoria, e que até tomavam assento nas
sessões de conselho de reis.
Aquela velha gralha cor de fuligem, que desce sobre os sulcos do arado,
ou o corvo que pousou num torrão, quando ele lavrava a terra, e fixou nele
os olhos redondos como umas contas, talvez seja algum feiticeiro que veio
ver se podia lhe pregar alguma peça — e não apenas a ave que procura
vermes ou insetos na terra. Era por essa razão que Jack tinha de fazer uma
cruz com os dedos e rezar um padre-nosso, sempre que passava pela ave
agourenta. Do mesmo modo, se ele via a flutuar no arroio um grosso toro
de madeira, que, uma vez seco, daria para cozinhar uma sopa, não o
pescava inconsideradamente, como o faria um rapaz de hoje. Não: antes
de tocar naquilo, fazia sobre o madeiro o sinal da cruz, porque podia estar
oculto ali dentro algum dos perversos demônios da água, pronto a deitá-lo
abaixo, se ele não o desarmasse com o sagrado sinal.
Grande sorte era achar uma ferradura perdida, ou guardar uma já gasta e
inútil. Ele tinha uma sobre a porta do rancho, outra à janela, para que não
entrasse ali nenhum feiticeiro ou bruxa. Sabia também a maneira de
pendurar a ferradura, para que produzisse efeito. Na véspera de Finados,
na época em que as coisas más andam ao redor da gente, Jack prendia no
cinto um galhinho de freixo bravo.
Nunca vira um elfo, nem um duende, mas sabia que esses entes viviam
em tocas, nos morros, ou em lugares secretos dos bosques. Contava-se que
há muitos, muitos anos, um homem chamado Sturt de Norwell, um servo,
ouvira alguém gritar em um mato, onde perdera a picareta. Indo ver quem
gritava, o homem viu que era um anão. Mesmo assustado como estava,
Sturt procurou a picareta e achou-a, e o duende convidou-o para ir jantar
com ele em sua casa. Depois disso ele ia muitas vezes ao morro da floresta,
e um ano mais tarde casou com a filha do anão e sempre viveu em
prosperidade. Seus filhos ainda viviam em Norwell; um era homem livre, e
todos eles eram de pequena estatura, mas amáveis e fortes, sempre bem
recebidos em toda a parte, porque todos gostavam de seus cantos e de
suas boas maneiras.
Tal era a ideia que Jack fazia do mundo e das coisas, até pouco tempo;
mas um dia lady Alice, bela e graciosa como uma visão celeste, encontrou-
o em um lugar solitário e deu-lhe um pergaminho enrolado em um pedaço
de seda, pedindo-lhe que o entregasse ao seu namorado, que vivia oculto
em certo sítio da floresta de Lancaster. Era ele o único homem em quem
ela podia confiar, disse a moça; e suas palavras tinham feito o coração de
Jack crescer dentro do peito.
Era ele um bravo rapaz, mas aquela primeira viagem pelo interior dos
matos, levando a preciosa mensagem, foi uma experiência que jamais
havia de esquecer, pelos temores que passou. Mas, por puro devotamento
à bela Alice, cujo amor por Alan de Dale era conhecido em todo o feudo,
sua lealdade vencera todos os receios, e ele tinha desempenhado fielmente
a sua missão.
Fizera ainda mais três vezes aquela viagem, e cada vez sentia que lhe
voltava o medo das estradas estranhas e do vasto campo inculto, que ficam
entre Sherwood e Werrisdale; mas, graças à sua decisão e astúcia, saíra
são e salvo de várias aventuras.
Nunca tinha visto um proscrito, ou verdadeiro ladrão dos bosques.
Mascates, mendigos vigorosos ou menestréis descarados tinham tentado
assustá-lo, ou despojá-lo de seus poucos haveres, ou do saco de farnel, mas
não vira nenhum desses homens terríveis, fugidos de seus senhores
legítimos, abandonando terra e lar, e os costumes antigos de seus
antepassados. Muitas vezes considerava que deviam ser homens
desesperados e indiferentes a tudo, sempre prontos a matar ou a ferir os
outros.
Naquela tarde, quando amarrava o último feixe ao carrinho, perguntava
consigo o que teria feito se em uma daquelas viagens saísse de repente um
sujeito desses do meio da mata e lhe pedisse o guardado precioso que lady
Alice lhe confiara. Oh! Combateria até o último suspiro, antes do que
entregá-lo!
Deu um estalo com a língua, para avisar o pônei que puxava o carrinho, e
o foi guiando para o caminho, fora da floresta. Olhou para o poente e viu lá
muito longe, sobre a linha sinuosa da floresta, a borda superior do enorme
sol vermelho, a cuja luz os troncos das árvores pareciam rubros e
brilhantes como sangue.
Ouviu o rumor de um graveto partido e viu a seu lado um homem, que
saía de trás do tronco de uma árvore e lhe barrava a passagem,
perguntando-lhe em tom autoritário:
— És Jack, o filho de Wilkin?
Jack recuou, levando a mão ao cabo da faca que trazia à cinta. Olhou
atentamente para o homem, que era baixinho e vigoroso. Trajava túnica e
calções verdes, já muito usados e com alguns rasgões, como se tivesse
andado por algum espinheiro. Trazia às costas o arco e, preso à cinta, junto
de uma espada, o feixe de setas.
Olhava Jack para o estranho, perguntando de si para consigo quem
poderia ser. Pelas roupas, parecia couteiro de algum senhor, e o rosto,
coberto por uma grande barba grisalha, era severo, mas dava impressão de
honestidade. Contudo, aquele homem tinha ar de quem não tinha outro
senhor senão ele próprio. Via-se estampado o cunho da liberdade no olhar
franco e penetrante, e na postura altiva da cabeça.
Foram pensamentos que passaram como um relâmpago pelo espírito de
Jack, que disse:
— E que te importa quem eu seja?
— É a ti que te importa quem tu és — disse o outro, rindo. — Escuta,
rapaz: não te quero fazer mal algum.
Havia naquele riso um timbre de franqueza, que agradou a Jack. O
estrangeiro meteu a mão esquerda no bolso e tirou de lá alguma coisa.
Puxou então a adaga e enfiou-lhe na ponta dois anéis — um de ouro, outro
de prata — e ergueu a arma. Os raios do sol poente fizeram brilhar um
diamante no delgado aro de ouro, de sorte que este luzia e irradiava, como
uma luz faiscante, no sombrio crepúsculo do mato.
— Conheces algum deles, rapaz?
— De onde os tiraste? — perguntou Jack, com uma sombra de raiva no
semblante. — Ah! Tu os roubaste daquelas que os usavam? Se assim foi,
não sairás daqui vivo!
— Devagar, valente rapaz! — replicou o outro, observando o
involuntário movimento de Jack, que se curvara, como se lhe fosse saltar
em cima. — Meu chefe recebeu-os das mãos de suas lindas donas, Lady
Alice, tua senhora, assim lhe disse: “Jack é valente e gosta de me fazer a
vontade. Ele conhecerá que isto me pertence, e fará o que o portador lhe
disser com a maior alegria, por amor a mim.”
— Lady Alice disse essas palavras? — perguntou o rapaz.
E corou; parecia que o sangue lhe refluíra, cheio de calor, para o coração,
e ele irradiava de prazer, ouvindo o louvor de sua ama, mesmo pela boca
daquele rude couteiro velho.
— E então, que deseja a senhora que eu faça? — indagou ele.
— Que vás comigo, ter com Alan de Dale — disse Will, o besteiro.
Hesitou o moço por um momento. Ir com aquele estranho pela selva
bruta, para as solitárias terras do Peak! Mas sua lealdade não o deixou
refletir mais tempo:
— Eu irei, amigo. Dize-me teu nome e quem és tu.
— Chamo-me Will, o besteiro. Robin Hood é meu chefe.
— O quê?! —disse Jack, recuando. — Então és um proscrito! Um dos
homens de Robin Hood?
— Sou, sim; e muito me orgulho de servir um chefe tão bravo e tão
sábio.
Jack ficou por um momento assombrado. Aquele homem não era um
degolador terrível e disposto a tudo, como imaginara; era um homem de
feições simples, cujos olhos talvez fossem severos, mas que também
sabiam sorrir. Estendeu a mão em um impulso, e o outro apertou-a.
— És tu o primeiro proscrito que encontro — disse o rapaz, rindo de
boa mente — e se teu chefe e teus companheiros são como tu, diz-me o
coração que vocês são honestos e bons camaradas. E Robin Hood vai
ajudar minha senhora?
— Sim, vai; mas agora deixemos de prosa e vamos para a floresta, antes
que seja noite.
Nada mais disseram. Jack pôs carro e cavalo na direção da aldeia e deu
uma pancadinha no cavalo; quando este saiu a trote, viu que chegaria logo
e em segurança à aldeia. Antes, porém, de despedi-lo, apanhou uma haste
de clematite da sebe e amarrou-a ao pescoço do animal; avisava assim sua
mãe de que tinha sido outra vez enviado repentinamente a recado de sua
senhora.
Depois que tinham andado uma milha para além da floresta, disse Will:
— Não me perguntaste que mensagem veio com o anel de prata.
— Não — disse Jack, rindo. — Não perguntei. Primeiro, porque o
recado de minha ama me varreu isso da cabeça; segundo, porque imaginei
que não havia de ser uma mensagem muito suave.
— Era recado de uma moça; e é meio amarga e meio doce, como de
certo já sabes. Então já vejo que a jovem Netta de Meering tanto te diz
palavras boas como escarnece de ti?
— És mais velho do que eu — replicou Jack, com um sorriso acanhado
—, e sem dúvida conheces os costumes das moças melhor do que eu. Que
foi que ela me mandou dizer?
Disse-lho Will, e o rosto de Jack tornou a corar ao ouvi-lo. Disse então,
com uma sombra de altivez: “Eu não preciso da rudeza de sua língua para
me mover a serviço de minha senhora.”
Dali em diante não falou mais, mas Will notou que ele apressou o passo
e parecia muito pensativo. Quando os últimos restos de luz desapareceram
do céu, iam já pelos caminhos mais ínvios da floresta. Descansaram um
pouco e comeram seu farnel, enquanto esperavam o luar. Àquela luz
amável recomeçaram a andar, e pareciam demônios de formas escuras
naquela negrura profunda; mas, quando saíam da sombra e andavam nas
clareiras iluminadas, pareciam antes fadas, cobertas de um brilho mágico.
Dali a dois dias, os camponeses da aldeia de Cromwell andavam aos
grupos, pelos ranchos, falando no triste acontecimento que ia se realizar
naquela manhã, e que dizia respeito à sua bem-amada senhora. Todos
sabiam que ela dera seu coração a Alan de Dale, mas que o duro fado que
regula a vida de cavaleiros e damas a obrigava a casar com Ranulfo de
Greasby, o velho malvado de cabeça branca, que vivia nas terras
pantanosas do leste.
Alguns vilões estavam no pátio da igreja em que se ia realizar a
cerimônia. Olhavam para a estrada muitas vezes, para o lado do norte,
porque era de lá que havia de vir a comitiva do casamento. Já tinham visto
o padre, no seu passo miúdo, dirigir-se para a casa senhorial, de onde
provavelmente acompanharia a noiva à igreja.
— Lá vai ele, levar conforto àquela a quem não pode confortar — disse
uma jovem que tinha um nenê nos braços. — Coitada! Por que não há de
ela casar com quem mais ama no mundo?
— Isso lhe custaria a cabeça, se viesse hoje aqui — disse o homem que
estava ao pé dela. — É um proscrito, um homem arruinado.
— Não — disse um rapaz mais novo. — Receio muito que não haja
remédio a dar à pobre moça! Ela se consumirá de mágoa quando estiver
casada, e nunca mais tornará a ser a linda e alegre jovem que era até agora.
— Oh! Isto é uma grande injustiça! — bradou uma mocinha. — Não
haverá ninguém na família que possa salvá-la?
— Seus parentes são gente fraca, Mawkin — disse uma velha toda
enrugada —, e seriam o mesmo que ratinhos nas garras de Isenbart de
Belame, se se opusessem à sua vontade.
Naquele momento ouviu-se tropel de cavalos na estrada maltratada que
vinha do norte, e apareceram dez soldados com a libré de Ranulfo de
Greasby. Eram de aspecto duro e grosseiro, e, sem uma palavra, foram
guiando os cavalos para o portão, e dali para o pórtico da igreja,
espalhando os pobres vilões, que tiveram de escapar como puderam às
patas dos animais. Postaram-se aos dois lados do pórtico, e, desmontando,
ficou cada um junto do seu cavalo, olhando insolentemente para os
camponeses, agora amontoados junto ao portão.
— É de semelhante refugo que o velho receia um rapto? — perguntou
um dos soldados.
Riram os outros a esta graçola, e um respondeu:
— Há tanto tempo que a linda e jovem namoradeira zomba de nosso
velho amo, que agora, tendo-a já quase nas mãos, ele receia que algum
mau lance a arrebate.
— Sim, ela zomba dele há muito tempo — disse outro. — Mas eu não
dou grande coisa pelas suas zombarias, quando ela estiver no castelo dele,
lá em Hagthorn Waste! Ele tem meios de domar a dama mais altiva, como
sua última esposa bem sabia, segundo dizem.
— Sim, ela era linda, de olhos escuros; seu olhar ora parecia uma
espada, ora era tão suave como o de uma criança — disse outro.
— Lembro-me dela — retrucou o que falara primeiro. — Durou só dois
anos. Escapou dele em uma noite de inverno, e foram achá-la de
madrugada no Brejo de Grimley, entorpecida de frio.
Então disse o que parecia chefe:
— Vocês são alegres padrinhos de casamento, pela Santa Cruz! Vamos,
aquele menestrel que venha cantar um canto animado, mais próprio para
um noivado! Olá, vem cá, maroto!
Um menestrel alto, de gibão de festa já no fio e calções remendados,
viera da aldeia e juntara-se ao grupo de camponeses, e ria com eles,
enquanto ia tangendo a harpa, pendurada ao pescoço por uma fita
encarnada. Ao chamado do soldado, foi até o portão, tirou o barrete de
veludo, fazendo uma cortesia.
— Que preferis, nobres cavaleiros? Um canto de guerra e pilhagem, ou
um dos que falam de jovens amáveis, ou de caçadas, da boa caça brava?
— Canta o que mais te agradar, desde que seja um canto bonito —
ordenou o chefe dos soldados.
Então, depois de dar alguns acordes preliminares e limpar a garganta, o
menestrel cantou uma canção popular, “A Rosa de Woodstock”. Tinha
uma rica voz de tenor, e a música era viva, com um coro em que todos
tomavam parte. Depois cantou-lhes uma balada que falava de um noivado,
que agradou imensamente aos soldados. Quando o menestrel quis
despedir-se, o chefe disse-lhe:
— Fica, alegre camarada, porque, se não me engano, vamos ter
necessidade de ti. Certamente vai chegar, daqui a pouco, uma noiva de
cara tristonha, e talvez teus cantos alegres possam animá-la, e meu senhor
então ficará contente de vê-la. Se agradares hoje ao nosso amo, terás uma
boa recompensa, podes crer nisso!
O menestrel não desgostava de ficar, e preparava-se para cantar outra
canção, quando avistaram quatro cavaleiros que se dirigiam depressa para
a igreja. O mais alto era sir Ranulfo de Greasby, um velho grisalho, de
rosto vermelho e feio. Tinha a boca dura e os olhos vermelhos e ferozes.
Trajava um rico manto de seda carmesim, o cinto era incrustado de
diamantes, e o punho da espada também cravejado de pedras preciosas. Os
outros três cavaleiros eram mais jovens, com ar de gente capaz de tudo,
bem-vestidos, mas de porte desalinhado. Um era o sobrinho de sir
Ranulfo, sir Heitor de Harelip, que quer dizer “leporino”, homem com ar
de malfeitor, cuja fama de crueldade era tão grande como a do tio.
O velho cavaleiro entrou de corrida portão adentro, como se viesse com
muita pressa.
— A dama já veio? — gritou ele, com voz rouca, para os seus soldados.
E seus olhos vermelhos, de raposa, pousaram suspeitosos em um e
outro.
— Não, senhor.
— Maldição! — gritou arrebatadamente.
E o velho cavaleiro, voltando-se na sela, olhou, furioso, para um e outro
lado da estrada, depois para a multidão de vilões e para os ranchos, que se
viam lá longe. E disse entre dentes:
— Ela ainda me faz esperar!
E ouviram todos que rangia os dentes, e viam-lhe os olhos vermelhos se
cerrarem, sem ocultar, contudo, o brilho feroz que luzia neles.
— Há de chegar a sua vez de esperar, dentro em pouco, se não me falar
com delicadeza!
Avistando de repente o menestrel, que estava parado perto do seu
cavalo, perguntou:
— Quem és tu, patife?
— Sou Jocelyn, o menestrel, sir cavaleiro — replicou o homem,
tangendo a harpa.
— Tens cara de patife — disse sir Ranulfo, desconfiado —; és pouco
delicado para um músico.
— Contudo, sir cavaleiro, eu sou um pobre músico e venho dar prazer a
Sua Alteza com meu canto simples, se desejais ouvi-lo — disse o
menestrel, tangendo de novo a harpa.
— Canta, então, velhaco; e que teu canto seja apropriado, senão só
ganharás bastonadas.
O músico levantou duas cordas da harpa e começou:

“Senhor de terras, chefe de soldados,


Vago sem rumo, insone e abatido,
Sem mais caso fazer de glória ou fama:
Como um escravo vil e desprezado,
Rogando em vão à linda e cruel dama,
À soberba e gentil dama Alicinda.

Sopra, sopra, ventania,


Traze a minha cruel dama!
Sopra, sopra, ventania!
Sopra, sopra, sopra ainda!”

Quando acabou de cantar o último verso, retiniu uma risada


desdenhosa, estranhamente áspera e penetrante. Os homens olharam para
os lados, mas nada viram. Parecia vir do alto, mas acima de suas cabeças
nada mais havia também, a não ser a fachada de madeira da torre da igreja.
Ao redor dela esvoaçavam e gritavam algumas pegas, e pelas seteiras
entravam e saíam andorinhas, que ali tinham seus ninhos.
O trovador cantou mais outra estrofe:

“E que olhos cruéis eram os dela!


Como duas espadas me vararam,
Até que toda a cor me abandonou…
Mas ah! Que feliz sou! Mesmo assim, velho,
Sorriu-me agora, quando me fitou,
A minha dama, a frágil Alicinda!
Sopra, sopra, ventania,
Traze a minha cruel dama!
Sopra, sopra, ventania!
Sopra, sopra, sopra ainda!”

De novo a risada retiniu; desta vez mais escarninha. Sir Ranulfo olhou
para o cantor e disse, muito irritado:
— Que barulho é este, maroto? Trouxeste contigo algum companheiro?
— Não, senhor; não trouxe nenhum companheiro.
Então um dos homens, cujos olhos denunciavam grande terror, disse ao
amo:
— É provável, senhor, que lá na torre esteja algum demônio…
— É provável, maluco — trovejou sir Ranulfo —, que leves uma grande
sova, quando voltares! Vão, rodeiem a igreja, indo pelos dois lados, e
vejam se não há por aí algum vilão escondido! E, se o encontrarem,
tragam-mo cá, que lhe arrancarei a língua pela boca fora! Hei de lhe
ensinar a zombar assim de mim!
Saíram quatro homens, enquanto outros iam procurar entre os túmulos;
podia haver alguém oculto atrás das tábuas erguidas sobre algumas
sepulturas. Mas ambos os grupos voltaram sem ter encontrado ninguém.
O cavaleiro estava furioso, e determinou que cinco de seus homens fossem
dispersar os vilões que estavam junto ao portão do cemitério, espantados
com o estranho caso. Mas os camponeses, sem esperar as pancadas dos
soldados, já tinham voado para os seus casebres.
— Agora, malandro — gritou sir Ranulfo ao menestrel —, canta outra
copla da tua canção; e, se eu ouvir outra risada, saberei então que é coisa
tua mesmo. Pensas tu que não conheço as artimanhas de bruxedo da tua
raça de impostores?
— Juro pela salvação da minha alma — disse o trovador gravemente —
que não fui eu quem deu aquelas risadas. Contudo, cantarei outra estrofe e
esperarei o resultado.
E, acompanhando-se de sua harpa, cantou:

“O Céu me envia enfim esta alegria!


Meu destino cruel está mudado!
Tu me aceitas, enfim, minha querida!
Minha senhora, meu amor, meu tudo!
Teu escravo serei por toda a vida,
Minha risonha, célica Alicinda!

Sopra, sopra, ventania,


Traze a minha cruel dama!
Sopra, sopra, ventania!
Sopra, sopra, sopra ainda!”

Ressoou imediatamente acima da cabeça dos que escutavam, uma


gargalhada de escárnio, tão estrondosa e estridente que assustou a todos,
de sorte que todos olharam involuntariamente para cima — mas nada
viram. Cessou por um momento o estrondar do riso; depois ouviu-se,
vindo do lado da estrada, outra risada, que mais parecia o crocitar do
corvo: dir-se-ia que era alguém que passava no momento. Depois o som
aproximou-se por um instante, e todos ouviram distintamente estas
palavras, que soaram em tom feroz e ameaçador:
— Colman Grey! Colman Grey!
Ao ouvir estas palavras, sir Ranulfo recuou e puxou o cavalo com tanta
força que foi ter à porta da igreja; batia nela, de punhos fechados,
gritando:
— Fora daqui! Fora daqui! Levem-no daqui! Levem-no! Chamem o
padre! Chamem o padre! É um espírito mau… levem-no para longe de
mim!
Parecia tomado de terror mortal. O rosto, antes vermelho, estava agora
lívido; os lábios se contraíam e murmuravam palavras ininteligíveis. E,
enquanto fazia repetidas vezes o sinal da cruz, com a outra mão fazia
gestos de empurrar para longe alguma coisa, e de vez em quando tapava
com ela os olhos. Seus homens, olhando para ele, assombrados, ficavam
ali, de boca aberta, ao ver o desatino de seu senhor.
Afinal ele tornou a si: viu o assombro nos olhos dos que o rodeavam e,
recobrando-se até certo ponto, ainda que trêmulo, meteu o cavalo para
diante, gritando:
— Por que é que estão assim embasbacados, patetas?
E, erguendo o chicote que pendia da sela, vibrou-o por cima dos
homens, que fugiram aos laçaços; ordenou-lhes que ficassem parados, mas
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eles não obedeceram, e então, atacado de louca fúria, lançou o cavalo para
cima deles, dando-lhes chicotadas, enquanto os homens se encostavam
por entre os cavalos. Os animais recuaram e começaram a morder-se uns
aos outros, do que resultou uma confusão terrível. Nesse momento, seu
sobrinho, sir Heitor, segurou o braço do velho enlouquecido, dizendo:
— Sir Ranulfo, sossegue! Lá vem a dama!
Ainda furioso, o homem olhou para o norte e viu na estrada um grupo de
cavaleiros que se dirigiam para a igreja. Instantaneamente abaixou o
chicote, endireitou o chapéu e a túnica. Ordenou aos homens
encolerizados que montassem e se preparassem para receber a senhora. Já
então o padre e o sacristão tinham entrado na igreja pela porta lateral, e
agora abriam-se as grandes portas atrás deles, deixando ver a escuridão
que reinava no interior da igreja.
Sir Ranulfo, vendo que tudo estava agora em ordem, procurou o
menestrel com olhos indignados. Mas não o avistou em parte alguma.
— Onde foi aquele trovador mandrião? — perguntou a um dos seus
companheiros.
— Não sei — disse o cavaleiro. — Fiquei de olho nele, até que
começaste a surrar teus criados; mas depois, naquela confusão, ele se
esgueirou, porque não o tornei a ver.
— Bom, sir Filipe — disse sir Ranulfo —, faze-me o grande favor de ir
em busca daquele velhaco. Não me sentirei feliz enquanto não o tiver nas
minhas mãos, vendo-o sofrer torturas. O patife dirá então o que sabe, e…
o que… o que… querem dizer aqueles gritos. Podes levar dois de meus
homens, mas — procura-o! Quando o apanhares, leva-o para Hagthorn
Waste e deixa-o no meu cárcere.
— Farei isso, Greasby — disse o jovem cavaleiro, dando uma risada
insolente —, mas, se eu conseguir apanhá-lo para ti, terás de me dar teu
galgo Alexandre e teus dois falcões, Grip e Fang.
— Cavaleiro grosseiro! — disse sir Ranulfo, em voz baixa e bravia. —
São os que mais estimo… Mas preciso apanhar aquele cantor. Vai, e dar-te-
ei o que pedes. Vai depressa, antes que o patife possa esconder-se.
Algumas palavras ditas a dois soldados, e já ambos seguiam com o
cavaleiro, saindo do pátio justamente quando chegavam sir Walter de
Beauforest e um amigo, trazendo entre ambos lady Alice; acompanhavam-
nos um criado da casa e a camareira de Alice, e vinham todos a cavalo. O
velho cavaleiro, sir Ranulfo, o rosto astucioso todo sorrisos, parou junto ao
portão, cabeça descoberta, mão no coração, e curvou-se diante de Alice,
que, pálida e triste, mal olhou para ele. Trajava um rico vestido de seda
branca; trazia fios de pérolas no pescoço, e a leve capa de verão também
era bordada a pérolas, enquanto o véu era bordado a ouro. Mas toda essa
riqueza só servia para fazer sobressair ainda mais o espantoso palor de
suas faces e o fulgor daqueles olhos, que já nem podiam chorar.
Sir Walter, seu pai, não poderia mostrar desgosto maior. Era um
cavaleiro altivo e horrorizava-se ao pensar que tinha de se submeter às
ordens de um senhor tirano, e casar a filha única com um cavaleiro de má
fama, como sir Ranulfo de Greasby — ladrão de estrada, tirano e cruel
com a gente pobre, a qual perseguia para lhe arrancar os magros vinténs
que amealhavam, ou as terras que cultivavam. E eram esses os menores
crimes que a voz do povo imputava a sir Ranulfo. Havia ainda histórias de
uma esposa torturada, e de pobres homens e mulheres que sujeitava a
tormentos cruéis nas masmorras do seu castelo de Hagthorn Waste.
Dirigiram-se todos para a porta da igreja, e desmontaram. Netta, de
olhos vermelhos, foi para a ama, e, fingindo que lhe arranjava a capa,
murmurou-lhe ao ouvido palavras de conforto, enquanto mal podia suster
o choro, de tanta tristeza. Então sir Walter, tomando a mão da filha,
entrou com ela na igreja, subindo pela sombria nave até o altar, onde já
estava o padre, pronto para celebrar a cerimônia.
Quatro soldados ficaram fora da igreja, com os cavalos, e os outros
quatro entraram com sir Ranulfo e seus dois cavaleiros, sendo que sir
Heitor era o principal padrinho. Juntos se aproximaram do altar, e,
enquanto os outros se conservavam atrás, sir Walter de Beauforest pôs a
mão de sua filha na mão de sir Ranulfo, que imediatamente a levou para
junto do padre.
O velho vigário estava tão triste como qualquer dos vilões que agora se
amontoavam dentro da igreja, sentados nos bancos de trás. Conhecera
lady Alice quando fora levada à pia batismal, ensinara-lhe a leitura, a
escrita, e amava-a por ser tão graciosa e boa. Além disso, sir Walter fora
sempre um bom amigo do pobre padre. Apesar disso, tinha de cumprir o
seu dever, e agora, abrindo o livro do ofício divino, preparava-se para ler as
palavras que iriam fazer daqueles dois marido e mulher!
De repente surgiu, na penumbra que reinava ao pé da parede da igreja,
um movimento estranho, e um homem parou à luz das velas que
iluminavam o altar. Era o menestrel; mas agora tinha na mão um grande
arco, e a harpa era trazida por um mocinho — Gilberto da Mão Branca. E o
trovador gritou, em voz alta e forte:
— Este casamento é desparelho e mal-ajeitado! Sir Ranulfo de Waste,
vai-te daqui, antes que te sobrevenha doença ou morte! Sir padre, esta
donzela casará com aquele a quem ama, no devido tempo.
Todos os olhos estavam voltados para a alta figura de verde. Lady Alice,
de olhos brilhantes e faces coradas agora, arrancara a mão dos dedos de sir
Ranulfo e ficara ali, tremendo, de mãos juntas.
Sir Ranulfo, cujo rosto escurecera de furor, olhava ora para a moça, ora
para o menestrel. Estava tão furioso que quase não podia falar. Afinal,
disse, motejando:
— Olá! Mas quem é este sujeito? Será o “cabeça de lobo”, o maluco
proscrito, por causa de quem esta donzela me tem feito esperar mais de
um ano?
Ninguém respondeu. Sir Walter olhou para o menestrel e sacudiu a
cabeça. Sir Ranulfo puxou da espada com um gesto de raiva e deu um
passo à frente.
— Quem és tu, patife, que ousas afrontar-me?
Da escuridão do teto veio então uma voz crocitante:
— Colman Grey! Colman Grey!
Sir Ranulfo vacilou ao ouvir este nome, e ergueu os olhos, branco de
terror. No mesmo instante ouviu-se um zumbido de abelha, e uma seta
negra e curta caiu de cima, varando-lhe a garganta. Sem um grito, ele caiu
pesadamente, estremeceu e depois ficou imóvel.
Os cavaleiros e soldados que presenciaram esta cena não faziam
movimento algum; de tão espantados, não podiam falar nem fazer coisa
alguma. O menestrel ergueu uma buzina e tirou dela um som que encheu a
igreja de vibrações. Imediatamente, como se aquele sopro o arrancasse do
torpor em que estava mergulhado, sir Heitor arrancou a espada e, com um
grito de ódio, lançou-se contra Robin Hood — porque era ele o trovador.
Mal teve o bandoleiro tempo de tirar a sua da bainha, e puseram-se a
combater na penumbra. Ao som da trompa juntou-se o ruído de chocar de
armas na porta, e os soldados, até então assombrados demais para se
moverem, apanharam as espadas e correram para a porta, mas tiveram de
recuar, diante de três camaradas seus que vinham fugindo, perseguidos
por uma nuvem de setas que entravam, como um enxame de vespas
furiosas. Dois caíram mortos, outro disparou, gravemente ferido. Os cinco
restantes, que sabiam o ódio votado aos soldados de sir Ranulfo, atiraram-
se contra os besteiros, lutando para fugir, porque sabiam bem que não lhes
dariam quartel. Na porta o combate acirrava-se, esforçando-se os homens
de verde para fazê-los voltar, e os de sir Greasby teimando em ganhar a
rua.
Repentinamente um grito ecoou na igreja. Sir Walter viu o segundo
padrinho de sir Ranulfo correr para a porta do lado do padre, levando nos
braços lady Alice, que lutava por se livrar dele.
Netta correu-lhe no encalço, gritando e rasgando as vestes do cavaleiro,
mas ele conseguiu chegar à porta, de onde se voltou, assentando um soco
na criada, que caiu sem sentidos. E logo desapareceu, por detrás da cortina
que ocultava a porta.
No mesmo instante Robin Hood, depois de um rude combate com sir
Heitor, dava-lhe o golpe final, ainda que ficasse também ferido, e dirigiu-se
lestamente para a porta, por onde desaparecera o outro, levando Alice.
Não viu ninguém lá fora, e percebeu logo que o cavaleiro tinha corrido
para a frente da igreja, onde estavam os cavalos.
E assim fora. Sempre segurando seu fardo, que não cessava de se
debater, o cavaleiro conseguiu pegar um cavalo e escapulir, antes que
alguém se recobrasse daquela confusão. Quando chegou à frente da igreja,
encontrou ali dois homens empenhados em combate mortal. Um era o
cavaleiro que saíra em busca do menestrel, o outro era um estrangeiro.
Mas a um sinal deste Alice gritou, já quase sem fôlego:
— Alan! Alan! Salva-me!
O grito da moça ia sendo o som dos sinos da morte do seu bem-amado,
porque, surpreendido com a voz da namorada, que gritava ali tão perto
dele, Alan voltou a cabeça, e o cavaleiro vibrou-lhe um golpe terrível, que
certamente o teria decapitado, se não fosse Jack, filho de Wilkin, que,
estando perto, viu o perigo, e com seu varapau deu uma pancada no ombro
do cavaleiro. Isto salvou a vida de Alan, dando-lhe tempo de se voltar.
Empenhava-se agora com fúria em vencer seu inimigo, pois sabia que
tinha de abatê-lo antes de sair no encalço do cavaleiro que levava a sua
dama.
Mas o cavaleiro, sir Filipe, era um combatente forte e astucioso, e
enquanto isso o outro, o que levava a moça, alcançando um cavalo,
atravessara-a sobre a sela, e subira também. Num instante corria para o
portão do cemitério, deitando abaixo dois pobres vilões que, vendo sua
senhora assim raptada, esperavam dominar com seus cajados o cavaleiro
ladrão. Com um brado de alegria, viu este o caminho livre diante de si,
cravou as esporas no animal e foi dizendo palavras de ironia para a moça,
já agora inconsciente, que levava atravessada diante de si.
De repente sentiu que alguém lhe saltava à garupa. Antes que pudesse
pensar no que poderia fazer, luzia ante seus olhos uma longa faca. Sentiu
um golpe no peito e uma dor aguda, que queimava como fogo; depois,
tudo escureceu aos seus olhos. Rolou na sela, as rédeas lhe foram tomadas
das mãos, e Jack, filho de Wilkin, afastando o cavaleiro morto de sua
frente, fez parar o cavalo, que estava muito assustado, aquietou-o e depôs
no chão, com todo o cuidado, o corpo inanimado de sua senhora.
Já então Alan de Dale se havia livrado de seu adversário por um golpe
rápido, e correra para junto de sua dama, a quem Jack, filho de Wilkin,
trouxera um pouco d’água. Ela reanimou-se e sentou-se, então sabendo
quem a resgatara, estendeu a mão a Jack, que se ajoelhou, reverente, para
beijá-la.
— Jack — disse ela, com um sorriso suave, ainda que fraco —, por este
grande serviço que me prestaste, serás um homem livre, e meu pai te dará
terra livre.
Jack, radiante de alegria, tinha, contudo, a língua tolhida, e não pôde
dizer mais que estas palavras:
— Obrigado, minha senhora!
Já então também Netta, ainda meio atordoada, vinha atender a sua
senhora. Robin Hood, entrando na igreja em busca de sir Walter,
encontrou ali os corpos de dois de seus homens, mortos no rude embate
com os soldados; destes, de dez que eram, apenas um logrou escapar com
vida, por ter fugido pela porta lateral.
Depois que pai e filha se abraçaram, Robin disse:
— Sir Walter, foi um noivado vermelho este, e não foi sem propósito
que me meti nos teus negócios.
Sir Walter, altivo e reto em tudo, sabia diferençar um chefe de um
sujeito insignificante, e honrava a coragem, quer a encontrasse em um
conde ou em um vilão, em servo ou homem livre, e respondeu-lhe:
— E eu não sou desagradecido — sir proscrito. Agradeço-te de todo o
coração, por teres livrado minha filha daquele casamento infeliz e
desigual. Espero agora o resultado, porque os cavaleiros que mataste têm
auxiliares poderosos, e não duvido que a vingança deles venha a cair, e
muito pesada, sobre todos nós.
— Falas dos senhores de Belame e Wrangby? — perguntou Robin, de
cenho carregado.
— São eles os governadores desta região nestes tempos infelizes —
replicou o cavaleiro. — Enquanto os próprios filhos do rei mergulham o
país na guerra civil e na desgraça, os homens fracos têm de se submeter à
brutal tirania dos vizinhos mais fortes.
— Ranulfo de Greasby e Heitor, o Leporino, são dois a menos —
replicou Robin. — Nota bem isto, sir Walter, os senhores de Wrangby já
encheram a taça de sofrimento além do que se pode suportar. Assim como
espero ser salvo, pela promessa da Santa Virgem, juro aqui e nesta hora
que dentro de pouco tempo rolarão no pó, como aqueles outros cavaleiros
ladrões; e quando eu os deitar abaixo, arrasarei seu ninho, de modo que
não ficará pedra sobre pedra daquele maldito covil.
Sir Walter olhou para os olhos escuros de Robin e lembrou-se dos atos
de justiça selvagem que tinham dado fama ao bandoleiro pelas terras da
floresta, de Pontefract a Nottingham, e das terras desoladas do Peak até os
brejos de Lincolnshire.
— Eu te ajudarei no que puder, sir bandoleiro, e, quando chegar a hora,
podes chamar-me que irei em teu auxílio. Mas enquanto isso, que devemos
fazer?
— Isto, sir Walter: Tua filha e o homem a quem ela ama irão viver
comigo no bosque, e, quando os anúncios de casamento tiverem sido lidos
três vezes em uma igreja, casarão. Se temes o assalto do barão ladrão de
Belame, podes deixar tua casa e ir viver conosco também; mas, se preferes
ficar debaixo do teu teto, ficarão contigo vinte de meus homens, para te
guardar e vigiar contigo. Concordas?
— Prefiro ficar em minha casa, bom Robin, se teus bravos camaradas me
ajudarem a repelir algum ataque. E quando voltarem os tempos de paz a
esta infeliz Inglaterra, espero que minha filha e o bravo Alan, seu marido,
hão de morar comigo também.
Ficou tudo assim assentado. Dentro daquelas três semanas mais
próximas, o padre Tuck, em uma igreja perto de sua morada, publicou os
anúncios de casamento de Alan e Alice, e foi o valente monge quem os
casou, tornando-os felizes para sempre.
No mesmo dia em que Robin salvou Alice de casar com o perverso sir
Ranulfo, o cruel senhor feudal, sir Isenbart de Belame, sentado em sua alta
poltrona no castelo de Wrangby — muito justamente chamado Castelo da
Malvadez — esperava a ceia. Sentavam-se em roda da mesa outros
homens, tão malvados como ele — sir Niger le Grym, Hamo de Mortain,
sir Balduino, o Matador, sir Rogério de Doncaster, e muitos outros.
— Que o diabo o leve! — gritou afinal De Belame. — Não o esperarei
mais. Então está Ranulfo tão ciumento de sua linda noiva que receia trazê-
la aqui, para lhe apresentarmos nossos cumprimentos?
Os outros riam, fazendo gestos de escárnio.
— E onde estão Heitor, Felipe e Beltrão? — perguntou sir Niger. — Eles
deviam ir com o noivo para dar coragem ao acanhado sujeito, na hora
difícil.
— Olá! rapazes! — trovejou Belame. — Sirvam o jantar! E quando vier
Ranulfo, nós havemos de fazer tamanha caçoada dele e de sua noiva, que
ele vai ficar…
“Zzzzz!…” Alguma coisa zunia pelo ar, acima de suas cabeças, e — Sst!
Ali, cravada na mesa, em frente de sir Isenbart, estava uma seta negra, com
um pedaço de pergaminho amarrado. Foi só por um momento que Belame
perdeu a presença de espírito. Olhou para o teto do alto salão e gritou:
— Olá, rapazes! Deem busca no castelo e descubram quem atirou isto!
Levantou-se e saiu a correr, enquanto os soldados, que ficavam na parte
inferior da mesa, se espalhavam pelo castelo.
Niger le Grym arrancou a flecha de madeira e olhou para o pergaminho,
no qual havia nomes escritos em tinta vermelha e negra. Mas, não sendo
instruído, não podia ler aquilo. Voltou Belame, roxo de raiva, praguejando
contra seus criados pelo insucesso da busca.
— Que quer dizer isto? — disse Mortain. — Há nomes neste papel?
De Belame tinha sido monge na primeira mocidade, e sabia ler. Olhou
para o pedaço de pergaminho e seu rosto ficou ainda mais sombrio e
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furioso.
— Olhem — disse ele —, há poderes estranhos contra nós! Ranulfo,
Heitor e os outros foram mortos hoje. Estão escritos com sangue neste
pergaminho os nomes de todos os que antigamente formavam nosso
grupo, e agora estão mortos. Assim, aqui estão Rogério de Longchamp, e
Ivo, o Rapinante, e agora aparecem também os de Ranulfo de Greasby,
Heitor de Malstane, Filipe de Scrooby e Beltrão, le Noir… todos escritos
com sangue!
— Isto é mais do que estranho! — disse um.
Os outros olhavam-se, pálidos, enquanto um ou dois se persignavam.
— Também os nossos nomes — continuou Belame —, os nomes dos
que ainda estão vivos, estão escritos com tinta preta, mas debaixo de cada
um há um traço vermelho!
Riu, um riso rouco, e seus olhos inflamados fixavam, indignados, os
rostos dos outros. Ergueu a seta — uma seta curta, forte e guarnecida de
um tufo de penas negras.
— Isto é uma peça daquele patife descarado, Robin Hood — disse ele.
— Pensa que nos assusta, o tolo fanfarrão. Mas ele faz justiça, quando
invoca isto ao falar de mim — lord de Wrangby, neto de Rogério de
Belame, cujo nome fazia tremer os donos de quarenta castelos, enquanto
viveu… Tenho sido muito indulgente com aquele belo bandido! Eu vou te
cortar as garras! Vou te cortar as garras! Rapazes, vamos deitar nossas
armadilhas, e quando o tivermos lá embaixo, no tronco, havemos de lhe
domar a audácia!
Mas a despeito da ferocidade que mostrava, e do seu riso violento, a ceia
decorreu em triste silêncio.
No dia seguinte, começaram a correr estranhas histórias pela região. A
notícia do combate na igreja espalhou-se rapidamente. Diziam que quando
Robin e o padre foram retirar os mortos da igreja, não se achou o corpo de
sir Ranulfo. É que o próprio Tinhoso o levara; e devia ter sido um demônio
que o chamou, causando-lhe tamanho susto — o mesmo demônio cuja
seta lhe levara à morte.
E um camponês que voltara tarde naquela noite, vindo apressado de
uma aldeia próxima a Hagthorn Waste, disse que vira, ao lusco-fusco,
quando atravessava o brejo, um homem que estavam enterrando — mas o
enterro era feito por coisas que não tinham corpo, mas somente pernas —
demônios do brejo, sem dúvida, que levavam para casa o corpo do seu
malvado senhor.
Mas a coisa mais estranha foi o que aconteceu naquela mesma noite, já
muito tarde. A lua cheia iluminava tudo, os soldados do Castelo de
Hagthorn vigiavam, esperando a volta de seu amo com a noiva, e ouviram
de repente, vindo do pantanal distante, gritos de alegria diabólica; olhando
com atenção, julgaram ver uma luzinha dançando para um lado e outro, e
pequenas formas negras que amontoavam lenha para uma grande fogueira.
Então, com medo — sem saber de que — persignaram-se, mas diziam que
alguma coisa, alguma coisa cruel e perversa andava vagando lá fora, pelas
lagoas cheias de caniços e entre as pedras que as cercavam. Ficaram de
vigia a noite inteira, mas, antes da alvorada, estranha sonolência os
dominou, e não puderam resistir, e todo o castelo caiu em pesado sono.
Tornaram a acordar, sentindo chamas vorazes por sobre o rosto, e os
olhos cegos de fumaça negra. Saíram a correr, procurando escapar, mas
todas as portas estavam fechadas, todas as saídas barradas pelas chamas,
ou por portas fechadas com trancas de ferro. Então aqueles homens, que
nunca tinham mostrado piedade, gritaram por mercê, as mãos estendidas
entre as chamas — mas não encontraram nenhuma piedade nelas. Os que
tinham torturado os pobres e os fracos eram torturados e atormentados
por sua vez, e todas as suas súplicas foram em vão.
Quando rompeu o dia, a luz indecisa brilhou palidamente sobre uma
ruína vermelha e resplandecente. Homens e mulheres das aldeias vizinhas
vinham ver e ficavam maravilhados. Magros e pobres, faces famintas,
olhavam para aquilo e mal podiam acreditar que afinal aquela coisa ruim
tinha sido por sua vez arruinada — que o poder cruel que os oprimira, e
aos seus, por tanto tempo fora afastado de seus ombros, que não mais
aquele poder havia de lhes tolher os membros, enfraquecer-lhes o corpo,
sufocar-lhes a alma.
De perto e de longe, quando os homens ouviam contar a história do fim
estranho de sir Ranulfo, morto por uma mão invisível, e do seu castelo
derrocado pelo fogo, aceso por um poder misterioso, alegravam-se os
corações, e diziam todos que ainda havia justiça.
Quando sir Isenbart de Belame e seu bando cruel ouviram isso, nada
disseram abertamente, mas enfureceram-se e sentiram medo no coração.
Faziam com a maior atenção a vigilância noturna do castelo, e quando
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saíam, espiavam sempre para os lados; e a maior parte evitava as estradas
da floresta. E quando o rei Henrique morreu, e seu filho, Ricardo Coração
de Leão foi ungido rei, e seguiu para a sua cruzada, alguns deles foram com
ele para o Oriente. Mas Belame ficou para trás; esperando a sua vez.
Enquanto isso, não havia homem mais feliz, mais alegre, em toda a
Inglaterra, do que Jack, filho de Wilkin. Pois não era agora um homem
livre e não ceifava sua terra livre? Jack assobiava e cantava o dia inteiro,
enquanto trabalhava, com um coração cheio de gratidão, não só pela sua
boa sorte, como também porque trouxera a felicidade à sua linda senhora,
ajudando-a a casar com o homem a quem amava.
vi
Robin Hood auxilia sir Herbrando
v
ROBIN HOOD e seus homens, sentados em sua morada de Barnisdale,
esperavam o jantar. Na clareira onde estavam ouvia-se o som agradável do
crepitar do fogo debaixo dos caldeirões e da fervura dos guisados nas
panelas; e o cheiro de caça cozida e de pastéis tostados, quando os
cozinheiros abriam a porta dos fornos de barro, abria ainda mais o apetite
dos homens.
Mas Robin não dava o sinal para o jantar, porque não tinham tido
nenhuma aventura naquele dia. Os homens que tinham ficado à espreita
na estrada, esperando viajantes, disseram que ninguém se movia agora, e
Robin não sentia nenhum desejo de jantar, enquanto não tivesse algum
estranho para se banquetear com ele.
— João — disse afinal ao seu imediato, que, deitado na relva junto dele,
aparava uma flecha. — Vai, rapaz, com Will e Much, o filho do moleiro, até
Sayles, perto de Ermin Street. Daquele lugar, que é alto, vocês podem
talvez avistar algum viajante. Se assim for, tragam-mo, seja conde ou
barão, abade ou cavaleiro, ou o juiz do rei em pessoa.
João Pequeno levantou-se alegremente e, tomando o arco e as flechas,
chamou Will Stuteley e Much, e lá se foram os três pelos caminhos da
floresta, até chegarem ao sítio onde a terra era mais elevada. Ali, saindo da
floresta, viam-se duas casinhas de pedra, reduzidas agora a taperas. Há dez
anos tinham sido construídas por homens livres, que lavravam seu
pedacinho de terra, alimentando seus porcos na floresta. Mas o malvado
senhor de Wrangby passara por ali e exigira de Woolgar e Thurstan, os
moradores livres, que declarassem que arrendavam aquela terra do senhor
de Wrangby. Os granjeiros eram de sangue dinamarquês, portanto não
podiam suportar semelhante tirania, e desafiaram o perverso sir Isenbart.
O resultado foi que foram expulsos de sua morada, viram sua colheita toda
destruída e as casas a arder. Woolgar, que quis defender o seu lar, foi
morto na luta, e sua mulher e filhos escravizados. Thurstan fugira para o
bosque com seus dois rapazes, jurando, segundo se dizia, que algum dia
havia de voltar e ajudar a incendiar e deitar abaixo o Castelo da Malvadez,
e a matar seus donos.
— Lembras-te de Woolgar e de Thurstan? — disse João Pequeno,
quando passaram pelas taperas, cujas janelas estavam cobertas de ervaçal.
— Sim, sim — disseram os outros. — São dois pobres homens
arruinados, por quem havemos de dar um grande golpe qualquer dia.
Atravessando por caminhos cheios de vegetação, os três homens
chegaram afinal à estrada real; palmilhavam então as vias construídas
pelos romanos, oitocentos anos atrás.
Chegaram à encruzilhada, onde se cruzavam cinco caminhos. Ali o
terreno se elevava e havia um largo espaço onde os caminhos da floresta se
uniam. De todos os lados havia declives, e dali a vista alcançava longe, por
cima das copas ondulantes da grande mata, que se estendia por todos os
lados. Olharam para o leste, olharam para o oeste, mas não avistaram
ninguém. Dirigiram então os olhares para o norte, para a profunda
depressão de Barnisdale, e perceberam um cavaleiro que vinha andando
vagarosamente, por uma trilha estreita que se via entre as árvores da
esquerda: era o caminho de Pontefract, cidade que ficava a sete milhas
dali.
Era um cavaleiro de cota de malha, de lança na mão, e estava de cabeça
baixa, como quem reflete profundamente. Quando chegou mais perto,
viram que tinha o rosto grave, quase triste, e tão distraído vinha que trazia
apenas um pé calçado no estribo — o outro estava livre, e o estribo batia
nele a cada passo do animal.
João Pequeno adiantou-se para cumprimentar o cavaleiro, dobrou o
joelho diante dele e disse:
— Bem-vindo sejas, sir cavaleiro, a esta floresta. Porque há três horas
que meu chefe te espera, e não quebrará o jejum enquanto não chegares.
— Teu senhor me espera? — perguntou o cavaleiro, olhando, surpreso,
para o bandoleiro ajoelhado. — Quem é teu senhor, bom mateiro?
— É Robin Hood, e ele te convida para jantar hoje em sua companhia.
— Já tenho ouvido falar nele; dizem que é um bom camarada, e homem
bravo e justo. De boa vontade jantarei com ele, embora minha ideia seja
chegar antes de jantar a Blythe ou Doncaster. Mas por que dizes que teu
amo está à minha espera, uma vez que eu não o conheço?
— Pois nosso amo não jantará hoje enquanto não tiver algum viajante
para lhe fazer companhia. É um hábito que meu amo tem há muito tempo.
— Receio muito — retrucou o cavaleiro — que não leve lá grande
alegria ao teu bom chefe.
Dentro em pouco achavam-se, o cavaleiro e os três bandoleiros, diante
da abóbada de ramos onde Robin estava sentado. O bandoleiro levantou-
se e olhou atentamente para o rosto do cavaleiro, depois disse:
— Bem-vindo sejas, sir cavaleiro. Desejava que jantasses comigo hoje.
— Agradeço-te, bom Robin. Deus guarde a ti e a teus homens!
— Trouxeram então bacias com água e uma toalha, e, depois que Robin
e o cavaleiro lavaram as mãos, foram jantar. Havia pão e vinho, empadas de
caça, peixe, pato assado e perdizes, além de couves estufadas; e o cavaleiro
parecia saborear o rico repasto. Não indagou Robin quem era ele, porque
não era seu costume perguntar semelhante coisa a seus visitantes antes
que tivessem terminado a refeição. Quando, afinal, estavam os estômagos
satisfeitos, e já tinham de novo lavado as mãos, Robin disse, rindo:
— Espero, sir cavaleiro, que tenhas gostado do meu jantar.
— E muito, bom Robin; há três semanas que não jantava tão bem.
— Pois bem; agora hás de concordar que jamais se ouviu dizer que um
burguês pagasse por um cavaleiro. Por isso peço-te o pedágio, antes que
continues a tua viagem pelos matos.
— Meu bom Robin — respondeu o cavaleiro, com um sorriso
melancólico — nada trago na minha bolsa que seja digno de te oferecer.
— Ora vamos, és um cavaleiro, e possuis propriedades de cavaleiro.
Dize-me agora a verdade: Quanto tens lá na tua mala de garupa?
— Nada mais que dez xelins — disse o cavaleiro, com um fundo suspiro.
— Olá! João Pequeno! — gritou Robin. Vai aonde está o cavalo deste
cavaleiro, revista a sua mala de garupa e vê o que ele lá tem.
João Pequeno saiu imediatamente, para obedecer à ordem.
Voltando-se então para o cavaleiro, o bandoleiro continuou:
— Se falaste verdade, não tocarei em um vintém; e, se precisares de
mais dinheiro, eu emprestarei.
Voltou João Pequeno, apresentando na palma da mão, larga e trigueira,
uma moeda de prata:
— Chefe, achei apenas esta meia libra.
— Enche a tua caneca até as bordas — disse Robin ao cavaleiro —, és
um homem de verdade.
E ambos beberam, em mútua saudação.
— Admira-me — disse o bandoleiro — de te ver com uma roupa tão
leve. Nunca vi cavaleiro tão pobremente vestido. Conta-me a verdade, que
nada direi a homem algum. És cavaleiro de nascimento, ou foste armado
por força de algum ato heroico, sem teres meios de manter-te com
dignidade? Ou desperdiçaste tua riqueza em contendas ou
prodigalidades? Como chegaste a tão triste estado?
— Não; minha pobreza e decadência não provêm de nenhuma dessas
causas — respondeu gravemente o cavaleiro. — Há cem invernos que
meus antepassados viviam em sua própria casa nas suas terras,
conservando sempre bem alto a dignidade do nosso nome. Mas sucede
muitas vezes, como bem sabes, Robin, que um homem cai no infortúnio
sem ter culpa disso, e somente Deus, no seu alto trono, pode mudar a sua
situação. Há dois anos, como sabem todos os meus amigos e vizinhos, eu
tinha quatrocentas libras à minha disposição e poderia gastá-las como
bem entendesse, mas hoje nada mais possuo em todo o mundo, a não ser
minha esposa e as terras, de que serei em breve despojado.
— E como foi que caíste em tão espantosa necessidade?
— Por causa de meu filho, que matou um homem. Foi em combate leal,
mas os parentes do morto me caíram em cima e resolveram arruinar-me
por causa do ato de meu filho. Paguei-lhes por isso muito dinheiro, mas
pediram-me mais ainda e tive de hipotecar minhas terras ao abade de
Santa Maria. E estou intimamente convencido de que meus inimigos farão
tudo quanto puderem para ficar com as minhas propriedades, e desejam
ver-me pedindo pão pela estrada, pois estão furiosos comigo. E têm
ameaçado tanto meus vizinhos todos, que nenhum deles seria capaz de me
emprestar o dinheiro que preciso para pagar o abade.
— Por minha fé! exclamou Robin, batendo no joelho com o punho
fechado. — Quando deixaremos de ouvir contar os maus atos e patifarias
do gordo abade de Santa Maria? Mas dize-me: Quanto lhe deves?
— Quatrocentas libras — replicou tristemente o cavaleiro. — Já paguei
quatrocentas a meus inimigos, e eles exigiram ainda outro tanto; e, como
não tinha a quantia, vi-me obrigado a pedir emprestado ao abade. E como
não poderei pagar essa dívida amanhã, vou perder tudo o que possuo.
— Mas, se ficares sem as terras, que pensas fazer?
— Tenho de me preparar para ir para a Cruzada; mas antes irei ter com
o abade, para lhe dizer que não tenho o dinheiro.
E levantou-se, como se já nada mais tivesse a dizer.
— Mas, sir cavaleiro — insistiu Robin —, não tens amigos que te
auxiliem?
— Amigos! — disse o cavaleiro com amargura. — Enquanto eu era rico,
os amigos alardeavam sua amizade, mas logo que souberam que eu estava
necessitado, e quão poderosos eram meus inimigos, começaram a se
afastar, no temor de que eu lhes pedisse auxílio.
Os olhos de João Pequeno e de Will, o besteiro, refletiram a pena que
sentiam; e Much, o filho do moleiro, voltou o rosto, para ocultar uma
lágrima. O cavaleiro parecia tão nobre, e estava tão acabrunhado, que o
rapazinho sentia desejo de fazer alguma coisa por ele.
— Não partas ainda — disse o bandoleiro ao hóspede, que ia afivelar a
espada à cinta —, enche mais uma vez tua caneca. E agora dize-me, sir
cavaleiro, se alguém te emprestar o dinheiro para salvares tua propriedade,
tens alguém que afiance o reembolso?
— Não. Por minha fé! Não tenho amigo algum — disse o cavaleiro com
muita reverência —, eu não tenho nenhum amigo, a não ser Aquele que
me criou.
— Não, deixa de caçoadas: pergunto se não tens um amigo teu mesmo
— não falo dos santos, que são amigos de todos nós, mas que não podem
pagar as nossas dívidas.
— Bom bandoleiro, digo-te a verdade: não tenho amigo algum que possa
afiançar essa dívida, a não ser Jesus e sua mãe, a Santa Virgem!
— Pela Santa Cruz! — exclamou Robin, dando nova pancada no joelho.
Agora chegas ao ponto. Nem que procurasses na Inglaterra inteira, não
poderias achar garantia maior para mim do que a da Santa Virgem, que
jamais me falhou, desde que pela primeira vez a invoquei.
E voltando-se para João Pequeno:
— Vem cá, João; vai ao meu tesouro e conta quatrocentas libras,
experimentando o tinido de cada moeda, verificando que soe bem e não
tenha marcas nem cortes. A quantia deve ser exata, de modo que o
malvado abade não possa devolver uma única moeda, apanhando assim a
propriedade do nosso amigo.
João Pequeno saiu, acompanhado de Much, filho do moleiro, e de Will
Stuteley. Foram juntos ao lugar secreto onde Robin guardava sua mala de
dinheiro e contaram em voz alta quatrocentas libras de ouro; e,
enrolando-as em um pano que tinha trazido, João Pequeno levou o
dinheiro ao chefe.
— Aqui estão, sir cavaleiro — disse Robin, desatando o pano e
mostrando-lhe o ouro; quatrocentas libras de ouro. — Eu empresto sob a
garantia da Virgem Nossa Senhora, e com a sua bênção me pagarás este
dinheiro dentro de um ano e um dia, a contar de hoje.
Corriam lágrimas pelas magras faces do cavaleiro quando ele recebeu o
dinheiro das mãos de Robin, dizendo:
— Sir bandoleiro, nunca pensei que houvesse homem algum tão nobre
que me emprestasse dinheiro sob tal garantia! Agradeço-te, bondoso
Robin, e não te causarei a perda de um só vintém deste dinheiro: daqui a
um ano e um dia hei de trazer-te a soma completa. Digo-te que, embora
tivesse ouvido meu filho, que te estima muito, falar de tua nobreza, não
poderia imaginar que suas palavras estavam ainda aquém da verdade.
— Quem é teu filho, e onde me encontrou ele?
— Meu filho é Alan de Dale, a quem prestaste auxílio mais de uma vez, e
que, mais que tudo, te deve o ter casado com a moça a quem amava.
— Mas que agradável encontro! — exclamou o bandoleiro, apertando a
mão do cavaleiro. — Alan contou-me que andava preocupado com o que te
sucedia, e, como não tinha meios de te livrar, a ti e as tuas terras, das
garras do monge velhaco, entristecia-se por isso. Mas quando havia eu de
pensar que eras sir Herbrando de Tranmire? Fico muito contente, sir
Herbrando, de poder ajudar-te, porque estimo muito teu filho Alan, e tudo
farei para lhe dar alguma alegria, a ele e a seu pai, a quem tanto ama. Então
és tu mais um dos que os malvados senhores de Wrangby têm oprimido e
prejudicado… Dize-me, queres, quando chegar o tempo oportuno, ajudar-
me a deitar abaixo aquele Castelo da Malvadez e dispersar as víboras
daquele ninho?
— Com a maior alegria — respondeu sir Herbrando, com voz enérgica e
forte. — E não somente por mim próprio o farei, mas também por todas as
tiranias e maldades que eles têm praticado contra a gente pobre, como sei
perfeitamente, das terras que ficam entre o seu castelo, no Peak, até os
pantanais de Lancaster. Terei o maior prazer em te ajudar, e prometo-te
todo o auxílio que estiver em meu poder quando me chamares.
Então Robin escolheu, no seu depósito de roupas suntuosas, um rico
trajo completo de cavaleiro e deu-o a sir Herbrando, em quem a roupa
assentou perfeitamente. Deu-lhe além disso esporas e botas novas, e,
quando o velho ia partir para continuar a jornada, deu-lhe ainda um cavalo
mais forte e melhor do que o dele.
E, à despedida, depois que o cavalheiro lhe agradecera tanta bondade,
com os olhos rasos d’água, disse-lhe o bandoleiro:
— Grande vexame é para um cavaleiro viajar sozinho, sem pajem nem
escudeiro. Vou emprestar-te um dos meus pajenzinhos, que te
acompanhará até a abadia de Santa Maria; ele te esperará ali e me dirá
depois como se passaram as coisas.
E, dirigindo-se ao seu imediato, ordenou-lhe:
— João, monta a cavalo e acompanha sir Herbrando, e serve-lhe em
tudo de escudeiro, e depois traze-me notícias do acolhimento que lhe
farão o abade e seu ardiloso bando.
— Agradeço-te, bom Robin — disse o cavaleiro sorrindo —, por
mandares comigo o teu pajenzinho. E prometo-te, pela Santa Virgem, que
nunca me faltou com a sua proteção, trazer-te dentro de um ano e um dia
o dinheiro que me emprestaste com tamanha nobreza, com presentes que
te pagarão tudo o que me deste.
— Boa viagem, sir Herbrando — disse Robin, apertando-lhe a mão —, e
manda-me meu pajenzinho, quando não precisares mais dele.
E quando João Pequeno saiu, atrás do cavaleiro, muita risada e muitas
caçoadas ouviram ambos a respeito do pajenzinho; e o cavaleiro foi
avisado de que não deveria poupar o chicote, porque, diziam os homens,
aquilo era um menino atrevido e precisava de muita lambada.
Por algum tempo foram andando pelas estradas solitárias da floresta, e
todo o assunto era a respeito de Robin Hood e dos muitíssimos atos de
bondade que praticara. Por fim disse o cavaleiro:
— Apesar de lhe fornecer eu todos os homens de que possa dispor,
receio muito que, quando chegar o dia de tentar ele destruir o ninho fatal
de Wrangby, a tarefa seja superior às suas forças. Isenbart de Belame é um
combatente astucioso e arguto, e receio que o teu chefe não tenha muitos
conhecimentos de guerra, e da maneira de tomar um castelo forte, como é
o de Wrangby.
— Eu não tenho receio algum — disse João Pequeno, a rir. — Meu chefe
é tão astuto como aquele filho de Satanás. Além disso, ele tem o direito
por si, e está debaixo da proteção especial da Virgem Nossa Senhora; e que
poderá recear aquele a quem ela abençoa?
— Isso é verdade — concordou o cavaleiro. — A Bendita Virgem é
companhia forte e eficaz para os soldados. Mas o certo é que as pérfidas
tramas de Belame e dos ladrões de Wrangby são muito vastas, e tamanho
é o medo que têm os homens de incorrer no seu desagrado, que daqui até
Doncaster, a leste, e até os brejos de Lancaster, a oeste, duvido muito que
se possa fazer justiça, desde que o caso lhes chegue aos ouvidos.
— Sim — disse João, com ar triste —, eles têm espalhado o temor da
morte e da tortura entre os que desejam viver em paz; mas — creio-o
tanto como creio na minha salvação — seus perversos dias estão
contados. Não há aldeia em que não exista algum pobre infeliz, mutilado
com os estigmas da tortura que eles lhe infligiram; não há casa senhorial
ou castelo em que não habite algum lorde ou dona, cavaleiro ou dama, a
quem eles não tenham imposto vexames, ou maltratado com suas
façanhas de malfeitores. E estou convencido de que, quando meu senhor
se levantar contra o daninho bando, todos os homens pacíficos, daqui até
Lancaster, se levantarão também, e não deporão as armas enquanto a
malta cruel não for inteiramente varrida.
— Permita a Virgem que assim seja! Mas… quem são aqueles que
seguem aquele homem? Parece que pretendem roubá-lo ou maltratá-lo!
Um pouco adiante deles, ia andando pela estrada um grupo de cinco ou
seis homens. Quando chegaram mais perto, viram que cada um dos cinco
que iam atrás levava uma espada desembainhada, enquanto o que ia
adiante, quase despido, levava uma cruz na frente.
— É algum réu que jurou abandonar o país, por ter cometido algum
crime ou vilania — disse João Pequeno —, e os homens armados são
parentes do que ele prejudicou ou matou, e vão vigiando para que não saia
da estrada real. E… pela Santa Cruz! O homem que leva o crucifixo tem
um olhar bem mau!
Quando alcançaram o grupo, o cavaleiro perguntou cortesmente que
crime cometera o réu. O homem da cruz estava sem cinta, descalço, de
ç
cabeça nua, e trazia apenas vestida a camisa, como se fosse para a forca.
Os olhos eram negros e maus, e atravessava-lhe uma das faces a cicatriz de
um antigo ferimento. Os cinco que o seguiam de espada desembainhada
eram homens bem trajados, da cidade, ou burgueses, como então se
chamavam. Via-se que um deles, tanto pela roupa, como pelo ar
autoritário, era homem de poder e influência, e foi ele quem respondeu:
— Este miserável que vamos acompanhando é um assassino perverso,
chamado Ricardo Malbête. Nosso pai era um velho meio caduco, que,
tendo sempre vivido em paz e sossego na sua loja em Mercers Row, na
nossa cidade de Pontefract, gostava de ouvir histórias de viagens e de
conversar com homens que tinham combatido e praticado feitos
guerreiros. Caiu nas mãos deste patife, que lhe contou muitas histórias de
suas grandes aventuras. Nosso pai, João le Marchant, alojou este velhaco
em casa, muito contra a vontade de todos nós, seus filhos. Este Malbête,
ou Má besta, que é o seu verdadeiro nome, matou nosso pai, de modo
muito sutil e perverso, e depois fugiu, levando muito ouro consigo. Nós
fomos atrás dele, que foi asilar-se na igreja de São Miguel; depois ele jurou
perante o oficial de justiça que deixaria o reino e iria para o porto de
Grimsby, embarcando ali. E nós o vamos seguindo, para que não escape.
Via-se, pelos olhares que os cinco irmãos deitavam ao assassino, que
quase desejariam uma tentativa de escapula, porque então se justificaria
— se ele desse apenas um passo fora da estrada real — que o matassem
imediatamente. Nada poderia impedi-los, de fato, de o fazer, pois que o
homem estava desarmado, sem ninguém para protegê-lo, mas como eram
cidadãos obedientes à lei, respeitavam o juramento que prestara o
assassino.
João Pequeno não tinha visto o ladrão quando, disfarçado de mendigo,
se encontrara com Robin, de modo que não o reconheceu. Olhou
atentamente para o rosto embrutecido do homem e notou os olhares
cruéis e velhacos que Malbête lançava para os cinco irmãos.
— Eu os aconselharia a vigiar de perto este patife — disse ele aos filhos
de João le Marchant. — Aquela cara malvada oculta certamente um
cérebro cheio de velhacaria. Tomem cuidado, senão ele lhes escapará por
alguma trapaça, neste mesmo momento.
O irmão mais velho, o que já tinha falado, não era homem acostumado a
pedir conselho, portanto não lhe agradava recebê-lo de um homem que
afinal não passava de um mateiro. Disse, pois, secamente:
— Não preciso de conselho para saber o que hei de fazer com um patife.
E antes que este sujeito nos possa cegar, já estará morto.
João Pequeno riu, e nada mais retrucou. Quando já iam longe, o
cavaleiro disse-lhe:
— Eu já vi aquele assassino ladrão uma vez. Foi preso em Cisors, por ter
roubado na própria casa onde dormia o rei Henrique. O preboste
condenou-o imediatamente à forca, mas ouvi dizer que escapara das mãos
dos soldados e conseguira fugir. É homem de vida muito manchada e vive
maquinando artimanhas e velhacarias.
— Vi isso naquela cara astuta, e não duvido que um ou mais daqueles
mercadores que o acompanham pague com a vida outra escapada dele.
Dali até chegarem à cidade de York, ao escurecer, nada mais sucedeu aos
viajantes. Foram dos últimos a entrar na cidade, quando a guarda já ia
fechar os enormes portões. Foram para uma estalagem decente que o
cavaleiro conhecia, e lá cearam e dormiram aquela noite.
De manhã reuniram-se os oficiais da abadia de Santa Maria na sala do
capítulo. Estavam ali o abade Roberto, de lábios de curva altiva, grande
papada e rosto vermelho e cruel, e o prior, seu imediato em autoridade,
sentado a seu lado. Era este um homem humilde e bom, que conseguia
tanto com sua bondade, quanto o abade com seu sistema de dureza e
tirania.
Diante deles, sobre a mesa, estendiam-se vários pergaminhos, porque
era o dia dos rendeiros virem pagar os arrendamentos ou impostos; outros
vinham atender a algum chamado do abade, ou dar conta de alguma
incumbência deste. À mesa estavam dois monges que serviam de
escreventes. À direita do abade sentava-se um dos juízes do reino, que
viajava então por aquela região, julgando casos em nome do rei. Achavam-
se ali sentados ainda um ou dois cavaleiros, ao pé do xerife de York.
Muitos entravam e pagavam seu arrendamento, ou em dinheiro, ou em
mercadorias; outros queixavam-se da maneira por que os mordomos do
abade os vexavam; e era coisa de admirar, o grande número de feudos
mantidos pelo abade, que tinham mordomos ásperos a governá-los em
nome dele. A estas queixas dava ele pouca atenção, ainda que o bom prior
procurasse indagar a respeito das maiores queixas que os pobres vilões, ou
homens livres, apresentavam.
— São todos uma súcia de velhacos, sempre resmungando — disse o
abade afinal, muito zangado. — Poupa teu fôlego, prior, para dizer tuas
orações; porque eu prefiro deixar meus mordomos fazerem o que acham
necessário a meter-me em negócios de que pouco entendo.
— Contudo, quando há tamanhas queixas contra os mordomos da
abadia, parece-me que, por honra dela mesma, e pela graça da Santa
Virgem, patrona da nossa casa, devia fazer-se um inquérito minucioso, e se
nossos servidores procederam sem misericórdia, devem ser punidos.
— Se as coisas estivessem nas tuas mãos, prior — disse o abade
zombeteiramente —, todos nós ficaríamos nus, para dar aos vilões
velhacos tudo quanto reclamassem. Está feito e não precisas continuar. Eu
sou abade e, enquanto for chefe desta casa, farei o que me parecer melhor.
Justamente nesse momento entrou na casa do capítulo um homem alto
e de ar feroz. Estava de meia armadura, e trazia no corpo uma couraça; do
cinto pendia uma espada. Sobre os cabelos negros e revoltos trazia um
chapéu de veludo, que tirou ao entrar. Atrás vinha o escudeiro, trazendo o
elmo e uma pesada clava.
Levantou-se o abade ao vê-lo, e disse, rindo:
— Olá, sir Niger! Então vieste mesmo, conforme prometeste! Pensas
que o cavaleiro de Werrisdale irá faltar à palavra, neste último dia de
mercê?
— Penso que hoje havemos de vê-lo pedir-nos o pão — replicou sir
Niger le Grym, com uma risada cruel. — Havemos de fazê-lo pagar caro o
asilo que deu ao patife do filho, Alan de Dale; e se não pudermos pegar
aquele escudeiro indigno em pessoa, faremos o pai padecer em lugar dele!
— Ouvi dizer que o filho se juntou àquele vil ladrão e assassino, Robin
Hood — disse o juiz. — Xerife, é preciso que tomes medidas enérgicas,
para arrasar aquele bando de víboras, que infestam Barnisdale. Ele não só
matou, segundo ouvi dizer, sir Ranulfo de Waste, e ainda por cima
incendiou o castelo.
— Longe de mim, sir juiz — disse o prior arrojadamente —, tomar
partido de tão grande ladrão! Mas o que ele tem feito tem também sido
feito por barões e lordes de nosso condado neste ano inteiro, e nenhum
deles jamais recebeu castigo algum de ti ou de qualquer outro juiz do rei.
Sir Niger deitou ao prior um olhar feroz e resmungou alguma coisa entre
dentes. O juiz, sem achar que dizer, também olhou indignado para o que
falara — porque sabia que era verdade que, quando cavaleiros poderosos
como Belame e sir Niger praticavam maldades, sua riqueza e influência os
escudavam, evitando que fossem castigados.
Mas o abade apressou-se a dizer:
— Uma coisa sei: é que se sir Herbrando de Werrisdale não vier trazer
quatrocentas libras antes que finde este dia de hoje, perderá suas terras e
será totalmente deserdado.
— Ainda é muito cedo — retrucou o prior — para acabar este dia. Seria
grande lástima que ele perdesse sua propriedade. Seu filho matou o
cavaleiro, sir Ivo, em combate leal, e tu fazes muito mal em oprimir assim
sir Herbrando. Ele é apenas um homem pobre, que não tem amigos
poderosos para ajudá-lo.
— E tu estás sempre contra mim, homem rixento! — gritou o abade,
cujo rosto duro ficou rubro de cólera. — Nunca digo coisa alguma que não
me contradigas!
— Só desejo que se faça justiça a grandes e pequenos, cavaleiros ou
vilões — respondeu o prior altivamente.
Entrou nesse instante o primeiro dispenseiro, oficial encarregado das
provisões que deviam ser supridas ao abade. Era tão corpulento e tão
corado que dava a impressão de entrar, mais do que lhe convinha à saúde,
nas bebidas e gêneros confiados à sua guarda.
— Ah! Ah! Ah! — disse ele, rindo; uma risada untuosa e entrecortada,
como de um asmático. — É hoje o dia em que sir Herbrando de Tranmire
vai perder suas terras, se não nos pagar as quatrocentas libras… Eu juraria
que o homem está morto, ou enforcado, e não virá até cá; de modo que a
terra será nossa.
— Concordo contigo — disse o juiz —; acho que o cavaleiro não virá cá
hoje. E como eu te emprestei algumas dessas quatrocentas libras, conto
ganhar mais do que te dei, pois as terras do cavaleiro valem muito mais do
que a quantia por que estão hipotecadas.
— Tens razão — disse o abade. — Todos nós temos parte na terra do
cavaleiro — menos sir Niger, que procura vingar-se sozinho.
— Agora venham jantar — disse o mordomo.
Conduziu-os para o vasto salão, onde todos se sentaram a uma mesa
fartíssima e foram servidos em pratos de prata, por pajens vestidos a
primor. Riam e diziam chalaças, porque estavam seguros de que o
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cavaleiro não podia pagar o que devia, e portanto todos eles teriam o seu
pedaço na partilha de suas terras.
No meio já do festim, entra no salão o cavaleiro em pessoa. Parecia triste
e abatido, e não vinha com as roupas luxuosas que lhe dera Robin, mas
trajava suas velhas vestimentas. Atrás dele entrou João Pequeno, vestido
de escudeiro pobre, com uma jaqueta suja e remendada e calções cheios de
rasgões.
— Deus seja com todos aqui! — disse o cavaleiro, pondo um joelho em
terra.
Olhou o abade para ele e alegrou-se, vendo-o tão pobremente vestido. E
o cavaleiro continuou:
— Vim no dia que marcaste, padre.
— E trouxeste meu dinheiro? — perguntou o abade em voz áspera.
— Nem um vintém — disse o cavaleiro, sacudindo tristemente a cabeça.
O abade riu:
— És um sujeito sem sorte! — disse, escarnecendo dele.
Depois ergueu o frasco de vinho e disse ao juiz:
— Sir juiz, beba comigo, porque creio que todos nós teremos o que
esperamos apanhar.
E depois de enxugar o frasco, voltou-se o abade para o cavaleiro:
— Que vieste fazer então aqui, se não trouxeste meu dinheiro?
— Pedir-te, padre, mais algum tempo — disse o cavaleiro com ar triste.
— Fiz grande esforço para obter o dinheiro, mas, se me deres apenas
quatro meses a mais, poderei arranjar a soma que te devo.
— O prazo acabou, meu homem — disse o juiz com ar escarninho. —
Como não tens o dinheiro, não poderás ficar com as tuas terras.
— Oh! Por caridade — rogou o cavaleiro —, sir juiz, não sejas contra
mim, mas protege-me contra aqueles que querem despojar-me, para me
verem rebentar de fome!
— Eu sou amigo do abade — disse o juiz friamente —, e nada mais
quero ver senão justiça entre vocês dois. Se não tens o dinheiro, terás de
entregar as tuas terras. É a lei, e vigiarei para que ela seja cumprida. Fica
sabendo!
Voltou-se então o cavaleiro para o xerife:
— Bom sir xerife, advoga tu a minha causa junto do abade, para que ele
me conceda mais algum tempo!
— Não — disse o xerife. — Eu não… eu não posso!
Afinal, ainda de joelhos, o cavaleiro virou-se para o abade:
— Peço-te, bom sir abade, que sejas meu amigo e me concedas mercê!
Arrenda a minha propriedade até que eu ganhe a soma que te devo… Serei
homem fiel a ti em todas as coisas e servir-te-ei com retidão!
— Mas, pela Santa Cruz! — disse o abade, já enfurecido. — Estás
perdendo tempo inutilmente com essas súplicas idiotas! Digo-te que
poderás ir arranjar outras terras onde te aprouver, mas a tua agora é
minha, e nunca mais te tornará às mãos!
— Por minha fé! — disse o cavaleiro com um riso amargo. — Assim
provas então aquela amizade que antigamente me testemunhavas?
Deitou-lhe o abade um olhar encolerizado, pois não lhe agradava que lhe
lembrassem semelhante coisa na presença dos inimigos do cavaleiro. E
gritou-lhe:
— Fora daqui, homem traidor e trapalhão! Assinaste um vale para me
pagares hoje, e não tens o dinheiro. Fora! Cavaleiro refalsado! Sai já de
minha casa!
— Mentes, abade! — bradou o cavaleiro, erguendo-se imediatamente.
Nunca fui cavaleiro falso, sempre fui homem de honra! Tenho combatido
em muitas terras, e em justas e torneios já manejei a lança diante do rei
Henrique e dos cavaleiros da Inglaterra e da Alemanha. E sempre, em toda
a parte, obtive louvores, até o momento em que entrei aqui no teu salão,
sir abade!
Comovido com as nobres palavras do cavaleiro, pensou o juiz que o
abade tinha sido muito duro e exigente. Voltou-se, pois, para o abade
Roberto, dizendo:
— Que lhe darás além das quatrocentas libras, para que ele te abandone
todos os direitos sobre a sua propriedade?
Ouvindo isto, sir Niger enfureceu-se, e entre dentes resmungou contra o
juiz. Ao abade, contudo, disse a meia-voz:
— Não dês nada!
— Dar-lhe-ei cem libras — disse o abade.
— Não, ela vale duzentas — retrucou o juiz, com insistência —;
seiscentas libras ao todo.
— Não! Pela Santa Cruz! — gritou o cavaleiro, chegando-se para a
ponta inferior da mesa, e encarando um por um seus inimigos. —
Conheço todas as vossas tramoias contra mim. Vós, monges de vida
indigna, desejais minhas terras, porque estais sempre aflitos para
acrescentar jeira a jeira, e atormentar o corpo e a alma de vossos pobres
servos, tirando deles cada vez mais dinheiro. E tu, sir Niger, querias vingar
a morte de teu parente, que meu bravo filho matou em combate franco e
leal. Mas o principal motivo por que desejas tirar vingança de mim, é
porque não tens coragem de ir atacar Robin Hood, que ajudou meu filho
quando lutou contigo. Queres por isso arruinar-me e fazer-me mal, a mim,
que não posso combater contra o poder maléfico dos senhores de
Wrangby! Mas ouve o que te digo: tem cuidado! não vás longe demais!
Quanto a ti, sir abade — aqui estão as tuas quatrocentas libras!
E, dizendo isto, tirou um saco do peito, desamarrou-lhe a boca e
despejou sobre a mesa as moedas de ouro. E disse motejando:
— Toma o teu ouro, abade, que pode fazer muito bem à tua alma
imortal!
Adiantou-se o prior, com dois monges, e contaram o ouro; e, verificando
que estava completa a soma, deu ele uma quitação ao cavaleiro. Enquanto
isso, o abade se mantinha em silêncio, cheio de confusão e vergonha, e não
pôde mais comer. Nos rostos dos outros também se refletia a amargura
que os minava, vendo como o cavaleiro virara a sorte contra eles. Sir Niger
le Grym, vermelho e enfurecido, mordiscava o lábio inferior, dardejando
olhares odientos ao cavaleiro, que o encarava altivamente.
Afinal, sacudindo o recibo nas faces do abade, disse sir Herbrando:
— Sir abade, cumpri minha palavra e paguei-te tudo. Agora a minha
fazenda não sairá de minhas mãos, quer queiras, quer não!
E saiu, seguido de João Pequeno. Montaram e voltaram à hospedaria,
onde mudaram de roupa e jantaram; depois saíram da cidade, porque o
cavaleiro queria ir depressa para casa e contar à sua cara esposa como se
saíra bem, graças à nobreza e bondade de Robin Hood.
— Sir cavaleiro — disse o pajem, quando iam pela floresta —, não me
agradou aquele olhar perverso do cavaleiro que estava sentado à mesa,
junto do abade. Será bom que tenhas cuidado, guardando-te de algum
assalto ou emboscada, nalgum lugar afastado.
— Não temo sir Niger le Grym, nem outro qualquer cavaleiro, desde que
venha sozinho. Mas os cavaleiros de Wrangby são traiçoeiros, e raras
vezes combatem, a não ser aos dois e aos três. Acho, pois, sábias as tuas
palavras, e tomarei precauções. Agora podes voltar, bom mateiro, porque
não te quero afastar tanto do teu caminho.
— Não, não posso deixar-te nesta floresta. Meu chefe disse que eu era
teu escudeiro, e devo ficar contigo, pois podes precisar de mim antes que
estejas nas tuas terras.
— És um camarada fiel — disse sir Herbrando —, e eu bem desejaria
recompensar-te. Mas, como sabes, estou sem dinheiro e sem joias.
— Não, eu não preciso de recompensa; agradeço-te, sir cavaleiro.
Sempre estive pronto para sair do meu caminho e aventurar um bom
combate, e creio que teremos alguns bons golpes, dentro de poucos
momentos — se é que conheço o olhar assassino na cara de um homem!
João Pequeno estava certo de que sir Niger le Grym meditara alguma
traição contra sir Herbrando, quando o viu depor o dinheiro na mesa, e
não duvidava de que nalgum lugar apropriado o cavaleiro fosse atacado, e
talvez assassinado, em vingança.
Andando, mantinham-se atentos, quando o caminho estreitava, ou
quando atravessavam alguma parte mais densa do mato, mas saíram enfim
da floresta, e já ao fim da tarde alcançaram os brejos desolados, sem
avistar sinal de seus inimigos. Achavam-se, porém, agora, na região inculta,
onde o poder de sir Isenbart, sir Niger e de seus perversos companheiros
era mais forte, e os dois cavaleiros tocaram depressa, esperando chegar à
cidade de Stanmore antes do anoitecer.
Naquele campo solitário encontraram apenas poucas pessoas: um ou
dois pastores, ou um par de camponeses de vez em quando, gente que ia
de volta a casa, depois de algum trabalho ou recado. Avistaram ao longe
um grupo de caçadores, e dali a pouco um bando de mercadores, com seus
pôneis de carga. Afinal começaram a subir uma longa e íngreme encosta;
no topo do morro elevado, a que chamavam Morro da Cozinha Fria, havia
um bosquete de pinheiros, sempre curvados ao sopro do vento que lá
reinava.
Já estavam apenas a alguns metros do alto, e os cavalos cansados subiam
com esforço, quando das moitas ao lado da estrada saiu um zumbido, e
imediatamente uma flecha bateu no escudo que João Pequeno trazia ao
lado do joelho, resvalou e caiu. Ele olhou para o chão e viu uma seta de
haste curta e negra, e logo soube quem lhe dava o aviso. Chamou o
cavaleiro, que ia um pouco adiante, dizendo-lhe:
— Cuidado com as árvores, cavaleiro!
Mas, enquanto falava, saiu do meio dos pinheiros um cavaleiro de cota
de malha, de lança em riste, e lançou-se contra sir Herbrando. Ao mesmo
tempo, do outro lado do estreito caminho, outro cavaleiro, também
montado, atirava-se de clava em punho a João Pequeno. A estrada era em
declive, e os atacantes supunham sem dúvida que a rapidez do ataque os
ajudaria a deitar por terra os dois viajantes. Mas tanto o cavaleiro como
João estavam preparados e à altura do ataque. Sir Herbrando, ouvindo o
zunido da seta, arrancara a espada da bainha e já erguera o escudo, de
sorte que quando o primeiro cavaleiro lhe saiu ao encontro parou o golpe
com o escudo, e quando o adversário, cujo golpe assim inutilizara, o
alcançou, já desarvorado, meteu-lhe a espada no pescoço com tamanha
força, que o outro rolou da sela. O cavalo desceu morro abaixo, em
carreira furiosa, e o cavaleiro, cuja espora ficara presa ao estribo, foi
arrastado pela estrada, aos trancos e barrancos.
Imediatamente, porém, saiu de entre as árvores um terceiro cavaleiro,
que atacou sir Herbrando com tanto empenho que este precisou ter o
maior cuidado naquela estrada íngreme, para que o cavalo não
escorregasse, defendendo-se ao mesmo tempo dos golpes terríveis do
inimigo.
Quanto a João Pequeno, estava se vendo mal. O segundo cavaleiro tinha-
se atirado a ele com tanto ímpeto que o bandoleiro mal teve tempo de
erguer o escudo, e recebera uma parte da pancada da clava no braço, que
ficou amortecido e quase sem forças. Entretanto, ele se defendia com a
espada o melhor que podia; mas, como o estrangeiro montava um cavalo
mais forte e estava protegido pela armadura, João mal se podia manter,
pouco dano fazendo ao adversário. E os golpes da pesada clava caíam
sobre o escudo do camponês, e o estrangeiro atirava seu cavalo com tanta
violência contra o animal de João que este conheceu que seria negócio de
poucos minutos e já estaria vencido naquela estrada em declive.
De repente, porém, o cavaleiro moderou o assalto, e pareceu vacilar; do
capacete saiu-lhe um suspiro cavo, caiu-lhe a clava da mão, e a figura
armada curvou-se na sela. João viu-lhe debaixo do braço a ponta da haste
negra de uma flecha curta, que fora lançada de muito perto, pois se cravara
fundamente na carne. Olhando em volta, viu o bandoleiro ao lado da
estrada uma moita de aveleiras, e entre a folhagem o rosto redondo e
trigueiro de Ket, o gnomo, que espiava; mas a bondade habitual de sua
fisionomia estava agora mascarada por um olhar selvagem, de triunfo.
Caiu o cavaleiro ao chão, com grande fragor, e o cavalo se pôs a sacudir o
corpo do dono. Vendo a queda do companheiro, o terceiro cavaleiro, que
combatia com sir Herbrando, meteu de repente as esporas no cavalo e
fugiu por entre as árvores. E ainda o viram os dois viajantes, descendo a
encosta a todo galope e atravessando o brejo, em direção ao Castelo da
Malvadez. Sir Herbrando, que estava ferido, absteve-se de perseguir o
inimigo.
Mas Ket, esse não pensava do mesmo modo. A passos furtivos saiu
correndo, atravessou a estrada e mergulhou nas moitas de fetos.
— Quem é aquele — indagou sir Herbrando. — Não será um dos
homens daqueles cavaleiros traidores que nos atacaram?
— Não, não; eu é que lhe devo a vida hoje, porque, se a seta dele não
tivesse acabado com a vida deste patife aqui, creio que eu teria sido
derrotado.
— Quem é este cavaleiro? — perguntou sir Herbrando.
E, apeando-se, foi levantar a viseira do morto. Então exclamou:
— Pela Santa Virgem! É o próprio sir Niger!
— É então um a menos naquele malvado bando — disse João —, ou
talvez dois, porque duvido que aquele em quem cravaste a espada ainda
esteja com vida; mas, se estava ainda vivo quando caiu, a esta hora já o seu
cavalo o terá matado.
— Volta agora, João, e, se achares o cavaleiro e seu cavalo, traze-os aqui,
para que eu lhe dê sepultura conveniente. Entretanto, pelas leis de
combate, seu cavalo e arreios me pertencem.
João obedeceu; a cerca de meia milha encontrou o cavalo pastando
sossegadamente e, mais adiante, o corpo do cavaleiro. Quando o animal
parou, a espora soltou-se do estribo. Ergueu o morto, acomodou-o sobre o
cavalo e levou-o para sir Herbrando; então, levando os dois cavalos, cada
um com o corpo do seu dono atravessado no lombo, o cavaleiro e o
escudeiro seguiram seu caminho, chegando dali a uma hora a uma capela à
beira da estrada. Entraram, mas não encontraram ali o ermitão. Tendo
despido a armadura dos dois cavaleiros, sir Herbrando deitou os corpos
cuidadosamente diante do altar; ajoelharam-se ambos os viajantes e
oraram.
Depois prosseguiram a viagem, levando os dois cavalos e as armaduras,
em busca do albergue para a noite. No dia seguinte chegava sir Herbrando
a casa, sendo recebido com grande alegria por sua mulher e por toda a sua
gente. Quando contou de que modo fora auxiliado por Robin Hood, sua
mulher e todas as outras pessoas da casa mostraram muita simpatia a João
Pequeno, e queriam que ele ficasse ali alguns dias. Mas no dia seguinte
declarou o bandoleiro que tinha de voltar. Então dona Judite preparou-lhe
um bom farnel e deu-lhe um anel de ouro; o cavaleiro fez-lhe presente de
um cavalo excelente, dando-lhe em ouro o valor do cavalo e da armadura
de sir Niger, que, disse ele, pertenciam de direito a João Pequeno. Depois
disso o bom bandoleiro despediu-se, e sir Herbrando, apertando-lhe a
mão, disse-lhe:
— João Pequeno, tu e teu chefe têm-se mostrado bons amigos, não só
meus, como de meu filho: que eu seja castigado, se algum dia esquecer tua
boa amizade e auxílio! Dize a teu chefe que daqui a um ano e um dia, se
Deus quiser, irei levar-lhe o dinheiro que me emprestou com tanta
nobreza, fiado somente em Nossa Senhora, e, com o dinheiro, levar-lhe-ei
um presente. Dize-lhe também que se, como julgo possível, se
desencadearem dias maus sobre a nossa querida terra, em razão dos
agravos e ofensas que o duque João está fazendo a seu irmão, o rei Ricardo
Coração de Leão, haverá necessidade de homens bons e valentes como teu
amo. E se ele a qualquer hora desejar o meu auxílio, posso armar cem
bravos camaradas para me acompanharem.
Prometeu João levar fielmente aquele recado; e chegou sem novidade a
Barnisdale.
Na tarde daquele dia em que os cavaleiros tinham caído sobre sir
Herbrando e João Pequeno, o terceiro cavaleiro, gravemente ferido e
muito fraco, dirigiu-se ao portão do castelo de Wrangby, que as gentes
pobres chamavam Castelo da Malvadez, e pediu, em voz enfraquecida, à
guarda do portão que baixasse a ponte sobre o fosso. E entrou no pátio.
Sem desmontar, dirigiu-se para o saguão, onde sir Isenbart e seus
camaradas estavam bebendo vinho.
— Mas é sir Bernardo da Clava! — disseram os cavaleiros, olhando
assombrados para a figura vacilante, que se dobrava para a guarda da alta
sela.
— Onde estão sir Niger e sir Peter? — perguntou sir Isenbart com voz
de trovão, já prevendo a verdade, que temia.
— Mortos! — disse o cavaleiro, cuja face, viam pelo elmo, estava lívida.
— Deem-me vinho… vinho… eu… eu estou exausto.
Deram-lhe uma caneca de vinho, e outros lhe desafivelavam o elmo,
tirando-lhe da cabeça. Viram então quão grave era o ferimento, e que
somente sua grande força o sustentara até ali. Bebeu o vinho e estendeu a
caneca, pedindo mais.
— O cavaleiro matou sir Peter — continuou Bernardo da Clava —, e o
vilão — creio eu — matou sir Niger, porque eu o vi cair do cavalo.
Todos se entreolharam, ferozes, sem nada dizer.
Nesse mesmo instante um soldado da guarda do portão entrou correndo
no saguão, trazendo uma flecha, que depôs na mesa, diante de sir Isenbart,
dizendo:
— Senhor, isto foi atirado por entre as barras da ponte levadiça, e quase
me apanhou a cabeça. Não conseguimos ver quem a atirou.
Sir Isenbart olhou para a seta negra e curta e seu rosto cobriu-se do
vermelhão da raiva. Ao longo da haste havia entalhes, sete entalhes, todos
manchados de vermelho.
— Depressa! — berrou sir Isenbart. — Depressa! O patife que atirou
isto não pode ter ido longe! Saiam em sua procura e tragam-mo aqui!
Houve por algum tempo grande rumor, enquanto alguns grupos de
soldados apanhavam suas armas, e cavaleiros enfiavam a armadura e
montavam, saindo de roldão pela ponte. Havia, diante do portão, uma
grande extensão de terreno aberto, e era na verdade estranho que alguém
pudesse ter-se esgueirado assim, sem ser visto, por entre os homens de
vigia nas seteiras que guarneciam a ponte. Cavaleiros e infantes correram
o campo no raio de meia milha, mas não viram nem ouviram coisa alguma
que indicasse a presença de um arqueiro escondido.
A escuridão obrigou-os a acabar aquela pesquisa, e foram voltando aos
poucos, sozinhos ou aos pares, para narrar o insucesso de sua busca.
Quando o último tinha atravessado a ponte, esta foi levantada, com
grandes guinchos e estalos das correntes enferrujadas roçando nos
moirões; era assim alçada para a noite, e o estrondo sacudiu a torre.
Então, debaixo de uma moita pequena, que ficava na beirada exterior do
fosso, perto do portão, esgueirou-se uma figurinha. Vagarosamente, com
um cuidado extremo, a forma ondulante foi saindo d’água, de maneira tão
prudente que ruído algum chegou aos ouvidos dos homens, na sala da
guarda. Era Ket, o gnomo, que recebera de Robin Hood o encargo de vigiar
o Castelo da Malvadez. O arco e as setas estavam secos, porque os deixara
escondidos no arbusto, acima do lugar onde ele mesmo se ocultara.
Olhou para a massa escura do castelo, que se erguia, alto e largo, do
outro lado do fosso. Das seteiras, semeadas aqui e ali, irradiava a luz dos
fachos ou tochas, e de vez em quando luzia um capacete, quando passavam
os soldados que faziam a ronda. Por algum tempo Ket ficou ali a olhar,
uma flecha ajeitada à corda do arco, já esticada; esperava que um rosto
assomasse a alguma abertura próxima, e então pudesse ainda aproveitar
mais um tiro. Mas passava o tempo e não aparecia ninguém; afrouxou o
arco e foi embora, mal-humorado, murmurando:
— Sete já se foram, mas ainda ficaram muitos. Assim como eles
morreram, morrerão vocês também — sem compaixão, sem piedade!
Foi andando vagarosamente, olhando de vez em quando para trás, para o
vulto escuro, onde apareciam aqui e ali pontinhos luminosos. Caminhou
assim uma milha, até que chegou ao ponto onde começava a floresta.
Seguiu, na escuridão profunda, por entre as imensas árvores e alcançou
uma, gigante entre as gigantes. Furtivamente, como um animal selvagem,
examinava os arredores e escutava, escutava intensamente; assim ficou
por algum tempo, à escuta, e por fim, com incrível velocidade, subiu pelo
tronco acima, servindo-se de pequenos nós e rugosidades da casca como
pontos de apoio, até que desapareceu no maciço de folhas. Subia cada vez
mais alto, em um mundo que nada mais era senão massas escuras de
folhas que murmuravam ao ar da noite, mais puro e mais forte ao passo
que ele ia subindo. Alcançou afinal um ponto onde três grandes ramos
saíam juntos do tronco; no centro havia um espaço coberto de fetos
cheirosos. Ket voltou-se e olhou para longe, para o caminho por onde
viera. Achava-se acima das copas de todas as outras árvores, que lhe
ficavam abaixo, agitando-se e sussurrando como ondas macias e
movediças, ao brando sopro do vento. Olhando dali, da copa do gigantesco
carvalho, onde tinha o seu ninho, podia ver a massa sombria do Castelo da
Malvadez, recortada no céu negro. Algumas luzes ainda brilhavam lá, mas
iam diminuindo a cada momento.
Tirando as roupas úmidas, Ket pendurou-as em um galho para secar;
depois enroscou-se no fundo do grande monte de fetos, e, tirando de um
outro lugar da árvore sua ceia, comeu e bebeu, com voracidade, sem nunca
tirar os olhos do castelo. Quando todas as luzes se extinguiram, ficando
somente as do portão, acomodou-se no seu fofo e perfumado ninho,
adormecendo imediatamente; e o murmúrio do vento, ciciando na
folhagem, era uma cantilena que soava brandamente na breve noite de
verão.
vii
Robin Hood resgata Will Stuteley e
justiça Ricardo Má besta, o mendigo-
espião
v
ERA . Um vento áspero soprava pelos caminhos da floresta,
MADRUGADA

arrancando as poucas folhas que ainda permaneciam nas árvores tardias,


arrojando-as ao chão em grandes redemoinhos, que se amontoavam em
cada canto. A luz da alvorada, na floresta, era opaca e indecisa, e parecia
que nunca penetrava em alguns dos cantos mais profundos, onde os tufos
de azevinho eram mais densos, ou as barbas-de-pau cinzentas, que caíam
dos galhos do carvalho, eram mais longas.
Will Stuteley, andando por uma trilha, olhava com atenção para os
lados, porque nos últimos três dias tinha visto um homem, vestido de
peregrino, escondendo-se e espiando de modo muito pouco próprio de um
peregrino, justamente por aqueles sítios, a que os proscritos chamavam
Bosque Negro. Will vestia um comprido capote muito quente, que quase
lhe chegava aos pés, e tinha um capuz na cabeça.
Já tinham caído as primeiras neves, e a maior parte dos homens do
bando já se recolhera aos seus quartéis de inverno. Naqueles tempos,
enquanto a neve se alastrava no chão, eram poucos os viajantes que se
aventuravam pelas estradas, por isso os bandoleiros iam viver com seus
parentes ou com os pobres guardas de chalés, em lugares afastados da
estrada, seja na floresta ou em aldeolas não muito distantes dela. Por
algum tempo vestiam-se como os camponeses, ajudavam nos pequenos
trabalhos que estes tinham de fazer, e com esse serviço e com os animais
que apanhavam em armadilhas ou caçavam, pagavam o abrigo e o
aquecimento que lhes davam, até que voltasse a primavera.
Robin, com uns dez ou doze dos seus homens mais importantes,
abrigava-se em cavernas secretas que se achavam espalhadas em vários
lugares das vastas florestas, ou, às vezes, um ou outro dos lavradores mais
abastados, como Pedro Feliz, o irmão colaço de Alan de Dale, convidava
Robin e seus doze para passarem o inverno na sua casa. Naquele ano sir
Walter de Beauforest convidou-o para passar o inverno em uma granja, ou
celeiro fortificado, situado na floresta, não muito longe da casa senhorial
de sir Walter, em Cromwell, onde Alan e sua mulher, a bela Alice, viviam
agora, na maior felicidade.
Robin aceitara o convite de sir Walter, mas se o tempo estivesse bom ele
nunca demorava muito no mesmo lugar; e estava agora em uma morada
secreta que ele e seus homens tinham construído em Barrow Down, a
algumas milhas a leste de Mansfield, em uma região despovoada, onde
havia muitas pedras erguidas, velhas construções e montículos, ou
túmulos de antepassados. E era em um deles que viviam agora Robin e
seus homens, pois tinham cavado o interior, tornando-o cômodo e
habitável.
Todas as manhãs, Will Stuteley e alguns outros do bando, depois de
almoçar em Barrow, saíam a caminhar até certa distância, ao redor do seu
esconderijo, para ver se havia algum indício de que seus inimigos tivessem
se aproximado durante as últimas horas. O chão era todo esquadrinhado, a
ver se havia pegadas estranhas; as árvores, os arbustos, examinados, para
verificar se havia galhinhos ou ramos quebrados, e os bandoleiros tinham a
vista tão aguçada como os indígenas, e tamanha era a sua experiência de
aparências e sons, que podiam saber por aqueles exames se algum
estranho tinha andado na vizinhança durante a noite.
De repente Will parou e olhou para o chão. Após um olhar penetrante
para as aveleiras e carvalhos novos mais próximos, ajoelhou-se e examinou
uma pequena depressão ou canal, onde, na primavera, corriam as águas da
chuva. Lá estava, bem nítida, a marca de um pé delgado na terra frouxa.
Olhou mais adiante e achou mais duas pegadas semelhantes. Eram muito
recentes, pois as bordas estavam bem marcadas. Tinha a certeza de que a
pessoa que passara por ali não podia estar muito longe. Mas quem era? As
pegadas eram de um rapaz novo, ou talvez de uma moça. Quem quer que
fosse, era pobre, porque se via bem que a sola do sapato estava muito
estragada.
Foi andando a passos furtivos, procurando o rasto aqui e ali. Já tinha
andado assim uns vinte metros, descobrindo que as pegadas iam dar em
um espinheiro, quando parou e se pôs à escuta. Ouviu um soluçar baixinho
nalguma parte, no mais denso das moitas. Foi indo, com muita cautela, na
direção daquele som, sem fazer ruído algum, e viu a figura de uma jovem,
um pouco mais longe. Apanhava bagas de um arbusto e punha-as em uma
velha bolsa ou cesta de palha.
Ela chorava, enquanto ia apanhando as bagas. Will via as lágrimas que
lhe escorriam pelas faces, apesar do cuidado que ela tinha, soluçando
baixinho, como se receasse ser ouvida. Via-lhe as mãos sangrando,
arranhadas pelos espinhos, e os pés, nus dentro dos sapatos, estavam
azulados de pisar na geada.
Will fez um movimento. Ela voltou-se àquele ruído, branca de terror, de
olhos dilatados. Apertando ao peito a cestinha, deu alguns passos e
lançou-se aos pés dele, dizendo com voz fraca e lamentosa:
— Oh! Mata-me, mata-me, e não vás procurar meu pai! Mata-me, e não
vás adiante! Ele está para morrer e não pode falar!
Tinham-se-lhe estancado as lágrimas, ela juntara as mãos, levantando-
as, suplicante; e o rosto infantil e desmaiado revelava uma tristeza
profunda; dir-se-ia que aquela criança nada mais queria agora senão a
morte. Era judia, o que Will percebeu imediatamente.
O honesto couteiro sorriu para tranquilizar a menina. Ao ver tamanha
tristeza nos olhos e na voz de uma criança, o velho proscrito sentiu um
aperto no coração.
— Eu não quero te fazer mal algum, minha menina — disse ele com a
sua voz cheia de bondade. — Por que havia eu de te fazer mal, quando te
vejo tão maltratada pelo frio? E por que colhias essas bagas? Teu corpo
enfraquecido necessita de melhor alimentação.
Pegou-lhe nas mãos e ergueu-as, e a criança olhou para ele assombrada,
como se não tivesse compreendido as palavras de bondade que ouvira,
quando esperava gritos e ações brutais. Olhou então para o rosto de Will e
pareceu acalmar-se. Então disse, gaguejando:
— Tu não és… tu não és… tu não conheces aquele homem… aquele
homem Malbête!
— Malbête? — replicou Will, de sobrecenho carregado.
Lembrava-se do que lhe contara Robin daquele sujeito, e também tinha
ouvido viajantes e outras pessoas contarem outros crimes e crueldades
praticados por aquele ladrão e assassino.
— Pobre menina! Então aquele bandido é também teu inimigo?
— Sim, senhor: de meu pobre papai! — disse a menina, tremendo. —
Meu pai fugiu do massacre do nosso povo, em York… tu não sabes disso?
— Sim! Eu o sei!
E seu rosto anuviou-se, e seus olhos fuzilaram, à lembrança daquele
medonho caso: muitos judeus inocentes, atacados por cavaleiros malvados
e pela plebe, tinham se entrincheirado no castelo, matando as mulheres e
os filhos e suicidando-se depois, para não caírem nas mãos dos “cristãos”.
— Que te aconteceu, a ti e a teu pai?
— Nós nos escondemos no castelo até que estivesse acabada a matança,
e depois um homem bom nos deu escapula e nós fugimos. Meu pai queria
ir para Nottingham, onde há alguns da nossa raça que nos ajudariam, se
soubessem o que nos aconteceu, mas quase morremos de fome naquelas
florestas, e… ó senhor, se tu és um homem bom, como pareces, salva meu
papai! Ele está aqui perto, e tenho medo… tenho medo… que já seja
muito tarde. Mas… não nos atraiçoes!
— Leva-me onde ele está, pobre menina.
E a bondade com que falava parece que dissipou alguma suspeita que
ainda pairasse no coração da pobre judiazinha.
Levou-o pelo meio de cerrados quase impenetráveis, e assim chegaram a
um paredão; ali, em uma caverna espaçosa, cuja entrada era disfarçada por
tufos de aveleira, ela mostrou-lhe o pai, um velho de cabelos brancos;
vestia uma pobre gabardina rasgada pelos espinheiros, toda suja de lama, e
estava deitado em uma cama de fetos.
A menina tremia, olhando ora para o pai ora para Will, ainda receando
que tivesse entregado o que mais amava no mundo nas mãos de um
inimigo cruel.
O velho acordou quando entraram, abriu os olhos e ela ajoelhou-se logo
ao pé dele, segurando-lhe as mãos e buscando o seu olhar com ansiedade.
— Ah! Minha Rutezinha — disse o velho, olhando-a com ternura
infinita —, receio, minha querida, ainda não poder me levantar. Estou com
os membros entorpecidos, mas isso passa depressa, isso passa. E então
continuaremos a viagem. Chegaremos à cidade em poucas horas, e então,
minha Rutezinha, terás alimento e roupas adequadas. Tens as faces
pálidas, querida, porque tens passado fome e sofrido muito. Mas logo…
Ah! Mas quem está aqui? Quem é este homem? Ó Rute, Rute, fomos
traídos!
Na penumbra da caverna não vira a princípio o proscrito, e o desespero
com que pronunciou as últimas palavras denunciava o terror que lhe
causava o perigo em que via a filhinha.
Will teve a intuição de que era um homem corajoso, que não revelaria à
filha os próprios sofrimentos; mesmo fraco como estava, ainda assim
procurava incutir-lhe coragem.
Apoiando-se sobre um joelho, para examinar o rosto do judeu, disse
Will:
— Nada temas, senhor. Ficarei muito contente, se puder te ajudar e à
tua filha.
— Agradeço-te, mateiro — disse o judeu com voz trêmula. — Não é por
mim que receio, mas por esta minha menininha, minha única ovelhinha.
Ela tem padecido e visto coisas que nenhuma outra criança terá visto ou
padecido; e, se se salvar, eu me darei por satisfeito.
E corriam-lhe lágrimas pela face. Naquele estado de fraqueza e miséria,
sentia que não tinha vida por muito tempo, mas a sua maior angústia era
pensar que, se morresse, a filhinha ficaria sozinha, sem nenhum amigo.
— O que ambos necessitam agora — disse Will, cujo espírito simples
apanhara a situação em um relance — é alimento e aquecimento. Posso
dar-lhes já um pouco de alimento, mas, quanto ao aquecimento, preciso
tomar conselho de meu chefe.
E Will tirou da bolsa algumas fatias de pão e de carne e deu-as à menina,
pedindo-lhe que comesse devagar. Mas ela imediatamente começou a
cortar o pão e a carne em bocadinhos, dando-os ao pai, antes de se servir.
E, posto que ambos estivessem quase sem alimento algum há dois dias,
comeram pouco e lentamente.
Ofereceu-lhes Will seu cantil de couro, e depois de tomarem alguns
goles do bom vinho que continha, brilhavam-lhes os olhos, e tornava-lhes
a cor às faces, o que muito alegrou o bandoleiro.
— Rute, ajuda-me agora a me ajoelhar — disse o velho, depois de
devolver o cantil.
E quando o conseguiu, com o auxílio do proscrito, a menina também se
ajoelhou, e grande foi o acanhamento de Will quando o judeu começou a
orar com grande fervor, dando graças a Deus por lhes ter enviado aquele
que os livrara de morrer de fome. Invocava tantas bênçãos sobre a cabeça
de Will, o besteiro, que o digno mateiro, apesar de ser tão escassa a luz no
interior da caverna, não sabia para onde havia de se voltar. Por fim Rute
pegou na mão do proscrito e beijou-a uma e muitas vezes, enquanto lhe
corriam lágrimas pela face: tinha o coração tão cheio de gratidão, que nem
podia dizer uma palavra.
— Ora pois — disse o bandoleiro rudemente —, basta de
agradecimentos e de lágrimas. Devem se esconder aqui enquanto vou
consultar meu chefe, que me dirá o que devemos fazer.
— E quem é o teu chefe, bravo mateiro?
— É Robin Hood.
— Tenho ouvido dizer que é um bom homem. Apesar de ser um
proscrito, tem mais piedade e justiça no coração, segundo ouço dizer, do
que muitos dos que estão dentro da lei. Vai ter com ele, bom proscrito, e
leva-lhe os cumprimentos de Reuben de Stamford, e dize-lhe que se ele me
ajudar agora, de modo que eu possa ir para junto de meus parentes, em
Nottingham, tanto eu como o meu povo lhe seremos gratos para sempre e
lhe daremos auxílio onde quer que ele o necessite.
O velho judeu falava com dignidade, como se estivesse habituado a
ordenar, e Will respondeu:
— Eu lho direi; mas se ele te auxiliar não há de ser na esperança de tua
gratidão, nem do teu ouro, e sim porque seu coração está sempre pronto a
dar a mão àqueles que estão em aflição.
— Palavras bravas e altivas, sir proscrito. E se teu chefe é tão bondoso
como tu, não nos vai deixar morrer de inanição.
Voltou Will para Barrow Down, e, chegando à enorme trincheira onde
se alojavam os bandoleiros, contou o caso a Robin.
— Andaste retamente, Will. Vai agora, com dois cavalos, e traze o judeu
e sua filha para o chalé de Lynchet; irei interrogá-los acerca daquele
malfeitor, Ricardo Illbeast. Ouvi contar seus atos atrozes em York, e creio
que não há de andar longe de Nottingham.
Executadas as ordens, Reuben e Ruth foram alojados em uma cabana
secreta, na encosta do Monte Wearyall, não longe do lugar onde estavam
os proscritos. Pai e filha estavam muito enfraquecidos, e o velho achava-se
exausto, em virtude dos sofrimentos que passara, mas, graças a uma
alimentação generosa, ao calor de boas roupas e de um grande fogo, em
poucos dias ambos se sentiam mais fortes e mais animados. Sua gratidão a
Robin não tinha limites, ainda que ambos a exprimissem antes no brilho
dos olhos do que mesmo em palavras.
Quando o velho se sentiu mais forte, pediu-lhe Robin que lhe contasse
como tinha chegado àquele estado miserável em que Will Stuteley o
encontrara, e Reuben atendeu-o de boa vontade.
— Sem dúvida já ouviste dizer, bom proscrito, que quando o grande e
bravo rei Ricardo foi coroado em Westminster, no outono, a plebe daquela
grande cidade voltou-se contra os judeus e saqueou suas casas, matando
alguns membros do meu pobre povo. E o vosso rei puniu os cabeças da
populaça que matou e roubou o nosso povo, enforcando alguns e
marcando outros com ferro em brasa. Mas quando, apenas há um mês, ele
deixou o país com seus cavaleiros e um grande exército, para ir à Palestina
em uma Cruzada, sabes que em muitas cidades recomeçaram os motins
contra nós. Muitos cavaleiros e lordes estavam se reunindo para partir
para a Cruzada, e um grande bando de gente baixa reuniu-se a eles. E,
como muitos cavaleiros tinham tomado dinheiro emprestado de meus
parentes, os mais perversos deles incitaram a populaça a incendiar nossos
lares e a nos roubar. Esses atos atrozes foram executados, como deves
saber, em Stamford, Lynn e Lincoln. Eu morava em Lincoln, mas estava
em viagem para York, e assim foi que escapei à pilhagem por algum tempo.
Aconteceu que um dos meus parentes, o rabino Eliezer, que é um de
nossos chefes, tinha emprestado muito dinheiro a um barão chamado
Alberico de Wisgar, um lorde tirano e gastador. Combinou-se com outros,
contra os judeus de York, para saqueá-los e destruir os registros das contas
que deviam aos meus parentes. Pilharam a casa de um rabino, que já
tinham assassinado em Londres, e nós, receando o mesmo fim, fugimos
com nossas mulheres e filhos para o castelo de York. Ali fomos sitiados
por um grande grupo de Cruzados, estudantes e gente do campo, e quem
os chefiava era um homem perverso, da companhia do lorde de Wisgar.
Chamava-se Ricardo Malbête, ou Illbeast, e incitava com grande fúria o
povo a sitiar o castelo e ver se nos arrancava de lá. Não tínhamos armas,
mas com as mãos nuas arrancamos as pedras das paredes interiores e
fizemos com elas recuar a plebe. Durante três dias, sem alimentos e sem
armas, nós os rechaçamos, mas quando eles trouxeram uma grande
máquina de guerra, preparando-a para o dia seguinte, vimos que não
poderíamos continuar a lutar. Nunca, enquanto meus olhos puderem
chorar, e meu espírito recordar o passado, nunca esquecerei a tristeza, o
terror, a aflição daquela noite! Falamos por muito tempo, discutindo o que
se poderia fazer, posto que nós todos, ou quase todos, sabíamos que não
havia senão um só caminho a tomar. Afinal Eliezer, o rabino, ergueu-se e
disse: “Ó homens de Israel! Deus — a quem nenhum homem pergunta:
Por que permites isto? — Deus nos ordenou que déssemos nossa vida pela
Sua lei, e eis que a morte nos bate à porta. Vamos, portanto, oferecer
livremente nossa vida a Deus, que a concedeu, como muitos de nossos
antepassados já o fizeram, libertando-se de uma maneira digna de grandes
tribulações.”
O velho ficou por alguns minutos acabrunhado pela lembrança daquela
noite de tristeza; lágrimas lhe deslizavam pela face, e ele não podia
continuar a falar. A pequena Rute, que chorava silenciosamente, procurava
ao mesmo tempo consolá-lo. E dizia-lhe, enquanto derramava também
sentidas lágrimas:
— Não chores por eles, meu pai. Deus os levou, e, posto que tenham
recebido a morte das mãos dos que amavam, estão agora no seio de
Abraão, e para sempre!
— Senhor — disse o velho judeu —, ela diz a verdade. Quando o rabino
Eliezer acabou de falar, nós nos separamos e não falamos mais. Não posso
narrar tudo o que então se passou. Todos nós queimamos ou destruímos
todo os bens que tínhamos em nosso poder, e aqueles que já não tinham
esperança mataram os seus entes queridos e depois se suicidaram. Mas eu
não pude me resolver a proceder do mesmo modo… Não queria viver para
mim próprio, pois antes preferia a morte; mas por causa desta minha filha
descobri um esconderijo no castelo, na esperança de que, ao entrar a
plebe, como eu tinha a certeza de que aconteceria, havia de achar meio de
lhe dar escapula, pois eu próprio não esperava ser poupado. Na manhã
seguinte, os que não tinham querido morrer abriram os portões e
começaram a se batizar, pensando escapar assim à fúria da multidão. De
onde estávamos escondidos vi tudo o que se passou. O malvado Ricardo
Illbeast dirigiu-se ao primeiro judeu, Efraim Ben Abel, que se ajoelhou
diante dele, suplicando-lhe a vida. “Onde estão os tesouros dos judeus?”,
perguntou ele. E Efraim respondeu: “Queimados e destruídos”. “Onde
está o rabino Eliezer?”, tornou ele a perguntar. E Efraim replicou-lhe: “Ele
e todos os que não estão aqui comigo mataram-se, matando também suas
famílias.” “Então morre tu do mesmo modo!”, disse Illbeast. E a estas
palavras a turba matou todos os judeus ajoelhados, sem que escapasse um
só! Então a multidão entrou no castelo, e esperávamos a cada instante que
nos descobrissem e tirassem para fora. Depois abandonaram o castelo e
correram para a catedral, onde, como sabes, o rei guarda os registros dos
empréstimos feitos pelo meu povo aos cristãos naquela região, e
queimaram aqueles pergaminhos, de modo que agora Alberico de Wisgar e
os outros maus cavaleiros estão livres de todas as suas dívidas.
— E como conseguiste escapar? — perguntou João Pequeno, que, com
Will, o besteiro, Scarlet e Artur de Bland, escutava também a conversa.
— Deus, em resposta a nossas orações, abrandou o coração de um
soldado, que nos descobrira, mas não nos atraiçoou, de pena da nossa
aflição. Levou-nos alimentos e capas de soldados para nos disfarçarmos, e
na segunda noite tirou-nos dali e levou-nos para fora da cidade por uma
porta secreta, e dirigiu-nos para a nossa estrada, para Nottingham.
— Sabes o que foi feito daqueles cavaleiros malfeitores e ladrões? —
indagou Robin.
— Aquele soldado — a quem Deus recompense pela nobreza de seu
coração — disse-nos que todos tinham fugido da cidade, receando a cólera
dos oficiais do rei. Os cavaleiros seguiram a toda a pressa para a Cruzada;
quanto à plebe e aos ladrões, uns tinham fugido para a Escócia, ou para as
florestas, e outros ficaram escondidos pela cidade. E contou também que
os juízes do rei castigariam severamente todos os maus atos praticados na
cidade, e que o xerife e os principais negociantes já estavam tremendo de
medo. E agora, sir proscrito, tenho um favor a pedir-te: tenho uma filha e
um filho em Nottingham, e é para a sua companhia que pretendemos ir.
Eles nos julgam também mortos, e peço-te que deixes um de teus homens
ir procurá-los e dizer-lhes que estamos salvos e que estaremos com eles
quando te aprouver nos deixar ir, e eu estiver bastante forte para
prosseguir a viagem.
— Sem dúvida, assim se fará. Quem quer ir levar o recado aos parentes
do judeu? Que dizes, Will? Tu que os descobriste?
— Irei de boa vontade. Dá-me o recado e dize-me onde poderei
encontrar teus parentes, e irei neste momento.
Reuben e Rute agradeceram calorosamente, e depois de receber o recado
e as indicações necessárias, Will foi se disfarçar, para não ser reconhecido
por algum dos habitantes da cidade a quem acaso tivesse exigido o pedágio
devido aos bandoleiros.
E naquela tarde passava pela poterna do portão de Bridlesmith um
peregrino de hábito comprido e escuro, calçado rasgado, uma concha de
ostra no capuz e cajado na mão. Já era a hora de fechar os portões; ele
andava pelas ruas a passos vagarosos, como devia andar um peregrino que
vem de longe e está fatigado.
Não via probabilidade de ser reconhecido naquele disfarce, mas, ainda
que andasse humildemente, de olhos no chão, não deixava de espiar para
os lados, olhando para os marcos, para se certificar de que estava indo
direito para a casa de Silas ben Reuben, um dos chefes da comunidade
judaica de Nottingham, a quem devia entregar a mensagem do velho
judeu.
Afinal entrou na rua da comunidade judaica e começou a contar o
número de portas, desde a esquina, como lhe ensinara Reuben, pois não
queria chamar a atenção de ninguém, indagando onde era a casa. Notou
ele que, enquanto algumas portas estavam abertas, vendo-se por elas
mulheres trabalhando e crianças brincando, outras se conservavam
fechadas e aferrolhadas, como se os moradores temessem que lhes viesse a
caber a mesma sorte dos judeus de outras cidades.
Chegando afinal à nona casa, bateu à porta, que estava trancada, e ficou
à espera.
Abriu-se um postigo na porta, e por ali espiaram os olhos escuros de um
homem, que perguntou:
— Que queres?
— Quero falar com Silas ben Reuben; trago um recado para ele.
— Que palavra ou sinal secreto tens para provar que não és um traidor,
que venha fazer a mim e aos meus o mesmo que já fizeram a outros do
nosso povo? — disse o homem energicamente, do outro lado da porta.
— Digo-te estas palavras — replicou o proscrito, repetindo certas
palavras hebraicas, que Reuben lhe ensinara.
Instantaneamente o rosto desapareceu do postigo, a porta foi
destrancada e aberta, e o judeu, um homem baixote e desajeitado, disse:
— Entra, amigo.
Depois que o bandoleiro entrou, ele tornou a trancar a porta, levou-o
para uma sala interior e disse-lhe:
— Sou aquele a quem procuras. Senta-te.
— Venho dizer-te que teu pai, Reuben de Stamford, e tua irmã Rute
estão salvos e bem de saúde.
— Louvado seja Deus! — disse o homem.
Uniu as mãos, curvou a cabeça e murmurou palavras de oração, em
língua estrangeira.
— Dize-me agora como o soubeste — pediu ele, depois que acabou de
orar — e onde estão, e quando poderei vê-los?
Então o proscrito narrou a Silas, o judeu, toda a história da descoberta
que fizera da pequena Rute e de seu pai, e dos seus padecimentos,
conforme relatara o velho. O judeu agradeceu-lhe a bondade que tivera
com Reuben e Rute, e, dirigindo-se para outra peça da casa, voltou de lá
com um rico cinturão de couro verde, todo bordado de pérolas e de pedras
preciosas.
— Tua bondade está acima de qualquer recompensa — disse ele —, mas
rogo-te que aceites isto, como prova da minha gratidão.
— Agradeço-te, judeu, mas isto é rico demais para mim. Assentaria
melhor no meu chefe. Mas, se queres me fazer um presente, dá-me uma
faca espanhola, se tiveres alguma, porque são afamadas como as de melhor
têmpera em toda a cristandade.
— Darei da melhor vontade este cinto a teu chefe, se ele o quiser aceitar,
e tu terás a melhor faca espanhola que possuo.
E de fato presenteou uma ao bandoleiro, que examinou a lâmina e achou
que era excelente.
Já ia escurecendo, e o bandoleiro desejava sair da cidade antes que
fechassem os portões. Mas antes era preciso assentar com o judeu o dia e
o meio de ele enviar homens e cavalos ao encontro de Reuben e Rute, no
lugar onde, com Robin e seus homens, os esperariam. E já estava noite
fechada quando tudo ficou combinado; queria o judeu que Will ficasse em
sua casa, onde estava sozinho, pois, de medo da turba, mandara a esposa, a
irmã e os filhos para lugar mais seguro.
— Agradeço-te ainda, judeu, mas prefiro dormir em um lugar que
conheço, perto do portão, de modo que possa sair da cidade de
madrugada, assim que se abram as portas.
Ia por uma rua estreita da comunidade judaica, quando passaram por ele
dois homens, olhando-o furtivamente. Não falavam, e não pareciam trajar
como os judeus, e o bandoleiro admirou-se de seu caminhar tão silencioso.
Começou a andar mais devagar, para que eles se afastassem, mas os dois
homens também moderaram o passo, conservando-se a uns seis passos
dele. Um deitava um olhar rápido para trás de vez em quando, e Will
compreendeu então que o vigiavam e que, ou porque reconhecessem nele
um dos do bando de Robin Hood, ou porque tinha visitado o judeu,
queriam alguma coisa com ele.
Segurou o cabo da sua faca espanhola e parou, resolvido a vender caro a
vida, caso também os homens parassem e se lançassem a ele. Nisto sentiu
uma mão pousar-lhe no braço, enquanto uma voz lhe sussurrava ao
ouvido:
— Amigo de Silas ben Reuben, os espiões andam no teu rasto. Vem
comigo.
E o bandoleiro viu uma figura sombria ao seu lado. Abriu-se uma porta,
silenciosamente, e Will foi puxado para dentro de uma passagem estreita e
cheia de voltas, segundo lhe pareceu. A mão que o guiava levou-o alguns
metros adiante, e dali a pouco ele sentiu no rosto o ar da noite e viu as
estrelas. Então a mesma voz disse, num cochicho:
— Segue à esquerda, até que chegues ao portão Fletcher.
— Obrigado, amigo.
E Will seguiu à esquerda. Alguns passos mais e estava na estreita rua
que ia ter ao portão indicado, e ele andou depressa, satisfeito por ter
escapado de ser preso, graças ao auxílio do judeu desconhecido. Sem
perder tempo o bandoleiro seguiu para a estalagem, perto do muro da
cidade e cujo dono não fazia perguntas aos fregueses. Ceou frugalmente na
sala comum e subiu para o quarto de dormir — uma grande sala do
primeiro andar, onde dormiam todos os hóspedes da casa que ali
pernoitavam. Atirou-se sobre a palha que cobria o soalho, em um canto, e
não tardou em adormecer.
Com o correr das horas iam subindo outros, e, procurando lugares
cômodos ao pé da parede, ajeitavam-se para dormir. Stuteley acordava
quando entrava mais um, mas relanceando os olhos para o recém-vindo,
cujo vulto era iluminado pela fraca luz de um candeeiro preso à parede,
tornava a pegar no sono. Não tardou que o quarto estivesse quase cheio, e
os mais atrasados tinham de passar por cima dos corpos deitados dos
homens que ressonavam, para achar algum vão onde pudessem dormir.
Afinal a pousada ficou silenciosa; não subiu mais homem nenhum para o
quarto, e a casa parecia entregue ao repouso. O vento resmungava lá fora e
zumbia nas frestas do postigo de uma janela, e de vez em quando um dos
hóspedes murmurava ou falava, no sono, palavras quase ininteligíveis, ou
erguia e agitava o braço, como se estivesse lutando com alguém, ou gemia.
A rua estava silenciosa e escura; de vez em quando algum gato se
acomodava na calha que corria pelo meio dela, ou algum cão vadio parava
em uma esquina, cheirando o vento e uivando.
Antes que o primeiro clarão da alvorada aparecesse no céu, já Stuteley
acordara. Não gostava de casas, parecia que o teto o oprimia, e quando na
floresta, estava habituado a deixar a cabana em que dormia, e ir olhar de
tempos em tempos para o céu, aspirar o cheiro da mata, escutar o
murmúrio do vento nas árvores adormecidas. E agora ali deitado, no
escuro, desejava levantar-se e sair para o ar fresco da floresta. Ergueu-se,
pois, cautelosamente e, caminhando sobre os homens adormecidos,
dirigiu-se para a porta, de onde uma escada de degraus grosseiros descia
para o pavimento inferior.
Quando ia abrir a porta, viu que diante dela havia um homem
adormecido. Tocou-o delicadamente com o pé, pensando que o outro
compreenderia que ele queria abrir a porta e lhe daria lugar.
Mas a seu lado ouviu que diziam:
— Oh! Peste! Por que queres sair tão cedo? O portão da cidade não se
abre enquanto eu não estiver lá. És algum ladrão, que procura fugir da
cidade enquanto os homens não andam pelas ruas?
— Ladrão não sou, não; sou apenas um pobre peregrino, e tenho de
viajar até o Santo Relicário da Virgem, em Walsinghem. Como tenho
muito que andar, preciso sair cedo.
Já então o homem da porta tinha se levantado e abria-a, caminhando
para o patamar; Stuteley seguiu-o, esperando que ele descesse, porque a
escada era estreita e não dava passagem senão a um homem. O que falara
também saiu, e à luz fraca da alvorada olharam com atenção para Stuteley.
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Eram dois sujeitos grosseiros, que trajavam túnicas e calções escuros,
como se fossem criados de algum burguês rico. E o que já falara disse
então:
— Peregrino? Tu?
Riu, olhando para Stuteley de alto a baixo, com ar de desprezo, e
continuou:
— A roupa de peregrino cobre muitas vezes o corpo de um vagabundo.
Assim dizendo, gesticulou para as estrelas, e Stuteley apressou-se a
descer, compreendendo que mais lhe valia aparentar de inofensivo do que
retrucar com altivez. Os outros seguiram-lhe no encalço e entraram na
sala juntos. Estavam dois homens sentados a uma mesa, e, vendo os dois
que vinham atrás de Stuteley, levantaram-se e foram ao seu encontro. O da
frente, um homem alto, de olhar desagradável e cruel, com um velho gilvaz
que lhe atravessava a face, adiantou-se e disse:
— Quem é aquele?
— Um peregrino, capitão, segundo declarou.
Will viu que fora apanhado. A mão saltou-lhe logo para a cinta, mas ao
primeiro movimento os dois que estavam atrás lhe seguraram os braços.
— Mostra a mão esquerda! — gritou o capitão. — Isso nos provará se
este peregrino não tem algum outro ofício!
Um dos outros ergueu a mão esquerda de Stuteley, cujo indicador
apresentava um calo, produzido pela seta, que roçava na carne ao disparar.
— Ah! Logo o vi! É o nosso homem — um daqueles marotos do bando
de Robin!
Rápido como o pensamento, o bandoleiro livrou-se deles e correu para a
porta. Julgava que seria tão veloz que pudesse erguer a tranca e ver-se
livre; mas eles foram muito mais rápidos. Quando ele erguia a pesada
tranca, que descansava em um encaixe de cada lado da porta, os quatro lhe
caíram em cima. Ainda segurando a tranca, ele a fez girar em redor,
mandando um deles morder o chão, onde ficou sem sentidos. Utilizando-
se da tranca como uma arma, espancou os outros por algum tempo. De
repente, porém, o corpulento capitão se pôs atrás de um de seus homens,
e, segurando-o pelos ombros, atirou-o contra Stuteley. A tranca caiu na
cabeça do homem, atirando-o também desmaiado ao chão; mas, antes que
o bandoleiro pudesse se recobrar, o capitão e o outro já tinham se atirado
a ele, subjugando-o, e segurando-o no chão.
O estalajadeiro, acordado com o barulho, veio a correr, e o capitão
ordenou-lhe que trouxesse cordas. Reconheceu logo Stuteley, que muitas
vezes viera à sua casa, disfarçado de mendigo ou peregrino, e doeu-lhe
muito ver um dos do bando do altivo Robin Hood preso pelos homens do
xerife. Fingiu-se, pois, muito distraído, e corria de um lugar para outro,
com o pretexto de procurar uma corda, na esperança de que de qualquer
modo Will pudesse se levantar dali, enquanto ganhava tempo, e escapar
dos seus perseguidores.
Mas tudo foi em vão.
— Oh! Peste! — gritou o capitão. — Estúpido! Se não achas essa corda
em um abrir e fechar de olhos, malandro, o xerife ficará sabendo disto!
— Oh! Bom capitão! — exclamou o dono da casa. — Estou tão
assombrado, que nem sei onde estão as coisas. Não estou acostumado a
estas prisões aqui, porque minha casa sempre foi sossegada.
Vendo que era inútil retardar mais tempo, achou afinal uma corda, e os
braços de Will foram bem amarrados. Enquanto isso o estalajadeiro
manejava de modo a deitar ao bandoleiro uma olhadela de entendimento,
dizendo-lhe naquela linguagem que estava do seu lado, e que mandaria
notícias de sua captura a Robin Hood. Depois Will foi levantado, e
carregado para a prisão, abaixo de motejos.
Assim que se abriram os portões, mandou o proprietário um homem à
mata. Era já tarde quando ele encontrou um do bando, Kit, o ferreiro, e
disse-lhe que Will fora preso, mas que tinha matado dois homens com
uma tranca antes de ser subjugado. Quando Kit, o ferreiro, levou o
mensageiro à presença de Robin, no meio da floresta, souberam ali que um
bom burguês, a quem Robin protegera há tempos, já tinha mandado um
homem para dizer-lhe que Stuteley fora interrogado naquele dia, na
presença do xerife, e que ia ser enforcado fora dos portões da cidade, de
madrugada.
— Quando eu saía — disse o homem —, vi o poste que iam levando,
para reparar a velha forca. Isto é em honra, diziam eles, do primeiro
homem de Robin que conseguem prender; mas acham agora que não
tardará muito que muitos outros sejam ali pendurados.
— Mas por que dizem isso? — indagou Robin.
— Ora, chefe, é que dizem que o xerife tomou a seu serviço um esperto
pega-ladrão, um homem que já tomou parte em muitas guerras, na França
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e na Palestina, e que é fértil em estratagemas e emboscadas; e dizem que
não demorará muito que ele arranje alguma cilada em que há de cair todo
o teu bando.
— Que espécie de homem é esse pega-ladrão? Como se chama?
— É um homenzarrão, um fanfarrão, um mata-sete, de cara enorme e
vermelha, e voz ameaçadora. Dizem uns que se chama Capitão Mata,
outros dizem que seu nome é Capitão da Morte, mas muitos chamam-no
Capitão Matador.
— E de onde vem ele? — indagou Robin, que não reconhecia o capitão
bravateiro.
— Não se sabe. Dizem uns que ele mesmo não passa de um malandro, e
que o juiz do reino gostaria bem de aferrolhá-lo. Mas o sujeito está nas
boas graças do xerife, que lhe pede conselho em tudo.
Robin estava muito aborrecido com a captura do pobre Will e, voltando-
se para os que o cercavam, disse-lhes energicamente:
— Rapazes! Ouviram as más notícias. O coitado do Will, o nosso bom e
leal Will, foi pego, e está ameaçado de morte. Que dizem vocês?
— Ele tem de ser resgatado! — gritaram todos. — Ainda que tenhamos
de deitar abaixo a cidade de Nottingham, havemos de salvá-lo!
E o olhar dos feros proscritos bem mostrava que estavam decididos a
fazer o que diziam.
— Dizem bem, rapazes! Will será resgatado, e voltará são e salvo, ou
muitos malandros de Nottingham terão de morrer!
O chefe deu ordens para que os dois homens fossem servidos e
acomodados no acampamento, onde passariam a noite, e ambos
prometeram de boa mente que não tornariam à cidade. Era preciso esta
precaução, para que não se soubesse da sua tentativa, pois compreendia
que não seria fácil tarefa arrancar Will Stuteley das mãos do xerife e de
seu novo lugar-tenente, o Capitão Matador.
Enquanto isso, na sua casa, em Nottingham, o xerife conferenciava
longamente com o seu pega-ladrão. Tinham tentado inquirir Will, mas o
bravo bandoleiro dera somente respostas atrevidas, dizendo-lhes que
podiam torturá-lo, se quisessem, mas nem assim lhe arrancariam uma
palavra.
— Levem-no daqui! — gritara afinal o xerife, furioso. — Levem-no e
preparem a forca, porque será pendurado nela de madrugada!
Sem dizer palavra, ouviu Will esta sentença, e, de cabeça erguida,
dirigiu-se para o seu calabouço.
— Sir xerife — disse o Capitão do Mato, quando ficaram sós —, tenho a
propor-te um meio de sabermos, com toda a certeza, o esconderijo secreto
do bando de ladrões de Robin Hood.
— Fala, então. Daria cem libras para ter aquele malandro e sua súcia
feitos em pedaços!
— É isto — continuou o capitão, em cujo rosto aviltado luzia um olhar
maldoso —, deixa ir embora este homem; ele voará para o seu chefe, lá na
mata, como uma flecha voa do arco. Manda dois ou três sujeitos matreiros
no seu encalço, vigiando-o de perto, até que descubram onde se ocultam
os bandidos. Então saberemos onde estão, e tu reunirás teus homens, que
eu guiarei, e poderemos cercá-los quando menos esperarem, pegando um
por um.
De testa franzida, o xerife sacudiu a cabeça, dizendo:
— Não! Não vou perder o único que apanhei! Ele se sumiria! Uma vez
livre, fica sabendo, aquele maroto Robin é tão fértil em estratagemas e
velhacadas, que até tu, mestre pega-ladrão, serias capturado em um
instante!
— Então — replicou o capitão —, tenho outro plano, que não pode
deixar de te agradar. Já te disse que meus espiões vigiam a casa de Silas
ben Reuben, e que viram este patife entrar lá e ficar muito tempo a
conversar com o judeu. Não duvido que haja algum plano tramado entre o
judeu e esse patife, Robin Hood. Tu sabes que o bandoleiro é entendido
em nigromancias e magia negra, e não é de duvidar que ele e aquele
malvado judeu estejam se conjurando contra nós, os cristãos.
— Mas que pretendes? — gritou de repente o xerife, num assomo de
cólera. — Quererias instigar o povo para atacar e despojar os judeus?
Pretendes ver-me apeado do meu cargo, multado em metade de minhas
propriedades, tendo atrás de mim todos os habitantes desta cidade, a
reclamar um terço de seus bens? Foi o que fez, em York e em Lincoln, o
juiz do reino. Ah! Patife! Que planos malévolos tens então contra mim?
Que sabes de Silas ben Reuben? Acaso serás um daqueles canalhas que o
xerife e os mercadores de York gostariam bem de encontrar, para
descontarem na tua pele as punições que o juiz do rei lhes infligiu?
O Capitão Mata não esperava semelhante explosão, e parecia abatido.
Na verdade, pelo sobressalto que revelaram seus olhos, dir-se-ia que a
última pergunta do xerife estava mais próxima da verdade do que ele
mesmo suspeitava. Mas o xerife estava tão enraivecido, que se pôs a andar
de um lado para o outro na sala, e não viu o temor que se apoderou do
outro.
E, na sua fúria, gritou ainda, em voz desdenhosa:
— Pois o que te digo é que não quero saber de teus planos contra os
judeus. É muito fácil, para um canalha anônimo, da tua igualha, soltar um
brado de incitamento contra os judeus e encabeçar um bando de
assassinos e velhacos, para que matem, pilhem e saqueiem. Mas quando
aparece a justiça para pedir contas, não é o teu couro que arde, nem o teu
bolso, cheio de teias de aranha, que paga! Vai-te, some-te da minha vista, e
dá jeito de estar a forca pronta de madrugada; e não me fales mais em teus
planos indignos!
— Como for da vontade de vossa senhoria e excelência — disse o
capitão em voz sossegada.
Depois, com um respeito irônico, curvou-se, quase varrendo o chão com
o chapéu, ao sair da sala, deixando o xerife a desabafar sozinho a sua
cólera.
— Toleirão! Grande parvo! — dizia consigo o Capitão Mata.
Deteve-se algum tempo fora da casa, a refletir. Depois continuou:
— Quando esse maluco tiver esfriado um pouco, farei com que volte
atrás — porque é um asno, que posso ludibriar à vontade. Contudo, pelo
sim pelo não, vou continuar com o olho na casa de Silas Reuben. Não
duvido que o velho Reuben esteja vivo, e que Robin o tenha escondido. O
velho Reuben sabe onde seu parente, o rabino Eliezer, enterrou seu
imenso tesouro, e não vou agora, para obedecer àquele xerife maluco,
deixar de experimentar alguma torturazinha, para que o velho entregue o
seu segredo. O judeu Silas, é claro, há de mandar, ou irá ele próprio ao
encontro de seu pai e da menina, para conduzi-los a algum lugar seguro;
meus homens o seguirão, e em algum sítio conveniente cairei sobre eles,
levando-os para algum lugar secreto, onde poderei fazer minhas
experiências.
Seguiu então para a praça do mercado e chamou um homem que estava
mascando uma palha; tinha aparência ainda mais indigna do que ele.
— Vai dizer a Cogg, o Sem-orelha, que vigie de perto a casa do judeu
Silas. Creio que hoje ou amanhã sairá; que ele o siga, seja para onde for. Se,
como espero, for para alguma estalagem, a reunir-se com outros de sua
raça, que tenham cavalos, mande-me dizer por um de nossos homens.
Suponho que ele irá à floresta, a encontrar-se com um velho e uma
mocinha. Eu aparecerei com outros, e temos de levar o velho vivo para
algum lugar secreto.
O homem meteu-se pela vasta praça do mercado e sumiu-se em uma das
vielas estreitas e contorcidas que iam ter à comunidade judaica? Então o
capitão dirigiu-se para a Porta do Norte, onde verificou que os homens do
xerife estavam ocupados em levantar novos postes sobre o pequeno cerro
chamado Morro da Forca, que ficava atrás do muro da cidade. Gritou-lhes
então, dando uma risada:
— Façam essa forca bem forte, rapazes, porque é para enforcar o
primeiro daquele bando vil de ladrões. E espero que dentro de pouco
tempo mais alguns de seus amigos sejam dependurados no mesmo galho
dessa árvore.
Os homens do xerife nada disseram, mas alguns se entreolharam,
zombando dele. Não lhes agradava aquele intruso fanfarrão, que fora
repentinamente elevado acima deles; por isso obedeciam-lhe de má
vontade.
A aurora rompeu sombria e fria. Densas nuvens rolavam lentamente no
firmamento, o vento soprava, impiedoso, do lado do leste, e já vagava no ar
o cheiro da neve. Ao lado do portão da cidade que deitava para a delgada
forca, estava sentado um pobre peregrino velho, como se esperasse a
abertura do portão para poder entrar na cidade. Olhou para o portão,
depois para a forca, e começou a chorar.
— Ah! — dizia ele. — Havia eu de encontrar outra vez meu pobre
irmão, depois de tantos anos, só para ouvir dizer que vai ser enforcado
agora mesmo!
Era o irmão mais velho de Will, o besteiro, que há anos fugira de
Birkencar, por ter matado um homem que o explorava cruelmente. Fizera
a longa e perigosa viagem a Roma, para expiar seu crime, orando e
jejuando, e fazendo penitência. Viajara depois pela áspera e também
perigosa estrada de Jerusalém, onde ficou dois anos, entre os pagãos
muçulmanos. Voltara então, vagarosamente, à Inglaterra, para tornar a ver
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seu irmão mais novo, a quem muito estimava. Estivera em Birkencar três
dias antes e soubera que Will tinha fugido para a floresta com Robin
Hood. Atravessara a estrada da floresta, e, indagando de camponeses e
gentes pobres, soubera que o bando de Robin estava estabelecido para
passar o inverno não longe de Nottingham. Continuando a viagem,
chegara a Ollerton, e lá, em uma pequena estalagem, contara-lhe um
couteiro, sem saber a quem falava, que Will Stuteley ia ser enforcado
naquela madrugada, diante da porta norte de Nottingham. Para lá se
dirigiu imediatamente, atravessando a floresta de noite, e sentara-se ali em
frente, cochilando sob as rajadas do vento glacial, para poder ao menos ver
o irmão e quem sabe dizer-lhe uma palavra, antes que morresse.
Quando ali estava, saiu de um maciço de arbustos ao pé do morro um
homem moreno, baixinho e delgado, que se aproximou do velho
peregrino, dizendo-lhe:
— Dize-me, bom peregrino, sabes se Will o arqueiro vai ser enforcado
hoje?
— Ai! Ai! — disse o velho romeiro, cujas lágrimas recomeçaram a
correr. — Segundo dizem é assim, e eu sou para sempre infeliz! É meu
irmão mais novo, a quem desejava tanto tornar a ver, depois de dez anos, e
chego para vê-lo ser enforcado.
O homenzinho olhou escrutadoramente para o velho, como se não
cresse na história; mas a mágoa do romeiro era muito real, e suas palavras
tinham expressão muito sincera, para que duvidasse.
— Ouvi dizer — continuou o velho, que ele fugiu para a floresta com o
jovem Robin de Locksley — um bravo rapaz, de palavras altivas e nobre
coração, quando o conheci. E alguns camponeses e homens pobres, que
encontrei no caminho, disseram-me que não mudou, mas que fugiu
porque não pôde suportar a opressão dos padres orgulhosos e de maus
cavaleiros. Foi sempre um rapaz altivo, e alegrei-me de ouvir daquelas
bocas rústicas o seu elogio, por ajudar sempre os pobres e oprimidos. Ah!
Se ele estivesse aqui agora! Se soubesse de que morte vai o pobre Will
morrer, voaria em seu socorro. Com alguns de seus homens arrojados,
havia de tomá-lo aos que o apanharam.
— Sim, é verdade — disse o homem trigueiro —, é verdade. Se eles
estivessem aqui por perto, haviam de libertá-lo. Mas — boa viagem, bom
homem, adeus, e obrigado.
E o estranho, que trajava como um mateiro, tornou a desaparecer entre
as moitas.
Mal se sumira e ouviram-se vozes por detrás dos fortes portões de
madeira, chapeados de ferro e guarnecidos de pregos; e abriram-se,
chiando e rangendo, as grandes portas duplas, saindo delas 12 homens do
xerife, de espadas desembainhadas. Vinha no meio deles Will Stuteley,
amarrado com cordas; mas seu olhar era altivo, e andava de cabeça
erguida, mesmo coberto de grilhões como vinha. Atrás vinha o xerife, com
o seu traje oficial, e ao seu lado vinha o Capitão Mata, com um sorriso de
triunfo. A pouca distância vinha um homem com uma escada,
acompanhado de um pequeno grupo de gente da cidade, que seguia os
homens do xerife para a forca.
Lá chegados, puseram Will debaixo do braço da alta forca e, a uma
palavra de ordem, ergueram a escada contra o poste, e subiu por ela um
homem, com uma corda na mão.
Enquanto se faziam esses preparativos, Will Stuteley olhou em volta,
para o campo gelado. Esperava avistar os bandoleiros saindo do mato
escuro, que começava no areal, além da baixada, ao pé do morro da forca,
mas não avistava sinal algum de vida em parte nenhuma, a não ser a figura
de um pobre peregrino velho, que se dirigia para eles. Voltou então o olhar
para o xerife, que tinha ao pé de si o Capitão Mata.
— Agora, visto que vou morrer, concede-me uma graça — disse Will —,
porque meu nobre chefe ainda não viu um só de seus homens pendurado
em uma forca. Dá-me uma espada e manda me desamarrar, e combaterei
contigo e com todos os teus homens, até cair morto no chão.
O xerife voltou-lhe as costas desdenhosamente, sem sequer se dignar
lhe dar resposta.
Mas o Capitão Mata, adiantando-se, e atirando uma luva ao rosto do
bandoleiro manietado, disse-lhe:
— Podes ser o primeiro, velhaco, ladrão. Mas mandei reforçar esta forca,
porque julgo que tua morte nos trará sorte, e que agora não tardará que
teus camaradas assassinos vão se pendurando, um atrás do outro, nessa
corda. Quando eu ponho minha inteligência à prova, teu nobre patrão que
se cuide, fica sabendo! Porque ele me deve muito, e quero que fique tudo
liquidado!
— Não sei que agravo tens de meu bom chefe — disse Will
ousadamente —, mas se ele te fez algum mal, é porque és um patife —
disso tenho eu toda a certeza!
O xerife, que estava sobre brasas, enquanto não visse Will enforcado,
tamanho era o receio que tinha das artimanhas de Robin Hood, gritou para
o capitão:
— Deixa-te de tagarelices com o ladrão! Ajusta a corda, e acaba com ele!
— Sir xerife — gritou por sua vez Will —, não deixes que me
enforquem! Manda que me desatem as mãos e eu sozinho morrerei
combatendo com eles todos! Não te peço espada, mas deixa que eu seja
morto pelas espadas dos teus homens!
— O que te digo, maroto, é que morrerás pela corda! — bradou o xerife,
furioso. — Sim, e também o teu chefe, se algum dia cair nas minhas mãos!
Nesse momento entrou no círculo feito pelos homens do xerife o pobre
romeiro velho, com os olhos cheios de lágrimas. Chegou ao pé de Will e
disse:
— Não te lembras de mim? Dói-me muito encontrar-te nesta situação.
Tenho andado vagueando, longe daqui, mas sempre desejei que chegasse a
hora em que havia de tornar a te ver; e agora…
Meteu-se entre os irmãos a bruta mão do Capitão Mata, e o peregrino
ficou estirado no chão, sem sentidos. E o bruto ainda lhe deu um pontapé,
depois de o ver estendido por terra.
— Rapazes! — ordenou ele. — Tirem daqui esta imundície e atirem-na
ali na vala!
Mas o velho peregrino levantou-se vagarosamente, e, dirigindo um
último olhar a Will, voltou-se e foi, a coxear, para o lado do xerife:
— Ele é o meu irmão mais moço, sir xerife. Vim da Cidade Santa, e meu
coração ansiava por vê-lo!
— Passem a corda no pescoço desse patife, e acabem com ele! — berrou
o xerife, sem fazer caso algum do trêmulo peregrino que estava parado
diante dele.
— Adeus, irmão querido! — disse Will — Dói-me também que tenhas
voltado aqui somente para me ver morrer vergonhosamente na forca. Mas
meu nobre chefe me vingará!
O Capitão Mata voltou-se e deu-lhe um forte murro na boca, dizendo:
— Toma, ladrão, patife, assassino! Pela tua inútil bravata! Não tarda
muito que teu próprio e digno chefe precise de quem o vingue!
A corda desceu, vindo cair no chão, ao pé de Will, e o Capitão Mata
levantou-a e pôs o laço sobre a cabeça dele. O proscrito lançou-lhe um
olhar terrível, dizendo:
— Disse-te que eras um patife, e visto que és capaz de me bater, quando
estou assim amarrado, então é porque estás abaixo do mais indigno ladrão.
Em resposta o capitão apertou vigorosamente o laço no pescoço de Will
e, voltando-se, gritou para os homens do xerife que puxassem a corda, já
passada por sobre o braço da forca, para que Will fosse arrastado e
erguido, até morrer estrangulado. E bradava, rouco, com fúria selvagem:
— Puxem a corda, camaradas! Todos juntos!… Um… dois…
Mas a palavra que havia de sacudir Will nos ares jamais foi pronunciada.
Uma pedra veio voando, direita e rápida, e feriu em cheio o capitão, na
fonte esquerda. Soltando um gemido fraco, caiu como um tronco de
árvore aos pés do bandoleiro. Ao mesmo tempo saltava de uma moita, de
trás do morro, João Pequeno; acompanhado de Ket, o gnomo, que atirara a
pedra que prostrara o Capitão Mata, correu para Will. Cortou depressa os
laços que lhe tolhiam as mãos, e, lançando-se sobre um dos homens do
xerife, que já corria para ele de espada desembainhada, vibrou-lhe um soco
que o apanhou em cheio no peito, enquanto com a outra lhe arrebatava a
espada.
— Toma, Will — gritou então, rindo alegremente —, toma esta espada,
e vamos nos defender como pudermos, porque não tardará que chegue
auxílio — se tudo correr bem!
Will e João Pequeno iam se mantendo, enquanto o xerife, já recobrado
da estupefação que lhe causaram os repentinos acontecimentos dos
últimos instantes, achava enfim voz para ordenar com imensa fúria aos
seus homens que apanhassem o vilão que cortara as cordas do prisioneiro.
Assim urgidos pelos gritos enfurecidos do xerife, avançaram os homens,
em um só corpo, contra os dois bandoleiros, e suas espadas se chocaram
com as dos dois proscritos. Por alguns instantes foi furioso o ataque;
depois, repentinamente, zumbindo como abelhas, três grandes setas se
arrojaram entre eles. Uma ficou tremendo no corpo de um homem junto
ao xerife, que se virou e viu um grupo de homens de verde, armados de
arcos enormes, que corriam para eles. À frente vinha um homem vestido
todo de vermelho, com um arco maior do que ele, e que, mesmo correndo,
ia ajustando à corda uma flecha — comprida como uma lança.
— Depressa! Depressa! — gritou o xerife. — Fujam! Fujam!
Tamanho era o medo de sentir uma seta daquelas a lhe furar a pele, que,
sem mais se preocupar com nada, ergueu a toga e deitou a correr para o
portão da cidade para salvar a vida, no que foi seguido de perto pelos seus
homens, com exceção de dois. Um jazia quieto, morto pela primeira seta, e
sobre o outro estava ajoelhado o gnomo Ket. Com a corda que deveria
servir para enforcar Will Stuteley, estava amarrando seguramente os
braços do Capitão Mata, ainda inconsciente.
Robin e seus homens chegaram enfim, e foi um nunca acabar de apertos
de mão, e de pancadinhas nas costas de Will Stuteley, e de ditos chistosos
e palavras alegres.
E Will, olhando com sincera gratidão para o rosto de Robin e de seus
camaradas, dizia:
— Quando ia eu pensar que me veria livre daquela corda! Ela estava já
bem apertada no meu pescoço, e eu estava orando, quando… pum!…
estourou a pedra! Quem foi que a lançou?
E olhava em redor, procurando a resposta.
— Fui eu, senhor — disse uma voz que vinha de onde menos se
esperaria — de uma altura de menos de um metro.
E, olhando para baixo, viram Ket, que estava acabando sua tarefa. E foi já
de pé que ele continuou:
— Chefe, não quis matar este sujeito porque pensei que preferias tê-lo
vivo. Fez-te muito mal, e pretende fazer mais ainda.
Robin foi olhar para o rosto do homem desacordado.
— Mas é Ricardo Illbeast! Ket, rapaz atilado! Agradeço-te! Agora, afinal,
lhe será feita justiça!
Receando que o xerife tivesse ido procurar auxílio no castelo, deu Robin
ordens imediatas. João Pequeno deixara escondido um cavalo, para o caso
em que Will precisasse ir montado; trouxeram-no e atravessaram nele o
corpo do perseguidor do judeu. E, a passo apressado, saíram os
bandoleiros daquele sítio; o guarda, espiando do seu quarto para as
enormes portas, que fechara, por ordem do xerife, viu-os desaparecer na
floresta tranquila, à luz indecisa da alvorada.
Depois de andarem por muitos caminhos secretos, chegaram ao âmago
da floresta, onde era quase impossível darem com eles. Will deixou então
o irmão peregrino, com quem estivera sempre conversando alegremente, e
foi ter com Robin. Contou-lhe então o que combinara com Silas: que este
iria naquele dia, às duas horas, com homens e cavalos, buscar seu pai e sua
irmã em um lugar chamado Hexgrove, ou Witchgrove, Mato da Bruxa, na
estrada real, perto de Papplewick, onde se encontrariam. Como o tempo
era escasso, Robin chamou Ket e ordenou-lhe que fosse adiante, e a toda
pressa, a Barrow Down, para preparar o velho e a menina para a viagem,
levando-os depois para Hexgrove, onde ia esperá-los com os seus homens.
Isto assentado, tomou o chefe a direção indicada, andando agora com
menos pressa.
Já então Ricardo Illbeast recobrara os sentidos, e seus olhos ferozes, ao
reconhecer ele onde se achava, disseram muito mais do que exprimiriam
palavras, todo o ódio que votava a Robin e seu bando. Olhou de um em um
para os homens que acompanhavam o cavalo em que ia amarrado, e
conheceu, pela energia e resolução de seus olhares, que não haveria tão
pouca misericórdia no coração deles, como haveria no dele próprio, se os
outros lhe tivessem caído nas mãos.
Adestrado mateiro como era, jamais viajava Robin pela floresta sem ter
esculcas espalhados para todos os lados; e a este hábito de perpétua
vigilância, devera muitas vezes ricas capturas, e evitara também mais de
uma emboscada. Já a meia milha do Mato da Bruxa, veio um vigia a correr,
dizendo-lhe:
— Chefe, Dick, o Vermelho, diz que um homem ricamente vestido, com
seis arqueiros, vem a cavalo pela estrada, a toda a pressa. E vai chegar às
árvores da Bruxa ao mesmo tempo que tu.
Dado o recado, ao qual Robin apenas respondeu com um aceno de
cabeça, o esculca desapareceu, para ir ocupar o seu lugar mais adiante.
Robin apressou o passo do bando e deu uma olhadela para o lado de
Ricardo Illbeast, a ver se não se teriam afrouxado os laços que o prendiam.
Dali a pouco achavam-se os bandoleiros ocultos entre as densas moitas
imóveis, de ambos os lados da alameda. Não tardaram a ouvir o tropel de
cavalos, que andavam rapidamente; o homem que vinha à frente era de
pouca estatura, mas de construção vigorosa. Trajava uma rica capa negra,
orlada de pele, presa ao ombro direito por uma fivela de ouro, em que
brilhava um belíssimo rubi. Pendia-lhe do chapéu de castor preto, também
segura por uma pedra preciosa, uma pluma branca. O cavalo, ricamente
ajaezado, era um animal de preço. E ainda que o traje não denunciasse
nele um homem de autoridade e poder, o olhar dominador e enérgico que
luzia naquelas faces de um vermelho intenso, as sobrancelhas salientes, as
mandíbulas fortes bastariam para provar que aquele homem estava
habituado a exercer grandes poderes de vida e de morte. Contudo havia no
seu olhar e no seu porte certa dignidade, indício certo de pessoa bem-
educada.
Vinham atrás dele seis arqueiros, trajando fortes gibões e tendo as
pernas protegidas por botas de couro, que lhes chegavam até quase as
coxas. Eram homens fortes e rijos, e seus olhos vivos também ostentavam
certo ar de domínio. Sentiu Robin o coração bater ao dar com eles, porque
era aquela gente assim brava que ele gostava de arregimentar para o seu
bando.
Vendo o homem ricamente vestido que vinha à frente, Robin sorriu,
porque o reconheceu, e, vendo que ele e sua gente apressavam o passo
para o sítio onde estava escondido com seus homens, riu com gosto.
Quando a cavalgada estava a uns seis metros, o bandoleiro saiu do
cerrado e dirigiu-se para a estrada, postando-se no caminho dos cavaleiros.
Ricardo Illbeast, voltando o rosto para eles, ficou lívido. No mesmo
instante o homem que dirigia a cavalgada, sofreando com mão forte o
cavalo, parava a poucos passos de Robin, e, avistando o homem amarrado,
voltou-se e deu uma ordem rápida:
— Aqui está o nosso homem! Segurem-no!
E apontava para Ricardo, que ouvindo estas palavras se estorcia nas
cordas.
Já três dos arqueiros esporeavam o cavalo, adiantando-se, como se
fossem se apoderar do homem amarrado, quando Robin, dando volta ao
cavalo e erguendo a mão, disse:
— Devagar, camaradas! Devagar... O que eu tenho eu o apanhei, e, se eu
o soltar, não será apanhado por viva alma.
— Como é isso, camarada? — gritou o homem das ricas roupagens. —
Eu sou o chefe dos inspetores da justiça do rei. Ignoro como capturaste
este ladrão e assassino. Sem dúvida ele te ofendeu, e por fortuna o
trouxeste no teu cavalo. Mas agora deves entregá-lo a mim, e não terá
muito tempo para se confessar! Já foi julgado muitas vezes e achou-se que
merecia a morte, e eu não vou desperdiçar mais nem uma palavra com ele
nem contigo. Queres que se faça maior justiça sobre ele?
Robin riu na cara do inspetor de justiça. Os seis arqueiros ficaram
embasbacados ao ver semelhante ousadia, e além disso tamanha
indiferença em um homem que não parecia mais do que um pobre
mateiro. Em geral os homens punham o chapéu debaixo do braço diante
de sir Lourenço de Raby, o inspetor da justiça do rei, e dobravam
humildemente o joelho. E aquele malandro insolente não só não fazia
nada disso, mas ainda ria.
— Justiça! — exclamou Robin desdenhosamente. — Não faço muito
caso de tuas palavras, nem de tuas maneiras. Toda a justiça que tenho
conhecido sempre tem vacilado, como se fosse cega; e faço ainda menos
caso de tua pressa do que da tua justiça vagarosa, sir inspetor. E o que te
digo é que não tocarás neste homem!
— Peguem o prisioneiro, e deitem abaixo o camponês, se ele resistir! —
bradou o inspetor furioso.
Saltaram do cavalo os três besteiros e adiantaram-se apressadamente.
Quando estavam ao alcance da mão, Robin levou os dedos à boca e soltou
um assobio agudo. Ouviu-se o barulho de ramos quebrados, e logo os três
besteiros recuaram, porque aos dois lados da estrada apareceram vinte
vigorosos bandoleiros armados de fortes arcos nos quais brilhavam as
pontas das setas.
O inspetor ficou rubro de cólera.
— O quê? — bradou ele. — Tu ousas ameaçar a justiça del-rei! Isso
cairá sobre a sua cabeça, bandido, ladrão!
— Devagar, bom inspetor — replicou Robin, rindo. Sabes quem sou eu e
sabes que conto tanto com a justiça do rei ou com o seu inspetor como
com uma maçã assada.
Riu ainda mais, escarninhamente, e continuou:
— A tua justiça! Que vem a ser isso? Uma coisa que vendes aos lordes
ricos e prelados de má vida, enquanto nada dás dela aos pobres, a quem
eles enterram na lama. Pensas então que se houvesse justiça igual para
ricos e pobres nesta nossa linda Inglaterra, eu e meus camaradas
estaríamos aqui? Justiça! Pela Santa Cruz! Digo-te, sir inspetor: conheço-
te e sei que és um belo homem — e honesto, é certo — talvez um pouco
arrebatado e impulsivo, mas reto nas ações, desde que não te contrariem.
Mas o que te digo é que se fosses tão malvado como outros teus colegas,
serias agora dependurado tão alto como vai ser este patife daqui a pouco, e
na mesma árvore!
E a voz do bandoleiro retinia com um timbre agudo e áspero, e seus
olhos escuros fitavam de frente o inspetor. Por um momento este manteve
a altivez do olhar, mas depois o rosto se distendeu, e ele riu.
— Patife! sei que o farias! Conheço-te, Robin, e pena é que um
camarada tão valente tenha ido para a mata.
— Fica aí, sir inspetor — disse o bandoleiro energicamente —, e vais ver
que os homens que dizes fora da lei fazem justiça bem aplicada e mais
limpa do que a farias tu, que vendes a justiça do rei.
E, voltando-se para João Pequeno, ordenou-lhe que tirasse Ricardo
Illbeast do cavalo e o fizesse sentar debaixo de um galho de árvore.
Quando acabava de ser cumprida a ordem, saíam da mata, a cavalo, o
judeu Reuben e sua filha, acompanhados por Ket, e quatro bandoleiros. A
menina, passeando o olhar atento pela estranha assembleia, deu com a
cara maldosa de Ricardo Illbeast. Saltou então do cavalo, com um grito
agudo, e, correndo para Robin, caiu de joelhos diante dele, em uma
explosão de lágrimas e de palavras:
— Foi este quem matou nossa pobre gente! Oh! Salva meu pai! Salva
meu pai! Não permitas que ele nos faça mal!
E correu para o pai, segurando-se a ele com ambas as mãos, como se
quisesse protegê-lo.
Voltando-se então para Ricardo Illbeast, toda trêmula, de olhos
brilhantes, parecia desafiar-lhe os olhares ameaçadores.
— Reuben de Stamford — bradou Robin —, é este o homem que viste
matar teu povo em York?
— Sim — replicou o velho judeu —, é este mesmo. Eu o vi matando
com as próprias mãos, e não somente homens sãos e fortes, mas também
velhos e velhas, e até — assim a sua consciência o atormente por essa
ação! — até criancinhas!
— E tu, sir inspetor, quais são os crimes que a tua justiça imputa a este
patife?
— Oh! São muitos! — disse o inspetor. — Um só deles bastava para o
pendurar em uma forca da altura de uma casa! Ele matou Ingelram, o
mensageiro do rei, em Seaford, e roubou-lhe a bolsa cheia de ouro; ele
furtou um par de esporas na casa onde o rei pernoitava, em Gisors, na
França; ele matou um velho burguês de Pontefract, homem simples, e
quando, tendo jurado que atravessaria o mar e iria viver proscrito, era
seguido pelos filhos do velho, escapou-lhes com as suas artimanhas,
matando dois deles e ferindo o terceiro. Mas suas façanhas, praticadas em
York, foram proclamadas em toda a parte, e a justiça del-rei meu senhor
irritou-se ao saber que o malfeitor escapou e que encabeçou o assassínio e
o saque dos súditos leais de Sua Majestade. Mas… basta, Robin! Que o
ergam, e vamos embora!
Nada disse Ricardo Illbeast, mas deitava olhares furiosos e maus para
todos os lados, e sabia que a morte, que tantas vezes levara a outros, ia lhe
tocar também, afinal. E assim morreu ele, sem apelar para a piedade, sem
pedir mercê — porque sabia muito bem que jamais concedera nem uma
nem outra àqueles que lhe tinham até suplicado que não os matasse.
Depois que tudo estava terminado, o inspetor despediu-se de Robin com
palavras cordiais, dizendo-lhe ao ouvido:
— Robin, não são somente os pobres que louvam muitos dos teus atos,
acredita-me. É uma justiça feroz, a tua, mas, como as tuas setas, ela acerta
no alvo. Muito te perdoo, por esse motivo.
— Desejo-te boa viagem, sir inspetor. Pouco foi o contato que tive com a
tua justiça, mas esse pouco, como bem sabes, foi o que me tocou para as
matas, como vês. Ainda assim, quero te lembrar que deves lidar
delicadamente com os pobres, pois deves guardar sempre presente que
muitos deles são arrastados a praticar atos violentos porque não podem
obter justiça daqueles a quem Deus pôs acima deles.
— Não hei de esquecer tuas palavras, bom Robin; e assim viva eu, para
te ver dentro de pouco tempo em paz com a justiça do rei!
Quando chegaram, pouco depois, Silas e seus homens, foi-lhe entregue o
cuidado do velho judeu e de Rute, e Robin mandou 12 homens acompanhá-
los até a cidade de Godmanchester, onde os judeus iriam residir para o
futuro.
A notícia daquele feito de Robin foi espalhada por toda a região. Homens
e mulheres respiravam de novo, ao saber que um sujeito tão malvado
como Ricardo Illbeast estava morto, afinal, e a fama da bravura e dos atos
justos de Robin espalhou-se por toda a parte.
viii
Robin Hood mata o xerife
v
FAZIA UMano e um dia que Robin emprestara as quatrocentas libras a sir
Herbrando de Tranmire, e o bandoleiro estava outra vez sentado no seu
caramanchão, sentindo os apetitosos odores de pastelaria, capões assados
e cozidos, e costeletas de caça, que andavam no ar, debaixo das árvores.
Chamou João Pequeno.
— Já passou há muito a hora do jantar, e o cavaleiro não veio pagar-me;
receio que Nossa Senhora esteja zangada comigo, porque não o mandou
vir pagar-me no dia devido.
— Não te preocupes, chefe; o dia ainda não acabou, e eu era capaz de
jurar que o cavaleiro é fiel e que virá antes que o sol se ponha.
— Pega teu arco, leva Artur de Blande, Much, Will, o besteiro, e mais
dez homens, e vai com eles à estrada romana, onde encontraste o cavaleiro
no ano passado, e vê o que nos envia Nossa Senhora. Não sei por que ela
havia de estar agastada comigo!
E João Pequeno pegou no arco e na espada, chamou os outros e
desapareceu com eles nas entranhas da floresta que encerrava o
acampamento dos bandoleiros. Durante uma hora Robin esteve ali
sentado, fazendo flechas, enquanto os cozinheiros deitavam olhares
ansiosos para dentro das suas panelas, sacudindo a cabeça quando
olhavam para os capões e as postas de carne que iam ficando duras e
passando do ponto. Afinal um esculca veio correndo de dentro do mato e
disse a Robin que João Pequeno e seu bando estavam vindo, com quatro
monges, sete cavalos ou bestas de carga e seis besteiros. Dali a pouco
entravam na clareira, diante do caramanchão do chefe, a alta figura de João
Pequeno e seus companheiros, e no meio deles vinham quatro monges a
cavalo e seus guardas, desarmados, atrás.
Ao primeiro olhar que lançou para o que vinha à frente, Robin riu
acremente. Era o abade Roberto, da Abadia de Santa Maria! E o gordo
monge que vinha ao seu lado era o despenseiro do convento.
— Oh! Pela Santa Cruz negra de York! És mais bem-vindo, senhor
abade, do que jamais pensei que pudesse ser algum dia!
E, dirigindo-se àqueles de seus homens que tinham fugido de Birkencar,
continuou:
— Rapazes, aqui está a verdadeira causa dos desgostos e sofrimentos
que vocês tiveram enquanto eram servos, trabalhando em excesso no rigor
do verão, ou sentindo as costas despedaçadas pelo vergalho; foi ele quem
os forçou a fugir para alcançarem uma vida feliz nesta floresta, nos últimos
anos. Vamos agora obsequiá-lo por essa grande bondade, e quando ele
tiver pagado o que nossa Santa Mãe me deve — porque eu sei que ela o
mandou aqui para que ele me pague a sua dívida — ele dirá missa para
nós, e havemos de nos despedir como os melhores amigos.
Mas o abade tinha os olhos negros de furor, enquanto o gordo
despenseiro, muito assustado, olhava para todos os lados com tanto medo,
que os mateiros riam com gosto, ameaçando-o, por brincadeira, de tudo
quanto era mau trato.
— Vem cá, João Pequeno — disse Robin —, traze-me aquela gorda mala
de garupa ali do despenseiro, e conta-me o ouro e a prata que contém.
Assim o fez João Pequeno; despejou o dinheiro no seu manto, diante do
chefe, contou-o e disse qual era a soma: oitocentas libras!
— Ah! — exclamou Robin. — Eu bem te disse, senhor abade! Nossa
Senhora é a dama mais leal que conheço. Porque ela não só me paga o que
eu lhe emprestei, mas ainda dobra a quantia! Uma ação muito delicada, na
verdade, e seus humildes mensageiros devem ser, por isso, muito bem
tratados.
— Que queres dizer, ladrão e servo? — gritou o abade, vermelho de
fúria, ao ver que ia perder tamanha riqueza. — Então tu, proscrito e
“cabeça de lobo”, tu, canalha, que qualquer homem honesto tem o direito
de matar — pretendes que… Que história é essa de dinheiro emprestado a
Nossa Senhora? O que tu és é um patife fugido das terras dela, e que
perdeste tudo quanto possuías, até o direito à vida, pelos teus atos
perversos!
— Devagar, bom abade! Não foi a mim mesmo que Nossa Senhora
emprestou o dinheiro, mas ela foi fiadora da soma de quatrocentas libras
que emprestei há um ano a certo cavaleiro pobre, que passou por aqui e
contou-me uma história comovente de certo mau abade e outros inimigos
que o perseguiam. Seu nome, abade, era sir Herbrando de Tranmire.
O abade sobressaltou-se, e empalideceu. Voltou o rosto e mordeu os
lábios, enfurecido e envergonhado também, ao saber que fora Robin Hood
quem ajudara sir Herbrando, defraudando-o assim do prazer da vingança
— a ele e aos lordes de Wrangby.
— Vejo em tudo isto, senhor abade — continuou Robin —, a obra de
uma justiça tal como nunca tinha visto até hoje. Tu votaste sir Herbrando
à ruína e à desgraça. Eu o encontrei — seria por acaso? — e com o meu
auxílio escapou aos teus planos. Ao voltar para casa, caíram-lhe em cima
três cavaleiros perversos, daquela ninhada de lordes ladrões de Wrangby.
Dois foram mortos, e sir Herbrando e seu escudeiro continuaram seu
caminho, desarmados.
O abade olhava para Robin, com ódio e vergonha, mas nada disse.
— Não achas melhor abandonar esses costumes maus e tirânicos,
senhor abade, e praticar ações mais aproximadas do espírito daquele que
morreu na cruz, para salvar os pecadores do mundo?
Voltando-se abruptamente para os seus homens, continuou:
— Mas agora, rapazes, vamos oferecer o jantar aos nossos hóspedes, tão
generosamente como é costume na floresta, e mandá-los de volta bem
forrados de caça e vinho, posto que levem vazios os sacos de dinheiro.
De fato, foi um festim real o que ofereceram ao abade, ao despenseiro e
à sua guarda. O abade, na verdade, foi um conviva triste e sem animação;
comeu sobriamente, quase de má vontade, pois vexava-o aquela situação.
Pensar que ele, o lorde abade de Santa Maria, um dos prelados mais ricos e
mais orgulhosos de Yorkshire, se via assim ludibriado, escarnecido e
contrariado por um camponês fugido e seu bando de vilões, agora ali
sentados ao redor dele, dirigindo-lhe chufas, insistindo com ele para que
se mostrasse alegre e comilão! Que vergonha! Oh! Que vergonha!
Terminado o jantar, disse Robin:
— Agora, senhor abade, tu me deves um ofício divino. Não ouço missa
desde ontem. Acabada a missa, podes ir embora.
Mas o abade recusou-se obstinadamente a isso, e foi inútil todo o
empenho de Robin em persuadi-lo. Então mandou o bandoleiro que
trouxessem cordas, e declarou:
— Seja. Amarrem-me então este padre degradado naquela árvore; ficará
ali até que se resolva a fazer o seu ofício. Mesmo que fique ali uma semana,
não lhe entrará alimento algum em sua boca, enquanto não fizer o que
digo.
A princípio, nem todos os rogos do mordomo ou dos outros monges
conseguiram comover o coração do teimoso abade, que foi amarrado à
árvore, como um réu, e ali ficou a deitar olhares enraivecidos para todos os
lados. O mordomo e os outros monges apelavam para ele, pedindo-lhe que
fizesse o que exigia o bandoleiro, para sair de suas mãos mais depressa,
mas foi somente depois de longa persuasão que o abade consentiu.
Robin e seus homens ouviram reverentes a palavra sagrada, mas, no
momento exato em que se levantavam, apareceu um vigia dizendo que se
aproximavam um cavaleiro e um grupo de vinte soldados. Suspeitando
logo quem poderia ser, ordenou Robin que o abade esperasse. E quando sir
Herbrando — porque era ele — entrou no acampamento, desmontou e
dirigiu-se a Robin, ficou admirado de ver o rosto encolerizado do abade ao
lado do bandoleiro sorridente.
— Deus te salve, Robin, e a ti também, senhor abade.
— Bem-vindo sejas, amável cavaleiro. Vens, sem dúvida, pagar-me o que
te emprestei.
— Assim é, na verdade — respondeu o cavaleiro —, e trago-te um pobre
presente de cem bons arcos de teixo e duas mil setas de ponta de aço, pela
tua bondade.
— Chegaste atrasado, sir Herbrando — disse Robin, rindo —; Nossa
Senhora, que foi tua fiadora por aquela soma, mandou seu mensageiro
trazer o dobro da quantia para me pagar. O bom abade veio aqui, com
oitocentas libras nas malas da garupa e entregou-as a mim.
— Deixa-me sair, sujeito escarninho, gritou o abade, rubro de vergonha.
— Não posso suportar mais isto! — Fizeste recair sobre mim tamanha
vergonha, que jamais poderei esquecê-la!
— Vai-te, então! — disse Robin energicamente. — E lembra-te que, se
fiz recair sobre ti tamanho vexame, tu e teus maus servos têm também
posto fardos nas costas de pobres gentes que muitas vezes os têm
arrastado à miséria e até à morte.
Sem mais palavra, montou o abade e, com seus monges e guardas saiu
do acampamento, tomando o caminho da sua abadia.
Então relatou Robin a sir Herbrando a maneira como o abade lhe caíra
nas mãos, e o cavaleiro respondeu-lhe:
— Creio que para um prelado tão altivo e arrogante como o abade
Roberto de Santa Maria um vexame como o que acabas de lhe infligir há de
consumi-lo. Mas, por Nossa Senhora, ele bem mereceu essa vergonha,
pelos seus atos arrogantes. Tem sido um tirano toda a sua vida, e seus
subalternos não têm feito mais do que imitá-lo.
Robin não recebeu as quatrocentas libras que o cavaleiro lhe quis
entregar, mas aceitou com alegria os cem bons arcos e o sortimento de
flechas que ele trouxera de presente. Sir Herbrando e sua companhia
passaram aquela noite na floresta, com Robin, e de manhã, com palavras
muito corteses e amáveis, se despediram — o cavaleiro para voltar ao seu
castelo, e Robin para entrar no interior da floresta.
Quanto ao abade, aconteceu-lhe justamente o que predissera sir
Herbrando. Sua desgraça e vexame causaram-lhe tanta tristeza, que seu
espírito altivo se abateu, e nunca mais lhe voltou aquela arrogância e
aquele orgulho antigos. Adoeceu, e conservou-se fraco e doente o ano
inteiro, até que, na primavera seguinte, morria de desgosto e de vergonha,
conforme declararam os irmãos da abadia. E fizeram-lhe um riquíssimo
funeral, enterrando-o com grande pompa.
Reuniram-se depois os monges e elegeram um de sua ordem para abade
daquele estabelecimento, e enviaram-no a Londres, para que fosse
primeiramente aceito pelo Primeiro Chanceler da Inglaterra, William de
Longchamp, que governava o país enquanto o rei Ricardo estava na
Palestina, combatendo contra Saladino, pela posse do Santo Sepulcro. Mas
o chanceler, incitado pelos empenhos de seu primo, sir Isenbart de
Belame, tanto quanto pelo seu próprio desejo, rejeitou o homem escolhido
pelos monges, nomeando abade seu sobrinho Roberto de Longchamp.
Este Roberto, como era de esperar, tinha um caráter feroz e velhaco, e
resolveu capturar, fosse como fosse, Robin Hood e dar cabo dele e de seu
bando. Para isso entrou em conluios com seus parentes de Wrangby, com
sir Guy de Gisborne e com o xerife de Nottingham. Muitas emboscadas,
ataques repentinos e estratagemas prepararam eles, tanto na floresta de
Sherwood como na de Barnisdale; mas tão prudente era Robin, tão
numerosos e vigilantes seus esculcas, e tão zelosos se mostraram os
camponeses do mato e das aldeias, avisando-o sempre a tempo — que
jamais o bandoleiro perdeu um só homem em nenhum desses atentados.
Muitas vezes aconteceu que seus inimigos emboscados à sua espera
caíram em armadilhas que ele lhes preparou, só escapando com a perda de
muitas vidas.
Afinal sobreveio uma paz de alguns meses, e alguns dos homens de
Robin julgaram que o xerife e os senhores de Wrangby estavam cansados
daquelas derrotas contínuas, portanto não tentariam mais atacá-los. E um
dia, quando Robin e Much iam andando pelas ruas da cidade de Doncaster,
disfarçados de mercadores, viram um homem a cavalo, na praça do
mercado, deter o animal e gritar a toda força:
— Silêncio! Silêncio! Silêncio! Ouçam todos, bons camponeses,
besteiros, esbirros e soldados, mateiros, guardas da floresta e todos os
bons homens que usam arco! Saibam todos que meu senhor, o nobre
xerife de Nottingham, manda fazer um grande anúncio! E convida todos
os melhores besteiros do norte para virem aos alvos de Nottingham, na
festa de São Pedro, a fim de concorrerem a um concurso de tiro ao arco. O
prêmio é uma flecha excelente, cuja haste será feita de prata pura, e a
ponta e as penas de ouro brilhante. Não há em toda a Inglaterra nenhuma
outra flecha como essa, e aquele que obtiver esse prêmio ficará conhecido
para sempre como o maior e melhor besteiro de toda a região do norte da
Inglaterra, para além de Trent. Deus guarde o rei Ricardo e o Santo
Sepulcro!
E dando volta ao cavalo, o pregoeiro saiu da cidade para levar as notícias
por toda a região, até mesmo à Muralha Romana, que vai de Carlisle a
Newcastle.
— Que pensas disto, chefe? — perguntou Much. — Não será algum
plano astuto do xerife para te atrair, pois sabe bem que nunca deixaste de
dar teus tiros nestes concursos?
— Não duvido, na verdade, que seja esse o seu plano — retrucou Robin,
rindo. — Entretanto, iremos a Nottingham, aconteça o que acontecer, e
veremos se o xerife pode fazer mais em campo aberto do que fez na
floresta.
Quando voltaram para o acampamento, em Stane Lea, onde estavam
então acomodados, não se falava de outra coisa, senão da prova de tiro,
pois muitos tinham ouvido os pregões feitos pelos mensageiros do xerife.
Robin aconselhou-se com seus homens mais eminentes, e ficou decidido
que a maior parte dos bandoleiros iria a Nottingham no dia marcado,
entrando na cidade por portões diferentes, como se viessem de várias
regiões. Todos eles levariam arcos e flechas, mas iriam disfarçados, alguns
de pobres camponeses ou vilões, outros de mateiros ou de caçadores de
aldeia.
— Quanto a mim — disse Robin —, irei de rosto encarvoado e gibão
esfrangalhado, como se fosse um desmazelado sujeito, e seis de vocês
atirarão comigo. O resto se misturará com a multidão, e se suceder que o
xerife se comporte mal, então os arcos serão entesados e as setas zunirão,
no momento em que ele revelar seu traiçoeiro intento.
No dia designado, que amanheceu claro e brilhante, grande era a
multidão que se aglomerou para assistir ao torneio. Tinham colocado os
alvos sobre um terreno nivelado, coberto de verde relva, fora da porta
norte e não longe da forca da qual João Pequeno libertara Will Stuteley.
Para o norte, além dos montículos, ficava a floresta verde e ondulante, e
pelas estradas de Mansfield e Ollerton ainda vinham viajantes em tropel,
ansiosos por ver as grandes festas e tiros de arco, que iam dar fama a toda
a região do norte.
Foi construído um estrado, cheio de assentos, e nele tomaram lugar o
xerife, alguns cavaleiros do Castelo de Nottingham, e seus amigos. Perto
acomodaram-se os oficiais do xerife, que deviam dirigir e fiscalizar as
provas.
A primeira prova era de alvo grande. Foi posto a duzentos metros, e cem
besteiros atiraram nele.
Era permitido a cada um atirar três vezes, e o que não acertasse duas
vezes dentro de certo círculo seria eliminado. Depois foram colocando o
alvo cada vez mais longe e, quando a distância chegou a cerca de trezentos
metros, os cem besteiros estavam reduzidos a vinte.
Ia aumentando a excitação entre o povo. Quando o alvo era removido, e
a mira ou vareta assentada, o povo ia gritando os nomes dos seus favoritos
entre os competidores. Dos sete proscritos, um já tinha sido posto de lado,
e restavam Robin, João Pequeno, Scadlock, que se tornara excelente
besteiro, Much, o filho do moleiro, um bandoleiro chamado Reinaldo e
Gilberto da Mão Branca, que, por uma prática constante, se tornara exímio
no tiro.
Na primeira competição de tiro na vareta, sete dos vinte falharam, e
entre eles Scadlock e Reinaldo. Depois a vareta foi sendo recuada a cada
prova, até que, quando chegou a 350 metros, não restavam senão sete
arqueiros. Entre eles estavam Robin e Gilberto, três eram arqueiros a
serviço do xerife, o sexto era um dos homens de sir Gosberto de Lambley,
e o último era um velho já grisalho, corpulento e de aspecto bravio, que
dissera ser camponês e chamava-se Rafe do Alfanje.
Chegou finalmente a competição mais difícil de todas — “tiros ao
acaso”, como era chamada, e na qual um homem tinha de atirar sobre uma
vareta, tendo de adivinhar a distância, de modo que devia escolher as setas
segundo seu próprio critério, contando ainda com a força da brisa.
— Agora, rapazes fanfarrões de Nottingham, mostrem o seu valor!
Quem gritou estas palavras foi um homem vigoroso, de pescoço de
touro e rosto vermelho, que estava postado junto à cadeira do xerife. Era
Watkin, o chefe dos oficiais ou mordomo do xerife Murdach. Tomara o
lugar de Ricardo Illbeast, e, como ele, fizera o mais que podia em diversas
tentativas de captura de Robin, a quem, entretanto, nunca vira.
— Para a frente, homens do xerife! — gritou um homem no meio do
povo. — Mostrem a esses estrangeiros desprezíveis que os homens de
Sherwood não podem ser vencidos!
— Desprezível és tu — disse uma voz lá na retaguarda. — Os cães de
Yorkshire são de uma raça tal, que fazem os cachorros de Sherwood meter
o rabo entre as pernas.
Soou então a buzina, dando sinal de que a competição tinha começado, e
todos os olhos estavam voltados para os besteiros rivais. Os de
Nottingham atiraram primeiro, e dois deles não acertaram no alvo; a seta
de um foi muito longe, e a do outro muito perto. O terceiro bateu na ponta
da vareta, e o brado de triunfo que se ergueu provava claramente quanto o
povo sentia os outros dois terem perdido.
Foi então a vez de Robin caminhar para a linha de tiro. Tinha posto de
lado o enorme arco de quase dois metros que lhe servira para atirar ao
alvo, e trazia agora um de menos de um metro de comprimento, mas tão
grosso que algumas pessoas riram ao vê-lo, e um jovem escudeiro gritou-
lhe, zombando:
— Pensará o maltrapilho que pode atirar com aquele moirão de cerca?
— Fica a duzentos passos e vê — disse uma voz tranquila por ali perto.
E outra voz acrescentava:
— Ele te atravessará as costelas com uma flecha a trezentos passos — e
a tua cota de malha também.
Robin, de túnica e calções pardos, todos esfrangalhados, e um capuz da
mesma cor, levantou o arco, ajustou a seta e ficou um bom pedaço a olhar
para o alvo. Deixara crescer cabelo e barba, que estavam emaranhados.
Com uma tinta vermelha dera certo colorido às faces, de modo que parecia
um frequentador assíduo de tabernas, e muitos se admiravam de ter
atirado tão bem em um alvo tão afastado.
— Trabalho difícil, não, beberrão? — gritou um dos engraçados da
cidade.
E a pilhéria provocou enorme risada. O besteiro não pareceu notar isso,
e soltou a seta. Todos esticavam o pescoço para ver o trajeto; e ergueu-se
primeiro um murmúrio de assombro, e depois um grito de sincera
admiração. A vareta fora partida em duas!
— Bom tiro, camponês! — disse um homem da cidade, bem-vestido,
indo bater nas costas de Robin. — Tua mão e teu olho devem ser mais
firmes do que se poderia julgar pelo teu rosto.
Olhou atentamente para o rosto de Robin, que reconheceu nele um
viajante a quem tivera ocasião de obsequiar na floresta. O homem também
o reconheceu e murmurou:
— Logo vi que eras tu. Cuidado com o xerife! Anda traição por aqui!
E voltou para o seu lugar, no meio da multidão. Os outros três atiraram
também ao alvo. Rafe do Alfanje falhou: sua flecha ficou a um palmo da
vareta; e a do homem de sir Gosberto voou longe. Agora era a vez de
Gilberto da Mão Branca. Ele mediu com os olhos, cuidadosamente, a
distância da vareta, escolheu uma flecha com uma pena reta, e
descarregou-a. A seta fez uma bela curva para a vareta, e por um momento,
pareceu que ia bater no alvo. Mas uma brisa apanhou-a e virou-a, de modo
que ela voou para a esquerda, a largura de uma mão. A multidão aplaudiu,
entretanto, porque a mocidade e as maneiras corteses do rapaz lhe
captaram a simpatia.
A competição agora era entre um dos homens do xerife, Luke, o
Vermelho, e Robin. No tiro seguinte não houve diferença entre eles,
porque a seta de ambos feriu a vareta. Depois o xerife disse:
— Vocês empataram, mas os dois não podem obter a flecha de ouro.
Procurem algum jogo que mostre qual é o besteiro mais destro.
— Se dás licença, senhor xerife — disse Robin —, eu proponho que não
olhemos para a vareta enquanto ela for levada para outro ponto, na
distância que escolheres; então nos viraremos e atiraremos, quando
alguém contar até três. O que partir a vareta será declarado vencedor.
Ouviram-se murmúrios de admiração, e alguns motejos, a esta proposta.
Era o caso que um atirador tinha de calcular a distância, escolher a seta e
atirar em um espaço de tempo que dava margem muito pequena — se é
que dava alguma — para avaliar o tiro.
Então o xerife perguntou ao seu homem:
— Queres aceitar isto, Luke, o Vermelho?
Este coçou a barba vermelha por um momento, depois disse:
— Já vi este tiro, mas apenas três vezes, e só em uma delas a vara foi
tocada; isso foi quando eu era criança. Foi o velho Bat, o Cambaio, que era
besteiro-mor de Estêvão de Gamwell, quem bateu na vara, e verificou-se
que ninguém, no norte de Trent, pôde vencê-lo naquele dia. Se puderes
quebrar a vara, por mais miserável que pareças, és na verdade um besteiro
como não se vê no Norte há uns bons cinquenta anos.
— Oh! — disse Robin, rindo negligentemente. — Servi um bom amo,
que me ensinou a atirar ao arco, mas o tiro que proponho não é tão difícil
como pensas. Queres experimentá-lo?
— Sim, eu quero — retrucou Luke, iludido pelo ar despreocupado do
outro —, mas já vou te dizendo que não acertarei na vareta.
Ordenaram então aos dois atiradores que se voltassem de costas,
enquanto um oficial do xerife corria para onde estava a vareta e mudava-a
para dez passos mais longe. E, a uma ordem do xerife, Luke virou-se, e
enquanto Watkin, chefe dos oficiais, contava lentamente — “Um… dois…
três!” — ele atirou sua flecha. A grande multidão reteve o alento quando a
seta partiu, e soltaram todos um gemido de desapontamento quando a
viram curvar-se para o chão e cravar-se na terra, a uns seis passos aquém
da vara.
— Agora, tu, fanfarrão! — gritou raivosamente o oficial de pescoço de
touro para Robin.
E, falando muito depressa, gritou:
— Vira-te! Um, dois, três!
Partiu a flecha quando era pronunciada a palavra “três”, e os homens
esticavam o pescoço para verificar o voo. Rápida e certeira ela lá se foi, e
partiu a vareta em dois pedaços. Os homens soltaram um suspiro, mas,
apesar de a maioria estar contra Robin, por ser estrangeiro e não ter
aspecto muito atraente, a beleza daquele tiro levou-os a reconhecer que
ele tinha ganhado justamente o prêmio.
Luke, o Vermelho, foi ter com Robin de mão estendida, dizendo-lhe, ao
fixar nele seus olhos leais:
— És homem mais digno do que pareces, besteiro. Mão tão firme e olho
tão agudo não condizem com um ar tão descuidado como esse, e creio que
hás de ser homem mais bem aquinhoado do que pareces.
Sem responder, Robin apertou-lhe a mão e desviou os olhos.
Soou a buzina do xerife, indicando que iam ser entregues os prêmios.
Eram dez, para os que tinham atirado melhor, segundo certas convenções,
e foram chamados, um por um, até a cadeira do xerife; e sua mulher
ofereceu a cada um dos vencedores o seu presente.
Quando chegou a vez de Robin, ele foi ousadamente para a frente e
dobrou o joelho, com a maior cortesia, na frente da dama. E o xerife disse:
— Camponês, demonstraste ter mais perícia do que todos os que
atiraram hoje aqui. Se queres mudar a tua condição atual, e deixar teu
amo, tomo-te a meu serviço. Vem, besteiro, e recebe da mão de minha
mulher a seta de ouro que ganhaste galhardamente.
— Aproximou-se o bandoleiro de dona Margarida, que lhe entregou o
prêmio, com um sorriso bondoso. No momento de recebê-lo, ergueu ele os
olhos, e viu-a empalidecer e abrir a boca, como se fosse falar, mas ela
mordeu os lábios e nada disse: retribuiu-lhe apenas a cortesia, e rompeu
em uma risada. E Robin compreendeu que ela o reconhecera, mas que não
o atraiçoaria.
É que, vendo o xerife convidar o bandoleiro, que noutro tempo o
sujeitara a tão grande vexame, para o seu serviço, ela achara aquilo tão
cômico, que não pôde reter a risada.
O xerife olhou para ela, admirado, e depois lançou um olhar suspeitoso
para Robin, que dera volta, e ia procurando sumir-se entre a multidão.
Enquanto isso, homens e mulheres o cercavam de todos os lados,
cumprimentando-o com palavras simples mas alegres, e o bandoleiro não
se podia furtar aos olhos do xerife. Este levantou-se imediatamente e
cochichou alguma coisa ao homem de pescoço de touro, que, virando-se,
avistou Robin no meio de todos aqueles homens armados de arco, que
pareciam falar com ele, quando se iam afastando. Watkin, o mordomo,
atirou-se para a frente e foi se metendo por entre os arqueiros, ordenando-
lhes que abrissem caminho, em nome do xerife.
De repente os homens voltaram-se para ele, empurrando-o, mas o
homem gritou:
— Deixem-me passar, vilões! Vou mandar açoitá-los e marcá-los a ferro
quente! Eu sou Watkin, o mordomo do xerife!
— Deixem-no passar, rapazes! — gritou uma voz clara.
Era Robin, que dava esta ordem aos seus homens, reunidos em volta
dele.
E Watkin, mesmo de onde estava, a alguns passos de distância do
bandoleiro, gritou-lhe:
— Eu te prendo, Robin Hood, proscrito, em nome do rei!
— Basta de bramidos, touro da cidade! — disse João Pequeno, que
estava a seu lado.
E, erguendo o homem do xerife, o gigante correu com ele para longe da
multidão, atirando-o pesadamente ao solo, onde o mordomo ficou por um
momento, desorientado.
Soou então uma trompa de caça, soltando uma nota clara e vibrante. Era
o chamado dos homens da floresta, e de todos os lados surgiram
proscritos. Outra buzina soou, e os homens do xerife começaram a formar
também, com os arcos retesados.
Homens e mulheres, que se achavam amontoados entre os dois partidos,
correram assustados, e, a uma palavra do xerife, seus homens lançaram
uma chuva de setas contra os da floresta. Imediatamente, entretanto, as
enormes flechas dos bandoleiros zuniram, em resposta tão densa e tão
forte que os homens do xerife, pelo menos todos quantos podiam correr,
dispararam, em busca de abrigo.
Lentamente e em boa ordem retiraram-se os bandoleiros, enviando
sempre suas flechas aos soldados do xerife, que agora, sob o comando
furibundo de Watkin, os perseguiam de perto, indo de abrigo em abrigo.
De repente viram os proscritos que um homem a cavalo saía a toda a
brida de perto do xerife e dirigia-se para a cidade.
— Isto quer dizer, rapazes, que vão pedir auxílio ao castelo — disse João
Pequeno. — Mas quando tivermos alcançado a mata, de pouco lhes servirá
esse ajutório.
Contudo, a floresta ainda ficava a uma milha, e os bandoleiros não
podiam correr. De vez em quando se voltavam e lançavam flechas aos
perseguidores, enquanto se iam conservando a boa distância deles, e
cuidando para não serem apanhados de flanco.
De repente, soltando um gemido, caía João Pequeno, com uma flecha
espetada no joelho.
— Não posso ir mais longe, rapazes! — gritou ele.
Robin foi examinar o ferimento, enquanto os homens do xerife, vendo o
fracasso dos bandoleiros, avançavam mais depressa.
— Chefe — disse o ferido —, pelo amor que me tens, não me deixes cair
vivo nas mãos do xerife e dos seus homens! Antes disso, eu te suplico,
traspassa meu coração com a tua espada!
— Não! Pela Santa Virgem! — gritou Robin, cheio de aflição. — Não te
mataria, nem por todo o ouro da Inglaterra! Nós te carregaremos!
— Sim — disse Much —, nunca me separarei de ti, velho maroto!
Dizendo isso, ergueu João, acomodando-o às costas — as suas largas
costas —, e o bando continuou a marcha. De vez em quando Much
depunha João no solo por um momento e, ajustando uma flecha, mandava-
a aos homens do xerife.
Viram então sair do portão da cidade uma grande companhia de
arqueiros a cavalo, o que não agradou nada a Robin. Não podia esperar
alcançar o abrigo da floresta antes que aquela tropa lhes caísse em cima, e,
se continuassem a combater, seriam derrotados. Olhava em redor,
procurando algum meio de escapar, mas nada via. Já os homens montados
se aproximavam, e os homens do xerife seguravam-lhes nos estribos de
couro, correndo ao lado deles. Vinham à frente da tropa três cavaleiros, e o
xerife à frente destes.
Retiravam-se os bandoleiros rapidamente, e Robin comandava a fuga ao
longo de um vale ou depressão, que os levaria a um bosquete, onde
supunha que poderiam fazer uma resistência desesperada. Nisto lembrou-
se o bandoleiro, não sem certa tristeza, de que estavam perto do castelo de
sir Ricardo de Lee. Sabia que era seu amigo e que o auxiliaria, se lho
pedisse; mas sabendo também que, ajudando um proscrito, sir Ricardo
perderia as terras e a vida, resolveu lutar sozinho a sua última batalha,
ainda que se achasse apenas à distância de um tiro de arco do castelo.
Alcançaram o grupo de árvores, e Robin dispôs seus homens, dando-lhes
ordens breves e incisivas. Atrás deles erguia-se o castelo de sir Ricardo,
mas o bandoleiro não olhava para aquele lado, porque concentrava toda a
atenção nos inimigos, que se aproximavam agora rapidamente. De repente
uma figurinha subiu para o alto onde estavam, e chegou ao pé de Robin.
Era Ket, o Gnomo.
— Chefe — disse ele, ofegante —, mandaram uma tropa rodear pelo
Levin Oak, para te apanhar pela retaguarda. Olha, lá vêm eles!
Então sentiu Robin o desespero no coração. Viu que era impossível a
resistência.
Mas naquele mesmo momento vinha, galopando furiosamente, um
cavaleiro que saíra do castelo. Era sir Ricardo de Lee em pessoa. E gritou:
— Robin! Robin! Se ficas aí, estás perdido! Corre para o castelo! Vem
imediatamente, homem, senão tudo está perdido!
— Mas tu perdes vida e bens, se me deres abrigo! — gritou Robin.
— Assim seja! Perco tudo de qualquer maneira, porque se ficas aqui, fico
contigo, Robin, e contigo acabo!
—- Vamos então! Amigo fiel, pois sei que o és! Aceito o teu auxílio e
agradeço tua grande nobreza.
Mal tiveram tempo de alcançar a ponte levadiça. Retiraram-se em boa
ordem, escapando a custo de serem apanhados pela retaguarda, pelos
cavalheiros que vinham à disparada, mas uma densa nuvem de setas os
atingiu, mesmo quando estavam à beira do fosso. E, quando voltaram a si,
viram Robin, que fora o último a atravessar a ponte, já do outro lado; a
ponte rangeu e bramiu, e então caiu pesadamente, deixando apenas a água
do abismo entre eles e a sua presa. Por um momento a tropa, chefiada por
Watkin, o oficial do xerife, ficou a gritar ameaças para os muros, mas
afinal uma chuva de setas obrigou-os a fugir a toda pressa, levando seus
mortos e feridos. Correram para se reunir ao grosso das forças do xerife,
que estavam vindo, mas pararam a uma distância respeitosa dos muros do
castelo, em cujas ameias luziam agora capacetes de aço, entre os capuzes
dos bandoleiros.
Mandou então o xerife um arauto, protegido pela bandeira de
parlamentário, acusar sir Ricardo de abrigar e ajudar um proscrito contra
os direitos e as leis do rei; ao que sir Ricardo deu uma corajosa resposta,
em forma legal, dizendo que ele queria “manter os atos que praticara sobre
todas as terras que recebera do rei, porque era um cavaleiro”. Então o
xerife resolveu ir embora, pois não tinha autoridade para sitiar sir Ricardo,
que teria de ser julgado pelo rei, ou pelo seu ministro.
E quando o cavaleiro voltou dos muros, depois de ter dado resposta ao
xerife, disse-lhe Robin:
— Sir Ricardo, é esta a ação mais corajosa que até aqui tens praticado, e
juro agora que, suceda o que suceder, eu e meus homens te ajudaremos até
o fim; seja quando for que precises de auxílio, estarei imediatamente
contigo.
— Robin — respondeu o cavaleiro —, a nenhum homem amo mais do
que a ti no mundo, porque sei que és justo e bravo, e antes queria perder
tudo do que te ver caído nas mãos do xerife. Mas tenho más notícias para
ti, Robin: Walter, o mordomo de sir Ricardo FitzWalter, mandou-me um
recado hoje de manhã, dizendo que seu amo morreu e que a bela Marian
está em sério perigo, pois ela pode cair nas mãos do seu vizinho mais
forte, que pode obrigá-la a casar com algum deles e apoderar-se de suas
terras.
— Oh! Pela Santa Cruz! Chegou então a hora em que tomarei,
conforme minha promessa, a meiga Marian a meu cuidado. Sir Ricardo,
desejo veementemente ir a Malaset e trazer a Bela Marian para a floresta.
O padre Tuck nos casará, e ela terá uma vida tranquila, comigo e com
meus bons companheiros.
E Robin escolheu, sem perda de tempo, vinte de seus melhores homens,
e, assim que tudo ficou pronto — arreios, armas e cavalos trazidos de seus
secretos esconderijos, nas cavernas da floresta — o bando partiu para os
brejos do ocidente, onde, no lindo vale de Lancashire, assentava o castelo
de Malaset, no meio de seu vasto domínio.
Na tarde do segundo dia aproximaram-se do castelo, que viram estar
todo fechado, escuro e silencioso. A um toque claro de trompa, apareceu
um homem no portão. Era Walter, o mordomo; com o auxílio dos criados,
um instante depois era abaixada a ponte, e Robin e seus homens muito
bem recebidos pelo valente mordomo no grande saguão.
— Onde está lady, Marian, Walter?
— Ai, senhor Robin! Eu não sei! — respondeu Walter, torcendo as
mãos e derramando lágrimas. — Se tu mesmo não sabes, então eu estou
perdido, na verdade, porque sempre julguei que ela havia fugido para junto
de ti. A senhora dormiu aqui esta noite, mas hoje de manhã não se achou
nenhum sinal dela em parte alguma do castelo!
E foi com a maior tristeza a sombrear-lhe o rosto que Robin respondeu:
— Que coisa dura de ouvir! Achas que algum lorde ladrão ou algum
parente deles a apanhou?
— Alguns têm vindo aqui, desde que, há três dias, meu senhor jaz no seu
túmulo, lá na igreja; mas, com seu espírito vivo e língua desembaraçada,
minha senhora falava-lhes claramente, despedindo-os, e cada um ia
satisfeito com a ideia de que era ele o parente a quem ela recorreria,
quando tivesse abrandado sua dor. Ontem veio o sacristão da Abadia de
Santa Maria, trazendo a ordem do ministro do rei, o próprio William de
Longchamp, bispo de Ely, determinando que ela se considerasse, e a tudo
quanto possuía, sob a guarda do rei, e que amanhã viria sir Scrivel de
Catsty, que seria o mordomo do rei para guardá-la de todo mal.
— Scrivel de Catsty! — bradou Robin, indignado. — Scrivel, o Pata de
gato, ladrão como um gato-do-mato, parente próximo de Isenbart de
Belame! Sim, compreendo tudo! O novo abade de Santa Maria consegue
que o tio, o chanceler, fizesse isso, e, sob a capa de ser apenas o mordomo
dos bens do rei, deixará que aquela horda perversa de Wrangby se aposse
de tudo. Mas pela Santa Cruz! Tenho de saber o que foi feito de Marian, e
sem perda de tempo!
No outro dia, e nos seguintes, Robin e seus homens exploraram os
brejais de Lancashire numa extensão de muitas milhas, perguntando às
gentes pobres, aos vilões, aos mendigos e vagabundos, a todas as pessoas
que encontravam na estrada se tinham visto uma moça alta, de cabelos
castanhos, de porte altivo e presença real, só ou em poder de um bando de
cavaleiros ou soldados. Mas tudo foi em vão. Ninguém vira a jovem, e, ao
fim de uma semana, Robin achava-se desesperado.
Entrementes Walter mandou-lhe um recado: que Scrivel de Catsty, com
cem homens, tinha tomado posse do castelo, e ficara furioso ao saber do
desaparecimento de Marian. E também despachara gente para todos os
lados, a indagar onde se achava ela. Tão encarniçado se mostrava que
Walter pensou que nem ele nem os donos de Wrangby tinham tido parte
no rapto da moça, e que ela devia ter fugido sozinha, ou levada por algum
parente.
Triste e acabrunhado, resolveu Robin voltar para Barnisdale; e lá se
foram, ele e seu bando, de coração aflito, para o acampamento da floresta,
perto de Stane Lea, em uma manhã de sol brilhante, enquanto os
passarinhos cantavam nas árvores e tudo parecia alegre e cheio de
encantos. Mal tinha Robin apeado, quando ouviu um tropel de cavalo que
se aproximava rapidamente, vindo do sul, e, por entre os galhos das
árvores, viu uma dama que vinha montada, em companhia de outra
pessoa. Levantou-se depressa, e no primeiro instante sentiu renascer-lhe a
alegria, porque pensou que era Marian. Mas logo depois reconheceu que a
senhora era a esposa de sir Ricardo de Lee.
Vendo-a aproximar-se, Robin pôs cortesmente um joelho em terra. Ela
vinha ofegante e muito agitada.
— Deus te guarde, Robin Hood, e a todos os teus companheiros! Venho
pedir-te um favor.
— Podes contar comigo, senhora, não somente por ti mesma, mas
também por causa do teu marido.
— Pois é em favor dele mesmo que te venho pedir isto. Ele foi preso
pelo xerife — estava caçando ainda há uma hora perto do rio que atravessa
o seu parque em Woodsett, quando o xerife e seus homens saíram do
mato e o apanharam. Amarraram-no a um cavalo e a esta hora vai a
caminho de Nottingham; e, se não corres depressa, é bem possível que
dentro em pouco esteja morto ou metido em uma prisão imunda!
Robin, em uma fúria espantosa, bradou:
— Pela Santa Virgem! Esta o xerife há de pagar! Senhora, espera aqui
com tua criada, até que voltemos. Se não trouxermos sir Ricardo, então
não voltarei vivo!
Soprou na buzina, cujas notas estranhas ressoaram por toda a floresta, e
esculcas e vigias, no raio de uma milha, ouviram o claro chamado.
Correram para Stane Lea, e, depois de todos reunidos, podiam-se contar
140 homens. De arco em punho, esperavam a palavra do chefe, que estava
de pé ao lado da dama, ainda sentada no seu palafrém; e seus homens bem
viram, pelo fulgor de seus olhos, que Robin estava profundamente
comovido.
— Rapazes, aqueles que estavam comigo, quando atiramos ao alvo em
Nottingham, sabem com quanta nobreza nos tratou o bravo marido desta
senhora, e viram como ele nos salvou da morte. Agora ele foi preso pelo
xerife, que, sabendo-o perto de Barnisdale, ousou aventurar-se nas
estradas de nossa floresta e prendeu sir Ricardo em Woodsett, onde o
cavaleiro possui um parque de caça. E agora, rapazes, eu vou resgatar o
cavaleiro e combater com o xerife. Quem quer ir comigo?
Todos os bandoleiros ergueram o arco, em sinal de adesão, e um grande
brado ressoou na floresta. Robin sorria, altivo, ao ver tanta dedicação.
— Obrigado, meus rapazes. Mas é impossível irem todos. Quando o
xerife tem consigo uma grande força, oitenta me bastam. Os outros devem
ficar para guardar o campo e a senhora do cavaleiro.
Sem muita demora estavam todos prontos, e o bando, com seu chefe à
frente, mergulhou na mata, dirigindo-se apressadamente para o sul, rumo
à estrada que o xerife devia ter tomado, para voltar a Nottingham. Os
espias do xerife souberam que Robin desaparecera de Barnisdale, e que
João Pequeno, ainda impossibilitado de se mover devido ao ferimento no
joelho, ficara comandando. Por isso, ouvindo dizer que sir Ricardo deixara
seu castelo de Linden Lea, indo para uma cabana de caça dos arredores de
Barnisdale, achara o xerife que era excelente oportunidade para capturar o
cavaleiro; ganharia assim os louvores do bispo de Ely, o chanceler do rei,
que ficara furioso quando lhe contaram que o cavaleiro prestara auxílio a
Robin Hood e desrespeitara a lei.
Agora, tendo conseguido prender o cavaleiro, estava o xerife ansioso por
se afastar daqueles lugares perigosos, pois temia que Robin aparecesse a
qualquer hora. Insistia portanto com seus homens, para que se
apressassem, e enquanto ele próprio cavalgava ao lado de sir Ricardo,
seguramente amarrado a um cavalo, a companhia de cinquenta soldados
tinha de seguir a pé, e, castigados pelo sol ardente do meio-dia, suavam e
fatigavam-se, andando no passo determinado pelo xerife.
Quando chegaram à cidade de Worksop, que ficava no caminho, ele
somente permitiu um alto, diante da estalagem principal, para que seus
homens tomassem um gole do odre, e não consentiu que nenhum deles
descansasse junto ao castanheiro que estendia sua vasta sombra sobre a
estrada abrasada. E tiveram de se pôr de novo a caminho, levantando com
os pés a poeira que dali a pouco trecho lhes secaria de novo a garganta.
Alcançaram afinal a mata cerrada e os morros da floresta de Clumber, e
o xerife, embora já sentisse o espírito mais tranquilo, não julgou oportuno
afrouxar o passo em que iam. À sombra dos grandes carvalhos e
castanheiros, contudo, os homens não se sentiam tão cansados e andavam
com mais vontade.
Ficava-lhes no caminho um morro íngreme, chamado Hagger Scar, e iam
subindo esforçadamente, a suar, quando ouviram de repente uma voz
áspera, que gritava:
— Alto!
E no mesmo instante, olhando em volta, viram os soldados que de cada
lado da estrada havia besteiros, todos com os arcos tensos e as setas a
luzir, apontado-lhes para o peito. Toda a companhia parou imediatamente,
e os homens murmuravam, indignados, de si para consigo.
Fora do mato, a uns dez passos do xerife, estava Robin, de arco tenso e
olhar altivo.
— Então, xerife, soubeste que eu andava longe e aproveitaste para raptar
o meu amigo! Mas seria melhor, para ti, que tivesses ficado dentro dos
muros da tua cidade. Digo-te que não te pouparei mais! Há sete anos que
não andava tanto a pé, como tive de caminhar hoje, e isso é mau agouro
para ti. Vamos! Reza a tua última oração, porque chegou a tua hora!
Mas, sabendo que chegara a sua hora, o xerife tornou-se valente:
— Ah! “Cabeça de lobo”! Sem lei! O chanceler há de bater todas as
moitas e cerrados destas matas para te apanhar, se me matares. E eu…
Não disse mais palavra. A flecha de Robin atravessou-lhe a cota de
malha, e ele vacilou caiu da sela, morto. Então Robin foi cortar os laços
que prendiam o cavaleiro, ajudando-o a descer do cavalo.
— E agora — disse ele aos homens do xerife — atirem essas armas ao
chão!
Feito isso, ordenou-lhes que pegassem no corpo de seu amo e
prosseguissem a viagem.
Obedeceram os homens, e não tardou que os cinquenta soldados,
desarmados e com o coração cheio de amargura, por se verem assim
derrotados pelo altivo bandoleiro, desaparecessem na crista do morro.
Voltando-se então para o cavaleiro, disse-lhe Robin:
— Sir Ricardo, bem-vindo sejas nos nossos bosques! Deves ficar agora
comigo e com meus camaradas, e aprender a andar a pé pelo barro, o
musgo e os fetos. Lastimo muito que um cavaleiro tenha de deixar seu
castelo em poder de seus inimigos sem um golpe ao menos, e ir para a
floresta, mas assim é preciso, quando nada mais se pode fazer!
— Agradeço-te de todo o coração, Robin! Vieste livrar-me da prisão e da
morte. Quanto a ir viver na floresta contigo e com teus companheiros, não
desejo vida melhor, pois que não poderia viver com homens mais bravos.
Depois partiram, pela floresta solitária e selvagem, e antes do anoitecer
chegaram ao sítio onde ficara a dama; e grandes foram, na verdade, tanto a
sua alegria como a gratidão que mostrava a Robin e a seus camaradas, por
lhe terem restituído o esposo. Preparou-se então um festim, e o cavaleiro e
sua mulher foram tratados principescamente e declararam ali que, apesar
de terem perdido castelo e terras, nunca se haviam sentido mais felizes do
que naquela noite, a primeira de sua nova vida, como proscritos na mata.
Quando o sono trouxera o sossego ao acampamento, e não se ouvia som
algum, a não ser o crepitar dos tições nas fogueiras quase extintas e o
farfalhar das árvores, ou o murmúrio do regato, Robin internou-se na
floresta: o desaparecimento da Bela Marian afligia-o terrivelmente.
Imaginava-a cativa em algum castelo, ansiosa por liberdade, oprimida
pelos desmandos de algum parente tirano ou outro cavaleiro ladrão, que a
tivesse capturado com a mira no rico dote que teria aquele que a
desposasse.
Assim ansioso, o bandoleiro resolveu ir até os verdes cômoros onde
viviam Ket e seu irmão Hob do Morro, para indagar se algum dos
homúnculos tivera alguma notícia da moça. Pois, assim que soubera do
perigo que ela corria, ao chegar ao castelo de sir Ricardo, Robin
despachara o gnomo para Malaset, a fim de velar por Marian; mas desde
esse dia nada mais soubera de Ket, e aquele silêncio não era de bom
agouro.
A despeito da densa escuridão em que estavam mergulhados os
caminhos da floresta, o bandoleiro foi sem hesitação pela espessura
adentro, e, depois de cumprimentar o último esculca, que vigiava no seu
posto, foi andando pelas trilhas sombrias com tanta sutileza como um
animal selvagem. Andou assim algumas milhas, aproximando-se de
Twinbarrow Lea, a clareira onde ficavam os montículos verdes que
serviam de morada aos anões. Foi-se aproximando cautelosamente da orla
da clareira e espiou por entre as folhas das árvores.
Do lugar onde estava, agora que seus olhos já se haviam habituado à
escuridão, podia ver perfeitamente os dois cômoros verdes, pois estava do
lado do que ficava mais próximo do mato. Apenas se ouvia o zunido do
vento, perpassando na alta grama, ou soprando na folhagem. Do outro
lado da clareira vinham os pios flébeis de uma coruja, como uma pergunta
incessante:
— Huu… huu… huu?
Mais próximo ouviu Robin um passo furtivo e, voltando-se, avistou a
forma esbelta de um lobo, parado na orla da mata, de pescoço esticado,
para aspirar a brisa que vinha dos cômoros. Ouviu-se então um rumor
súbito mais longe, nas moitas que ficavam para trás; logo em seguida um
grito rápido, e depois retornou o silêncio. Um gato-do-mato apanhara uma
lebre. O lobo sumiu-se na direção daquele som, para ver se poderia roubar
a presa do gato. Saudou-o à chegada um rosnado longo e pouco amistoso,
e Robin pôs-se à escuta, esperando ouvir a fúria do combate, no momento
em que lobo e gato-do-mato se atracassem em luta mortal. Mas o
grunhido extinguiu-se logo: o lobo desistira da contenda.
Olhando outra vez com atenção concentrada para o cômoro, notou
Robin que no flanco do mais afastado aparecia agora uma sombra escura,
que parecia a figura de um homem. Sabia que era naquele que moravam os
dois irmãos, e perguntava consigo se um deles não estaria dormindo ali
naquele momento.
Pensou em soltar o grito de apelo do corvo noturno, sinal que usavam à
noite; mas de repente viu que a figura se movia sem rumor algum. Olhou
com mais atenção. Viu que aquela forma não era de nenhum dos dois
irmãos; era muito maior, e ondulava, e subia com lentidão extraordinária,
para o alto do cômoro.
Percebeu então Robin que era algum inimigo, que procurava espionar o
lugar onde viviam os dois anões. E se fosse um dos seus bandoleiros? A
este pensamento irritou-se, pois sempre ordenara que ninguém se
acercasse daqueles outeiros, nem procurasse forçar a companhia do povo
miúdo. Se fosse, de fato, um de seus homens, esse pagaria caro a façanha!
Já então o homem chegara quase ao topo do montículo, e Robin
adiantou-se sem ruído, com o propósito de ordenar ao homem que saísse
dali. Mas de repente viu, contra a linha do firmamento, a figura de um
homenzinho que saltou e se precipitou sobre a que avistara primeiro. O
homem, apanhado assim de surpresa, tentou erguer-se, mas foi empurrado
violentamente, e as duas figuras uniram-se em uma luta mortal. Robin
subiu correndo o morrinho e viu facas que luziam. Ouvia o resfolegar dos
dois homens, que lutavam na rampa escorregadia do cômoro. Ambos se
esforçavam, perdendo pé num momento, para se firmar logo após.
Justamente no instante em que os alcançava, e reconhecia Ket, o gnomo, e
um de seus bandoleiros, o anão afastava de si o outro, que rolou como um
toro de lenha e foi cair no sopé do cômoro, inerte.
— Que é isto, Ket? Um de meus homens tentou penetrar em tua casa?
— Ele não é do bando, chefe — respondeu o gnomo, ofegante, vedando
com a mão um ferimento que tinha no ombro. — É um espião, que me
seguia há três dias; mas já não espiará mais ninguém!
Desceram do morro e Ket virou o morto com o rosto para cima. Embora
vestido como os bandoleiros de Robin, viu este que não era dos seus.
— E como usa então o pano verde de Lincoln?
— É que ele matou um de teus rapazes, o coitado do Dring, perto de
Brambury, e tirou-lhe a roupa para disfarçar sua espionagem.
— Pobre rapaz! Dring foi sempre fiel. Mas que andaste fazendo lá por
Brambury? Fica muito ao norte, para que fosses lá, por causa da tarefa que
te dei. Por que foste pesquisar tão longe?
E Robin estava ansioso, esperando que Ket tivesse alguma coisa a dizer.
— Pois aí é que está a minha história, chefe. Mas entra no cômoro e
escuta-me, enquanto cuido do meu ferimento.
Robin seguiu Ket, que subia pela encosta do morro ou túmulo maior.
Estivera apenas uma vez em casa do anão, mas sabia que a entrada não era
pela porta do flanco, muito pequena para um homem de talhe comum,
mas pela chaminé, que lhe permitia a descida. No cume do cômoro havia
uma abertura escura, por onde Ket desapareceu, dizendo a Robin que
esperasse enquanto ia buscar uma luz.
Logo depois seu rosto aparecia iluminado por uma tocha, no fundo de
uma abertura oblíqua, cujos lados eram feitos de pedras. Tirando uma aqui
outra ali, Ket aumentava a abertura, e Robin, ora escorregando, ora
caminhando, desceu pela chaminé enviesada. Havia ainda outra passagem
semelhante para descer, mas afinal ele chegou ao pavimento da morada de
Ket e Hob e de sua mãe e irmãs. À luz do facho de Ket, que este prendeu
entre duas pedras, viu Robin que as paredes da caverna eram de pedra,
muito bem-arrajandas, sem argamassa, uma acima da outra, de modo que
toda a sala era arqueada, na forma de uma colmeia, tendo cerca de dois
metros e meio de altura.
Depois que Robin o ajudou cuidar de um ferimento profundo que tinha
no ombro esquerdo, e um ou dois talhos no braço, o homenzinho olhou-o
com ar muito alegre, dizendo-lhe:
— Se me prometes não fazer ruído algum, mostrar-te-ei um tesouro que
achei há pouco.
— Ket! — disse Robin, vivamente. — Achaste, na verdade, a minha
querida noiva? Oh! Meu bom homenzinho!
Em resposta, pediu-lhe Ket que o seguisse a um quarto separado por
meio de uma cortina, feita de um pano de arrás, que devia ter, em outros
tempos, guarnecido o salão de algum lorde. Espiando para dentro, viu
Robin uma figura reclinada sobre um xairel, estendido em cima de uma
camada de fetos cheirosos; era Marian, dormindo, tão suavemente como
se estivesse deitada na sua cama guarnecida de linhos, em Malaset. Ao pé
dela via-se a figura pequenina e leve de uma das irmãs de Ket, cujo cabelo
escuro e rosto pálido contrastavam vivamente com os cachos castanhos e
a pele morena de Marian. Por um longo momento Robin deixou-se ficar
ali, feliz, a olhar encantado para aquele rosto, até que Ket o despertou,
dizendo-lhe baixinho:
— Não fiques aqui a olhar para ela com tanta intensidade, senão seus
olhos se abrirão, à procura dos teus!
Retiraram-se então em silêncio para o canto mais afastado da sala, e Ket
contou sua história:
— Quando me ordenaste que velasse pela tua dama até que voltasses,
cheguei ao castelo do bosque de Malaset ao escurecer e entrei sem que
ninguém me visse. Encontrei lady Marian no seu quarto, já resolvida a
fugir para junto de ti, sem deixar palavra alguma a ninguém, para que nem
Walter nem os parentes dela fossem acusados de ajudá-la a escapar. Pedi-
lhe que te esperasse, mas estava ansiosa por se achar nos brejos
descobertos, e não quis ficar. Saímos do castelo de madrugada, por um
caminho secreto, e rumamos para os brejos. Chefe Robin, tua dama é uma
moça que conhece a floresta, e de ação muito pronta. Receava que algum
de seus inimigos espionasse o castelo e por isso não quis que andássemos
juntos, pois, conforme disse, se nos apanhassem, ou se me matassem, não
ficaria ninguém para te trazer a notícia. Seguíamos o caminho que nos
levaria ao teu encontro; mas ainda não tínhamos andado duas milhas,
quando daqueles maciços de Catrail Ring saíram vinte homens, que se
apoderaram dela. Escapei por pouco, desandando o caminho andado, pois
eles não acreditavam que ela andasse sozinha e me procuraram. Eram
homens do senhor de Thurlstan, que, como sabes, é parente próximo do
dono de Wrangby. Eram de catadura feroz e não se mostraram muito
delicados com minha ama, de modo que mais de uma vez tive ganas de
meter uma seta na garganta do seu chefe, Grame, o Leporino. Eles a
colocaram sobre um cavalo que trouxeram, e que tinham deixado com os
outros em um caminho abrigado do Ring, de onde tinham vigiado o
castelo, lá embaixo, no vale. O dia inteiro eu os segui, e não foi viagem fácil
aquela! Andaram muito, sempre pelos brejos e campos desertos, de modo
que só com muita dificuldade conseguia manter-me no encalço deles,
andando a pé. Naquela noite chegaram à Torre Negra, de Grame, a da
Muralha, e quando ouvi o fragor do portão que se fechava, senti uma dor
no coração, porque bem sabes que aquela torre fortificada é um lugar
medonho, que não se pode partir como um queijo… No dia seguinte
mandaram dois homens a cavalo contar ao malvado Isenbart que tinham
apanhado tua dama, e que agora, sim, poderiam ferir-te no que tinhas de
mais caro. Dois dias vaguei em redor daquela maldita torre negra,
meditando no meio que havia de empregar para entrar lá — e sair com a
minha querida ama ilesa. Na tarde do terceiro dia voltaram os mensageiros
com outros homens, desta vez de sir Isenbart, e trazendo à frente
Balduino, o Matador, que devia levar minha ama para as masmorras de
Wrangby. Tu não sabes, chefe, que nós, o povo pequeno, possuímos
muitos conhecimentos secretos e estranhos, e certos poderes não
conhecidos das outras gentes, que nos permitem submeter e despedaçar
coisas duras e difíceis. Era o caso agora; e com o auxílio desses
conhecimentos, pude descobrir o ponto fraco daquele castelo forte. Creio,
chefe, que não há castelo onde eu não possa entrar, por mais alto e forte
que seja, e apliquei nesse empenho toda a força do meu pensamento.
Entrei lá no escuro, e desci da muralha a minha valente senhora, mas antes
disso deixei minha marca pesada em alguns que dormiam, e que jamais se
levantarão para fazer mal. Caminhamos muito naquela noite, e ela sempre
se mostrou forte e audaciosa. Ficava escondida de dia, enquanto eu saía
em busca de alimento; perto de Brambury Burn encontrei o jovem Dring,
que ficou ansioso por te ir procurar a fim de te dar a boa notícia. Aquele
patife que está morto lá do lado de fora nos viu a conversar, sabia que eu
era teu amigo e, querendo ganhar as boas graças dos donos de Wrangby,
matou Dring, vestiu sua roupa e pôs-se a seguir-me. Cheguei aqui há umas
quatro horas, e minha ama tem estado sempre a dormir.
— Deixa-a dormir, bravo rapaz, porque deve estar muito necessitada
disso. Não tenho palavras para te agradecer, meu bom Ket, por teres
trazido Marian sã e salva depois de tamanho perigo. Que recompensa te
poderei dar, digna de tua ação?
— Chefe, entre nós não há necessidade de recompensas. Eu e os meus
te devemos a vida, e tudo o que nós fizermos — eu e tu — será sempre
pela amizade que dedicamos um ao outro. Não é assim, chefe?
— Assim é — replicou Robin.
E trocaram um aperto de mão, silencioso juramento de amizade
renovada naquele momento.
Robin passou a noite na fortaleza dos duendes, e dormiu ao lado de Ket,
em uma cama de fetos. Pela manhã, grande foi a alegria de Marian, quando
viu Robin. Muito falaram de amor então, e declararam que nunca mais se
separariam, até o fim da vida. E naquele mesmo dia Robin foi procurar o
padre Tuck, para que se preparasse para efetuar o casamento.
ix
O rei Ricardo encontra-se com Robin
v
QUANDO espalhou pela região a notícia do casamento de Robin, o
SE

bandoleiro, com Marian FitzWalter, herdeira do vasto domínio de Malaset


e pupila do rei, admiraram-se alguns da ousadia do bandoleiro, que assim
insultava a autoridade do rei, enquanto outros se alegraram de o ver tão
altivo, mostrando assim que não fazia caso algum do poder dos prelados e
dos senhores orgulhosos.
Por algum tempo, correram boatos de que William de Longchamp, o
chanceler do rei, ia mandar um grande exército às florestas de Clipstone,
Sherwood e Barnisdale, para espezinhar o insolente bandoleiro e dar cabo
dele. Dizia-se que esses exércitos sairiam dos castelos fortes de
Nottingham, ao sul, de Tickhill e Lincoln, a leste, do Peak, a oeste, e de
York, ao norte, e iam varrer a floresta, deixando os corpos de todos os
bandoleiros eriçados de flechas, ou pendurados nas altas árvores.
Mas nada disso sucedeu. Não tardou que William de Longchamp fosse
repelido do reino, em razão da arrogância e opressão que desenvolveu, e
os castelos de Nottingham e de Tickhill caíram nas mãos do conde João,
irmão do rei. Durante cerca de três anos, os nobres e prelados viveram tão
preocupados com suas próprias disputas e querelas, que nem tinham
tempo para se lembrar das insolências de um bandoleiro.
Foi então que todos os homens retos souberam, com grande tristeza,
que seu valente rei Ricardo fora capturado e estava prisioneiro em um
castelo, na Alemanha, que exigia grande soma pelo seu resgate. Para
levantar o dinheiro preciso, todos os homens foram taxados — leigos e
monges, homens da cidade e camponeses, cavaleiros e escudeiros —,
todos tinham de pagar o valor de um quarto do rendimento de seus bens, e
os abades foram obrigados a dar o valor da tosquia de um ano, dos vastos
rebanhos de ovelhas que possuíam.
Muitos pagaram essas taxas resmungando, e a coleta do dinheiro foi
demorada. Entretanto o rei esperava, durante aquelas longas horas, na sua
prisão, sentindo, como disse ele em um poema que escreveu então, e que
ainda se lê hoje, que

“Grande verdade é, bem o vejo comigo:


Não tem o prisioneiro parente, nem amigo!”

Durante todo esse tempo viviam felizes, na floresta, Robin e Marian. Ela
perdera sua vasta propriedade, é verdade, e em vez de morar em um
castelo de grossas paredes, em vez de trajar ricas e finas roupas, vivia em
uma cabana de madeira e vestia-se de pano verde, comum e grosseiro, de
Lincoln, e de peles de animais. Contudo, jamais se sentira tão feliz, pois
estava junto daquele a quem mais amava no mundo e sentia ao redor de si
aquela vida livre dos frescos bosques e o vento indomável que soprava
entre as árvores.
Robin desejava tanto que o seu rei se libertasse que, quando soube
daquelas taxas exigidas para obter o resgate do rei, reuniu a metade de
todo o seu depósito de ouro e prata, vendeu muitas vestimentas ricas e
objetos de luxo, e enviou para Londres todo o dinheiro assim obtido,
muito bem protegido por uma forte guarda, que devia entregar tudo ao
corregedor em pessoa. Quando este abriu o pacote que lhe entregaram os
visitantes, achou dentro um pedaço de pele de gamo, em que estavam
escritas estas palavras:

“De Robin Hood e dos homens livres da Floresta de Sherwood para o


seu bem-amado rei, a quem Deus livre depressa das mãos do inimigo, e
guarde sempre, na pátria e nas terras estrangeiras.”

E dali por diante, Robin separava sempre a metade de tudo o que tomava
aos viajantes e guardava à parte, em um lugar especial e secreto, para
mandar para o resgate do rei. E também quando ouvia dizer que algum
rico rendeiro livre, burguês ou camponês abastado, ou algum avarento —
fosse cavaleiro, abade ou cônego — ainda não pagara a taxa devida, fazia,
em companhia de alguns companheiros escolhidos, uma visita à casa do
que negara para a liberdade do seu rei; se o camponês ou cavaleiro não lhe
resistia, tomava somente a taxa devida, mas se, como sucedia algumas
vezes, o homem recalcitrava e lhe dava combate, então Robin tirava tudo o
que podia encontrar, deixando o avarento e seus homens feridos e com as
bolsas vazias.
E desse modo, receando perder muito mais, muitos se apressavam a
pagar imediatamente a taxa que, a não ser assim, jamais teriam pagado; e
acontecia às vezes que algum daqueles a quem Robin tomara o que era
devido era obrigado a pagar de novo aos coletores do rei.
As histórias sobre o procedimento de Robin espalharam-se por toda a
parte, até que chegaram aos ouvidos do próprio Hamelin, o forte conde de
Warenne, um dos tesoureiros do rei; e ele declarava abertamente que era
uma lástima que o rei não tivesse um exator como Robin em cada
condado, porque se assim fosse estaria liberto dentro de poucas semanas.
Indagou tudo quanto pôde a respeito de Robin, e disse ao ouvido de
muitos nobres e lordes poderosos que gostaria de ver aquele camponês
forte, porque lhe parecia ver nele afinidades consigo próprio.
Quando afinal o rei Ricardo foi libertado da prisão, muitos de seus
inimigos, que tinham se apossado de castelos em nome de seu irmão João,
que maquinara para ficar com a coroa, os abandonaram e fugiram,
temendo o castigo do rei. Outros se viram sitiados pelos amigos do rei
Ricardo, rendendo-se dentro de pouco tempo. Certos cavaleiros tinham
tomado conta do castelo de Nottingham para o conde João; esses
ofereceram resistência séria e não abriram mão da presa. Quando o rei
Ricardo desembarcou em Sandwich, depois que voltou da Alemanha,
ouviu dizer que aquele castelo ainda se recusava a capitular e entregar-se
aos seus conselheiros; irritadíssimo, marchou para aquela cidade e
acampou diante do castelo com um forte exército. Efetuou um assalto, e
com tanto êxito, que capturou parte das obras exteriores, deixando-as em
ruínas, e matando muitos dos defensores.
Dois dias depois os guardas do castelo, entre os quais estava Roberto
Murdach, irmão do xerife que Robin matara, saíram de lá e declararam que
o castelo se rendia, e entregaram-se mercê do rei. Este os recebeu de má
catadura, determinando que fossem presos e guardados à vista.
Um dia, quando rei e seus lordes estavam à mesa jantando, contaram-lhe
que havia um bandoleiro altivo e insolente, que vivia com muitos
proscritos nas florestas de Clipstone, Sherwood e Barnisdale, perto de
Nottingham. Entre todos, o chanceler William de Longchamp mostrou-se
particularmente indignado à enumeração dos crimes de Robin.
— É um desses homens, meu senhor — dizia ele —, que teu pai, o rei
Henrique, de bendita memória, não teria permitido que cometesse tantos
crimes durante todos estes anos; o mais certo é que ele teria mandado um
exército de besteiros às florestas onde ele se oculta, dando caça a todos os
patifes e enforcando-os imediatamente.
— A ti pertencia, senhor bispo, fazer isso — retorquiu Ricardo
energicamente. — Entreguei-te esta terra, para que a governasses com
justiça, acabando com os roubos, assassínios e contendas, mas parece que
ainda aumentaste a confusão e a desordem.
Muitos nobres, que odiavam o bispo, sorriram ao ver a tristeza do olhar
de William de Longchamp. Eles o tinham expulsado da Inglaterra por
causa da sua arrogância e opressão, e a réplica do rei lhes agradara
imensamente.
— Contudo, senhor — disse Hamelin, conde de Warenne —, se o
senhor bispo tivesse podido enforcar aquele forte proscrito, é provável que
Vossa Alteza ainda estivesse na prisão.
Os outros olharam, admirados, para Hamelin, e viram-no a sorrir.
— Como é isso, Hamelin? perguntou o rei. — Que há de comum entre
esse patife e a minha libertação?
— Há isto, sir: se é certo que ele ama muito os veados do seu rei, no que
peca com muitos outros, tanto ricos como pobres, parece que também
ama ao seu rei, e nesse amor ele excede a muitos de teus cavaleiros e
lordes. Ele vive do pedágio que cobra dos viajantes que atravessam as tuas
florestas, e, segundo me informaram, reuniu muita armadura e roupa rica
e dinheiro. Mandou metade dessa riqueza ao corregedor-mor de Londres;
era o resgate de um conde. E mandou também uma mensagem escrita:
“De Robin Hood e dos homens livres de Sherwood, para o seu bem-amado
rei, a quem Deus livre depressa dos inimigos, na pátria e nas terras
estrangeiras.”
E, enquanto os outros homens se entreolhavam, assombrados, o conde
de Warenne continuou:
— Por último, sir, ele arvorou-se em exator desta região, e muito abade
gordo, cônego ou prior, que não tinha pago a taxa que havia de te libertar,
e muito burguês, cavaleiro e camponês avarento receberam uma visita
noturna do bandoleiro, que os obrigou a pagar a taxa. E, por minha fé!
disseram-me que esses tiveram de pagá-la duas vezes — uma a Robin
Hood e outra aos esbirros — o que muito sentiram!
O rei riu francamente, e seus nobres o acompanharam nessa alegria.
— E o pedágio e as taxas que ele assim conseguiu reunir — continuou
Hamelin —, o bandoleiro enviou também, conforme me disseram, ao
corregedor-mor, com esta mensagem: “Para libertar meu senhor, o rei. De
cavaleiros, monges e outros marotos de má vontade, que não o amam nem
um bocadinho — pelas mãos de Robin Hood e seus homens da floresta.”
— Por minha fé! — exclamou o rei, cujo olhar era tão entusiasmado
como o tom da voz. — É um homem que deve ter um senso muito claro do
direito e da justiça! É evidente que ele conhece e ama profundamente a
liberdade, por isso tem muita pena daqueles que se veem encarcerados e
só percebem a luz do sol pelo teto da cela! Pela alma de meu bendito pai,
se eu tivesse outros vassalos tão amorosos e tão preocupados com o meu
bem-estar como este bandoleiro, não teria penado no castelo de Hagenau
tantos meses!
Deitou um olhar sombrio ao redor da mesa, e muitos rostos
empalideceram, porque alguns sabiam que não tinham sido muito zelosos
na obtenção da elevada soma necessária ao resgate do seu rei. Muitos
outros, também, tinham-se deixado seduzir pelas promessas daquele
traidor irmão do rei, o conde João de Mortaigne.
— Mas digo-lhes! Quero ver esse proscrito! Quero saber que espécie de
homem é ele. Em que foi que transgrediu a lei?
— Foi matando meu irmão, sir — disse William de Longchamp. — Ele
matou sir Rogério na estrada real e ainda matou mais cinco soldados do
abade de Santa Maria, em York, daí para cá não têm mais conta os
assassínios e ladroeiras que tem praticado.
— Creio — interveio Hamelin tranquilamente — que ele matou teu
irmão, o lorde bispo, porque sir Rogério tinha raptado a filha de
FitzWalter, lady Marian. Não foi assim? Teu irmão, com um grupo de
criados, atacou-a, e aos seus fâmulos, na floresta, e a teriam levado para o
seu castelo, a que alguns chamam o Castelo da Malvadez, segundo ouvi
dizer; mas aconteceu que aquele bandoleiro andava escondido por ali e
matou sir Rogério, atravessando-lhe a viseira com uma seta.
— Pela Santa Virgem! — disse o rei Ricardo, que sempre tinha um
louvor para os atos de bravura praticados em favor de mulheres
ameaçadas de opressão, ou maltratadas. — Foi esse um feito digno, se,
como penso, não era essa a primeira dama que teu irmão Rogério ofendia,
não, senhor bispo?
William de Longchamp olhou furioso para o conde de Warenne, que
sorria, indiferente aos olhares indignados do seu inimigo.
Voltando-se de novo para o rei, disse o chanceler William:
— Tenho a dizer-te, sir, que se não podes considerar uma grande perda a
morte de meu pobre irmão, ainda assim esse ladrão e assassino, Robin
Hood, praticou ultimamente atos que seguramente não lhe valerão o teu
favor. Matou o xerife de Nottingham, Rodolfo Murdach; casou com lady
Marian, uma de tuas pupilas, e, além disso, induziu um cavaleiro, cujas
terras ficam próximas deste castelo, a acompanhá-lo e roubar e pilhar com
ele nas tuas matas.
— Como se chama esse cavaleiro? —perguntou o rei, indignado.
Parecia muito encolerizado, porque, posto que estivesse disposto a
desculpar muita coisa em um simples camponês, pouca misericórdia devia
esperar dele o cavaleiro que esquecesse sua honra a ponto de se tornar um
bandoleiro.
— É sir Ricardo de Lee, e seu domínio fica perto de Linden Lea, em
Nottingham.
— Eu lhe confisco as terras — disse o rei, muito irritado —, e sua cabeça
lhe rolará dos ombros! Aquele apóstata!
E, dirigindo-se a um dos escribas do tesouro, que ficava por detrás de
sua cadeira, ordenou:
— Escreve a declaração: Que quem quer que apanhe aquele cavaleiro e
lhe corte a cabeça e a traga para mim, ficará com as suas terras!
Mas nisto um velho cavaleiro, saindo de um grupo de lordes muito bem
trajados, que esperavam atrás do rei, adiantou-se e disse:
— Se me dás licença, sir, direi que não existe homem vivo que seja capaz
de se apossar das terras do cavaleiro, enquanto seu amigo Robin e seus
homens puderem andar pela floresta e entesar um arco.
— E quem és tu? — perguntou o rei. — E como o sabes?
— Sou João de Birkin, sir, e sir Ricardo de Lee era meu amigo. Desde que
sir Ricardo fugiu, o novo xerife tem lutado por tomar conta do castelo e
das terras em teu nome, mas nenhum homem poderá morar ali. Quando
andam pelos campos, são varados por setas que vêm dos matos, seus
criados são surrados, ou fogem, e todos os vilões do domínio já se foram
reunir ao seu senhor, lá nos bosques.
— Pela alma de meu pai! — disse o rei, erguendo-se da cadeira. — Se o
que dizes é verdade, então os melhores homens estão nos matos, e os
homens vis são os loucos obedientes à lei, que pretendem governar em
meu lugar, enquanto me deixam penar na prisão. Vou ver esse
bandoleiro… Escuta, Birkin, manda dizer a esse patife fora da lei que terá
a minha proteção para vir e voltar, porque falarei de boa vontade a quem
me ama, ainda que ele mate meu xerife e meus cavaleiros.
Quando o castelo de Nottingham se rendeu ao rei, ele foi caçar na
floresta de Sherwood, que nunca vira, e apreciou muito as árvores
gigantescas que lá encontrou, e as belas clareiras relvosas, os morros
escarpados e as extensas planícies. Naquele dia o grupo do rei tinha
levantado um veado perto de Rufford Brakes; era animal tão veloz e tão
forte que arrastou atrás de si cavaleiros e cães algumas milhas para o
norte, na floresta de Barnisdale, onde, já ao lusco-fusco, o perderam de
vista. Naquela noite o rei ficou na casa dos Monges Negros de Gildingcote,
e no dia seguinte mandou que seus caçadores atravessassem os matos e
proclamassem, pelas diversas aldeias, castelos e cidades, que o veado que
o rei perseguira e perdera de vista na véspera era daquela hora em diante
um “veado real apregoado”, e que ninguém podia matar, ferir, ou perseguir
o dito veado, que era descrito com seus sinais distintivos, pelos quais
qualquer bom mateiro o reconheceria imediatamente.
Diariamente saía o rei para a floresta a caçar, e não ficava sempre em um
sítio; mas não conseguia saber onde se ocultava Robin Hood. Afinal
chamou o monteiro-mor de Sherwood, sir Rodolfo Fitz-Stephen, e
perguntou-lhe:
— Não sabes, sir monteiro, onde meu mensageiro poderá falar com esse
bandoleiro? Não cuidas direito de tuas florestas, visto que permites que
140 proscritos vivam nelas tranquilamente, matando meus veados à
vontade. Vai descobrir onde está esse Robin Hood, senão perdes o teu
cargo.
Ao que Rodolfo Fitz-Stephen, que era homem altivo, respondeu:
— Senhor meu rei, o caso aqui é este: não se trata de saber se eu ou
Vossa Majestade podemos encontrar Robin Hood, mas se ele consentirá
em ser encontrado. Porque não me envergonho de dizer, sir, que nestes
últimos anos tenho trabalhado para capturá-lo e ao seu bando, e tenho
auxiliado xerifes de todos os condados vizinhos dos matos, mas este
bandoleiro é uma verdadeira raposa para se esconder da gente, e tem
muitas tocas. Não obstante, farei tudo o que puder para trazê-lo à tua
presença.
E imediatamente Fitz-Stephen tratou de reunir todos os seus couteiros e
guardas, repetindo-lhes as palavras do rei, e consultou-os sobre a melhor
maneira de satisfazer o desejo de Sua Majestade. Uns davam um parecer,
outros davam outro, até que o couteiro-mor perdeu de todo a paciência e
bradou:
— Sumam-se daqui, patifes sem préstimo! Ainda que aquele bandoleiro
velhaco tivesse só metade da astúcia que tem, poderia mesmo assim se
divertir com sujeitos tão covardes como vocês. Não é de admirar que
nunca se tenham aproximado sequer uma milha dele! Fora daqui com seus
“meios”, que eu conto somente com os recursos do meu engenho!
Saíram os guardas, muito desanimados, a tratar dos seus diversos
deveres. Muitos deles traziam as cicatrizes de ferimentos recebidos em
rixas com Robin e seus homens, e compreendiam que, a não ser que seu
chefe achasse algum jeito de descobrir o bandoleiro e trazê-lo ao rei, todos
eles perderiam seus postos de couteiros; ora, este posto, ainda que de vez
em quando lhes acarretasse golpes e pancadas, dava-lhes várias
oportunidades de ganhar muito dinheiro e de oprimir gentes pobres,
extorquindo-lhes ainda dinheiro e gêneros.
Dali a dois dias, apareceu Fitz-Stephen no castelo de Drakenhole, onde
se alojava o rei, pedindo-lhe uma audiência. Dobrou o joelho diante do rei,
que lhe ordenou que falasse.
— Sir, vim a saber que desde que estás nesta região do norte, o
bandoleiro Robin Hood tem caçado nas estradas próximas de Ollerton,
atacando viajantes ricos e tomando-lhes o que levam consigo. Agora,
deixa-me dar-te conselho sobre a maneira de te aproximares daquele
biltre. Leva contigo cinco ou seis de teus lordes — os que não são muito
levianos, nem de temperamento impulsivo, senão trairiam o teu incógnito
antes que falasses com o proscrito — e pede emprestados ao abade de
Maddersey, do outro lado do rio, hábitos de monge. Eu te guiarei até a
estrada onde Robin e seus camaradas caçam, e aposto minha cabeça que
hás de ver o patife antes que chegues a Nottingham.
— Por minha fé! — disse o rei, alegremente. — Gosto do teu conselho,
monteiro. Vai pedir ao abade roupas de monge para mim e para ti e meus
cinco lordes, e iremos contigo.
Posto que já fosse tarde, Ricardo queria partir imediatamente, e assim
que lhe trouxeram as roupas enfiou o grande hábito negro por cima do seu
rico sobretudo, em que rutilavam os leopardos de Anjou e a flor-de-lis de
França; depois enfiou na cabeça o capuz e um chapéu de abas largas, como
usavam os eclesiásticos em viagem. Estava muito entusiasmado com a
antecipação daquela aventura tão estranha, e caçoava e ria com os cinco
cavaleiros que escolhera para acompanhá-lo. Eram Hamelin, conde de
Warenne, Ranulfo, conde de Chester, Rogério Bigot, William, conde de
Ferrers, e sir Osberto de Scofton.
Dentro de uma hora achavam-se a caminho, e apresentava o grupo a
aparência de cinco monges ricos ou oficiais superiores de alguma grande
abadia, viajando a negócios de sua casa.
Seguiam-nos dois cavalos levando a bagagem, e atrás iam mais três
animais maiores, carregados de provisões, louça de mesa e outros ricos
implementos. Encarregavam-se dos cavalos dois couteiros, disfarçados de
monges serventes.
Andaram uma hora, e afinal escureceu; Ricardo ia todo tempo a caçoar
com seus cavaleiros, e de vez em quando ainda cantava, de tão alegre.
Quando se viram compelidos, devido à escuridão, a fazer alto, lembrou-se
Rodolfo Fitz-Stephen que poderiam fazer um pequeno desvio e ir à casa
dos cônegos de Clumber, onde encontrariam certamente pousada.
Concordou com isso o rei, e depois de um curto trajeto pela floresta foram
recebidos no quarto de hóspedes dos cônegos. A não ser um mercador e
seus três serviçais, que já estavam comendo, e outro homem que pela
aparência e traje descuidado, e pela cítara ou harpa pequena que trazia,
devia ser um menestrel ou trovador, não havia mais ninguém no salão. Os
companheiros do rei não disseram a pessoa alguma quem eram, senão
teriam sido convidados para cear com os cônegos, no salão particular, mas
o rei Ricardo queria permanecer incógnito.
Trouxeram, pois, o farnel, do que tinham trazido as bestas de carga, e o
rei, seus cavaleiros e Rodolfo Fitz-Stephen comeram sobre uma das mesas
do salão, que era escassamente iluminado por três ou quatro tochas que
crepitavam, e brilhavam e fumegavam nos seus socos, presos aos pilares.
De repente o mercador falou, irritado:
— Digo-te que és um louco!
Parecia estar altercando com o trovador, que ria e tangia a cítara,
quando dava alguma resposta mordaz. E continuou:
— Um mãos-rotas como tu não conhece o valor do dinheiro, por isso
não te importas de perdê-lo.
— Quanta canseira e quanto cuidado te causa teu dinheiro, bom
mercador! — replicou o menestrel. — Tu te condenaste pela própria
boca… Aquele que tem dinheiro parece que vive sempre no temor de
perdê-lo. Escuta: Podes dormir tranquilamente à noite? Não estás sempre
com medo que algum salteador te ataque e te corte a garganta por causa da
riqueza? Não! Aquele que tem dinheiro carrega consigo um inimigo
encarniçado, que o tortura e atormenta continuamente. Quanto a mim…
mas eu não tenho dinheiro, e por isso não tenho cuidados.
Tangeu a cítara e rompeu alegremente a entoar um canto jovial.
Dali a um momento voltou a falar, enquanto o outro o olhava, irado:
— Escuta, mercador, eu nunca tive mais de duas libras ao mesmo
tempo, e tinha tanto receio de que algum louco miserável dissesse que eu
as roubara, ou que tentasse tirá-las de mim, que me apressei a gastá-las; e,
quando a última se foi, senti-me de novo feliz. Tenha eu um canto
abrigado do vento para passar a noite, um bocado de carne e de pão, um
gole de vinho à hora de comer, minha cítara e a estrada aberta diante de
mim — e tu, sir mercador, podes ficar com teus livros de contas, teus
fardos de ricas mercadorias e tuas aborrecidas lamentações, porque um
audacioso bandoleiro te tirou algumas miseráveis libras!
— Aquele bandido! — gritou o mercador. — Mas hão de lhe arrancar as
orelhas, hão de lhe queimar os olhos! Se eu tivesse dito exatamente
quanto levava, não me veria agora despojado de todos os vinténs que
ganhara na feira de Nottingham!
— Ah! — exclamou o menestrel, rindo alegremente. — É aí que está o
busílis, não? O bandoleiro armou-te a velha cilada, e tu caíste — tua alma
miserável não podia dizer a verdade; por isso, quando ele verificou que
tinhas mais dinheiro do que confessaste, tirou-te tudo! Ah! Ah! Ah! Sir
mercador, se amasses menos um pouco teu dinheiro, terias agora ainda
algum no bolso.
— Que dizes? — perguntou o rei do seu lugar. — Quem foi que te
roubou?
Ora, os monges não eram bem-vistos entre os mercadores por causa dos
altos direitos e impostos que deles cobravam, para deixá-los vender
gêneros nos mercados, que pertenciam aos padres. Foi, pois, em tom de
zombaria que o mercador respondeu:
— Quem me roubou, senhor padre? Mas quem mais havia de ser, senão
aquele filho de Satanás, aquele patife, o vagabundo Robin Hood? E se
viajares por aquela estrada amanhã, senhor padre, espero que ele faça
contigo o mesmo que fez a mim.
— Oh! Homem! — disse o menestrel, rindo. — Estás tão furioso que
até pareces um urso, com as orelhas mordidas de cachorro! Fala com mais
reverência com a Igreja e seus servidores. Lembra-te, velho rabugento, que
foi um destes que te batizou — se é que algum dia foste batizado, e não és
um cão descrido de maometano — e de que é somente com o seu auxílio
que podes morrer e ser enterrado — se não acabares atirado numa
estrada, como já tenho visto outros mais ricos e com melhor fama do que
tu!
O mercador olhou indignado para o menestrel, soltou alguns grunhidos
e voltou-se para outro lado, envolvendo-se na capa, como se quisesse
esquecer no sono a perda que sofrera.
— Não te agastes com as palavras dele, lorde abade — disse o trovador
—; não é o homem quem fala, mas o mercador despojado de seus lucros.
Olá! Aí vem outro, tão alegre como este mercador é rabugento.
Era outro viajante que batera à porta; aberta esta, entrou um casal de
gente pobre, um casal de velhos; foram se aproximando, andando por
sobre a palha e junco espalhados no chão. Vinham esfarrapados, trazendo
cada um uma pequena trouxa, que continha, sem dúvida, tudo quanto
possuíam.
— Deus vos guarde a todos, cavalheiros — disse o velho.
E era todo sorrisos, enquanto tirava o chapéu rasgado, primeiro para os
monges vestidos de preto, depois para o menestrel; este lhe retribuiu o
cumprimento, curvando-se cerimoniosamente e varrendo o chão com a
pluma esfarrapada do chapéu. Depois disse:
— Eu te saúdo, velho coração contente! Se não soubesse que a taberna
mais próxima fica a 12 compridas milhas daqui, eu te acusaria de trazer no
corpo o bendito licor das rubras uvas. Que há de novo, tiozinho?
— Senhor — disse o velho jovialmente, pondo o saco debaixo de um
banco. — Acabo de topar com a mais bela aventura e com o cavaleiro mais
nobre que poderia imaginar. Nunca ouvi falar sequer de semelhante coisa!
Foi a umas quatro milhas curtas de Ollerton, e… mas que medo eu tive
dos matos! As árvores eram tão cerradas, que a cada momento me parecia
que ia saltar daquela escuridão algum ladrão temeroso, que nos atacaria,
cortando-nos a garganta, por amor dos nossos miseráveis vinténs.
— Porque nós somos gente pobre, senhor — interrompeu a velha, cujo
rosto era belo, apesar da vida de trabalho que atestavam suas mãos calosas
—, somos pobres e não estamos habituados a viajar. Nós vamos tirar
nosso pobre filho da prisão de Tickhill.
— E por que está preso teu filho, senhora? — perguntou lá do meio dos
monges uma voz bondosa, a voz do rei.
A velha ficou quase atordoada, vendo-se assim interpelada por uma
pessoa que falava com um ar de nobreza — porque era apenas uma pobre
mulher de Nottingham. Fez uma mesura e continuou:
— Oh! Senhor padre, ele estava cansado do trabalho tão duro de mestre
Pedro Greatrex, o armeiro, e saiu para ver se melhorava, por mais que eu
lhe pedisse que ficasse conosco. E muitos meses depois soubemos que
tinha sido preso por andar vagando por aí; e esteve tanto tempo
acorrentado na prisão de Tickhill que perdeu um pé. E agora nós vamos
buscá-lo e levá-lo outra vez para casa.
— Mas, boa criatura — disse o rei —, eles não vão tirar teu filho da
prisão para entregá-lo a ti.
— Ah! Mas somos seus pais, senhor padre — disse a velha, com os olhos
cheios de lágrimas —, e estamos certos de que o nosso Dickon não fez
nada de mal. Sim, com certeza nos vão restituir o nosso filho!
— Ah! Menina — disse o marido —, enxuga tuas lágrimas e deixa isso
comigo. Pois o próprio Robin Hood não nos disse que ia providenciar para
que quando chegarmos lá nos entreguem o nosso Dickon?
— E foi Robin o nobre cavaleiro que encontraste hoje, bom velho? —
indagou o rei.
— Sim, senhor padre, com tua licença, era ele. Porque ele mandou um
de seus homens ter conosco — é que estavam nos espiando por entre a
folhagem, quando íamos pela medonha estrada — e quando eu pensava
que era algum ladrão que vinha despojar-nos, imagine! era um mensageiro
de Robin, porque ele queria falar conosco.
— Eu tinha vontade era de fugir, senhores — disse a velha —, tanto
medo tinha desse Robin Hood, porque ele é um grande bandido, segundo
ouço dizer. Mas meu velho disse que…
— Pedi-lhe que não tivesse medo, senhor — continuou o velho,
impaciente com as interrupções da mulher —, e disse-lhe que Robin era
um homem muito bom, conforme me disseram, para roubar assim de
gente pobre, e provavelmente quereria apenas saber se viria atrás de nós
algum rico mercador ou padre — com perdão dos senhores. Mas ele não
nos perguntou nada disso.
E, já agora muito excitado, o rosto corado, os olhos luzindo, falava com
muitos gestos:
— Não, senhores! Tudo o que perguntou era a respeito de nós mesmos,
quem éramos, de onde vínhamos, se andávamos viajando, e por quê.
Mandou então que nos trouxessem comida e vinho — obsequiou-nos
como se fôssemos um lorde e uma lady, servindo-nos por suas próprias
mãos. Senhores, o que estou lhes dizendo é a pura verdade, e o céu me é
testemunha disso. Depois ainda meteu carne e pão na minha trouxa, e uma
garrafa de vinho, e tornou a nos guiar para a estrada. E deu-me ainda isto.
E o velho ergueu na mão uma moeda que luzia fracamente à luz da
tocha. Era uma moedinha de prata. E continuou a narração:
— E suas últimas palavras foram estas: “Velho camarada, vou
providenciar para que teu filho te seja entregue, quando chegares a
Tickhill. E se algum patife te detiver na estrada, e quiser maltratar-te ou
roubar, dize-lhe que Robin te deu passagem livre pela floresta e ordena-lhe
que te deixe prosseguir, senão terá a mesma sorte de Ricardo Illbeast.”
O mercador, que tudo ouvira, gritou com voz estridente:
— Já se viu um patife mais perverso do que este Robin? De mim tirou
tudo o que trazia, e a este vilão velho, que nem conhece o valor de um
vintém, dá um pêni de prata — provavelmente um dos que me roubou! O
bandido!
— Oh! Cala-te, velho tratante! — gritou energicamente o trovador. —
Digo-te que, quando soar a grande trombeta, Robin passará adiante de ti
para o lado de São Pedro — ou senão eu não sei o que seja um homem
bom, um homem de nobres ações. Vou fazer um poema da história que
acabas de contar, velho, porque na verdade é uma ação digna do louvor de
um poeta, e da fama que lhe pode dar um canto de poeta!
Sentaram-se então a comer do seu farnel o velho e a mulher; o
menestrel ficou silencioso e absorto, fechando a meio os olhos e
murmurando palavras entrecortadas lá consigo mesmo: começara a
compor o seu poema, e o mercador e seus homens tornaram a se enrolar
nos capotes, acomodando-se para dormir nos leitos de rodas dispostos
pelo salão.
Entretanto o rei chamara Hamelin, e perguntara-lhe o que queria dizer
Robin com aquelas palavras “a sorte de Ricardo Illbeast”. Contaram-lhe
então o conde e Rodolfo Fitz-Stephen tudo quanto se passara em York, a
fuga do chefe do motim que massacrara os judeus, a captura de Ricardo
Illbeast pelo bandoleiro, que o executara pelos seus grandes crimes, na
presença do próprio sir Lourenço de Raby, chefe dos inspetores da justiça
do rei. Quando acabaram de falar, o rei ficou silencioso por algum tempo,
mergulhado em profunda meditação. Afinal disse:
— Parece-me que este Robin Hood não é um homem vulgar. Quase
chego a crer que ele faz justiça a despeito das leis, e que não agiram bem,
se de fato o forçaram a fugir para os bosques e viver à margem da lei. Ele
rouba dos ricos e dos orgulhosos, que por sua vez tinham roubado para
saciar sua avidez e sua arrogância; mas dá aos pobres e os conforta, coisas
que, ao que parece, ninguém deseja fazer. Verei com prazer esse homem, e,
com a graça de Deus, farei dele um amigo.
O rei ordenou então que preparassem camas, depois retirou-se para
descansar.
No outro dia, ainda muito cedo, não tinha o bando do rei andado ainda
mais de cinco milhas pela estrada solitária de Ollerton, quando de repente
saiu da floresta um homem de elevada estatura, vestido com uma velha
túnica verde e calções largos da mesma cor. Empunhava um enorme arco,
mais alto ainda que ele, e pendia-lhe do flanco uma boa espada; à cinta
trazia ainda uma adaga de aço espanhol. Do seu chapéu de veludo pendia
uma comprida pena de faisão.
Era de porte varonil e olhar penetrante; tinha o rosto e o pescoço
bronzeados pelo sol do verão e o cabelo castanho caía-lhe em cachos sobre
os ombros. Ergueu os olhos vivíssimos para o cavaleiro que ia à frente e
disse, levantando a enorme mão morena:
— Espera, senhor abade. Com licença… mas tens de ficar um momento
comigo.
Levou dois dedos à boca e deu um agudo assobio. Quase imediatamente,
de cada lado da estrada, apareceram uns vinte besteiros, saídos da sombra
das árvores. Vestiam túnica e calções verdes, já gastos e rasgados em
vários pontos, mas eram homens de músculos fortes, de olhar altivo, e
cada um trazia também um arco.
— Somos burgueses desta floresta, senhor abade — disse Robin —,
porque era o próprio chefe o primeiro homem que aparecera — e vivemos
dos veados do rei que por aqui andam, e do que os ricos — lordes,
cavaleiros e padres — nos dão de sua riqueza. Dá-nos, pois, um pouco do
dinheiro que trazes, antes que vás adiante, senhor abade.
— Bom burguês — disse o rei —, não tenho comigo mais de quarenta
libras, porque fiquei com o nosso rei em Blythe e gastei muito lá com os
fidalgos, mas, ainda assim, dar-te-ei com prazer o que tenho.
Ordenou que um dos que figuravam de padres, mais atrás, trouxesse a
sua bolsa, que entregou logo a Robin. Examinando-a, declarou o
bandoleiro:
— Senhor abade, falaste como um homem honesto e nobre. Por isso não
vou procurar teus alforjes, para verificar se disseste a verdade. Aqui estão
vinte libras que te devolvo, pois não desejo que continues tua viagem sem
dinheiro. As outras vinte são o pedágio para que viajes a salvo. Boa viagem,
senhor abade!
Afastou-se o bandoleiro para deixar passar os cavalos e tirou o chapéu,
em uma saudação cheia de dignidade. Mas o abade meteu a mão no peito e
tirou um pedaço de pergaminho, que desdobrou; e a pele esticada estalava.
Nela estavam escritas algumas palavras, e pendia da parte inferior uma
grande bola de lacre vermelho, com um selo gravado.
— Obrigado, bom burguês — disse o rei —, mas trago comigo os
cumprimentos do nosso bom rei Ricardo. Manda-te ele seu selo e uma
ordem: que vás visitá-lo em Nottingham, daqui a três dias — e aqui está
um salvo-conduto para poderes ir e vir.
Robin olhou intensamente para o rosto do abade, meio oculto na sombra
do capuz, quando se aproximou para pegar no pergaminho. Dobrou então
o joelho, em sinal de respeito pela carta do rei, e disse:
— Senhor abade, a nenhum homem, em todo o mundo, amo tanto como
ao meu nobre rei. Sua carta é muito bem-vinda, e visto que me trazes tão
boas notícias, senhor abade, fica para jantar conosco, à nossa moda da
floresta.
— Obrigado; aceito com prazer.
Imediatamente foram o rei e seus cavaleiros acompanhados até um sítio
mais adentro da floresta, onde, à sombra das árvores, os bandoleiros
faziam suas assembleias e onde também era preparado o jantar. Robin
ergueu a trompa e dela tirou um som esquisito. Mal se haviam extinguido
as últimas notas e, de todos os pontos da floresta ao redor da clareira onde
se achavam, apareceram homens de verde, de arco na mão e espada à
cinta. E todos eles tinham aquela aparência de vivacidade e valentia dos
homens habituados ao ar livre e a uma vida de liberdade; e todos eles, ao
se acercarem de Robin, tiravam o chapéu diante do seu chefe.
— Pela alma de meu pai — murmurou Ricardo ao ouvido do conde de
Warenne —, é uma vista soberba esta, mas triste, ao mesmo tempo. Estes
rapazes são belos homens e obedecem mais às ordens deste bandoleiro do
que meus cavaleiros às minhas.
Tanto o rei como seus cavaleiros fizeram honra ao bom jantar que lhes
foi servido, e, terminado este, disse Robin:
— E agora, senhor abade, já viste qual é a maneira de vida que levamos
aqui; e quando estiveres de volta podes dizer ao rei o que viste.
Depois foram instalados alvos, e um grupo de bandoleiros escolhidos
atirou; e tão pequeno era o alvo, e tão distante ficava, que o rei se
maravilhava de que algum deles pudesse acertar. Mais ainda aumentou seu
assombro quando Robin ordenou que fosse assentada uma vara, de cujo
topo pendia uma guirlanda de rosas.
— Aquele que não fizer passar a seta por dentro da guirlanda —
declarou ele — perderá seu arco e setas, e terá de levar uma bofetada do
que for proclamado o melhor besteiro.
— É um tiro maravilhoso — disse Ricardo, sentado junto de seus
cavaleiros. — Oh! Se eu pudesse reunir quinhentos arqueiros tão bons
como estes, para atravessarem o mar comigo! Eu transformaria a cota de
malha do rei de França numa peneira e obrigá-lo-ia a se curvar diante de
mim!
Duas vezes Robin atirou naquele alvo, e em ambas fendeu a vareta. Mas
outros falharam, e muitos foram os que lhe suportaram as bofetadas. Até
Scarlet e João Pequeno tiveram de lhe sentir o peso do braço, mas Gilberto
da Mão Branca era já então quase tão bom no arco como o próprio Robin.
Então este atirou pela terceira vez, mas foi infeliz, porque sua seta escapou
de alcançar a grinalda por três dedos. Os arqueiros riram a bom rir, e
gritaram:
— Um erro! Um erro!
— Eu o confesso — declarou Robin, rindo com eles.
Nesse momento avistou por entre as árvores do outro lado da clareira
um grupo de gente a cavalo que se dirigia para lá. Eram a Bela Marian, sua
mulher, vestida de verde, trazendo também seu arco e flechas, e sir
Ricardo de Lee, Alan de Dale e dona Alice, sua mulher.
Voltando-se para o abade, disse Robin:
— Entrego-te meu arco, senhor abade, porque és meu mestre. Dá-me o
maior murro que puderes.
— Isso não fica bem à minha ordem — disse o abade, puxando o capuz
para furtar o rosto ao agudo olhar de Robin e aos olhos do grupo que se
vinha aproximando.
— Bate de rijo, senhor abade — instou Robin. — Dou-te plena
autorização.
Sorrindo, o rei arregaçou a manga e deu um murro tão forte no peito de
Robin, que o bandoleiro recuou alguns passos e quase caiu ao chão.
Conseguiu, contudo, ficar de pé e, dirigindo-se de novo ao rei, cujo capuz
caíra com a violência do gesto, disse:
— Pela Santa Virgem! Mas tens tutano nesse braço, senhor abade — se
é que és abade ou monge — e és na verdade um homem vigoroso!
Foi justamente nesse instante que sir Ricardo de Lee saltou do cavalo, e,
tirando o chapéu, correu para a frente, gritando:
— Mas é o rei! Ajoelha-te, Robin! É o rei!
E o cavaleiro ajoelhou-se diante do rei, que tirou então inteiramente o
capuz, descobrindo a cabeça castanha e revelando o rosto de olhos azuis,
em que ardia uma chama altiva, sim, mas alegre, o belo rosto de Ricardo
Coração de Leão. Arrancou então as roupagens negras que trazia, e
apareceu o rico sobretudo de seda ornado com os leopardos de Anjou e a
flor-de-lis da França.
Robin e seus bandoleiros e Alan de Dale ajoelharam-se, e a Bela Marian e
dona Alice, ainda montadas, cumprimentaram humildemente.
— Pela alma de meu pai! — disse Ricardo, rindo alegremente . — Mas é
a mais bela das aventuras! Por que te ajoelhas, Robin? Não és o rei da
floresta?
— Meu senhor, rei da Inglaterra, amo-te e suplico a tua graça para mim e
para meus homens, por todos os atos que temos praticado contra as tuas
leis. Por tua bondade e por tua misericórdia, perdoa-nos!
— Levanta-te, Robin, porque, pela Santa Trindade, nunca encontrei na
floresta um homem tão chegado ao meu coração como tu!
E, dizendo estas palavras, o rei tomou a mão de Robin, fazendo-o
levantar-se e ficar de pé.
— Mas — continuou o rei — deves abandonar esta vida — pela Santa
Virgem! — deves ser meu vassalo e viver segundo a lei.
— Eu o farei de boa vontade, senhor meu rei, pois antes quero obedecer
à tua lei e fazer todo o bem que puder abertamente do que viver proscrito
e à margem dela.
— Assim seja — replicou o rei. — Já me contaram tudo quanto tens
feito. Casaste com uma de minhas pupilas ricas, contra todo o meu direito
e justiça! É aquela a bela dama que abandonou riqueza, honras e terras,
por amor a ti?
A Bela Marian ajoelhou-se diante do rei, que lhe deu a mão a beijar,
depois do que ela se levantou.
— Vem — disse Ricardo —, tu abriste mão de muita coisa para casar
com o teu bom arqueiro, linda dama. Mas só posso concordar contigo,
declarando que escolheste um homem valente e altivo. És minha pupila, e
dou-te agora com grande prazer o que já tinhas tomado por ti mesma.
Dizendo isso, o rei uniu as mãos de Robin e Marian, que se sentiram
muito felizes, recebendo da boca do próprio rei o perdão da falta que
tinham cometido, agindo deliberadamente contra a sua lei.
— Mas — continuou o rei sorrindo — tens praticado tantos feitos
ousados, Robin, que tenho de te condenar a algum castigo. Vai agora viver
uma vida tranquila, depois de todos estes anos de brigas e fugas. Leva tua
bela senhora e vai morar com ela nas terras de Malaset, que lhe
pertencem, vivendo em paz com meus veados e todos os súditos teus
camaradas. Apoia as leis que meus sábios conselheiros organizam para a
paz e a prosperidade deste reino. Assim fazendo, ganharás meu perdão.
— Senhor meu rei — disse Robin —, profundamente comovido com
tanta generosidade, por esta grande mercê e por todos os teus favores,
serei sempre teu fiel e leal servidor.
— Providencia, Hamelin, para que Robin, por ter casado com dona
Marian, seja investido na posse de todas as terras e direitos que a ela
pertencem.
— Assim o farei, sir — respondeu o forte conde Hamelin — e com com
muito interesse, pois já antevejo o bom ajutório de Robin na cobrança de
tuas taxas com a devida prontidão, nos feudos e burgos de Lancashire.
O rei riu e voltou-se para Robin:
— Agradeço-te o teu auxílio na coleta do meu resgate.
Robin apresentou sir Ricardo de Lee ao rei, que ouviu seu pedido e
declarou que se alegrava de lhe restituir suas terras, perdoando-lhe o
agravo que fizera às leis, prestando auxílio a Robin.
Finalmente Alan de Dale e dona Alice vieram ajoelhar-se diante do seu
rei, a quem narraram como tinham incorrido, do mesmo modo que sir
Walter de Beauforest, pai de Alice, na ira de sir Isenbart de Belame,
vivendo desde então sempre receosos de um repentino ataque daquele
cavaleiro aos seus feudos e terras. O rei indagou minuciosamente dos atos
dos senhores de Wrangby, e seu rosto se ensombrou, ao ouvir a enorme
enumeração de seus atos de opressão e crueldade.
Afinal disse, muito triste:
— São uma raça malvada! Mas eu e os outros filhos desobedientes de
meu querido pai somos os culpados, porque mergulhamos o reino em
guerras e confusão. E meu irmão João fez o mesmo, enquanto eu combato
pelo Santo Sepulcro e aqueles lordes perversos prosperam na companhia
dele. Hamelin, falarei mais tarde com aqueles senhores do Castelo da
Malvadez! Deixem-me somente regular as contas com aquele traidor,
Filipe de França, e expulsá-lo de minhas terras da Normandia e da
ç
Aquitânia, e voltarei para varrer aqueles castelos perversos da face da terra
e destruir os ninhos de víboras e serpentes que se abrigam por detrás de
suas fortes muralhas!
Dali a dois dias o mensageiro do rei entregava um pergaminho ao guarda
do castelo de Wrangby, e não ficava ali para jantar nem para dormir —
sinal do desagrado do rei. Quando Isenbart de Belame leu o que estava
escrito no pergaminho, fez uma horrenda careta de desprezo e fúria.
Depois, disse, motejando:
— Ora! O rei se engraça assim dos bandoleiros, porque quer bons
arqueiros para as suas guerras na Normandia. E ele me comunica que
qualquer dano causado a sir Walter de Beauforest, Alan de Tranmire ou
dona Alice, ou às terras, aos feudos, vilões ou outros bens de qualquer
deles é crime contra o rei e será punido como ato de traição.
Atirou o pergaminho ao chão, ao passo que em seus olhos luzia um
brilho feroz. E continuava a resmungar:
— Devo esperar a minha vez com paciência. Quem sabe? O rei vai jogar
as cristas com Filipe de França. Pode ser morto qualquer dia, e então,
quando o conde João subir ao trono, terei licença de fazer o que quiser
daquele insolente bandoleiro e de todos os seus amigos. Esperarei a minha
vez…
Conforme lhe determinara o rei, Robin foi com a Bela Marian para as
terras de Malaset, recebendo-as das mãos de Scrivel de Catsty, que as
detinha como curador, e que entregou tudo — castelo, feudo e as belas e
vastas terras — de muito má vontade. Lá ficou Robin vivendo em paz e no
maior conforto, administrando as propriedades de sua mulher como um
bom lavrador, defendendo as terras de usurpação por parte dos lordes
vizinhos, e atraindo a simpatia de todos os seus servos e trabalhadores
livres por sua bondade e franqueza.
Foram com ele Hob do Morro e Ket, o anão, e suas duas irmãs. Sua mãe
havia morrido na toca onde moravam, no morrinho verde, pouco tempo
antes, e eles não quiseram ficar lá. João Pequeno também acompanhou
Robin, assim como Gilberto da Mão Branca, que casou com Sibbie, uma
das irmãs fadas; ficaram morando em um chalé que Robin lhes deu, e a
outra irmã, Fenella, casou com Wat Graham, de Car Peel, um bravo
guerreiro da fronteira, e diziam que os filhos do casal possuíam dons
encantados — segunda vista, invisibilidade e força sobrenatural.
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Todos os outros bandoleiros se renderam ao oferecimento do rei
Ricardo, que lhes assegurou grandes salários e ricos despojos de guerra, e
foram com ele à Normandia, para combater o rei francês e os “ventoinhas”
rebeldes do Poitou. Muitos lá deixaram os ossos; voltaram uns vinte ou
trinta, depois de morto o rei Ricardo, alguns trazendo grande fruto da
pilhagem, outros tão pobres como dantes, e todos se iam aos poucos
reunindo em Malaset, onde o “Escudeiro Robin”, como o chamavam, os ia
instalando em suas terras.
Entre os que voltaram da França, vieram Will o Besteiro, Scarlet e Much,
o filho do moleiro. Artur de Bland foi morto na tomada do castelo de
Chaluz, onde o rei também encontrou a morte; e Scadlock pereceu no
mar, durante uma tempestade, próximo de Rye. Com os velhos
bandoleiros remanescentes, formou Robin um belo corpo de combatentes
tão destemidos como aqueles que marcharam para o sul sob as bandeiras
dos barões quando, em 1215, resolveram afinal combater com o seu rei
para se libertar da tirania e da opressão.
Já 16 anos tinham passado sobre a cabeça de Robin e de sua bela esposa
Marian, e apesar da perturbação e da confusão que agitavam o espírito dos
homens, introduzindo a desordem no reino quando o rei João desafiou o
papa, os anos corriam felizes em Malaset.
Mas no castelo de Wrangby sir Isenbart de Belame ainda meditava na
vingança que pretendia fazer contra Robin Hood, e esperava a sua hora
com paciência. E muitas vezes lá foi ter com ele sir Guy de Gisborne, e
também sir Balduino, o Matador, sir Rogério de Doncaster e sir Scrivel de
Catsty — e todos se reuniam em conselho secreto, maquinando a melhor
maneira de apanhar e matar Robin Hood, quando chegasse a hora.
x
Incêndio do Castelo da Malvadez
v
ERA UMA fria manhã de inverno, no ano de 1215. Um grupo de homens
atravessava os brejos a leste das terras incultas do Peak. À frente deles
marchava Robin Hood, vestindo cota de malha e tendo à cabeça o elmo,
que luzia ao sol. Seguiam-no sessenta homens, camponeses bronzeados e
de rosto honesto, levando cada um o seu arco e carcás, e a espada ao lado.
Uns vinte eram seus antigos companheiros de proscrição, e entre eles, e
acima deles, aparecia João Pequeno, cuja cabeça e ombros sobressaíam
acima dos outros. Seus olhos escuros e penetrantes investigavam
acuradamente os vastos brejais que se estendiam de ambos os lados,
avermelhados. Imediatamente atrás de Robin ia Ket, o Gnomo, um
combatente robusto na sua pequenez, cuja astúcia transparecia em cada
olhar, em cada gesto. Não muito longe vinham Scarlet, Will Stuteley e
Much, o filho do moleiro.
Robin estava pensativo, triste mesmo. Fora com os barões quando estes
tinham arrancado a carta de liberdade das mãos tirânicas de João; e ficara
com eles no sul, julgando ganha a luta pela liberdade. E tinham sabido um
dia, subitamente, que estrangeiros mercenários estavam desembarcando
para auxiliar o rei contra os seus barões rebeldes. As hordas estrangeiras,
sedentas de sangue e saque, eram tão fortes, que os barões, quase
desanimados, se haviam retirado. Muitos deles foram defender seus
castelos e suas terras, quando souberam que os mercenários do rei
assolavam o norte, pilhando, incendiando, matando; e Robin Hood fizera o
mesmo, receando que sucedesse algum mal à sua gentil esposa, no pacífico
vale de Malaset, nos brejos de Lancaster.
Ia considerando agora, se perguntando se não chegaria muito tarde. A
cada passo, no caminho para o norte, iam vendo as marcas de rapinagem e
massacre por onde o rei tinha passado com suas hordas estrangeiras. Cada
casa, cada aldeia, fora destruída pelo fogo; viam-se cadáveres hirtos na
neve, outros atirados na lareira, no salão que agasalhara as risadas de
alegria em vida daqueles que agora jaziam mortos. No horizonte sombrio
erguia-se a fumaça, assinalando onde ainda continuavam os incêndios e
morticínios, isto é, onde se achava o exército brutal do rei impudente. Um
castelo por onde passaram era uma ruína fumegante, e no salão enegrecido
e cheio de fumo sufocante encontraram duas moças — uma emudecida
pelo desespero, e outra meio louca de terror e tristeza — curvadas sobre o
corpo do pai, um velho cavaleiro, a quem o rei torturara até a morte, para
lhe arrancar a confissão do lugar onde escondera o seu dinheiro.
Andando, Robin de vez em quando erguia a cabeça e olhava para diante.
Temia ver uma nuvem de fumo, denunciando algum bando do maldito
exército do rei que tivesse ido para o oeste, alcançando Malaset. Mas
contra as nuvens cor de violeta do céu nublado, onde o sol já se punha,
não havia manchas de rolos de fumaça.
Afinal a estrada começou a descer dos rochedos calcários e escalavrados
para os vales de Malaset. Quase inconscientemente, Robin pôs-se a andar
mais depressa, ansioso por chegar a um ponto onde, de uma curva da
estrada, podia avistar o castelo. Chegou finalmente à curva e deteve-se um
momento; seus homens, que se iam aproximando, tiveram tempo de ouvir
o grito espantoso que soltou. Cravando então as esporas nos flancos do
cavalo, atirou-se em desabalada corrida monte abaixo, pelos declives do
caminho.
Chegando por sua vez à curva da estrada, eles olharam para a torre baixa
do castelo. Erguia-se da fogueira uma fumaça acinzentada, de madeira
queimada. Os homens, soltando gritos de aflição, de mistura com brados
de vingança e desespero, lançaram-se em uma doida corrida para os lares
em ruínas e para os seus amados mortos.
Robin apeou-se no pátio, aparentando uma calma fria e estranha: corpos
de homens jaziam ainda aqui e ali, imóveis e contorcidos. Entrou no salão,
que estava cheio de fumaça: tinham-lhe ateado fogo, mas este não pegara.
Apenas alguns bancos quebrados fumegavam em um montão, onde os
corpos dos defensores e dos assaltantes entrelaçavam-se ainda no abraço
feroz e apertado em que se tinham mutuamente matado. Ele tomou a
escada de caracol, que levava para o quarto da senhora.
A porta estava fechada, mas ele abriu-a devagarinho. Ali, à luz do sol
poente, jazia estendida na cama uma figura de rosto muito branco e
repousado. Era Marian. Seu corpo imóvel estava vestido de negro, e ele viu
que estava morta. Tinha as longas e belas mãos cruzadas sobre o peito, e o
cabelo escuro emoldurava-lhe o peito e o rosto de beleza suave. Ao lado do
corpo estava uma seta curta.
Agitou-se subitamente o pano de arrás e uma leve figurinha de mulher
entrou, atirando-se de joelhos diante dele. Era Sibbie, mulher de Gilberto
da Mão Branca, a fada, que fora criada de quarto de Marian. Ela não
chorava, mas seus grandes olhos escuros e fiéis fitavam-no com tristeza.
— Quem foi, Sibbie? — perguntou Robin, em voz baixa e tranquila.
— Quem mais, senão aquele demônio, Isenbart de Belame? — disse ela,
numa voz irritada e contida. — Matou-a enquanto falava com ele, da sala
do porteiro. Com esta seta — a mesma seta que meu irmão Hob atirou
sobre a mesa no Castelo da Malvadez — ele tirou-lhe a vida. Ela caiu em
meus braços, sorriu-me, mas não pôde falar, e assim morreu. No segundo
dia — foi somente ontem que saíram daqui — deram assalto ao castelo,
mas o combate no pátio e no saguão foi duro e terrível; e então, temendo a
tua volta, eles pilharam toda a casa, e foram embora, levando Hob, meu
irmão, ferido, e um prisioneiro, e mais dez outros que prometeram
torturar quando chegassem no Castelo da Malvadez.
Ket, que entrara no quarto imediatamente atrás de Robin, tudo ouvira.
Sua irmã voltou-se para ele, e ambos apertaram-se as mãos em silêncio.
Depois, desprendendo as mãos, ambos ergueram o indicador direito,
fazendo com ele um gesto rápido e estranho, como se escrevessem uma
letra no ar, ou assinalassem uma divisa. Era o signo de vingança
indestrutível, pelo qual o povo do Mundo Subterrâneo jurava passar pelo
fogo e pela água, suportar penas e dores, e nunca esmorecer na sua busca,
enquanto não tivessem vingado a morte de sua senhora.
Robin inclinou-se e beijou a fronte gelada de sua mulher. Depois,
descobrindo-se, ajoelhou-se ao lado dela e orou. Não dizia palavra, mas
rogava à Virgem o seu auxílio no voto que fazia de espezinhar
completamente a vida e o poder do senhor do Castelo da Malvadez e de
todos os seus companheiros de perversidade.
Naquela noite, à luz das tochas, o corpo de Marian foi depositado no
túmulo ao lado de seu pai e seus parentes, na pequena igreja de Malaset,
enquanto no castelo, todos os vilões e homens livres que tinham fugido de
suas granjas e fazendas à aproximação de Belame e sua horda maléfica
estavam febrilmente ocupados em preparar armas e arneses. Todos eles se
achavam tomados de resolução firme, e cada um prometia a si mesmo
lutar até a morte, na tentativa de deitar abaixo o Castelo da Malvadez e seu
poder.
Ao raiar do dia, em silêncio, Robin e seu bando partiram. Não olharam
para trás uma só vez, mas subiram obstinadamente a estrada que costeava
o brejo, sempre de rosto voltado para leste. Ao mesmo tempo Robin
mandou um mensageiro a sir Herbrando de Tranmire, já agora um velho,
lembrando-lhe a promessa de ajudá-lo a destruir o castelo de Wrangby;
dizia-lhe que, se não pudesse vir em pessoa, mandasse ao menos todos os
homens de que pudesse dispor, bem armados, para se encontrarem com
ele no Carvalho da Baliza, perto do atoleiro de Wrangby. Mandou ainda
mensagens semelhantes a outros cavaleiros e homens livres, que tinham
sofrido sob a mão de Belame. Muitos tinham prometido ao “Escudeiro
Robin” auxiliá-lo quando ele precisasse, porque tinham todos reconhecido
nele um homem bravo e generoso; e todos sabiam que algum dia teriam de
reunir suas forças com as dele para acabar com as vilanias e perversidades
do Castelo da Malvadez.
De caminho para Wrangby, Robin foi chegando nos castelos e fazendas
de outros cavaleiros para pedir auxílio. Achou alguns pilhados e em ruínas,
mortos seus bravos defensores, vítimas da maligna crueldade do seu rei.
Muitos homens, entretanto, responderam prontamente ao seu apelo, de
modo que, ao escurecer, quando descia o crepúsculo sobre o brejo
nevoento, Robin chegava à vista do castelo de Wrangby à frente de
trezentos homens, que seriam suficientes, ao menos, para evitar que a
guarnição saísse.
Ele parou a um tiro de besta do grande portão e fez soar a trompa. Na
torre acima do portal apareceram dois homens completamente cobertos
de malha de aço, tendo à cabeça capacetes de bronze, que à fraca luz do
crepúsculo tinham um brilho embaciado.
— Quero falar com Isenbart de Belame! — gritou Robin.
E a resposta veio logo, e parecia o rosnar de um lobo:
— “Cabeça de lobo”! Estás falando a Isenbart de Belame, senhor de
Wrangby e de Fells! Que queres tu, e mais a tua gentalha?
— Eu te digo! Entrega-te, com os prisioneiros que trouxeste! Teus pares
julgarão tuas más ações e o assassínio de minha mulher, lady Marian. Se
não o fizeres, então tomaremos de assalto teu maldito castelo, e a tua
morte e a de teus homens cairão sobre a tua cabeça!
— Se não abandonas minhas terras pela madrugada — foi a orgulhosa
réplica —, tu e tua cauda de guaipecas surrados e vilões, eu os surrarei até
matá-los, com o chicote dos cães! Vai-te daqui, “cabeça de lobo”, patife!
Não tornarei a falar contigo!
E, com um gesto de quem não dava mais atenção a criaturas tão vis,
voltou-se e pôs-se a falar com o outro cavaleiro que estava com ele.
Tinham ambos a viseira abaixada, e à luz do crepúsculo suas figuras iam-se
apagando cada vez mais. De repente uma figurinha adiantou-se, no lusco-
fusco, foi parar em frente do cavalo de Robin, e ouviu-se o som da corda
do arco retesado. Logo em seguida, o cavaleiro que estava ao lado de
Belame levou as mãos à viseira e depois cambaleou. Mas recobrou-se
imediatamente e arrancou a flecha que ficara entre as barras do elmo. Com
um gesto de raiva, atirou-se sobre as ameias e gritou algumas palavras de
escárnio, que ninguém entendeu.
Foi Ket, o Gnomo, quem deu aquele tiro maravilhoso ao lusco-fusco, e
todos se admiraram de ter a seta alcançado o alvo com tamanha certeza.
Entretanto, como o tiro partia de um ângulo muito grande, ela apenas
rasgara a carne da fronte do cavaleiro.
Naquela noite Robin e seus homens cercaram o castelo de modo tão
cerrado, que ninguém poderia entrar nem sair sem ser visto. À sombra do
Carvalho da Baliza reuniu ele em conselho os cavaleiros que o tinham
acompanhado. E um deles, sir Fulk do Dykewall, disse:
— Escudeiro Robin, não vejo meio de deitarmos abaixo aquela torre tão
forte… Não temos máquinas de guerra, não podemos fazer brechas nas
muralhas em sítio algum, o fosso está cheio d’água, e eu não duvido que
um homem como Belame esteja bem provido para um longo cerco.
— Pois eu não vejo razão por que não possamos tomar o castelo —
acudiu o jovem escudeiro Denvil de Toomlands, audacioso e valente como
um falcão. — Podemos reunir os camponeses de Wrangby, que odeiam
seus senhores, para cortar árvores e fazer jangadas para nós. Com elas,
abrigados por nossos escudos, podemos atravessar o fosso e cortar as
correntes da ponte levadiça. Poderemos então levantar a ponte, e, uma vez
dentro, arrombar o portão.
Depois de longa discussão, pareceu este o único meio que poderiam
empregar para tomar o castelo. Isso importaria a perda de muitas vidas,
sem dúvida, mas as paredes do castelo eram muito grossas e muito altas, e
não havia outra entrada a não ser o grande portão. Ket, o Gnomo, recebeu
ordem de ir ter com os vilões de Wrangby, nas choças que ficavam a uma
milha do castelo, e pedir-lhes que viessem ajudar Robin a desenraizar
aqueles maus senhores. Depois de uma hora, ele voltou e relatou:
— Fui ao mordomo Cole e dei-lhe o recado. Ele chamou os chefes dos
seus homens e disse-lhes o que tu querias. Nos olhos deles lia-se que
estavam ansiosos por vir, mas pensaram muito tempo em silêncio. Depois
um deles disse: “Já seis vezes o Castelo da Malvadez foi sitiado por
senhores poderosos, mas nunca foi tomado. Satanás ama os seus, e é inútil
combater contra os senhores malvados. Eles sempre tiveram poder, e hão
de mantê-lo para sempre!” E ficaram calados diante de toda a minha
insistência, sacudiram a cabeça e foram embora.
Robin, entretanto, organizou grupos de seus homens para trabalharem
em turnos durante a noite, cortando árvores novas para fazer jangadas e
escadas curtas, para alcançar as correntes da ponte levadiça; e à luz dos
archotes o trabalho continuou toda a noite, enquanto Robin ia de um lugar
a outro, vigiando para que não afrouxasse a vigilância da guarda. Pouco
antes do romper do dia deitou-se, para tomar algum repouso, mas foi logo
despertado pela chegada de um bando de camponeses de Wrangby,
aqueles mesmos que na noite anterior se haviam recusado a auxiliá-lo
contra os seus senhores. Vinha à frente deles um velho grisalho, de grande
estatura e aspecto arrogante. Trazia na mão um enorme alfanje, de lâmina
larga e tão pontuda e brilhante como uma navalha. Ao vê-lo, reconheceu
Robin um dos homens que tinham atirado com ele na competição de
Nottingham, diante do xerife.
— Chefe — disse o velho, dirigindo-se a Robin —, trago-te estes
homens. Eles negaram-te auxílio ontem à noite. Eram então apenas
covardes; mas eu falei com eles, e agora estão dispostos a te ajudar a
derrubar este ninho de lordes bandidos e matadores de mulheres e
crianças e mutiladores de homens.
— Agradeço-te, Rafe do Alfanje — disse Robin, voltando-se para os
camponeses.
Um deles deu alguns passos à frente e falou pelos companheiros:
— Nós fizemos o juramento, e iremos contigo até o fim. Antes queremos
ser mortos agora do que viver mais tempo nesta miséria, dominados por
nossos malvados opressores.
Os coitados pareciam abatidos e deprimidos, como se tivessem sido
despojados de todo o valor naqueles anos e anos de crueldades às mãos de
seus senhores.
— Vocês não falharão, irmãos — disse Rafe, sacudindo sua enorme
adaga, com um brilho de altivez no olhar. — Eu jurei, quando eles me
enxotaram de minha choça na floresta de Barnisdale, e mataram minha
mulher e meu rapaz, jurei que havia de voltar e ajudaria a arrancar aqueles
demônios do seu ninho de pedra. Chegou a hora, irmãos, e Deus e a
Virgem combatem por nós!
— És então Thurstan da Cabana de Pedra? E Belame expulsou-te da tua
chácara há trinta anos? — indagou Robin.
— É como dizes; voltei no tempo marcado.
Sob as indicações deste homem, e com o ajutório eficaz de João Pequeno
e Gilberto da Mão Branca, os preparativos foram feitos depressa, e depois
de terem almoçado bem e ouvido missa, foram levar as jangadas para
dentro do fosso, defronte do portão. Foram recebidos sob uma chuva de
flechadas, mas os que levavam as jangadas eram protegidos por besteiros,
sob o comando de Scarlet e Will Stuteley, e esquadrinhavam atentamente
cada fenda da muralha. Suas setas iam procurar e alcançar tudo o que se
movia por detrás das seteiras, e quem quer que aparecesse nas ameias do
castelo era imediatamente ferido por algumas setas. As jangadas foram
logo lançadas à água e atravessaram o fosso com o auxílio de croques; as
escadas foram içadas e apoiadas às fendas ao lado da enorme ponte que
bloqueava o portão. Não tardou muito que os golpes de ferro contra ferro
anunciassem a força que empregavam os ferreiros para cortar as correntes
que seguravam o lastro da ponte. A princípio pareceu fácil a tarefa, porque
os besteiros de Robin impediam que das ameias fossem alvejados. De
repente, porém, os portões interiores se abriram e uma multidão de
besteiros começou a atirar nos ferreiros, por entre as barras da corrediça.
Um deles caiu da escada e foi parar no fundo do fosso, com uma grande
flecha enterrada no peito; o outro teve a mão traspassada.
Outros, porém, os substituíram imediatamente, e Scarlet, com Will, o
besteiro, e mais dois arqueiros, postados com eles nas escadas, retribuíam
os tiros conforme podiam, ainda que não tivessem meio sequer de entesar
o arco naquele espaço confinado. Afinal soou um grito — uma das
correntes fora cortada, e a ponte sacudiu-se e tremeu. Mais algumas
marteladas do outro lado e a ponte, com um estrondo formidável, caía
atravessada por sobre o fosso, mas tinha sido partida ao meio, em razão do
próprio peso. Robin, com um grupo escolhido de arqueiros, tratou de
atravessá-la imediatamente, pois que oferecia suficiente resistência; e,
atirando por entre as barras da grade corrediça, disparavam tamanhas
nuvens de setas, que a guarnição, mal provida de arqueiros, se viu
compelida a retirar-se, para trás dos portões, que por fim tiveram de
fechar.
Então quarenta mãos diligentes carregaram para a frente um grande
tronco de árvore, a ponte foi toda coberta de vigas, para suportar o peso
extraordinário, e o aríete foi arremessado contra as grades. E isso se
repetiu mais uma vez, e mais outra, enquanto os arqueiros, da margem,
eliminavam os que, da muralha do castelo ou das seteiras, procuravam
atirar sobre os sitiantes. Morreram, entretanto, muitos dos homens de
Robin, porque a defesa era tão cerrada como o ataque; e por toda a parte,
no castelo, ouviam-se as vozes de sir Isenbart e de seus cavaleiros, sir
Balduino, sir Scrivel, ou sir Rogério de Doncaster, incitando enraivecidos
os besteiros e fundibulários, para que não esmorecessem. Alguns arqueiros
de Robin e os do grupo do aríete, ainda que estivessem abrigados sob os
escudos, foram mortos ou inutilizados pelas setas, ou esmagados por
pedras enormes, mas ainda assim o enorme tronco de árvore martelava a
grade, sacudindo-a e fazendo-a estalar.
Por fim o portão do castelo abriu-se outra vez e uma chuva mortal de
flechas voou de dentro, espalhando a morte, de entre as barras da
corrediça. Mas Robin comandava seus arqueiros, e a guarnição teve de se
retirar pela segunda vez, enquanto outros soldados tomavam o posto junto
do aríete, cuja cabeça já estava toda rachada e esmigalhada. Mas, ainda
assim, o tronco batia e martelava contra as barras, duas das quais já
estavam curvadas e rebentadas, de sorte que não tardaria que a enorme
grade apresentasse abertura suficiente para que os homens pudessem
entrar.
Robin, sir Fulk e outro cavaleiro, sir Roberto de Staithes, estavam junto
do grupo de homens que trabalhavam com o aríete, incitando-os, tendo o
chefe sempre olhos vigilantes para o interior do portão, para ver se não se
abria de novo, a vomitar flechas.
— Mais três boas pancadas de mestre carvalho, rapazes, e estaremos lá
dentro! A porta de madeira não nos resistirá por muito tempo!
Nesse momento preciso ouviram-se os gritos insistentes de Will, o
besteiro, que estava na margem com seus homens:
— Para trás! Para trás! Eles vão lançar fogo!
— Ao fosso, ao fosso! — bradou Robin, quando ouviu os gritos de aviso.
Muitos o ouviram e saltaram imediatamente. Mas outros — coitados! —
não tiveram tempo.
Descia das ameias um dilúvio de alcatrão fervente, e em seguida
começaram a cair tições ardentes e pedras aquecidas até o rubro. Uns
cinco ou seis homens, que não tinham ouvido os gritos, foram submersos
naquela chuva mortal e perderam a vida. Os tições e pedras aquecidas
puseram fogo instantaneamente nos sarrafos, no soalho da ponte e no
aríete, pois tudo estava coberto de alcatrão, e logo se alastrou uma imensa
fogueira, roubando aos sitiantes a vitória, que momentos antes lhes
parecia quase certa.
Robin e os outros que tinham escapado nadaram para a margem,
enquanto Will e seus arqueiros sondavam as muralhas com as suas setas.
Contudo, não tinham podido impedir que despejassem o alcatrão, porque
os que carregaram o caldeirão para as ameias tinham sido protegidos por
escudos, que outros seguravam, encobrindo-os.
Robin olhou para o golfo de fogo aberto diante dele, e depois para os
rostos enfurecidos de seus homens.
— Não faz mal! — gritou ele. — Eles não podem sair, e quando o fogo
se tiver consumido, tornaremos a atravessar vigas novas. Mais alguns
golpes, e as barras darão passagem suficiente para podermos entrar.
E continuou, dirigindo-se a Will e a Scarlet:
— E vocês dois vigiem, para que nenhum daqueles patifes possa reparar
as barras quebradas.
Ao que o velho proscrito retrucou, rindo:
— Esse teria de remendar primeiro o buraco na sua carcaça! — E voltou
os olhos para as seteiras e as ameias, tendo sempre o arco de prontidão.
Era já mais de meio-dia; enquanto um grupo vigiava a ponte, outro tomava
uma ligeira refeição, e um terceiro ia com os camponeses cortar novas
vigas para a ponte.
Quando Robin dirigia o trabalho dos cortadores, viu um grande grupo de
homens a pé, que vinha pelo brejo, precedido por dois cavaleiros. Sua vista
aguçada examinou os brasões dos escudos, e, avistando três cisnes brancos
em um deles e no outro cinco árvores verdes, abanou a mão em sinal de
boas-vindas. Eram sir Walter de Beauforest e o jovem Alan de Dale, que
dali a pouco lhe apertavam a mão.
— Recebemos teu recado ontem — disse sir Walter —, e viemos o mais
depressa que pudemos. Espero que não seja muito tarde…
— Não; o castelo ainda não me caiu nas mãos, e tuas forças serão bem-
vindas.
Relatou então o que já fora feito, e os planos que tinha para tomar o
castelo — planos que ambos acharam muito bons, prometendo ajudá-lo
até onde pudessem. Alan disse-lhe que sir Herbrando enviava um grupo
para auxiliá-lo, mas, como estava tão velho e fraco, não podia vir em
pessoa, não poderia ajudar, como tanto desejava, abater seus inimigos de
Wrangby.
Enquanto isso, Ket andava pelo campo com ar melancólico. De vez em
quando ia para junto dos arqueiros, ao pé do fosso, e nenhum olhar era
mais penetrante do que o seu para descobrir um movimento em uma
seteira ou nas ameias, e nenhuma seta mais pronta a voar ao alvo. Mas
para ele as coisas arrastavam-se com muita lentidão. Suspirava por uma
vingança rápida e completa para os assassinos de sua bem-amada senhora.
Entretanto, sabia que lá dentro daquele castelo, seu querido irmão Hob
jazia ferido em algum calabouço nauseabundo, sofrendo, talvez, àquela
hora, torturas cruéis.
E Ket andava em volta do castelo, arrastando-se de esconderijo em
esconderijo, os olhos escuros pesquisando a pedra lisa das muralhas, à
procura de algum buraco ou respiradouro por onde pudesse entrar. Já
estivera lá dentro uma vez, quando atirara a mensagem sobre a mesa,
diante de sir Isenbart de Belame, quando Ranulfo de Waste fora morto.
Naquela noite seguira alguns cavaleiros que voltavam de uma excursão de
pilhagem, trazendo ricos trajes e alfaias como despojos, e vários cativos
para resgate. Estivera bem perto de suas costas, e na confusão, entrara
pelo portão e se escondera, mercê da escuridão. Então, à noite, deixara-se
cair por um esgoto que se abria a uns três metros acima do fosso, e,
protegido por uma tempestade, fugira no meio da ventania e da chuva.
Mas agora, por mais que tentasse, as enormes muralhas zombavam dele,
porque não via jeito de entrar naquela forte torre. Uma vez dentro, acharia
certamente o meio de encontrar o irmão, libertá-lo e matar os guardas e
abrir os portões para Robin e seus homens.
Estava deitado em um denso maciço de aveleiras, nos fundos do castelo,
e esquadrinhava as paredes. De vez em quando baixava os olhos,
cauteloso, para os lados do brejal, onde a floresta e os rochedos fechavam
as terras de Wrangby.
Mas… que era aquilo? Num mesmo instante, sucediam duas coisas
estranhas. Vira uma espada flamejar duas vezes, das ameias do castelo,
como se fosse um sinal, e intantaneamente viu um brilho momentâneo,
como o de uma arma que luzisse repentinamente no meio das árvores
quietas de um bosquezinho, à beira da floresta, a cerca de meia milha de
distância. Ket ficou olhando atentamente para aquele ponto, mas tudo
continuava absolutamente tranquilo ali.
“Que coisa estranha!”, pensou consigo. “Será um sinal? Se é, para quem
a pessoa do castelo estava fazendo sinal?”
Não tardou a tomar uma decisão; e, como um furão, foi-se esgueirando,
de moita em moita, a caminho do bosquezinho. Chegou à orla e olhou para
as árvores. E ali, amarrados os focinhos dos cavalos para evitar qualquer
relincho, estavam uns trinta ferozes bandidos, que reconheceu
imediatamente. Eram os homens de Thurstan, de quem ele retomara a
Bela Marian, alguns anos antes. Um homem ergueu a enorme cabeça de
cão d’água, toda branca, e olhou para o campo dos sitiantes, por cima do
brejo. Mostrou os dentes em um riso de zombaria, e Ket reconheceu o
velho Grame, o Leporino, em pessoa, que dizia:
— Dentro de uma hora estará já escuro, e então faremos aquela canalha
voar!
Ket adivinhou tudo, isto é, que aqueles ladrões, parentes de sir Isenbart,
tinham vindo a cavalo para se reunir a ele na pilhagem do rei João, atraídos
pela esperança de matanças e saques. Tinham descoberto que o castelo
ç ç
estava sitiado, deram-se a conhecer aos amigos do castelo, e agora
esperavam ali que acabasse o curto dia de inverno. Então correriam para o
bando de Robin, soltando gritos para que sir Isenbart soubesse que era
hora de sair. Surpreendidos e apanhados entre duas forças, quem sabe,
talvez Robin Hood e seus homens chegassem a ser cortados em pedaços…
Como um gato selvagem, às furtadelas, Ket começou a andar para trás e
a entranhar-se mais na floresta, atrás do lugar onde jaziam escondidos os
cavaleiros. Ia com um cuidado infinito, porque o estalido de um graveto
podia revelar sua presença aos soldados. Depois de voltar assim uns
cinquenta metros, ergueu-se e foi deslizando, como uma sombra, por
entre as árvores, para o campo de Robin.
Os homens de Thurstan ouviam, de onde estavam, os gritos dos
sitiantes, dando aviso à guarnição, e as palavras de comando de Robin e
dos cavaleiros, curtas e incisivas, quando ordenavam e vigiavam a
colocação das vigas de madeira no fosso defronte do portão. Então, dali a
poucos momentos o crepúsculo desceu com um nevoeiro sobre a terra, e a
escuridão se aprofundou rapidamente.
— Agora, rapazes — disse Grame, o Leporino, levantando-se e
segurando a rédea do seu cavalo —, montem e estejam prontos. Vão
andando até uns cem metros do lugar onde veem as fogueiras ardendo; aí
finquem as esporas e soltem o meu grito: “Leporino da Muralha!” Então, a
espada e espora, arrasem-me aqueles cães, e quando Belame ouvir nossos
gritos ele sairá, e a mortandade será uma festa… Agora, montar e correr!
Passaram em silêncio os cavaleiros sobre a grama comprida e áspera, e
depois, com um grito feroz, arrojaram-se sobre os grupos que estavam ao
redor das fogueiras. Mas, coisa estranha, os soldados que eles assim
cercavam voltaram-se como se já os esperassem; três cavaleiros saíram
contra os assaltantes, e, entre os gritos de “Leporino da Muralha!
Leporino da Muralha!”, o combate feroz começou.
Aconselhado por Ket, Robin ordenara que seus homens se retirassem
um pouco para o lado do castelo, de sorte que a guarnição ouviria
claramente quando os homens de fora atacassem; e assim se fez. Os
homens a cavalo seguiam rapidamente, e seus inimigos pareciam voar
diante deles. Os de fora apertaram mais um pouco, ainda soltando seu
grito de guerra. Ouviram de repente gritos que respondiam: “Belame!
Belame!”. Era como um bramido orgulhoso, que vinha do portão do
castelo, que se abriu completamente; foi descida a ponte, e por ela
jorraram cavaleiros e soldados. Robin tinha posto as vigas novas sobre os
barrotes queimados, de modo que a guarnição pudesse sair sem demora, e
sobre esse tabuleiro eles se lançaram em louca corrida, e com o peso os
caibros se curvaram; e os brados de “Leporino” e “Belame” se misturaram,
em doida alegria.
De repente, dominando a algazarra, ouviram-se as notas claras de uma
trompa, que chamava em algum ponto, à retaguarda. Ao mesmo tempo
soaram três notas breves e penetrantes debaixo das muralhas do castelo.
Saindo da floresta do Carvalho da Baliza, vieram a toda brida dez
cavaleiros e cem soldados — a força que sir Herbrando enviara e que
chegara ao escurecer, a tempo ainda de tomar parte no plano que Robin e
os cavaleiros, a conselho de Ket, o Gnomo, organizaram para a destruição
do inimigo.
Os homens que, ao que parece, tinham sido apanhados entre os que
gritavam “Belame” e os que bradavam “Leporino” voltavam agora, e em
número muito maior. A tropa de Belame viu a arrancada de homens lá
atrás deles, onde, ao que supunham, estava apenas a sua guarnição; e os
ladrões de Thurstan voltaram-se quando os gritos de vingança de “Marian!
Marian!” soaram altivos ao redor deles, respondidos pelos brados de
“Tranmire e São Jorge!”.
E foi então que se ouviu, na verdade, o tremendo fragor da batalha.
Apanhados entre as duas alas da gente de Robin, que agora excedia em
número a de Belame e seus amigos, os lordes de Wrangby combatiam para
salvar a vida. Não se dava nem se pedia quartel. Camponês, armado de
acha ou machadinha, combatia com soldados a pé, ou feria o cavaleiro de
cota de malha, montado; e por toda parte, Rafe do Alfanje combatia,
satisfeitíssimo, sua adaga brilhante na mão, procurando o próprio sir
Isenbart. Robin também procurou por toda parte, na escuridão, o matador
de sua mulher. Facilmente reconhecível pelo bronze do elmo, sir Isenbart
andava por toda parte, furioso como um urso, espalhando ferimentos e
morte a cada golpe, cantando, ao mesmo tempo, orgulhoso, o próprio
nome. Viu-o Robin e correu-lhe no encalço, mas o aperto da luta
mantinha-os separados. Logo atrás de Robin estava João Pequeno,
manejando uma enorme acha de dois gumes e alargando ainda o caminho
que seu chefe ia abrindo entre os inimigos. Em dado momento, Robin
gritou-lhe:
— João, por amor da Virgem Santa, deita abaixo aquele elmo de bronze!
É Belame! Pelo amor que me tens, João, não o deixes escapar!
Pouca probabilidade teria neste momento, mesmo que quisesse fugir, o
bravo e altivo tirano. Via-se agora impedido de continuar suas atrocidades,
porque Rafe do Alfanje e vinte vilões de Wrangby o cercaram, ferindo-lhe
os membros, puxando-lhe a armadura, para deitá-lo abaixo. Longos anos
de ódio e miséria ferviam agora em cada nervo, porém, mais destros no
manejo dos humildes instrumentos de trabalho do que no das armas, os
homens caíam diante da espada aguda de Belame, como hastes de trigo aos
golpes da foice. Feria aqui e ali, velozmente, sacudindo de si os assaltantes,
como um urso atira longe os cães. Rafe lutava para alcançá-lo com sua
grande adaga, investindo contra ele, mas o forte escudo de Belame recebia
todos os golpes denodadamente, e por enquanto parecia que sairia
vencedor.
Robin e João conseguiram, afinal, atravessar as filas já enfraquecidas de
inimigos, e, saltando sobre os mortos que jaziam aos montões, atiraram-se
para Belame. Mas era tarde quando o alcançaram. Com um grande golpe,
como quem tosquia, a adaga nas mãos vingadoras do velho Thurstan se
levantara sobre o ombro direito do cavaleiro, cortando-o até o osso. Mais
um momento, e o alfanje teria ceifado a cabeça de Belame, mas Robin
aparou o golpe no seu escudo, gritando:
— Não o mates! Ele pertence à forca!
Rafe baixou a adaga, bradando:
— Sim, tens razão, senhor. Ele não merece morrer aos golpes do aço
honesto… deixemos que o carrasco se ocupe com este traidor!
Belame, posto que com o braço direito paralisado, ainda se conservava
montado, e gritava:
— Mata-me, “Cabeça de lobo”! Mata-me a espada! Eu sou um cavaleiro
de brasão! Eu não me sujeito a semelhante infâmia!
E, metendo esporas no cavalo, tentou escapar-lhes. Os enormes braços
de Rafe o cercaram, arrancando-o da sela.
— Brasão!… — disse o homem altivo, com o maior desprezo. —
Pudesse eu, e hoje te desenharia na pele toda os brasões que tu e teus
sequazes retalharam no corpo dos pobres! O brasão vai fazer boa
companhia hoje a uma boa corda de cânhamo!
— Vocês dois, João e Rafe — disse Robin —, vão agora tratar do
ferimento dele; depois levem-no para o castelo, que sem dúvida já é nosso
a esta hora.
E não se afastou dali enquanto não viu o o ferimento fechado. Então,
solidamente amarrado, foi Belame carregado para o castelo — e ia
silencioso e sombrio.
Já havia cessado a batalha. Poucos dos homens de Wrangby
sobreviveram; tão fero era o seu ódio que apenas uns dez ou 12 tinham
fugido na escuridão, e entre eles um cavaleiro: sir Rogério de Doncaster,
um sujeito matreiro, que preferia conspirar a combater. Dos bandidos a
cavalo, nem um único ficou vivo, e o próprio Leporino praticara ali a sua
última e cruel façanha.
Quanto ao castelo, conforme o plano delineado por Ket, o Gnomo, fora
tomado em pouco tempo. Com o jovem escudeiro Denvil e quarenta
homens escolhidos, Ket se escondera dentro d’água, sem rumor algum, ao
pé das vigas que estavam diante do grande portão. Quando Belame e seus
homens se arrojaram fora do castelo, exultantes de satisfação, ao chamado
de Leporino, e os guardas da porta estavam debaixo da grade da ponte,
certos da vitória, e queixosos por terem sido deixados para trás, sem
participar da matança, viram erguer-se, dos seus próprios pés, por assim
dizer, homens encharcados d’água, e nem chegaram a compreender o que
significava aquela aparição repentina — porque foram mortos
imediatamente. Então, e sempre em silêncio, Ket e o escudeiro de
Toomlands, seguidos de perto pelos seus homens, tinham-se esgueirado
para dentro do castelo, aniquilando todos os que se opunham à sua
entrada. Ganharam a luta sem a perda de um só homem, e como todos os
demais — além daqueles 12 — tinham saído para o que supunham ser a
sortida da vitória, a luta fora breve.
Pouco depois, naquele mesmo salão onde sir Isenbart e os cavaleiros,
seus companheiros, se haviam tantas vezes sentado a beber, ou a torturar
algum pobre cativo, vieram sentar Robin e os cavaleiros que o tinham
auxiliado e tinham saído ilesos da batalha. Sentando-se na cadeira de
Belame, à cabeceira da mesa, com os cavaleiros sentados a um e outro
lado, Robin ordenou que trouxessem os prisioneiros. A luz das tochas, que
ardiam nos pilares do salão, se refletia nas armaduras riscadas e
arranhadas dos conquistadores; e foi com olhar duro e severo que todos
— soldados, camponeses e cavaleiros — olharam para o grupo que
entrava.
Havia apenas dois prisioneiros, sir Isenbart de Belame e sir Balduino, o
Matador, nome que lhe fora posto em razão da crueldade que mostrava e
do grande número de mortes que infligira em anos e anos de rapinagem e
depredações pelas terras de Wrangby e do Peak. Quando se abriu a porta
do salão, os homens ouviram o som distante das machadinhas batendo em
madeira: é que a forca já estava sendo erguida, diante do portão do
Castelo da Malvadez.
— Isenbart de Belame — começou Robin, em voz forte e enérgica —,
aqui, no teu castelo, no teu salão, onde tantas vezes teus infelizes cativos,
homens e mulheres, ricos e pobres, gentis-homens e plebeus, imploraram
tua misericórdia sem nada obter, a não ser gestos brutais ou injúrias
grosseiras — aqui vens, afinal, para ouvir teu julgamento. Todos aqueles
que têm alguma coisa a increpar a este homem de Belame, ou a seu
companheiro de opressões e crueldades, Balduino, apresentem-se! E,
como Deus ouve e vê tudo, diga a verdade, pela salvação de sua alma!
Foi como se a massa inteira de camponeses, burgueses e granjeiros livres
que ali estavam se adiantasse, para acusar dois cavaleiros carrancudos de
atos perversos e cruéis.
— Ele arrancou os olhos de meu pai! — gritou um.
— A colheita falhou um ano — exclamou outro — e como eu não lhe
pude pagar a minha parte anual de trigo, ele torturou meu filho até matá-
lo!
Outros e outros deram um passo à frente, e cada um deles dizia, em
rápidas palavras, a sua história de crueldades. Depois que todos tinham
falado, Ket, o Gnomo, avançou e gritou, apontando com o dedo para
Belame:
— Com a sua própria mão malvada, esse homem matou a dama mais
bondosa que havia, desde Barnisdale até a Terra dos Mouros. Ele matou-a,
quando ela falava com ele no portão do seu castelo, e riu-se, quando a viu
cair!
— Ele estava junto de Ranulfo de Waste, quando este torturou, a fogo,
nosso pai, Colman Grey! — gritou Hob do Morro, que veio coxeando, de
perna e braço ligados.
E ergueu o punho, sacudindo-o diante de Belame, cujo rosto ficou lívido,
ao ver quanto ódio ardia em cada rosto ao redor de si.
— Isso é bastante... e mais do que bastante! — disse Robin afinal. — E
que dizem, senhores cavaleiros? Estes homens são da cavalaria e usam
brasões, e por isso deviam morrer pela espada. Mas eles provaram que não
são melhores do que ladrões e faquistas de estrada, e eu os condeno à
morte vergonhosa da forca!
Um poderoso brado de assentimento ecoou pelo enorme salão:
— À forca! À forca com eles!
— Nós concordamos contigo, escudeiro Robin — disse sir Fulk do
Dykewall, quando de novo se fez silêncio. — Ambos perderam todo
direito à sua categoria. As esporas lhe serão arrancadas dos calcanhares, e
seus corpos se balançarão na forca.
E assim se fez. Entre os gritos de triunfo dos homens excitados que
estavam ao redor deles, João Pequeno arrancou as esporas dos dois
senhores de Wrangby; e então, por entre gritos de alegria enfurecida,
foram levados para fora, pela multidão que era como uma onda
encapelada. As tochas derramavam sua lúgubre luz sobre aqueles rostos
endurecidos e aqueles olhos chamejantes — porque a bondade natural,
usual neles, se transformara naquele momento em selvageria.
Terminado o ato de justiça selvagem, derramaram piche e alcatrão e
azeite por todas as salas do castelo e atiraram tochas lá dentro,
incendiando a palha já amontoada por toda parte. Então todos saíram
correndo, e foram postar-se defronte das muralhas negras, vendo já
escorrer das seteiras a fumaça escura e untuosa, que se enroscava no ar.
Línguas de fogo saltaram, brotando da torre visguenta e dos florões
retorcidos, e dali a pouco, já com a força aumentada, o fogo irrompia
através dos soalhos do grande salão e dos quartos de cima, atirando-se
como uma torrente furiosa para o céu escuro. Ruídos fragorosos se
erguiam quando os grossos barrotes se desprendiam e quando caíam os
caibros e as vigas, as ripas e esteios; as chamas e faíscas iam-se erguendo
cada vez mais alto, mais alto, até que a fogueira imensa brilhou sobre toda
a região. Pastores que cuidavam de suas ovelhas lá longe, nos montes
distantes, olhavam e olhavam, e não queriam crer nos próprios olhos;
depois faziam o sinal da cruz e murmuravam uma oração de graças,
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porque, fosse lá como fosse, o Castelo da Malvadez de Wrangby estava
afinal ruindo, no meio das chamas. Bandos de ladrões, do mau exército do
rei, que atravessavam as alturas do Peak, ou os morros de Yorkshire, viram
a fogueira distante, e não sabiam ainda que uma das mais negras fortalezas
do seu rei endurecido e dos seus lordes perversos estava desmoronando,
roída pelas chamas, às mãos daqueles que, há tanto tempo e com tamanha
crueldade oprimidos, se haviam levantado finalmente e conquistado a
liberdade.
No dia seguinte, tudo o que restava do forte castelo que fora o signo do
mal durante duas gerações, pelo menos, era um monte fumegante de
pedras despedaçadas e enegrecidas. Uma fumaça esbranquiçada se erguia
da fornalha rubra que ardia dentro das paredes, que ainda estavam de pé;
mas as pedras estavam tão arredadas e partidas pela ação do fogo, que
jamais poderiam servir para a construção de outra habitação.
Robin saiu da sombra do Carvalho da Baliza, onde passara a noite com
seus homens e foi olhar para as ruínas fumegantes e para as duas forcas
rígidas que se erguiam defronte delas; lá estavam os corpos dos maus
cavaleiros Belame e Balduino.
Tirando seu capacete de aço, curvou a cabeça e, em silêncio, dirigiu uma
prece à Virgem, agradecendo-lhe o auxílio tão grande que lhe dera. Seus
homens o rodearam, tirando os elmos e orando como ele.
Da planície veio então uma multidão de camponeses — uns correndo,
outros andando lentamente, não querendo dar inteiro crédito ao que viam
seus olhos. Alguns foram ter com Robin, e velhos e velhas, cujos rostos,
como as mãos, estavam gastos e envelhecidos no trabalho, pegavam-lhe na
mão e beijavam-na, ou ao menos lhe roçavam com os lábios os pés ou a
fímbria da cota de malha. Uma jovem mãe ergueu o seu nenê, e com os
olhos cheios de lágrimas, disse ao filhinho que olhasse para Robin Hood,
“o homem que tinha matado os maus senhores e incendiado o seu antro”.
— Chefe — disse Rafe do Alfanje —, não vás para longe de nós, senão
outros senhores, tão maus como aqueles, agora ali dependurados, virão
tomar outra vez estas terras e construir outra prisão diabólica, para
torturar esta terra e sua pobre gente!
Então Robin, erguendo a mão direita ao falar, em sinal de juramento,
prometeu:
— Pela doce Mãe dos Céus, enquanto eu for vivo ninguém há de possuir
esta terra, a não ser para governá-la com justiça e misericórdia, como eu
mesmo havia de governá-la!
— Amém! — foi a resposta profunda que ouviu de todos os lados.
xi
A morte de Robin Hood
v
NUNCA MAIS, depois da morte de sua mulher Marian, Robin Hood saiu da
floresta. As terras de Malaset foram ter às mãos de um parente afastado do
conde FitzWalter, que as governou bem, tratando com bondade vilões e
lavradores, sem esquecer o devido respeito às tradições daquele feudo.
Muitos dos que tinham sido proscritos com Robin, e vieram depois a ser
seus rendeiros em Malaset, recusaram-se a tornar ao castelo; tendo
provado mais uma vez a vida livre e rústica da mata, preferiram ficar com
ele. E, tendo aumentado o bando aos poucos, por causa das contínuas
roubalheiras, assassínios, pilhagens e crueldades do rei tirano, não foi
difícil concordarem com a proposta de Robin, de dar cabo do exército real.
Por isso, depois que o castelo de Wrangby ficou arrasado — nivelado com
o chão, de modo que não restava pedra sobre pedra — dirigiu-se ele para o
norte, e, retirando-se para os matos e lugares assolados, deu de rijo nos
flancos dos pilhantes flamengos, brabantinos, saxões e poatevinos, que
compunham o exército do rei. E Robin e seus bravos companheiros caíram
sobre alguns grupos de saqueadores, ocupados em torturar cavaleiros ou
vilões, e em depredações espantosas. Com suas enormes flechas de guerra
derrotava-os, ou os destruía completamente, merecendo assim a gratidão
de muitos cavaleiros e damas, vilões e rendeiros livres, que dali por diante
mostraram sempre grande reverência pelo nome de Robin Hood.
Quando, afinal, o rei João morreu envenenado em Newask, e seu filho
Henrique foi coroado e reconhecido rei por todos os grandes barões e
lordes do reino, Robin tomou posse de seus antigos quartéis em Barnisdale
e em Sherwood. Ainda se achava aquela terra atormentada com opressões
e injustiças, porque o rei era apenas um menino; alguns dos lordes
perversos se recusaram a restituir os castelos que tinham tomado durante
a guerra entre João e seus barões, e, tendo vivido tanto tempo da pilhagem
que exerciam na própria vizinhança, não queriam agora deixar aquele meio
de vida — o roubo e a extorsão sobre os mais fracos. Sempre, entretanto,
que Robin era avisado, por algum vilão ofegante ou mulher lavada em
lágrimas que lhe vinha pedir auxílio, de alguma ação dessas, saía de seus
covis da floresta com seu bando escolhido e passava pela terra com tanta
subtileza, e suas setas voavam por entre os malvados com tamanha
rapidez, que raras vezes falhava: derrotava sempre os senhores patifes e
suas companhia de ladrões, além de incutir neles um medo salutar do seu
nome e de suas setas, que nunca erravam o alvo, e que podiam varar a mais
grossa cota de malha.
Por felicidade, os conselheiros do jovem rei deram as terras de Wrangby
em arrendamento a um lorde justo, parente do conde de Warenne, que
tratava seus vilões e rendeiros com bondade, de sorte que a memória dos
maus dias de opressão e crueldade, sob o tacão de sir Isenbart de Belame,
se foi diluindo aos poucos e chegou a se apagar quase por completo e
parecia até que já ninguém se lembrava desse tempo.
Mas em outras regiões do reino a opressão e a miséria ainda
campeavam. Barões insolentes mandavam grupos de homens armados
tomar conta de terras pertencentes ao rei em vários lugares e repeliam
delas os verdadeiros rendeiros, ou os matavam; vizinhos mais fracos
estavam sempre receosos de um ataque mortal, ou de ver suas terras
arrebatadas. E assim, acobertados por esta desordem, iam eles cometendo
diariamente toda sorte de extorsões e pilhagens. E o fato é que bandos de
ladrões de estrada andavam à tuna, envergando a libré de grandes lordes, e
infestavam as estradas e caminhos solitários da floresta em muitos pontos
do país — sempre prontos a cair sobre mercadores e viajantes com suas
mercadorias e bagagens, e até sobre pobres camponeses ou rendeiros
livres, que iam levar seus produtos ao mercado.
Um dia estava Robin, em companhia de João Pequeno e de Scarlet, no
limite de Sherwood com Barnisdale. Esperavam notícias de um grupo de
homens que tinha começado a infestar aquela parte do país — eram
mercenários à conta de Rogério de Doncaster, aquele mesmo cavaleiro
que, com uns dez soldados, conseguira escapar do combate diante do
Castelo da Malvadez. Robin sabia que o objetivo de Rogério era armar-lhe
emboscadas até que conseguisse matá-lo um dia, mas até então os
bandoleiros ainda não haviam tido contato com os ladrões.
Estavam sentados em uma pequena clareira, toda cercada de densas
moitas de azevinhos, mas dali podiam ver por entre a folhagem, para
ambos os lados, um grande trecho das trilhas da floresta. Nisto ouviu-se o
ronco do esquilo; Robin respondeu, porque era aquilo um sinal entre os
esculcas. Pouco depois entrava na clareira Ket, o Gnomo.
— Chefe — disse ele — , eu e Hob temos vigiado a casa de Rogério de
Doncaster, em Syke. Ele e seus homens saíram esta madrugada e foram
para as Casas de Pedra, por Barnisdale e Four Wents. Creio que estão à
espera ali, para caírem sobre o comboio do bispo, que vai hoje levar
mantimentos e fazendas para a Abadia de Wakefield, em Lincoln.
— Vamos, João! E tu também, Scarlet! Vão depressa a Stane Lea e
reúnam todos os homens que encontrarem; e vão exercitar suas forças
contra aquele cavaleiro ladrão e seus sequazes. Eu os seguirei daqui a
pouco.
Saíram os dois, obedecendo prontamente, e perderam-se depressa nos
meandros da mata. Ket ficou ali, firme, esperando instruções.
— Ket, vai ter com Will, o besteiro, e pede-lhe que traga os vinte
homens de vigia que tem consigo e os espalhe pela estrada e atalhos da
floresta, de Doncaster para cá. Se encontrares teu irmão Hob, manda-o
aqui.
E Ket, fazendo com a mão um gesto, em sinal de que compreendera,
voltou-se e sumiu-se no meio da floresta, um tanto admirado daquelas
ordens. Se, pensava lá consigo, os homens de sir Rogério estavam indo
para o norte, para Barnisdale, e Robin mandara seus homens para lhes
armar ciladas, por que queria que fosse vigiada a estrada sul, que vinha de
Doncaster? Era vivo de espírito, contudo, e pensou: era porque Robin
estava convencido de que a viagem de sir Rogério para Barnisdale era
fingida, e um outro grupo iria para o sul, para ver se apanhava e matava o
próprio Robin. Lembrou-se então de que muitas vezes a viva inteligência
de seu chefe descobria mais do que qualquer dos seus esculcas lhe podia
dizer.
Quando Ket se retirou, Robin saiu da clareira e foi até a estrada, e foi
andando pela sombra tranquila. A cerca de meia milha ao sul, encontrou
uma vereda que se desviava para um lado, por entre as árvores, e avistou
ali um homem de fronte estreita e olhar cruel, vestido de camponês,
deitando olhares furtivos para um e outro lado do atalho. Trazia na mão
um arco, e preso à cinta o carcás cheio de flechas.
— Bom dia, bom homem — disse Robin. — Aonde vais?
O camponês, tomado de surpresa pela aparição silenciosa de Robin,
olhava para todos os lados, mas não diretamente para Robin. E respondeu-
lhe:
— Bom dia, bom mateiro. Perdi-me na mata. Podes dizer-me qual é o
caminho para a Abadia da Rocha?
E, olhando-o aparentemente com indiferença, Robin respondeu:
— Sim, posso mostrar-te o caminho. Estás muito afastado dele.
— Sim, é fácil a gente se perder nesta floresta de má morte! —
resmungou o camponês.
— Quando descobriste que te havias desviado do caminho?
— Oh! Há apenas uma ou duas horas. Disseram-me que o caminho
passava pela aldeia de Scatby, mas parece que há horas ando caminhando,
sem avistar um teto sequer nestes matos bravos!
Robin riu. Poderia dizer àquele homem que ele andava assim vagando
desde o meio-dia da véspera, quando o avistara por entre a folhagem,
escondendo-se como um gato-do-mato pelos atalhos da floresta, como se
andasse a espiar alguém, sem querer que o vissem.
— Tens de andar apenas mais uma ou duas milhas — disse ele — e
encontrarás o caminho certo. Mas, a julgar pelo arco que trazes, deves ser
um bom arqueiro…
— Sim — disse o homem, com um olhar astucioso. — Sou um bom
arqueiro… e melhor, até, do que muitos ladrões fanfarrões que andam
vadiando por estes matos e matam a caça del-rei.
— Pois então vamo-nos divertir um pouco, e ver qual de nós é o melhor
besteiro.
— Concordo — disse o homem, tirando uma flecha do carcás e
cravando em Robin um olhar agudo e mau.
Robin foi até uma aveleira e cortou duas varas direitas, pelando-as na
parte superior, para que assim fossem mais facilmente vistas. Fincou uma
no chão, no lugar onde estavam, e pendurou-lhe na ponta uma grinalda
grosseira de folhas de sorveira, já avermelhadas pelo outono, e que por
isso se diferençariam bem contra a brancura da aveleira.
— Agora vamos medir cinquenta passos. Fincarei esta outra no ponto de
onde vamos atirar.
Enquanto fazia tudo isso, não tirava os olhos do outro homem, que
durante todo este tempo estivera com a flecha meio estirada no arco,
como se estivesse ansioso por atirar. E ria enquanto iam ambos andando
lado a lado, para medir a distância. Afinal o homem disse, num grunhido:
— É um tiro diabólico esse que queres experimentar; estou habituado a
atirar em alvos maiores do que aquela novidade de varinhas e coroas.
Robin não deu atenção ao que o outro dizia, mas continuou a contar até
completar cinquenta passos; e o outro, quase como se fosse a contragosto,
ia andando ao seu lado, de mau humor. Pediu-lhe Robin que atirasse
primeiro, mas o homem preferia ver primeiro o seu tiro. Robin tomou
então duas flechas do carcás e lançou uma ao alvo. A seta atravessou a
grinalda, passando mais ou menos a dois dedos da vara.
— Não gosto dessa maneira de atirar — resmungou o rústico. — É
assim que atiram os escudeiros estúpidos e os malucos da cidade.
Robin não respondeu, e o homem atirou. Como era de esperar, não
acertou na grinalda, e a flecha foi para o lado, longe dela.
— Precisas de mais prática, meu amigo — disse Robin. — Acredita-me,
vale a pena que demonstres tua habilidade em um belo alvo como este.
Não há mérito em subir de rastos e atirar na caça de cima, oculto pela
árvore… muitas vezes um tiro a distância é de mais valor. Vou
experimentar outra vez.
Dizendo isso, Robin mirou com cuidado, e desta vez a flecha deu
verdadeiramente no alvo, porque bateu na fina vareta e partiu-a em duas
partes iguais.
— Esse tiro não valeu! — gritou o outro, irritado. — Uma rajada de
vento levou tua flecha contra a vareta.
— Não, bom camarada — disse Robin tranquilamente —, não digas
asneiras. Foi um tiro perfeito, como bem sabes. Tira agora esta vara daqui
e vai enterrá-la em lugar da que eu quebrei. Vou cortar outra, que
fincaremos a trinta passos, para que pratiques mais um pouco, antes que
eu vá te mostrar o caminho.
O patife, resmungando e deitando olhares sombrios, pegou a vara que
estava onde eles tinham ficado para atirar e foi com passos vagarosos para
o alvo partido, a cinquenta passos dali. Andou uns vinte passos e voltou-se
depressa, então viu que Robin estava — aparentemente — muito ocupado
ao pé de uma moita densa de aveleiras, procurando uma vara bem reta. O
maroto ajustou rapidamente uma seta ao arco, gritando quando ela partiu
pelos ares:
— És tu o alvo que procuro, “cabeça de lobo!”
Robin caiu dentro da moita quando a seta o alcançou, e o homem,
soltando uma risada cruel, chegou mais perto, como se quisesse se
certificar de que de fato matara o bandoleiro, a quem há tanto tempo
espionava. Viu as pernas, que saíam duras e rígidas de dentro da moita, e
fez uma careta de alegria. Depois, pondo os dedos sobre os lábios, soltou
um assobio longo e estridente, e veio correndo olhar a sua vítima.
Mas, de um pulo, o morto levantou-se de repente, tendo na mão a flecha
que o assassino gorado tinha atirado. Já estava agora ajustada ao arco que
Robin tinha na outra mão. O homem estacou de repente, e dos lábios
lívidos saiu-lhe um grito.
— Assassino e ladrão! — disse Robin com um riso de desprezo. — Nem
no alvo que estás mirando há dois dias podes acertar, sequer a vinte
passos! Sim, podes correr, mas é a tua própria flecha que vai te dar a
morte!
O homem tinha-se virado, e saíra a correr vertiginosamente, andando
em zigue-zague, para baralhar a mira de Robin.
Este esticou o arco o mais possível e parou um momento; então a corda
tangeu com um som altíssimo — e a flecha partiu. O homem soltou um
gemido surdo, deu um salto de quase um metro de altura e caiu estirado
no chão, com a seta espetada nas costas.
No mesmo instante ouviu Robin o barulho de ramos quebrados ao seu
lado, e, mal tinha atirado fora o arco, da moita ao pé dele saltou uma figura
estranha. Por um momento, enquanto dava um passo atrás para poder
puxar a espada, o bandoleiro ficou assombrado, tal era o aspecto da figura
— um cavalo escuro, firmado nas patas traseiras, que se ia lançar em cima
dele. Os enormes dentes brancos de fora, como se fosse despedaçá-lo, e a
crina para trás, pronto a arremessar-se em um ataque furioso.
Mas Robin soltou uma risada. A pele do cavalo continha um homem; em
uma das mãos trazia uma espada nua; na outra, um escudo. Era sir Guy de
Gisborne, que, com o fogo do ódio a lhe brotar dos olhos, atirava-se contra
o bandoleiro.
— Ah! Guy de Gisborne, cavaleiro traidor! — gritou Robin, motejando.
— Vieste, afinal, tu mesmo em pessoa? Durante anos e anos tens
mandado teus espiões, teus embusteiros, teus assassinos secretos, para me
matar, e agora vieste em pessoa, para executar o feito… se puderes!
Nada respondeu Guy de Gisborne. Ódio — um ódio feroz luzia-lhe nos
olhos, e ele atirou-se com a fúria de um lobo sobre o seu inimigo. Robin
não tinha escudo, mas tinha consigo alguma coisa que valia quase tanto
como uma proteção: porque enquanto o outro lhe batia na lâmina da
espada, cheio de ódio, ele não perdia nem a serenidade do cérebro nem a
agudeza de vista.
Por algum tempo nada mais se ouviu senão o tinido de espada contra
espada, quando um golpe era aparado. Andavam ambos em roda, naquela
dança feroz que só acabaria com a morte de um deles, cada qual com os
olhos fixos nos olhos penetrantes do outro. De repente a espada de Robin
saltou sobre a guarda da espada do outro, e a ponta foi furar e rasgar o
couro de cavalo, cortando o ombro de sir Guy.
— Tua sorte acabou-se, Guy de Gisborne! — gritou Robin triunfante. —
Escapaste um dia com vida de tua casa em chamas nesta pele de cavalo, e
pensaste que ela te traria sorte contra a ponta da minha espada!
— Cabeça de lobo! Ladrão de estrada! — gritou Guy. — Isto foi apenas
uma esfoladura, mas a minha boa espada ainda há de te arrancar a vida!
Com uma finta rápida e violenta, Guy arremeteu com um golpe debaixo
do braço direito de Robin. A ponta da espada cortou a túnica de pano
verde de Lincoln do bandoleiro, e ele sentiu do lado como uma faísca que
o queimava. A ponta da espada de Guy ferira-o levemente, mas isso não
alterou Robin nem por um instante. Rápido como o relâmpago, o
bandoleiro deu um bote para a frente, e, antes que Guy pudesse se
recobrar, já a espada do adversário lhe varava o peito. O cruel cavaleiro
deixou cair a espada, vacilou um momento, deu uma volta e caiu
pesadamente ao chão, onde ficou imóvel como uma pedra.
Robin, ofegante, curvou-se sobre a espada e olhou para o inimigo morto.
— Minha espada vingou, pois, com o auxílio da piedosa e doce Virgem
Maria, todas as crueldades e opressões que teu mau coração e espírito
cruel causaram — a tortura de homens pobres pela fome, a extorsão e
trabalho excessivo, as dores que padeceram mulheres e crianças, a quem
teu mau coração não poupou nem os golpes nem as lágrimas… Assim
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minha espada pudesse matar também, e com a mesma facilidade, a tirania
e a injustiça de todos quantos estão hoje em dia com o poder na mão e se
aproveitam dele para fazer as pobres criaturas chorar e padecer!
Voltando-se, viu Hob do Morro que se aproximava. Este veio correndo e
disse-lhe:
— Chefe, vi o bom combate e o golpe acertado que lhe deste. Agora, de
todos os teus inimigos, só resta vivo um — sir Rogério de Doncaster.
— Não, Hob; há muitos inimigos dos homens pobres que ainda vivem
em seus fortes castelos e nas abadias cheias de esculturas, a quem eu
nunca matarei.
— Sim, sim, senhor, dizes a verdade. Enquanto o pobre vilão tiver de
suar no rude trabalho e sofrer pancadas, e ficar sempre preso à tarefa, sem
liberdade, nada possuindo, nem sequer a mulher e o filho que ele beija
quando sai para o trabalho de madrugada — enquanto isso durar, teremos
inimigos. Mas agora, chefe, venho dizer-te que os homens de Rogério de
Doncaster rumaram para o sul, e a esta hora estão em Hunger Wood.
Presumo que obedecem apenas a ordem deste mordomo que aqui está
morto, e te armarão uma emboscada.
— Onde está Will, o besteiro, com seus homens?
— Estão todos espalhados pela estrada do sul, espionando os bandidos
de Rogério.
— Vai a toda pressa falar com João Pequeno. Pede-lhe que volte, se é
que já não soube que os homens de Rogério vêm vindo para o sul. Que vá
no seu encalço, mas sem que eles o descubram. Quando ele estiver ao
norte de Hunger Wood, pede-lhe que faça duas curvas pela mata, de forma
que cerque os bandidos. Então, com os homens de Will, eu os repelirei, e
João providenciará para que não escape um só deles vivo. Será uma boa
lição para que meus inimigos não tornem a meter a cabeça na boca do
lobo.
Hob saiu correndo, enquanto Robin também se dirigia a toda pressa para
a estrada de Doncaster, onde encontrou logo Will, que o esperava em uma
clareira.
— Então agora, chefe — disse o velho Will, já grisalho, mas sempre
robusto e resoluto —, meus esculcas dizem que aqueles patifes são
muitos, e que vêm atravessando as matas como se nada tivessem a temer.
Dizem que quem os guia é um canalha muito finório, um degolador
brabantino, chamado Fulco, o Vermelho, que já guerreou na França, na
Alemanha e na Palestina, e conhece todas as artes da guerra. Nós não
passamos de vinte, e o João Pequeno está com o seu grupo a três milhas
daqui.
— Já mandei Hob chamar João Pequeno. Estará aqui dentro de uma
hora. Até que cheguem, temos de manter aqueles patifes a distância. João
os atacará pela retaguarda, e creio que, apesar de todo o infame
conhecimento que eles têm de incêndio e pilhagem, adquirido no serviço
de nosso rei tirano, aqueles flamengos e brabantinos virão achar a morte
nas nossas mãos inglesas.
Dali a um momento chegou um esculca dizendo que o inimigo marchava
para a clareira de Beverley, e Robin ordenou imediatamente que os vinte
besteiros de Will se escondessem nos tufos à beira da clareira. E logo,
saindo das árvores do outro lado desta, apareceram os capacetes dos
estrangeiros. Eram homens de aparência cruel e resoluta, pois guerreavam
pela mão que lhes pagasse, fosse qual fosse, com a mira na pilhagem e
presa de guerra que assim obtinham. Os camponeses ingleses odiavam
entranhadamente aqueles marotos estrangeiros, que não poupavam nem
mulheres nem crianças, e eram tiranos e cruéis.
Eram uns oitenta; vinte besteiros, e vinha à frente o chefe — um homem
de cara vermelha, de aspecto feroz, e todo coberto de malha de aço, da
cabeça aos pés. Adiantavam-se com prudência, trazendo esculcas nos
flancos, por entre as árvores, e olhavam atentamente para todos os lados,
enquanto andavam. Cada soldado trazia um escudo na mão esquerda, e na
outra flamejava a espada nua. Robin não deu o sinal convencionado senão
quando estavam a uns vinte passos das moitas onde estavam ocultos os
bandoleiros. Então, a um silvo agudo, vinte flechas grandes zuniram no ar,
e tão certa era a pontaria de cada uma que outros tantos inimigos
vacilaram e caíram, cada um com uma grande haste profundamente
cravada no grosso gibão ou na garganta. E entre esses estavam quinze
besteiros.
Outro silvo, e, antes que os patifes tivessem tornado a si do espanto,
outra revoada de flechas era lançada contra eles, e mais doze caíram,
mortos ou feridos.
Então, soltando um brado feroz de comando, Fulco, o Vermelho, atirou-
se para as moitas, seguido pelos sobreviventes, que ainda ultrapassavam
em número os bandoleiros. Rápidos como furões — e como eles furtivos
— retiraram-se os homens de Robin, correndo de árvore em árvore; mas,
sempre que se oferecia uma oportunidade, voava de uma moita inocente
uma seta rechinante, e outro velhaco caía, contorcendo-se, agonizante. Os
outros corriam para todos os lados, procurando ferozmente seus inimigos
ocultos. Três bandoleiros foram mortos na primeira investida, mas quando
os estrangeiros corriam de moita em moita, e procuravam atrás de uma ou
outra árvore, eram observados pelos mateiros manhosos, e sempre o canto
horrendo de uma flecha ia repentinamente acabar em um grito de agonia,
ao penetrar em um coração cruel.
Não obstante, o bando de mercenários prosseguia e os bandoleiros
tinham de recuar, porque não podiam arriscar-se a enfrentar os outros em
campo aberto. E tão cerrada era a perseguição de Fulco, que mais alguns
dos bandoleiros retirantes caíram ao fio da espada, e Robin viu com raiva e
desespero que já perdera oito homens. Perguntava consigo o que faria para
vencer o inimigo, mas não encontrava saída.
De repente viu Fulco arrojar-se para uma moita onde tinha avistado um
bandoleiro emboscado. Era Gilberto da Mão Branca, que, vendo-se
descoberto, e não tendo tempo de distender o arco, procurou salvamento
na fuga. Correu para o lado da árvore atrás da qual se achava Robin, e
Fulco o perseguia, de espada erguida. Quando o brabantino passou, Robin
lançou-se à frente de espada em punho e bateu no estrangeiro. Este parou
o golpe rapidamente com o escudo, logo deu volta e atirou-se a Robin. Em
aceso combate ficaram os dois engalfinhados, andando em roda, tinindo as
espadas quando paravam os golpes. Mas de súbito um dos outros homens
veio se arrastando, resolvido a matar Robin por detrás. Will, o besteiro,
viu o que ele ia fazer e correu para a frente, espada em punho, mas apenas
para ser abatido por outro flamengo, que saíra de trás de uma árvore. O
último alento do velho foi ainda um grito de aviso:
— Cuidado, Robin!
Veio voando, de uma moita, uma seta, e o homem que se arrastava para
o lado de Robin deu um salto, e caiu pesadamente, ficando quieto no chão.
Uma segunda flecha matou o que prostrara Will Stuteley. Então ambos os
grupos, de seus esconderijos, pareciam apenas atentos ao combate entre
os dois chefes.
O brabantino, famoso espadachim, achara contudo seu êmulo. Nunca
vira até então um pulso tão firme, nem golpes tão fortes; e era em vão que
experimentava suas velhacarias e habilidade de mão contra aquele homem
ligeiro, que parecia cercado por um estojo de aço, quando era apenas a sua
espada que saltava tão vivamente, sempre em guarda.
Enraivecido da longa resistência, Fulco já ia enfraquecendo, naqueles
ataques inúteis, ainda que vigorosos. Mas de repente viu luzirem os olhos
de Robin com um brilho estranho, cuja intensidade quase o fascinou. E
percebeu que o bandoleiro dava um passo que lhe deixava a descoberto o
lado esquerdo do peito. Mais que depressa o brabantino, aparando o
passo, atirou a ponta da espada ao peito do adversário. O bandoleiro
saltou para o lado e a espada de Fulco mergulhou no ar vazio, e
imediatamente, curvando largamente o braço, Robin metia a espada,
profundamente, no pescoço do mercenário, que lhe caiu morto aos pés.
Ergueu-se da garganta dos bandoleiros um grande brado de alegria, e os
arqueiros, encorajados pela vitória, saíram em campo aberto à procura dos
inimigos. Estes, porém, perdendo a coragem com a morte do chefe,
começaram a retirar-se, correndo por detrás das árvores, que os
escondiam. Era em vão, contudo, que procuravam abrigo nos seus troncos,
porque as flechas mortíferas, como abelhas enormes, procuravam
empenhadamente seus esconderijos. De vez em quando eles se refaziam
de coragem e voltavam-se para enfrentar os bandoleiros temerários, mas
era apenas por alguns instantes. Viram-se compelidos a retirar-se, diante
da saraivada de flechas que convergia sobre eles, trazendo ferimentos e
morte — de inimigos que desapareciam instantaneamente.
De repente, de três direções — de trás e dos lados — veio o canto de
chamada do galo-da-campina. E retiniu tão audacioso, que rebentaram
risadas dos bandoleiros, escondidos aqui e ali, enquanto outros
perguntavam consigo se seria na verdade João Pequeno — porque era
aquele o seu grito de aviso. Um grito de resposta de Robin tranquilizou-os,
e dali a pouco já avistavam por entre as árvores os casacos de pano verde
de Lincoln.
Compreendendo então que estavam cercados pela retaguarda e pelo
flanco, brabantinos e flamengos, que sabiam não ter mercê a esperar nas
mãos dos ingleses, atiraram-se juntos, resolvidos a vender caro a vida.
É inútil falar desse último combate. Ele só podia acabar de uma maneira.
Os ingleses odiavam aqueles estrangeiros invasores com um ódio tão
entranhado que não podiam ter misericórdia, e quando lançavam suas
flechas sabiam bem que elas iam carregadas de vingança — vingança de
inenarráveis atos de assassínios e crueldades cometidos contra mulheres e
criancinhas indefesas e homens desarmados, quando aqueles pilhantes
miseráveis se haviam espalhado como uma praga por aquela terra, sob a
bandeira do rei João, trazendo ruína, fogo, morte, miséria e fome a
centenas de lares humildes e aldeias pacíficas.
Rogério de Doncaster, que ficara à espera, com meia dúzia de soldados,
na orla da mata, não podia adivinhar por que Guy de Gisborne e Fulco
demoravam tanto.
As sombrias naves de árvores gigantescas não permitiam que ouvisse os
gritos de triunfo, nem que visse o fulgor das espadas desembainhadas, mas
ainda assim mandou muitas vezes dois ou três de seus homens que fossem
pela floresta ao encontro dos vencedores.
Afinal viram um carvoeiro que vinha por entre as árvores, com seu saco
de carvão. Dois soldados o apanharam e levaram-no para onde estava o
cavaleiro. Sir Rogério, do alto da sua sela, perguntou-lhe se não tinha visto
uma tropa de soldados pela mata.
— Não, não — disse ele na sua língua rude —, não vi nenhum homem
vivo, mas vi uma pilha de mortos na clareira de Beverley, e cada um deles
tinha uma seta de uma jarda espetada no corpo. Tinham cara de
estrangeiros. Sessenta deles!
Sir Rogério deu volta ao cavalo, soltando uma praga selvagem.
— Aquele “cabeça de lobo” é o próprio demônio! — bradou ele. —
Ninguém pode lutar com ele nas suas matas!
A toda pressa, ele e seus homens foram saindo dali, deixando o carvoeiro
a olhar para eles. Afinal, disse lá consigo:
— Sim, sim, nenhum de teus bandidos cruéis pode esperar outra coisa
senão a morte, enquanto Robin for o rei destas matas. Eram sessenta ou
oitenta, no morticínio de Easterlings, e cada um deles tinha no corpo a
marca de Robin!
Muitos anos depois, o lugar onde Robin tinha executado aquela vingança
tremenda sobre os mercenários estrangeiros era ainda conhecido por
“Campina da Matança”, em vez do seu nome primitivo, que era Beverley
ç y
Glade, ou Clareira do Castor. E durante muito, muito tempo, não só os
camponeses, mas os outros que passavam perto do montículo que
marcava o local onde Robin enterrara os mortos, contavam esta história
uns aos outros.
Após esses feitos, Robin viveu muitos anos sem ser perturbado nas
florestas de Barnisdale e de Sherwood; e, embora fosse um proscrito,
muitos homens bons lhe respeitavam o nome, mas era temido pelos
opressores. Sempre que um senhor praticava algum ato de crueldade
contra um vassalo, Robin exigia que o cavaleiro soberbo recompensasse o
servo; e quando a propriedade de um pobre era invadida por outro mais
forte, eram ainda os arqueiros ocultos de Robin que tornavam aquele lugar
insuportável para quem quer que não fosse o dono.
Eu teria de escrever outro livro do tamanho deste, se quisesse relatar
todos os feitos e ações famosas que Robin praticou enquanto viveu na
mata por aquele tempo. E foram quinze os anos que lá viveu, e cada ano
sua fama aumentava.
Um de seus grandes feitos foi aquele longo combate em que se
empenhou por amor do jovem Drogo de Dallas Tower, em Westmoreland.
Os fronteiriços, todos eles ladrões e saqueadores, tinham expulsado sir
Drogo de suas terras, porque ele castigara um dos seus companheiros, e o
jovem cavaleiro estava em grandes apertos. Com o auxílio de Robin e de
seus besteiros, conseguiu ele repelir os intrusos, e as flechas compridas
inspiraram tamanho terror, que nunca mais Jordan, Armstrong, Douglas
ou Graham se aventuraram a ofender o amigo de Robin.
Seguiu-se então aquele grande feito, não de guerra, senão de paz, em que
Robin compeliu o jovem escudeiro de Thurgoland a render justiça a sua
mãe, tratando-a com bondade. Ela fora serva, ou vilã, nas terras de sir
Jocelyn de Thurgoland e trabalhava nos campos. Enquanto seu senhor e
marido era vivo, ela era livre e vivia feliz com sir Jocelyn. Tinham um filho,
Estêvão, tão severo e grosseiro, que todos diziam, ao falar nele:
— Nem parece filho do nobre Jocelyn e da meiga Avis!
Quando sir Jocelyn morreu, seu filho tornou-se lorde, mas a lei injusta
daquele tempo declarava que Avis voltava agora à condição de serva na
terra de seu filho, porque, com a morte do marido, perdera a liberdade.
Por ela se opor um dia à ira injusta do filho contra um pobre servo do
feudo, Estêvão jurou que se vingaria da própria mãe. E expulsou-a da casa
senhorial, obrigando-a a sair com roupas esfarrapadas e ir para casa dos
parentes — que também eram dele — em uma aldeia próxima. Avis
censurou vivamente o filho desnaturado, mas voltou, cheia de modéstia e
dignidade, para o duro trabalho em que não pusera as mãos durante trinta
anos; quanto ao filho, uniu-se a maus companheiros, sabendo bem que sua
mãe os detestava, porque sempre o aconselhara a evitá-los.
A história do filho que votou a própria mãe à servidão espalhou-se por
toda parte e indignou todos os homens e mulheres de caráter reto. E
perguntavam, ao passo que iam se passando os dias e as semanas, por que
não caía um castigo do céu sobre um filho tão desnaturado e mau. Ele,
porém, continuava a se divertir, no meio das festas, sem que nada viesse
perturbar a sua vida de distrações de toda sorte.
Mas uma noite, estava o escudeiro Estêvão no meio de seus alegres
companheiros, em grande festim, quando entraram no salão sessenta
homens vestidos de escuro, que arrebataram o cavaleiro do meio de seus
hóspedes aterrorizados, levando-o consigo, a despeito da furiosa
resistência que opunha. Por algum tempo ninguém soube o que fora feito
dele. Espalhou-se depois pela região a notícia de que o escudeiro estava
trabalhando como servo nas terras de um feudo na floresta, e que Robin
Hood o obrigava a viver assim até que ele aprendesse a proceder como um
homem da sua categoria.
Durante meses, o escudeiro Estêvão foi conservado cativo, obrigado a
trabalhar como qualquer dos seus parentes vilões, até que afinal se
envergonhou e se arrependeu, confessando que agira como um rústico e
que não era digno da alta posição que o mero nascimento lhe conferira.
Depois, ainda vestido de vilão, voltou a Thurgoland, foi procurar sua mãe
onde ela trabalhava, na aldeia, e pediu-lhe perdão; e ela beijou-o,
chorando. Então ele a levou pela mão, declarando que era ela a senhora da
casa senhorial. E daí em diante viveu uma vida nobre, como vivera seu pai.
Reconheciam todos que fora este um grande feito, e louvaram os nomes
de Robin e do padre Tuck, que, com seus preceitos e muitos conselhos,
mostrara ao escudeiro Estêvão os erros de sua vida passada.
Outros feitos ainda praticou Robin; o combate com o pirata Damon, o
Monge, que durante tanto tempo e com tamanha crueldade assolara a
costa do Yorkshire. Acabou Robin por matá-lo, em um grande combate
marítimo, na baía que hoje se chama Baía de Robin Hood, onde o navio
pirata foi aterrar, depois de Robin haver enforcado todos os marujos, na
ponta da própria verga grande.
Já haviam passado dez anos desde que Robin começara este segundo
período de proscrição, quando um dia entrou no seu acampamento de
Stane Lea uma dama que, desmontando, se dirigiu ao bandoleiro e
cumprimentou-o. No primeiro instante, ele não a reconheceu. Mas a dama
disse-lhe, sorrindo:
— Pois eu sou tua prima, dona Alice de Havelond. Não te lembras do
auxílio que me prestaste, a mim e a meu marido, há mais de vinte anos,
quando dois vizinhos malvados nos perseguiram?
— Por minha fé! — disse Robin, beijando-a na face. — Faz tanto tempo
que não nos vemos, que não te reconheci mesmo.
Robin recebeu-a com muita amizade, e dona Alice com suas duas criadas
e três servos passaram a noite em um camarim que ele mandou preparar
para ela. Conversaram muito a respeito de seus parentes, falando nos que
tinham viajado e nos outros, que tinham tido também seus dias
tempestuosos. Seu marido, Bennet, morrera há três anos.
— E agora — concluiu ela — estou velha, Robin, e tu também estás
velho. Estás de cabeça branca, e, embora teus olhos conservem o brilho
antigo, e eu não duvide de que ainda tenhas muita força, não é menos
certo que hás de desejar às vezes ter um lugar onde possas viver em paz,
longe dos sustos que tua vida nestes matos há de te proporcionar, não?
Não podes agora despedir teus homens, às ocultas, e ir viver em minha
casa, em Havelond? Lá ninguém te iria perturbar e poderias viver em paz e
tranquilidade o resto de tua vida.
Não hesitou Robin um momento na resposta:
— Não, querida prima; tenho vivido tanto tempo na mata que não posso
desejar mais viver em nenhum outro lugar. Morrerei no mato e, quando
chegar minha hora, peço que me enterrem em alguma clareira, debaixo das
árvores murmurantes, onde em vida eu e meus caros companheiros temos
vagueado à vontade.
— Então, visto que não queres o asilo que te ofereço em lembrança de
tua grande bondade para com meu querido marido, eu vou retirar-me para
Kirklees e passarei o resto da vida no convento em que, como sabes, nossa
tia dona Úrsula é abadessa. E creio que ela, ainda que sempre fale
asperamente de teus atos violentos, te receberá com alegria, pois que és
filho de sua irmã.
Robin prometeu ir visitá-la em Kirklees, e de fato ia lá de seis em seis
meses, não só com o fim de ver a prima, mas também para receber das
mãos dela o tratamento médico que sua idade reclamava cada vez mais.
Naqueles tempos as mulheres tinham grandes conhecimentos de ervas
medicinais, e quando uma pessoa adoecia, em vez de ir procurar um
médico, recorria a alguma mulher reconhecidamente hábil na arte de
aplicar esses remédios. Os homens mesmo acreditavam que, cortar uma
veia do braço e deixar sair um pouco de sangue, era excelente remédio
para algumas moléstias. Era também com este propósito que Robin Hood
ia ao Convento de Kirklees, e lá ficava dois ou três dias de cada vez, para
que o ferimento do braço pudesse sarar completamente.
Nessas visitas via muitas vezes sua tia, dona Úrsula, a abadessa. Era uma
mulher morena e magra, de olhos cheios de astúcia, mas sempre lhe falava
amistosamente. Perguntava-lhe muitas vezes quando é que ele ia comprar
o seu perdão e abandonar aquela vida sem lar, dotando alguma casa
religiosa com as suas riquezas, para obter a salvação de sua alma.
Mas Robin respondia:
— Pouco tenho de meu, e não vou empregar meus bens em alimentar
monges gordos nem freiras preguiçosas. Enquanto meus irmãos da mata
estiverem comigo, e eu puder me servir das pernas que Deus me deu, hei
de viver na mata.
— Contudo — dizia ela —, não esqueças tua tia e tua prima que aqui
estão, e vem quando te der vontade.
Um dia, já no fim do verão, sentiu-se Robin doente e meio atordoado,
então resolveu ir a Kirklees para que sua prima o medicasse. E convidou
João Pequeno:
— Vamos, João, acompanha-me, porque hoje me sinto fatigado e meio
desorientado.
— Sim, querido Robin, irei contigo, mas tua doença vai passar, vais ver.
Eu desejaria, porém, que não fosses àquele convento, porque sempre que
vais lá, e fico à tua espera, sozinho, aqui debaixo das árvores, pergunto
comigo se tornarei a ver teu rosto, ou se não vão te armar alguma cilada
por lá.
— Não, João, elas não me armarão ciladas. Aquelas mulheres são minhas
parentas; e, além disso —, que inimigos temos agora?
— Não sei — replicou João, indeciso, coçando a cabeça grisalha —, mas
Hob do Morro ouviu dizer que sir Rogério de Doncaster é amigo das
freiras de Kirklees.
— Ora, ele está velho, como nós todos, e creio que não há de ter tanto
ódio de mim, depois de tantos anos.
— Não sei… — repetiu João —, mas a cobra morde mesmo que já não
tenha veneno.
Prepararam-se para ir ao convento; Robin e João foram a cavalo e os
outros a pé. Quando chegaram à beira da mata, de onde se avistava o
convento, João Pequeno e Robin desmontaram, deixando ali os cavalos e
os seus homens, que se esconderiam no mato até a volta de Robin. Então,
amparado ao braço de João, Robin dirigiu-se para o portão de Kirklees,
onde João o deixou.
— Deus te guarde, querido Robin — disse ele —, e te faça voltar
depressa para junto de mim. Tenho hoje comigo um pressentimento de
que algo ruim te vai acontecer…
— Não, não, João, não tenhas receio. Senta-te no bosquezinho, e se eu
precisar de ti tocarei a buzina. Tenho meu arco e minha espada, e nada me
pode acontecer de mal entre aquelas mulheres.
E os dois velhos camaradas de armas separaram-se, depois de calorosos
apertos de mão; e Robin, pegando na grande argola de ferro, bateu com ela
no portão, que a abadessa em pessoa abriu imediatamente, pois o vira
aproximar-se, da janela onde estava a observá-lo.
— Entra, Robin — disse ela.
E, enquanto lhe falava com carinho enganador, espiava-lhe furtivamente
para o rosto com o olhar manhoso de sempre. Viu que estava doente, e um
sorriso lhe brincou nos lábios finos.
— Entra; vem tomar uma caneca de cerveja branca, porque hás de estar
fraco da viagem.
— Obrigado, senhora — disse Robin, entrando com passos incertos. —
Mas não comerei nem beberei nada enquanto não for sangrado. Peço-te
que digas à minha prima Alice que estou aqui.
— Ah! Robin, há muito tempo não apareces aqui, e não sabes de nada,
pelo que vejo. Tua prima morreu na primavera; morreu durante o sono, e
está agora enterrada no cemitério.
— Sinto muito sabê-lo — replicou Robin.
E, com o choque que recebeu com esta notícia, vacilou e cairia ao chão,
se a tia não o amparasse com o braço.
— Eu… eu… arrependo-me de não ter vindo aqui mais vezes. Pobre
Alice! Mas estou doente, senhora; corta meu braço e sangra-me, e ficarei
bom e não te incomodarei mais.
— Mas isso não é incômodo, bom Robin.
E a abadessa levou-o para um quarto afastado das salas movimentadas
do convento. Mostrou-lhe uma cama de rodas que estava em um canto do
quarto, e ele deitou-se, com um suspiro de alívio. Então desnudou
vagarosamente o braço, e a abadessa tirou de um saquinho que trazia
preso ao cinto uma faquinha. Pegou no braço trigueiro, agora muito mais
fino do que dantes, e com a ponta da faca deu um talho profundo em uma
grossa veia azul. Amarrando depois o braço, para que ele não pudesse
movê-lo, ela pôs um vaso debaixo do corte deixando o braço fora da cama.
Saiu então do quarto e voltou logo, trazendo um copo com uma bebida.
— Bebe isto, bom Robin, que te vai aliviar do abatimento que estás
sentindo.
Ergueu-lhe a cabeça e ele bebeu o licor até o fim. Soltando um suspiro,
Robin tornou a cair sobre o travesseiro, e disse-lhe, sorrindo:
— Obrigado, muito obrigado, minha boa tia. És muito bondosa com um
homem fora da lei.
Falava já em uma espécie de sonolência; a cabeça descaiu sobre o
travesseiro e ele começou a respirar penosamente. A droga que lhe dera a
abadessa começara a fazer efeito. Com um sorriso maldoso, a dama foi até
a porta do quarto e chamou alguém que estava fora. Entrou a passos
furtivos um homem — um velho magro, de cabeça branca, de olhar astuto
e velhaco, cujo lábio inferior pendia, fraco e débil. Ela apontou com o
magro dedo para a forma de Robin Hood, e os olhos do velho brilharam
àquela vista. Seguia com o olhar as gotas de sangue que escorriam da veia
cortada e iam cair no vaso.
— Se tu te parecesses com um homem, por pouco que fosse — disse ela
desdenhosamente —, puxarias agora da tua adaga e lhe darias morte por
tua mão — e não entregarias à minha lanceta o trabalho de deixar sua vida
ir-se escapando assim gota a gota.
Ao som daquela voz, Robin fez um movimento, e o velho magro voltou-
se e saiu num pulo do quarto, aterrado. A abadessa seguiu-o, tendo os
olhinhos de contas pretas fixos nos olhos velhacos do homem. Tirou uma
chave comprida do saco e fechou a porta do quarto onde Robin jazia.
— Quando estará morto? — perguntou o velho, num cochicho.
— Se o sangue correr livremente, morrerá esta noite!
— Mas se não correr, e ele não morrer? — indagou ainda o velho.
— Então eu e o convento estaremos enriquecidos de mais trinta jeiras
de bons campos — replicou a abadessa, zombeteira —, presente do bom
sir Rogério de Doncaster; e tu, sir Rogério, terás de achar algum outro
meio de matar aquela raposa. Por que não entras e não acabas com ele
agora?
E ela estendia-lhe a chave; mas ele afastou-se, encolhendo-se todo,
roendo as pontas das unhas, os olhos maldosos cravados, com um brilho
de fúria, no rosto da abadessa.
Sir Rogério de Doncaster, covarde poltrão, não tinha coragem de matar
um homem doente; deu volta e saiu. Montou a cavalo e se foi, queixo
fincado no peito, enraivecido ao considerar quanto a abadessa o
desprezava, certo de que ela ainda podia enganá-lo, naquela cruel
conspiração que tinham tramado para a morte de Robin Hood.
João Pequeno ficou sentado, pacientemente, no bosquete da floresta, a
tarde inteira.
Quando as sombras alongadas começaram a arrastar-se pelas planícies,
admirou-se de não ver Robin aparecer no portão como era seu costume.
De tão ansioso, levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro.
Mas… que era aquilo? Fraco, vindo da direção do convento, ouviu os
três sons da trompa de caça — era o chamado de Robin!
Com o rugido de um touro enfurecido, João Pequeno bradou para os
homens ocultos no mato:
— Vamos, rapazes! Ouviram aquelas notas fracas? Atraiçoaram o nosso
pobre chefe!
Pegando arrebatadamente nas armas, o bando inteiro atirou-se para a
frente, seguindo João Pequeno, que corria a bom correr para o portão do
convento. Deitaram-no abaixo a golpes de lança, e, com a mesma arma,
arrombaram a porta; então, entre gritos e súplicas das monjas assustadas,
entraram na casa.
João Pequeno, frio e ríspido, parou diante do bando de mulheres pálidas.
— Acabem com esses gritos! Vão buscar a abadessa!
Mas a abadessa não estava em parte alguma.
— Depressa, então! Levem-me para onde está meu chefe, Robin Hood!
Mas ninguém sabia de sua vinda ao convento. João, enfurecido, triste e
cheio de apreensões, ia ordenar a busca de todo o convento, quando Hob
do Morro se meteu entre os bandoleiros, dizendo:
— Achei o quarto onde jaz o nosso chefe!
Subiram a escada em tropel, atrás de Hob, e, chegando diante da porta,
despedaçaram a fechadura e entraram de roldão no quarto. E que vista
aquela! Ali estava seu chefe, pálido e macilento, de olhos vidrados, meio
reclinado sobre a cama; tão fraco que mal pôde erguer a cabeça para vê-
los.
João Pequeno atirou-se de joelhos ao lado de Robin, derramando um rio
de lágrimas.
— Chefe, chefe! Concede-me uma graça!
— Qual é, João? — perguntou Robin, sorrindo debilmente para o amigo.
Levantando a mão, ele a colocou carinhosamente sobre a cabeça do
velho camarada.
— Que tu nos deixes incendiar esta casa e matar as que te mataram!
Mas, sacudindo a cabeça, quase sem forças, disse Robin:
— Não, não! Esta graça eu não a concederei a ti. Nunca fiz mal a mulher
alguma em toda a minha vida, e não o farei agora que estou no fim. Ela
deixou meu sangue escorrer do corpo e me tirou assim a vida, mas peço-te
que não lhe faças mal. Não, João, não tenho vida para muito tempo… Abre
aquela janela e dá-me meu arco e uma flecha.
Abriram depressa a janela, e Robin olhou, com olhos já turbados e
moribundos, para os campos tranquilos à luz do crepúsculo e para a
grande floresta, que ondulava, lá longe.
— Segura-me enquanto atiro, João, e no lugar onde cair minha flecha, aí
cava a minha sepultura e deixa-me ficar.
Choravam aqueles homens, vendo-o segurar o grande arco com as mãos
enfraquecidas e esticar o cordão, segurando a pena da seta. Dantes
unicamente ele, entre todos os homens, podia curvar aquele arco, mas,
agora, tão esvaído estava que mal tinha força para distendê-lo a meio…
Soltando um suspiro, deixou voar a seta, que saiu rechinando pela janela; e
os homens acompanharam com a vista nimbada de lágrimas o voo dela por
sobre os campos, até que se foi enterrar no chão, ao pé de um caminho
estreito que ia dos prados para a floresta.
Robin caiu para trás, exausto, e João Pequeno deitou-o devagarinho.
— Enterra-me lá, João Pequeno, com o meu arco, porque foi esta a mais
doce música que ouvi em toda a minha vida, e sempre desejei tê-la comigo
quando morresse. Põe um torrão de relva debaixo da minha cabeça e outro
a meus pés, porque eu gostava de dormir na relva da floresta enquanto
vivia e quero descansar nela a cabeça no meu último sono. Farás tudo isso
por mim, João?
— Sim, sim, chefe — respondeu João, com a maior tristeza.
— Agora beija-me, João, e… e… adeus!
Saiu-lhe dos lábios o último alento quando João, de cabeça descoberta,
se inclinou para beijá-lo. Todos se ajoelharam e oraram pela alma que se
alçava, e, com lágrimas abundantes, imploraram a misericórdia divina para
o seu valente e generoso chefe.
Não puderam suportar a ideia de deixar o corpo dentro do convento
naquela noite, então levaram-no para a floresta, velando-o no escuro a
noite inteira. Quando amanheceu, prepararam o túmulo, e quando o padre
Tuck, já todo curvado e de cabeça branca, chegou, ao meio-dia, todos eles
levaram o corpo de seu chefe querido para o lugar onde iria dormir o
último sono.
Mais tarde os bandoleiros souberam da visita de sir Rogério de
Doncaster ao convento enquanto Robin agonizava, e saíram em busca
dele. Para escapar ao cerco apertado que Hob do Morro e seu irmão Ket
lhe faziam, sir Rogério fugiu para Grimsby, e mal pôde escapar para bordo
de um navio com a pele inteira, tão de perto o perseguia Hob. O cavaleiro
foi buscar refúgio na França, e lá morreu pouco depois, solitário e
abandonado.
Depois da morte de Robin, não tardou a desmantelar-se o bando de
proscritos. Alguns foram refugiar-se além-mar, outros se ocultaram em
cidades grandes, e foram-se pouco a pouco transformando em cidadãos
respeitáveis; outros foram empregar-se de novo em feudos distantes,
tornando-se respeitadores da lei, se eram bem tratados pelos senhores.
Quanto a João Pequeno e Scarlet, obtiveram terras em Cromwell, onde
Alan de Dale era então senhor, nas propriedades de lady Alice; Much foi
nomeado mordomo em Werrisdale, que também pertencia a Alan de Dale,
cujo pai, sir Herbrando, já morrera.
Gilberto da Mão Branca não quis ficar ali. Foi para a Escócia, e tão
arrojados feitos praticou, combatendo com o arco e a espada, que durante
muitos anos suas façanhas heroicas foram cantadas ao pé da lareira, nas
terras da fronteira.
Quanto a Hob do Morro e seu irmão Ket, o Gnomo, ninguém soube
nunca ao certo o que fora feito deles. Os dois homúnculos detestavam a
vida sossegada e estável, e, ainda que Alan lhes tivesse oferecido terras
para morar, preferiram vaguear pela mata sombria e pelos morros
solitários.
O túmulo de Robin estava sempre coberto de relva verde, mas ninguém
soube, durante muito tempo, que mãos se ocupavam de cuidar dele.
Começaram então a surgir histórias — que de tempos em tempos saíam
da floresta, pela calada da noite, dois homenzinhos, que iam aparar a
grama do túmulo e pôr ali plantas novas. Ninguém pôs em dúvida que
fossem Ket e Hob, pois ambos tinham amado entranhadamente Robin
toda a vida, e agora, que ele estava morto, não se podiam afastar para
longe da sua sepultura.
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GRANDES HISTÓRIAS DE TODOS OS TEMPOS:

> A ilha do tesouro,


Robert Louis Stevenson
> A volta ao mundo em
80 dias, Júlio Verne
> As aventuras de Tom Sawyer,
Mark Twain
> Mowgli, o menino-lobo,
Rudyard Kipling
> O lobo do mar, Jack London
> Robin Hood, Henry Gilbert
Direção editorial
Daniele Cajueiro
Editora responsável
Ana Carla Sousa
Produção editorial
Adriana Torres
Laiane Flores
Mariana Lucena
Revisão
Alessandra Volkert
Perla Serafim
Projeto gráfico de miolo e diagramação
Anderson Junqueira
Produção de ebook
S2 Books

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