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Folha de Rosto
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ELLIS PETER
O SANTO LADRÃO
Título original: The Holly Thief
Crônicas do Irmão Cadfael 19 – Agosto de 1144
Tradução: Isabel Veríssimo
Publicações Europa-América
1

No auge de um verão quente, no fim de agosto de 1144,


Geoffrey de Mandeville, conde de Essex, sucumbiu ao calor do sol,
e cometeu o erro final e fatal da sua carreira longa e oportunista. Na
altura, estava ocupado com o planejamento da destruição, por
cerco, de uma do círculo de fortalezas improvisadas, mas eficazes
que o rei Stephen tinha erguido para conter e concentrar as
depredações do bando de fora da lei, rebeldes e predadores de
Geoffrey, na região dos Pântanos. Durante mais de um ano, a partir
das suas bases secretas nos Pântanos, Geoffrey tinha devastado a
região para garantir que nenhum campo era cultivado ou ceifado em
segurança, nenhuma casa devidamente guardada, nenhum homem
com qualquer coisa de valor a perder estaria seguro na sua posse, e
ninguém que se recusasse a entregar o que ele queria ficava sequer
com uma vida para perder. Como o rei lhe tinha confiscado todos os
seus castelos e terras e títulos relativamente legítimos, nenhum
deles de forma demasiado legal, verdade seja dita, Geoffrey tinha
decidido fazer o mesmo a todos os homens, pobres ou ricos, que se
atravessassem no seu caminho. Durante um ano, desde as
fronteiras de Huntingdon até Mildenhall no Suffolk e na maior parte
de Cambridgeshire, os Pântanos tinham-se tornado um reino
fechado de salteadores apesar da superioridade do rei Stephen, e
embora o seu apressado anel de castelos tivesse contribuído em
certa medida para impedir um maior alargamento, não dificultara
grandemente os movimentos do conde, nem o conduzira para a
batalha que ele era perito em evitar.
Mas esta posição estratégica de Burwell, a nordeste de
Cambridge, irritava-o porquê começava a interferir com as suas
linhas de abastecimento, praticamente a única coisa vulnerável na
sua organização. E, num dos dias mais quentes de Agosto, ele
andava a cavalgar a volta do castelo ofensivo para estudar as
melhores possibilidades de ataque. Devido ao calor, tinha tirado o
elmo e a rede de fina cota de malha que lhe protegia o pescoço. Um
vulgar arqueiro na muralha disparou uma flecha, e atingiu-o na
cabeça.
Geoffrey riu do incidente, pois o ferimento parecia superficial;
recolheu-se para alguns dias de convalescença. E dentro de poucos
dias estava a arder com uma infecção febril que lhe soltou a carne
dos ossos e o confinou à sua cama. Levaram-no até Mildenhall, no
Suffolk, e ali ficou sabendo que ia morrer. O sol fizera o que todos
os exércitos do rei Stephen não tinham conseguido.
O que era impossível era morrer em paz. Ele tinha sido
excomungado e não seria absolvido; nem sequer um padre poderia
ajudá-lo, pois no conselho de meados da Quaresma, convocado no
ano anterior por Henry de Blois, bispo de Winchester, irmão do rei e
na época núncio papal, tinha sido decretado que nenhum homem
que cometesse violência contra um clérigo poderia ser absolvido por
alguém que não o próprio papa, e não simplesmente por um decreto
distante, mas na presença do próprio papa. É um longo caminho
desde Mildenhall até Roma para um moribundo com terror do fogo
do inferno. Pois Geoffrey tinha sido excomungado pela ocupação
violenta da abadia de Ramsey, e pela expulsão dos monges e do
seu abade, para transformar o convento na capital do seu reino de
ladrões, torturadores e assassinos. Para ele não havia absolvição
possível, não havia esperança de enterro. A terra não o receberia.
Havia homens que faziam tudo o que estava ao seu alcance por
ele, fanáticos em defesa da sua alma, se não podiam ajudar o
corpo. Quando ficou tão fraco que deixou de delirar e mergulhou
num torpor, os seus oficiais e conselheiros começaram febrilmente a
emitir forais em seu nome, restituindo à Igreja várias propriedades
que ele lhe roubara, incluindo a abadia de Ramsey. Se era da
vontade dele ou não, ninguém parou para perguntar, e ninguém
soube jamais. As ordens foram executadas, e respeitadas, mas não
lhe serviram de nada. Ao seu corpo foi recusado um enterro cristão,
o seu título nobiliárquico foi abolido, as suas terras e cargos foram
confiscados e a família deserdada. O seu filho mais velho foi
excomungado com ele e foi parceiro na sua rebelião. Um filho mais
novo, e seu homônimo, já estava com a imperatriz Maud, e fora
reconhecido por ela como conde de Essex, embora o
reconhecimento tivesse pouco valor sem terras ou estatuto.
No décimo sexto dia de Setembro, Geoffrey de Mandeville
morreu, ainda excomungado, ainda não absolvido. Os únicos que
mostraram alguma piedade por ele foram certos cavaleiros
Templários que se encontravam em Mildenhall na época, e levaram
o corpo num caixão para Londres, onde, por falta de compaixão
cristã, foram obrigados a deixá-lo numa vala do lado de fora do
Templo, em terreno não consagrado, e mesmo assim um passo para
além do que era permitido pelo direito canônico, pois rigorosamente
não devia sequer ser sepultado na terra.
Nas fileiras do seu exército variado não havia ninguém
suficientemente forte para ocupar o seu lugar. A única coisa que os
mantinha juntos era o interesse pessoal mútuo e a ganância, e sem
estes motivos a sua aliança dúbia começou a desmoronar-se, à
medida que as forças encorajadas do rei os atacaram com
resolução renovada. Grupos de fora da lei afastaram-se
discretamente em todas as direções para procurarem pastos menos
frequentados e ermos mais impenetráveis, onde poderiam esperar
continuar as suas vidas como predadores. Os mais respeitáveis, ou
aqueles de melhores famílias e com mais para oferecer, desviaram-
se para fazer a paz e retiraram-se para alianças mais seguras.
Para todas as outras pessoas, a notícia da morte de Geoffrey
provocou satisfação universal. A novidade chegou rapidamente ao
rei, libertou-o do mais perigoso e implacável dos seus inimigos, e
aliviou-o instantaneamente da necessidade de imobilizar a maior
parte das suas forças numa região. A notícia foi transmitida de
aldeia em aldeia, através da região dos Pântanos, à medida que os
rudes saqueadores retiravam, e as pessoas que tinham vivido
aterrorizadas emergiram cautelosamente para recuperar o que era
possível de uma colheita devastada, reconstruir as suas casas
queimadas e reunir as suas famílias e parentes. E também, já que a
morte tinha andado mais do que normalmente ocupada por aquelas
paragens, enterrar os mortos decentemente. Levaria mais de um
ano até que a vida voltasse a algum tipo de normalidade, mas pelo
menos agora podiam dar os primeiros passos cautelosos.
E antes do fim do ano a notícia chegou ao abade Walter de
Ramsey, com o foral passado no leito de morte que lhe devolvia o
mosteiro. O abade deu graças a Deus, e começou a enviar a notícia
ao seu prior e sub prior e a todos os seus irmãos espalhados um
pouco por todo o lado, que tinham sido escorraçados sem um tostão
e haviam ficado sem um teto e tinham sido obrigados a encontrar
abrigo onde puderam, alguns com os familiares, outros em outras
casas Beneditinas hospitaleiras. O primeiro, e que estava mais
perto, apressou-se a responder ao chamado para casa, e entrou
numa desolação total. Os edifícios monásticos eram uma simples
armação, as terras por cultivar, os feudos que a casa tinha
anteriormente possuído entregues a ladrões e vagabundos, todos os
seus tesouros pilhados. Dizia-se que as paredes sangravam de
desgosto. No entanto, o abade Walter e os seus irmãos deitaram as
mãos ao trabalho para restaurar a sua casa e a sua igreja, e
mandaram a notícia do seu regresso para todos os monges e
noviços que tinham sido forçados a viajar para longe para encontrar
um abrigo durante o exílio. Como eram membros de uma irmandade
mais vasta, tendo toda a Ordem Beneditina como aparentados,
também fizeram um apelo urgente de ajuda em esmolas, material e
mão-de-obra para acelerar o trabalho de reconstrução e para
mobiliar de novo o lugar sagrado.
Em devido tempo a notícia, o convite e a ajuda chegaram ao
portão da abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.
Os mensageiros chegaram durante a meia hora do cabido, e
não quiseram comer, beber nem descansar, nem lavar dos pés a
lama das estradas, antes de se dirigirem à assembleia na casa do
cabido, e transmitirem a mensagem. Se os suplicantes falhassem
em zelo, o mesmo aconteceria com os doadores.
Ficaram de pé com todos os olhos postos neles, recusando
sentar-se até a mensagem ser proclamada. O sub prior Herluin, com
longa experiência e autoridade, um homem de presença
impressionante, estava de frente para o senhor abade, com as mãos
magras pousadas na faixa. O jovem noviço que tinha caminhado
com ele desde Ramsey encontrava-se, modestamente, um ou dois
passos atrás, a copiar devotamente a pose e imobilidade do seu
superior. Três criados laicos da sua casa, a escolta da viagem,
tinham ficado com o porteiro na casa do portão.
— Padre Abade, vós conheceis, como todos os homens
conhecem, a nossa lamentável história. Faz agora dois meses que a
nossa casa e propriedades nos foram restituídas. O abade Walter
está agora a chamar à sua vocação todos os irmãos que foram
forçados a dispersar e a encontrar abrigo onde puderam, quando os
rebeldes e fora da lei nos tiraram tudo o que possuíamos, e nos
escorraçaram pela ponta da espada. Aqueles de nós que ficaram
perto regressaram com o nosso abade logo que tiveram
autorização. Para uma desolação total. Por direito, éramos
proprietários de muitos feudos, mas depois da desapropriação todos
foram entregues a vilões sem lei que apoiavam Mandeville, e
declará-los restituídos a nós de nada serve, uma vez que não temos
força para recuperá-los dos senhores ladrões a não ser através da
lei, e a lei levará anos a dar-nos razão. Também, do mesmo modo,
tudo o que recuperarmos terá sido saqueado e desprovido de tudo o
que possuía de valor, deixado semi arruinado, possivelmente
incendiado. E na pálida...
Ele tinha uma voz clara e confiante que até então falara com
grande força, mas sem ardor, mas uma indignação crescente
roubou-lhe a fala por alguns instantes quando chegou ao dia do
regresso.
— Eu estava lá. Vi o que eles tinham feito do lugar sagrado.
Uma abominação! Uma estrumeira! A igreja profanada, os claustros
um estábulo sujo, o dormitório e o refeitório sem madeira, que tinha
sido arrancada para alimentar as fogueiras, todas as provisões
levadas, todos os bens valiosos que não tivemos tempo nem aviso
para retirar, roubados. Chumbo retirado dos tetos, quartos deixados
abertos à mercê do tempo, da chuva e do gelo. Não ficou sequer
uma panela para cozinhar, ou um livro de serviço ou uma tira de
pergaminho. Paredes em ruína, um vazio, um vazio estéril. Tudo isto
decidimos reconstruir e tornar mais glorioso do que antes, mas não
podemos fazê-lo sozinhos. O abade Walter desistiu de muita da sua
riqueza para comprar comida para o povo das nossas aldeias, pois
não houve colheita alguma. Quem podia cultivar os campos com a
morte atrás de si? Até aos mais pobres dos pobres aqueles
malfeitores extorquiram o último bem, e se não havia nada para
roubar, matavam.
— É bem verdade que ouvimos falar no terror que andava à
solta na vossa região — disse o abade Radulfus. — Ouvimos com
desgosto, e rezamos para que chegasse ao fim. Agora que esse fim
chegou, não há casa alguma da nossa Ordem que possa recusar
toda a ajuda possível para restaurar o que foi espoliado. Pedi-nos o
que poderá servir melhor os interesses de Ramsey. Pois penso que
fostes mandado como um irmão a irmãos, e dentro desta nossa
família a fatalidade de um é a fatalidade de todos.
— Fui enviado para pedir ajuda a esta casa e a todos os laicos
que possam sentir-se comovidos para fazer uma ação de graça, em
esmolas, em trabalho, se houver alguém em Shrewsbury experiente
na construção e disposto a trabalhar durante algumas semanas
longe de casa, em materiais, em todas as ajudas que possam ser
úteis à nossa reconstrução e para benefício das almas dos
generosos. Ramsey ficará grato por todos os tostões e por todas as
orações. Para esse fim, peço autorização para pregar uma vez aqui
na vossa igreja, e uma vez, com a permissão do xerife e do clero, no
pelourinho em Shrewsbury, para que todos os homens bons da
cidade possam procurar nos seus corações e dar o que sentirem
que devem dar.
— Conferenciaremos com o padre Boniface — disse Radulfus
— e ele acederá seguramente a deixar-vos falar num serviço da
paróquia. Da solidariedade desta casa podereis desde já ter a
garantia.
— Eu sabia que podíamos contar — disse Herluin
graciosamente — com o amor fraternal. Outros, como o irmão Tutilo
aqui presente e eu próprio, foram implorar a ajuda de outras casas
Beneditinas noutros condados. Estamos também encarregados de
levar a notícia a todos os irmãos que foram obrigados a espalhar-se
para salvar as suas vidas quando os nossos problemas começaram,
para os chamar de volta para casa, onde são muito necessários.
Pois alguns deles podem ainda nem sequer saber que o abade
Walter está de volta ao enclave, e necessita do trabalho e da fé de
cada irmão para concretizar o grandioso trabalho da reconstrução.
Um dos nossos, creio — disse ele, a observar ansiosamente o rosto
do abade — veio para Shrewsbury, para casa da sua família. Tenho
de vê-lo, e de exortá-lo a regressar comigo.
— É verdade — concedeu Radulfus. — Sulien Blount, da casa
senhorial de Longner. Ele veio para junto de nós, com a aprovação
do abade Walter. O jovem não tinha feito os votos finais. Estava no
fim do noviciado, e tinha algumas dúvidas em relação à sua
vocação. Ele veio para cá, com autorização plena do seu abade, na
condição de pensar no seu futuro. Foi decisão sua abandonar esta
casa, e regressar para junto da sua família, e eu dei-lhe autorização
para fazê-lo. Na minha opinião, ele tinha entrado para a Ordem por
engano. No entanto, ele tem de responder por si mesmo, e assim
fará. Mandarei um dos irmãos mostrar-vos o caminho para a casa
do seu irmão mais velho.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance para chamá-lo de
volta ao seu melhor eu — declarou Herluin, com uma implicação
distante no tom de que gostaria de trazer de volta para o rebanho
um penitente relutante, mas sem argumentos.
O irmão Cadfael, a estudar aquele personagem formidável do
seu canto recuado, e com os seus longos anos de experiência
secular e monástica de todos os tipos e condições de homens,
refletiu que, provavelmente, o sub prior faria uma boa pregação no
Pelourinho, e extrairia donativos a muitas consciências culpadas;
pois era suficientemente fluente, capaz até de ardor ao serviço de
Ramsey. Mas em relação à perspectiva de fazer o jovem Sulien
Blount mudar de ideias, tendo em conta a boa moça com quem ia
casar dentro de muito pouco tempo, Cadfael abanou a cabeça. Se
conseguisse, seria um milagreiro, e estaria a caminho da santidade.
Havia santos inquietantes na hagiologia de Cadfael, que ele próprio
teria confinado a um estatuto menos reverendo, mas cuja retidão
exasperante não podia negar. No fundo, conseguia sentir até
alguma pena do sub prior Herluin, que estava prestes a embotar
todas as suas armas contra o escudo impenetrável do amor. Ele que
tentasse agora afastar Sulien Blount de Pernel Otmere! Tinha
aprendido a conhecer demasiado bem aquele par para que pudesse
duvidar.
Descobriu que até agora não se sentia grandemente atraído
pelo sub prior Herluin, embora pudesse respeitar a dureza do
homem na sua longa viagem a pé, e a sua determinação para voltar
a encher os cofres saqueados de Ramsey e reconstruir as suas
paredes arruinadas. Aqueles irmãos itinerantes dos Pântanos eram
um par muito estranho. O sub prior era um homem grande, com
ossos compridos e ombros largos, com carne que em tempos fora
ampla, talvez até excessiva, mas estava agora encolhida e um
pouco flácida. Certamente, não era vergonha para ele; ao que tudo
indicava, tinha partilhado o pouco com que os desafortunados
habitantes dos pântanos tinham sobrevivido durante aquele ano de
opressão sem colheitas. A sua cabeça descoberta revelava uma
tonsura pálida rodeada por cabelos encanecidos, fortes, mais
castanhos do que cinzentos, e um rosto comprido e chupado, de
feições austeras, com olhos encovados e severos, uma boca grande
e direita, quase sem lábios quando em repouso, como se o sorriso
lhe fosse completamente desconhecido. Todas as rugas que o seu
porte tinha adquirido, durante uma vida que Cadfael calculou ter
aproximadamente cinquenta anos, mostravam uma personalidade
rígida, reprimida e proibitiva.
Não era um companheiro muito agradável para uma viagem, a
menos que a aparência enganasse. O irmão Tutilo, que se
encontrava, modestamente, um pouco atrás do seu superior,
seguindo com atenção extasiada cada palavra proferida por Herluin,
parecia ter cerca de vinte anos, talvez menos ainda; um rapaz de
constituição leve, notavelmente ágil e gracioso nos seus
movimentos, um modelo de compostura disciplinada na imobilidade.
O cimo da sua cabeça chegava apenas ao ombro de Herluin, e
estava rodeada por uma profusão de caracóis castanho-claros,
crescidos durante a grande viagem. Sem dúvida que seriam
cortados austeramente curtos quando Herluin o levasse de volta
para Ramsey, mas agora assemelhava-se a um serafim pintado
num missal, embora o rosto por baixo desta auréola fosse pouco
seráfico, apesar da sua expressão de radiante devoção. À primeira
vista era um encantador inocente, tão puro como os seus olhos
grandes, e com o rosado e a brancura acetinada de uma moça, mas
um estudo mais penetrante revelava que esta coloração infantil era
imposta num rosto oval de simetria clássica e modelação severa e
incisiva. A tonalidade de rosas naquelas puras linhas de mármore
tinha quase a aparência de um disfarce, atrás do qual uma criatura
cativante, mas levemente perigosa se escondia numa emboscada
possivelmente perniciosa.
Tutilo — um nome estranho para um jovem inglês; pois não
havia nada de normando ou celta neste jovem. Talvez fosse o nome
escolhido para ele quando iniciara o noviciado. Tinha de perguntar
ao irmão Anselm o que significava, e onde é que as autoridades em
Ramsey o tinham descoberto. Cadfael concentrou-se uma vez mais
no que estava a ser falado entre anfitrião e convidados.
— Enquanto estiverdes por estas paragens — disse o abade —
suponho que pretendereis visitar outras casas Beneditinas. Se
quiserdes, providenciaremos cavalos. A estação não é a mais
favorável para viajar. Os rios estão cheios, alguns dos baixios não
poderão ser atravessados, estareis melhor a cavalo. Apressaremos
quaisquer providências que quiserdes tomar, conferenciarei com o
padre Boniface sobre a utilização da igreja, pois é ele que tem a seu
cargo a cura das almas na paróquia da Santa Cruz, e com Hugh
Beringar, que é o xerife, e com o preboste e o representante do
Grêmio dos Mercadores da cidade sobre a vossa pregação no
Pelourinho em Shrewsbury. Se houver mais alguma coisa útil que
possamos fazer, só precisais falar.
— Ficaremos muito gratos por podermos viajar montados
durante algum tempo — concordou Herluin, e esboçou a expressão
mais aproximada de um sorriso que as suas feições permitiam —
pois pretendemos ir pelo menos até aos nossos irmãos em
Worcester, talvez também a Evesham e Pershore, e seria simples
regressar por Shrewsbury e devolver os vossos cavalos. Os nossos
foram levados, todos eles, pelos fora da lei antes de partirem. Mas
em primeiro lugar, se for possível ainda hoje, gostaria de ir
conversar com o irmão Sulien.
— Como achardes melhor — disse Radulfus simplesmente. —
Creio que o irmão Cadfael é quem melhor conhece o caminho... há
um canal que tem de ser atravessado numa barcaça... e também a
propriedade do senhor de Longner. Será bom que ele vos
acompanhe.
— O irmão Sulien — comentou Cadfael mais tarde, quando
atravessava o pátio com o irmão Anselm, o chantre e bibliotecário —
já não é chamado assim há algum tempo, e parece-me muito pouco
provável que aceite sê-lo novamente agora. E Radulfus devia ter-lhe
dito, pois conhece toda a história daquele jovem tão bem como eu.
Mas suponho que se a tivesse contado, este Herluin não teria
escutado. "Irmão" significa agora para Sulien o seu próprio irmão
Eudo. Ele está a treinar para ser soldado, e será um dos jovens da
guarnição de Hugh no castelo logo que a sua mãe morra, e
disseram-me que a sua morte está muito próxima. E, muito
provavelmente, será um homem casado antes mesmo que isso
aconteça. Não voltará para Ramsey.
— Se o seu abade mandou o rapaz para casa para tomar uma
decisão — disse Anselm, razoavelmente — o sub prior não pode ter
poder para fazer uma pressão demasiado severa no rapaz para que
ele regresse. Por muito que argumente e exorte, não pode fazer
nada, e deve estar consciente disso, se o jovem se mantiver
irredutível. Pode muito bem acontecer — acrescentou secamente —
que o que espera daquele lado seja um pagamento em prata para
aliviar a consciência.
— Bastante provável. E também é muito possível que consiga o
seu objetivo. Há mais do que uma consciência naquela casa —
concordou Cadfael — que se sente endividada com Ramsey. E que
te parece o outro? — perguntou.
— O jovem? Um entusiasta, com graça e fervor a brilhar nas
suas faces suaves. Escolhido para acompanhar Herluin para
contrabalançar a frieza, não te parece?
— E onde terá arranjado aquele seu nome exótico?
— Tutilo! Sim — disse Anselm, pensativo. — Não no seu
batismo! Deve haver um motivo para lho terem escolhido. Tutilo
encontra-se entre os santos de Março, embora não lhe prestemos
muita atenção aqui. Era um monge de Saint Gall, e já morreu há
mais de duzentos anos, e segundo todos os relatos era perito em
todas as artes, pintor, poeta, músico e mais. Talvez tenhamos um
rapaz dotado entre nós. Tenho de levá-lo a experimentar o arrabil ou
o órgão, para ver o que ele sabe fazer. Recordas-te de que uma vez
tivemos aqui um cantor errante? O pequeno acrobata que arranjou
uma mulher na cozinha do ourives antes de nos deixar. Eu consertei
o seu arrabil. Se este conseguir fazer melhor, talvez possa justificar
o nome que lhe deram. Sonda-o, Cadfael, se fores o guia deles para
Longner esta tarde. Herluin não vai perder tempo a procurar o seu
noviço tresmalhado. Vê o que consegues com Tutilo.

O caminho para a casa senhorial de Longner dirigia-se para


nordeste desde as veredas de Foregate, cortava um pedaço curto e
denso de bosque, e subia um cume baixo de tojal e prado para se
debruçar sobre o curso sinuoso do Severn, a jusante da cidade. O
rio estava cheio e túrgido, e arrastava ramos e maciços de turfa das
margens na sua corrente. O Inverno tinha trazido grandes nevões,
sem fortes tempestades ou gelo. O degelo ainda enchia os vales por
todo o lado com o suave pingar de água, até os prados junto ao rio e
o regato sussurravam constantemente e brilhavam com reflexos
prateados no meio da erva. O baixio, a pouca distância a montante,
já estava intransponível, a ilha que ajudava o tráfego a pé para o
outro lado em alturas normais estava submersa. Mas o barqueiro
impelia a barcaça com a sua vara, transportando vigorosamente os
passageiros para o outro lado, tão acostumado e tão à vontade com
as suas águas turbulentas que tempestade, cheia e calmaria eram
uma única coisa para ele.
No lado mais afastado do Severn, o caminho percorria os
terrenos pantanosos à beira da água, pois o rio já lambia a erva
queimada no Inverno uma jarda para o interior. Se fortes chuvas de
Primavera caíssem nas colinas do País de Gales, a seguir à água:
do degelo, haveria cheias sob as muralhas de Shrewsbury, e o
regato Meole e a represa subiriam perigosamente e ameaçariam até
a nave da igreja da abadia. Acontecera por duas vezes desde que
Cadfael entrara para a Ordem. E para oeste o céu pairava,
ponderoso e cinzento, debruçado sobre as montanhas distantes.
Contornaram as águas invasoras, por baixo da escura terra
arável do Campo do Oleiro, subiram aliviadamente a suave encosta
que os levou para o interior, para os bem cuidados bosques da casa
senhorial de Longner, e chegaram à clareira onde a casa se erguia
confortavelmente na encosta, abrigada dos ventos fortes, e rodeada
pela sua alta paliçada e pela incrustação de edifícios da
propriedade.
Quando passaram o portão, Sulien Blount saía dos estábulos
para se dirigir para casa. Usava um justilho de couro e a cota de
trabalho e os calções mostravam que era um irmão mais novo a
fazer a sua parte do trabalho na propriedade do primogênito até
conseguir arranjar a sua própria casa, como seguramente faria.
Parou ao avistar o trio que entrava naquele momento, com uma
expressão tensa no olhar, pois reconhecera instantaneamente o seu
antigo superior espiritual, e surpreendera-se ao vê-lo tão longe de
casa. Mas veio imediatamente ao encontro dos recém-chegados,
com uma cortesia reverente e talvez levemente apreensiva. As
tensões do último ano tinham-no afastado tanto do claustro e da
tonsura que o reaparecimento tão perto de casa do que era passado
e estava acabado pareceu, momentaneamente, oferecer uma
ameaça à sua calma nova e conseguida a duras penas, e ao futuro
que tinha escolhido. Apenas por um momento. Sulien já não tinha
dúvida do caminho que queria seguir.
— Padre Herluin, sede bem-vindo à minha casa! Rejubilo ver-
vos bem, e saber que Ramsey foi restituído à Ordem. Não quereis
entrar, e dizer-nos em que podemos ajudar-vos, nós os de Longner?
— Não podes imaginar — disse Herluin, dirigindo-se
cautelosamente a uma possível batalha à sua frente — em que
estado recuperamos a nossa abadia. Durante um ano foi o antro de
um exército de malfeitores, pilhada e despojada de tudo o que podia
ser queimado. Até as paredes foram conspurcadas, onde não
conseguiram partir, antes de fugirem. Necessitamos de todos os
filhos da casa, e de todos os amigos da Ordem, para voltar a
consagrar a Deus tudo o que foi profanado. E a ti que venho, e
contigo desejo falar.
— Um amigo da Ordem — disse Sulien. — Espero ser. Filho de
Ramsey e irmão dos seus irmãos já não sou. O abade Walter
mandou-me para aqui, com muita sabedoria, para refletir sobre a
minha vocação, que sabia ser dúbia, e entregou o meu noviciado ao
abade Radulfus, que me absolveu. Mas entrai, e poderemos
conversar como amigos. Eu escutarei reverentemente, Padre, e
respeitarei tudo o que tiverdes para dizer.
E assim faria, pois era um jovem que fora educado para
respeitar todos os deveres para com os mais velhos; tanto mais que,
na qualidade de filho mais novo, não tinha qualquer herança e
precisava construir o seu caminho, e tinha, portanto, mais
necessidade ainda de agradar àqueles que tinham poder e
autoridade, e podiam ajudá-lo a progredir na sua carreira. Ouviria e
acederia, mas não mudaria de ideias. Não precisava de
testemunhas favoráveis para apoiar o seu lado do caso, e por que é
que o lado de Herluin seria sobrecarregado com um jovem acólito
devoto e silencioso, a impor a um ex-irmão com a sua própria
presença um dever que ele já não tinha, e que, à partida, assumira
por engano pelos motivos errados?
— Desejais com certeza falar estritamente em particular —
disse Cadfael, seguindo o sub prior pelos degraus de pedra que
conduziam à porta de entrada. — Com tua permissão, Sulien, este
jovem irmão e eu iremos visitar a tua mãe. Se, é claro, ela estiver
suficientemente bem e disposta a receber visitas.
— A vossa, sempre! — declarou Sulien, e esboçou um sorriso
rápido e resplandecente por cima do ombro. — E um rosto novo dar-
lhe-á alento. Sabeis como ela encara a vida e o mundo agora, com
muita paz.
Nem sempre fora assim. Donata Blount sofria há vários anos de
uma doença incapacitante e incurável que lhe devorava lentamente
a carne e lhe provocava dores intensas. Apenas nas últimas fases
da sua doença física quase conseguira suplantar a própria dor, e
reconciliara-se com o mundo que ia deixar ao aproximar-se da porta
que se abria para outra.
— Será muito em breve — disse Sulien com simplicidade.
Parou no átrio debilmente iluminado. — Padre Herluin, fazei o favor
de entrar no solar comigo, e pedirei refrescos para vós. O meu
irmão está na quinta. Tenho pena de que não esteja aqui para vos
saudar, mas não fomos avisados da vossa visita. Ireis desculpá-lo.
Se a vossa missão é comigo, poderá ser melhor assim. — E para
Cadfael: — Ide para os aposentos de minha mãe. Eu sei que ela
está acordada, e nunca duvideis de que, para ela, sois sempre bem-
vindo.
Lady Donata, confinada por fim ao seu leito, estava encostada
em almofadas no seu pequeno quarto de dormir, com as cortinas
abertas e uma pequena braseira a arder num canto, na pedra nua
do chão. O seu corpo estava reduzido a ossos e pele translúcida, as
mãos pousadas no cobertor como pétalas de lírios caídas na sua
emaciação transparente. O seu rosto estava reduzido a uma frágil
massa de ossos prateados, e os buracos fundos dos olhos estavam
preenchidos com uma sombra de um azul gélido em volta da beleza
surpreendente e imperecível dos próprios olhos, ainda claros e
inteligentes, e do mais escuro e mais luminoso dos azuis. O espírito
encerrado naquela concha frágil continuava alerta, indomável e
profundamente interessado no mundo à sua volta, sem qualquer
medo de deixá-lo, nem qualquer relutância em partir.
Ergueu os olhos para as visitas, e cumprimentou Cadfael num
tom de voz baixo que não perdera nenhuma da sua qualidade.
— Irmão Cadfael, é um prazer! Quase não vos vi durante o
Inverno. Não teria gostado de partir sem me despedir de vós.
— Podíeis ter mandado chamar-me — disse ele, e dirigiu-se
para um banco junto à cabeceira. — Eu sou obediente. E Radulfus
não recusaria um pedido vosso.
— Ele veio pessoalmente — disse Donata — para me ouvir em
Confissão no Natal. Eu sou uma ovelha adotada do seu rebanho.
Não se esquece de mim.
— E como estão os vossos assuntos? — perguntou ele,
analisando a serenidade do rosto da mulher. Nunca era necessário
haver rodeios com Donata, ela compreendia o que ele queria dizer,
e preferia assim.
— Na questão da vida e da morte — disse ela —
excelentemente bem. Na questão da dor... já a ultrapassei; não há o
suficiente de mim para senti-la, nem me importaria se ela se fizesse
sentir. Tomo isso como o sinal que procurei. — Falou sem
apreensão ou pena, e agora até sem impaciência, perfeitamente
satisfeita com o pouco tempo de vida que lhe restava. E ergueu os
olhos escuros para o jovem que se mantinha afastado.
— E quem trouxestes para me ver? Um novo acólito vosso do
herbário?
Tutilo aproximou-se mais, interpretando acertadamente aquelas
palavras como um convite. Os seus olhos eram grandes e redondos,
a observar o estado dela, mas não pareceu nada consternado, nem
com pena. Donata não convidava à piedade. O rapaz tinha uma
apreensão muito rápida e precisa.
— Não é meu — disse Cadfael, a olhar pensativamente para a
figura magra, e a aprovar cautelosamente um pupilo inteligente que
por certo não teria recusado. — Não, este jovem irmão veio com o
seu sub prior da abadia de Ramsey. O abade Walter voltou para o
seu mosteiro, e está a chamar para casa todos os irmãos para
ajudarem na reconstrução, pois Geoffrey de Mandeville e os seus
salteadores deixaram uma concha vazia. E para vos pôr a par de
toda a situação, o sub prior Herluin está no solar neste momento,
para ver o que pode fazer com Sulien.
— Aí está um que ele nunca recuperará — declarou Donata
com certeza. — O meu desgosto é que ele tenha sido levado a
enganar-se tão grosseiramente, e se Geoffrey de Mandeville não fez
mais nada de bom, no muito mal que fez, pelo menos o seu ataque
devastador conduziu Sulien de volta para si próprio. O meu filho
mais novo — disse ela, fitando os grandes olhos dourados de Tutilo
com um sorriso pensativo e apreciador — nunca foi talhado para ser
um monge.
— O mesmo disse um imperador, creio — comentou Cadfael,
recordando o que Anselm dissera do santo de Saint Gall — sobre o
primeiro Tutilo, de quem este jovem irmão herdou o nome. Pois este
é o irmão Tutilo, um noviço de Ramsey, e a chegar ao fim do seu
noviciado, segundo me disse o seu superior. E se tem o nome dele
devia ser pintor, escultor, cantor e músico. Grande pena, disse o rei
Carlos... Carlos o Gordo, chamavam-lhe... que um gênio tal se
tivesse transformado num monge. Lançou uma maldição sobre o
homem que o fez. Pelo menos, foi o que Anselm me contou.
— Um dia — disse Donata, a observar aquele jovem muito
agradável e gracioso da cabeça aos pés, e a registrar com
admiração indiferente o que via — um rei poderá dizer o mesmo
deste. Ou uma mulher, é claro! Sois esse modelo ideal, Tutilo?
— Foi por isso que me deram o nome — disse o rapaz
honestamente, e um leve rubor rosado surgiu junto às pregas do
capuz e subiu pela sua garganta forte para as faces suaves, mas,
aparentemente, sem causar o menor desconforto. Ele não baixou os
olhos, que se fixavam com fascínio no rosto da mulher. Na sua
tranquilidade final, algo da beleza há muito perdida voltara, para
tornar Donata ainda mais formidável e admirável. — Tenho um dom
— disse ele — para a música. — Fez aquela declaração com a
certeza de uma pessoa que é capaz de avaliar com imparcialidade,
sem se vangloriar ou menosprezar as suas capacidades. Pequenas
chamas de interesse e apreciação cintilaram nos olhos cavados de
Donata.
— Bom! Fazeis bem em reconhecer o que sabeis fazer bem —
disse ela, num tom de aprovação. — Muitas noites, a música foi a
minha maior ajuda para dormir. O meu consolo, também, quando os
demônios estavam demasiado ativos. Agora passam o seu tempo a
dormir, e eu fico acordada. — Moveu uma mão sobre a colcha,
indicando uma arca que se encontrava no recanto mais afastado do
quarto. — Há um saltério ali, que já não é utilizado há muito tempo.
Gostaríeis de experimentar? Não duvido de que ele gostaria que lhe
dessem voz outra vez. Existe uma harpa no átrio, mas agora não há
ninguém que a toque.
Tutilo foi prontamente levantar a pesada tampa e espreitou para
os objetos guardados no interior. Tirou o instrumento, que não era
grande, mas sim para tocar sobre os joelhos, e com a forma do
focinho largo de um porco. A forma como pegou no instrumento
denotou claramente interesse e afeição, e se franziu o sobrolho foi
ao ver um suporte partido entre as cordas. Espreitou com mais
atenção para dentro da arca, à procura de penas para tocar, mas
não encontrou nenhuma, e franziu de novo o sobrolho.
— Lá vai o tempo — disse Donata — em que eu cortava penas
novas praticamente todas as semanas. Lamento que tenhamos
negligenciado o nosso dever.
Proferiu aquelas palavras com um sorriso breve e preocupado,
mas a atenção do jovem voltou de imediato para o saltério.
— Posso usar as unhas — disse ele, levando o instrumento
consigo para junto da cabeceira e, sem cerimônia ou hesitação,
sentou-se na beira da cama, endireitou o saltério nos joelhos, e
passou uma mão acariciadora sobre as cordas, soltando um
murmúrio suave e trêmulo.
— As vossas unhas são curtas de mais — disse Donata. —
Ireis magoar as pontas dos dedos.
2

A sua voz ainda conseguia evocar as cores e tons que


tornavam eloquente a frase mais simples. O que Cadfael ouviu foi
uma mãe, entre a indulgência e a impaciência, a avisar o jovem que
se ia aventurar num empreendimento que poderia ser doloroso.
Não, talvez não uma mãe, nem sequer uma irmã mais velha; algo
mais distante do que um parente de sangue com direitos e, no
entanto mais próximo. Pois os contatos livres de qualquer dever e
responsabilidade estão também livres de todos os
constrangimentos, e podem aproximar-se tão rapidamente e tão
perto quanto quiserem. E a ela restava-lhe muito pouco tempo, para
se submeter agora a limitações. O rapaz não estava à espera do
que ouviu, mas fitou-a com uma expressão alegre e aberta, mais
alerta do que surpreendido, e as suas mãos imobilizaram-se por
instantes, e sorriu.
— As pontas dos meus dedos são de couro... vede! — Abriu as
palmas das mãos e os dedos compridos e flexionados. — Eu toquei
harpa para o senhor do meu pai na casa senhorial de Berton
durante mais de um ano antes de entrar para Ramsey. Agora,
deixai-me experimentar! Falta-lhe uma corda, por isso tendes de me
desculpar pelas falhas. — A sua voz também tinha um toque de
indulgência, um leve divertimento, como se estivesse a dirigir-se
desnecessariamente a uma pessoa mais velha que tinha de ser
tranquilizada em relação à sua competência.
Tinha descoberto a chave de afinação dentro da arca
juntamente com o instrumento, e começou a testar as cordas de
tripa e a apertar atarefadamente as cravelhas que as ancoravam. O
murmúrio musical ergueu-se como um coro de insetos num prado
de Verão, e a cabeça tonsurada de Tutilo debruçou-se sobre o seu
trabalho numa concentração total, enquanto Donata, das suas
almofadas, o observava por detrás de pálpebras quase cerradas,
com mais intensidade agora que ele não estava a prestar-lhe
atenção. Porém, uma intimidade intensa unia-os, pois quando a
expressão dele se suavizou num ardente sorriso íntimo, também ela
sorriu com a concentração e o prazer dele.
— Esperai, uma das cordas nesta base partida é
suficientemente comprida para se adaptar. É melhor uma do que
nenhuma, embora se vá notar quando o tom afinar.
Os seus dedos, embora endurecidos pela harpa, eram muito
ágeis e agradáveis quando esticou a corda e a prendeu
cuidadosamente.
— Cá está! Consegui! — Passou a mão levemente pelas
cordas, e produziu um regato reluzente de notas suaves. — Cordas
de arame teriam um som mais alto e mais nítido do que tripa, mas
estas servem muito bem.
E inclinou a cabeça sobre o instrumento, mergulhando como
um falcão à espreita, e começou a tocar, com os dedos flexionados
a dançar. O velho instrumento musical pareceu inchar e palpitar com
a tensão das notas, demasiado cheio para encontrar alívio
adequado pela rosa esculpida no centro.
Cadfael afastou o banco da cabeceira da cama, para vê-los
completamente a ambos, pois ofereciam um estudo interessante. O
rapaz era, sem sombra de dúvida, profundamente dotado. Havia
algo quase alarmante na paixão do assalto. Era como se um
pássaro tivesse estado emudecido durante muito tempo, e de
repente descobrisse que a sua garganta abafada recuperara a
eloquência.
Pouco depois, a sua primeira fome estava saciada, e pôde
acalmar para a moderação, e saborear com maior gratidão ainda a
doçura desta indulgência. O compasso de dança intenso e
rodopiante, leve como lanugem de cardo apesar de todo o seu
ardor, acalmou para uma brisa leve, mais adaptada a um
instrumento tão suave. Até uma ligeira melancolia, uma espécie de
virelé, ritmado e triste. Onde tinha ele aprendido aquilo? Certamente
não em Ramsey; Cadfael duvidava de que aquela melodia fosse
bem recebida na abadia.
E Lady Donata, cansada do mundo e profunda conhecedora
das ironias da vida e da morte, ficou imóvel nas suas almofadas,
sem jamais tirar os olhos do rapaz que tinha olvidado a sua
existência. Ela não era a audiência para quem ele tocava, mas era a
inteligência profunda que o escutava. Captou-o com os seus
grandes olhos magoados, e bebeu a sua música, que foi como vinho
para a sua sede. Ao atravessar metade da Europa por terra, Cadfael
vira gencianas na erva dos prados de montanha, mais azuis do que
o azul, do mesmo mais do que azul profundo dos olhos dela. A
posição dos seus lábios, a sorrir retorcidamente, contava uma
história um pouco diferente. Tutilo já era completamente
transparente para ela, e sabia mais dele do que ele próprio.
A torção afetuosa e cética da boca desvaneceu-se quando ele
começou a cantar. O tom era ao mesmo tempo simples e subtil, a
brincar com não mais de meia dúzia de notas, e a sua voz, com um
tom mais alto do que quando falava, e muito macia e suave, tinha as
mesmas qualidades, inocente como a infância, penetrante como um
desgosto completamente adulto. E ele não estava a cantar em
inglês, nem sequer no francês normando que a Inglaterra conhecia,
mas na langue d'oc de que Cadfael se recordava imperfeitamente
de há muito tempo. Onde tinha este noviço ouvido as melodias dos
trovadores Provençais, e aprendido as suas cantigas? No salão do
senhor, onde tinha tocado harpa? Donata não conhecia o francês do
sul, Cadfael já o esquecera há muito, mas identificavam uma cantiga
de amor quando a ouviam. Triste, não realizada, eternamente
esperançosa, um amour de loin, que nunca se veria frente a frente.
A cadência mudou rapidamente, as palavras secretas passaram
magicamente para: "Ave mater salvatoris..." e voltaram para a
liturgia de São Marçalo antes de eles se aperceberem, como Tutilo
se apercebera com os sentidos aguçados de uma raposa, que a
porta do aposento tinha sido aberta. Ele não queria correr riscos. A
porta tinha sido realmente aberta na pessoa inofensiva de Sulien
Blount, mas o sub prior Herluin encontrava-se atrás dele, a pairar
como uma nuvem.
Donata estava a sorrir, a aprovar a inteligência rápida que podia
mudar de curso tão rapidamente, sem uma pausa, sem um rubor.
Na verdade, Herluin franziu o sobrolho numa expressão de
desagrado quando viu o seu noviço sentado à cabeceira da cama
de uma mulher e a cantar para seu prazer; mas bastou um olhar
para a mulher, na sua dignidade enfraquecida e desencorajada,
para desarmá-lo imediatamente. Foi um choque, ainda mais porque
não era velha, e tinha murchado no auge da vida.
Tutilo levantou-se modestamente, apertando o saltério no peito,
e retirou-se respeitosamente para um canto do quarto, com os olhos
baixos. Cadfael suspeitou de que, quando não estava a olhar para
ela, estava a vê-la com maior clareza ainda.
— Mãe — disse Sulien, sério e um pouco tenso no seu
pequeno campo de batalha — aqui está o sub prior Herluin, em
tempos meu instrutor em Ramsey, para vos desejar melhoras e para
vos recomendar nas suas orações. Em nome de meu irmão, e tal
como eu, dai-lhe as boas-vindas.
Na ausência do filho e da nora, ela representava-os a ambos.
— Padre, usai esta casa como se fosse vossa. A vossa visita é
uma honra para nós. A notícia de que Ramsey foi de novo entregue
ao serviço de Deus foi muito bem recebida por todos nós.
— Deus olhou por nós — disse Herluin, com alguma cautela e
menos do que a sua segurança habitual, pois a visão daquela
mulher abalara-o. — Mas há muito a ser feito para recuperarmos a
nossa morada, e necessitamos de todas as mãos que possam vir
em nosso auxílio. Eu tinha esperança de levar o vosso filho comigo,
mas parece que já não posso chamar-lhe irmão. No entanto, podeis
ter a certeza de que ele e a senhora estarão nas minhas orações.
— Eu lembrar-me-ei de Ramsey — disse Donata — nas
minhas. Mas embora a casa de Blount vos tenha negado um irmão,
ainda vos poderá ser útil de outras formas.
— Nós procuramos a caridade de todos os homens bons —
concordou Herluin fervorosamente — seja em que forma for. A
nossa casa está pobre, eles não nos deixaram nada a não ser a
estrutura das paredes, e até essa estrutura foi estragada, tendo-lhe
sido retirado tudo o que podia ser arrancado.
— Eu prometi — declarou Sulien — voltar a Ramsey e trabalhar
com as minhas próprias mãos durante um mês, quando chegar o
momento certo. — Ele nunca tinha libertado completamente de um
sentimento de culpa por ter abandonado uma vocação que pensara
ser verdadeira. Gostaria de pagar o seu resgate com trabalho duro,
e libertar a sua consciência antes de se casar. E Pernel Otmere
aprovaria a sua decisão, e o deixaria partir.
Herluin agradeceu-lhe a oferta, mas sem grande entusiasmo,
talvez relutante em relação à quantidade de trabalho que Ramsey
conseguiria extrair daquele jovem.
— Falarei também com meu irmão — continuou Sulien,
ansiosamente — e verei que mais poderemos fazer. Eles estão a
cortar árvores pequenas, e haverá árvores mais velhas e maiores. E
vão cortar algumas árvores de grande porte no bosque. Pedirei um
carregamento de madeira para a vossa reconstrução, e creio que
ele mo ofertará. Não pedirei mais nenhuma porção antes de entrar
para o serviço do rei em Shrewsbury. Será que a abadia pode
providenciar uma carroça para o transporte, ou poderá ser alugada
uma? As carroças de Eudo não podem ser dispensadas durante
tanto tempo.
Herluin recebeu esta oferta prática com mais entusiasmo.
Cadfael pensou que ele ainda estava ressentido com o fracasso de
arrasar todos os argumentos e levar o recalcitrante jovem consigo,
não pelo mês prometido, mas para a vida inteira. Não que o próprio
Sulien tivesse um valor tão grande, mas Herluin não estava
acostumado a uma resistência tão tenaz. Todas as barricadas
deviam ter caído como as paredes de Jericó ao toque da sua
trombeta.
No entanto, extraíra tudo o que era possível, e preparou-se
para partir. Tutilo, de ouvidos atentos e olhos modestamente baixos
no seu canto, abriu a arca discretamente e guardou o saltério que
tinha apertado junto ao coração. A própria suavidade com que o
pousou e fechou lentamente a tampa sobre ele trouxe um pequeno
sorriso pensativo à boca pálida de Donata.
— Tenho um favor para pedir — disse ela — se quiserdes ter a
bondade de ouvir. Este vosso canário proporcionou-me deleite e
calma. Se eu estiver por vezes sem sono e com dores, empresta-me
esse consolo por uma hora, enquanto estiverdes em Shrewsbury?
Não mandarei chamá-lo a menos que precise dele. Permitireis que
venha?
Se Herluin ficou surpreendido com tal pedido, ficou no entanto
fortemente consciente de que ela o colocara em desvantagem,
embora muito provavelmente, pensou Cadfael, interessado,
estivesse esperançado de que ela estivesse menos consciente
desse fato. Mas estava seguramente iludido nessa esperança. Ela
sabia muito bem que ele dificilmente poderia recusar o seu pedido.
Mandar um noviço susceptível tocar música para uma mulher, e
ainda por cima uma mulher confinada ao leito, era impensável, até
escandaloso. Mas esta mulher estava agora tão familiarizada com a
morte que o súbito chiar da porta a abrir estava presente na sua
voz, e a palidez transparente da alma incorpórea no seu rosto. Ela já
não reagia às coisas deste mundo, e não temia as pavorosas
incertezas do próximo.
— A música é para mim como um remédio que me transmite
paz — explicou ela, e esperou pacientemente a submissão dele. E o
rapaz, no seu canto, manteve-se mudo e passivo, mas por baixo
das pregas compridas e descidas os olhos cor de âmbar dourado
brilharam, deleitados, sérios e cautelosos.
— Se o mandardes chamar em extrema necessidade — disse
Herluin por fim, escolhendo as palavras com cuidado — como pode
a nossa Ordem rejeitar tal pedido? Se chamardes, o irmão Tutilo
virá.
— Não há dúvida quanto à origem do nome — disse Cadfael,
na oficina do irmão Anselm, no claustro, depois da Missa Solene na
manhã seguinte. — Doce como uma cotovia. — Tinham acabado de
ouvir a cotovia a cantar, e tinham parado na biblioteca da esquina do
chantre para observar os fiéis a dispersar, entre os quais se
encontravam os visitantes laicos da sala de hóspedes. Para aqueles
que procuravam alojamento ali era político e gracioso, embora não
obrigatório, assistir pelo menos à missa principal do dia. Fevereiro
não era um mês ocupado para o irmão Denis, o irmão encarregue
de tratar dos hóspedes, mas apareciam sempre alguns viajantes a
necessitar de abrigo.
— O rapaz é imensamente talentoso — concordou Anselm. —
Um ouvido fantástico e um instinto para a harmonia. — E
acrescentou, após alguns instantes de reflexão: — Porém, não é
uma voz para trabalho coral. Demasiado notável. É impossível ele
não mostrar o que vale.
Não valia a pena repisar aquele ponto, pois a justiça do
veredicto já tinha sido provada. Ao escutar aquele canto
pungentemente doce, entoado com tanta suavidade, a entrar no
ouvido com tanto assombro, ninguém podia duvidar disso. Não
havia maneira de subjugar aquela voz ao anonimato no meio da
equilibrada polifonia de um coro. Cadfael perguntou a si mesmo se
não seria igualmente redutor tentar moldar o seu possuidor numa
alma conformada de uma irmandade disciplinada.
— O convidado Provençal do irmão Denis até levantou a
cabeça — comentou Anselm — quando ouviu o rapaz. A noite
passada pediu a Herluin que deixasse o rapaz participar no ensaio
no átrio. Ali vão todos agora. Eu tenho a sua rabeca aqui para
encordoar. Devo dizer, em abono dele, que se preocupa com os
seus instrumentos.
O trio que estava a atravessar o átrio desde a porta sul da igreja
foi alvo de considerável curiosidade e especulação entre os noviços.
O convento não albergava muitas vezes um trovador do sul de
França, obviamente de alguma riqueza e reputação, pois viajava
com dois criados e uma grande quantidade de bagagem. Ele e a
sua comitiva estavam ali há três dias, e tinham sido atrasados na
sua viagem para norte, para Chester, porque um dos cavalos ficara
manco. Rémy de Pertuis era um homem de aproximadamente
cinquenta anos, com uma aparência marcante, um cavalheiro que
valorizava a aparência e a apresentação. Cadfael observou-o a
atravessar para o átrio dos hóspedes; até agora não havia tido
ocasião de observá-lo com atenção, mas se Anselm o respeitava e
aprovava a sua consciência musical, podia valer a pena estudá-lo.
Um rosto bonito e lustroso de cabelos castanho avermelhados e
uma barba aparada. Bom porte e um corpo bem cuidado, capa
forrada com peles, ouro no cinto. E dois criados que o seguiam de
perto, um fulano alto com trinta e tal anos, todo vestido de castanho
dos pés à cabeça, cujas roupas boas, mas simples o colocavam
discretamente entre escudeiro e moço de estrebaria, e uma mulher,
com capa e capuz, mas que a figura magra e o andar ligeiro
indicavam como jovem.
— Para que precisará ele da moça? — interrogou-se Cadfael.
— Ah, ele explicou isso ao irmão Denis — disse Anselm, e
sorriu. — Meticulosamente! Não é sua familiar...
— Nunca pensei que fosse — disse Cadfael.
— Mas podias ter pensado, como eu pensei quando eles
chegaram, que ele tinha uma utilização muito especial para ela, e na
verdade tem, embora não seja a que eu imaginei. — Como tinha
vindo muito cedo para os claustros, o irmão Anselm aprofundava a
maior parte das jogadas que eram correntes fora daquelas paredes,
e há muito que deixara de se surpreender ou chocar com elas. — É
a moça que entoa quase todas as suas cantigas. Tem uma voz
bonita, e ele valoriza-a por isso, mas, tanto quanto percebi, por nada
mais. Ela é uma parte importante do seu negócio.
— Mas — inquiriu Cadfael — que faz um menestrel do centro
da Provença aqui no centro da Inglaterra? E parece-me evidente
que não é um simples jogral, mas um genuíno trovador. Está
seguramente longe de casa.
"E no entanto", pensou, "por que não? Os patronos de quem
estes artistas dependem estão agora a ser tanto ingleses como
franceses, ou normandos ou bretões ou angevinos. Têm
propriedades aqui e no estrangeiro, e procuram-nos aqui e lá. E a
própria natureza do trovador, afinal de contas, é deambular e
aventurar-se, como a palavra galega trobar, de onde deriva o seu
nome, que, embora tenha passado a significar criar poesia e
música, significa literalmente encontrar. Aqueles que encontram...
procuram e encontram a poesia e a música são os trovadores. E se
a sua arte é universal, por que não deveriam ser encontrados em
todo o lado?"
— Ele vai para Chester — esclareceu Anselm. — É o que diz o
criado... Bénezet, é como se chama. Talvez espere conseguir um
lugar na casa do conde. Mas não tem pressa, e claramente não tem
falta de dinheiro. Três bons cavalos de montar e dois criados por
companhia é uma viagem bastante confortável.
— Agora pergunto a mim mesmo — disse Cadfael, pensativo —
por que terá ele deixado o seu último serviço? Talvez se tenha
insinuado de mais à esposa do seu senhor? Foi alguma coisa séria,
para obrigá-lo a atravessar o mar.
— Eu estou mais interessado — disse Anselm, nada perturbado
com aquela opinião dos trovadores em geral — em saber onde é
que ele arranjou a moça. Pois ela não é francesa, nem bretã, nem
da Provença. Fala o inglês destas fronteiras, e um pouco de galês.
Parece que ela é uma propriedade que ele obteve deste lado do
oceano. O escudeiro, Bénezet, é do sul como o seu senhor.
Nessa altura o trio já tinha desaparecido na ala dos hóspedes, e
as suas vidas enredadas permaneciam tão misteriosas como
quando tinham entrado no enclave pela primeira vez. E dali a alguns
dias, se as estradas continuassem transitáveis e o cavalo ficasse
bom, partiriam tão enigmaticamente, como tantos que procuravam
refúgio sob aquele teto hospitaleiro um dia, uma semana, e depois
partiam, sem deixar nada de si próprios. Cadfael libertou-se do
pensamento vão sobre almas que passavam como desconhecidas,
e suspirou, voltando para o interior da igreja para dizer algumas
palavras ao ouvido de Santa Winifred antes de ir trabalhar para o
jardim.
Aparentemente, alguém estava antes de si para falar com a
santa. Tutilo tinha algo a pedir à santa, pois estava ajoelhado no
último degrau do altar, bastante evidenciado pela luz das velas.
Estava tão concentrado na sua oração que não ouviu os passos de
Cadfael nas lajes. Tinha o rosto erguido para a luz, ansioso e
veemente, e os lábios moviam-se rapidamente e em silêncio num
apelo loquaz, e a avaliar pelos olhos muito abertos e pelas faces
ruborizadas com toda a confiança de ser ouvido e ver a sua prece
atendida. Tudo o que Tutilo fazia, fazia com toda a sua força. Para
ele, um simples pedido ao céu, através da intercessão de um santo
receptivo, era o equivalente a lutar com anjos, e a levar a melhor na
argumentação com os doutores em teologia. E quando se levantou
foi com um salto exultante e com um levantar do queixo, como se
soubesse que tinha conseguido o que queria.
Quando pressentiu outra presença, e se voltou para olhar para
o recém-chegado, foi com grande compostura e modéstia de
expressão, apagando a alegria e exuberância tão rapidamente como
convertera a sua cantiga de amor em devoção litúrgica por causa de
Herluin no quarto de Donata. É bem verdade que, quando
reconheceu Cadfael, a sua devota seriedade se desvaneceu um
pouco, e um brilho contido voltou cautelosamente aos seus olhos
cor de âmbar.
— Estou a pedir o auxílio da santa para a nossa missão —
disse ele. — Hoje o padre Herluin faz a pregação no Pelourinho, na
cidade. Se Santa Winifred nos ajudar, não poderemos falhar.
Os seus olhos voltaram-se de novo para o relicário no altar, e
deixaram-se ficar em adoração, grandes de admiração.
— Ela fez coisas milagrosas. O irmão Rhun contou-me como
ela o curou e o tomou para seu servo fiel. E outras maravilhas...
muitas... Todos os anos, no dia da sua subida ao céu, há centenas
de peregrinos, diz o irmão Jerome. Tenho andado a perguntar-lhe
sobre todo o tesouro de relíquias que a vossa casa reuniu aqui. Mas
ela é a principal, e é incomparável.
O irmão Cadfael não tinha certamente nada a objetar a isso. Na
verdade, havia algumas relíquias no tesouro, acumuladas por
servos ao longo dos anos, acerca das quais ele sentia alguma
reserva. Pedras do Calvário e do Monte das Oliveiras — bem,
pedras são pedras, todos os montes têm imensas, é apenas a
palavra do fornecedor para atestar a origem de um determinado
espécime. Fragmentos de ossos de santos e mártires, uma gota do
leite da Virgem, um retalho do seu manto, um pequeno frasco com o
suor de São João Baptista, uma madeixa dos cabelos ruivos de
Santa Maria Madalena... todos facilmente portáteis, e sem dúvida
que alguns dos peregrinos que voltavam da Terra Santa eram
genuínos, e acreditavam na genuinidade do que ofereciam, mas em
alguns casos Cadfael perguntava a si mesmo se alguma vez tinham
ido mais longe do que Eastcheap. Mas conhecia bem Santa
Winifred, tirara-a da terra do País de Gales com as suas próprias
mãos, e com as suas próprias mãos colocara-a reverentemente nela
uma vez mais, e deitara o solo macio de Gwytherin sobre o seu
eterno descanso. O que ela legara a Shrewsbury e a ele na sua
ausência fora a sombra protetora da sua mão direita, e uma
recordação semi culpada, semi sagrada, de uma afeição e de uma
bondade quase pessoais. Quando ele apelava, ela escutava. Ele
tentava fazer-lhe apenas pedidos razoáveis. Mas sem dúvida que
escutaria atentamente aquele jovem persuasivo e entusiasta, e lhe
concederia, talvez não tudo o que ele pedira, mas o que fosse bom
para ele.
— Se ao menos — sussurrou Tutilo, voltando a mostrar o seu
esplendor mais vivo e irresistível — se ao menos Ramsey tivesse
uma patrona assim, a nossa glória futura estaria garantida. Todos os
nossos infortúnios acabariam. Os peregrinos viriam aos milhares, as
suas oferendas enriqueceriam a nossa casa. Por que não sermos
outra Compostela?
— Pode ser vosso dever — recordou-lhe Cadfael secamente —
trabalhar para o enriquecimento do vosso mosteiro, mas não é esse
o dever dos santos.
— Não, mas é o que acontece — replicou Tutilo, impassível. —
E, seguramente, Ramsey precisa e merece uma graça especial,
depois de todos os sofrimentos que suportou. Não pode ser errado
pedir o seu enriquecimento. Eu não quero nada para mim. — No
momento seguinte corrigiu apressadamente a última declaração. —
Sim, quero ser excelente. Quero ser útil aos meus irmãos e à minha
Ordem. Quero fazer isso.
— E isso — disse Cadfael calmamente — ela vai certamente
conceder-te. E será seguramente útil. Com dons como os teus
devias considerar-te abençoado. Vai e faz o melhor por Ramsey na
cidade, e dá o teu melhor quando chegares a Worcester, ou
Pershore, ou Evesham, e que mais poderá ser-te pedido?
— Farei o que puder — concordou Tutilo, com grande
resolução, mas decididamente um entusiasmo menos genuíno, e os
olhos ainda a acariciar ternamente o relicário embutido de Winifred,
com pontos de prata a brilhar à luz das velas. — Mas uma patrona
assim... que poderia ela fazer para restaurar a nossa fortuna! Irmão
Cadfael, não podeis dizer-me onde encontrar outra?
Afastou-se quase com relutância, e ficou a espreitar à porta,
antes de abanar os ombros com firmeza e ir submeter-se às ordens
de Herluin, e conseguir, de uma maneira ou de outra, abrir os
cordões às bolsas de Shrewsbury.
Cadfael observou a figura elegante e ágil afastar-se, e achou
que havia algo ligeiramente ambíguo na visão traseira daqueles
caracóis, e na forma terna e jovem da nuca. Ah, bom! Poucas
pessoas são exatamente o que parecem no primeiro contato, e ele
praticamente não conhecia o rapaz.
Partiram para a cidade em procissão solene, e o prior Robert
emprestou a sua presença importante para reforçar a gravidade da
ocasião. O xerife tinha notificado o preboste e o representante do
Grêmio dos Mercadores da cidade, e deixara a cargo deles a
garantia de que todos os habitantes de Shrewsbury reconheciam o
seu dever, e estariam presentes. Dar esmola a uma casa religiosa
tão eminente, num momento de perseguição e necessidade,
proporcionava um meio infalível de conseguir mérito, e devia haver
muitas pessoas numa cidade tão grande dispostas a pagar um
preço modesto para se livrarem de reprovação por deslizes
menores.
Herluin regressou da sua incursão tão claramente satisfeito
consigo mesmo, e Tutilo carregava um saco tão pesado, que foi
óbvio que tinham feito uma colheita muito satisfatória. O sermão do
domingo seguinte no púlpito da capela aumentou os proventos. O
cofre que Radulfus tinha doado para receber oferendas ficou ainda
mais pesado. Para além do mais, três bons artesãos, um mestre
carpinteiro e dois pedreiros, ofereceram-se para voltar com os
homens de Ramsey e arranjar trabalho na reconstrução dos celeiros
e armazéns esventrados. O progresso da missão estava a ser muito
bem sucedido. Até Rémy de Pertuis tinha dado moedas de prata,
como convinha a um músico que no seu tempo tinha composto
obras litúrgicas para as igrejas da Provença.
Mal tinham saído da igreja, após a missa, quando um escudeiro
apareceu a cavalo de Longner, com um cavalo extra pela rédea,
para apresentar um pedido de Lady Donata. O sub prior Herluin,
pedia ela, permitiria que o irmão Tutilo a visitasse? Como o dia já
estava um pouco avançado, mandara uma montada para a sua
viagem, e prometia que regressaria a tempo das Completas. Tutilo
submeteu-se à vontade do superior com a maior humildade, mas
com olhos brilhantes. Voltar sem vigilância para o saltério de
Donata, ou para a harpa negligenciada no átrio de Longner, seria
uma recompensa adequada por ter obedecido o dia inteiro às
ordens de Herluin com tamanha devoção.
Cadfael viu-o atravessar os portões, e nessa altura o deleite
infantil já era evidente; deleite por ser recordado e necessário,
deleite por sair a cavalo quando esperara apenas uma noite rotineira
no interior do convento. Cadfael podia apreciar e desculpar aquilo. O
sorriso indulgente ainda lhe bailava no rosto quando foi cuidar de
certos remédios que estava a fazer no seu herbário. E havia outra
criatura tão resplandecentemente jovem, embora talvez não tão
inocente, à porta da cabana, à sua espera.
— Irmão Cadfael? — perguntou a cantora de Rémy de Pertuis,
a observá-lo com arrojados olhos azuis ao nível dos seus.
Não era alta, mas acima da média para uma mulher, elegante a
raiar a magreza, e direita como uma lança.
— O irmão Edmund mandou-me vir ter convosco. O meu
senhor está constipado, e coaxa como uma rã. O irmão Edmund diz
que vós podeis ajudá-lo.
— Se Deus quiser! — disse Cadfael, observando-a por sua vez
com a mesma candura. Nunca a vira tão perto antes, nem esperara
que isso acontecesse, pois ela mantinha-se afastada, talvez para
não correr riscos com um senhor exigente. Agora tinha a cabeça
descoberta, e o rosto, oval, magro e inteligente tinha uma cor pálida
entre ondas de cabelos pretos, encaracolados.
— Entra — disse ele — e fala-me mais sobre o problema dele.
A sua voz é certamente importante. Um trabalhador que perde as
suas ferramentas perdeu o seu meio de subsistência. Que tipo de
constipação tem ele? Tem olhos remelosos? A garganta inchada? O
nariz tapado?
Ela seguiu-o para a oficina, que já estava na penumbra,
iluminada unicamente pelo brilho da braseira, até Cadfael acender
um pavio de enxofre e acender a sua pequena candeia. Ela olhou à
sua volta com interesse para as prateleiras cheias e para as ervas
suspensas em molhos, a abanar e a sussurrar levemente devido à
corrente de ar proveniente da porta aberta.
— A garganta — disse ela com indiferença. — Nada mais o
preocupa. Está rouca e seca. O irmão Edmund diz que vós tendes
rebuçados para a tosse e xaropes. Ele não está doente — disse ela
com um desdém tolerante. — Não está quente e não tem febre.
Qualquer coisa que lhe afete a voz transtorna-o completamente. E,
evidentemente, qualquer coisa que afete a minha. Outra das suas
ferramentas que não pode dar-se ao luxo de perder, por muito
pouco que se importe com o resto da minha pessoa. Irmão Cadfael,
fazeis todas estas pastas e poções? — Ela percorria as prateleiras
de garrafas e frascos com olhos respeitosamente abertos.
— Eu faço a preparação e a trituração — disse Cadfael — a
terra fornece os meios. Vou mandar a seu senhor algumas pastilhas
para a garganta, e um xarope para ser tomado de três em três
horas. Mas tenho de misturar o xarope. Só demora alguns minutos.
Sente-se junto à braseira, porque aqui arrefece muito à noite.
3

Ela agradeceu, mas não se sentou. As filas de misteriosos


contentores fascinavam-na. Continuou a passear e a olhar, inquieta,
mas em silêncio, uma presença felina atrás de si enquanto
selecionava entre os seus frascos potentila e marroio, hortelã-
pimenta e um pouco de papoula, e os media para dentro de uma
garrafa de vidro verde. A mão dela, magra e de dedos compridos,
tocava nos frascos com inscrições em latim.
— Não precisas de nada? — perguntou ele. — Para não ser
contagiada pela infecção dele?
— Eu nunca me gripo — declarou ela, com desprezo pelas
fraquezas de Rémy de Pertuis e de todos os da sua laia.
— Ele é um bom senhor? — perguntou Cadfael diretamente.
— Ele me alimenta e me veste — disse ela imediatamente, sem
demonstrar surpresa.
— Nada além disso? Teria essa obrigação com o escudeiro ou
o moço de cozinha. Você, ouço dizer, é o sustentáculo da reputação
dele.
Ela voltou-se para olhar enquanto ele enchia o frasco até o
gargalo com um xarope de mel, e o tapava. De olhos nos olhos, ela
revelou-se experiente e sem ilusões, não magoada, mas cautelosa
para não se deixar magoar, e preparada para fugir dos golpes ou
para retribuir, se necessário; e, no entanto, era ainda mais jovem do
que ele pensara, seguramente não teria mais de dezoito anos.
— Ele é muito bom poeta e menestrel, nunca pense o contrário.
O que eu sei, foi ele que me ensinou. O que tinha de Deus, sim, é
meu; mas ele me mostrou a sua utilidade. Se havia uma dívida, a
comida e a roupa teriam pago, mas não há nenhuma. Ele não me
deve nada. O preço por mim ele pagou quando me comprou.
Ele se voltou-se para olhá-la de frente, e avaliar até que ponto
era literal o sentido das suas palavras; e ela sorriu-lhe.
— Comprada, não alugada. Eu sou escrava de Rémy, e é muito
melhor estar presa a ele do que ao homem a quem ele me comprou.
Não sabíeis que ainda se vendem escravos?
— O bispo Wulstan pregou contra essa prática há anos — disse
Cadfael — e fez todos os possíveis para a apagar de Inglaterra, e
até do mundo. Mas, embora tenha levado os negociantes a
esconderem-se, sim, sei que ainda se mantém. Negociam a partir
de Bristol. Muito discretamente, mas sim, sabe-se. Mas é
principalmente uma questão de embarcar escravos Galeses para a
Irlanda; o dinheiro raramente passa por humanidade aqui.
— A minha mãe — disse a moça — é a prova de que o tráfico é
duplo. Numa estação má, com pouca comida, o pai dela vendeu-a,
uma filha das muitas que tinha para alimentar, a um negociante de
Bristol, que voltou a vendê-la ao senhor de um feudo semi
abandonado perto de Gloucester. Ele usou-a como sua amante até
ela morrer, mas não foi na cama dele que eu fui gerada. Ela sabia
como ter um filho do homem de quem gostava, e como livrar-se das
crias do seu senhor — disse a moça com uma terrível simplicidade.
— Mas eu nasci escrava. Não há nada a fazer.
— Podia haver uma saída — disse Cadfael, embora admitindo
que seria difícil.
— Uma saída para quê? Outro laço pior? Pelo menos com
Rémy não sou maltratada, de certa forma sou valorizada, posso
cantar, posso tocar, embora seja outro a dar o tom. Não possuo
nada, nem sequer o que trago no corpo. Para onde iria? Que faria?
Em quem poderia confiar? Não, não sou parva. Iria, se soubesse de
um lugar para mim em qualquer lado, como eu sou. Mas arriscar-me
a ser trazida de volta, depois de ter fugido dele? Isso representaria
outra servidão, de longe mais dura do que a de agora. Ele quereria
que eu andasse acorrentada. Não, eu posso esperar. As coisas
podem mudar — disse ela, e encolheu os ombros magros e direitos,
um pouco largos e ossudos para uma moça. — Quando comparado
com outros homens, Rémy não é mau. Já conheci piores. Posso
esperar.
Havia bom senso naquelas palavras, tendo em conta as
circunstâncias atuais. Aparentemente, o seu senhor provençal não
exigia o seu corpo, e a utilização que fazia da voz dava-lhe um
prazer considerável. Exercitar os dons de Deus dá essencialmente
prazer. Ele vestia-a, dava-lhe um teto e alimentava-a. Embora não
sentisse amor por ele, também não o odiava; até reconhecia, com
muita justiça, que os ensinamentos dele lhe tinham dado um meio
para ter uma vida independente, se alguma vez conseguisse
descobrir um lugar seguro para vivê-la. E na sua idade podia
permitir-se alguns anos de espera. O próprio Rémy procurava um
patrono poderoso. Na corte de um senhor importante ela poderia
encontrar um lugar muito confortável.
Mas mesmo assim, pensou Cadfael no fim das suas reflexões
práticas, como escrava.
— Estava à espera que me dissésseis agora — disse a moça, a
olhá-lo com curiosidade — que existe um lugar onde eu poderia
refugiar-me e não ser perseguida. Rémy nunca se atreveria a
seguir-me para um convento de freiras. — Deus me livre! —
exclamou Cadfael com grande fervor. — Tu virarias qualquer
convento de pernas para o ar no espaço de um mês. Não, nunca me
ouvirás dar-te esse conselho. Não é para ti.
— Foi para vós — referiu ela, com ofensa na voz e nos olhos.
— E para aquele rapaz, Tutilo, de Ramsey. Ou também o teríeis
excluído? O caso dele é muito parecido com o meu. Aborrece-me
ser escrava, a ele aborrecia ser um lacaio na casa de um
abominável velho libidinoso que gostava demasiado dele. O terceiro
filho de um homem pobre... teve de cuidar da sua vida.
— Acredito — disse Cadfael, agitando experimentalmente a
garrafa de xarope para a tosse para garantir que os ingredientes
ficavam bem misturados — acredito que não foi o único motivo que
teve para entrar em Ramsey.
— Oh, pois eu penso que foi, embora ele não saiba. Ele pensa
que foi chamado para uma vocação, longe de todos os males do
mundo. — Ela própria, pensou Cadfael, tinha conhecido
intimamente muitos desses males, e, no entanto emergia com um
desprezo muito maior por eles do que abatida ou receosa. — É por
isso que trabalha tanto para ser santo — disse ela, muito séria. —
Qualquer coisa que decide fazer, faz com todo o seu ardor. Mas, se
estivesse convencido, levaria as coisas de uma forma mais
descontraída.
Cadfael ficou a olhar para ela profundamente espantado.
— Pareces saber mais do que eu sobre este meu jovem irmão
— disse ele. — E, no entanto nunca te vi sequer reparar na
existência dele. Moves-te pelo enclave, quando és vista, como uma
sombra modesta, com os olhos baixos. Como é que alguma vez
trocaste um bom dia com ele, e ainda por cima leste a mente do
pobre rapaz?
— Rémy pediu-o emprestado para fazer uma terceira voz no
coro. Mas na ocasião não tivemos oportunidade de falar. Claro que
nunca nos vêem a olhar um para o outro ou a falar um com o outro.
Seria mau para ambos. Ele vai ser monge, e nunca deveria ser
íntimo de uma mulher, e eu sou uma escrava, e se falo com um
jovem as pessoas pensarão que tenho noções de uma mulher livre,
e que posso tentar livrar-me das minhas correntes. Estou
acostumada a dissimular, e ele está aprendendo. Não precisais
temer algum mal. Ele tem os olhos na santidade, no serviço ao seu
mosteiro. Quanto a mim, sou uma voz. Falamos sobre música, é a
única coisa que partilhamos.
Verdade, mas não toda a verdade, se não ela não poderia ter
sabido tanto sobre o rapaz em um ou dois encontros. Ela estava
bastante segura do seu julgamento.
— Está pronto? — perguntou ela, voltando abruptamente ao
seu recado. — Ele deve estar inquieto.
Cadfael entregou-lhe o frasco e contou pastilhas para dentro de
uma pequena caixa de madeira.
— Uma colher cheia, menor do que a de cozinha, à noite e de
manhã, bebida lentamente, e durante o dia se sentir necessidade,
mas sempre com, pelo menos, três horas de intervalo. E estas
pastilhas podem ser chupadas quando ele quiser, acalmarão a
garganta. — E perguntou, quando ela pegou na caixa: — Mais
alguém sabe que te tens encontrado com Tutilo? Pois não
observaste qualquer cautela comigo.
Os ombros dela ergueram-se despreocupadamente; estava a
sorrir.
— Eu aceito o que encontro. Mas Tutilo falou de vós. Nós não
fazemos nada de mal, e vós não nos acusareis de nenhum. Sempre
que é necessário temos muito cuidado.
Ela agradeceu-lhe alegremente, e estava a chegar à porta
quando ele perguntou: — Posso saber qual é o teu nome?
Ela virou-se para ele à porta:
— O meu nome é Daalny. Foi como a minha mãe o disse,
nunca o vi escrito. Não sei ler nem escrever. A minha mãe contou-
me que o primeiro herói do seu povo veio para a Irlanda dos mares
do ocidente, da terra dos mortos felizes, a que chamam a terra dos
vivos. Chamava-se Partholan — disse ela, e a sua voz assumiu por
momentos o tom ritmado e cantado da contadora de histórias. — E
Daalny era a sua rainha. Na época, havia uma raça de monstros na
terra, mas Partholan levou-os para norte, para os mares e para lá
deles. Mas no fim houve uma grande pestilência, e toda a raça de
Partholan se reuniu na grande planície, e morreu, e a terra foi
deixada vazia para o povo seguinte que veio do mar do ocidente.
Sempre do ocidente. Vêm de lá, e quando morrem voltam para lá.
Saiu para o lusco-fusco que se adensava, flexível e direita,
deixando a porta aberta atrás de si. Cadfael observou-a até ela
circundar a sebe de buxo e desaparecer do seu campo de visão. A
rainha Daalny na escravidão, quase um mito como a sua homônima,
e tão perigosa como ela.
No fim da hora que tinha permitido a si mesma, Donata virou a
ampulheta na mesa ao lado da cama, e abriu os olhos. Tinham
permanecido fechados enquanto Tutilo tocava, para se alhear em
certa medida dele, para aliviá-lo do fardo do olhar de uma mulher
velha e gasta, e deixá-lo livre para desfrutar do seu talento sem ter
de se submeter à sua audiência. Embora ela pudesse retirar prazer
da contemplação da sua juventude e frescura, dificilmente haveria
muita alegria para ele na confrontação com a sua emaciação e
ruína. Tinha mandado transferir a harpa do átrio para o seu quarto
para lhe dar o prazer de afiná-la e tocar, e ficara contente ao ver
que, enquanto tocava e esticava e ajustava, inclinando a cabeça
encaracolada sobre o trabalho, se tinha esquecido da própria
presença dela. Era assim que devia ser. Para ela, a angústia
requintada da música dele era maravilhosa, e a felicidade que ele
sentia mais maravilhosa ainda.
Mas só podia pedir uma hora. Tinha prometido que ele
regressaria à hora das Completas. Virou a ampulheta, e nesse
instante ele parou, e as cordas vibraram com o pequeno sobressalto
que teve.
— Toquei mal? — perguntou ele, alarmado.
— Não, mas perguntais mal — disse ela secamente. — Sabeis
que não tocastes nada mal. Mas o tempo passa, e tendes de voltar
para o vosso dever. Fostes bondoso, e estou grata, mas o vosso
sub prior quer-vos de volta como eu prometi, a tempo das
Completas. Se quero voltar a pedir, tenho de cumprir os meus
acordos.
— Poderia tocar até que adormecêsseis — disse ele — antes
de ir.
— Eu dormirei. Nunca vos inquieteis comigo. Não, tendes de ir,
e há uma coisa que quero que leveis convosco. Abri aquela arca...
ao lado do saltério encontrareis uma pequena pasta de couro.
Trazei-me.
Ele pousou a harpa e fez o que ela lhe pedira. Ela soltou a
corda que prendia a abertura do pequeno saco gasto, e esvaziou-o
sobre a colcha, espalhando uma mão cheia de joias de pouco valor,
uma gargantilha de ouro, duas pulseiras iguais, um pesado colar de
ouro torcido de ouro com pedras preciosas toscamente engastadas,
e dois anéis, um deles um selo maciço de homem, o outro uma
aliança de ouro larga, muito trabalhada. O seu próprio dedo
mostrava a marca encolhida e pálida por baixo do nó inchado, de
onde a tirara. Por fim, tirou uma grande pregadeira muito trabalhada,
de ouro avermelhado, trabalho saxônico, para apertar um manto.
— Levai estas coisas, e juntai-as ao que conseguiram reunir
para Ramsey. O meu filho promete uma boa carrada de lenha, em
parte madeira miúda, na verdade Eudo vai mandar as carroças para
cá amanhã à noite. Mas essas oferendas são minhas. São o resgate
do meu filho mais novo. — Voltou a guardar o ouro no saco, e
fechou a abertura. — Levai-as!
Tutilo permanecia hesitante, a olhá-la em dúvida.
— Senhora, não é preciso um resgate. Ele não tinha feito os
votos finais. Tinha o direito de escolher o seu caminho. Não deve
nada.
— Não Sulien, mas eu — disse ela, e sorriu. — Não precisais
de ter escrúpulos em levá-las. São minhas e posso dispor delas,
não pertenciam à família do meu marido, mas ao meu pai.
— Mas a esposa de vosso filho — insistiu ele — e a senhora
que vai casar com o vosso Sulien... não têm algum direito? Estas
jóias têm grande valor, e as mulheres gostam destas coisas.
— As minhas filhas estão de acordo com a minha decisão.
Estamos todos unidos. Ramsey pode rezar pela minha alma —
disse ela serenamente — e isso saldará todas as contas.
Ele desistiu então, ainda espantado e em dúvida, aceitou o
saco que ela lhe estendia, e beijou a mão que o entregava.
— Ide agora — disse Donata, e estendeu-se de novo nas suas
almofadas com um suspiro. — Edred irá convosco para vos ajudar a
atravessar na barcaça, e trará o cavalo de volta. Esta noite não
deveis ir a pé.
Ele despediu-se, ainda um pouco ansioso, sem saber ao certo
se fizera bem em aceitar o que parecia um presente tão rico. Voltou-
se de novo à porta, e ela abanou a cabeça, e fez-lhe sinal para se ir
embora com uma autoridade que o fez sair rapidamente, como se
tivesse sido repreendido.
No pátio, o escudeiro esperava com os cavalos. Já era de noite,
mas estava uma noite clara e com luar, e nuvens muito altas a
passar rapidamente no céu. Na barcaça, o rio estava a correr mais
alto do que quando tinham vindo, embora não tivesse chovido.
Algures a levante, havia água de cheias a caminho.
4

Depois das Completas, entregou orgulhosamente os seus


tesouros ao sub prior Herluin. Todos os habitantes da casa, e a
maior parte dos hóspedes, encontravam-se presentes para
testemunhar a chegada do gasto saco de couro, e vislumbraram o
seu conteúdo quando Tutilo o exibiu alegremente. Os presentes de
Donata foram acrescentados às esmolas dos burgueses de
Shrewsbury no cofre de madeira que as levaria para Ramsey, com o
carregamento de madeira de Longner, enquanto Herluin e Tutilo iam
visitar Worcester, e possivelmente também Evesham e Pershore,
para apelar a mais ajuda.
Herluin fechou o tesouro à chave e colocou o cofre no altar de
Nossa Senhora até chegar o momento de o confiar aos cuidados de
Nicol, o seu servo de maior confiança, para a viagem de regresso a
casa. Mais dois dias, e continuariam viagem. A abadia tinha
emprestado uma grande carroça para transporte, e a cidade
providenciara o empréstimo de uma parelha de cavalos para puxá-
la. Cavalos do estábulo da abadia transportariam Herluin e Tutilo na
continuação da sua viagem. Shrewsbury tinha feito muito pela sua
casa irmã, e o ouro de Donata era a coroa do esforço. Muitos olhos
seguiram o rodar da chave, e a instalação do cofre no altar, onde o
pavor do inferno o salvaria da violação. Deus exerce uma atração
poderosa.
Deixando a igreja, Cadfael parou por instantes para cheirar o ar
e observar o céu, que àquela hora estava pesado com nuvens de
chuva, através das quais a lua espreitava fugazmente de vez em
quando, e era rapidamente escondida de novo. Quando foi fechar a
sua oficina para a noite, reparou que as águas do regato se tinham
apoderado de aproximadamente mais um metro da parte mais baixa
do seu campo de ervilhas.
Durante a noite inteira, desde o toque do sino para as Matinas,
choveu intensamente. De manhã, aproximadamente à hora da
Prima, Hugh Beringar, o xerife do rei Stephen em Shropshire, veio
apressadamente da cidade para trazer o primeiro aviso dos
problemas que se avizinhavam, e mandou os seus funcionários
levarem a notícia ao longo de Foregate, enquanto a trazia
pessoalmente ao abade Radulfus.
— A noite passada recebi a notícia de Pool de que o Severn
está muito próximo da cidade, e continua a chover torrencialmente
no País de Gales. A montante, para lá de Montford, os prados estão
submersos, e a maior quantidade continua a descer, e depressa.
Aconselho a mudar tudo o que é valioso... Não se pode correr riscos
com as provisões, com o transporte ameaçado. — Em período de
cheias, a cidade, com exceção da incrustação de casas de
pescadores e outros artífices ao longo da margem do rio, e dos
jardins ao lado das muralhas, seria bastante segura, mas Foregate
depressa poderia estar submerso, e partes do enclave da abadia
situavam-se na zona mais baixa, ameaçadas de todos os lados pelo
próprio rio, sendo o regato Meole puxado para trás pelo peso da
água, e a represa aumentada pela pressão de ambos. —
Emprestar-vos-ei alguns homens, mas precisareis de levar alguns
dos habitantes da margem para a cidade.
— Temos mãos suficientes, podemos fazer a mudança
sozinhos — disse o abade. — Os meus agradecimentos pelo aviso.
Pensais que será uma cheia grave?
— Ainda não há maneira de saber, mas tereis tempo para vos
preparardes. Se pretendeis carregar aquela madeira para Longner
esta noite, é melhor levardes a vossa carroça pela Feira dos
Cavalos. O nível ali está bastante seguro, e podereis entrar e sair do
vosso estábulo e do palheiro pelos portões do cemitério.
— Seria conveniente — disse Radulfus — que os homens de
Herluin conseguissem levar o seu carregamento amanhã, e
dirigirem-se para casa. — Levantou-se para ir dar instruções aos
criados para o trabalho pendente, e Hugh, pela primeira vez, dirigiu-
se para a porta sem procurar o irmão Cadfael antes de sair. Mas
aconteceu que Cadfael vinha a contornar a sebe do jardim com
pressa considerável, mesmo a tempo de se cruzar com o amigo,
que vinha em sentido inverso. O regato Meole estava a subir, e a
represa a aumentar.
— Ah! — exclamou Cadfael. — Andavas à minha procura, não?
O abade está avisado?
— Está, e podes parar para recuperar o fôlego — disse Hugh,
refreando a sua própria corrida para colocar um braço em volta dos
ombros de Cadfael. — Não que saibamos o que podemos esperar,
ainda não. Pode ser menos grave do que tememos, mas é melhor
estarmos prevenidos. A parte mais baixa da cidade está inundada.
Acompanha-me até ao portão, pois quase não te vi desde o Natal.
— Não demorará muito — tranquilizou-o Cadfael, sem fôlego.
— Sobe depressa, desce depressa. Dois ou três dias a andar na
água, mais tempo para limpar depois disso, mas já fizemos tudo
isso antes.
— É melhor teres à mão os remédios que poderão ser
necessários, e guardá-los num andar superior, na enfermaria.
Demasiada água, e até tu estarás numa cama, doente.
— Já estive a guardá-los — garantiu-lhe Cadfael. — Agora vou
falar com Edmund. Graças a Deus, Aline e Giles estão secos, lá em
cima em Santa Maria. Está tudo bem com eles?
— Muito bem, mas há muito tempo que não vais fazer uma
visita ao teu afilhado. — O cavalo de Hugh estava amarrado junto
ao portão; ele pegou no freio. — Vai em breve. Quando o Severn
voltar para o seu leito.
— Irei. Saudações para ela, e pede desculpas ao rapaz por
mim. Hugh montou, e afastou-se pela estrada para procurar e
conferenciar com o preboste de Foregate; e Cadfael aconchegou o
hábito e dirigiu-se para a enfermaria. Mais tarde haveria coisas de
valor para transferir para zonas mais elevadas, mas o seu primeiro
dever era certificar-se de que tinha todos os remédios que poderiam
ser necessários num local facilmente acessível, longe das águas
que estavam a subir lentamente do inchado regato Meole de um
lado, e da represa congestionada do outro.
Nessa manhã, a Missa Solene foi celebrada como sempre,
reverentemente e sem pressas, mas o cabido foi uma questão de
minutos, dedicado essencialmente a atribuir todas as tarefas
necessárias a grupos apropriados de irmãos, e a garantir um
trabalho ordeiro e decoroso. Primeiro, embrulhar todos os valores
que poderiam ter de ser levados por escadas e colocados em
sótãos, e por enquanto deixá-los já protegidos, onde estavam. Não
havia necessidade de transferi-los antes de a subida das águas
tornassem a ação essencial. Havia coisas para ser içadas dos
pontos mais baixos do enclave muito antes de a cheia chegar à
igreja propriamente dita.
Como o pátio do estábulo se situava numa zona baixa da
propriedade, mudaram os cavalos para o celeiro da abadia e para o
palheiro junto ao terreno da Feira de Cavalos, onde havia forragem
suficiente armazenada e não era preciso carregar nenhuma dos
palheiros dentro do enclave, onde tudo estava armazenado em
segurança. Nem sequer o Severn na cheia de Primavera, após
fortes nevões e chuva torrencial, tinha chegado alguma vez aos
armazéns mais elevados, e nunca chegaria; havia terrenos baixos
mais do que suficientes ao longo do seu curso por onde se espalhar.
Em alguns lugares ficava com mais de uma milha de comprimento,
em acres de prado inundado, antes de invadir o coro. Sabia-se que,
ao longo dos anos, a nave fora atravessada com uma jangada, uma
vez até com um pequeno barco. Era o pior que podiam recear. Por
isso embrulharam todas as arcas e cofres que guardavam os
paramentos, o prato das esmolas, as cruzes e os candelabros e os
acessórios dos altares, e as preciosas relíquias pequenas do
tesouro. E embrulharam cuidadosamente o relicário embutido em
prata de Santa Winifred em cortinas velhas e gastas, mas deixaram-
na no altar até ficar claro que teria de ser transportado para um
refúgio mais elevado. Se isso se tornasse necessário, esta seria de
longe a pior cheia de que Cadfael tinha memória; e se alguma vez
durante este dia ameaçasse o pior, ela teria de ser removida, algo
que nunca acontecera desde que fora trazida para aquele lugar.
Cadfael não quis comer ao meio-dia, e enquanto o resto dos
habitantes da casa se alimentavam à pressa, ele foi ajoelhar-se
diante do altar da santa, como por vezes fazia em silêncio,
demasiado cheio de recordações para rezar, embora parecesse
haver, no entanto, um diálogo em progresso. Se alguma alma
bondosa entre os santos o conhecia bem, era Winifred, a sua jovem
moça galesa, que não estava aqui, mas em segurança e contente
na sua terra galesa em Gwytherin. Ninguém sabia a não ser a
senhora, o seu servo e dedicado Cadfael, que lhe dera o descanso
lá, e Hugh Beringar, a quem o segredo fora confiado mais tarde.
Aqui em Inglaterra, mais ninguém; mas no seu País de Gales, na
sua Gwytherin, não era segredo, mas um dogma da fé galesa que
nunca precisava ser mencionado. Ela continuava com eles; estava
tudo bem.
Assim, não era o descanso dela, não o dela, que estava
ameaçado agora, apenas o repouso inquieto de um jovem que tinha
cometido um crime de homicídio em busca dos seus sonhos mal
orientados, ganância pela abadia de Shrewsbury, ganância pela sua
própria promoção. A morte dele proporcionara a Winifred a paz para
permanecer onde o seu coração se prendia ao solo amado. Isso,
pelo menos, podia quase ser contado com expiação dos pecados
dele. Pois ela não retirara a sua bênção, porque um pecador jazia
no caixão preparado para ela, e fora encomendado em seu nome.
Onde ele estava, e ela não, ela fizera milagres de graça.
— Geneth... Cariad! — disse Cadfael em silêncio. — Moça,
querida, ele está no purgatório há tempo suficiente? Podeis tirá-lo
do seu calvário?
Durante a tarde, a subida gradual do regato e do rio pareceu
abrandar e manter-se constante, embora não houvesse
seguramente um declínio. Começaram a pensar que o perigo
passaria. Depois, ao fim da tarde, o caudal principal da água do
País de Gales desceu rapidamente num tumulto de espuma
enlameada, ramos partidos, e bastantes carcaças de ovelhas
apanhadas e afogadas em pastos demasiado baixos para preservá-
las. A rolar e a saltar na corrente, árvores acumularam-se debaixo
da ponte e fizeram subir ainda mais a água túrgida. Todas as almas
no enclave se uniram ansiosamente, e ajudaram a retirar os bens
preciosos para um refúgio mais elevado, enquanto o regato e o rio e
a represa avançavam gulosamente para todas as zonas mais baixas
do pátio e do cemitério, e trepavam os degraus das portas oeste e
sul, transformando o recinto dos claustros num lago baixo e
lamacento.
Os paramentos, acessórios, prato das esmolas, cruzes e todo o
tesouro foram transportados para os dois aposentos por cima do
alpendre norte, onde Cynric, o bedel, vivia e o padre Boniface se
paramentava. Os relicários que continham as relíquias menores
saíam pelas portas do cemitério para o sótão por cima do celeiro da
Feira dos Cavalos. Um dia que nunca tinha tido muita claridade
declinou para um sombrio lusco-fusco, e caía uma chuva miudinha,
persistente e deprimente, que se colava às pálpebras e pestanas e
lábios, aumentando o desconforto.
Duas carroças de Longner tinham trazido o carregamento
prometido de madeira para a reconstrução, e esta começou a ser
transferida para a carroça maior da abadia para a viagem de
regresso a Ramsey. O cofre que continha as oferendas de
Shrewsbury para a causa ainda se encontrava no altar da capela de
Nossa Senhora, com a chave na fechadura, pronto para ser
entregue ao criado Nicol para ser transportado em segurança no dia
seguinte. Aquele altar situava-se a uma altura suficiente para
sobreviver a todas as cheias, a não ser que assumissem proporções
bíblicas. As carroças de Longner tinham trazido um terceiro ajudante
voluntário, um pastor do lugarejo de Preston, nas redondezas. Mas
os três mal tinham começado a transferir a carga quando foram
interrompidos agitadamente pelo irmão Richard para ajudarem a
retirar da igreja, ou a colocar num local mais seguro dentro das suas
paredes, alguns dos tesouros ameaçados da abadia. Irmãos e
hóspedes estavam a efetuar a mesma tarefa um pouco confusa
praticamente na escuridão.
No espaço de uma hora, a maior parte da proteção necessária
estava terminada, e os hóspedes começaram a retirar-se para
lugares mais altos e mais secos, antes de a água em ascensão lhes
chegar aos joelhos. Dentro da nave tudo ficou em silêncio, apenas o
leve bater de água agitada contra os pilares enquanto algum homem
robusto subia, agradecido, para o conforto superior da ala de
hóspedes. O criado de Rémy, Bénezet, foi o último a ir, com botas
até aos joelhos, e bem protegido contra a chuva.
As carroças de Longner e os ajudantes voltaram à transferência
da madeira; mas um pequeno irmão, coberto e agitado, estendeu
uma mão para deter o último deles, o pastor de Preston. — Amigo,
há mais uma coisa aqui para ir na carroça para Ramsey. Dai-me
uma ajuda com ela.
Nessa altura já todas as luzes se tinham extinguido, com
exceção das luzes do altar. O pastor deixou-se conduzir pela mão, e
tateou o caminho até uma extremidade de um fardo comprido e fino,
bem embrulhado em panos. A única luz do altar lançou uma
luminosidade amarelada no interior do capuz Beneditino quando se
endireitaram, e revelou fugazmente um rosto sério e suave, e fugiu
com a corrente de ar vinda da porta da sacristia. Juntos, carregaram
o fardo para fora da igreja por entre as campas dos abades até ao
local onde a carroça da abadia estava parada do lado de fora dos
pesados portões duplos. Os dois homens de Longner estavam na
sua carroça, a passar troncos para a parte de trás, para os
transferirem mais facilmente entre os dois para a carroça maior de
transporte, e a escuridão caiu sobre todos, densa com o começo de
um nevoeiro úmido e pegajoso. O fardo embrulhado foi içado para a
carroça, e cuidadosamente alinhado ao lado da madeira já
carregada. Quando o jovem irmão endireitou as costas, sacudiu as
mãos, e se retirou rapidamente para o portão aberto, os dois
carroceiros já tinham levado outra carga de madeira para a carroça,
e estavam de novo na deles para levar a seguinte. A última prega do
embrulho exterior, um brilho momentâneo de bordado dourado
agora gasto e puído, desapareceu sob a pilha da madeira de
Longner.
Em algum lugar dentro do cemitério, e a retirar-se para a
escuridão da igreja, uma voz leve agradeceu-lhes e abençoou-os, e
desejou-lhe boa-noite.
De manhã, imediatamente após a Missa Solene, a carroça
emprestada partiu para Ramsey. O cofre do altar foi confiado aos
cuidados de Nicol, e embora um dos seus companheiros de Ramsey
fosse continuar a viagem com Herluin para Worcester, a adição de
três artesãos à procura de trabalho ao grupo que ia para casa
ofereceu uma guarda tranquilizadora para os valores que
transportavam. A madeira estava bem presa, a parelha de quatro
cavalos passara a noite confortavelmente no estábulo da Feira dos
Cavalos, acima do nível da cheia, e estava pronta para a viagem.
Iriam para esta, saindo por Saint Giles, e depois de se afastarem
dos campos alagados e de passarem a ponte em Atcham estariam
longe do rio, e em estradas boas, abertas e muito usadas. Perto do
seu destino, tendo em conta que os malfeitores de Geoffrey de
Mandeville deviam agora andar escondidos, talvez tivessem ocasião
de se regozijarem por levarem três fortes rapazes de Shropshire,
todos hábeis de mãos.
A carroça afastou-se ao longo de Foregate. Estariam alguns
dias na estrada, mas pelo menos em regiões mais afastadas das
montanhas de Gales, que tinham lançado um peso tão grande de
água de degelo para as terras baixas depois dos fortes nevões de
Inverno.
Aproximadamente uma hora depois, o sub prior Herluin também
partiu, acompanhado por Tutilo e pelo terceiro criado laico, para
voltarem para sudeste em Saint Giles. Possivelmente, Herluin ainda
não tinha percebido que as cheias, que estava grato por deixar para
trás aqui, poderiam segui-lo para jusante e ultrapassá-lo
triunfalmente em Worcester. A velocidade a que a água das cheias
viajava podia ser errática em alguns invernos; podia estar até a
frente dele quando chegasse aos campos planos abaixo da cidade.
5

Rémy de Pertuis não fez qualquer preparativo para partir. Até o


andar mais baixo dos aposentos de hóspedes se mantinha bastante
seco e aconchegante, pois fora erguido sobre uma cripta profunda e
com acesso através de um lance de escadas, por isso ficou a curar
a garganta inflamada num calor e conforto relativos. O seu melhor
cavalo, o seu cavalo de montar, continuava coxo segundo o seu
criado, Bénezet, que tinha a seu cargo os cavalos, e atravessava
todos os dias, impassivelmente, a parte inundada do pátio para
tratar deles na Feira dos Cavalos. O pátio dos estábulos do enclave
estava inundado quase até a altura dos joelhos, e poderia manter-se
assim por mais alguns dias. Bénezet recomendou uma estada mais
prolongada ali, e, aparentemente, o seu senhor, pensando nas
possíveis inconveniências no caminho para norte, para Chester,
com o Severn a montante e o incalculável Dee, não fizera qualquer
objeção. Estava seco e alimentado e em segurança onde se
encontrava. E a chuva parecia estar a afastar-se. A oeste, as
nuvens começavam a clarear, e apenas um ou dois aguaceiros
pontuais marcavam a previsível calma da rotina diária.
O horário foi teimosamente cumprido apesar das dificuldades.
O coro mantinha-se pouco acima do nível das águas, e só podia ser
alcançado sem molhar os pés através das escadas noturnas desde
o dormitório, e o chão da casa do cabido quase não estava coberto
no primeiro e segundo dia, e no terceiro viu-se que retinha apenas
as linhas escuras e úmidas entre as lajes. Foi o primeiro sinal de
que o rio tinha reafirmado os seus poderes, e estava de novo a
carregar o seu grande peso de águas. Passaram mais dois dias
antes de a mudança ser perceptível na corrente rápida do regato e
no recuo da cheia para o seu leito, afundando-se gradualmente na
erva saturada e deixando um rasto de destroços para marcar o
declínio. A represa diminuiu lentamente, arrebatando turfa e folhas
das zonas mais baixas dos jardins que tinha invadido. Mesmo ao
longo do lado do Severn, sob as muralhas da cidade, o nível descia
de dia para dia, desistindo da orla de pequenas casas e de cabanas
de pescadores e de abrigos para barcos e deixando tudo manchado
de lama e repleto de lixo de ramos e arbustos.
Uma semana depois, regato e rio e represa tinham voltado aos
seus domínios, cheios, mas ainda a descer gradualmente. Afinal de
contas, a marca da água deixada na nave não chegara mais alto do
que o cimo do segundo degrau do altar de Santa Winifred.
— Nunca foi verdadeiramente necessário retirá-la — disse o
prior Robert, a observar a marca e a abanar a cabeça. – Devíamos
ter tido mais fé. Seguramente, ela é bem capaz de tomar conta de si
e do seu rebanho. Só precisava ordenar, e as águas teriam descido.
Não obstante, uma morada úmida, pegajosa e fria, e suja de
lama e lixo, não era um local apropriado para ter uma santa.
Puseram mãos ao trabalho sem se queixarem, a varrer e a polir e a
lavar as poças deixadas em cada irregularidade das lajes do chão.
Trouxeram as pedras fanais, as três, para a nave, encheram todas
as suas cavidades com azeite, e acenderam-nas para secar a
umidade que ainda pairava e para aquecer o ar. Essências florais
acrescentadas ao azeite lutaram com valentia contra o fedor do rio.
Criptas, despensas, celeiros e estábulos também precisariam de
cuidados, mas a igreja era a primeira prioridade. Quando estivesse
novamente pronta para recebê-los e albergar, todos os tesouros
poderiam ser recolocados nos seus lugares dentro da igreja.
O abade Radulfus marcou a purificação do local sagrado com
uma missa de ação de graças. Depois, começaram a trazer dos
seus santuários mais elevados os acessórios dos altares, as arcas
de paramentos e o prato das esmolas, os candelabros, recém
polidos, os frontais e os quadros, os relicários menores. Foi aceite
sem disputa que tudo tinha de estar no seu lugar e imaculado antes
de a maior graça e ornamento da abadia de São Pedro e São Paulo
ser trazida com toda a pompa e circunstância para o lugar que lhe
pertencia por direito, recém-varrido e embelezado para recebê-la.
— Agora — disse o prior Robert, endireitando-se alegremente
em toda a sua majestosa altura — vamos colocar Santa Winifred no
seu altar. Ela foi levada, como todos os que estão aqui presentes
sabem, para a sala superior por cima do alpendre norte. — A
pequena porta exterior ao canto do alpendre, e a escada em espiral
no interior, muito difíceis para o transporte até de um pequeno
caixão, tinham permanecido acessíveis até ao ponto mais alto da
cheia, e ela fora bem protegida contra qualquer estrago no
transporte. — Vamos — declarou Robert — em devoção e alegria, e
vamos trazê-la de volta para a sua missão e bênção entre nós.
"Ele teve sempre", pensou Cadfael, enquanto o seguia
resignadamente pela porta estreita e recuada e pelas escadas
traiçoeiras, "esta convicção de que é proprietário da moça, porque
acredita... não, Deus tenha misericórdia dele, pobre alma, ele sabe
erradamente, mas com certeza!... que a trouxe para cá. Deus
permita que nunca descubra a verdade, que ela está muito longe no
lugar que escolheu, e a sua conivência com o orgulho que ele tem
nela é apenas a piedade de uma moça de bom coração para com
uma criança idiota."
Cynric, o bedel da paróquia do padre Boniface, tinha
disponibilizado a sua pequena habitação por cima do alpendre para
a guarda dos tesouros da igreja enquanto a cheia durasse. Dentro
em breve voltaria a tomar posse do local; um homem alto, magro e
calado, com o rosto aguçado, uma figura que inspirava temor ao
comum dos mortais, mas totalmente aceite pelos inocentes, pois as
crianças de Foregate, e os seus inseparáveis seguidores, os cães,
vinham confiantemente à sua mão, e sentavam-se e meditavam
alegremente nos degraus com ele quando estava tempo de Verão.
O seu pequeno quarto estava agora vazio de tudo a não ser da sua
última e mais preciosa residente. O caixão, embrulhado e amarrado
com cordas, foi então erguido com toda a reverência, e
cuidadosamente manipulado pelo espaço apertado de uma escada
em espiral.
Na nave, tinham colocado cavaletes para pousá-la, enquanto
soltavam o revestimento de panos que tinham usado para proteger
o relicário de danos. Os panos soltaram-se um após o outro e foram
pousados de lado, e Cadfael, que estava a observar, teve a
impressão de que com a remoção de cada um a forma enfaixada, a
diminuir, assumia uma forma demasiado rígida e retangular para
condizer com a que ele tinha devotamente na ideia. Mas a última
cobertura era suficientemente grossa para camuflar as delicadezas
de forma que ele conhecia tão bem. O prior Robert estendeu uma
mão com cerimoniosa reverência para agarrar a última dobra, e
puxou-a para trás para destapar o que estava por baixo.
E soltou um guincho abafado que emergiu com um efeito
surpreendente de garganta tão augusta, embora não tivesse sido
alto. Deu um passo para trás, grande e inseguro, e depois avançou
abruptamente de novo e arrancou o pano, para expor à vista de
todos a realidade inexplicável e ofensiva que tinham manuseado
com tanto cuidado desde o seu lugar seguro. Não o relicário
embutido em prata de Santa Winifred, mas um tronco de madeira,
menor e mais curto que o caixão que tinha representado,
provavelmente, leve o bastante para ser manuseado por um único
homem, e não novo, pois tinha secado e envelhecido ao ponto de
estar em condições para ser utilizado.
Todo o cuidado e reverência tinham sido desperdiçados.
Estivesse Santa Winifred onde estivesse, não estava seguramente
ali.

Após o silêncio espantado e embasbacado, explodiram


exclamações e confusão de todos os lados, atraindo ao local outros
que tinham ouvido o grito estrangulado de consternação, e tinham
deixado as suas tarefas para vir e olhar e espantar-se. O prior
Robert estava paralisado como uma estátua ultrajada, com o pano
apertado nas duas mãos, a olhar para o tronco ofensivo, e por uma
vez completamente mudo. Foi a sua sombra obsequiosa que
levantou o fardo do protesto por ele.
— Isto é algum terrível engano — balbuciou o irmão Jerome, a
torcer as mãos uma na outra. — Na confusão... e ficou escuro antes
de acabarmos... Alguém confundiu, alguém a levou para outro lado.
Nós a encontremos, em segurança, num dos sótãos.
— E isto? — inquiriu o prior Robert fulminantemente, a apontar
um dedo ameaçador para a ofensa que jazia diante deles. — Assim
embrulhado, com tanto cuidado como tivemos com ela? Não há
engano! Não foi um erro cometido inocentemente! Alguém fez isto
deliberadamente para enganar! Isto foi colocado no lugar dela, para
ser manuseado e cuidado no seu lugar. E agora onde... Onde está
ela?
Alguma perturbação no ar, algum vento de alarme, tinham sido
já captados, e chegado ao grande pátio, e minuto a minuto mais
curiosos de boca aberta se reuniam, irmãos tresmalhados que se
encontravam a efetuar limpezas no pátio da lavoura e nos
estábulos, hóspedes com bons ouvidos que saíram dos seus
aposentos, um par de meninos de escola com olhos muito abertos e
curiosos que foram corridos pelo irmão Paul com menos indulgência
do que era habitual.
— Quem esteve com ela da última vez? — perguntou o irmão
Cadfael razoavelmente. — Alguém... mais do que uma pessoa... a
levou até aos aposentos de Cynric. Alguma dessas pessoas se
encontra aqui?
O irmão Rhun abriu caminho pelo grupo de irmãos curiosos e
assustados, o mais jovem entre eles, o protegido especial da sua
santa, e o seu servo mais devoto, como todos os homens sabiam.
— Fui eu, juntamente com o irmão Urien, que a amarramos em
segurança. Mas, para meu desgosto, eu não estava aqui quando ela
foi removida do seu lugar.
Uma figura alta salientou-se acima das cabeças dos irmãos
mais próximos, a esticar-se para ver o que causava todo aquele
reboliço.
— Essa era a carga daquele altar? — perguntou Bénezet, e
avançou para olhar mais de perto. — O relicário, o caixão da santa?
E agora isto...? Mas eu ajudei a levá-lo para os aposentos do bedel.
Foi uma das últimas coisas que transportamos, ao fim da tarde. Eu
estava a ajudar, e um dos irmãos... ouvi chamarem-lhe irmão
Matthew... chamou-me para dar uma mão. E obedeci. Levamo-la
pelas escadas e deixamo-la em segurança. — Olhou à sua volta à
procura de confirmação, mas o irmão Matthew, o despenseiro, não
estava ali para falar. — Ele dirá — disse Bénezet, confiante. — E
isto... um tronco de madeira? Foi com isto que tivemos tanto
cuidado?
— Olha para o pano — disse Cadfael, abrindo-o
apressadamente diante dos olhos do homem e estendendo-o bem.
— O invólucro exterior. Viste-o claramente quando tiveste o fardo
nas tuas mãos? É o mesmo? — Por acaso, era um pano de lã
escocesa, com um padrão regular de flores de quatro pétalas num
azul pálido; muitos daquele gênero entravam nas casas inglesas
através do mercado de Shrewsbury. Estava puído em alguns
lugares, mas tinha sido tecido de forma sólida e pesada, e reforçado
nas pontas com linho.
— O mesmo — disse Bénezet sem hesitação.
— Tens a certeza? Já era quase noite, dizes. O altar ainda
estava iluminado?
— Tenho certeza. — Os lábios compridos de Bénezet
proferiram a sua certeza como uma flecha veloz. — Vi perfeitamente
o padrão. Foi isto que levantamos e transportamos, naquela noite, e
quem podia saber o que estava dentro dos panos?
O irmão Rhun soltou um som pequeno e lamentoso, mais um
soluço do que um grito, e avançou quase temeroso para tocar e
sentir, com medo de confiar nos seus olhos, por muito jovens e sãos
e honestos que pudessem ser.
— Mas não é o mesmo — disse num sussurro emudecido —
em que eu e o irmão Urien a embrulhamos, mais cedo naquele
mesmo dia, antes do meio-dia. Deixamo-la pronta no seu altar, com
um cobertor liso em volta, e uma toalha de altar velha e coçada
esticada por cima. O irmão Richard deixou-nos usá-la, porque se
adequava à santidade dela. Era uma toalha linda, à qual foi
dispensado grande amor no bordado. Era a sua cobertura. Esta não
é de forma alguma a mesma. O que este bom homem carregou
daqui para o lugar mais alto a pensar que era Santa Winifred, não
era essa doce senhora, mas este tronco, esta zombaria. Padre prior,
onde está a nossa santa? Que aconteceu a Santa Winifred?
O prior Robert lançou um olhar autoritário para lá dele, para o
objeto ridículo libertado da sua mortalha, para os irmãos
assustados, e para o rapaz sofredor e acusador, branco como a
chama de uma vela. Rhun tinha ficado imponente, belo e ágil graças
ao milagre de Santa Winifred, e não descansaria, não deixaria
nenhum dos seus superiores descansar, enquanto ela estivesse
perdida para si.
— Deixai tudo como está — disse o prior Robert, com
autoridade — e parti, todos vós. Palavra alguma deve ser dita, nada
feito, até termos levado este problema ao padre abade, que é quem
tem poder para decidir o que fazer.
— Não há a possibilidade de um simples erro — disse Cadfael,
na sala de estar do abade, nessa noite. — O irmão Matthew está tão
seguro como aquele rapaz, Bénezet, do que transportaram, ou pelo
menos do padrão do pano que envolvia o objeto. E o irmão Rhun e
o irmão Urien estão igualmente seguros em relação ao que levaram
para embrulhá-la e cobrir. Um novo fardo foi substituído pelo
primeiro no altar, e levado para um lugar seguro de boa-fé, sem
qualquer culpa para os que ajudaram.
— Nenhuma — disse Radulfus. — O jovem ofereceu-se com
toda a bondade. O seu mérito é incontestável. Mas como aconteceu
isto? Quem poderia desejar uma coisa destas? Quem executou, se
o desejava? Pensa, irmão Cadfael! Havia cheia, havia vigilância
mas esperança durante o dia, havia necessidade urgente à noite.
Os homens preparam-se para uma ameaça súbita e estranha, mas
enquanto ela se mantém afastada eles não acreditam. E quando ela
se materializa, tudo pode ser tratado com calma e fé, como deveria
ser? Na escuridão, na confusão, os homens fracos fazem coisas
disparatadas. Não continua a ser possível que tudo isto seja um
engano... talvez uma partida estúpida e maliciosa?
— Nunca tão estúpida — disse Cadfael com firmeza — a ponto
de revestir um tronco de madeira para condizer com a massa e peso
daquele relicário. Houve um objetivo aqui. O objetivo de humilhar
esta casa, sim, talvez, embora eu não consiga perceber por que, ou
quem teria um ressentimento tão vil. Mas um objetivo, seguramente.
Estavam os dois sozinhos, já que Cadfael tinha voltado para
confirmar o testemunho de Bénezet de acordo com as declarações
do irmão Matthew, que levara a parte de cima do relicário pelas
escadas, e prendera os dedos no fio de linho emaranhado na
bainha. O prior Robert tinha contado a sua história com imenso
ardor, e deixara o fardo, segundo Cadfael suspeitava com
considerável gratidão, nas mãos do seu superior.
— E este tronco — disse Radulfus, concentrando-se muito nos
pormenores — não pertencia ao carregamento de Longner?
— Longner mandou alguma madeira seca, mas não de
carvalho. O resto era madeira miúda. Não, isto já foi cortado há
alguns anos. Está seco e podia ser usado para passar, pelo menos
aproximadamente, pelo peso do relicário. Não é nenhum mistério,
na extremidade sul da cripta por baixo do refeitório existe uma
pequena pilha de madeira que foi ali deixada depois da última
construção nos celeiros. Eu fui ver — disse Cadfael. — Há um lugar
de onde foi retirado um tronco como este. As superfícies mostram o
espaço que ficou vazio.
— E foi tirado recentemente? — perguntou Radulfus, alerta.
— Foi sim, Padre Abade.
— Então isto foi deliberado — disse Radulfus lentamente. —
Planejado e premeditado, como disseste. Difícil de acreditar. E, no
entanto não consigo perceber como poderia ter acontecido por
acaso, por qualquer combinação absurda de circunstâncias. Dizes
que Urien e Rhun a prepararam antes do meio-dia. Ao fim da tarde o
que estava no altar dela, pronto para ser levado para outro lado, era
este simples tronco. Durante o espaço de tempo entre as duas
ações, a nossa santa foi retirada, e substituída pelo outro fardo.
Com que objetivo, com que maldade em mente? Pensa, Cadfael!
Nestes poucos dias de cheia quase ninguém entrou e saiu do nosso
enclave, certamente ninguém pode ter levado um fardo tão visível.
O relicário deve estar escondido no interior das nossas paredes. No
mínimo, antes de procurarmos no exterior, cada canto desta casa e
todos os seus edifícios exteriores têm de ser revistados.
6

A procura de Santa Winifred continuou durante dois dias,


ocupando todo o tempo entre os serviços religiosos, e como se a
honra de todos os que viviam dentro daquelas paredes estivesse
impugnada na sua perda, até os hóspedes e todos os regulares de
confiança da paróquia da Santa Cruz caminharam penosamente
pela lama que ainda não secara para irem ajudar nas buscas. Até
Rémy de Pertuis, esquecendo a fragilidade da sua garganta, foi com
Bénezet procurar em todos os cantos do estábulo da Feira dos
Cavalos e no sótão por cima dele, de onde as relíquias trasladadas
de São Elerius e certos tesouros menores já tinham sido retirados.
Não parecia apropriado a moça Daalny misturar-se com os irmãos
durante o dia, mas observava com um interesse inesgotável dos
degraus da ala dos hóspedes os caçadores a emergirem de uma
porta após outra, de um pátio de lavoura para um pátio de
estábulos, do dormitório pelas escadas exteriores que eram usadas
durante o dia, para o recinto do claustro, de novo para o exterior
através do escritório, a atravessarem para a enfermaria, e sempre
de mãos vazias.
Todos os que tinham ajudado na noite da cheia, quando a
necessidade se tornou urgente, contaram o que sabiam, e a soma
do que sabiam abarcava os movimentos apressados da maior parte
do tesouro da igreja, e seguia o seu rasto até aos lugares onde tinha
ficado, mas não lançou qualquer luz sobre o que tinha acontecido ao
relicário enfaixado de Santa Winifred entre o meio-dia e a noite do
dia em questão. No final do segundo dia, até o prior Robert, rígido
de ultraje, teve de reconhecer a derrota.
— Ela não está aqui — disse ele. — Não no interior destas
paredes, não aqui em Foregate. Se eles soubessem de alguma
coisa dela lá, eles teriam dito.
— Sem dúvida — concordou o abade sombriamente — ela foi
para mais longe. Não há possibilidade de engano ou confusão. Foi
efetuada uma troca, com a intenção de enganar. E, no entanto,
quem deixou os nossos portões durante estes dias? Com exceção
dos nossos irmãos Herluin e Tutilo, que com toda a certeza não
levaram nada a não ser o que tinham trazido, o mínimo que um
homem precisa quando anda em viagem.
— Houve a carroça — disse Cadfael — que partiu para
Ramsey. Fez-se silêncio, enquanto olhavam uns para os outros com
apreensão, calculando, inquietos, as perigosas possibilidades que
se abriam à sua frente.
— Será possível? — aventurou o irmão Richard, o sub prior,
quase esperançoso. — Na escuridão e confusão? Alguma ordem
mal compreendida? Poderá ter sido colocada na carroça por
engano?
— Não — respondeu Cadfael, cortando frontalmente aquela
consideração. — Se ela foi retirada do seu altar, então foi colocada
noutro lado qualquer com um objetivo deliberado. No entanto, sim, a
carroça partiu na manhã seguinte, e ela pode ter ido com ela. Mas
não por acaso, não por engano.
— Então é um roubo sacrílego! — exclamou Robert. — Uma
ofensa contra as leis de Deus e do reino, e deve ser castigada com
todo o rigor.
— Não devemos dizer uma coisa dessas — reprovou Radulfus,
erguendo uma mão dominadora — até termos interrogado todos os
homens que estiveram presentes naquele dia e que possam ter
alguma coisa a acrescentar ao que sabemos. E ainda não fizemos
isso. O sub prior Herluin e o irmão Tutilo estavam conosco nessa
altura, e, tanto quanto sei, Tutilo esteve a ajudar a remover os
acessórios do altar até à noite. E não havia outros que vieram para
ajudar? Devíamos falar com cada pessoa que pode ter visto alguma
coisa relevante, antes de gritarmos roubo.
— Os carroceiros de Eudo Blount que vieram com a lenha —
afirmou Richard — deixaram a carga e entraram para nos ajudar,
até o trabalho ficar concluído, antes de acabarem de transferir a
lenha da carroça de Longner. Não deveríamos perguntar-lhes? Por
muito escuro que já estivesse na altura, eles podem ter reparado em
alguma coisa que seja útil para a nossa investigação.
— Não negligenciaremos nada — disse o abade. — Sei que o
padre Herluin e o irmão Tutilo voltarão aqui para devolver os nossos
cavalos, mas isso pode demorar alguns dias, e não devemos
atrasar-nos. Robert, eles deverão estar agora em Worcester.
Quereis ir ter com eles e ouvir o relato que podem dar-vos desse
dia?
— De muito boa vontade — disse Robert, ardentemente. —
Mas, Padre, se isto se tornar seriamente um caso de roubo, não
deveríamos confiá-lo ao xerife, e ver se ele pensa que será prudente
um homem da sua guarnição acompanhar-me? No fim, poderá ser
tanto para a justiça do rei como para a nossa, e, como dizeis, o
tempo é precioso.
— Tendes razão — concordou Radulfus. — Falarei com Hugh
Beringar. E quanto aos homens de Longner, iremos ouvir o que têm
para dizer.
— Se me autorizardes — disse Cadfael — eu me encarregarei
disso. — Não desejava ver alguém com o espírito do prior Robert
entrar na casa decente de Eudo Blount e investigar de uma forma
que sugerisse sinistras suspeitas de duplicidade e roubo.
— Faz isso, irmão Cadfael, se quiseres. Tu conheces as
pessoas melhor do que qualquer um de nós, elas falarão contigo
livremente. Temos de encontrá-la — disse o abade Radulfus
sombriamente — e assim faremos. Amanhã, Hugh Beringar saberá
o que aconteceu, e fará o que considerar adequado.
Hugh saiu da conferência com o abade meia hora depois do
final da Prima.
— Bom — disse ele, afundando-se no banco que estava
encostado à parede de madeira da oficina de Cadfael — parece que
desta vez te encontras numa situação bastante estranha. Como é
que perdeste a vossa suposta santa? E que farás, meu amigo, se
alguém, em algum lugar, decidir abrir a tampa daquele caixão muito
bonito?
— Por que é que alguém faria uma coisa dessas? — disse
Cadfael, mas nada confiante.
— Tendo em conta a curiosidade humana, da qual deverias
saber mais do que eu — disse Hugh, sorridente — por que não?
Digamos que a coisa vai parar a um lugar onde ninguém sabe o que
é, ou o que significa, que maneira melhor haverá para descobrir o
que têm entre mãos? Tu serias o primeiro a quebrar os selos.
— Eu fui o primeiro — disse Cadfael, descuidadamente, uma
vez que não era preciso estar alerta, pois Hugh sabia exatamente o
que estava no relicário de Santa Winifred. — E também, espero, o
último. Hugh, duvido que estejas a encarar este assunto com a
seriedade que ele merece.
— Acho difícil — concedeu Hugh — não achar engraçado. Mas
podes estar seguro de que preservarei o teu segredo, se puder.
Estou interessado. Todos os meus perturbadores da paz locais
parecem estar fechados em casa até à Primavera, por isso posso ir
até Worcester. Até na companhia de Robert poderá ser interessante.
E manterei um olho atento aos teus interesses o melhor que puder.
Que pensas desta perda? Alguém conspirou para vos roubar, ou é
apenas uma trapalhada confusa causada pela cheia?
— Não — disse Cadfael com segurança, e virou-se da prancha
onde estava a preparar pílulas para estômagos nauseados na
enfermaria. — Não é uma trapalhada. Uma mente muito clara tirou
aquele relicário do altar, e embrulhou e colocou um tronco de lenha
da cripta no seu lugar. Para que ambos pudessem ser removidos
longe da vista e do pensamento, possivelmente durante vários dias,
como de fato aconteceu. Um a deixar o caminho aberto para que o
outro fosse retirado e não pudesse ser recuperado. Pelo menos
imediatamente — acrescentou com firmeza — pois havemos de
recuperá-lo.
Hugh estava a olhar para ele, com o brilho da braseira refletido
nos olhos, com os lábios torcidos e o sobrolho franzido de uma
forma que Cadfael se recordava de há muito, do tempo em que se
tinham conhecido, quando nenhum deles soubera ao certo se o
outro era amigo ou inimigo, e no entanto tinham sido atraídos um
para o outro numa contenda meio séria, meio irrequieta para
descobrir.
— Sabes — disse Hugh suavemente — que estás a falar
daquele relicário perdido... há já alguns anos que falas nele nesses
termos... como se ele contivesse verdadeiramente os ossos da
senhora galesa. "Ela", dizes, nunca "aquilo", nem ainda mais
verdadeiramente "ele". E tu sabes, melhor do que ninguém, que a
deixaste a descansar lá em Gwytherin. Poderá ela estar em dois
lados ao mesmo tempo?
— Alguma essência dela pode certamente — disse Cadfael —
pois ela fez milagres aqui entre nós. Esteve naquele caixão durante
três dias, por que não poderia ter-lhe conferido o poder da sua
graça? Ela terá de estar limitada pelo tempo e pelo lugar? Digo-te,
Hugh, por vezes pergunto a mim mesmo o que seria encontrado no
interior, se aquela tampa alguma vez fosse levantada. Embora eu
próprio — acrescentou ele pesarosamente — reze com devoção
para que isso nunca venha a acontecer.
— Acho que é o melhor que podes fazer — concordou Hugh. —
Imagina o turbilhão, se alguém, algures, quebrar os selos que tu
reparaste tão cuidadosamente, e soltar a tampa, para encontrar o
cadáver de um jovem de aproximadamente vinte e quatro anos, ao
invés das ossadas de uma santa virgem. E ainda por cima nu como
veio ao mundo! Estarias bem arranjado! — Ele levantou-se, a rir,
mas mesmo assim um pouco obliquamente, pois a possibilidade
existia certamente, e ainda podia transformar-se num desastre. —
Tenho de ir tratar de todos os preparativos. O prior Robert pretende
partir logo a seguir ao jantar. — Ao passar, deu um abraço rápido a
Cadfael, como forma de encorajá-lo, e abanou-o. — Nunca temas,
tu és um dos favoritos dela, e ela cuida dos seus... sem esquecer
que até agora te saíste muito bem a cuidar de ti.
— O estranho, Hugh — disse Cadfael, inesperadamente,
quando Hugh estava a chegar à porta — é que estou preocupado e
com quase tanta ansiedade por causa do pobre Columbanus.
— Pobre Columbanus? — ecoou Hugh, voltando-se para o
olhar com intrigado divertimento. — Cadfael, tu nunca cessas de me
surpreender. Pobre Columbanus, de fato! Um assassino pela
calada, e tudo para a sua própria glória, não para a de Shrewsbury,
e certamente não para a de Winifred.
— Eu sei! Mas acabou como o perdedor. E morto! E agora...
afastado de qualquer descanso que lhe era concedido num altar
sossegado aqui em casa, levado para um lugar estranho onde não
conhece ninguém, amigo ou inimigo. E talvez — disse Cadfael, a
abanar a cabeça ao pensar no pecador extraviado — se esperem
milagres dele, e ele não pode fazer nenhum. Não seria muito difícil
sentir um pouco de pena dele.
Cadfael foi para Longner logo que a refeição do meio-dia
terminou, e encontrou o jovem senhor do feudo na sua forja dentro
da paliçada, a supervisionar pessoalmente a forja de uma nova
lâmina de ferro para o arado. Êudo Blount era um lavrador inato, um
homem grande, cândido e louro, com uma aparência mais
adequada para o serviço das armas do que o seu irmão mais novo,
mas um homem para quem o solo, e as culturas e o gado bem
tratado seriam sempre uma realização suficiente. Criaria filhos à sua
imagem, e a terra daria graças por eles. Os filhos mais novos tinham
de arranjar a sua própria fortuna.
— Perdestes a Santa Winifred? — disse Eudo, embasbacado,
quando ouviu qual era a missão de Cadfael. — Como diabo
pudestes perdê-la? Não é uma coisa que possa ser dobrada e
enfiada numa bolsa quando ninguém está a olhar. E quereis falar
com Gregory e Lambert? Seguramente, não supondes que eles a
querem para alguma coisa, mesmo que tivessem tido uma carroça
na Feira dos Cavalos! Lá não têm queixas dos meus homens, pois
não?
— Absolutamente nenhuma! — disse Cadfael acaloradamente.
— Mas, apenas por acaso, eles podem ter visto alguma coisa que
nós fomos cegos para perceber. Eles deram uma mão quando isso
foi necessário, e nós ficamos profundamente agradecidos. Mas não
adianta olharmos para longe antes de termos procurado bem em
casa, e antes de nos termos certificado de que nenhum idiota
demasiado zeloso colocou a senhora num qualquer lugar seguro e a
perdeu. Perguntamos a todas as almas dentro daquelas paredes, e
se não consultássemos estes dois últimos homens, poderíamos ficar
a um passo de uma resposta simples.
— Perguntai o que quiserdes — disse Eudo simplesmente. —
Podeis encontrá-los a ambos no estábulo ou na cocheira. E gostaria
que obtivésseis a vossa resposta simples, mas duvido. Eles levaram
a madeira para lá, carregaram-na, e voltaram para casa, e recordo-
me de Gregory ter contado o que estava a acontecer na igreja, e a
altura que a água atingiu na nave. Mas mais nada além disso. No
entanto, experimentai!
Seguro no meio dos seus, Eudo não sentiu necessidade de ver
ou escutar o que poderia descobrir-se, e voltou para a forja, e o
barulho do martelo do ferreiro recomeçou a ouvir-se e seguiu
Cadfael pelo pátio até à porta da cocheira, que estava aberta de par
em par.
Estavam ambos no interior, a empurrar a pequena carroça pelo
varal para um canto. O calor do cavalo que tinham acabado de
desaparelhar ainda pairava no ar à volta deles. Eram ambos
homens entroncados, musculosos, e marcados pela vida exterior em
todas as estações, com uma diferença de uns bons vinte anos entre
eles, de tal forma que poderiam ser pai e filho. A maior parte dos
homens destas aldeias locais, presos ao solo pela condição de
servos feudais, mas também por aptidão, casando normalmente
num raio de muito poucas milhas, tinham tendência para ser
parecidos uns com os outros e tinham uma forte lealdade de clã. A
ascendência galesa mantinha-os baixos, fortes e duráveis, e de
espírito independente.
Cumprimentaram-no educadamente, sem surpresa; há um ou
dois anos que ele era uma visita ocasional, e transformara-se numa
visita bem-vinda. Mas quando desvendou o que queria deles,
abanaram as cabeças em dúvida, e sentaram-se sem pressa no
varal da carroça para refletir.
— Levamos a carroça antes de escurecer — disse então o mais
velho, semicerrando os olhos para pensar na semana de trabalho e
lazer que passara — mas estava um dia terrivelmente escuro
mesmo ao meio-dia. Tínhamos começado a transferir a carga para a
carroça da abadia quando o sub prior se aproximou por entre as
campas e parou ao portão do cemitério, e disse, rapazes, dai-nos
uma ajuda para guardar os bens de valor em locais altos e secos,
pois a água está a subir depressa.
— O sub prior Richard? — perguntou Cadfael. — Tendes a
certeza de que era ele?
— Certeza absoluta, que o conheço, e na altura não estava
muito escuro. Lambert aqui dirá o mesmo. E nós entramos, e
pusemos mãos ao trabalho, a empilhar os quadros e a tirar as arcas
como ele nos dizia, e a colocá-las onde nos mandavam, no sótão
sobre o celeiro, e algumas sobre o alpendre nos aposentos de
Cynric. Lá dentro estava escuro, e todos os irmãos transportavam
apressadamente cofres e candelabros e cruzes, e metade das
lamparinas ficaram sem azeite, ou foram apagadas pelas portas
abertas. Logo que a nave pareceu vazia nós saímos, e voltamos
para o carregamento de madeira.
— Aldhelm voltou lá dentro — disse o jovem Lambert, que até
então não tinha feito mais do que abanar a cabeça em sinal de
assentimento.
— Aldhelm? — perguntou Cadfael.
— Ele foi conosco para ajudar — explicou Gregory. — Tem uma
leira em Preston, e trabalha com as ovelhas na casa senhorial de
Upton.
Assim sendo, ainda era preciso falar com mais um antes de o
trabalho poder ser dado por terminado. "E não hoje", pensou
Cadfael, a calcular as horas que ainda lhe restavam.
— Esse Aldhelm andou dentro e fora da igreja? E voltou no
último momento?
— Um dos irmãos agarrou-o pela manga e pediu que fosse
ajudar a transportar uma última coisa — disse Gregory com
indiferença. — Nessa altura nós já estávamos na carroça a mudar
troncos, a única coisa que sei é que alguém o chamou, e ele voltou
para trás. Não demorou mais do que alguns momentos. Quando,
entre os dois, levamos a carga seguinte para a carroça da abadia,
ele estava junto à roda para nos ajudar a içá-la e a arrumá-la. E o
monge estava a dirigir-se para a igreja novamente. Desejou-nos boa
noite.
— Mas ele tinha vindo para a rua com seu homem? — insistiu
Cadfael.
— Na hora já estávamos mais folgados, tudo o que importava
estava suficientemente alto para ficar em segurança e seco até o rio
descer. Como era uma alma delicada, saiu para nos agradecer e
abençoar... por que não?
7

Por que não, de fato, quando homens honestos não pediam


recompensa além dessa?
— Não vistes — perguntou Cadfael delicadamente — se entre
os dois trouxeram alguma coisa para colocar na carroça? Antes de
ele vos dar a sua bênção?
Olharam um para o outro sombrios, e abanaram a cabeça.
— Nós estávamos a mudar troncos para a parte de trás, para
ser mais fácil descê-los. Ouvimo-los chegar. Tínhamos os braços
cheios, a segurar madeira. Quando a colocamos na carroça,
Aldhelm estava lá em cima para nos ajudar a içá-la, e o irmão
dirigia-se de novo para o cemitério. Não, que eu tenha visto não
trouxeram nada.
— Eu também não vi nada — disse Lambert.
— E poderíeis, algum de vós, dar um nome a este monge que o
chamou?
— Não — disseram ambos em uníssono; e Gregory
acrescentou delicadamente: — Irmão, na altura já estava muito
escuro. E eu só sei os nomes de alguns, daqueles que todos os
homens conhecem.
Na verdade, os monges são irmãos tratados pelo nome apenas
por aqueles que vivem com eles; com vocação para serem irmãos
de todos os homens, fora do convento não têm nome. Sem dúvida
que, num certo sentido, era uma pena.
— Tão escuro — disse Cadfael, fazendo a sua última pergunta
— que não conseguiríeis reconhecê-lo se o vísseis novamente? Não
pelo rosto, ou figura, ou andar, ou porte? Nada marcante nele?
— Irmão — disse Gregory, pacientemente — ele estava bem
tapado por causa da chuva, e preto a desaparecer na escuridão. E o
seu rosto nunca foi sequer visto.
Cadfael suspirou e agradeceu-lhes, e estava a preparar-se para
voltar pelos campos enlameados quando Lambert disse, quebrando
o seu silêncio habitual e inacessível: — Mas Aldhelm pode tê-lo
visto.
O dia já ia muito longo, se queria voltar antes das Vésperas.
Para chegar à minúscula aldeola de Preston tinha de se desviar
apenas um pouco mais de uma milha do seu caminho, mas se esse
Aldhelm trabalhava com as ovelhas em Upton, a esta hora poderia
ainda estar lá, e não na sua cabana, na sua leira de terra. Aquele
interrogatório teria de esperar. Cadfael percorreu os bosques de
Longner e através ou a comprida encosta de prados por cima do rio
que continuava a baixar, dirigindo-se para casa. O baixio já devia
estar novamente transitável, mas abominavelmente enlameado e
malcheiroso, e a barcaça era mais agradável e também mais rápida.
O barqueiro, uma alma taciturna, deixou-o na outra margem com
algum tempo de sobra, por isso ele abrandou um pouco o passo
para recuperar o fôlego. Ao seu lado havia uma franja de bosque,
antes de se aproximar das primeiras vielas e cabanas de Foregate;
bosque aberto e coberto de vegetação rasteira sobre o cume, e
depois as árvores juntavam-se sombrias, e o carreiro estreitava.
Teria de ser feito um desbaste ali, para desimpedir o caminho para
os cavaleiros. Mesmo àquela hora, em que ainda não estava
escuro, mas o céu estava repleto de pesadas nuvens, um homem
tinha de se esforçar muito para ver o seu caminho e evitar troncos
salientes. Um lugar bom para uma emboscada e para violência
secreta, e para todas as espécies de crimes. Foi o manto de nuvens
carregadas e a triste calma do dia que lhe provocaram tais
pensamentos, e mesmo enquanto duraram ele não acreditou neles.
No entanto, havia maldade no ar, pois Santa Winifred tinha
desaparecido, ou o símbolo que ela deixara com ele e abençoara
para ele desaparecera, e já não havia equilíbrio no seu mundo.
Estranho, já que ele sabia onde ela se encontrava, e poderia
mandar-lhe mensagens para lá, seguramente com maior garantia do
que para o caixão que não a continha. Mas fora daquele mesmo
caixão que recebera sempre as suas respostas, e agora o vento que
devia trazer-lhe a voz dela de Gwytherin estava mudo.
Cadfael emergiu em Foregate pela Feira dos Cavalos, um
pouco zangado consigo mesmo por se permitir ser levado a
pensamentos imaginativos que iam contra a sua natureza, e dirigiu-
se para a guarita do portão numa pressa irritada de voltar para um
mundo real onde tinha trabalho concreto para fazer. Certamente,
teria de procurar Aldhelm de Preston, mas entre ele e essa tarefa, e
tão importante como ela, estavam alguns homens doentes, uma
série de jovens confusos e perturbados, e o seu simples dever de
respeitar a Ordem que tinha escolhido.
Não havia muitas pessoas na rua em Foregate. O tempo
continuava frio e a escuridão do dia levara as pessoas a correrem
para casa, sem perda de tempo, logo que o dia de trabalho chegara
ao fim. Algumas jardas à sua frente dois vultos caminhavam juntos,
e um deles coxeava muito. Cadfael teve a vaga impressão de que já
tinha visto aqueles ombros largos e aquela cabeça desgrenhada
antes, e não há muito tempo, mas o andar coxo não encaixava. O
outro era de constituição mais magra, e mais jovem. Caminhavam
com as cabeças atiradas para frente e com os ombros para baixo,
como homens cansados após uma longa caminhada e com pressa
de chegar ao seu destino e resolver o que tinham para resolver.
Cadfael não ficou muito surpreendido quando eles viraram
deliberadamente para a guarita do portão da abadia, e entraram
com reconhecimento no grande pátio com uma força renovada no
andar. "Mais dois para a ala dos hóspedes", pensou Cadfael, ele
próprio a aproximar-se do portão, "e vai saber-lhes muito bem um
lugar perto da lareira e uma refeição e uma bebida."
Eles estavam à porta da casa do porteiro quando Cadfael
entrou no pátio, e o porteiro acabara de sair para recebê-los. A luz
ainda não tinha desaparecido a ponto de Cadfael não conseguir ver,
e maravilhar-se, com a forma como o rosto do porteiro, com a sua
habitual expressão de boas-vindas e delicada interrogação, de
repente se transformou numa expressão boquiaberta de espanto e
preocupação, e as palavras prontas na sua boca se transformaram
num grito abafado.
— Mestre James! Como é isso... vós aqui? Eu pensava, céus
— disse ele, estarrecido — que vos aconteceu na estrada?
Cadfael parou, sobressaltado, a não mais de dez passos das
Vésperas. Virou-se apressadamente para se aproximar daquela
confrontação inesperada, e para observar o homem coxo com mais
atenção.
"Mestre James de Betton? O carpinteiro chefe de Herluin?" Não
havia dúvida de que era o mesmo que partira com a carroça cheia
de madeira para Ramsey, há mais de uma semana, mas agora
estava a coxear e a pé, e de volta ao lugar de onde partira, e sujo e
magoado não apenas da estrada. E o companheiro, o mais velho
dos dois pedreiros que tinham partido na esperança de encontrar
trabalho estável em Ramsey, ali ao lado dele, com a roupa rasgada
e um pano amarrado na cabeça, e um malar negro de uma
pancada.
— O que nos aconteceu na estrada! — repetiu o mestre
carpinteiro pesarosamente. — Tudo o que há de pior, quase
homicídio. Roubados por assassinos e ladrões. A carroça foi levada,
a madeira foi levada, os cavalos foram levados... roubados, todos os
paus e todos os animais, e só pela graça de Deus nenhum dos
homens foi morto. Por amor de Deus, deixai-nos entrar e sentarmo-
nos. Aqui o Martin tem a cabeça partida, mas quis voltar comigo...
— Entrai! — disse Cadfael, com um braço em volta dos ombros
do homem. — Entrai e aquecei-vos, e o irmão porteiro vai buscar
algum vinho para vós, enquanto eu vou contar ao padre abade o
que aconteceu. Voltarei para junto de vós num instante, e tratarei a
cabeça do rapaz. Agora não vos preocupeis com nada! Louvai o
Senhor por estardes de volta em segurança! Nem todas as esmolas
de Herluin teriam podido comprar a vossa vida.
A viagem correu bastante bem — disse mestre James de
Betton, na sala de visitas apainelada do abade, uma hora mais tarde
— até chegarmos à floresta, depois de Eaton. A sul de Leicester os
bosques são densos, mas atualmente estão bem cuidados junto às
estradas. E tínhamos cinco rapazes fortes na carroça, nunca
pensamos que teríamos problemas que não poderíamos resolver.
Um par de malfeitores em fuga, escondidos nos arbustos à procura
de uma presa, nunca se teriam atrevido a mostrar-se e a tentar a
sua sorte conosco. Não, estes eram homens muito diferentes. Eram
onze ou doze, com punhais e mocas, e dois tinham espadas.
Devem ter-nos acompanhado durante algum tempo na sombra, a
avaliar-nos, e tinham dois arqueiros à frente, um de cada lado do
caminho. Alguém lhes assobiou para aparecerem quando chegamos
à parte mais estreita, e eles empunharam os arcos e as flechas e
gritaram-nos para que parássemos. Roger de Ramsey ia a conduzir,
e é hábil com os cavalos e com as carroças, mas que hipótese tinha
com o par de armas apontado a si? Diz que ainda pensou em
chicotear os cavalos e atropelá-los, mas teria sido inútil, pois eles
podiam disparar muito mais depressa do que nós poderíamos
aproximar-nos deles. E depois atiraram-se a nós dos dois lados.
— Agradeço a Deus — disse o abade Radulfus fervorosamente
— que vós tenhais vivido para contar a história. E todos, dizeis,
todos os vossos companheiros estão vivos? A perda é irreparável,
mas as vossas vidas têm um valor maior.
— Padre — disse mestre James — não há um de nós que não
tenha marcas da luta. Não os deixamos dominarem-nos facilmente.
Aqui o Martin levou uma pancada que o fez perder os sentidos e foi
atirado para os arbustos. E Roger brandiu o chicote à sua volta e
deixou a sua marca em dois dos bandidos antes de eles o terem
derrubado e usado a tira de couro para prendê-lo. Mas éramos cinco
contra mais do dobro, e eles eram vilãos armados com a disposição
de matar. O que eles mais queriam eram os cavalos, vimos que
apenas três deles já estavam montados, e os outros eram obrigados
a andar a pé, e a carroça também seria bem-vinda, embora
tivessem uma, mas creio que estava danificada. Bateram-nos e
afastaram-nos, e partiram com a parelha de cavalos e com a
carroça a grande velocidade para o interior da floresta, por um trilho
que se dirigia para sul. Toda a carga desapareceu. E quando eu
corri atrás, e o jovem Payne foi atrás de mim, atiraram-nos uma
flecha que me roçou o ombro... podeis ver o rasgão. Não tivemos
outro remédio a não ser voltar para trás, e ir buscar Martin e Roger.
Nicol lutou tanto como qualquer um de nós, embora seja mais velho,
e manteve a chave do cofre em segurança, mas eles atiraram-no
para fora da carroça, e o cofre também foi levado, pois estava
escondido no meio da madeira miúda. Que mais poderíamos ter
feito? Nunca esperamos encontrar um bando armado na floresta, e
tão perto de Leicester.
— Vós fizestes o que era esperado de qualquer homem —
disse o abade com firmeza. — Só lamento que tenhais sido sujeitos
a esta situação, e regozijo-me profundamente por terdes saído dela
sem maiores danos. Descansai aqui um dia ou dois e deixai que
tratemos dos vossos ferimentos antes de regressarem a vossas
casas. Pergunto a mim mesmo quem poderão ser esses bandidos
que andam em tão grande número e tão fortemente armados. Que
aparência tinham... indigentes e maus, ou selvagens com menos
desculpa pela selvajaria?
— Padre — disse mestre James ansiosamente — nunca antes
vi pobres diabos a viverem de forma selvagem com bons justilhos
de couro e botas fortes, e punhais dignos da guarda de um barão.
— E dirigiram-se para sul? — perguntou Cadfael, a refletir
sobre este bando armado tão bem equipado em tudo menos em
cavalos.
— Sudoeste — corrigiu o jovem Martin. — E ao que tudo
indicava com uma pressa terrível.
— Com pressa para fugirem do alcance do conde de Leicester
— arriscou Cadfael. — Se ele conseguisse pôr as mãos neles,
seriam castigados sem demora e com toda a severidade. Pergunto-
me se não fariam parte da horda que Geoffrey de Mandeville reuniu
à sua volta, à procura de paragens mais seguras para se instalarem,
agora que o rei é novamente senhor dos Pântanos? Eles ainda
devem continuar espalhados em todas as direções, e perseguidos
por todo o lado. Seguramente, não quereriam ficar nas terras de
Leicester.
Aquelas palavras suscitaram um murmúrio de concordância a
todos. Nenhum malfeitor no seu perfeito juízo quereria instalar-se e
dedicar-se ao seu trabalho predador em território controlado por um
magnata tão ativo e poderoso como Robert Beaumont, conde de
Leicester. Era o mais novo dos irmãos gêmeos Beaumont, filhos do
velho Robert, que fora um dos pilares mais fiéis do governo firme do
velho rei Henrique, e eles, por sua vez, tinham sido um suporte
igualmente forte para o rei Stephen. O pai falecera com a posse do
condado de Leicester em Inglaterra, Beaumont, Brionne e
Pontaudemer na Normandia, e o condado de Meulan em França; e
por ocasião da sua morte, o gêmeo mais velho, Waleran, herdara as
terras normandas e francesas, e o mais novo, Robert, o título e
honra ingleses.
— Ele não é seguramente homem para tolerar ladrões e
bandidos nas suas terras — disse o abade. — Pode ainda conseguir
capturar esses ladrões antes de eles conseguirem escapar ao seu
pulso forte. Talvez ainda seja possível recuperar alguma coisa. Mas
o mais importante neste momento é saber o que aconteceu aos
vossos companheiros, mestre James? Dizeis que estão todos vivos.
Onde estão eles agora?
— Ora, meu senhor, quando ficamos sozinhos... e penso que
eles não teriam partido tão apressadamente se não tivessem
deixado nenhum de nós vivo para contar a história... Primeiro
cuidamos dos piores ferimentos, e deliberamos, e decidimos que
tínhamos de levar a notícia para Ramsey, e também aqui para
Shrewsbury. E Nicol, sabendo que nessa altura o sub prior Herluin
estaria em Worcester, disse que iria para lá para lhe relatar o que
nos tinha acontecido. Combinamos que Roger iria para Ramsey, e o
jovem Payne decidiu acompanhá-lo, como tinha dito que faria.
Martin teria feito o mesmo, mas como eu não andava bem ele não
me deixou empreender a viagem para casa sozinho. E é aqui em
casa que pretendo ficar, pois posso dizer-vos que, depois daquela
confusão, perdi o gosto por viajar.
— Não vos censuro — concordou o abade secamente. —
Então, neste momento as vossas notícias já devem ter chegado
tanto a Ramsey como a Worcester, se não houve mais emboscadas
pelo caminho, Deus nos livre! E Hugh Beringar talvez já esteja em
Worcester, e saberá o que aconteceu. Se puder ser feita alguma
coisa para descobrir a nossa carroça e os cavalos emprestados,
bem! Se não, pelo menos a carga mais preciosa, as vidas de cinco
homens, salvaram-se, Deus seja louvado!
Até agora, Cadfael tinha-se abstido de contar as suas
novidades devido à urgência muito maior da notícia trazida por
aqueles abalados sobreviventes vindos das florestas do condado de
Leicester. Mas achou que chegara o momento de falar.
— Padre abade, voltei de Longner sem grandes progressos,
pois nenhum dos jovens que trouxeram o carregamento de madeira
tinha alguma coisa importante para dizer. Mas mesmo assim tenho a
sensação de que mais uma coisa de um valor imenso deve ter sido
levada naquela carroça. Não vejo outra maneira de o relicário de
Santa Winifred ter saído do enclave.
O abade olhou-o de forma prolongada e penetrante, e por fim
concluiu: — Vós sois solenemente zeloso. E na verdade
compreendo a força do que dizeis. Já falastes com todas as
pessoas que estiveram envolvidas no trabalho daquela tarde?
— Não, Padre, ainda falta falar com um, um jovem de uma
aldeola da vizinhança que veio ajudar os carroceiros. Mas com
esses já falei, e eles dizem que este terceiro homem foi chamado
por um dos irmãos para voltar à igreja, no final da tarde, para um
último trabalho, depois do qual o irmão saiu com ele para lhes
agradecer a todos, e para lhes desejar uma boa noite. Eles não
viram nada ser colocado na carroça que ia para Ramsey. Mas
estavam ocupados e não prestavam atenção a nada a não ser ao
seu trabalho. É uma impressão bastante vaga de que algo proibido
foi então carregado a coberto da escuridão. Mas não me sai do
pensamento, porque não vejo outra hipótese.
— E ides investigá-la? — perguntou o abade.
— Sairei de novo para procurar este jovem Aldhelm, se
autorizardes.
— Temos que fazê-lo — disse Radulfus. — Um dos irmãos,
dizeis, chamou o jovem, e depois voltou com ele. Souberam dizer
qual era o seu nome?
— Não, nem conseguiriam reconhecê-lo se voltassem a vê-lo.
Estava escuro, e ele estava bem tapado para se proteger da chuva.
E, muito provavelmente, completamente inocente. Mas darei o
último passo da investigação, e perguntarei ao último homem.
— Temos de fazer o que tem de ser feito — disse Radulfus
pesadamente — para recuperarmos o que se perdeu. Se
fracassarmos, fracassamos. Mas temos de tentar. — E para os dois
viajantes acabados de regressar: — Onde é que a emboscada
aconteceu ao certo?
— Perto de uma aldeia chamada Ullesthorpe, a algumas milhas
de Leicester — disse o mestre James de Betton.
Os dois homens estavam agora abatidos, devido à longa e
laboriosa caminhada para casa, e sonolentos por causa do vinho
aquecido com canela que tinham bebido à refeição. Radulfus
percebeu quando devia dar por terminada a conversa.
— Ide agora para o vosso descanso bem merecido, e deixai
tudo a cargo de Deus e dos santos, que não nos voltaram as costas.
Se Hugh e o prior Robert não estivessem bem montados, e o
idoso mas resoluto criado de Ramsey não tivesse sido obrigado a ir
a pé, não poderiam ter chegado ao priorado da catedral de
Worcester com um dia de intervalo uns dos outros. Desde o
desastroso encontro perto de Ullesthorpe, Nicol tinha tido cinco dias
para caminhar com dificuldade pelo campo para ir ao encontro do
sub prior Herluin e fazer o seu relato. Era um homem resoluto, até
obstinado, e não seria detido por algumas nódoas negras nem
entregaria a sua carga sem luta. Se fosse possível perseguir os
bandidos, Nicol pretendia exigir que isso fosse feito à autoridade
que mandasse por aquelas paragens.
Hugh e o prior Robert tinham chegado ao priorado já a tarde ia
avançada, prestaram os seus respeitos ao prior, assistiram às
Vésperas para reverenciar os santos da fundação, os Santos
Oswald e Wulstan, e confidenciaram a Herluin e aos seus
companheiros a perda, ou pelo menos o extravio, do relicário de
Santa Winifred; com uma observação atenta, pelo menos da parte
de Hugh, da forma como a notícia era recebida. Mas não encontrou
qualquer falha na reação de Herluin, que revelou natural espanto e
preocupação, mas não excessivos. Demasiadas exclamações e
protestos teriam suscitado alguma dúvida em relação à sua
sinceridade, mas ficou claro que Herluin estava convencido de que
não era nada pior do que alguma estupidez confusa entre
demasiados ajudantes em grande pânico e com demasiada pressa,
e que o que estava perdido seria encontrado logo que todos se
acalmassem e suspendessem a busca durante algum tempo para
refletir. Impressionante foi também ele ter declarado imediatamente
a sua intenção de regressar a Shrewsbury, para ajudar a esclarecer
a confusão, embora parecesse contar com a sua autoridade natural
e com a sua capacidade de liderança para produzir a ordem a partir
do caos, e não tivesse nenhuma ideia prática em mente. Ele próprio
não tinha nada para acrescentar ao que já se sabia. Não participara
nos trabalhos apressados no interior da igreja, e mantivera-se
abrigado com dignidade nos aposentos do abade, que continuavam
altos e secos. Não, não sabia de ninguém que pudesse ter
profanado Santa Winifred. A última vez que vira o relicário dela fora
na missa matinal.
Tutilo, embasbacado e mudo, abanou a cabeça, ainda com a
auréola de caracóis compridos, e abriu muito os olhos cor de âmbar
ao ouvir aquela notícia tão inquietante. Quando obteve autorização
para falar, disse que tinha ido para a igreja ajudar, e que obedecera
simplesmente às ordens que lhe haviam sido dadas, e não fazia
ideia de onde poderia estar o caixão da santa naquele momento.
— Isto não pode ficar impune — declarou Herluin no seu tom
mais majestoso. — Amanhã voltaremos convosco para Shrewsbury.
Ela não pode estar longe. Tem de ser encontrada.
— Amanhã depois da missa — disse o prior Robert, a marcar
com firmeza a sua liderança na qualidade de representante de
Shrewsbury — partiremos.
E assim teria sido, não fosse a chegada de Nicol.
Os cavalos estavam aparelhados e à espera, as despedidas ao
prior e aos irmãos já estavam feitas, e Hugh preparava-se para
pegar no freio, quando Nicol chegou a coxear penosamente à
guarita do portão, sujo e ferido e apoiado numa bengala que tinha
feito para si mesmo na floresta. Herluin viu-o, e proferiu um grito
sem palavras, mais de aborrecimento do que de surpresa ou
alarme, pois naquela altura o criado já devia estar em Ramsey, e a
carga entregue e em segurança. O seu aparecimento inesperado ali,
fosse qual fosse o motivo, não augurava nada de bom.
— Nicol! — exclamou Herluin, suprimindo a primeira
exasperação, por esta ou qualquer contrariedade nos seus planos.
— Que fazes aqui, homem? Por que não estás em Ramsey? Pensei
que podia confiar absolutamente em ti para levares a tua carga para
casa sem problemas. Que aconteceu? Onde deixaste a carroça? E
os teus companheiros, onde estão eles?
Nicol respirou fundo e contou-lhe.
— Padre, sofremos uma emboscada nos bosques, a sul de
Leicester. Nós éramos cinco e eles uma dúzia, com mocas e
punhais, e dois arqueiros entre eles. O que eles queriam eram os
cavalos e a carroça, e foi o que levaram, apesar de termos feito tudo
o que estava ao nosso alcance para os impedir. Estavam a fugir, e
com pressa, se não estaríamos mortos. Pelo menos um homem do
grupo deles estava ferido, e tinham de andar depressa.
Escorraçaram-nos para os arbustos, e seguiram para a floresta com
a carroça e a parelha de cavalos e a carga, e deixaram-nos para
coxearmos a pé para onde calhasse. E foi o que aconteceu — disse
ele, e calou a boca abruptamente, confrontando Herluin com o olhar
de pedra de um idoso provocado e pronto para lutar.
A carroça da abadia desaparecida, uma parelha de cavalos
desaparecida, a madeira de Longner desaparecida, e, o pior de
tudo, a pequena arca do tesouro de Ramsey para a reconstrução,
perdida para um bando de fora da lei na estrada! O prior Robert
respirou audivelmente, o sub prior Herluin soltou um gemido de
amarga perda, e começou a atirar a sua indignação à cara de Nicol.
— Não pudeste fazer melhor do que isso? Todo o meu trabalho
desperdiçado! Pensei que podia confiar em ti, que Ramsey podia
confiar em ti...
Hugh pousou uma mão no ombro forte do sub prior para o
refrear, e interrompeu o seu lamento de forma muito pouco
cerimoniosa.
— Algum dos teus homens ficou ferido com gravidade?
— Nenhum a ponto de não poder fazer o seu caminho a pé.
Como eu fiz o meu — disse Nicol com firmeza — todas estas
milhas, para vos trazer a notícia o mais depressa possível.
— E fez muito bem — disse Hugh. — Deus seja louvado por
ninguém ter sido assassinado. E para onde se dirigiram eles, uma
vez que te deixaram vir para aqui sozinho?
— Roger e o jovem pedreiro foram juntos para Ramsey. E o
mestre carpinteiro e o outro rapaz voltaram para Shrewsbury. Neste
momento já lá devem estar, se não tiveram mais problemas pelo
caminho.
— E onde foi essa emboscada? A sul de Leicester, disseste?
Poderias levar-nos lá? Mas não — disse Hugh num tom decidido, a
observar o homem. Era idoso, já com mais de cinquenta anos, e
desgastado e cansado de uma persistente e laboriosa viagem a pé.
— Não, precisas de descansar. Diz-me o nome de alguma
aldeia perto, e nós descobriremos os vestígios. Aqui estamos nós, e
prontos para partir. Tanto para Leicester como para Shrewsbury.
— Foi na floresta, não longe de Ullesthorpe — disse Nicol. —
Mas eles já fugiram há muito tempo. Eu contei-vos, eles precisavam
da carroça e dos cavalos, pois estavam em fuga de algum lugar que
se tinha tornado hostil, e iam com a pressa do diabo.
— Se precisavam tão desesperadamente da carroça e dos
cavalos — disse Hugh — uma coisa é certa, não quereriam um
grande carregamento de madeira para atrasá-los. Logo que
estivessem longe de vós, seguramente se livrariam daquele peso
morto, içariam a parte de cima da carroça e despejariam a carga. Se
o vosso pequeno tesouro estava bem escondido no meio da
madeira, padre Herluin, talvez ainda seja possível recuperá-lo. — "E
se mais alguma coisa tiver sido escondida na carroça no último
momento, quem sabe se não podemos recuperá-la também."
Herluin tinha-se iluminado e recuperara maravilhosamente a
sua dignidade ao pensar que poderia reaver o que tinha perdido.
Nicol também se iluminou perceptivelmente, embora mais com a
esperança de se vingar dos demônios que o tinham atirado para
fora da carroça, e ameaçado os seus companheiros com aço e
flechas.
— Pretendeis ir lá à procura deles? — questionou,
resplandecente. — Então, senhor, de bom grado vos acompanharei.
Eu reconhecerei o local, e iremos diretamente para lá. O padre
Herluin veio com três cavalos de Shrewsbury. O seu homem que
volte para lá, e deixai-me ficar com o terceiro cavalo e levar-vos pelo
caminho mais rápido para Ullesthorpe. Dai-me um momento para
molhar a garganta e comer alguma coisa, e estou pronto!
— Cairás para a beira da estrada — disse Hugh, a rir de uma
veemência que compreendia bem.
— Não eu, senhor! Deixai-me pôr as mãos naquele bando
terrível, e estarei em melhor forma do que qualquer outra pessoa no
mundo. Não toleraria ser posto de lado! Esta era a minha missão, e
tenho umas contas para ajustar. Mantive a chave em segurança,
mas não tive tempo de atirar o cofre para os arbustos antes de eu
próprio ter sido atirado para lá, empurrado para o meio dos
espinheiros, e com arranhões suficientes para atestá-lo. Não me
deixaríeis para trás, pois não?
— Por nada deste mundo! — exclamou Hugh, com sinceridade.
— Faz-me jeito um homem voluntarioso perto de mim. Vai então
rapidamente, come e bebe. Deixaremos o rapaz de Ramsey e te
levaremos como guia.
O corregedor de Ullesthorpe era um homem circunspecto de
quarenta e cinco anos, nervoso e despachado, e hábil a defender
não apenas a sua posição como também os interesses da aldeia.
Confrontado com um grupo onde o poder clerical era dominante,
olhou no entanto pensativamente para Hugh Beringar e dirigiu-se
antes à justiça secular.
— É bastante verdade, meu senhor! Encontramos o local há
alguns dias. Soubemos que esses fora da lei tinham passado pelos
bosques, embora nunca se tenham aproximado das aldeias, e
depois um mestre carpinteiro e o seu companheiro vieram até nós e
contaram-nos o que lhes tinha acontecido, e fizemos tudo o que
estava ao nosso alcance para que eles ficassem em condições de
partir para Shrewsbury. Eu raciocinei como vós, meu senhor, que se
livrariam da carga, pois esta serviria apenas para atrapalhá-los.
Vamos ao local. Fica a algumas milhas daqui, no interior da floresta.
Não acrescentou mais nada até chegarem a uma zona de
bosque denso, cruzado apenas por um trilho largo, onde profundas
marcas de rodas ainda se viam aqui e ali no terreno úmido, mesmo
passados tantos dias. Os saqueadores tinham simplesmente levado
a carroça para uma pequena mata relativamente aberta, cortado a
última corda fina e puxado a carroça. Hugh não ficou surpreendido
ao constatar que a pilha já não era o monte original deixado cair
sem ordem, e que tinha sido remexida e a maior parte da madeira
seca retirada, deixando os arbustos esmagados à vista. Aldeões
parcimoniosos tinham escolhido a melhor para seu uso, presente ou
futuro. Se tivessem tempo, o resto da madeira verde também
encontraria uma boa casa. O corregedor, subserviente ao lado de
Hugh, olhou-o de través, e disse, insinuantemente: — Não
pensareis mal de bons homens de família que levam o que Deus
lhes manda e dão graças por isso?
— Não obstante, isto era propriedade da Abadia de Ramsey —
referiu Herluin, mas com uma resignação controlada.
— Ora, Padre, mas apenas algumas pessoas, aqueles que
falaram com os rapazes de Shrewsbury, sabiam. Os primeiros a
chegar levaram lenha cortada dos bosques há alguns anos, foi sem
dúvida um presente dos céus. Por que deixar a madeira a
apodrecer? Eles nunca viram a carroça nem os homens que a
trouxeram para aqui. E o conde concede-nos o direito de apanhar
madeira caída, e esta já tinha caído há muito.
— Melhor a remendar um telhado do que aqui caída — disse
Hugh com um encolher de ombros. — Não podem ser censurados.
— A pilha de troncos, vasculhada e escolhida há muitos dias,
tinha-se espalhado pelo trilho do bosque e para a erva crescida e
matagal entre as árvores. Seguiram o seu rasto, procurando no
meio dos restos, e Nicol, que se tinha afastado um pouco, soltou
inesperadamente um grito e, mergulhando no meio dos arbustos,
ergueu e brandiu diante dos olhos de todos o pequeno cofre que
guardara o tesouro de Herluin. Arrombado, com a tampa arrancada,
a caixa continha uma mão cheia de pedras e algumas folhas mortas
que caíram quando ele a voltou ao contrário e a abanou
pesarosamente.
— Vedes? Vedes? Eles nunca me tiraram a chave, nunca
teriam conseguido, mas isso não foi impedimento. Um punhal a
fazer pressão sob a tampa, junto à fechadura... E todas as esmolas
valiosas e toda a boa vontade perdidas para bandidos e
vagabundos!
— Eu não esperava outra coisa — disse Herluin, amargamente,
e pegou na caixa partida para observar o estrago. — Bom,
sobrevivemos a coisas muito piores, e sobreviveremos também a
esta perda. Momentos houve em que pensei que a nossa casa
estava perdida para sempre. Isto é apenas um percalço no caminho
e, apesar de tudo, cumpriremos os nossos objetivos.
"No entanto, as possibilidades de recuperar estas oferendas
específicas são muito remotas", refletiu Hugh. Todas as esmolas de
Shrewsbury, quer dadas de coração ou por consciência, todas as
vaidades de que Donata abdicara, entregues sem pena, tudo
perdido para os bandidos fugitivos, e não havia maneira de saber a
que distância já se encontravam agora.
— Então isto é tudo — disse o prior Robert, entristecido.
— Meu senhor... — O corregedor aproximou-se mais do ombro
de Hugh e inclinou-se para o ouvido deste em confidência.
— Meu senhor, há mais uma coisa que foi encontrada no meio
dos troncos. Estava bem escondido por baixo deles, ou os bandidos
teriam encontrado quando descarregaram a madeira, ou então as
primeiras pessoas que vieram buscar madeira teriam visto. Mas por
acaso estava bem tapado, e só apareceu quando eu me encontrava
aqui para ver. No momento em que foi desembrulhado, eu percebi
que não devíamos nos envolver com aquilo. Já tinha conseguido
atrair a atenção de todos, e todos os olhos estavam pregados nele,
Herluin e Robert irresistivelmente tentados a esperar contra toda a
esperança, mas muito cautelosos para não sofrerem uma desilusão,
Nicol interessado mas desconcertado, pois nada lhe tinha sido
confidenciado sobre o desaparecimento do relicário de Santa
Winifred, nem sobre a possibilidade de ter estado a bordo da sua
carroça, e ter sido roubado com tudo o resto. Tutilo estava um pouco
afastado, mantendo-se modestamente afastado enquanto os seus
superiores conferenciavam. Até tinha suprimido, como podia fazer
sempre que queria, o brilho dos olhos cor de âmbar.
— E que foi essa coisa que encontrastes? — perguntou Hugh
cautelosamente.
— Um caixão, meu senhor, a avaliar pelo formato. Não muito
grande, se é que se trata realmente de um caixão; quem quer que
esteja dentro dele era pequeno e magro. Ornamentado com prata,
muito castamente. Eu percebi que era suficientemente precioso para
ser perigoso. Tomei-o a meu cargo para que ficasse em segurança.
— E que fizestes com esse caixão? — perguntou Robert, e
começou a resplandecer com a promessa de um triunfo.
— Mandei que fosse levado ao meu senhor, uma vez que foi
encontrado no seu território. Não queria correr o risco de que algum
homem da minha aldeia ou das redondezas fosse acusado de
roubar uma coisa de valor. O conde Robert estava e está a residir
na sua casa senhorial de Huncote — disse o corregedor — algumas
milhas mais perto de Leicester. Levamos o caixão para lá, e
contamos-lhe como o havíamos descoberto, e ainda se encontra no
seu átrio. Podereis encontrá-lo bastante seguro com ele.
— Deus seja louvado, pois foi maravilhosamente misericordioso
conosco! — suspirou o prior Robert, extasiado. — Estou plenamente
convencido de que encontramos a santa que chorávamos por
pensarmos que estava perdida.
8

Hugh foi visitado pela visão momentânea do rosto do irmão


Cadfael, se ele pudesse ter estado presente para apreciar a ironia.
Porém, tanto virgem como pecador não arrependido tinham de se
enquadrar dentro do limite da humanidade. Talvez, afinal de contas,
Cadfael tivesse tido razão ao falar com tanta simplicidade no "pobre
Columbanus". "Se ao menos", pensou Hugh, entre a diversão e a
ansiedade, "se ao menos a senhora tiver sido suficientemente
bondosa e suficientemente discreta para manter a tampa do seu
relicário bem fechada, talvez consigamos emergir de toda esta
situação sem escândalo." De qualquer maneira, não havia forma de
fugir ao passo seguinte.
— Muito bem! — disse Hugh, filosoficamente. — Então iremos
a Huncote, e falaremos com o conde.
Huncote era uma aldeia bonita e compacta. Havia um próspero
moinho, e os campos do domínio eram grandes e verdes, a terra de
cultivo bem tratada. Situava-se perto da extremidade da floresta, e
agrupava-se de perto em volta da casa senhorial e do seu pátio
murado. A casa não era grande, mas construída em pedra, com
uma torre baixa tão sólida como a torre central de um castelo. Lá
dentro, os pálidos desconhecidos que entravam naquele momento
foram imediatamente observados, e abordados com uma prontidão
e eficiência que se devia provavelmente ao fato de o conde se
encontrar naquela residência. Moços de estrebaria apareceram
imediatamente, e apressados, para pegar nos freios, e um pajem
bem vestido desceu as escadas principais para saudar os recém-
chegados e descobrir o que os trazia ali, mas foi mandado embora
com um aceno por um criado mais velho que tinha saído dos
estábulos. O aparecimento de três Beneditinos, dois deles
obviamente veneráveis, e acompanhados por dois convidados
laicos, um dos quais era um servo e o outro com uma autoridade
igual à dos membros do clero, mas claramente secular, motivou uma
saudação de boas-vindas ao mesmo tempo cortês e calorosa. Aqui
seria oferecida toda a hospitalidade a todos aqueles que vinham,
mas apenas a cordialidade ficava reservada para as visitas de
cerimônia.
Num país ainda dividido entre dois rivais que lutavam pela
soberania, e atormentado por inúmeros senhores independentes
mais interessados em criar reinos seus, os homens sensatos
cumpriam os seus deveres de hospitalidade e abriam as suas casas
a todos, mas esperavam até examinar as credenciais antes de
abrirem os seus espíritos.
— Meu senhor, reverendos senhores — disse o criado — sois
muito bem-vindos. Eu sou o camareiro da casa senhorial de
Huncote do meu senhor Robert de Beaumont. Como poderei servir
a Ordem Beneditina e aqueles que viajam em sua companhia?
Tendes assuntos para tratar aqui?
— Se o conde Robert está em casa, e fizer o favor de nos
receber — disse Hugh — temos de fato assuntos para tratar aqui.
Vimos por causa de algo que desapareceu da abadia de
Shrewsbury, e que foi encontrado, segundo nos disseram, nos
bosques do conde. Trata-se do relicário de uma santa. O teu senhor
pode até achar divertido, bem como esclarecedor, pois deve ter-se
interrogado sobre o que lhe foi deixado em casa.
— Eu sou o prior de Shrewsbury — disse Robert com
cerimoniosa dignidade, mas foi olhado apenas por breves segundos.
O camareiro era idoso, experiente e inteligente, e embora fosse
apenas guarda de uma das propriedades menores da honra enorme
e internacional de Leicester, pelo brilho astuto do seu olhar era um
homem de confiança do seu senhor, e sabia tudo acerca do
misterioso e elaborado caixão que fora tão estranhamente
abandonado na floresta a seguir a Ullesthorpe.
— Eu sou o xerife do rei Stephen em Shropshire — disse Hugh
— e procuro a santa perdida. Se o teu senhor a tem em segurança,
obterá as orações de todos os irmãos de Shrewsbury, e de metade
do País de Gales.
— Uma ou duas orações extra não fazem mal nenhum a um
homem — disse o camareiro, visivelmente mais comunicativo. —
Entrai, irmãos, e sede bem-vindos. Robin vai mostrar-lhes o
caminho. Os vossos animais serão tratados.
O rapaz, que teria talvez dezesseis anos, atrevido e cheio de
vida, tinha aguardado ordens e ouviu com ouvidos atentos e olhos
brilhantes quando a missão dos recém chegados foi mencionada.
Era sem dúvida um filho mais novo de um dos rendeiros de
Leicester, colocado por um pai zeloso num lugar onde poderia
progredir facilmente. E, pelos seus modos, Hugh chegou à
conclusão de que, tendo em conta o porte do rapaz, Leicester não
era um senhor muito duro. O rapaz subiu a escadaria à frente deles,
com o queixo no ombro, a observá-los atentamente.
— O meu senhor veio da cidade para cá quando ouviu falar nos
fora da lei que atravessavam os seus domínios, mas desde então
nunca ninguém conseguiu avistá-los. Neste momento, já estarão
muito longe. Ele apreciará a diversão, se tiverdes uma história
curiosa para contar. Ele deixou a sua condessa em Leicester.
— E o relicário está aqui? — perguntou o prior Robert, ansioso
para ouvir as suas melhores esperanças confirmadas.
— Se é do que se trata, Padre, sim, está aqui.
— E não sofreu estragos?
— Penso que não — disse o rapaz, ansioso para agradar. —
Mas não o vi de perto. Sei que o conde admirou os ornamentos de
prata.
Deixou-os num salão apainelado do outro lado do átrio, e foi
informar o seu senhor de que tinha visitas inesperadas; e não mais
de cinco minutos depois, a porta do aposento abriu-se para dar
entrada ao senhor de metade do condado de Leicester, de uma boa
parte dos condados de Warwick e de Northampton, e de uma
grande honra na Normandia que lhe fora conferida pelo casamento
com a herdeira de Breteuil.
Era a primeira vez que Hugh o via, e encarou aquele encontro
com um interesse vivo, mas cauteloso. Robert Beaumont, conde de
Leicester como o seu pai antes de si, era um homem com não mais
de quarenta anos, de compleição robusta e estatura mediana, de
cabelos escuros e olhos mais escuros ainda, com vestuário rico,
mas sombrio, e com o porte autoritário pouco evidente, nada
realçado, pois ali não havia necessidade. Tinha o rosto barbeado,
ao estilo normando, deixando à vista um rosto de testa alta e ossos
fortes e bem modelado, um maxilar elegante, e uma boca cheia e
firme, com lábios compridos e móveis, e ligeiramente inclinados
para cima nas extremidades para condizer com certa centelha
instável nos olhos. A simetria do seu corpo e a suavidade dos seus
movimentos eram desequilibradas pela ligeira protuberância que
levantava um ombro e o desalinhava do outro. Não era um grande
defeito, mas perturbava insistentemente os olhos das pessoas que o
viam pela primeira vez.
— Senhor xerife, reverendos cavalheiros — disse o conde —
vindes em boa hora, se Robin relatou a vossa missão corretamente,
pois confesso que me senti tentado a levantar a tampa do que me
trouxeram de Ullesthorpe. Teria sido uma pena partir aqueles selos
tão bonitos, ainda bem que contive a minha mão.
"Também acho", pensou Hugh, fervorosamente, "e Cadfael
também será da mesma opinião." A voz do conde era baixa e
grossa, agradável ao ouvido, e a notícia que ele tinha comunicado
ainda mais agradável. O prior Robert enterneceu-se e tornou-se de
imediato gracioso e loquaz. Na presença de um magnata normando
de tamanho poder e dignidade este outro normando, Robert,
embora fosse monástico por opção, voltou à sua hereditariedade, e
floresceu como se estivesse a ver-se a um espelho.
— Senhor, em nome de Shrewsbury, tanto abadia como cidade,
tenho de dizer-lhe como estamos gratos por Santa Winifred ter
caído em mãos tão nobres como as vossas. Quase poderia dizer-se
que ela conduziu os acontecimentos de forma miraculosa,
protegendo-se e aos seus devotos mesmo no meio de tantos
perigos.
— De fato, quase poderia dizer-se isso! — declarou o conde
Robert, e os lábios eloquentes e sensíveis curvaram-se num sorriso
gradual e pensativo. — Se os santos podem garantir à sua vontade
os desejos que tiverem, parece que a senhora achou bem voltar-se
para mim. Sinto-me profundamente honrado. Agora vinde, e vereis
como a alojei, e que nenhum mal ou insulto lhe foi perpetrado. Eu
mostro-vos o caminho. Tendes de pernoitar aqui esta noite pelo
menos, e podereis ficar o tempo que quiserdes. Ao jantar contareis
toda a história, e veremos o que tem de ser feito agora, para lhe
agradar.
A sua mesa era farta, a recepção aberta e generosa,
dificilmente poderiam ter chegado a pastos mais ricos depois de
todos aqueles tormentos; e no entanto, Hugh manteve-se
curiosamente alerta durante toda a refeição, como se esperasse que
algo imprevisto acontecesse a qualquer momento, e que desviasse
bruscamente os acontecimentos para um rumo insensato,
precisamente quando o prior Robert, pelo menos, começava a
acreditar que os seus problemas tinham chegado ao fim. Não era
tanto um sentimento de inquietação, mas mais de expectativa, de
antecipação quase prazenteira. Tentador especular sobre o que
poderia possivelmente complicar agora a missão?
O conde tinha apenas um pequeno grupo consigo em Huncote,
mas mesmo assim eram dez na mesa principal, e todos homens, já
que a condessa e as suas aias tinham ficado em Leicester. O conde
Robert sentou os dois dignitários do clero do seu lado esquerdo e
direito, e Hugh ficou ao lado de Herluin. Nicol tinha-se recolhido para
o seu devido lugar entre os criados, e Tutilo, silencioso e apagado
no meio de companhia tão distinta, estava ao fundo, na companhia
dos escrivães e dos capelães, e mesmo aí tinha muito cuidado com
o que dizia. Há alturas em que é preferível sermos ouvintes, e muito
atentos.
— Uma história verdadeiramente estranha — disse o conde,
depois de ter escutado com lisonjeira concentração toda a história
de como Shrewsbury tinha ficado com a Santa Winifred, desde a
sua trasladação triunfante de Gwytherin para um altar na abadia, e o
seu inexplicável desaparecimento durante a cheia. — Pois parece
que foi retirada do seu próprio altar sem intervenção humana... ou
pelo menos não encontrastes nenhuma. E dizeis-me que ela já fez
milagres. É possível — refletiu o conde, apelando deferentemente à
instrução mais profunda do prior Robert em questões sagradas —
que por algum propósito beneficente muito íntimo ela se tenha
transferido milagrosamente do lugar onde foi colocada? Poderá ela
ter pensado que seria adequado efetuar alguma bênção noutro
lado? Ou sentiu alguma desafeição pelo lugar onde estava? —
Aquelas palavras levaram o prior a endireitar-se rigidamente e a
empalidecer, embora as perguntas tivessem sido feitas de forma
simultaneamente reverente e séria, até desaprovadora. — Se me
imiscuo com demasiada presunção em locais sagrados, reprovai-me
— pediu o conde, com a doçura submissa de um noviço recente.
Hugh pensou que havia poucas ou nenhumas hipóteses de isso
acontecer, escutando e observando com um prazer que lhe
recordava algumas das suas primeiras trocas de palavras com o
irmão Cadfael, experimentais, a ripostar a um truque com outro
truque e a uma farpa com outra farpa, e a apalpar caminho em
pequenos campos de batalha para uma amizade duradoura. O prior
poderia talvez suspeitar de que estava a ser arreliado, pois não era
parvo, mas nunca se atreveria certamente a desafiar ou provocar
um magnata da envergadura de Robert Beaumont. E, de qualquer
maneira, o outro Beneditino austero tinha mordido o isco. O
semblante magro de Herluin assumiu uma expressão de ansiedade
calculista, embora cautelosa.
— Senhor — disse ele, contendo o que poderia ter-se
transformado facilmente num brilho de triunfo — até um laico pode
sentir-se inspirado para falar profeticamente. O meu irmão prior
testemunhou pessoalmente os poderes divinos da santa, e diz
claramente que não se descobriu qualquer homem que declarasse
ter levado o relicário. Será de mais pensar que a própria Santa
Winifred tenha removido as suas relíquias para a carroça que ia
partir para Ramsey? Ramsey, tão vergonhosamente pilhado e
devastado por vilões ímpios? Onde seria ela mais honrada e
necessária? Onde fazer mais maravilhas por uma casa tão
grosseiramente ultrajada? Pois é agora certo que ela deixou
Shrewsbury na carroça que voltava com oferendas dos devotos para
a nossa abadia tão necessitada e atormentada. Se a intenção dela
era ir para lá com bênçãos, atrever-nos-emos a contestar os seus
desejos?
Tinha-os prendido pelos chifres, dois orgulhosos veados
machos com as cabeças baixas e olhos arregalados, a recuperar
energias para o golpe que atiraria com um deles para fora do
concurso. Mas o conde insinuou uma mão repressora, embora sem
dar qualquer indicação de que tinha percebido o choque iminente.
— Não é minha intenção fazer qualquer reivindicação, quem
sou eu para interpretar esses mistérios? Pois Shrewsbury trouxe a
senhora do País de Gales, e em Shrewsbury ela fez maravilhas,
nunca renunciando à devoção que eles tinham por ela. Eu procuro
orientação, nunca me atreveria a oferecê-la em assuntos deste
gênero. Mencionei uma possibilidade. Se algum homem interferiu
nos seus movimentos, o que digo cai por terra, porque nesse caso
fica tudo claro. Mas até sabermos...
— Temos todos os motivos para acreditar — disse o prior
Robert, terrível na sua indignação argentina — que a santa fez da
nossa abadia a sua morada. Nunca falhamos em devoção. O seu
dia tem sido celebrado todos os anos com a maior reverência, e o
dia da sua trasladação tem sido especialmente abençoado. O nosso
irmão mais obediente e virtuoso foi curado por ela de um problema
na perna que o fazia coxear, e desde então tem sido seu escudeiro
e servo particular. Não acredito que ela alguma vez nos deixasse de
livre vontade.
— Oh, nunca com a deliberação de vos prejudicar — protestou
Herluin — mas por compaixão por uma casa monástica levada à
ruína não poderia ela sentir-se obrigada a salvá-la? Confiando na
vossa generosidade para respeitar a necessidade, e acrescentar às
vossas almas já dotadas o poder e a graça que ela podia conceder?
Pois é certo que ela saiu do enclave com os meus homens, e com
eles seguiu pela estrada que vai para Ramsey. Por que seria assim,
se ela não tivesse qualquer desejo de se separar de vós, e nenhum
de vir habitar conosco?
— Ainda não está provado — declarou o prior Robert,
concentrando-se nos aspectos puramente factuais do caso — que
homens... e homens pecadores, pois se aconteceu dessa forma foi
roubo sacrílego!... não participaram na remoção da santa dos
nossos cuidados. Em Shrewsbury, o nosso senhor abade deu
ordens para que procurássemos todos os homens que vieram
ajudar-nos quando o rio entrou na igreja. Não sabemos o que foi
descoberto e que depoimentos foram feitos. Lá, a verdade pode já
ser conhecida neste momento. Aqui, seguramente não é.
O conde tinha-se sentado bem para trás no meio dos crispados
defensores, absolvendo-se de todas as responsabilidades exceto a
de manter a paz e a harmonia no seu salão. Os seus modos eram
calmos, solidários com ambas as partes, interessado em que fosse
feita justiça a ambos, e que ficassem satisfeitos.
— Reverendos padres — disse ele calmamente — segundo me
parece, de qualquer maneira é vossa intenção voltarem juntos para
Shrewsbury. Que impede que adieis toda a discussão até chegardes
lá, e souberdes o que foi descoberto na vossa ausência? Nessa
altura, tudo poderá ficar claro. E se isso falhar, e continuar a não
haver mão aparente de homem na remoção, então será tempo de
considerar um julgamento racional. Não agora! Ainda não!
Eles aceitaram a sugestão com alívio cauteloso mas sem
entusiasmo, pelo menos como um meio de adiar as hostilidades.
— É verdade! — declarou o prior Robert, embora ainda com
bastante frieza. — Não podemos antecipar. Eles terão feito tudo o
que estiver ao seu alcance para desvendar a verdade. Esperemos
até sabermos o que foi apurado.
— Eu rezei à santa para que nos ajudasse no nosso apuro —
insistiu Herluin — enquanto estava lá convosco. É seguramente
concebível que ela tenha ouvido e tenha tido piedade de nós... Mas
tendes razão, precisamos ter paciência até sabermos mais
pormenores deste caso.
"Existe um pouco de travessura nisto", pensou Hugh, satisfeito
por ser um observador e ter a melhor visão do jogo, "mas nenhuma
malícia. Ele está a divertir-se numa altura do ano que é bastante
maçadora, e em que está aqui sem a companhia das mulheres, mas
é tão hábil a apaziguar a tempestade como a incentivá-la. Ora, que
mais pode ele fazer para passar um serão agradável e divertir os
seus hóspedes? Pelo menos, um deles", admitiu ele com alguma
culpa, e recordou a si mesmo que ainda tinha de levar aqueles dois
padres ambiciosos para Shrewsbury sem um banho de sangue.
— Há ainda um pequeno fato que nos escapou — disse o
conde, quase apologeticamente. — Eu detestaria criar mais
dificuldades, mas não posso deixar de seguir uma linha de
pensamento até a sua conclusão lógica. Se Santa Winifred
concebeu e decretou de fato a sua partida na carroça para Ramsey,
e se os planos dos santos não podem ser desfeitos pelos homens,
então, seguramente, ela também deve ter desejado tudo o que
aconteceu depois... a emboscada dos fora da lei, o roubo da carroça
e da parelha de cavalos, o abandono da carga, e, com ela, do
relicário, para ser encontrado pelos meus feitores, e ser trazido até
aqui para me ser entregue. Em resumo, não parece óbvio?... para a
trazer finalmente para onde ela repousa agora. Se ela pretendesse
ir para Ramsey, não teria havido qualquer emboscada, teria ido sem
impedimentos. Mas veio para cá, para ficar sob os meus cuidados.
É impossível dizer que o primeiro passo foi dado por vontade dela, e
não estender isso ao que se seguiu, sob pena de se perder a razão.
Os seus dois vizinhos à mesa estavam a olhar para ele com
uma expressão de choque e alarme, completamente sem palavras,
e isso era uma verdadeira proeza. O conde olhou para um e para o
outro com um sorriso desarmante.
— Percebeis a minha posição. Se os irmãos em Shrewsbury
tiverem descoberto os bandidos que retiraram a santa do seu lugar,
então não existe qualquer contenda entre nenhum de nós. Mas se
não descobriram quem foi, então eu tenho uma pretensão lógica.
Cavalheiros, por nada neste mundo eu julgaria numa causa em que
sou uma parte no meio de três. Submeto-me de bom grado a um
tribunal mais imparcial. Se partis para Shrewsbury amanhã, Santa
Winifred deverá acompanhar-vos. E eu contribuirei para a escolta
indo convosco.
O irmão Cadfael tinha feito uma viagem para o lugarejo de
Preston à procura do jovem Aldhelm, mas fora informado de que ele
estava nos terrenos junto ao rio, na casa senhorial de Upton,
ocupado com os partos das ovelhas, pois a estação tinha sido
complicada com a necessidade de resgatar à pressa algumas
ovelhas da água a subir, e os pastores estavam a trabalhar todas as
horas do dia. Na segunda tentativa, Cadfael dirigiu-se diretamente
para Upton, para saber onde poderia encontrar o pastor mais jovem
da propriedade, e partiu corajosamente para percorrer a milha que o
separava de um rebanho alto e seco acima dos prados alagados.
Aldhelm levantou-se da turfa em que um cordeiro novo e vacilante
estava também a tentar levantar-se, empurrado pela ovelha trêmula.
O pastor era um fulano de membros magros, só cotovelos e joelhos,
mas apesar disso rápido e hábil. Tinha um rosto franco e bem
disposto e uma cabeça com uma espessa cabeleira ruiva. Chamado
para ir ajudar a salvar os tesouros da igreja, tinha feito o que lhe
haviam pedido sem curiosidade, mas nada se tinha apagado da sua
memória boa e segura, logo que compreendeu o que lhe estava a
ser pedido.
— Sim, irmão, eu estava lá. Fui dar uma ajuda a Gregory e a
Lambert com a madeira, e o irmão Richard chamou-nos para ajudar
a mudar as coisas. Havia outro tipo a ajudar como nós, alguém da
ala de hóspedes, a tirar as coisas dos altares. Parecia conhecer o
local, e o que era necessário. Eu fiz o que me pediram.
— E alguém te pediu, quase ao fim da tarde, para o ajudares a
levar um grande embrulho para a carroça com a madeira? —
perguntou Cadfael, diretamente, mas sem grande expectativa, e
tremeu ao ouvir a resposta simples.
— Sim, pediu. Disse que era para ir na carroça, e colocamo-lo
no meio dos troncos, bem escondido. Foi protegido para não sofrer
quaisquer danos.
Tinha sofrido bastantes danos, mas ele não deveria saber isso.
— Os dois rapazes de Longner não se aperceberam — disse
Cadfael. — Como foi possível?
— Ora, na altura já estava muito escuro, e chovendo, e eles
estavam ocupados a puxar os troncos para a ponta da carroça de
Longner, para facilitar a transferência para a outra carroça. Podem
muito bem não ter reparado. Nunca me ocorreu comentar o assunto,
era o que o irmão queria, apenas mais uma coisa para mudar.
Presumi que ele sabia o que estava a fazer, e nós não tínhamos
nada a ver com os assuntos da abadia.
Era certamente verdade que o irmão em questão sabia muito
bem o que estava a fazer, e restavam poucas dúvidas sobre quem
devia ser, mas não podia ser acusado sem testemunhas.
— Como era ele, este irmão? Já tinhas falado com ele antes, na
igreja?
— Não. Ele saiu correndo e levou-me pela manga na escuridão.
Estava chovendo e tinha o capuz puxado sobre a cabeça. Um irmão
Beneditino, certamente, é tudo o que sei. Não muito alto, menos do
que eu. Pela voz, um homem novo. Que mais posso dizer-vos? No
entanto, se o visse poderia reconhecê-lo — disse, seguro.
— Viste-o uma vez na escuridão, e coberto com o capuz? E
conseguirias reconhecê-lo se voltasses a encontrá-lo?
— Podia, sem dúvida. Voltei com ele para levar essa carga, e a
lamparina do altar ainda estava acesa. Vi o seu rosto de perto, com
a luz a incidir nele. Descrever um homem por palavras é difícil
porque fica parecido com muitos — disse Aldhelm — mas levai-me
para vê-lo e escolhê-lo-ei em cem.
— Eu encontrei-o — disse Cadfael, relatando o resultado da
sua investigação em privado com o abade Radulfus — e ele diz que
reconhecerá o homem.
— Ele tem a certeza?
— Tem certeza. E eu estou persuadido de que ele fala a
verdade. É o único que viu o rosto do monge, junto à lamparina do
altar quando ergueram o relicário. Isso quer dizer que o viu de perto
e com clareza, com a luz a bater diretamente no capuz. Os outros
estavam lá fora, no escuro e à chuva. Sim, penso que ele pode falar
com certeza.
— E ele virá? — perguntou Radulfus.
— Ele virá, mas nas suas condições. Tem um patrão, e trabalho
para fazer, e ainda estão a decorrer os partos das ovelhas.
Enquanto uma das suas ovelhas estiver em apuros, ele não sairá de
lá. Mas quando o mandar buscar, à noite, quando o dia de trabalho
estiver terminado, ele virá. Não pode ser já — disse Cadfael — só
quando eles voltarem de Worcester. Mas ele virá no dia em que eu
mandar chamá-lo.
— Bom! — disse Radulfus, mas não muito satisfeito. — Uma
vez que não nos resta outra opção. — O fato de que não valia a
pena elaborar sobre como seria inútil mandar chamar já a
testemunha, foi aceite por ambos sem palavras. — E, Cadfael,
mesmo quando chegar o dia não vamos anunciar no cabido. Que
ninguém saiba antecipadamente, para ficar com medo ou espalhar
boatos. Que isto seja feito o mais sensatamente possível, com o
mínimo de prejuízo para qualquer pessoa, até para o culpado.
— Se ela voltar, incólume e inalterada — disse Cadfael — isto
pode passar sem prejuízo nem desgraça para ninguém. Ela também
tem de ser tida em consideração, não temo por ela. — E de repente
ocorreu-lhe como Hugh tivera razão ao dizer que ele, Cadfael,
falava por instinto deste relicário oco, tão bom como se estivesse
vazio, como se na verdade contivesse a maravilha cujo nome tinha.
E que saudades tinha dela, sem o símbolo indigno que ela se
dignara tornar merecedor.
Fazendo jus a esta autenticidade, até do símbolo, ela voltou no
dia seguinte, com uma escolta nobre.
O irmão Cadfael estava a sair a porta da enfermaria a meio da
manhã, depois de reabastecer as prateleiras do armário de
remédios do irmão Edmund, quando eles apareceram ao portão,
diante dos seus olhos. Não simplesmente Hugh, o prior Robert e os
dois emissários de Ramsey com o seu criado laico, que na verdade
parecia estar desaparecido, mas um grupo aumentado pela adição
de dois criados ou escudeiros, fosse qual fosse o seu estatuto
exato, e uma personagem compacta em evidência, que cavalgava
discretamente ao lado de Hugh, atrás dos dois priores e, no entanto
dominava a procissão sem qualquer esforço ou gesto da sua parte.
As suas vestes de montar eram ricas, mas de cores escuras, o
cavalo que montava estava mais ornamentado nos arreios do que o
cavaleiro nas roupas, e era um ruano muito bonito. E atrás dele,
numa carruagem estreita puxada por um cavalo, vinha o relicário de
Santa Winifred, decentemente aninhado em tecidos bordados.
9

Foi maravilhoso ver como o grande pátio se encheu, como se a


notícia do seu regresso tivesse sido soprada pelo vento. O irmão
Denis saiu da ala dos hóspedes, o irmão Paul da sala de aulas, com
dois dos seus rapazes a espreitar por detrás da sua batina, dois
noviços e dois moços de estrebaria do pátio dos estábulos, e meia
dúzia de irmãos ocupados em várias tarefas diferentes, todos
apareceram no local quase antes de o porteiro sair do seu
compartimento a correr para saudar o prior Robert, o xerife e os
hóspedes.
Tutilo, que vinha modestamente no fim do cortejo, escorregou
da sela e correu para segurar o estribo de Herluin, como um
delicado pajem, quando o seu superior desceu. O noviço modelo,
um pouco assíduo de mais, talvez, para estar bem consigo mesmo.
E se aquilo de que Cadfael suspeitava fosse realmente verdade, ele
tinha agora bons motivos para se comportar o melhor possível.
Aparentemente, o relicário desaparecido estava de volta ao seu
lugar, e fora encontrada uma testemunha que poderia e iria
confirmar exatamente como é que ele se tinha evaporado. E embora
Tutilo ainda não soubesse o que o esperava, não podia, no entanto,
ter a certeza de que aquele regresso aparentemente jubiloso seria o
fim do caso. Esperançoso mas ansioso, a fazer figas para ter sorte,
seria totalmente virtuoso até o último perigo ter passado, e ele
próprio continuasse anônimo e invisível. Podia até rezar
fervorosamente a Santa Winifred para que esta o protegesse, tinha
o descaramento inocente para isso.
Cadfael não podia deixar de sentir alguma pena de uma pessoa
cuja ação dúbia, mas arrojada tinha dado uma volta de trezentos e
sessenta graus, e agora o ameaçava com desgraça e castigo; tanto
mais que o próprio Cadfael se tinha livrado de uma exposição
possivelmente semelhante. A tampa do relicário, com a sua
cobertura de prata gravada à vista, sem dúvida para ser
reconhecida instantaneamente ao entrar no pátio, ainda estava
devidamente selada. Ninguém lhe mexera, ninguém vira o corpo no
seu interior. Cadfael podia respirar de novo.
Nos seus domínios, o prior Robert encarregou-se de tudo. Os
irmãos excitados ergueram o relicário, e transportaram-no para a
igreja, para o seu altar, e Tutilo seguiu-os devotamente.
Os escudeiros e os noviços levaram os cavalos e puxaram a
pequena carruagem para o pátio da granja para guardá-los. Robert,
Herluin, Hugh e o desconhecido partiram na direção dos aposentos
do abade, onde Radulfus já se encontrava à porta para recebê-los.
Embora este novo hóspede fosse desconhecido; certamente
Cadfael nunca o vira antes, não foi um grande problema descobrir
quem seria, mesmo que a sua presença ali fosse um mistério. A
emboscada ocorrera perto de Leicester. Aqui estava claramente um
magnata de poder e estatuto consideráveis, para quê especular
mais sobre o seu nome? E Cadfael não deixara de reparar na
elevação do ombro defeituoso, visível agora que ele estava de
costas como um alto distinto, embora não suficientemente grave
para desfigurar aquele corpo bem proporcionado. Era do
conhecimento de toda a gente que o gêmeo Beaumont mais novo
era um homem marcado. Chamavam-lhe Robert Bossu, Robert o
Corcunda, e, supostamente, ele não se importava com a alcunha.
Mas que fazia Robert Bossu ali? Já tinham entrado todos para
os aposentos do abade, e o acaso que o levara a visitar a abadia
em breve seria sabido. E o que Hugh tinha a dizer ao padre
Radulfus em breve seria contado ao irmão Cadfael. Só tinha de
esperar até que aquela conferência de poderes sagrados e
seculares terminasse.
Entretanto, recordou a si mesmo que, uma vez que o grupo
estava reunido, seria bom mandar o moço de recados do padre
Boniface à procura de Aldhelm em Upton, no meio do seu gado, e
pedir-lhe que viesse à abadia quando o seu dia de trabalho
terminasse, para escolher o misterioso Beneditino entre um grupo
que agora estava completo.
Fez-se silêncio na oficina de Cadfael, no herbário, depois de
Hugh lhe contar toda a história da odisseia de Santa Winifred, e
como, e com que disposição, Robert Beaumont entrara na disputa
pela sua posse.
— Ele está decidido? — perguntou então Cadfael.
— Parcialmente. Está brincando, para passar a época
maçadora em que não há virtualmente nenhuma luta e muito poucas
intrigas... e, embora, não queira nenhuma, está muito inquieto por
não ter nada para fazer. Sem distrações, com a difícil tarefa de
proteger os interesses do irmão aqui, tal como Waleran está a
proteger os de Robert na Normandia o melhor possível, este gosta
de pôr a raposa no meio das galinhas, especialmente no meio de
dois galispos tão aguerridos e importantes como o vosso prior e
Herluin, o enviado de Ramsey. Não há malícia nisso — disse Hugh
tolerantemente. — Devo censurar-lhe a diversão? No meu tempo,
eu teria feito a mesma coisa.
— Mas ele afirma que tem o direito de reivindicar o relicário?
— Enquanto isso o divertir, e ele não tiver mais nada para fazer.
Santo Deus, foram eles próprios que lhe meteram isso na cabeça!
Quase poderia dizer, diz Robert... o nosso Robert, tenho de o
chamar assim?... que ela tem estado a conduzir as coisas
pessoalmente! É verdade, diz o outro Robert, e eu vi a semente cair
em solo fértil, e foi ali que ele a fez crescer desde então. Mas não te
preocupes com ele, ele nunca vai forçar o assunto a ponto de
humilhar qualquer um deles, e muito menos o abade Radulfus, que
reconhece como seu igual.
— Mal se nota — disse Cadfael, pensativo, mudando
surpreendentemente de assunto.
— O quê?
— A marreca. Robert o Corcunda! Eu já tinha ouvido o nome,
quem não ouviu? Robert e Waleran de Beaumont parecem ter-se
separado nestes últimos anos, gêmeos ou não. O mais velho já está
na Normandia há quatro anos, Stephen já quase não pode contar
com ele como o fiel apoio que ele era.
— E não conta — concordou Hugh secamente. — Stephen
sabe reconhecer quando perdeu um homem de confiança. É mais
do que provável que compreenda bem a razão, e dificilmente poderá
dizer que é culpa de alguém. Os dois irmãos têm terras tanto aqui
em Inglaterra como na Normandia, e desde que Geoffrey de Anjou
se proclamou senhor da Normandia, em nome do seu filho, todos os
homens que apoiam Stephen temem pelas suas propriedades lá, e
devem sentir-se tentados a mudar de lado para manter o apoio de
Anjou. As terras francesas e normandas são as que mais
interessam a Waleran, por isso não admira que tenha ido para lá
para se tornar, pelo menos, aceite por Geoffrey e não correr o risco
de ser desalojado. É mais do que as terras. Ele ficou com as posses
francesas, as de maior honra, quando o pai de ambos faleceu, é
conde de Meulan, e a sua descendência tem direito ao título. Sem
Meulan ele não teria um título. A herança de Robert foram as terras
inglesas. Breteuil só se tornou sua pelo casamento, o seu lugar é
aqui. Por isso, Waleran vai para onde estão as suas raízes, para
impedir que elas sejam arrancadas, mesmo que tenha de prestar
homenagem a Anjou pelo solo onde estão firmemente há gerações.
Não sei ao certo onde está o seu coração. Agora deve obediência a
Anjou, mas faz o menos possível para o ajudar e o menos possível
para prejudicar Stephen, protegendo os seus interesses e os do seu
irmão lá, enquanto Robert faz o mesmo por ele aqui. Mantêm-se à
distância de toda a ação existente. Não admira! — disse Hugh. — É
também uma questão de pura cautela. O caos já se mantém há
demasiado tempo.
— Nunca é fácil — disse Cadfael, sentenciosamente — servir
dois senhores... mesmo quando existem dois irmãos para partilhar a
tarefa.
— Há outros com as mesmas ansiedades — declarou Hugh.
— Haverá mais agora, com uma causa em ascensão aqui e
outra lá. Mas temos um problema muito nosso aqui, Hugh, e,
mesmo que o conde esteja apenas a divertir-se, podes ter a certeza
de que Herluin não está. Se eu tivesse sabido — disse Cadfael,
duvidoso — que ias trazê-la de volta sã e salva, sem grandes
danos, talvez não tivesse andado tão ocupado a tentar perceber
como é que ela desapareceu.
— Duvido que tivesses tido outra hipótese — disse Hugh,
compreensivamente — e seguramente não tens nenhuma agora.
— Nenhuma! Mandei chamar o rapaz que está na casa
senhorial de Upton, como disse a Radulfus que faria, e ele estará
aqui antes das Completas, e a verdade será seguramente apurada.
Todos nós sabemos agora como o relicário foi roubado e levado
para longe, e só falta o testemunho deste rapaz para dar um rosto e
um nome ao ladrão. Um corpo pequeno e uma voz jovem, diz
Aldhelm, que foi levado a ajudar, e viu o seu rosto de perto. Quase
não é necessária confirmação — admitiu Cadfael — mas a justiça
tem de se fazer com absoluta certeza. Herluin não é pequeno nem
jovem. E por que é que um irmão de Shrewsbury quereria ver a
nossa melhor padroeira ser levada numa carroça para Ramsey?
Depois de o método ser desvendado, como foi hoje, quem poderia
ser senão Tutilo?
— Um rapaz arrojado! — comentou Hugh, incapaz de suprimir
um sorriso de apreciação. — Será desperdiçado num hábito de
monge. E, se queres saber a minha opinião, duvido que Herluin
tivesse levantado alguma objeção a um roubo bem sucedido, mas
vai querer o couro do seu noviço mais jovem agora que se revelou
um fracasso. — Levantou-se para sair, esticando os membros ainda
um pouco rígidos da longa viagem a cavalo. — Estou longe de casa.
Não sou preciso aqui até esse Aldhelm ter desempenhado o seu
papel e apontado o dedo para o teu Tutilo, como presumo que tens
a certeza de que acontecerá antes de a noite chegar ao fim. Eu
preferia não estar aqui. Se houver alguma coisa para eu fazer, que
espere até amanhã.
Cadfael só o acompanhou até ao herbário, pois ainda tinha que
fazer ali. O irmão Winfrid, grande e jovem e robusto, estava apoiado
na sua pá na ponta do canteiro de vegetais, e a olhar para uma
figura diminuta que percorria a curva da sebe de buxo em direção
ao grande pátio.
— Que estava o irmão Jerome a fazer, escondido atrás da tua
oficina? — perguntou o irmão Winfrid quando veio arrumar as
ferramentas na altura em que a luz começou a falhar.
— Estava? — disse Cadfael, distraído, a triturar ervas num
almofariz para um xarope. — Nunca apareceu.
— Não, nem era essa a sua intenção — disse Winfrid com a
sua franqueza habitual. — Suponho que queria saber o que o xerife
tinha para te dizer. Esteve alguns minutos do lado de fora da porta,
até vos ouvir mexerem-se para sair, e depois partiu
apressadamente. Duvido que tenha ouvido algo de bom sobre si
mesmo.
— Não pode ter ouvido absolutamente nada sobre si mesmo —
disse Cadfael, satisfeito. — E também não ouviu nada que possa
ser-lhe útil.
Rémy de Pertuis tinha tomado a decisão de partir naquele dia,
mas a chegada do conde de Leicester levou-o a pensar duas vezes,
e a cancelar a ordem que dera a Bénezet e a Daalny para
começarem a fazer as malas. Não seria agora prudente ficar mais
alguns dias para examinar as possibilidades sugeridas por este
magnata que tinha aparecido tão providencialmente? Rémy não
conhecia pessoalmente Ranulf, conde de Chester, e não sabia ao
certo qual o tipo de recepção que teria no norte. Por outro lado,
todos os rumores o levavam a acreditar que Robert de Beaumont
era um homem culto, e provavelmente apreciador de música. Pelo
menos estava ali, alojado na mesma ala de hóspedes, a tomar as
refeições à mesma mesa. Por que abandonar uma oportunidade
presente e prometedora, para ir atrás de uma oportunidade distante
e não provada?
Assim, Rémy dedicou-se a explorar a situação, e dispôs-se a
agradar, e os seus dons e encantos, quando se esforçava, eram
consideráveis. Bénezet estava ao seu serviço há tempo suficiente
para saber qual era o seu papel na operação que tinham em mãos
sem precisar que lhe dissessem nada. Insinuou-se aos escudeiros
do conde na zona dos estábulos, e manteve os ouvidos atentos a
quaisquer menções reveladoras dos gostos de Robert Bossu, do
seu temperamento e interesses, e o que descobriu foi encorajador.
Um patrono daqueles garantir-lhes-ia uma proteção completa, uma
vida de relativo luxo, e um emprego muito agradável. Bénezet
voltava para a ala dos hóspedes com a sua compilação quando
observou o irmão Jerome a rodear a sebe de buxo do lado do
jardim, de cabeça baixa e com muita pressa. Bénezet também ficou
com a impressão de que ele estava um pouco excitado, e com
pressa de confidenciar a alguém o que lhe ia no pensamento. Havia
apenas uma pessoa a quem Jerome falaria com tanto fervor;
Bénezet, naturalmente curioso em relação a qualquer coisa que
pudesse ser-lhe útil ou lucrativo, não era avesso a desviar-se do seu
caminho para descobrir algumas migalhas de informações úteis.
Abrandou o passo para observar para onde ia Jerome, e seguiu-o
sem pressa para o claustro.
O prior Robert estava a arrumar um livro no armário ao fundo
do scriptorium. Jerome dirigiu-se para ele, tenso e apressado com a
notícia. Bénezet esgueirou-se para um compartimento reservado
para leitura, o mais perto que conseguiu chegar sem ser notado, e
fez-se invisível nas sombras. Uma altura conveniente, com a luz a
diminuir, pois todos os irmãos que se ocupavam a copiar ou a ler
tinham abandonado os seus livros por aquele dia, deixando o prior a
verificar se tudo estava decentemente guardado exatamente onde
devia estar. Na calmaria do lusco-fusco as vozes eram
transportadas, e Jerome estava excitado, e Robert não era homem
para baixar a voz, que gostava de ouvir. Bénezet tinha descoberto
que se podiam encontrar migalhas de vantagem nos lugares mais
inesperados.
— Padre prior — disse o irmão Jerome, entre o aborrecimento e
a satisfação — chegou uma coisa ao meu conhecimento que penso
que devereis saber. Parece que há um homem que ajudou a
transportar o relicário de Santa Winifred para a carroça que ia para
Ramsey, com toda a inocência, já que lhe foi pedido por um irmão
da Ordem, com o hábito vestido. Ele disse que pode reconhecer o
homem, e vem cá esta noite para fazer a identificação. Por que é
que nós não fomos informados do que estava a passar-se, Padre?
— Eu sei o que se passa — disse o prior, e fechou a porta do
armário sobre a devoção e sabedoria no interior. — O senhor abade
contou-me. Não foi tornado público porque teria sido um aviso ao
culpado.
— Mas, Padre, vedes o que isto significa? Foi a maldade dos
homens que a retirou dos nossos cuidados. E eu já ouvi um nome
ser dado ao ladrão ímpio que se atreveu a perturbá-la. Ouvi o irmão
Cadfael referir-se a ele. O aparentemente inocente, o noviço de
Ramsey, Tutilo.
— Isso não me foi dito — refletiu Robert, com uma dignidade
ligeiramente afrontada. — Sem dúvida porque o abade se recusa a
acusar um homem até uma testemunha apresentar uma prova
concreta da culpa do criminoso. Só nos resta esperar até à noite, e
teremos essa prova.
— Mas, Padre, poderemos acreditar que algum homem é tão
malvado? Que penitência poderá expiar? Seguramente, o raio de
luz do céu devia ter caído sobre ele e tê-lo destruído quando estava
a cometer o crime.
— O castigo pode tardar — disse o prior Robert, e voltou-se
para sair do escritório, com a sua agitada sombra colada aos
calcanhares. — Mas será certo. Apenas mais algumas horas, e o
malfeitor será castigado como merece.
Os murmúrios vingativos e insatisfeitos do irmão Jerome
seguiram-no até à porta sul, e para o gelo da noite. Bénezet deixou-
o ir, e sentou-se durante alguns momentos a refletir sobre o que
tinha ouvido, antes de se levantar calmamente e voltar, pensativo,
para a ala dos hóspedes. Aguardava-o um serão descansado; tanto
ele como Daalny tinham sido dispensados de todos os serviços, pois
Rémy ia jantar com o abade e com o conde, os primeiros frutos da
sua campanha em busca de lugar e posição. Não precisava de
criado para servi-lo, e embora pudesse haver música antes de o
serão terminar, uma cantora do sexo feminino não era o mais
adequado para fazer parte da diversão nos aposentos do abade.
Estavam ambos livres para fazerem o que quisessem.
— Tenho uma coisa para te dizer — disse ele, ao encontrar
Daalny de sobrolho franzido a afinar uma rabeca à luz de um dos
archotes do átrio. — Esta noite está planejada uma caçada que, na
minha opinião, o teu Tutilo faria bem em evitar. — E contou-lhe o
que ouvira. — Se fazes o favor, conta-lhe tudo — disse ele
cordialmente — e ele que desapareça. Talvez só adie um dia, mas
até um dia é espaço para respirar, e calculo que ele é
suficientemente inteligente para inventar uma história plausível,
quando souber o que o espera, ou para persuadir esta testemunha a
contar uma história diferente. Por que desejaria ao rapaz um mal
pior do que aquele em que ele já se meteu? ) — Ele não é o meu
Tutilo — disse Daalny. Mas pousou a rabeca nos joelhos, e ergueu
os olhos para Bénezet com uma expressão muito pensativa. — É
verdade o que dizes?
— Porque não havia de ser? Ouviste todas as idas e vindas que
houve, este é o fim delas. E aqui és livre como um pássaro, para
variar, desde que voltes para a tua gaiola a tempo. Faz o que
quiseres, mas eu contar-lhe-ia a ameaça que paira sobre ele.
Quanto a mim, vou esticar as pernas na cidade, enquanto posso.
Não direi nada, nem saberei nada.
— Ele não é o meu Tutilo — repetiu ela, quase absorta, ainda a
ponderar.
— Pela forma como evita olhar para ti, poderia ser, se tu o
quisesses — disse Bénezet, a sorrir. — Mas deixa-o em apuros, se
quiseres.
Não era o que ela queria, e ele sabia bem. Tutilo seria avisado
do que o esperava no final das Vésperas, se não antes.
O sub prior Herluin dirigia-se para o jantar com o abade
Radulfus e com o distinto hóspede nos seus aposentos, muito
gratificado com o convite, quando foi confrontado no meio do pátio
por um humilde peticionário sob a forma de Tutilo, muito delicado e
servil, a pedir-lhe autorização para visitar Lady Donata, em Longner.
— Padre, a senhora pede para eu ir tocar para ela, como fiz
antes. Tenho a vossa permissão para ir?
Herluin estava bastante distraído a pensar no jantar que se
avizinhava, e na organização dos argumentos do caso de Santa
Winifred. Não tinha sido avisado de quaisquer suspeitas
desagradáveis, nem da ameaça de uma testemunha ocular que viria
fazer o seu depoimento nessa mesma noite. Tutilo obteve a sua
autorização com uma facilidade quase indiferente. Saiu pela casa do
porteiro, abertamente, e seguiu pela estrada ao longo de Foregate,
para o caso de alguém reparar e verificar que ele tinha partido na
direção certa. Não ia longe, de maneira nenhuma para Longner,
mas queria afastar-se o suficiente para estar ausente quando o
perigo imediato o ameaçasse. Não era simplório a ponto de pensar
que o perigo terminaria quando Aldhelm voltasse para casa,
frustrado, mas teria de resolver o que se seguisse quando chegasse
o momento. O mal daquele dia já era suficiente, e ele tinha bastante
confiança no seu engenho.
10

A notícia de que o pássaro que desejava com toda a sua força


enredar tinha fugido para uma distância segura chegou aos ouvidos
do irmão Jerome por caminhos tortuosos. Ficou doente de raiva.
Claramente, não ia ser feita justiça, nem mesmo no céu. O diabo
estava a cuidar muito eficazmente dos seus.
Devia ter adoecido com o seu próprio veneno, pois
desapareceu no resto da noite. Não pode dizer-se que a sua
ausência foi sentida. O prior Robert só estava consciente da sua
sombra quando tinha alguma tarefa para ele fazer, ou necessitava
da sua presença obsequiosa para restaurar o equilíbrio quando
alguém tinha conseguido arranhar a sua dignidade de prior. A maior
parte dos irmãos estavam demasiado conscientes dele, mas na sua
ausência descontraíram, deram graças e esqueceram-no; e os
noviços e os alunos da escola evitavam a todo o custo estar perto
dele, sempre que possível. Só na hora das Completas o seu não
aparecimento causou surpresa, comentários e por fim inquietação,
pois, por muitos defeitos que pudesse ter, era inflexível no
cumprimento dos seus deveres. O sub prior Robert, uma alma
bondosa até para com aqueles de quem não gostava
especialmente, ficou ansioso, foi procurar a ovelha tresmalhada, e
encontrou-o na sua cama no dormitório, pálido e a tremer, a dizer
que estava doente e com um aspecto atormentado, pálido e frio.
Uma vez que ele tinha tendência para ser dispéptico nas
melhores alturas, ninguém ficou muito surpreendido, exceto, talvez,
com a gravidade do ataque. O irmão Cadfael levou-lhe uma bebida
quente, e um remédio para acalmar o estômago, e deixaram-no
sossegado para que pudesse dormir.
Essa foi a última sensação moderada do serão, pois a última,
ainda para vir, não poderia certamente ser descrita como moderada,
e ocorreu pouco depois da meia-noite. A meia hora que se seguiu
às Completas pareceu declinar para um anticlímax total. Pois o
jovem da casa senhorial de Upton, a testemunha ansiosamente
aguardada que iria, por fim, desvendar a verdade, não apareceu.
Os hóspedes do abade dispersaram decorosamente. Rémy e o
conde Robert em amistosa companhia para a ala de hóspedes,
onde Bénezet já tinha regressado do serão na cidade, a tempo de
ajudar o patrão, e os dois escudeiros do conde estavam preparados
e à espera do seu senhor. Daalny estava a sacudir e a pentear os
cabelos pretos longos e compridos nos aposentos das senhoras, e a
escutar a tagarelice da viúva de um mercador de Wem, que
aproveitara uma noite de hospedagem na abadia a caminho de
Wenlock, para o parto da filha. Tudo no interior das paredes estava
a preparar-se para o sono.
Mas Aldhelm não veio. E Tutilo também não regressou da visita
à senhora de Longner. Como a ordem das práticas religiosas era
imutável, independentemente de quem estivesse doente ou
ausente, a campainha para as Matinas soou no dormitório como
acontecia sempre à meia-noite, e os irmãos levantaram-se e
desceram sonolentamente as escadas noturnas para a igreja.
Cadfael, que conseguia dormir ou acordar consoante a sua vontade,
sentira sempre a sonolência especial dos serviços noturnos, e a
vastidão carregada da abóbada escurecida, onde o candelabro
descia e desaparecia em distâncias sublimes que podiam ou não
estender-se até ao infinito. Também o silêncio tinha uma dimensão
acrescida de silêncio cósmico nas horas da meia-noite, e cada ruído
que perturbava os sons ordeiros da adoração parecia provocar
trepidação nas fundações da terra. "Assim", pensou, na pausa para
meditação e oração entre as Matinas e as Laudes, quando ouviu o
chiar abafado e breve dos gonzos da porta sul do claustro. A sua
audição era mais apurada do que a da maior parte dos presentes, e
ainda não estava deteriorada pelos anos; provavelmente, poucos
dos outros tinham ouvido. No entanto, alguém tinha entrado por
aquela porta, muito devagar, e estava agora imóvel do lado de
dentro, sem saber se devia avançar para o coro e interromper o
segundo serviço do dia. E, momentos depois, uma voz daquele
canto, baixa e pouco clara, juntou-se muito suavemente às orações.
Quando se levantaram dos bancos depois das Laudes, e se
aproximaram das escadas noturnas para voltarem para as suas
camas, uma figura pequena, de hábito, que se encontrava de
joelhos levantou-se para os enfrentar, e colocou-se muito
cuidadosamente na luz que havia, mas com resignada resolução,
como alguém que esperava uma recepção gelada, mas estava
decidido a suportá-la e sobreviver a ela. O hábito de Tutilo brilhava
na altura dos ombros com a chuva fina e silenciosa de Primavera,
que começara a cair a meio da tarde, os seus caracóis estavam
úmidos e emaranhados, e a mão que passou pela cabeça para
penteá-los para trás deixou uma mancha escura. Os seus olhos
estavam muito abertos e a espreitar de uma concha apática de
choque e o seu rosto, onde a mão não o tinha tocado, estava muito
pálido.
Ao vê-lo, Herluin, que estava ao lado do prior Robert, começou
a avançar com uma exclamação áspera e explosiva de
exasperação, ira e desnorteamento, mas antes de poder recuperar o
fôlego e vociferar as enraivecidas censuras que indubitavelmente
pretendia dizer, Tutilo conseguiu encontrar palavras, poucas e
enérgicas, para se adiantar a qualquer outra elocução.
— Padre, lamento chegar tão tarde, mas não tive alternativa.
Era vital ir primeiro à cidade, ao castelo, onde a notícia devia ser
dada em primeiro lugar, e foi o que fiz. Padre, quando voltava para
casa, no caminho da barcaça e pelos bosques, encontrei um
homem morto. Assassinado... Padre — disse ele, mostrando a mão
que tinha passado pela testa. — Falo do que sei, do que ficou claro
mesmo na noite escura. Toquei-lhe... a sua cabeça está desfeita!
Quando viu as mãos à luz, estremeceu e afastou-as de si, para
evitar que elas tocassem em qualquer outra parte da sua pessoa ou
hábito, pois a direita estava tingida com sangue seco na palma e
entre os dedos, e os dedos da esquerda estavam manchados nas
pontas, como se tivessem tocado em roupas manchadas. Não quis
nem conseguiu pormenorizar a notícia antes de se lavar, e torcia
uma mão na outra como se quisesse arrancar a sua pele
conspurcada juntamente com o sangue. Quando, por fim, ficou a
sós nos aposentos do abade com Radulfus, o prior Robert, Herluin e
o irmão Cadfael, cuja presença o próprio Tutilo solicitou, começou a
contar a sua história sem artifícios.
— Eu voltava pelo carreiro da barcaça, pelo bosque, e tropecei
nele no local onde as árvores são mais densas. Ele jazia com as
pernas atravessadas no caminho, e eu caí de joelhos ao lado dele.
Estava escuro como breu, mas é possível seguir o carreiro pela
tênue linha de céu entre os ramos. Mas no chão não se vê nada a
não ser escuridão. Apalpei à minha volta, e senti a rótula de um
joelho, e tecido. Pensei que ele estava embriagado, mas ele não
proferiu nenhum som e não se mexeu. Tateei da coxa até à anca, e
inclinei-me mais para ele onde julguei que estava o seu rosto, mas
nunca ouvi uma respiração nem um sinal de vida. Deus me ajude,
pus a mão na ruína da sua cabeça, e depois percebi que ele estava
morto. E não por acidente! Senti o osso esmagado.
— Fazes alguma ideia de quem poderá ser esse homem? —
perguntou o abade, num tom de voz baixo e suave.
— Não, Padre. Estava escuro demais. Não havia maneira de
saber, sem archote ou lanterna. E, inicialmente, fiquei
completamente transtornado. Mas depois pensei que era um
assunto para o xerife, e que a Igreja se mantém longe de todos os
casos de derramamento de sangue. Por isso, fui para a cidade, e
contei o que tinha acontecido no castelo, e o senhor Beringar
colocou um guarda no local até o dia nascer. O que eu podia dizer,
disse, e o resto tem de esperar pela luz do dia. E, Padre, ele pediu...
o senhor xerife pediu... para que informásseis também o irmão
Cadfael, e quando a manhã chegar, se permitirdes, eu devo levá-lo
ao local, para nos encontrarmos ali com o xerife. Foi por isso que
pedi que ele assistisse a esta conversa. E de bom grado mostrarei o
local amanhã, e, se ele tiver alguma pergunta para me fazer agora,
responderei o melhor que souber. Pois ele disse... Hugh Beringar
disse... que o irmão Cadfael entende de feridas, pois foi um homem
de armas durante muitos anos.
Nessa altura já estava quase sem fôlego e esgotado, mas
soltou um suspiro profundo por ter tirado o peso dos ombros.
— Se o local está guardado — disse Cadfael, fitando o olhar
inquisidor do abade — o que quer que tenha para nos dizer poderá
esperar até o dia nascer. Penso que talvez seja preferível não
especularmos antecipadamente. É capaz de ser muito fácil
seguirmos por um caminho errado. Só te perguntaria, Tutilo, a que
horas saíste de Longner?
Tutilo começou a tremer, e levou um momento
inesperadamente longo a pensar antes de responder: — Era tarde,
já passava das Completas, quando voltei.
— E não encontraste ninguém no caminho de regresso?
— Não deste lado da barcaça.
— Eu penso — disse Radulfus — que devíamos esperar, e não
falar sobre o assunto até o local ter sido examinado à luz do dia, e a
alma infeliz ser conhecida. Agora, basta! Vai para a tua cama, Tutilo,
e que Deus te dê a graça do sono. Quando nos levantarmos para a
Prima, então será tempo para ver e considerar, antes de tentarmos
interpretar.
"Mas apesar de tudo isso", pensou Cadfael, de novo na sua
cama mas sem vontade de dormir, "quantos de nós cinco, um que
falou e quatro que ouvimos, fecharão um olho de novo esta noite? E
dos três de nós que sabíamos que vinha um jovem a caminho da
abadia por aquele carreiro durante a noite, quantos deram já o salto
em frente para dar um nome a esta vítima anônima, e começaram a
ver certas razões que tornariam conveniente para alguém que ele
nunca chegasse até nós? Radulfus? Não lhe escaparia uma
possibilidade tão simples, mas podia e iria refrear-se de a considerar
e de a aprofundar antes de se saber mais. O prior Robert? Bem,
justiça lhe seja feita, o prior Robert quase não disse uma palavra
hoje, esperará até ter provas antes de acusar qualquer homem, mas
é suficientemente inteligente para juntar todos estes pequenos
nadas e fazer alguma coisa deles. E eu? Deve ter sido a pensar
tanto em mim como em qualquer outro que fiz aquele aviso: pode
ser muito fácil seguir um caminho errado! E Deus sabe que, uma
vez seguido, é demasiado difícil voltar para trás e procurar de novo
a pista que nos escapou."
"Vejamos, então, o que temos: Aldhelm... Deus queira que
neste momento esteja em casa, esquecido e profundamente
adormecido!... devia vir identificar o seu homem ontem à noite. Os
irmãos não tinham sido informados, apenas Radulfus, o prior
Robert, Hugh e eu sabíamos, e podemos esquecer o rapaz de
Cynric, que faz os recados fielmente, mas quase não compreende a
natureza do que diz, e esquece a sua missão logo que esta
terminou e ele foi recompensado. Herluin não foi informado, e tenho
a certeza de que não sabia. E, que eu saiba, Tutilo também não,
porém, é estranho que nessa mesma noite Tutilo tenha sido
mandado chamar a Longner. Teria sido chamado? Isso poderá ser
confirmado ou refutado, não é problemático. Digamos que, de
alguma maneira, soube da vinda de Aldhelm, embora ao fugir
estivesse apenas a adiar o reconhecimento, não a evitá-lo, pois teria
de acabar por reaparecer. Sim, mas digamos que ele reaparecia, e
Aldhelm nunca aparecia. Não apenas nessa noite, mas nunca.
Pormenor atrás de pormenor edificaram-se numa possibilidade
formidável, na qual, no entanto, não acreditava. Era melhor adiar as
reflexões até ter visto pessoalmente o lugar onde o crime tinha sido
cometido, e a vítima que o tinha sofrido.

A luz do princípio da manhã, filtrada de má vontade entre as


árvores quase nuas e entre a amálgama de vegetação rasteira,
chegava muito tênue à tira estreita do carreiro, uma tira de um
castanho úmido de folhas em putrefação e afloramentos ocasionais
de pedra, riscadas com sombras como os degraus de uma escada
onde as árvores velhas tinham deixado os troncos espaçados e
finos. O sol ainda não estava acima dos bancos de nuvens a este, e
a luz era incolor e amorfa devido à chuva fina da noite, mas
suficientemente clara para mostrar o que tinha feito Tutilo cair de
joelhos na escuridão, e, no entanto não pudera ser visto.
11

O corpo estava atravessado diagonalmente no caminho, como


ele tinha dito, não completamente estendido, com o rosto e o peito
para baixo, antes apoiado sobre o ombro direito, mas com o braço
direito atirado para trás, e o esquerdo estendido ao lado do corpo,
solto das pregas da tosca capa com capuz que ele usava. O capuz
tinha deslizado da cabeça quando ele caíra, e estava amontoado no
pescoço. Tinha caído e jazia com a face direita colada às folhas
molhadas. O lado esquerdo da cabeça, que estava à vista, era uma
massa deformada de sangue seco, uma crosta escura, a ruína em
que Tutilo tinha tocado à noite, e que lhe tinha provocado uma
agonia de horror.
Agora parecia bastante controlado, mantendo-se um pouco
afastado junto à orla de arbustos, a olhar com firmeza para o que a
noite lhe tinha escondido, com as pálpebras um pouco descidas
sobre o dourado intenso dos olhos, e a boca muito apertada, a única
traição do esforço com que ele mantinha a sua imobilidade e calma.
Levantara-se muito cedo, de uma cama aonde provavelmente não
chegara a dormir, e indicara o caminho para aquele local no meio da
zona mais densa do bosque sem uma única palavra para além da
saudação sussurrada da manhã, e da resposta obediente a algum
comentário que lhe fosse dirigido. Não era de admirar, se o seu
relato fosse verdadeiro, e seria ainda menos surpreendente se
estivesse a ser obrigado a voltar a um local sobre o qual tinha
mentido; mentido à lei, mentido aos seus superiores na Ordem que
ele tinha escolhido de livre vontade.
No chão, encostado à terra, o rosto, pelo menos a maior parte,
estava intacto. Cadfael ajoelhou-se junto à cabeça esborrachada e
fez deslizar suavemente uma mão sob a face direita, para voltar o
rosto um pouco para cima para ser visto.
— Sabe o nome? — perguntou Hugh, de pé ao lado dele. A
pergunta foi dirigida a Tutilo, e não podia ser evitada; mas não
houve qualquer tentativa de fuga. Tutilo disse de imediato, num tom
de voz calmo e ponderado: — Não sei.
Surpreendente, mas quase com certeza a verdade; aqueles
poucos momentos no final de uma tarde caótica nunca tinham
permitido a utilização de nomes. Ele tinha sido tão anônimo para
Aldhelm como Aldhelm fora para ele.
— Mas conheces o homem?
— Já o vi — disse Tutilo. — Ele ajudou-nos quando a igreja
ficou inundada.
— Chama-se Aldhelm — disse Cadfael em voz baixa, e
levantou-se, deixando o rosto sujo afundar-se novamente na cama
de folhas. — Vinha ter conosco a noite passada, mas nunca chegou
à abadia. — Se o rapaz não sabia antes, que fosse dito agora. Ele
escutou e não esboçou qualquer reação. Tinha-se fechado em si
mesmo, e não ia ser fácil voltar a trazê-lo para o exterior.
— Bem, vejamos o que há para ver — disse Hugh sem
preâmbulos, e voltou as costas à figura magra e submissa que se
mantinha tão cautelosamente à parte do acontecimento que ele
próprio tinha comunicado. — Ele percorria este carreiro vindo da
barcaça, e foi atacado ao passar aqui. Vede como caiu! Uma jarda
ou mais para trás... aqui, onde a vegetação é espessa, alguém lhe
bateu por detrás e para a esquerda... aqui, no lado esquerdo do
carreiro, numa emboscada.
— Assim parece — declarou Cadfael, e observou os arbustos
que se amontoavam junto ao carreiro. — A sua passagem
provocaria um ruído suficiente entre a folhagem para esconder o
movimento súbito de outro homem no meio dos ramos. Caiu
exatamente na posição em que se encontra agora. Vês algum sinal,
Hugh, de que ele tenha voltado a mexer-se? — Pois o chão em
volta, com a sua camada de folhas caídas no último Outono
ensopadas e pisadas numa polpa macia, não evidenciava qualquer
perturbação, e estava úmido, escuro e liso, sem marcas de
quaisquer convulsões de pés ou braços, nem de passos do atacante
à volta da sua vítima.
— Enquanto ele estava atordoado — disse Hugh — o trabalho
foi concluído. Não houve luta, nem defesa.
Num tom de voz inseguro e abafado, Tutilo aventurou, da
proteção sombria do seu capuz: — Estava chovendo.
— Pois estava — disse Cadfael. — Não me esqueci disso. Ele
devia ter o capuz na cabeça. Isto... foi feito mais tarde, quando ele
estava caído.
O rapaz continuou imóvel, a olhar para o cadáver. Apenas a
curva subtil de um maxilar e as pálpebras descidas e uma ponta de
sobrancelha se viam nas sombras do capuz. Havia lágrimas nas
pestanas compridas, efeminadas.
— Posso tapar-lhe o rosto, Irmão?
— Ainda não — respondeu Cadfael. — Preciso de observá-lo
mais minuciosamente antes de o levarmos conosco. — Dois dos
sargentos de Hugh esperavam impassivelmente no carreiro, com
uma padiola para transportá-lo para o castelo ou para a abadia,
consoante as ordens de Hugh. Da sua distância judiciosa,
observavam em silêncio, com um interesse relativo. Já tinham visto
mortes violentas antes.
— Faz o que for preciso — disse Hugh. — A moca ou bastão
que foi usado para o crime foi seguramente levado com o homem
que o usou, mas se o cadáver do pobre infeliz puder dizer-nos
alguma coisa, vamos descobrir antes de o removermos.
Cadfael ajoelhou-se atrás dos ombros do homem morto, e
olhou de perto para a ferida indentada, em que pontos brancos de
osso se viam no meio do sangue seco. O crânio estava partido
acima e abaixo da têmpora esquerda, com o que parecia ter sido um
único golpe, embora não pudesse ter a certeza. Um bastão com um
cabo pesado e arredondado podia ter feito aquele tipo de estragos,
mas a cratera que abrira era francamente grande, e denteada, não
regular. Cadfael pegou cuidadosamente na ponta do capuz, e virou-
o no pulso. Tinha uma costura na parte de trás, e ao passar as
pontas dos dedos pelo tecido encontrou uma pequena parte a meio
que estava peganhenta e a endurecer, e tirou os dedos manchados
de sangue. Muito pouco sangue, seguramente do primeiro golpe
que derrubara a vítima através do capuz e tudo. E isto era na nuca,
e apenas a parte central da ferida tinha algum sangue. Endireitou as
pregas, e passou os dedos pela cabeleira de espessos cabelos
castanho avermelhados do jovem morto, desde a testa até à
curvatura da nuca, onde aquela costura ajudara seguramente a
quebrar a força do golpe. Encontrou uma escoriação que tinha
vertido uma pequena crosta de sangue nos cabelos grossos e que
estava quase seca. Ali, o crânio não estava partido por baixo da
pele.
— O golpe que o derrubou não foi muito forte — disse Cadfael.
— não poderia tê-lo deixado inconsciente durante muito tempo, se
não lhe tivessem feito mais nada. O que foi feito depois, foi feito
rapidamente, antes de ele poder recuperar os sentidos. Ele nunca
teria morrido disto. E, no entanto, o que se seguiu foi frio, deliberado
e final. Um homem embriagado numa rixa podia ter feito isto.
— Cumpriu a sua finalidade — disse Hugh sombrio. — Deixou-
o à mercê do inimigo. Sem pressa! Teve tempo de sobra para
avaliar a situação e terminar o trabalho.
Cadfael endireitou as pregas duras do capuz, e sacudiu alguns
fragmentos com aspecto de penugem que se encontravam no meio
delas. Esfregou-os nas palmas das mãos, lascas de madeira seca e
apodrecida. Sem dúvida que haveria muita naquela mata crescida e
não tratada, mesmo depois de ter sido desbastada para o lume
pelos rapazes de Foregate. Mas por que estavam no capuz de
Aldhelm? Passou as mãos pelos ombros da capa, e não encontrou
mais daquelas lascas minúsculas. Ergueu a ponta do capuz, e
pousou-o suavemente sobre a cabeça esmagada, escondendo o
rosto. Atrás de si sentiu, mais do que ouviu, a inspiração profunda
de Tutilo, e sentiu o estremecimento que o atravessou.
— Esperai mais alguns momentos. Vejamos se o assassino
deixou alguma pista, se ficou aqui durante algum tempo à espera do
seu homem. — Pois ali estava o melhor esconderijo em todo o
caminho desde a barcaça até Foregate. Recordou-se de que o
caminho tinha duas bifurcações, separando-o quando descia da
crista de vegetação rasteira fronteira ao rio. Uma parte do caminho
ia diretamente para a Feira dos Cavalos, a outra, aquela em que se
encontravam, desembocava a meio de Foregate, quase à vista da
casa do porteiro da abadia. Devia ter sido por esta que Tutilo partira
para Longner, e fora por esta que regressara, para tropeçar naquela
terrível descoberta pelo caminho. Se, é claro, ele tinha estado mais
perto de Longner, nessa noite, do que aquele lugar desastroso.
Cadfael recuou para medir de novo o ângulo em que o cadáver
jazia, e os poucos passos atrás do caminho onde o atacante devia
ter estado escondido. Vegetação espessa, a estalar com ramos e
galhos secos e com lenha morta no meio; procurou pontas partidas,
e encontrou-as.
— Aqui! — Avançou lateralmente pela cortina de arbustos, para
um espaço estreito entre as árvores, onde crescia uma erva fina,
salpicada de folhas mortas e a brilhar com a chuva noturna. Piso
macio, muito pisado há poucas horas por pés inquietos e sempre a
mexer-se incessantemente. Nada mais, com exceção de um ramo
partido atirado para detrás dos arbustos, e ao lado dele a mancha
na erva que indicava o local onde estivera antes. Cadfael debruçou-
se e pegou nele, e a extremidade mais grossa, partida e pendurada,
libertou restos flutuantes de flocos quando ele a agarrou.
Suficientemente grosso e suficientemente pesado, mas quebradiço.
— Foi aqui que ele esperou. Durante algum tempo, a avaliar
pela forma como pisou a erva. E isto, foi a arma que arranjou. Foi
com isto que desferiu o primeiro golpe, e partiu-o com a pancada.
Hugh olhou para o ramo, e mordeu o lábio, pensativo.
— Mas não o segundo golpe, seguramente. Não com isto! Ter-
se-ia desfeito em lascas muito antes de causar aqueles estragos.
— Não, ele atirou o pau para os arbustos quando este se partiu
na sua mão. E procurou rapidamente algo mais letal? Pois é claro
que, se alguma vez pensou fazer isto, veio sem nenhuma arma. —
"Talvez até tenha vindo sem a intenção de matar", pensou Cadfael,
e deu mais um passo, "uma vez que não vinha preparado." —
Esperai! Vejamos o que se oferecia.
Pois a arma, fosse ela qual fosse, não poderia ter sido
encontrada longe, não houvera tempo para isso. Alguns minutos, e
Aldhelm estaria a acordar e a levantar-se. Cadfael começou a subir
a colina ao longo da berma do carreiro, a espreitar para os arbustos,
e depois desceu pelo outro lado. Aqui e ali, a pedra calcária que
emergia da urze e da erva mais acima rasgava a erva e o húmus
com manchas pedregosas, que se abriram por vezes em pequenos
seixos partidos, aninhados na turfa e no musgo. Cadfael desceu
algumas jardas da colina. O atacante tinha-se escondido do lado
esquerdo do caminho, por isso procurou primeiro daquele lado.
Alguns passos abaixo do lugar onde o corpo jazia, e cerca de uma
jarda para o interior dos arbustos, havia um monte de pedras soltas
no meio das quais crescia erva e líquen, e que aparentemente não
eram mexidas há um ano ou mais; até algo no contorno claro da
pedra de cima o fazer olhar com mais atenção. Não estava presa à
de baixo por um bom enchimento de terra e pelas ervas que
prendiam todas as outras, embora estivesse alinhada com precisão
para preencher o espaço que, seguramente, tinha ocupado durante
um ano ou mais. Cadfael inclinou-se e pegou-lhe com ambas as
mãos, e ergueu-a, e ela saiu do lugar onde estivera sem um rasto
de erva nem uma ponta de musgo. Isto porque já tinha sido
desenraizada e recolocada durante a noite.
— Não — disse Cadfael, em voz baixa, apenas para si — eu
não esperava uma coisa destas. Nunca pensei que encontraríamos
uma mente tão perversa.
— Isto? — disse Hugh, observando a pedra atentamente. Era
grande e pesada, e eram precisas duas mãos para suportá-la. Por
cima estava lisa da exposição, por baixo continha líquen e musgo;
mas quando Cadfael a virou do outro lado era tosca e clara, e
algumas pontas estavam sujas com uma crosta escura, que ainda
não tinha secado. — Aquilo é sangue — declarou Hugh, sem
qualquer dúvida.
— Aquilo é sangue — corroborou Cadfael. — Depois de
cometido o crime, já não havia pressa. Ele teve tempo para pensar,
e raciocinar. Tudo frio, frio e deliberado. Voltou a colocar a pedra
onde a encontrara, cuidadosamente alinhada. As raízes pequenas e
destruídas que a tinham prendido não pôde repará-las, mas quem
repararia numa coisa dessas? Agora fizemos tudo o que havia a
fazer aqui, Hugh. Só nos falta reunir as peças e pensar que tipo de
homem pode ser este.
— Podemos levar o pobre desgraçado? — perguntou Hugh.
— Posso levá-lo para casa, para a abadia? Gostaria de
observá-lo mais uma vez, e mais atentamente. Creio que ele vivia
sozinho, sem família. Falaremos com o seu padre em Upton. E esta
pedra... — Era pesada para ele, fez bem em pousá-la durante algum
tempo. — Leva-a com ele.
E durante todo aquele tempo o rapaz estivera por perto, calado,
mas a escutar todas as palavras que eram ditas à sua volta. As
lágrimas nas suas pestanas, que tinham brilhado com os primeiros
raios do sol nascente, estavam agora secas, e a boca estava
fechada numa linha rígida. Quando os homens de Hugh ergueram o
corpo de Aldhelm para a padiola, e seguiram pelo carreiro em
direção a Foregate, Tutilo integrou-se na pequena procissão triste
como um enlutado, e percorreu todo o caminho em silêncio com
eles, sem tirar os olhos do corpo amortalhado. — Ele não vai
embora? – perguntou Hugh ao ouvido de Cadfael, enquanto
caminhavam.
— Ele não vai embora. Eu tratarei disso. Ele tem um superior
difícil para servir, e não tem outro lugar para onde ir.
— E que pensas dele?
— Não me atrevo a analisá-lo — disse Cadfael. — Ele
escorrega-me por entre os dedos. Mas tempos houve em que dizia
o mesmo de ti — acrescentou, e achou graça quando ouviu Hugh rir,
embora apenas por breves instantes e muito baixo. — Eu sei! Foi
mútuo. Mas vê como acabaram as coisas.
— Ele veio contar-me a história imediatamente — disse Hugh, a
raciocinar em voz baixa para ser ouvido apenas por Cadfael. —
Parecia muito abalado e chocado, mas lúcido. Não perdeu tempo, o
corpo ainda estava quente, só não respirava, por isso deixamos
tudo como estava até o dia nascer. Este rapaz comportou-se como
um homem que se tivesse deparado inesperadamente com o
cadáver de um homem assassinado. Melhor, talvez, do que a
maioria teria conseguido.
— Que pode ser a medida da sua qualidade — disse Cadfael
com firmeza — ou da sua astúcia. É válido para uma hipótese e
para a outra. E quem poderá distinguir?
— Não é frequente — disse Hugh com um sorriso pesaroso —
eu ter de te ouvir a fazer o papel de advogado do diabo, quando se
trata de um jovem em sarilhos. Bom, mantém-no sob a tua custódia,
e nós empregaremos o nosso tempo a decidir se o condenamos ou
absolvemos.
O corpo de Aldhelm estava na capela mortuária, no seu ataúde,
com as pernas esticadas, o corpo composto, os olhos fechados,
amortalhado e indiferente, depois de ter dito tudo o que Cadfael
conseguiu induzi-lo a dizer. Nem todos os fragmentos claros na
testa esmagada se tinham revelado pedaços de osso. Havia
bastantes fragmentos de pedra calcária e salpicos de pó para provar
uma vez mais a utilização que tinha sido dada à pedra. Um pano de
linho estava enrolado no rosto do jovem. Junto ao peito dele,
Cadfael e Tutilo confrontaram-se.
O rapaz estava muito pálido, e abatido de exaustão. Cadfael
tinha-o mantido deliberadamente consigo, quando Hugh saíra para
relatar ao abade Radulfus o que fora encontrado e o que havia sido
feito. Sempre mudo, Tutilo fora buscar e transportara água e panos,
fora buscar velas e acendera-as, suportando de boa vontade a
presença da morte. Agora não havia mais nada para fazer, e ele
estava imóvel.
— Compreendes — disse Cadfael, fitando os olhos cansados,
de um dourado profundo mesmo à luz das velas — por que é que
este homem vinha para cá? Sabes que o que talvez... segundo ele
próprio garantira... pudesse dizer, quando visse todos os irmãos da
Ordem, aqui nesta casa?
Os lábios de Tutilo moveram-se, dizendo quase sem um som:
— Sim, sei.
— Sabes de que forma o relicário de Santa Winifred foi levado
daqui. Isso é agora do conhecimento de todos os homens. Sabes
que havia um irmão da Ordem que conspirou para a sua partida e
pediu a Aldhelm que o ajudasse. E que se pretendia que ela
chegasse a Ramsey, não que se perdesse no caminho. Achas que a
justiça procurará entre os irmãos de Shrewsbury, de quem ela foi
roubada? Ou antes entre os dois da casa que ficava a ganhar? E
um em especial?
Tutilo enfrentou-o com olhos firmes, mas não proferiu uma
única palavra.
— E aqui jaz Aldhelm, que poderia ter dado um rosto e um
nome a esse irmão, sem qualquer sombra de dúvida. O problema é
que já não tem uma voz para falar. E tu estavas fora, na mesma
estrada, na estrada para a barcaça, para Preston, por onde ele viria,
e para Longner, onde havias sido chamado, quando ele morreu.
Tutilo não confirmou nem negou.
— Filho — disse Cadfael — sabes, não é verdade, o que vai ser
dito?
— Sim — confirmou Tutilo, abrindo por fim os lábios. — Sei.
— Será dito e aceito como verdade que ficaste à espera de
Aldhelm e o mataste, para que ele nunca pudesse apontar-te um
dedo.
Tutilo não protestou dizendo que fora ele a comunicar o crime, a
chamar as autoridades, a desencadear a caça ao assassino.
Desviou os olhos por alguns instantes para o rosto coberto de
Aldhelm, e ergueu-os de novo para fitar frontalmente os olhos de
Cadfael.
— Mas — disse ele por fim — não será dito. Não poderão dizer
isso. Pois eu irei ter com o senhor abade e com o padre Herluin, e
contarei o que fiz. Não será preciso ninguém a não ser eu próprio
para me apontar o dedo. Responderei pelo que fiz, mas não por um
crime que não cometi.
— Criança — disse Cadfael, após um silêncio prolongado e
pensativo — não te enganes pensando que isso calará todas as
bocas. Não faltarão aqueles que dirão que avaliaste as tuas
hipóteses, sabendo que já eras suspeito, e de dois males
escolhestes o menor. Quem não preferiria responder a roubo e
fraude dentro da alçada da Igreja, a arriscar o pescoço no nariz do
xerife por homicídio? Quer fales quer mantenhas silêncio, não terás
um caminho fácil à tua frente.
— Não importa! — disse Tutilo. — Se mereço penitência, que
ela caia sobre mim. Quer seja castigado ou fique livre, seja qual for
o custo, não deixarei que se diga que matei um homem decente
para impedi-lo de me acusar. E se mesmo assim continuarem a
deturpar as coisas para a minha desonra, que mais posso fazer?
Ajudai-me a chegar à presença do senhor abade, irmão Cadfael! Se
pedirdes uma audiência para mim, ele ouvir-me-á. Perguntai se o
padre Herluin poderá estar presente, agora, enquanto o xerife está
aqui. Não pode esperar até ao cabido de amanhã.
Ele tinha tomado uma decisão, e de repente estava ansioso
para pô-la em prática: e, na opinião de Cadfael, era o melhor
caminho que ele podia seguir. A verdade, se é que podia prever-se
a verdade nesta criatura sutil, mesmo em circunstâncias de
desespero, podia lançar luz em mais do que uma direção.
— Se é verdadeiramente o que queres — disse ele. — Mas
cuidado para não te defenderes antes de te acusarem. Diz o que
tens para dizer, sem exclamações, e o abade Radulfus escutará,
isso posso prometer-te.
Gostaria de poder dizer sinceramente o mesmo em relação ao
sub prior Herluin. E Tutilo talvez estivesse a desejar o mesmo, pois
de repente, no meio da sua mais solene determinação, torceu a
boca num sorriso seco e apreensivo, que desapareceu num
instante.
— Vinde comigo agora — disse.
Na sala de visitas do abade, Tutilo teve uma audiência maior do
que Cadfael tinha pedido, mas não se opôs, ou pelo menos assim
pareceu, talvez porque atenuaria a recepção gelada que podia
esperar de Herluin. Hugh ainda se encontrava lá, e era bastante
natural que o conde Robert fosse chamado para a conversa por
uma questão de cortesia, já que estava em causa a lei da terra e o
decreto do rei Stephen. Herluin estava presente a pedido de Tutilo,
uma vez que, no fundo, não podia evitar, e o prior Robert não seria
ignorado se Herluin fosse admitido. Era preferível confrontá-los a
todos, e deixá-los pensarem o que quisessem.
— Padre Abade... Padre Herluin... senhores... — Tutilo ocupou
firmemente o seu lugar, juntou as mãos e olhou para cada um deles,
como se estivesse a observar um painel de juízes. — Tenho de dizer
que já devia ter-vos contado isto, uma vez que está relacionado com
o assunto que nos interessa agora a todos os que estamos aqui. É
sabido que o relicário de Santa Winifred foi levado na carroça que
foi carregada com a madeira para Ramsey, mas ninguém
demonstrou como isto aconteceu. A coisa foi feita por mim.
Confesso. Retirei o relicário do seu altar, depois de ele ter sido bem
embrulhado — para que a sua remoção para um lugar mais elevado
se fizesse em segurança. Coloquei um tronco em bom estado no
seu lugar, para que fosse levado pelas escadas. E à noite pedi a um
dos jovens que estavam a ajudar-nos, um que tinha vindo com os
carroceiros, para me ajudar a carregar a santa para a carroça, para
que fosse para Ramsey para ajudar e socorrer a nossa casa
maltratada. Esta é toda a verdade. Ninguém esteve envolvido a não
ser eu. Não investigueis mais, porque eu estou aqui para declarar o
que fiz, e para defender o meu ato.
Herluin tinha aberto a boca e inspirara profundamente para
atropelar o seu presunçoso noviço com a torrente de palavras
indignadas, mas depois conteve a respiração antes de o abade o
impedir de falar com uma mão peremptória. Pois insultar aquele
rapaz perturbado naquele momento seria prejudicar qualquer
pretensão que Ramsey pudesse ter à disputa pela qual o arrojado
infeliz tivera um gesto tão perigoso. Que não poderia uma santa
milagreira fazer pela glória futura de Ramsey? E o assunto ainda
estava muito vivo, pois ali ao seu lado, a escutar atentamente e com
um pequeno sorriso, encontrava-se o conde de Leicester, que, quer
a sério ou por brincadeira, estava a reclamar o mesmo troféu. Não,
não devia dizer nada ainda, não antes de as coisas ficarem mais
claras. Tinha de deixar as opções em aberto. Tinha de se inclinar
graciosamente perante o gesto de contenção do abade Radulfus, e
de manter a boca fechada.
— Fazes bem, pelo menos, em confessar — declarou Radulfus
brandamente. — Como nos informaste a noite passada, e o senhor
xerife nos confirmou subsequentemente, para nossa infinita pena, e
seguramente para a tua, o jovem que iludiste está agora morto, aqui
no interior das nossas paredes, e estará ao nosso cuidado para os
ritos que lhe são devidos. Teria sido melhor, não teria, se tivesses
falado antes, e lhe tivesses poupado a viagem que foi a sua morte?
A pouca cor que havia no rosto de Tutilo exauriu-se lentamente
e deixou-o pálido e mudo. Quando conseguiu fazer as cordas vocais
tensas falar, disse num suspiro rouco: — Padre, a culpa é minha.
Mas eu não podia saber! Mesmo agora, não consigo compreender!
Ao pensar no assunto mais tarde, Cadfael chegou à conclusão
de que fora naquele momento que tivera a certeza de que Tutilo não
tinha assassinado, que nunca lhe tinha passado pela cabeça que o
seu delito estivesse a colocar outra alma em perigo de vida.
— O que está feito, está feito — disse o abade neutralmente. —
Falas em defender o teu ato. Se achas que é defensável, continua.
Estamos aqui para escutar.
Tutilo engoliu em seco, e recobrou forças, endireitando os
ombros bem modelados.
— Padre, aquilo que não posso justificar suficientemente posso
pelo menos explicar. Vim para cá com o padre Herluin, a chorar os
tormentos de Ramsey, e a sonhar fazer algo grandioso para
beneficiar a restauração da nossa casa. Ouvi falar nos milagres de
Santa Winifred, e nos muitos peregrinos e ricas oferendas que ela
trouxe a Shrewsbury, e desejei encontrar uma padroeira que desse
vida nova a Ramsey. Rezei para que ela intercedesse por nós, e nos
mostrasse a sua graça, e ocorreu-me que ela me ouvira, e que
queria fazer-nos bem. Pareceu-me, Padre, que ela estava
interessada em nós, e desejava visitar-nos. E comecei a sentir com
muita intensidade que tinha de lhe fazer a vontade.
A cor tinha-lhe voltado às faces, queimando os ossos salientes,
um pouco agitado, um pouco febril. Cadfael observou-o e ficou em
dúvida. Tinha-se convencido, ou conseguia provocar esse êxtase
quando queria para convencer outros? Ou, como qualquer outro
pecador humano, estava a construir desesperadamente uma
armadura de simplicidade sobre as suas astúcias perversas? O
pecador detectado pode imaginar todos os gêneros de véus para
cobrir a sua nudez.
— Eu planejei e fiz o que já vos contei — disse Tutilo,
inesperadamente conciso e seco. — Senti que não estava a fazer
mal. Acreditei que estava a seguir ordens, e obedeci fielmente. Mas
lamento amargamente ter precisado da ajuda de outro homem sem
que ele soubesse o que estava a fazer.
— Na ignorância — disse o abade — do perigo que corria.
— Reconheço isso — disse Tutilo, muito direito e com os olhos
muito abertos. — Lamento. Deus me perdoe o que fiz!
— Em devido tempo — disse Radulfus, com um interesse
perseverante — Ele poderá perdoar. Isso não nos compete. Quanto
a nós, temos a nossa história, temos uma santa que voltou para nós
de uma forma estranha, e temos aqueles que foram amigos dela
nessa viagem, e que podem acreditar, como tu acreditas, que a
senhora estava a controlar o seu destino, e a escolher os seus
amigos e os seus protegidos. Mas antes de nos debruçarmos sobre
esse assunto, temos aqui um homem assassinado. Nem Deus nem
os seus santos tolerarão um homicídio. Este jovem Aldhelm clama
para que façamos justiça. Se sabeis alguma coisa que possa lançar
alguma luz sobre esta morte, falai agora.
— Padre — disse Tutilo, ficando extremamente pálido — juro
pela minha fé que nunca lhe fiz nem teria feito algum mal, nem sei
de ninguém que precisasse de lhe desejar mal. É verdade que ele
vos podia ter dito o que eu vos contei agora. Nunca foi uma questão
que me atemorizasse tanto a ponto de tentar silenciá-lo. Ele ajudou-
me! Ele ajudou-a! Eu teria dito que sim quando ele apontasse para
mim. Como estava com um pouco de medo, tentei manter tudo em
segredo. Mas agora não há segredos.
— No entanto, tu és o único homem — insistiu o abade,
impiedoso, mas sem incutir à sugestão um tom de acusação — que
se sabe ter alguma razão para recear a vinda dele aqui e o que ele
podia dizer. O que decidiste agora dizer-nos não pode desfazer essa
verdade, nem absolver-te dela. Até se saber mais sobre a sua
morte, penso que deves ficar nesta abadia, sob a minha custódia. A
única acusação que pode ser feita contra ti neste momento, é a de
roubo da nossa casa, independentemente da leitura que possa ter.
Isso te deixa sob a minha alçada. Creio que o senhor xerife poderá
ter alguma coisa a dizer em relação a isso.
— Não tenho nada a objetar — disse Hugh prontamente. —
Confio-o ao vosso cuidado, Padre Abade.
Herluin não tinha dito uma única palavra a favor ou contra.
Estava a refletir em silêncio sobre as opções que lhe restavam, e
até agora não lhe pareciam totalmente irremediáveis. O rapaz
disparatado podia ter cometido erros potencialmente desastrosos,
mas tinha preservado a base da sua pretensão. A Santa tinha
desejado! Como é que a casa beneficiada podia provar o contrário?
Ela tinha-se ido embora, apenas a maldade dos homens frustrara a
sua viagem.
— Pedi ao irmão Vitalis para chamar os porteiros para o
levarem — disse o abade. — E, irmão Cadfael, leva-o para a sua
cela, e se fazes o favor volta para junto de nós.
Ao entrar na sala de visitas do abade, tornou-se evidente para
Cadfael que se a batalha não tinha começado já, trombetas de
guerra estavam seguramente a ser afinadas para o início. Radulfus
mantinha a sua calma judiciosa, e a grande testa do conde era
suave e benigna, embora não houvesse maneira de adivinhar o que
se passava na mente altamente inteligente por detrás dela; mas o
prior Robert e o sub prior Herluin estavam sentados muito direitos,
com a coluna tensa e os rostos longos e distintos fechados numa
máscara de aço, não olhavam diretamente um para o outro e
mantinham um olhar distante, e a aparência de considerar com
magistral indiferença a situação com que se confrontavam.
— Deixando de lado o caso de homicídio — disse Herluin —
para o qual ainda nos faltam provas, seguramente a história dele é
credível. Tratou-se de um roubo sagrado. Ele estava a fazer o que a
santa desejava.
— Não me parece fácil — disse o abade Radulfus, com um tom
gélido inequívoco na voz — deixar de lado o caso de homicídio. É
mais importante do que todos os outros assuntos. Que podeis dizer
deste rapaz, Hugh? Ele contou-nos agora o que tinha receado que o
homem morto pudesse dizer-nos. Isso o deixa sem motivo para
matar.
— Não — disse Hugh. — Ele tinha motivo, como ele próprio
admitiu, e não conhecemos mais ninguém que tivesse. É possível
que ele tenha assassinado, mas depois de cometer o crime
procurou esconder o que tinha feito. É possível... não digo mais do
que isto. Ele veio imediatamente ter conosco ao castelo, e contou-
nos como tinha encontrado o corpo, e não há dúvida de que estava
profundamente abalado e agitado, como seria plausível, culpado ou
inocente. Hoje devo dizer que ele se comportou totalmente de
acordo com a inocência, comovido, piedoso, paciente na espera. Se
tudo isso foi encenado, para disfarçar a culpa, então ele é
profundamente arrojado, inteligente e perverso para a sua idade.
Mas — acrescentou torcidamente — eu estou convencido de que
ele é assim, e pode muito bem ter tido a audácia de fingir daquela
maneira.
— Mas, nesse caso — disse Radulfus, a franzir pensativamente
o sobrolho — por que é que foi depois ter comigo, e confessou
precisamente aquilo de que a testemunha poderia tê-lo acusado?
— Porque ainda não se tinha apercebido plenamente de que
continuaria a ser suspeito, e de que agora seria suspeito de
homicídio. Num caso destes é preferível aceitar as penalidades que
a Igreja possa impor, por muito duras que sejam, por roubo e fraude,
do que cair nas malhas da lei secular, a minha lei — disse Hugh
com firmeza — onde o homicídio é punido com a forca. Se ao
submeter-se a uma culpa pudesse evitar todas as suspeitas em
relação à pior... ele é bastante engenhoso, suponho, para fazer a
escolha e bastante resistente para se submeter a ela. O padre
Herluin devia conhecê-lo melhor do que nós.
Mas nessa altura Cadfael já tinha a certeza de que Herluin não
conhecia o seu Tutilo, provavelmente nunca tivera uma ideia clara
do que se passava nas mentes dos seus noviços, porque não lhes
prestava atenção. A declaração de Hugh, talvez intencionalmente,
colocara-o numa posição difícil. Ele gostaria de se distanciar e a
Ramsey, horrorizados, de qualquer possibilidade de terem dado
guarida a um assassino, mas enquanto se mantinha a possibilidade
de lucrarem com um roubo, sagrado ou profano, ele quereria manter
a aparência de valorizar e acreditar no ladrão.
— O irmão Tutilo nunca esteve ao meu cuidado específico
antes desta viagem — disse ele cuidadosamente — mas eu achei
sempre que ele é totalmente dedicado à nossa casa de Ramsey. Ele
diz que teve as suas orientações em oração e adoração à santa, e
eu tenho todos os motivos para acreditar nele. São conhecidas
inspirações sagradas desse tipo. Seria presunçoso desprezá-las.
— Estamos a falar de homicídio — disse Radulfus com
austeridade. — Com toda a honestidade, embora me repugne dizer
que qualquer homem é capaz de matar, não me atrevo a dizer que
qualquer homem é totalmente incapaz de fazê-lo. O rapaz estava
presente naquele carreiro, segundo as suas próprias declarações e
ações, e tinha, embora depois pudesse lamentar o ato, motivo para
se livrar de um homem que podia acusá-lo.
Isto na medida em que existia uma testemunha contra ele. Em
abono dele, deve dizer-se que foi imediatamente comunicar a morte
às autoridades, e depois voltou para junto de nós e contou de novo
a mesma história. Não vos parece que se a culpa tivesse sido dele,
ele poderia ter vindo diretamente para casa sem proferir uma
palavra, e deixar que outro encontrasse o morto e desse o alarme?
— Também podíamos refletir — disse o prior Robert
terminantemente — sobre o seu estado. O xerife disse que ele
estava muito agitado. Não é fácil mostrar-se calmo e inabalado,
depois de um ato daqueles.
— Ou depois da descoberta de um ato daqueles — disse Hugh
com imparcialidade.
— Seja qual for a verdade — disse o conde com segurança —
tende-o nas vossas mãos, só precisais de esperar, e se ele tiver de
fato mais e pior para dizer, talvez consigais fazer o próprio rapaz
confessar. Tenho as minhas dúvidas de que seja muito difícil
arrancar-lhe uma confissão depois de estar muito tempo preso. Se
ele não acrescentar nada, passadas algumas semanas, podeis ficar
certos de que ele não tem nada para acrescentar.
"Aquilo podia muito bem ser sensato", pensou Cadfael, a
escutar respeitosamente. "Que poderia ser mais debilitante para o
jovem, que poderia ser mais duro de suportar com constância, do
que estar fechado numa estreita cela de pedra, fechado à chave,
apenas com um catre estreito, uma mesa de leitura minúscula e um
crucifixo na parede como companhia, e a largura de meia dúzia de
lajes de pedra para se exercitar? Embora Tutilo tivesse entrado nela
há apenas meia hora, com aparente alívio e prazer, e até tivesse
ouvido a chave rodar na fechadura sem um estremecimento. A
cama era dádiva suficiente. Por muito estreita e dura que fosse,
chegava para ele, e era uma enorme bênção. Mas deixassem-no lá
sozinho e preso por dez dias, e sim, se nessa altura ele ainda
tivesse alguns segredos, contá-los-ia em troca do ar do grande
pátio, e da música do Ofício.
— Não tenho tempo para ficar aqui à espera — disse Herluin.
— A minha missão é levar de volta para Ramsey todas as esmolas
que conseguir recolher, pelo menos com a boa vontade de
Worcester e Evesham. E a menos que seja feita uma acusação
secular contra Tutilo, tenho de levá-lo comigo. Se ele pecou contra a
lei da Igreja ou contra os Regulamentos da Ordem, compete a
Ramsey discipliná-lo. O seu abade deve encarregar-se de castigá-
lo. Mas com a permissão de todos os presentes, contrario a vossa
opinião, Padre Abade, de que ele cometeu uma ofensa ao remover
o relicário de Santa Winifred. Repito que se tratou de um roubo
sagrado, perpetrado por dever e reverência. A própria santa lhe deu
instruções para que o fizesse. Se assim não fosse, ela nunca teria
permitido que ele a levasse.
— Temo contrariar — declarou Robert Bossu na mais doce e
mais razoável das vozes, — mas devo observar que ela não deixou
que ele a levasse. A carroça que a transportava foi desviada e
roubada por vagabundos nas florestas dos meus domínios, e foi nas
minhas terras que ela veio descansar.
— Essa intervenção foi concretizada pela malícia de homens
maus — disse Herluin, irritado e com uma expressão feroz no olhar.
— Mas reconhece que o poder dessa santa pode frustrar e
frustrará a malícia dos homens maus. Se não considerou adequado
impedir os seus atos, deve ser porque eles serviam os seus
desígnios. Deixou passar o rapto de Shrewsbury, deixou passar o
roubo dos malfeitores. Veio descansar nos meus bosques, e foi
levada ao santuário da minha casa. De acordo com seu raciocínio,
padre, tudo isso, se de alguma coisa serve, teve de ser alcançado
através da sua vontade.
12

— Eu lembraria a ambos — disse o abade suavemente — que


se a Santa Winifred tem estado sempre a cumprir os seus desejos,
e a impô-los aos mortais, está de novo no seu altar, na nossa igreja.
Este deve ser, então, o fim que toda esta distração pretendia. E ela
está onde deseja estar.
O conde sorriu, um sorriso de uma sutileza e encanto
extraordinários.
— Não, Padre Abade, pois este último passo foi diferente. Ela
está aqui de novo porque eu, com uma pretensão minha para
apresentar, e com interesse noutra pretensão, para ser
absolutamente franco, a trouxe de volta para Shrewsbury, de onde
ela iniciou esta controversa odisseia, para que ela própria pudesse
escolher onde desejava descansar. Ela nunca mostrou qualquer
disposição de sair da minha capela, onde o seu repouso era
respeitado. Voluntariamente, eu trouxe-a comigo. No entanto, não
desisto da minha reivindicação. Ela veio ter comigo. Eu recebi-a
bem. Se for de sua vontade, levá-la-ei comigo para casa e
providenciarei um altar tão rico como o vosso.
— Vossa senhoria — declarou o prior Robert, tenso de
resistência e ultraje — o vosso argumento não vencerá. Embora os
santos possam usar-nos até a nós, criaturas fracas, para os seus
desígnios, então seguramente podem com mais graças usar a boa
vontade onde a encontram. O fato de a terdes trazido para aqui,
para a casa que ela escolheu, não vos dá mais direito a ela do que o
que nós temos, embora vos dê um crédito infinito. Santa Winifred
está feliz aqui há mais de sete anos, e foi para esta casa que
regressou. Não a deixará agora.
— No entanto, deixou claro ao irmão Tutilo — retorquiu Herluin,
irritando-se por sua vez — que tinha sentido compaixão por
Ramsey, uma abadia tão maltratada, e desejava beneficiar-nos no
nosso infortúnio. Não podeis ignorar que ela desejou partir e que
partiu para ir em nosso auxílio.
— Estamos os três decididos — disse o conde, com grande
serenidade e consideração. — Não deveríamos submeter a decisão
a algum assessor neutro e obedecer à sua decisão?
Fez-se um silêncio profundo e carregado. Depois Radulfus
disse, com composta autoridade: — Já temos um assessor. Deixai
que Santa Winifred declare abertamente a sua vontade. Ela foi uma
senhora muito culta no fim da sua vida. Interpretou as Escrituras
para as suas freiras, vai interpretá-las agora para os seus
discípulos. Na consagração de cada bispo, o prognóstico do seu
ministério é feito colocando os Evangelhos sobre os seus ombros, e
abrindo o livro para ler a frase que aparece. Levaremos a sortes
Biblicae para cima do relicário da santa, e não duvideis de que ela
julgará com clareza. Por que delegar a qualquer outra pessoa a
escolha que é dela por direito?
Quebrando o longo silêncio enquanto todos digeriam esta
opinião e se reajustavam a uma sugestão tão inesperada, o conde
disse com evidente satisfação... na verdade, como pareceu a
Cadfael, a transbordar de contentamento: — Concordo! Não poderia
haver um processo mais justo. Padre Abade, concedei-nos os dias
de hoje e de amanhã para colocarmos os nossos pensamentos em
ordem, para examinarmos as nossas reivindicações e refletirmos e
rezarmos apenas pelo que nos é devido. E que essas sortes sejam
tiradas no terceiro dia. Apresentaremos os nossos pedidos à
senhora, e aceitaremos o veredicto que ela nos oferecer.
— Esclarece-me — disse Hugh uma hora mais tarde, na oficina
de Cadfael, no herbário. — Não sou versado nos costumes dos
bispos e arcebispos. Exatamente como é que essas sortes Biblicae
que Radulfus tem em mente vão ser interpretadas? Oh, certamente
conheço a prática comum de ler o futuro abrindo o Evangelho ao
acaso, e pousando o dedo na página, mas como é esta utilização
oficial na consagração de um novo bispo? Seguramente, já é
demasiado tarde para a sorte mudar para melhor, se a palavra for
contra ele.
Cadfael retirou uma panela que fervia lentamente na grelha ao
lado da sua braseira, pousou-a no chão de terra para arrefecer, e
acrescentou duas turfas para abafar a chama, antes de se endireitar
com alguma cautela, e sentar-se ao lado do amigo.
— Eu próprio nunca assisti a uma consagração desse tipo —
disse ele. — Os bispos mantêm-na no seio do seu círculo.
Maravilha-me como os resultados nunca se sabem, mas acabam
por se saber. Ou alguém os inventa, é claro. Por vezes, sinto que
são demasiado exatos para serem verdadeiros. Mas sim, são
efetuados como o abade Radulfus disse, e muito solenemente,
segundo me disseram. O livro dos Evangelhos é pousado sobre os
ombros do bispo recém escolhido, e aberto ao acaso, e um dedo é
colocado na página...
— Por quem? — perguntou Hugh, pondo o dedo na falha fatal.
— Ora, isso foi coisa que nunca me ocorreu perguntar.
Seguramente, pelo arcebispo ou bispo que está a oficiar. Embora,
obviamente, pudesse ser amigo ou inimigo do novo homem. Confio
que agem com honestidade, mas quem sabe? Má ou boa, essa
frase é o prognóstico do futuro ministério do bispo. Por vezes,
bastante apto. Ao bom bispo Wulstan de Worcester saiu: "Acautelai-
vos bem com o Israelita, em quem não há artimanha." Alguns não
tiveram tanta sorte. Sabes, Hugh, quais foram as sortes mandadas a
Roger de Salisbúria, que desagradou a Stephen há não muitos anos
e morreu em desgraça? "Amarrai-lhe as mãos e os pés, e atirai-o
para as profundezas longínquas."
— É difícil acreditar! — exclamou Hugh, erguendo uma
sobrancelha céptica. — Ninguém pensou em associar-lhe isso
depois da sua queda? Pergunto a mim mesmo qual foi a reação do
céu a Henry de Winchester quando ascendeu ao bispado? Até a
mim ocorrem algumas frases que se aproximariam de mais do seu
calcanhar de Aquiles para o gosto dele.
— Creio — disse Cadfael — que foi alguma coisa de Mateus,
relacionada com os últimos dias quando os últimos falsos profetas
se multiplicaram entre nós. Algo do gênero de que se algum homem
gritasse: Aqui está Cristo! não acrediteis nele. Mas pode-se fazer
muito com a interpretação.
— Esse será o ponto crucial desta vez — disse Hugh, perspicaz
— a menos que os Evangelhos falem com toda a clareza, e não
possam ser mal interpretados. Por que supões que o abade sugeriu
esta solução? Sem dúvida que pode ser manipulada de forma a dar
as respostas certas. Mas não, suspeito, com Radulfus a mandar. Ele
está tão seguro da justiça divina?
Cadfael já tinha estado a refletir sobre o mesmo assunto, e só
podia concluir que o abade tinha de fato fé absoluta de que os
Evangelhos justificariam Shrewsbury na posse da sua santa. Nunca
deixava de se encantar com a ironia de esperar milagres de um
relicário em que os seus ossos só tinham estado durante três dias e
noites, antes de serem reverentemente devolvidos à terra galesa
onde ela nascera; e era ainda mais espantosa a infinita misericórdia
que transmitira graça apesar de todas aquelas milhas de distância,
perdoara a presença de um pobre pecador humano no caixão que
ela tinha abandonado, e deixara o esplendor do milagre pairar,
invisível, sobre o seu altar, imprevisível, acessível, uma sombra
travessa onde dava e onde negava, tal como os assuntos
milagrosos parecem ser, pelo menos ao olhar humano. Ela não
estava ali, nunca estivera, nunca no que restava da sua carne frágil;
no entanto, consentira certamente que a sua essência fosse trazida
para ali, e manifestara a sua presença com mercês assombrosas.
— Sim — disse Cadfael — eu penso que ele confia que
Winifred fará o que é certo. Estou convencido de que ele sabe que,
no fundo, ela nunca nos deixou, e nunca deixará.
Cadfael voltou para a sua oficina depois do jantar, para fazer a
última ronda da noite, abafar a braseira para arder lentamente até
de manhã, e certificar-se de que todos os frascos estavam tapados
e todas as garrafas e boiões devidamente arrolhados. Não esperava
visitas àquela hora, e girou sobre os calcanhares, surpreendido,
quando a porta atrás de si se abriu suavemente, quase
sorrateiramente, e a moça Daalny entrou. O brilho amarelo da sua
pequena candeia de azeite mostrou-a em trajes nada habituais, os
cabelos pretos presos numa fita encarnada, com caracóis
artisticamente soltos nas têmporas, o vestido comprido de um azul
mais escuro e brilhante que os seus olhos, e uma faixa dourada
entrançada à volta das ancas. Ela era muito rápida; percebeu o
olhar que a varreu da cabeça aos pés, e riu-se.
— As minhas roupas boas para quando ele recebe. Estive a
cantar para sua senhoria de Leicester. Agora eles estão a falar de
possibilidades pessoais, por isso escapuli-me. Já não sentirão a
minha falta. Penso que Rémy irá acompanhar Robert Bossu para
Leicester, se jogar bem os seus trunfos. E eu já vos disse que ele é
um bom músico. Leicester não sairá a perder.
— Ele necessita de novo dos meus medicamentos? —
perguntou Cadfael num tom prático.
— Não. E eu também não. — Estava inquieta, a mover-se
intranquila pela cabana como da outra vez que ali tinha estado,
curiosa, mas preocupada, e lenta para abordar o assunto que a
trouxera ali. — Bénezet anda a dizer que Tutilo foi preso por
homicídio. Diz que Tutilo matou o homem que enganou para que o
ajudasse a roubar a vossa santa. Isso não pode ser verdade —
disse ela com certeza absoluta. — Não há maldade nem violência
em Tutilo. Ele sonha. Não faz.
— Fez mais do que sonhar quando roubou a nossa santa —
referiu Cadfael razoavelmente.
— Ele sonhou com isso antes de fazê-lo. Oh, sim, ele pode ter
roubado, isso é um assunto completamente diferente. Desejava dar
ao seu mosteiro um presente maravilhoso, cumprir as suas visões e
ser valorizado e louvado. Duvido que roubasse para si próprio, mas
para Ramsey, sim, seguramente roubaria. Estava até a começar a
sonhar libertar-me da minha escravidão — disse ela, tolerante, e
sorriu com a alegria resignada de quem era experiente para além da
inocente compreensão de Tutilo. — Mas agora tende-o fechado à
chave, e sem boas perspectivas, aconteça o que acontecer. Se a
vossa santa vai ficar aqui agora, então mesmo que Tutilo escape à
lei do xerife, mesmo que Herluin o leve para Ramsey, vão fazê-lo
pagar pelo pecado que cometeu e não conseguiu concretizar com
sucesso. Vão obrigá-lo a passar fome e vão flagelá-lo. E se a coisa
correr pelo outro lado, e ele for considerado culpado de homicídio,
vão enforcá-lo. — Tinha chegado, finalmente, ao que queria saber.
— Onde o pusestes? Eu sei que ele está prisioneiro.
— Está na primeira cela da penitenciária, junto ao corredor da
enfermaria — disse Cadfael. — Só há duas, pois geralmente temos
poucos infratores. Pelo menos a porta trancada, destinada a prendê-
lo, também prende os seus inimigos do lado de fora, se é que ele
tem algum inimigo. Fui vê-lo há meia hora, e ele está profundamente
adormecido, e todas as aparências indicam que vai dormir até
amanhã, depois da Prima.
— Porque não tem qualquer peso na consciência — atirou
Daalny triunfalmente — exatamente como eu disse.
— Eu não diria que ele nos contou sempre toda a verdade —
disse Cadfael suavemente — se isso conta para a sua consciência.
Mas não lhe condeno o descanso, pobre criança, pois ele precisa.
Ela ignorou aquelas palavras sem lhes prestar muita atenção, e
franziu os lábios grandes.
— Claro que ele mente muito bem, faz parte das suas fantasias.
Teríeis de estar muito seguro dele e de vós para saber quando ele
está a mentir, e quando está a dizer a verdade. Um mentiroso
conhece outro! — concordou ela, desafiadora, fitando os olhos
intrigados de Cadfael. — Eu própria tive de ser uma boa mentirosa
para manter a cabeça à tona da água durante todo este tempo. Ele
também. Mas matar? Não, isso está muito para além das
capacidades dele.
E continuava sem vontade de se ir embora, a andar pela
cabana, a tocar com dedos compridos as prateleiras de recipientes,
esticando-se para tocar nos molhos de ervas pendurados por cima
da cabeça, mantendo-se de perfil voltado para ele. Ela queria saber
mais, mas não sabia bem como perguntar, ou melhor, como
descobrir o que precisava sem perguntar.
— Eles vão dar-lhe de comer, não vão? Não podeis deixar um
homem passar fome. Quem cuidará dele. Sois vós?
— Não — respondeu Cadfael pacientemente. — Os porteiros
levarão a comida. Mas eu posso visitá-lo. Posso, e vou. Moça, se
lhe desejas bem, deixa-o onde está.
— Tenho pouca escolha! — disse Daalny amargamente. Porém,
não com amargura excessiva, pensou Cadfael. Antes para
apresentar a aparência de resignação do que para aceitá-la. Ela
estava a começar a sonhar, e os seus sonhos levá-la-iam a agir. Só
precisava observar os movimentos do porteiro no dia seguinte para
saber as horas em que visitava o prisioneiro, e espiar onde eram
penduradas, lado a lado na casa do porteiro, as chaves da cela.
E o País de Gales não ficava longe, e em qualquer llys de um
príncipe naquele país, pequeno ou grande, uma voz como a de
Tutilo, uma mão tão hábil nas cordas, encontraria facilmente abrigo.
Mas fugir com a desconfiança de homicídio pendente sobre ele, e
com a ameaça sempre presente de perseguição e captura? Não,
era muito melhor ficar ali sentado e culpar o demônio. Pois Cadfael
tinha a certeza de que Tutilo nunca tinha sido violento com qualquer
homem, e não devia ficar marcado com essa desonra para a vida
inteira.
Daalny continuava sem pressa de se ir embora, como se
quisesse dizer ou perguntar mais alguma coisa, o seu minúsculo
rosto oval muito atento e os olhos semi velados mas muito
inteligentes atrás de compridas pestanas escuras. Depois, voltou-se
e saiu muito calmamente. Da soleira da porta, disse: — Boa noite,
Irmão! — sem voltar a cabeça, e fechou a porta depois de sair.
13

Na hora Cadfael pensou pouco no assunto, concluindo que ela


não estava apreensiva a ponto de tentar realmente transformar o
seu sonho indignado em ação. Mas no dia seguinte reconsiderou,
quando a viu a vigiar o corredor do porteiro a partir do refeitório
antes do meio-dia, e a segui-lo com os olhos quando ele apareceu
entre a enfermaria e a sala de aulas, onde as duas pequenas celas
de pedra estavam construídas no ângulo da parede, perto da
portinhola que dava acesso ao moinho e à represa. Quando ele
desapareceu, ela atravessou o grande pátio para a casa do porteiro,
atravessou a porta aberta, aparentemente sem olhar em volta, e
ficou durante alguns minutos no portão, a olhar para Foregate, antes
de voltar para trás e dirigir-se para a ala dos hóspedes. A placa que
continha as chaves a cargo do porteiro estava pendurada do lado de
dentro da porta, e ela tinha uma visão suficientemente apurada para
ver o prego que estava vazio, e a companheira da chave ausente
mesmo ao lado. Semelhantes em tamanho e aparência geral, mas
não no denteado que as fazia funcionar.
E até mesmo esta vigilância discreta podia apenas fazer parte
da sua fantasia. Talvez nunca tentasse transformá-la em realidade.
No entanto, antes da tarde Cadfael falou com o porteiro. Ela não
poderia dar qualquer passo antes do lusco-fusco ou até da
escuridão; não havia necessidade de observar a passagem do
almoço de Tutilo, pois agora já sabia qual a chave de que precisava.
Só era preciso que o porteiro a recolocasse no prego errado antes
de ir para as Completas, e lhe deixasse a gêmea inútil.
Não a vigiou; não havia necessidade, e estava quase
completamente convencido de que não aconteceria nada. A posição
dela era tão vulnerável que não se atreveria. Assim, o dia passou
normalmente, com o ritual imutável de trabalho e leitura, estudo e
oração pontuado pelo passar regular das horas. Cadfael efetuou as
suas tarefas ainda mais assiduamente porque uma parte da sua
mente estava noutro lado, e sentia esta ausência como culpa,
embora a sua preocupação se prendesse com um caso sério de
justiça, culpa e inocência. Tinha de existir uma forma de ilibar Tutilo
de um opróbrio que não merecia, independentemente das
penalizações que pudesse merecer pelas suas verdadeiras ofensas.
Aqui no enclave, a prisão significava também proteção de uma
ameaça secular; a Igreja cuidava dos seus, até dos seus
delinquentes. Uma vez no exterior, a menos que fosse ilibado de
todas as suspeitas, seria um fugitivo, sujeito a todos os rigores da
lei, e o próprio ato de fuga seria uma prova contra ele. Não, ele tinha
de permanecer ali até poder sair sem mácula.
Eram quase horas das Completas quando Cadfael saiu do
jardim após a última ronda da tarde, e viu cavaleiros a entrarem o
portão. Sulien Blount, num cavalo castrado malhado, conduzindo um
garrano castanho pela rédea, já aparelhado para montar, e atrás
dele dois escudeiros de serviço. A esta hora, ao lusco-fusco, era
uma invasão inesperada. Cadfael foi recebê-los quando Sulien
desmontou para falar apressadamente com o porteiro. Apenas um
assunto de muita urgência teria trazido mensageiros de Longner
àquela hora tão tardia.
— Que é, Sulien? Que te traz aqui a esta hora? Sulien virou-se
para ele, aliviado.
— Cadfael, tenho um pedido para fazer ao abade. Ou talvez
precisemos de que interceda por nós junto do sub prior de Ramsey,
nada menos... A minha mãe pede a presença daquele jovem músico
dele, Tutilo, o que já tocou e cantou para ela antes, e a ajudou a
dormir. Ela gostou dele, e ele dela. Desta vez será um sono mais
longo, Cadfael. Ela não vai passar desta noite. E há uma coisa que
quer e precisa de fazer... eu não questionei. E vós também não o
faríeis, se pudésseis vê-la...
— O rapaz que pretendes está preso — disse Cadfael,
consternado. — E suspeito de crimes quando a senhora mandou
chamá-lo, há duas noites. Ela está tão perto do fim? O abade
dificilmente poderá deixá-lo ir vê-la a menos que tenha garantias do
seu regresso.
— Eu sei — declarou Sulien. — Hugh Beringar esteve conosco,
eu sei o que se passa. Mas sob escolta... Podeis ver que
tomaremos conta dele, e o traremos de volta amarrado, se preciso
for. Pelo menos perguntai! Dizei a Radulfus que é o último pedido
que ela lhe faz. A misericórdia da morte demorou a chegar, mas
juro-vos que agora é o fim. Ele conhece toda a história dela, vai
escutar-vos!
— Espera — disse Cadfael — eu vou perguntar-lhe.
— Mas, Cadfael... há duas noites? Não, não mandamos chamá-
lo há duas noites.
Bem, não era muito surpreendente. Cadfael já andava há algum
tempo a pensar nessa possibilidade. Não, fora demasiado apto,
demasiado oportuno. Ele descobrira o que o esperava, e saíra do
local durante o tempo necessário, esperara, para escapar ao
julgamento. Agora, não fazia diferença.
— Não, não importa, já tinha percebido — disse ele. — Espera
aqui por mim!
O abade Radulfus estava sozinho na sua sala de estar
apainelada. Escutou este último pedido com o sobrolho carregado e
olhos pensativos. E depois de ouvir, disse sombriamente: — Já era
mais que tempo de ela ir. Como podemos negar-lhe um pedido?
Dizes que eles têm guardas suficientes para impedir uma fuga? Sim,
deixa-o ir.
— E o padre Herluin? Não deveríeis pedir-lhe autorização
também a ele?
— Não. Tutilo está dentro da minha casa e ao meu cuidado. Eu
dou-lhe autorização. Vai pessoalmente, Cadfael, e entrega-o a eles.
Se ela tem tão pouco tempo, não percamos nenhum.
Cadfael voltou rapidamente para a casa do porteiro.
— Ele virá. Temos a autorização do abade. Espera que eu vou
buscar o rapaz.
Ficou pouco surpreendido quando foi buscar a chave do seu
prego na casa do porteiro e constatou que o prego do lado também
estava vazio. Tudo estava a acontecer agora com uma certeza
distante, como se fosse um sonho. Afinal de contas, Daalny tinha
agido; devia ter tirado a segunda chave durante as Vésperas, do
prego onde ao meio-dia vira o porteiro pendurar a primeira, mas
tivera de esperar pela quase escuridão antes de a usar. Agora seria
o seu tempo de eleição, numa altura em que os irmãos estariam
reunidos na igreja para as Completas. Cadfael deixou os
mensageiros de Longner a esperar ansiosamente do lado de dentro
do portão, e virou rapidamente a esquina da sala de aulas para as
celas penitenciárias, onde sombras mais profundas enchiam já o
corredor estreito para a portinhola na parede do enclave, e para o
moinho e represa do outro lado.
E ela estava lá. Ele sentiu a sua presença imediatamente,
embora ela fosse apenas mais uma sombra esguia muito encostada
à funda soleira da porta da cela. Ouviu a chave a rodar inutilmente
no denteado da fechadura que não era a sua, e a sua respiração
vexada, furiosa, enquanto lutava para a fazer entrar onde ela não
servia. Ouviu-a bater os pés numa raiva frustrada, e ranger os
dentes, demasiado concentrada para se aperceber da aproximação
dele até ele esticar um braço para desviá-la, com bastante
delicadeza.
— Não adianta, criança! — disse. — Dá-me licença!
Ela soltou um grito abafado de desespero, e afastou-se
furiosamente do aperto dele. Não vinha qualquer som do interior da
cela, embora a pequena candeia do prisioneiro estivesse acesa,
como se via pelo brilho que passava pela janela alta, com grades.
— Agora espera! — disse Cadfael. — Tens uma mensagem
para transmitir aqui, e eu também. Vamos tratar disso. — Inclinou-se
para pegar na chave errada, que saíra da fechadura e lhe caíra da
mão quando ela começara a afastar-se. — Vem, e eu deixo-te
entrar.
A chave certa rodou suavemente na pesada fechadura, e
Cadfael abriu a porta. Tutilo estava de pé, voltado para eles, direito
e rígido, o rosto uma chama estreita e pálida, os olhos cor de âmbar
muito abertos e assustados. Ele não fazia ideia dos planos dela, não
sabia o que esperar agora, por que é que aquela porta trancada se
abrira naquele momento, ao fim do dia, depois de todas as visitas
autorizadas terem terminado.
— Diz o que vieste aqui dizer-lhe — disse Cadfael. — Mas
depressa. Não percas tempo, pois eu não tenho nenhum para
perder, e ele também não.
Daalny ficou tensa e perdida por um momento, antes de se
atirar pela porta aberta, como se temesse que a porta fosse fechada
de novo antes de ela poder impedir, apesar de Cadfael não se ter
mexido. Tutilo estava a olhar, embasbacado, para um e para o
outro, sem perceber, quase sem os reconhecer.
— Tutilo — disse ela, em voz baixa e urgente — vem embora
agora. Passas a portinhola, e estás livre. Ninguém te verá, quando
estiveres fora destas muralhas. Estão todos nas Completas. Vai,
depressa, enquanto há tempo. Vai para oeste, para o País de Gales.
Não fiques aqui à espera de seres transformado num bode
expiatório, vai, agora... depressa!
Tutilo despertou com um estremecimento e um susto, e chamas
douradas brilharam nos seus olhos.
— Livre? Que fizeste? Daalny, eles vão voltar-se para ti... —
Virou-se para olhar para Cadfael, tenso e a tremer, sem saber se
estava perante um amigo ou um inimigo. — Não compreendo!
— Foi isso que ela veio dizer-te — declarou Cadfael. — Eu
também tenho uma mensagem para ti. Sulien Blount está aqui com
um cavalo para ti, e implora a tua presença junto da sua mãe, agora,
imediatamente, pois Lady Donata está a morrer, e pede para te ver
novamente, e ouvir-te, antes de falecer.
Tutilo assumiu uma imobilidade marmórea. As chamas
amarelas escureceram e suavizaram-se no brilho puro de uma
fogueira. Os seus lábios moveram-se, dizendo o nome em silêncio:
"Donata?"
— Vai. Agora! — ordenou Daalny, perdida a raiva agora que
tinha um adversário que não podia ser ignorado. — Atrevi-me a
fazer isto por ti, como te atreves agora a desprezar o meu ato? Vai,
enquanto há tempo. Ele é apenas um e nós somos dois. Ele não
pode impedir!
— Eu não impediria — disse Cadfael. — É ele que tem de
escolher.
— Está morrendo? — disse Tutilo, aclarando a voz, calmo e
pesaroso. — De verdade, ela está morrendo?
— E a chamar por ti — declarou Cadfael. — Como disseste que
fez há duas noites. Mas esta noite é verdade, e esta noite será a
última vez.
— Tu ouviste — disse Daalny, inquieta mais imóvel. — A porta
está aberta. Ele diz que não impedirá. Escolhe, então! Eu fiz a
minha parte.
Tutilo não pareceu ouvi-la.
— Eu usei-a! — disse, lamentavelmente abalado. E a Cadfael
perguntou, duvidoso: — E Herluin deixa-me ir?
— Não Herluin, mas o abade deixa-te ir. Se me deres a tua
palavra de honra que regressarás, e sob escolta.
De repente Tutilo segurou Daalny com as duas mãos, com
pesarosa suavidade, e desviou-a da porta. Ergueu uma mão com
um ardor abrupto, convulsivo, e acariciou-lhe a face, dedos
compridos percorreram-na eloquentemente desde a têmpora até ao
queixo num gesto de impotente desculpa.
— Ela quer-me — disse suavemente. — Tenho de ir para junto
dela.
Daalny esqueceu a ira e deixou de implorar logo que a escolha
foi feita, e feita de tal maneira que soube que não seria alterada.
Seguiu até à esquina da sala de aulas e ficou a observar em silêncio
enquanto Tutilo montava, e o pequeno grupo saiu o portão e virou
para Foregate. O caminho mais largo da Feira dos Cavalos era
melhor para cavalgar; não teriam de passar pelo carreiro estreito
onde ele tropeçara no cadáver de Aldhelm.
O sino para as Completas tocou, o tempo que ela dera a si
própria para o ajudar a fugir pela portinhola, para um mundo ao qual
ele começava, talvez, a lamentar não se ter entregue, mas que
talvez se tivesse revelado nada hospitaleiro para um noviço
Beneditino em fuga. Fosse como fosse, seria todavia melhor, pelo
menos ela assim pensara, pôr vinte milhas e uma fronteira entre ele
e um enforcamento. Agora estava pensativa, com o som dos sinos
nos ouvidos, a refletir. E quando Cadfael voltou lentamente para
junto de si no pátio vazio, ficou no caminho dele de olhos abertos, a
enfrentá-lo com gravidade como se conseguisse penetrar nos
recessos mais recônditos da mente dele.
— Também não acreditais que ele cometeu aquele crime —
disse ela com certeza. — Sabeis que ele nunca fez mal àquele
pobre pastor. Teríeis realmente ficado de lado e permitido que ele
fugisse?
— Se ele tivesse escolhido esse caminho — disse Cadfael —
sim. Mas sabia que ele não o faria. A escolha era dele. Ele
escolheu. E agora vou para as Completas.
— Esperarei na vossa oficina — disse Daalny. — Tenho de falar
convosco. Agora que tenho a certeza, agora contarei tudo o que sei.
Mesmo que nada prove seja o que for, mesmo assim podereis ver
alguma coisa que eu não vi. Ele precisa de uma inteligência maior
do que a minha, e duas pessoas a apoiá-lo será melhor do que uma.
— Pergunto a mim mesmo agora — disse Cadfael, a observar o
seu rosto magro, inteligente e decidido — se querias aquele jovem
para ti, ou se é apenas bondade desinteressada. — Ela olhou para
ele, e sorriu lentamente. — Bem, eu já volto — disse ele. —
Também preciso de uma segunda opinião. Se estiver frio lá dentro,
podes usar o fole na braseira. Tenho turfas suficientes para abafá-la
novamente antes de sairmos da oficina.
No ar fechado da cabana, com odor a madeira, com ervas a
balouçar por cima da cabeça e o calor que se erguia da braseira, ela
sentou-se inclinada para o brilho, a luz a emoldurar-lhe as maçãs do
rosto altas e as sobrancelhas finas por baixo dos cabelos pretos,
encaracolados.
— Sabeis agora — disse ela — que ele não foi mandado
chamar a Longner naquela noite. Era uma história plausível, mas o
que ele queria era ter um motivo para estar noutro lugar, para não
estar aqui quando o pastor chegasse. Não teria sido o fim de tudo,
mas adiaria o pior, e Tutilo raramente pensa para além do momento
presente. Se conseguisse evitar o encontro com o pobre homem por
alguns dias, esta contenda pelos ossos da santa seria resolvida, um
dia ou outro, e Herluin partiria para mais uma das suas viagens, e
levaria Tutilo consigo. Não que isso lhe prometa uma grande vida —
acrescentou ela, espetando um lábio duvidoso — agora que ele está
a ultrapassar a sua santidade. Se os destinos bíblicos se virarem
contra ele, Herluin descarregará todo o aborrecimento e vergonha
em Tutilo, com usura. Sabeis isso tão bem como eu. Estes
monásticos são como nascem, vingativos. Se vêm ao mundo duros
e frios, acabam ainda mais duros e mais frios, se vêm generosos e
doces, tornam-se cada vez mais generosos e mais doces. Ou são
uma coisa ou a outra. E no preciso momento em que Tutilo
começava a despertar para onde pertence, e para aquilo que
nasceu — disse ela, veementemente. — Bem, foi isso. Ele mentiu
em relação a Longner para ficar longe daqui durante todo o serão.
Agora tem uma dívida para com a senhora, e vai pagá-la.
— É mais do que uma dívida — disse Cadfael. — Aquela
senhora conquistou-o a primeira vez que ele pousou os olhos nela.
Teria ido para junto dela independentemente do peso que pudesses
pôr no outro prato da balança. E o que estás a dizer-me é que ele
sabia muito bem que Aldhelm vinha aqui naquela noite. Como é que
soube? Nunca foi comunicado aos irmãos. Apenas o abade e eu
sabíamos, embora ele pudesse ter sentido que devia contar ao prior
Robert.
— Ele soube — disse ela com simplicidade — porque eu lhe
disse.
— E como é que soubeste?
Ela ergueu os olhos bruscamente, e ficou alerta.
— Sim, é verdade, poucas pessoas sabiam. Foi bastante por
acaso. Bénezet ouviu o prior Robert e o irmão Jerome a falarem no
assunto, e veio contar-me. Sabia que eu avisaria Tutilo, creio que
queria que o fizesse. Ele sabia — disse Daalny — que eu gostava
de Tutilo.
As palavras mais simples e mais sóbrias são as melhores para
expressar sentimentos complexos e imoderados. Ela dissera mais
do que tinha consciência.
— E ele? — disse Cadfael, com cuidado desinteresse.
Mas ela não era assim tão simples. As mulheres nunca são
simples, e ela era uma mulher que experimentara mais da vida do
que os seus anos podiam abarcar.
— Ele quase não sabe o que sente — disse ela — por mim ou
seja pelo que for. O vento empurra-o. Ele vê um sonho esplêndido, e
atira-se de cabeça. O sonho monástico está agora a desvanecer-se.
Eu sei que tem esplendor, mas não para ele. E ele não é homem
para continuar nele só para ter paz e calma bem-aventurança.
— Diz-me, então — pediu Cadfael calmamente — o que
aconteceu naquela noite, depois de ele ter pedido e obtido
autorização para ir a Longner.
— Eu teria contado imediatamente — disse ela pesarosamente
— mas não o teria ajudado. Pois não restavam quaisquer dúvidas
de que ele estava naquele caminho, que encontrou a pobre alma
morta, que correu para o castelo, como um homem honesto, e
contou ao xerife o que tinha encontrado. O que eu posso dizer não
muda isso. Mas se conseguirdes encontrar um grão de bom trigo no
que tenho para dizer, por amor de Deus encontrai-o e mostrai-me,
pois escapou-me.
— Conta-me — pediu Cadfael.
— Combinamos os dois — disse ela — e foi a primeira vez que
nos encontramos fora daquelas muralhas. Ele saiu e seguiu o
carreiro que segue pela cumeeira para a barcaça. Eu escapuli-me
pelos portões duplos do cemitério para a Feira dos Cavalos, e fomos
para o sótão por cima do estábulo. Naquela altura o postigo das
portas principais ainda estava destrancado, depois de terem trazido
os cavalos a seguir à cheia. Foi mais de uma semana antes de o
pátio do estábulo secar completamente. E foi ali que estivemos
juntos, até ouvirmos o sino para as Completas. Pensamos que
nessa altura ele já teria vindo e ido embora. Tão tarde, e a noite
estava escura.
— E a chover — lembrou-lhe Cadfael.
— Isso também. Não era uma noite para andar na estrada.
Pensamos que já teria ido para casa, e que seria suficientemente
esperto para não fazer outra viagem em vão.
— E que fizestes durante todo esse tempo? — perguntou
Cadfael.
Ela sorriu tristemente.
— Conversamos. Sentamo-nos juntos no feno para nos
mantermos quentes, e conversamos. Da vocação que ele abraçou
livremente, e de eu ter nascido escrava e sem nenhuma alternativa,
e, no fim, comentamos como éramos parecidos — disse ela
duramente. — Eu nasci na armadilha, ele caminhou para ela para
evitar outro gênero de servidão, de olhos abertos, mas sem olhar
para onde ia. E agora que está amarrado de pés e mãos tem
grandes planos para me libertar.
— Tu também lhe ofereceste a liberdade esta noite. Bem, e
depois? Ouviram o sino das Completas, e pensaram que era seguro
regressar. Então como é que ele veio sozinho pelo caminho da
barcaça?
— Não nos atrevemos a voltar juntos. Ele podia ser visto a
regressar, e era preciso que voltasse pelo caminho que teria tomado
para Longner. Eu entrei sorrateiramente pelo portão do cemitério,
como tinha saído, e ele foi pelas árvores para o carreiro que tinha
percorrido para ir ter comigo. Não teríamos podido voltar juntos. Ele
renunciou às mulheres — disse ela com um sorriso amargo — e eu
não posso ter contatos com homens.
— Ele ainda não tomou os votos finais — disse Cadfael. —
Porém, é uma pena ter ido sozinho. Se duas pessoas tivessem
encontrado um homem morto, poderiam falar uma pela outra.
— Nós os dois? — disse ela, a olhar, e soltou uma breve
gargalhada. — Não teriam acreditado em nós... uma escrava e um
noviço próximo dos seus votos finais sozinhos no meio da noite e
acabados de dar uma cambalhota no feno? Teriam dito que
conspiramos juntos para matar o homem. E agora, suponho — disse
ela, passando da amargura para uma tristeza composta — já vos
contei tudo, e não vos contei nada. Mas é toda a verdade. Tutilo
pode ser um bom mentiroso e um bom ladrão, mas na maioria das
acusações é tão inocente como um bebê. Até rezamos as orações
da noite juntos quando o sino soou. Quem vai acreditar nisso?
Cadfael acreditava, mas podia imaginar o rosto de Herluin se a
pergunta lhe tivesse sido feita a ele.
— Pelo menos, disseste-me — disse ele, pensativo — que
havia mais pessoas que estavam a par de que Aldhelm viria por
aquele caminho do que apenas os poucos que sabiam quando tudo
começou. Se Bénezet ouviu Jerome a contar o que sabia, pergunto
a mim mesmo quantas mais pessoas souberam antes de anoitecer?
O prior Robert sabe ser discreto, mas Jerome?... Duvido. E Bénezet
não poderia ter passado todos os seus conhecimentos para Rémy,
como fez contigo? Tudo o que o criado descobre pode ser lucrativo
para o patrão. E o que Rémy ouve pode muito bem ser contado ao
patrono que ele está a cortejar. Oh, não, eu não diria que esta hora
foi totalmente perdida. Significa que tenho muito que pensar. Vai
para a tua cama agora, criança, e esquece as preocupações
durante algum tempo.
— E se Tutilo nunca voltar de Longner? — perguntou ela,
indecisa entre esperança e medo.
— Não percas tempo a pensar nisso — disse Cadfael. — Ele
voltará.
Trouxeram Tutilo de volta muito antes da Prima, na luz
esbranquiçada de uma madrugada clara e calma. Março tinha
entrado mais cordeiro do que leão, havia anêmonas nos bosques, e
as primeiras prímulas, não queimadas pelo gelo, não quebradas
nem atoladas pela chuva, começavam a abrir. Os dois homens de
Longner, que tinham vindo um de cada lado do menestrel
emprestado, trouxeram-no até à casa do portão, e esperaram em
silêncio que ele desmontasse. As despedidas que trocaram, quando
pegaram na rédea do cavalo e se voltaram para regressar a casa,
foram discretas e contidas, mas claramente amistosas. O mais velho
dos dois inclinou-se na sela para lhe dar uma pancada amigável no
ombro, e disse-lhe uma ou duas palavras ao ouvido, antes de se
afastarem a trote por Foregate em direção à Feira dos Cavalos.
Nessa altura, Cadfael já estava acordado e no campo há mais
de uma hora, pois precisava de sossego, e preenchera o tempo a
passear pelas bermas das suas leiras de ervilhas e pela margem da
represa do moinho para apanhar as flores brancas do espinheiro
negro, no momento em que abriam e na melhor altura para infusões,
para fazer uma purga suave para os idosos na enfermaria, que já
não podiam fazer os exercícios extenuantes que antes tinham
mantido os seus corpos em boa forma. Uma planta muito boa, o
espinheiro negro, boa para quase tudo o que afligia os interiores de
um homem, desde que o rebento e a flor e o fruto preto amargo
fossem apanhados no momento certo. Também eram bons nas
sebes, para manter o gado bovino e as ovelhas longe dos locais
plantados.
De vez em quando interrompia o seu trabalho para voltar ao
grande pátio para ver se Tutilo regressava. Tinha uma sacola cheia
das pequenas flores brancas quando fez a viagem pela sétima vez,
e viu os três cavaleiros passarem pela casa do porteiro. Deixou-se
ficar escondido a ver Tutilo desmontar, separar-se amistosamente
dos seus guardas, e dirigir-se, abatido, para a porta da casa do
porteiro, como se ele próprio fosse buscar a chave e entregar-se
respeitosamente ao seu cativeiro.
Caminhava com um passo um pouco incerto, e com a cabeça
loura debruçada sobre algo que trazia nos braços. Uma vez,
tropeçou nas pedras. A luz, a clarear e a aumentar para o dourado
pálido das prímulas aonde os seus raios oblíquos chegavam, ainda
deixava a casa do porteiro e o pátio dentro dos portões na
escuridão, e Tutilo mantinha o olhar nas pedras e caminhava com
cuidado, como se não conseguisse ver bem o caminho. Cadfael foi
ao encontro dele, e o porteiro, que ouvira o ruído da chegada e veio
para a porta do seu alojamento, parou à soleira da porta, e deixou
Cadfael, na qualidade de mais velho na casa, encarregar-se do
prisioneiro recém-chegado.
Tutilo não ergueu o olhar até estarem muito próximos, e depois
piscou os olhos e espreitou como se tivesse dificuldade em
reconhecer até mesmo um rosto muito familiar. Tinha os olhos
raiados de vermelho, o brilho dourado embotado por uma noite sem
dormir, e talvez também de chorar. O fardo que ele carregava com
uma ternura tão curiosa era uma sacola de pele macia, com um
objeto rígido no interior, que lhe enchia os braços e estava
ciosamente encostado ao coração, com as tiras de fechar a sacola
enroladas num pulso por uma questão de segurança, como se
tivesse pavor de perdê-lo. Olhou para Cadfael por cima do seu
tesouro, e chispas pequenas e cautelosas brilharam nos seus olhos,
e evidenciaram ansiedade e dor quase imediatamente. Num tom de
voz insípido e gelado, disse: — Ela morreu. Sem um
estremecimento ou um gemido. Pensei que tinha adormecido com o
meu canto. Continuei... o silêncio poderia perturbar o seu
descanso...
— Fizeste bem — disse Cadfael. — Ela esperou muito tempo
pelo descanso. Agora, nada pode perturbá-lo.
— Voltei logo que me pareceu correto. Não quis deixá-la sem
me despedir devidamente. Ela foi bondosa para mim. — Não estava
a referir-se a senhora para criado ou patrona para protegido.
Houvera outro tipo de bondade entre eles, benéfica para ambos. —
Estava com receio de que pensásseis que eu não ia voltar. Mas o
padre disse que ela não podia viver até de manhã, por isso não
pude deixá-la.
— Não havia pressa — disse Cadfael. — Eu sabia que virias.
Tens fome? Entra em casa e senta-te um pouco, e vamos arranjar-te
de comer e de beber.
— Não... eles deram-me de comer. Teriam arranjado uma
cama, mas não fazia parte da combinação que eu ficasse depois de
ser mais necessário. Eu cumpri o acordo. — Foi acometido por um
bocejo inesperado que lhe deixou os olhos cheios de água. —
Agora, preciso da minha cama — disse ele, trêmulo.
A única cama que ele podia reclamar naquele momento era a
da sua cela penitenciária, mas dirigiu-se para ela, ansioso, contente
por ter uma porta trancada entre ele e o mundo. Cadfael tirou a
chave ao porteiro, que estava ali perto com alguma ansiedade, mas
aliviado ao ver um delinquente por quem poderia ser
responsabilizado regressar docilmente para a sua prisão. Cadfael
acompanhou Tutilo para a cela, e observou-o a dirigir-se,
agradecido, para o catre estreito. O rapaz sentou-se por um
momento, pousando o fardo a seu lado com uma espécie de
suavidade acariciadora.
— Ficai um pouco — disse o rapaz, por fim. — Vós conhecias
bem a senhora. Eu cheguei tarde. Como é que ela teve forças para
olhar para mim, tão atormentada como estava? — Ele não queria
resposta, e de qualquer maneira não podia haver nenhuma. Mas por
que não haveria uma mulher que estava morrendo cedo demais
para os seus anos e tarde demais para seu conforto apreciar a visita
inesperada da juventude e da frescura e da beleza, embora
imperfeita, e ainda mais pela sua vulnerabilidade e impotência num
mundo nada complacente com os fracos.
— Proporcionaste-lhe um prazer intenso. O que ela conheceu
mais intimamente nos últimos anos foi dor intensa. Creio que ela te
viu muito claramente, melhor do que algumas pessoas que vivem ao
teu lado e que parecem cegas. Melhor, talvez, do que tu próprio vês.
— A minha vista é tão boa como precisa de ser — declarou
Tutilo. — Eu sei o que sou. Ninguém precisa ser um anjo para
cantar como um. Não há qualquer virtude nisso. Tinham trazido a
harpa para o quarto, para mim, com cordas novas. Pensei que seria
muito alto para ela, ali entre paredes fechadas, mas era o seu
desejo. Conheceste-a, Cadfael, quando ela era mais jovem, e forte,
e bela? Toquei durante algum tempo, e depois aproximei-me para
olhar para ela, porque estava tão imóvel que pensei que
adormecera, mas ela tinha os olhos completamente abertos, e tinha
cor, muito rosada, na parte superior das faces. Não parecia tão
magra e velha, e os seus lábios estavam vermelhos e cheios, e
curvados, como num sorriso, mas não exatamente um sorriso. Tive
a certeza de que ela me reconheceu, mas nunca falou, nunca, ao
longo de toda a noite. Eu cantei para ela, alguns dos hinos da
Virgem, e depois, não sei por que, mas não havia ninguém para me
dizer para fazer, nem para não fazer, e foi a forma como senti que
ela me levava, embora estivesse completamente imóvel, e a ficar
mais jovem porque já não tinha dor... cantei cantigas de amor. E ela
ficou contente. Só tive de olhar para ela, e percebi que estava
contente. E por vezes a esposa do jovem senhor entrava
sorrateiramente e sentava-se a escutar, e trazia-me de beber, e
outras vezes a senhora com quem o irmão mais novo vai casar. O
padre deles já a tinha absolvido. Na madrugada, aproximadamente
às três horas, ela deve ter morrido, mas eu não sabia... Pensei que
ela tinha adormecido verdadeiramente, até que a jovem entrou e me
disse.
— Tinha adormecido verdadeiramente — disse Cadfael. — E se
os teus cânticos a acompanharam no escuro, ela teve uma boa
passagem. Não temos que lamentar nada. Ela esperou este fim
pacientemente.
— Não foi isso que me arrasou — disse Tutilo com
simplicidade. — Mas vede o que se seguiu. Vede o que eu trouxe
comigo.
Abriu a boca do saco de pele que estava a seu lado e enfiou a
mão para tirar com extremo cuidado o mesmo saltério que tocara no
quarto de Donata, a caixa de ressonância polida e as cordas
esticadas a brilhar como novas. Uma tecla partida tinha sido
substituída por outra nova, e tinha três cordas novas de tripa.
Pousou-o a seu lado, e acariciou as cordas, criando uma difusão de
som argentino.
— Ela deu-me. Depois de ter falecido, e de termos rezado por
ela, o filho, o mais novo, trouxe-o, todo arranjado como vedes, e
disse que ela desejara que fosse para mim, pois um músico sem um
instrumento é um guerreiro sem arma nem armadura. Ele contou-me
tudo o que ela disse quando o confiou para que me entregasse. Ela
disse que um trovador só precisa de três coisas, um instrumento,
um cavalo e o amor de uma mulher, e desejava dar-me o primeiro,
mas eu teria de arranjar os outros dois. Até mandou penas novas
para mim, e algumas de reserva.
A sua voz foi ficando mais baixa e infantil de assombro e os
seus olhos marejaram-se de lágrimas, ao recordar para descrever
aquela adivinhação brincalhona que ainda poderia prever um futuro
muito longe do claustro, que de qualquer maneira começava já a
perder o encanto visionário para ele. Ela podia muito bem ter razão.
Ela tinha-o visto não como um ser espiritual, mas como um corpo
vigoroso e jovem, cheio de potencialidades não testadas. E os
moribundos, e talvez ainda mais, as moribundas, revelavam-se de
vez em quando oráculos formidáveis.
Longe do dormitório, do outro lado do pátio, soou o sino para a
Prima. Cadfael pegou no saltério com todo o respeito, e pousou-o
em segurança na pequena mesa de orações.
— Tenho que ir. E tu, se seguires o meu conselho, vais dormir,
e esquecer tudo o resto, enquanto nós vamos tentar as sortes
Biblicae. Fizeste bem à senhora, e ela fez-te bem a ti. Com a sua
graça, e algumas orações que nós rezemos por ti, dificilmente
poderás ir amaldiçoado.
— Oh, sim — disse Tutilo, com os olhos cansados dilatados. –
É hoje, não é? Tinha-me esquecido. — A sombra momentânea
tocou-o, mas não o intimidou; de certa forma, ele tinha ultrapassado
o medo por si próprio.
— E agora podes esquecer novamente — disse Cadfael
firmemente.
— Tu, mais do que ninguém, devias ter fé na santa pela qual te
meteste neste apuro. Deita-te e dorme descansado, e acredita em
Santa Winifred. Não pensaste que nesta altura ela já deve estar
farta de se sentir tratada como um osso entre três cães? E se há
algum tempo te confiou os seus pensamentos, achas que não pode
deixá-los bem claros para nós, hoje, em público? Dorme a manhã
inteira, e deixa-a dispor de todos nós.
Na meia hora entre o cabido e a Missa Solene, quando Cadfael
estava ocupado a escolher a sua safra de rebentos de espinheiro
negro na oficina, a tirar espinhos ocasionais e fragmentos de galhos
escuros e duros, Hugh veio partilhar as respigas dos seus próprios
trabalhos. Eram bastante magras, mas pelo menos o barqueiro
pudera dar-lhe uma informação que talvez viesse a revelar-se útil.
— Naquela noite ele nem sequer se aproximou de Longner.
Nunca atravessou o rio. Tu sabes isso, suponho? Não, mas o outro
pobre infeliz atravessou, e o barqueiro recorda-se de quando foi.
Parece que o padre da paróquia de Upton tem um criado que visita
a família do irmão em Preston uma vez por semana, e nessa noite
aquele homem percorreu a estrada de Upton até Preston
juntamente com Aldhelm, que trabalha na propriedade, e vive na
aldeia mais próxima. Um pastor nunca pode ter a certeza da hora a
que o seu dia de trabalho vai terminar, mas o criado do padre sai de
Upton logo que acabam as Vésperas, e foi o que fez desta vez. Diz
que deve ter sido um pouco antes da sexta hora que Aldhelm se
separou dele em Preston, para se dirigir para o barco. Dali, a
travessia e a distância que ele tinha percorrido no carreiro, até ao
lugar onde foi encontrado, não demorariam mais de meia hora —
menos, se ele andasse depressa, e estava a chover, por isso não
demoraria mais do que o necessário. Parece-me que ele foi
apanhado e morto cerca de um quarto de hora ou meia hora depois
das seis. Dificilmente depois disso. Ora, se o teu rapaz pudesse
dizer-nos exatamente onde estava, enquanto era suposto estar em
Longner, e melhor ainda, se nos trouxesse uma testemunha para
confirmar a sua história, isso o livraria do crime.
Cadfael voltou-se para ele e olhou-o longamente, pensativo, e
algumas pétalas brancas que tinham flutuado e ousado no tecido
grosso da sua manga apanharam a corrente de ar da porta e
flutuaram novamente, livres, e seguiram a corrente para a luz do sol
pálida e clara.
— Hugh, se o que dizes é verdade, então espero que possa
resultar em algo de bom. Pois, embora duvide de que ele esteja
preparado para reconhecê-lo já, sei de outra pessoa que pode
testemunhar e testemunhará que os dois estiveram juntos até
ouvirem o sino para as Completas, que teria sido quase uma hora
depois da que tens em mente, e ainda é preciso acrescentar uma
caminhada de quinze minutos desde o lugar onde se encontrava.
Mas uma vez que não se coaduna com a sua vocação, e talvez não
traga nada de bom... para a outra pessoa... nenhum deles deve
estar ansioso para contar abertamente, para todos ouvirem. Ao teu
ouvido, com alguma persuasão, talvez ambos sussurrem.
— Onde está o rapaz agora? — perguntou Hugh, a refletir. —
Preso na penitenciária?
— E profundamente adormecido, calculo. Não estiveste em
Longner a noite passada, Hugh? Não, ou ele teria dito. Então,
provavelmente, não soubeste que ele foi mandado chamar a noite
passada, pouco antes das Completas, para ir para junto de Donata,
por seu desejo expresso. E Radulfus deu-lhe autorização, sob
escolta. Ela faleceu, Hugh. Deus e os santos lembraram-se dela, por
fim.
— Não — disse Hugh — não sabia disso. — Sentou-se em
silêncio por um longo momento, a recordar como nos últimos anos
se relacionara com Donata Blount e com a família desta. Não havia
nada para lamentar, não, antes para gratidão e para dar graças. —
Sem dúvida que a notícia já deve estar à minha espera na guarnição
— disse ele. — E ela mandou chamar Tutilo?
— Achas estranho? — perguntou Cadfael brandamente.
— Fico desapontado quando as criaturas humanas não
conseguem fazer algo estranho. Não, a única coisa estranha em
tudo isto é aqueles dois terem sequer trocado um aperto de mãos.
Qualquer pessoa teria dito que a coisa mais provável do mundo era
aqueles dois nunca se verem, e muito menos conhecerem-se.
Depois de se conhecerem, sim, todas as coisas eram possíveis. E
ela está morta. Na presença dele?
— Ele pensou que ela tinha adormecido com a sua música —
disse Cadfael. — E tinha. Ele tinha gostado, e ela também. Quando
não há nada em jogo, também não há barreiras. Nada para uni-los,
e nada para dividi-los. E esta manhã ele chegou, arrasado com a
experiência, desgostoso e maravilhado, porque ela lhe ofereceu o
saltério com que ele tocou para ela, e lhe mandou uma mensagem
tirada diretamente dos romances de trovadores. Voltou de bom
grado para a sua cela, e espero que durma até todo este assunto
que temos em mãos fique concluído e resolvido depois da Missa. E
Que Deus e Santa Winifred nos conduzam a um bom fim!
— Ah, isso! — disse Hugh, e esboçou um sorriso algo
misterioso. — Esta sortes não é uma forma bastante perigosa de
decidir um assunto? Parece-me que não é nada difícil de trapacear.
Houve uma altura, segundo as tuas próprias palavras, que tu
trapaceaste... por uma boa causa, é claro!
— Eu trapaceei para impedir um roubo, não para conseguir um
— disse Cadfael. — Nunca enganei a Santa Winifred, nem ela será
enganada agora. Ela não me sobrecarregará com mais do que é o
meu dever, e também não deixará aquele rapaz pagar por um crime
que tenho a certeza que não cometeu. Ela sabe aquilo de que
precisamos e o que merecemos. Reparará os males e reconciliará
as zangas, quando considerar que é o momento certo.
— E sem qualquer ajuda minha — concluiu Hugh, e levantou-
se, a rir. — Vou-me embora e deixo-vos com a vossa tarefa, mais
vale estar noutro lado enquanto vocês, monges, resolvem o vosso
problema. Mas quando ele acordar... pobre rapaz, não quero
perturbá-lo!... temos de trocar umas palavras com o vosso canário.
14

Cadfael foi para a igreja antes da Missa Solene, inquieto apesar


de todas as suas declarações de fé, e culposamente penitente pela
sua inquietação, uma contorção dupla da mente. De qualquer
maneira, não havia tempo para fazer a sua infusão antes da
verificação dos pesos e medidas: deixou os rebentos de espinheiro
negro, limpos de todos os espinhos e galhos, à espera do seu
regresso num recipiente limpo, e protegidos de quaisquer partículas
flutuantes de pó por um pano de linho. Ainda tinha algumas pétalas
agarradas às mangas, apanhadas no tecido grosso. Tinha outras na
tonsura grisalha, caídas dos ramos mais altos quando o vento os
abanava. À distância, esta neve de Primavera trouxe à sua
lembrança outras Primaveras, e rebentos tardios, parecidos com
estes, mas diferentes, quando os espinheiros alvares abriam numa
doçura inebriante, afogando os sentidos.
Mais quatro ou cinco semanas, e essa neve maior
embranqueceria as sebes. O cheiro de plantas crescidas e verdes
estava já no ar, esquivo, mas constante, como a ondulação secreta
da água, o sussurro da água de Fevereiro, agora quase silenciado.
Mais por instinto do que por desígnio, deu por si junto ao altar
de Santa Winifred, e ajoelhou-se para se aproximar dela, pousando
cuidadosamente os joelhos perros no degrau mais baixo do seu
altar elevado. Não proferiu qualquer palavra, embora as pensasse
no seu íntimo, na língua galesa, que fora nativa dela como era dele.
No lugar a que pertencia e onde desejava estar, ela mandaria. O
que lhe pedia era orientação no caso da morte de um jovem, de um
jovem puro que apascentava ovelhas com suavidade e cuidado,
como ovelhas de Deus, e nunca merecera morrer de repente, antes
da sua hora, embora o amor de Deus pudesse ter posto uma mão
segura por baixo dele quando ele caíra, e pudesse tê-lo erguido
para a luz. E outro jovem suspeito de uma coisa muito para além do
seu alcance, que não devia sofrer uma morte igualmente injusta.
Nunca duvidou de que ela estava a escutá-lo. Não voltaria as
costas a um suplicante. Mas não estava tão seguro em relação ao
espírito com que estaria a escutá-lo, tendo em conta tudo o que
acontecera. Cadfael dirigiu as suas orações para ela com resignada
humildade, mas sempre em bom galês do norte, o galês de
Gwynedd. Ela podia estar indignada, mas mesmo assim seria justa.
Quando se ergueu, apoiando-se na beira do altar, forrado de
novo em celebração do seu regresso, e na expectativa da sua
continuação ali, não a deixou imediatamente. A calma que se sentia
ali era ao mesmo tempo agradável e ominosa, como o sussurro
antes da batalha. E os Evangelhos, não o grande livro iluminado,
mas um menor e mais resistente, concebido para resistir a dedos
demasiado astutos pelo seu menor uso e páginas mais leves, já se
encontrava em cima do relicário revestido a prata, colocado num
lugar central com precisão correta e reverente. Pousou a mão nele,
e centrou todas as suas orações para orientação e iluminação com
o toque dos dedos, e de repente decidiu abri-lo. "Moça, mostra-me o
caminho agora, pois tenho uma criança para cuidar. Um mentiroso e
um ladrão e um tratante, mas foi o que este mundo fez dele, e pode
ser tão doce como falso. E não um assassino, embora possa ser
muitas outras coisas.
Duvido que tenha feito mal a uma única alma nos seus vinte e
poucos anos. Diz-me uma palavra, uma palavra esclarecedora, para
libertá-lo da sua gaiola."
O livro dos destinos já estava ali à sua frente. Quase sem
pensar conscientemente, pousou ambas as mãos nele, ergueu-o, e
abriu-o. Fechou os olhos quando o pousou no seu lugar,
pressionando-o sobre a mão esquerda, e colocou o dedo indicador
da mão direita na página exposta.
Inesperadamente consciente do que tinha feito, manteve-se
muito quieto, sem mexer um único dedo, acima de tudo não aquele
dedo indicador, enquanto abria os olhos e olhava para onde este
apontava. Estava no Apóstolo Mateus, no décimo capítulo, e o dedo
ardente, a carregar tanto que amarrotava a folha, estava pousado
no Versículo 21.
Cadfael tinha aprendido latim tarde, mas aquela frase era
bastante simples: "[...] e o irmão entregará o irmão à morte."
Ele ficou a olhar para as palavras, e no começo não fizeram o
menor sentido, para além da menção agourenta da morte, e morte
intencional, não o fim calmo de uma vida como o falecimento de
Donata. O irmão entregará o irmão à morte... Fazia parte da profecia
da desintegração e do caos que se esperava nos últimos dias;
dentro desse contexto não passava de uma imagem numa cena
mais alargada, mas aqui estava tudo, era uma resposta. Para quem
era a muitos anos membro de uma irmandade, as palavras eram
significativas. Não um desconhecido, não um inimigo, mas um irmão
a trair um irmão.
E de repente foi visitado por uma breve visão de um jovem a
percorrer rapidamente um pequeno caminho de um bosque numa
noite escura, no meio de uma chuva penetrante, com uma capa
castanho escura sobre o corpo e o capuz bem aconchegado na
cabeça. O vulto passou, e não passou de um vulto, tenuemente
divisado sob o céu escuro que se via no meio das árvores: mas o
vulto era familiar, um homem encapuçado, amortalhado em tecido
volumoso. Ou um homem escondido por um hábito preto de monge?
Nessas condições, qual seria a diferença?
Foi como se uma porta se tivesse aberto diante de si e lhe
tivesse mostrado uma luz fraca, mas positiva. Um irmão entregue à
morte... E se aquilo fosse verdade, e se a vítima pretendida fosse
outra, não Aldhelm? Ninguém a não ser Tutilo tivera motivos para
temer o testemunho de Aldhelm, e Tutilo, embora tivesse estado
fora do enclave naquela noite, negava firmemente qualquer ataque
ao jovem, e pequenos pontos começavam a corroborar a sua versão
dos acontecimentos. E Tutilo era de fato um irmão, e estava ausente
naquela noite, e esperava-se que viesse por aquele caminho. E em
corpulência, e idade, sim, a caminhar para se livrar o mais depressa
possível da chuva, podia muito bem assemelhar-se bastante à
silhueta que Aldhelm apresentaria, para um assassino que estivesse
à espera.
De fato, um irmão entregue à morte, se outro homem não
tivesse seguido por aquela estrada antes dele. Mas quanto ao outro,
ao que planejara a morte? Se o significado daquele oráculo fosse o
que parecia, a palavra "irmão" tinha seguramente um duplo
significado monástico. Um irmão daquela casa, ou pelo menos da
Ordem Beneditina. Cadfael não conhecia nenhuma para além de
Tutilo que tivesse saído do enclave naquela noite, mas um homem
que pretendesse cometer um ato daquele gênero dificilmente
apregoaria a sua intenção ou deixaria alguém perceber que se tinha
ausentado. Alguém dentro da Ordem que odiava Tutilo o suficiente
para tentar assassiná-lo? O prior Robert talvez não tivesse ficado
muito desgostoso se Tutilo tivesse sido castigado pela ofensa
ultrajante com a vida, mas o prior Robert tinha estado no jantar com
o abade e diversas outras testemunhas naquela noite, e de qualquer
maneira dificilmente poderia ser imaginado emboscado no meio de
um bosque molhado para abater o delinquente com as suas mãos
elegantes. Herluin poderia ter contra o rapaz o fato de ele ter
desgraçado Ramsey não tanto por tentar um roubo, mas por ter
falhado, mas Herluin também tinha estado na festa do abade. E, no
entanto, o oráculo tinha-se cravado na mente de Cadfael como um
espinho dos arbustos de espinheiro negro, e não se desprenderia.
Foi para o seu banco com as palavras a ecoar vezes sem conta
no seu ouvido interior: "e o irmão entregará o irmão à morte".
Precisou de toda a sua força de vontade e concentração para banir
o som daquelas palavras, e dedicar-se de alma e coração à
celebração da missa.
No fim da missa, depois de as crianças serem dispensadas
para os seus estudos com o irmão Paul, e apenas com os monges
do coro por testemunhas espantadas, o abade Radulfus rezou uma
oração rápida e prática para pedir orientação, e aproximou-se do
altar de Santa Winifred. — Com todo o respeito — disse o conde
Robert, mantendo-se cortesmente afastado, e no tom de voz mais
suave e razoável possível — como poderemos determinar quem
deverá ser o primeiro a tentar a sorte? Existe alguma regra que
devamos seguir?
— Estamos aqui para perguntar — respondeu o abade com
simplicidade. — Perguntemos do princípio ao fim, da contenção à
resolução, e não avancemos pedidos nem reservas da nossa parte.
Concordamos. Cumpramos o acordo. Perguntarei sobre a ordem de
procedimentos, e depois deixo a causa de Shrewsbury ao prior
Robert, que fez a viagem para o País de Gales para encontrar Santa
Winifred, e trouxe as suas relíquias para cá. Se algum de vós tem
alguma coisa a objetar, que nomeie quem quiser. O padre Boniface
não se recusaria a fazer-nos esse serviço, se lho pedirdes.
Ninguém teve qualquer objeção a fazer, até Robert Bossu
resolver falar, muito amigavelmente, para esboçar um
consentimento de outra forma expresso em silêncio.
— Padre Abade, se fordes vós a prosseguir, então estamos
todos satisfeitos.
Radulfus subiu os três degraus baixos, e com ambas as mãos
abriu os Evangelhos, com os olhos fixos acima, na cruz, para não
poder calcular onde o seu dedo pousaria na página aberta.
— Aproximai-vos — disse ele — e confirmai pessoalmente que
não houve fraude. Vede as palavras, para que constateis que o que
leio em voz alta é o que as sortes me enviaram.
Sem hesitar, Herluin veio espreitar avidamente. O conde Robert
deixou-se ficar tranquilamente onde estava, e afastou com um gesto
a necessidade de confirmação.
O abade Radulfus baixou os olhos para o local onde o seu dedo
indicador estava pousado, e transmitiu sem emoção: — Estou no
Evangelho de São Mateus, no vigésimo capítulo. E a frase diz: "Os
últimos serão os primeiros, e os primeiros os últimos."
"Não há como contestar isso", pensou Cadfael, a olhar com
alguma ansiedade do seu lugar retirado. Quando muito, era
bastante suspeito que a primeira análise produzisse uma resposta
tão apta; os prognósticos dos bispos eram muitas vezes conhecidos
por serem extremamente ambíguos. Se tivesse sido outro que não
Radulfus a testar as águas, Radulfus na sua retidão inflexível, quase
se poderia ter suspeitado... Mas isso significaria limitar ou duvidar
do alcance do poder da santa. Ela que podia chamar um jovem
aleijado para si e apoiá-lo com a sua divina graça enquanto ele
largava as muletas nos degraus do seu altar, por que duvidar de que
ela podia virar as folhas de um Evangelho, e guiar um dedo fiel para
as palavras que a sua vontade requeria?
— Parece — declarou o conde Robert, após um momento de
silêncio delicado em deferência para qualquer outra pessoa que
pudesse desejar falar — que, na qualidade de último a chegar, este
veredicto coloca-me como primeiro nas listas. É essa a sua
interpretação, Padre?
— O significado parece bastante óbvio — disse Radulfus;
fechou cuidadosamente os Evangelhos, alinhou o livro
escrupulosamente ao centro do relicário, e desceu os degraus para
ficar bem afastado. — Prossegui, senhor.
— Que Deus e Santa Winifred disponham! — disse o conde, e
subiu sem pressa, para ficar um momento, imóvel, antes de abrir o
livro com gestos lentos e hieráticos que podiam ser vistos
claramente por todos, com a lombada entre as mãos compridas e
musculosas, os polegares a encontrarem-se para separar as
páginas. Abrindo completamente o livro, ele pousou por instantes as
palmas das mãos nas páginas escolhidas, e depois deixou o dedo
pairar mais um momento antes de tocar. Não tinha olhado para
baixo nem passado a ponta de um dedo pelos cantos das folhas,
para determinar em que ponto do livro se encontrava a página.
Existem formas de tentar manipular até as sortes Biblicae, mas ele
evitara-as meticulosa e demonstrativamente. "Ele nunca está
ansioso", refletiu Cadfael com certeza, "e usar artifícios estragaria a
sua diversão. Ele está interessado em espicaçar o prior Robert e o
sub prior Herluin para que eles se irritem um com o outro com faces
escarlates e gargantas a destilar raiva."
O conde leu em voz alta, traduzindo para o vernáculo tão
fluentemente como qualquer membro do clero: — "Ireis procurar-me,
e não me encontrareis; e onde estou, não podeis vir." — Levantou
os olhos, pensativo. — É São João, capítulo dezessete e versículo
cinquenta e quatro. Padre Abade, aqui está um dito estranho, pois
ela veio ter comigo quando eu não a esperava, quando não sabia
nada dela. Foi ela que me encontrou. E aqui está seguramente uma
charada difícil de interpretar, e onde ela está eu não posso ir, se
aqui ela está de fato, e aqui estou eu ao seu lado. Como decifrais
isto?
Cadfael teria podido esclarecê-lo, mas manteve a boca muito
bem calada, embora tivesse sido interessante responder à pergunta,
e ouvir a reação daquele homem sutil. Era até tentador, pois ali
estava um homem que teria apreciado toda a ironia. Robert Bossu
tinha seguido a disputa até Shrewsbury em busca de diversão numa
época de frustração e inação, e era uma pena que tivesse de lhe ser
negada a melhor parte da piada que era muito mais do que
simplesmente uma piada. Isso teria de ser partilhado apenas com
Hugh, que conhecia o melhor e o pior do seu amigo Cadfael. Não,
havia mais alguém que sabia tudo. Seguramente, de vez em quando
Santa Winifred lembrava-se e sorria, no seu sono tranquilo em
Gwytherin, até se ria quando se erguia para estender os raios de sol
da sua graça para erguer um rapaz aleijado ali em Shrewsbury.
E de certa forma esta resposta, como a primeira, foi
surpreendentemente apropriada, brandindo uma verdade secreta e
um paradoxo diante de um homem que os teria apreciado ao
máximo, mas a quem o segredo não podia ser confiado. Se a
vontade dela fosse atormentar e surpreender, então por que não
exercer a sua suave vingança?
— Eu estou como vossa senhoria — disse o abade, e sorriu. —
Escuto e procuro compreender. Talvez precisemos esperar até tudo
ter sido respondido antes de podermos ter esperança de sermos
iluminados. Continuamos, e esperamos a revelação?
— De bom grado! — exclamou o conde, e voltou-se para
descer os três degraus, com as pontas do manto carmim a rodopiar
à sua volta. Daquele ângulo, a descer com as velas do altar atrás de
si, o ombro elevado e o alto por baixo mal quebravam a simetria de
um corpo maravilhosamente compacto e com um porte admirável.
Retirou-se imediatamente para uma distância graciosa, para não
perturbar de forma alguma a privacidade e compostura do contendor
seguinte, e os seus dois jovens escudeiros, bem treinados para
serem igualmente discretos no serviço, colocaram-se em silêncio
um de cada lado do conde.
"Se ele joga jogos para passar o tempo de tédio", pensou
Cadfael, "joga-os com regras nobres, até os que inventa a seu bel-
prazer. Hugh gostou dele desde o primeiro momento; e eu também
gosto dele, gosto bastante dele." E, sem querer, começou a refletir
sobre a estranheza das relações humanas. "Que tem um homem
como este", surpreendeu-se, "a ver com o nosso Stephen
barulhento, impetuoso, cândido, que se atira às coisas como um
touro enraivecido? E também, agora que os vejo neste momento
com tanta clareza, que tem Hugh a ver também com o rei? Não
devem todas as almas pensantes estar a ficar horrivelmente
cansadas desta longa contenção que não faz progressos, que
desperdiça homens e culturas e o próprio bem-estar da terra?
Cansadas não apenas de Stephen, mas também, talvez ainda mais,
desta senhora que enfia os dentes no império e não o solta. Algures,
deve haver um herdeiro mais promissor, um sinal de um sol capaz
de dispersar dúvidas como nevoeiros matinais, e fazer desaparecer
da nossa vista tanto o rei como a imperatriz, com toda a confusão,
caos e desperdício que eles trouxeram para esta terra." — Padre
Herluin — disse Radulfus — quereis experimentar? Herluin avançou
para o altar com grande lentidão, como se aqueles poucos passos,
e a subida dos três degraus, devessem ser utilizados em pleno para
orar, e para uma concentração ardente neste único esforço que
realizaria ou desfaria para si uma ambição querida. No seu rosto
cavado, comprido e pálido, os olhos ardiam sombrios, como brasas
meio consumidas. Apesar da ansiedade que sentia, quando chegou
o momento do teste ele hesitou em tocar, e pousou as mãos no livro
por duas ou três vezes, apenas para afastá-las novamente do
contato. Um estudo interessante, este, das técnicas variadas com
que homens diferentes se aproximavam do momento da verdade.
Robert Bossu tinha colocado o livro com vivacidade entre as palmas
das mãos abertas, separara as páginas com ambos os polegares,
abrira-as completamente, e pousara o dedo onde o acaso o levara.
Quando por fim tocou, Herluin tocou como se o pergaminho fino
pudesse queimá-lo, tímida e convulsivamente, e mesmo quando
tinha o livro aberto, para o melhor ou para o pior, agonizou alguns
momentos sobre onde escolher na página, passando do retro para o
verso e de novo para trás antes de parar. Depois de se
comprometer, respirou fundo, e espreitou para ver o que o destino
tinha escolhido para si. Engoliu em seco e ficou em silêncio.
— Lede! — pediu Radulfus delicadamente.
Não havia outro remédio. Tinha a voz alterada, mas falou com
clareza, talvez até um pouco mais alto do que seria natural porque
lhe era muito difícil dizer as palavras.
— É o décimo terceiro capítulo de São Lucas, versículo vinte e
sete. "Digo-vos, não vos conheço, de onde vieram. Afastai-vos de
mim, trabalhadores da iniquidade..." — Levantou a cabeça, o rosto
pálido de afronta, e fechou firmemente o livro antes de olhar em
volta para os semblantes cuidadosamente respeitosos que o
rodeavam como as estacas de uma vedação, uma barreira para a
qual encontrou a única saída digna, às custas de outra pessoa. —
Fui vergonhosamente enganado e iludido. Ela mostra a minha falta,
o erro de ter confiado num mentiroso e num ladrão. Não foi pela
vontade dela, com a sua ordem, que o irmão Tutilo... atrevo-me
ainda a chamar-lhe irmão?... a roubou, e pior, nas trevas da sua
ofensa levou outra alma inocente para o pecado, se não para a
morte. O seu crime não é só de roubo, mas também de blasfêmia,
pois desde o princípio mentiu impiamente, dizendo que tinha tido
uma revelação da santa, e desde então escondeu a sua ofensa com
uma mentira atrás da outra. Agora ela deu-me a conhecer
claramente a infâmia, e mostrou que em toda esta deambulação
desde o rapto ela já tinha tomado a decisão de voltar para este lugar
de onde foi roubada. Padre Abade, retiro-me com pesar e
humildade. A piedade que ela pode ter sentido por Ramsey e pelos
seus padecimentos, ele caluniou e roubou, e não temos quaisquer
direitos nesta contenda. Reconheço com lágrimas, e imploro o
perdão da santa!
Para si próprio! Certamente não para o rapaz infortunado que
naquele momento dormia numa cela estreita. Pouco perdão haveria
para ele se Herluin fizesse a sua vontade. Tutilo pagaria cada
tormento desta humilhação, tal como estava agora a pagar todas as
partículas de culpa, para melhor demarcar Herluin, inocente e
devoto, apenas velhacamente enganado, sem nada de que
arrepender-se a não ser a sua fé demasiado profunda.
— Esperai! — disse o abade Radulfus. — Não façais ainda
julgamentos. É tão possível uma pessoa enganar-se a si própria
como enganar outras. Nenhum homem deve ser condenado na
primeira ira. E a santa ainda não nos falou de Shrewsbury.
"É bem verdade", refletiu Cadfael, "pois ela pode muito bem ter
algumas censuras a fazer-nos, não menos do que a Ramsey. E se
ela escolher este momento e este público para tornar conhecido que
só nos visita por pura caridade, que o que jaz no seu bonito relicário
é na realidade o corpo do jovem que assassinou para garanti-la para
Shrewsbury, e morreu ele próprio por acidente, em circunstâncias
que tornaram vital que desaparecesse? Uma ofensa pior do que
Tutilo cometera numa causa semelhante, para consegui-la para
Ramsey." Ao voltar a colocá-la reverentemente na sepultura de onde
ele a tinha tirado, e ao selar o assassino no caixão abandonado que
se destinava a ela, Cadfael estivera e ainda estava convencido de
que tinha feito a vontade dela, ao repô-la no lugar de descanso que
ela desejava. Mas não seria possível que Tutilo tivesse acreditado
com a mesma sinceridade?
Uma das venturas, a santa tinha acabado de condenar. Agora a
outra ia ser posta à prova! Felizmente para o prior Robert, pelo
menos naquele momento aproximava-se numa inocência absoluta.
"Mas eu", pensou Cadfael, atormentado, "posso estar prestes a
pagar plenamente por todos os meus pecados."
Bem, era justo!
O prior Robert podia ter algumas dúvidas em relação ao seu
valor, embora essa fosse uma fraqueza à qual ele raramente
sucumbia. Subiu os degraus do altar com grande solenidade, e uniu
as mãos diante do rosto para um convulsivo momento final de
oração, com os olhos fechados. Na verdade, manteve os olhos
fechados enquanto abria os Evangelhos, e plantava o comprido
dedo indicador às cegas na página. A avaliar pelo tamanho da
pausa que se seguiu, antes de ele abrir os olhos e olhar, confuso
para ver o que o destino lhe reservara, passou por algum receio
devoto do seu merecimento. Quem esperaria que o pilar da casa
abanasse?
O equilíbrio foi restaurado imediatamente. Robert endireitou a
sua impressionante cabeça prateada, e uma onda de cor triunfal
subiu desde a garganta alta e coloriu-lhe as faces. Numa voz que
hesitava entre a exultação e o temor, leu em voz alta: — São João,
décimo quinto capítulo e décimo sexto versículo: "Tu não me
escolheste, mas eu escolhi-te."
A toda a volta da assembleia de irmãos à espera e a observar
com a respiração suspensa, o grande estremecimento e suspiro
passou como uma rabanada de vento, ou a formação de uma onda
na margem, e depois, como o desaparecimento de uma onda em
espuma, desintegrada num murmúrio sussurrado e inquieto, os
irmãos mexeram-se, acotovelaram-se, tremeram de alívio e com
uma sugestão de emoção histérica entre o riso e as lágrimas. O
abade Radulfus endireitou-se instantaneamente numa rígida
autoridade, e ergueu uma mão moderadora para acalmar a
tempestade incipiente.
— Silêncio! Respeitai este lugar sagrado, e aceitai todos os
destinos com compostura, como os homens devem fazer. Padre
Prior, descei para junto de nós agora. Tudo o que era preciso já foi
feito.
O prior Robert ainda estava tão cego que quase tropeçou nos
degraus, mas recompôs-se com aristocrática dignidade e quando
chegou às lajes do chão já assumira novamente a sua
personalidade oficial de complacência. Se a experiência de temor
religioso deixara algum efeito permanente era coisa que teria de ser
verificada com o tempo. Cadfael pensou que provavelmente não
deixaria. De qualquer maneira, tinha deixado um efeito temporário
forte na sua complacência mais cautelosa, mas igualmente humana.
Durante algum tempo andaria com pés de lã, por temer a indignação
e o esquecimento da pequena santa galesa.
— Padre — disse o prior Robert, e a sua voz já tinha de novo
toda a ressonância calculada e melíflua — cumpri fielmente a tarefa
que me foi confiada. Agora, estes destinos podem ser interpretados.
Oh, sim, era ele próprio de novo, traria a sua glória consigo
enquanto ela tivesse algum brilho. Mas pelo menos, naqueles
poucos momentos, tinha-se mostrado tão humano como qualquer
outro homem. Todos aqueles que tinham visto, não esqueceriam
jamais.
— Padre Abade — disse o conde, delicadamente. — Eu retiro
todas as pretensões. Interrogo-me mesmo sobre como posso estar
aqui na sua virginal companhia, e podeis dizer-me que nunca mais
poderei voltar ao lugar onde ela se encontra. Embora deva
confessar que, provavelmente, existe uma história aqui que eu
gostaria muito de ouvir. — Sim, ele era muito rápido, percebeu
Cadfael, o paradoxo era um prazer para ele. — O terreno é vosso,
até ao fim — disse Robert Bossu com sinceridade. — Claramente,
esta senhora abençoada trouxe-se para casa de novo sem ajuda
minha nem de qualquer outra pessoa. Dou-vos a alegria dela! E por
nada neste mundo me imiscuiria nos seus planos, embora sinta um
grande orgulho por ela ter acedido a visitar-me durante algum
tempo. Com a vossa permissão, em ação de graças farei um
donativo.
— Penso — disse Radulfus — que Santa Winifred ficaria
agradecida se decidísseis fazer o vosso donativo, em honra dela, à
abadia de Ramsey. Somos todos irmãos da mesma Ordem. E
mesmo que ela tenha sido tirada daqui por ação de erros e ofensas
humanos, tenho a certeza de que não ficará com ressentimentos por
uma casa irmã que se encontra num momento de aflição.
Cadfael pensou que estavam ambos a falar naqueles termos
pomposos e cerimoniosos para amenizar os primeiros momentos
amargos, e para darem ao sub prior Herluin tempo para dominar o
seu desgosto, e conseguir uma retirada airosa. Ele já tinha engolido
o pior da sua bílis, embora num trago que quase o sufocara. Era
capaz de reconhecer a derrota com decente civilidade. Mas nada,
nada poderia agora suavizar a sua mente contra aquele pobre
jovem que esperava a penitência em segurança atrás de uma porta
trancada.
— Sinto vergonha — disse Herluin, tenso — por mim e pela
minha abadia, por termos alimentado e albergado e confiado num
aspirante muito falso à irmandade. Atrevo-me a desculpar a minha
abadia. Não posso desculpar-me a mim próprio. Seguramente,
devia estar mais bem armado contra os embustes do diabo.
Confesso que fui cego e tolo, mas nunca desejei mal a esta casa, e
humilho-me no reconhecimento do mal feito, e peço perdão. Sua
senhoria de Leicester também falou por mim. O terreno é vosso,
padre abade. Recebei toda a sua honra e todas as suas vantagens.
Existiam formas de uma pessoa se humilhar... embora o prior Robert
talvez tivesse conseguido fazê-lo com mais graciosidade se as
coisas tivessem corrido de outra maneira!... como um meio de se
exaltar. Aqueles dois eram parecidos, embora Robert, de
nascimento mais nobre, tivesse um domínio mais completo, e talvez
bastante menos malícia ardente quando levavam a melhor sobre
ele.
— Se estais todos satisfeitos — disse Radulfus, considerando
que aquelas trocas de palavras não estavam a tornar-se meramente
maçadoras, mas também verbosas — gostaria de encerrar esta
assembleia com uma oração, e depois dispersar.
Ainda estavam de joelhos após o último Amém, quando se
levantou uma súbita ventania, soprando pela nave do altar em
direção ao coro, como se tivesse entrado pela porta sul, embora não
tivessem ouvido barulho do ferrolho sendo levantado nem de porta
chiando. Todos sentiram, e como o ar ainda estava impregnado de
profecia e contenção, todos se sobressaltaram e escutaram com
atenção, e vários abriram os olhos para olhar em volta à procura da
origem daquele vento abrupto vindo do mundo exterior. O irmão
Rhun, o devoto cavaleiro de Santa Winifred, voltou a bonita cabeça
instantaneamente para olhar para o altar, pois o seu primeiro
cuidado zeloso estava sempre ao serviço e adoração da santa. E no
silêncio, em voz alta e nítida, exclamou: — Padre, olhe para o altar!
As páginas dos Evangelhos estão virando!
15

O prior Robert, que descia do seu lugar elevado ainda cego,


com o triunfo a rodopiar à sua volta em nuvens de glória, tinha
deixado o Evangelho aberto onde a sua vitória fora escrita, São
João, o último dos evangelistas, numa parte avançada do
manuscrito. Todos os olhos se abriram então para observar, e na
verdade as páginas do livro estavam a recuar, lentamente, de forma
hesitante, ficando direitas para deslizar para frente, por vezes uma
única folha, por vezes um sopro mais forte que virava várias ao
mesmo tempo, quase como se fossem levantadas e guiadas por
dedos, que as passavam à pressa. Os Evangelhos estavam a voltar
para trás, a sair de São João para entrar em São Lucas, de São
Lucas para São Marcos... e para lá dele... Estavam todos a olhar,
fascinados, mal reparando, mal compreendendo, que o vento
abrupto da porta sul caíra numa imobilidade total, e mesmo assim,
folha após folha, agora lenta e deliberadamente, as folhas
continuavam a ser viradas. Erguiam-se, ficavam quase paralisadas,
e gradualmente desciam e iam para junto do monte dos últimos
livros do Evangelho.
Pois naquele momento deviam estar em São Mateus. E foi
então que o ritmo abrandou, foi-se erguendo folha por folha, que
ficava ereta e depois descia lentamente. A última a voltar-se
instalou-se levemente, não completamente pousada sobre as
companheiras, mas depois imobilizou-se, e não se sentiu um único
sopro do vento que tinha voltado as páginas.
Durante alguns momentos, ninguém se mexeu. Depois, o
abade Radulfus levantou-se e dirigiu-se para o altar. O que o ar
espontâneo escrevera devia ter um significado mais do que natural.
Não tocou, mas ficou a olhar para a página.
— Vinde, alguns de vós. Que haja mais testemunhas do que eu
próprio.
Instantes depois, o prior Robert estava no fundo dos degraus,
suficientemente alto para ver e ler sem subir. Cadfael aproximou-se
pelo outro lado. Herluin conteve-se, demasiado mergulhado no seu
próprio turbilhão de pensamentos para estar muito preocupado com
mais maravilhas, mas o conde acercou-se numa curiosidade
cândida, esticando-se para ver as páginas abertas. Do lado
esquerdo, a folha estava ligeiramente levantada, a mexer um pouco
devido às suas tensões, pois agora não soprava vento nenhum. A
página da direita estava imóvel, e na parte interior encontravam-se
algumas pétalas brancas, e um único rebento duro de espinheiro
negro, com a flor branca a desabrochar da casca escura.
— Eu não toquei — declarou Radulfus — pois não fui eu nem
ninguém aqui que perguntou. Aceito o presságio como uma graça. E
aceito este rebento como o dedo da verdade assim manifestada.
Aponta-me para o versículo numerado como o vigésimo primeiro, e
a frase é: "E o irmão entregará o irmão à morte."
Fez-se um silêncio prolongado e temeroso. O prior Robert
estendeu uma mão reverente para tocar na fila minúscula de pétalas
soltas, e no rebento em flor que se tinha alojado na lombada.
— Padre Abade, não estivestes conosco em Gwythrin, se não
teríeis reconhecido esta maravilha. Quando a abençoada santa nos
visitou ali na igreja, como antes em visão, veio com uma chuva de
pétalas de espinheiro alvar. A estação ainda não está
suficientemente avançada para as flores do espinheiro alvar, mas
estas... mas ela manda estas no seu lugar, uma vez mais como
testemunhas da sua pureza. É um sinal direto de Santa Winifred.
Estamos obrigados pelo nosso cargo a ter em atenção o que ela nos
confiar.
Um estremecimento e um murmúrio percorreu os irmãos que
observavam, e aproximaram-se suavemente do milagre. Algures no
meio deles, alguém respirou funda e dolorosamente como um
soluço, apressadamente suprimido.
— É uma questão de interpretação — disse Radulfus
gravemente. — Como poderemos compreender este oráculo?
— Fala de morte — disse o conde, prático. — E houve uma
morte. A ameaça dessa morte paira, segundo percebi, sobre um
jovem irmão da vossa Ordem. A sombra paira sobre todos. Este
oráculo fala de um irmão como o instrumento de morte, que se
encaixa no caso tal como é conhecido neste momento. Mas fala
igualmente de um irmão como vítima. A vítima não foi um irmão.
Como deve isto ser interpretado?
— Se ela apontou realmente o caminho — disse o abade com
firmeza — não podemos deixar de segui-lo. "Irmão", diz ela, e se
acreditarmos na sua palavra, foi a morte de um irmão que foi
planejada por um irmão. O significado que essa palavra tem no
interior destas paredes, a santa conhece-o tão bem como nós. Se
alguém entre nós tem um pensamento para partilhar sobre este
assunto extremamente urgente, que fale agora.
No silêncio inquieto, enquanto os irmãos olhavam
ansiosamente uns para os outros, e se interrogavam, e procuravam
ou fugiam dos olhos do vizinho, o irmão Cadfael disse: — Irmão
Abade, tenho pensamentos para partilhar que nunca me visitaram
até esta manhã, mas estão a tornar-se muito relevantes agora. A
noite do homicídio estava escura, não apenas por causa da hora,
mas também por causa do tempo, pois as nuvens estavam baixas, e
caía uma chuva miudinha. O lugar onde o corpo de Aldhelm foi
encontrado situa-se numa zona densamente arborizada, não
podada, num carreiro estreito, onde a única luz viria do céu aberto
por cima do trilho. O suficiente para revelar um vulto, uma forma, a
um homem que estivesse à espera, e com olhos acostumados à
escuridão. E o vulto que Aldhelm apresentaria era o de um homem
que se adivinhava jovem devido ao passo e ritmo, com uma capa
acastanhada chegada ao corpo para se proteger da chuva, e com o
capuz bicudo colocado sobre a cabeça.
Padre, como se pode isso distinguir, em tais condições, de um
irmão Beneditino com um hábito escuro e capuz, se ele for jovem e
estiver a caminhar rapidamente para sair da chuva?
— Se te compreendi bem — disse Radulfus, depois de ter
perscrutado o rosto de Cadfael, e encontrado nele uma ansiedade
muito séria — estás a dizer que o jovem foi atacado por engano, por
ter sido confundido com um irmão Beneditino.
— Coaduna-se com o que está escrito na sorte — disse
Cadfael.
— E com a obscuridade da noite, garanto-te. Estás também a
sugerir que o alvo pretendido era o irmão Tutilo? Que ele não era o
caçador, mas a presa?
— Padre, esse pensamento não me sai da cabeça. Em
aparência física e idade os dois são bastante parecidos. E como
todos os homens sabem, ele estava ausente do enclave naquela
noite, com autorização, embora possa tê-la conseguido através da
mentira. Sabia-se que regressaria por aquele caminho... ou, pelo
menos, segundo o que nos tinha feito crer a todos, e, Padre, admita-
se, ele tinha feito muito para arranjar inimigos nesta casa.
— Irmão a voltar-se contra irmão... — disse o abade, sombrio.
— Bem, somos todos homens falíveis como o resto da humanidade,
e o ódio e a maldade não estão fora do nosso alcance. Mas, então,
como justificas este segundo e mortífero irmão? Nessa noite,
ninguém saiu do enclave para fazer um recado.
— Ninguém que nós saibamos. Mas não é difícil — disse
Cadfael — passar despercebido durante algum tempo. Há maneiras
de entrar e sair para quem está determinado a passar.
O abade fitou-o sem um sorriso; tinha sempre um controlo
absoluto sobre as suas emoções. Apesar disso, não aconteciam
muitas coisas naquela casa que Radulfus não soubesse. Tempos
houvera em que Cadfael saíra e voltara de noite, sem passar pelo
portão, para tratar de assuntos urgentes que achava serem
justificação para a ausência. Dos instrumentos das boas ações
listados na Regra de São Benedito, logo a seguir ao amor a Deus
vinha o amor pela humanidade, e Cadfael reverenciava a Regra
acima das normas pormenorizadas e meticulosas.
— Sem dúvida que podes falar pela longa experiência — disse
o abade. — Certamente, isso é verdade. Porém, não conhecemos
mais nenhum dissidente nessa noite. A menos que tenhas um
conhecimento que eu não possuo.
— Não, Padre, não tenho nenhum.
— Se posso atrever-me — disse o conde Robert,
desaprovadoramente — por que não pedirmos ao oráculo que falou
de dois irmãos que nos envie mais um sinal? Seguramente, temos o
dever de seguir esta pista o melhor possível. Poderá ser demasiado
pedir um nome, mas existem outros meios, como esta abençoada
senhora nos mostrou, de deixar todas as coisas claras.
Gradualmente, quase furtivamente, todos os irmãos se
levantaram dos bancos e se reuniram num círculo à volta daquele
altar e do grupo que conversava aos seus pés. Não se aproximaram
muito, mas ficaram a uma distância em que podiam ouvir tudo o que
era dito. E algures no meio deles, embora não se pudesse localizar
facilmente, havia um centro de inquietação desesperada, mas
controlada, uma inquietação que fazia o ar dentro do coro
estremecer, com uma vibração rápida de intranquilidade e medo,
como um batimento cardíaco no pânico esvoaçante das asas de um
pássaro. Cadfael sentiu-o, mas pensou que não era mais do que a
tensão das sortes. E aquilo era o suficiente. Ele próprio estava a
começar a ter uma dor, como se estivesse a ser esticado na roda, e
o pior ainda estava para vir. Já era mais do que tempo de acabar
com aquilo, e libertar todas aquelas almas sobrecarregadas para o
ar úmido, gelado e calmante do princípio de Março.
— Se de alguma maneira todos os irmãos são acusados por
esta última frase — disse o conde Robert, esperançoso — são eles,
os filhos mais humildes da casa, que têm mais direito de pedir um
nome. Se achardes adequado, Padre Abade, deixar que um deles
apele a um julgamento. De que outra forma poderão os outros ser
justificados? A justiça é sem dúvida devida aos inocentes, com um
direito ainda mais forte do que o castigo aos culpados.
Cadfael pensou que se ele ainda estava a divertir-se, estava a
fazê-lo com a dignidade eloquente dos arcebispos e de todos os
juízes do rei. A brincar ou a sério, um homem assim não gostaria de
deixar este mistério humano e mais do que humano por resolver.
Empurrá-lo-ia e induzi-lo-ia o mais que pudesse para um fim. E tinha
um bom ouvinte no prior Robert, seu homônimo. Agora que o prior
tinha a garantia de conservar a sua santa, juntamente com todo o
brilho proveniente de ter sido ele a descobri-la e trasladá-la, queria
tudo resolvido e terminado, e aqueles visitantes incômodos de
Ramsey fora dos seus domínios, antes de causarem mais algum
mal.
— Padre — disse ele, insinuante — isso é certo e justo.
Podemos fazê-lo?
— Muito bem — declarou Radulfus. — Nas vossas mãos!
O prior voltou-se para percorrer com os olhos a fila silenciosa
de monges, que o observavam de olhos abertos de antecipação e
temor. O nome que chamou foi o nome inevitável. Até franziu a testa
por ter de procurar o seu acólito.
— Irmão Jerome, peço-te que faças esta experiência em nome
de todos. Avança e faz o teste.
Realmente, onde estava o irmão Jerome, e por que é que não
se tinha ouvido uma palavra sua nem fora visto durante todo aquele
tempo? Quando, até agora, tinha ele estado longe das saias do
hábito do prior Robert, à espera com lisonja pronta e obsequioso
assentimento de todas as palavras que saíam dos lábios do seu
patrono. Agora que pensava no assunto, Cadfael chegou à
conclusão de que nos últimos dias Jerome tinha sido visto e ouvido
menos do que era habitual, desde a noite em que ele o descobrira
na cama, a tremer e mal disposto com dores de barriga e de
cabeça, e só conseguira dormir com o tônico estomacal e os
xaropes de Cadfael.
Um movimento furtivo perturbou as filas de trás de irmãos
reunidos, e mostrou o irmão Jerome a sair do seu recolhimento
pouco habitual, avançando pelas filas sem pressa, quase com
relutância. Encaminhou-se para frente com a cabeça caída e os
braços muito apertados ao corpo, como se sentisse um arrepio
mortal à sua volta. Tinha o rosto pálido e atormentado, e os olhos,
quando os ergueu, estavam inflamados. Parecia doente e mirrado.
"Eu devia ter tido o cuidado de acompanhar a doença", pensou
Cadfael, comovido, "mas pensei que ele, mais do que ninguém, não
deixaria de ter todo o tratamento de que necessitava."
Era a única coisa que tinha em mente quando o prior Robert,
espantado e desagradado com o que lhe parecia uma aceitação
muito contrariada de um dever que devia ter sido honroso para o
recipiente, acenou imperiosamente a Jerome para que se
aproximasse do altar.
— Vinde, estamos à espera. Abri com fé.
O abade tinha retirado cuidadosamente as pétalas de
espinheiro negro da lombada, e fechara os Evangelhos. Desviou-se
para abrir caminho para Jerome subir.
Jerome chegou ao fundo dos degraus e parou ali, contrariado,
antes, como um cavalo assustado, respirou fundo e tentou subir, e
depois ergueu os braços para tapar a cabeça, caiu de joelhos com
um grito lastimável, sufocante, e curvou-se para a pedra dos
degraus. Sob os ombros curvados e os braços apertados emergiu
uma voz num uivo tartamudeante como o que um lobo teria soltado
para a noite à procura de companhia para acabar com a sua
solidão.
— Não me atrevo... não me atrevo... Ela fulminava-me se me
atrevesse... não há necessidade, eu entrego-me, confesso o meu
pecado terrível! Saí atrás do ladrão, esperei que ele regressasse, e
Deus tenha piedade de mim, matei aquele homem inocente!

Na quietude horrorizada que se seguiu, o prior Robert, com a


mão autoritária ainda erguida e completamente paralisada, ficou
momentaneamente transformado em pedra, o seu rosto tornou-se
uma máscara de profunda incredulidade. Que uma criatura sua
caísse em pecado mortal, e de um tipo violento, era bastante
surpreendente, mas que aquele dócil mortal alguma vez
empreendesse uma ação pessoal de qualquer espécie revelou-se
um choque ainda maior. O mesmo aconteceu com o irmão Cadfael,
embora para ele fosse igualmente um choque de esclarecimento.
Aquela pobre alma, pálido e ofegante na cama depois de vomitar
desesperadamente, doente e acabrunhado desde essa altura, com
a mente e o espírito gastos e ulcerados pela enormidade do que
tinha feito, Jerome era pela primeira vez completamente digno de
pena.
O irmão Rhun, o mais jovem e mais fresco e a pérola do
rebanho, fez o que a sua natureza pedia, sem pedir autorização, e
ajoelhou-se ao lado de Jerome, rodeando-lhe os ombros trêmulos
com um braço protetor, e erguendo o infortunado penitente para o
seu abraço antes de erguer os olhos, confiante, para o rosto do
abade.
— Padre, independentemente de tudo o mais, ele está doente.
Deixai-me ficar!
— Cuidai dos vossos — disse Radulfus, baixando os olhos para
o par com um rosto quase tão branco como o do prior — que é o
que eu tenho de fazer. Jerome — disse, com autoridade absoluta e
de aço — olha para cima e enfrenta-me.
Agora era já demasiado tarde para levar a confissão para a
privacidade, mesmo que tivesse sido essa a vontade do abade, pois
ela tinha sido feita diante de todos os irmãos, e na qualidade de
membros de um corpo tinham o direito de partilhar a cura de tudo o
que era curável aqui. Mantiveram-se no seu lugar, mudos e atentos,
embora não se tivessem aproximado mais. O semicírculo tinha-se
organizado quase num círculo.
Jerome tinha escutado, e ficou um pouco mais calmo com o
tom. A voz de comando levou-o a fazer um esforço. Tinha libertado
a primeira carga, que era a pior, e logo que levantou a cabeça e
tentou pôr-se de joelhos, o braço de Rhun ergueu-o e apoiou-o.
Apareceu um rosto distorcido, que se congelou gradualmente em
feições humanas.
— Padre, eu obedeço — disse Jerome. — Quero confessar.
Quero penitenciar-me. Cometi um pecado muito grave.
— Penitência na confissão — disse o abade — é o começo da
sabedoria. Faça a graça o que fizer, não pode seguir a negação.
Conta-nos o que fizeste, e como aconteceu.
O recital pouco satisfatório prosseguiu durante algum tempo, e
Jerome, piedosamente pequeno e encolhido e infeliz, apoiava-se no
braço flexível e generoso de Rhun, com aquele rosto radiante e
silencioso a seu lado, que realçava as diferenças flagrantes. A
variedade de humanidade é aterradoramente múltipla.
— Padre, quando se tornou conhecido que as relíquias de
Santa Winifred tinham sido carregadas com a madeira para
Ramsey, quando já não havia dúvida da forma como ela tinha ido
para lá... pois sabíamos, cada um de nós, que não havia qualquer
dúvida, pois quem mais poderia ter sido?... nesse momento fiquei
inflamado de raiva contra o ladrão que se atrevera a cometer um
sacrilégio tão grande contra ela, e uma ofensa tão grave contra a
nossa casa. E quando ouvi dizer que ele tinha pedido e obtido
autorização para ir a Longner naquela noite, temi que pudesse
escapar-nos, quer por ausência, quer mesmo pela fuga, ao perceber
que a justiça ainda podia deitar-lhe a mão. Não podia suportar a
ideia de ele ir em liberdade. Confesso, odiei-o! Mas, padre, nunca foi
minha intenção matar, quando me esgueirei para fora do enclave
sozinho, e fui esperar por ele no caminho pelo qual sabia que ele
tinha de voltar. Nunca pretendi ser violento. Quase nem sei o que
pretendia fazer... confrontá-lo, acusá-lo, dizer-lhe que o fogo do
inferno o esperava no dia do Juízo Final se ele não confessasse o
seu pecado e pagasse agora o preço.
Fez uma pausa e respirou penosamente, e o abade perguntou:
— Foste de mãos vazias? — Uma pergunta pertinente, embora
Jerome, transtornado, não a tivesse compreendido.
— Claro, Padre! Que quereria eu levar comigo?
— Não importa! Continuai.
— Padre, que mais pode haver? Quando o ouvi passar pelos
arbustos, pensei que só podia ser Tutilo. Nunca soube por que
estrada viria o outro homem; tanto quanto sabia, ele já tinha estado
na abadia e já voltara para casa, e tudo isso em vão, como o ladrão
pretendia. E este... vinha tão alegre, a andar na escuridão, a
assobiar canções profanas. Ofensa atrás de ofensa, tão
descontraidamente... não consegui suportar. Peguei num ramo
partido, e quando ele passou atingi-o na cabeça. Derrubei-o —
gemeu Jerome — e ele caiu no caminho, e o capuz caiu da sua
cabeça. Ele nunca mais voltou a mexer-se! Eu aproximei-me,
ajoelhei-me, e foi então que vi o seu rosto. Mesmo no escuro, vi o
suficiente. Aquele não era o meu inimigo, não era o inimigo da
santa, não era o ladrão! E eu matara-o! Então, fugi... mal disposto e
a tremer, fugi dele e escondi-me, mas ele tem-me perseguido desde
aquele momento. Confesso o meu grande pecado, arrependo-me
amargamente, lamento o dia e a hora em que levantei um pau
contra um homem inocente. Mas sou o seu assassino!
Curvou-se para a frente, para os seus braços, e escondeu o
rosto. Sons abafados emergiram entre os soluços dilacerantes, mas
não articulou mais nenhuma palavra. E Cadfael, que abrira a boca
para continuar a história no ponto onde aquele infeliz vingador tinha
parado, fechou rapidamente os lábios e fez silêncio. Seguramente,
Jerome tinha contado tudo o que sabia, e se o fardo que carregava
era ainda maior do que o que fizera, mesmo assim podia continuar a
carregá-lo um pouco mais. "O irmão entregará o irmão à morte"
podia considerar-se verdadeiro para Jerome, pois embora não o
tivesse morto tinha na verdade entregue Aldhelm à morte. Mas se o
que se tinha seguido era também obra de um irmão, então o
assassino podia estar ali presente. Não importava! Deixá-lo ir
contente, satisfeito por esta solução oferecida em terrível boa fé por
Jerome ter sido aceito sem reservas por todos, e a pensar que
estava bastante seguro. Os homens que acreditam estar livres de
todos os perigos podem tornar-se descuidados, e dar um passo
insensato que pode traí-los. Em privado, sim, apenas ao ouvido do
abade, a verdade tinha de ser dita. Jerome tinha cometido um
pecado, mas não se tratava de um pecado tão grande como ele e
todos ali acreditavam. Ele que pagasse plenamente a sua falta, mas
não pelo crime mais frio e mais vil de outra pessoa.
— É uma confissão muito sombria e terrível — declarou o
abade Radulfus, lenta e pesadamente. — Não é fácil de
compreender nem de avaliar, e, valha-me Deus, impossível de
remediar. Preciso, e seguramente todos os que se encontram aqui
presentes também precisam, de tempo para rezar muito e para
refletir profundamente, antes de poder começar a fazer o bem ou a
justiça como é devido. Para além do mais, isto é um assunto que
está para além do meu poder, pois trata-se de homicídio, e a justiça
do rei tem o direito de saber, e até de deter imediatamente, o
assassino confesso de um crime.
Jerome já não oferecia qualquer resistência,
independentemente de tudo o que dissessem ou fizessem contra
ele. Vazio e esgotado, submetia-se a tudo. A inquietação e
consternação que instalara entre os irmãos continuaria a ecoar
durante algum tempo, embora ele que a causara se tivesse
recolhido num estado de apatia e exaustão.
— Padre — disse ele suavemente — aceito qualquer penitência
que me seja imposta. Não quero uma absolvição fácil. O meu desejo
é pagar plenamente por todos os meus pecados.
Ninguém podia duvidar da sua infelicidade extrema naquele
momento. Quando Rhun, na sua bondade, ofereceu um braço para
levantá-lo da sua posição de joelhos, ele ficou pesadamente imóvel,
preso à sua humildade desesperada.
— Padre, deixai-me ir daqui. Deixai-me ficar isolado e
escondido dos olhares dos homens...
— Terás solidão — disse o abade — mas proíbo o desespero. É
demasiado cedo para conselho ou julgamento, mas nunca cedo de
mais nem tarde de mais para rezar, se a penitência é sentida com
verdade. — E para o prior, disse, sem tirar os olhos da criatura
destroçada nas lajes do chão, como um pássaro esmagado e
estropiado: — Ocupai-vos dele. Arranjai-lhe alojamento. E agora ide,
todos vós, ganhai coragem e prossegui os vossos deveres. Em
todos os tempos, em todas as circunstâncias, os nossos votos
continuam a ser um vínculo.
O prior Robert, ainda pesadamente calado e chocado para além
da sua habitual dignidade estudada, levou o seu abalado servidor
para a segunda das duas celas penitenciárias; e era a primeira vez,
tanto quanto Cadfael conseguia lembrar-se, de que estavam ambas
ocupadas ao mesmo tempo. O sub prior Richard, um homem
decente, confortável e plácido, liderou as outras filas para os seus
afazeres normais, e pouco depois para o refeitório, para o jantar, e
graças à sua calma levemente estúpida já tinha acalmado o seu
rebanho para um apetite perfeitamente normal quando foram lavar
as mãos antes da refeição.
Sensatamente, Herluin tinha-se abstido de se envolver no
assunto, uma vez que se destinava a restaurar parcialmente o valor
de Ramsey e implicava o profundo embaraço de Shrewsbury.
Aceitaria de bom grado o donativo prometido pelo conde, e retirar-
se-ia discretamente para o seu mosteiro, embora o que faria a Tutilo
quando o tivesse lá à sua mercê fosse difícil de pensar. Ele não era
homem de esquecer e perdoar.
Quanto à retirada do campo de batalha de Robert Bossu,
aquele homem inquieto, consciencioso, sutil e eficiente, fora um
modelo de consideração e tato, como sempre, com uma palavra
discreta ao abade Radulfus, e um olhar penetrante aos dois
escudeiros, que o compreendiam no erguer de uma sobrancelha ou
no esboçar de um sorriso. Ele sabia quando usar o seu estatuto, e
quando e como abafar o seu brilho e tornar-se discreto no meio de
uma multidão.
O irmão Cadfael esperou pela oportunidade de se aproximar do
ombro do abade, quando este abandonava o coro.
— Padre, uma palavra! Há mais a acrescentar a esta história,
embora não publicamente, talvez, ainda não!
— Ele não mentiu, e não assassinou? — disse o abade, sem
voltar a cabeça. A sua voz era sombria, mas não se ouviu mais
longe do que o ouvido de Cadfael.
— Nem uma coisa, nem a outra, padre, se aquilo em que
acredito é verdade. Ele contou tudo o que sabe, e tudo o que pensa
saber, e tenho a certeza de que não escondeu nada. Mas existem
coisas que ele não sabe, e o conhecimento melhorará de certa
forma um caso que ainda está bastante misterioso. Concedei-me
uma audiência privada, e depois julgai o que deve ser feito.
Radulfus tinha parado a meio de um passo, embora
continuasse sem olhar para trás. Observou os últimos irmãos a sair,
ainda assombrados e calados, pelo claustro, e seguiu com um olhar
o rodopiar das vestes carmesim de Robert Bossu a cruzar o pátio
com os dois escudeiros atrás.
— Dizeis que ainda só ouvimos metade... e a metade que falta
ouvir é a pior? O jovem tem um caixão decente, o seu padre vai
levá-lo hoje para Upton, para ser enterrado no meio dos seus. Eu
não gostaria de adiar a sua partida.
— Não há necessidade — disse Cadfael. — Ele já me disse
tudo o que tem para dizer. Por nada deste mundo o impediria de ter
o seu descanso. Mas o que tenho a acrescentar, embora tivesse
obtido a prova no cadáver, e no lugar onde ele foi encontrado,
preciso agora de compreender claramente. Tudo o que vi foi visto
também por Hugh Beringar, mas depois do que veio à luz esta
manhã esses pormenores encaixam-se no seu lugar.
— Nesse caso — disse Radulfus, após alguma reflexão —
antes de avançarmos mais, penso que Hugh devia vir ter conosco.
Preciso do seu conselho, da mesma forma que ele talvez precise do
teu e do meu. A coisa aconteceu fora das nossas paredes, e não se
encontra dentro da minha jurisdição, embora o criminoso possa
estar. A Igreja e o Estado têm de se respeitar e auxiliar mutuamente,
mesmo nestes tempos de cisão e tristeza. Pois, embora sejamos
dois, a justiça deve ser uma. Cadfael, podes ir à cidade e pedir a
Hugh que venha aqui esta tarde para falar comigo? Depois,
ouviremos o que tens para dizer.
— Irei da melhor vontade — disse Cadfael.
— E como — perguntou Hugh sentado à mesa do meio-dia —
devemos encarar este capítulo de milagres que estiveram a
desvendar esta manhã? É suposto eu acreditar que todas as
respostas foram dadas tão claramente, como se tivessem andado a
procurar nos Evangelhos e tivessem marcado todos os lugares para
fazer cair cada inquiridor? Tens a certeza de que isso não foi feito?
Cadfael abanou a cabeça de modo decisivo.
— Eu não desafio a minha santa. Agi com lealdade, e juro que
o mesmo fizeram todos os outros, pois não havia nenhuma marca,
nenhuma folha marcada, quando peguei no livro antes de qualquer
outra pessoa se aproximar. Abri-o, e obtive a minha resposta, e ela
fez-me pensar melhor e ver claramente onde antes tinha sido cego.
E não sei como justificar o que aconteceu, a menos que tenha sido
ela a falar.
— E todos os oráculos que se seguiram? Ramsey não só
rejeitado como denunciado... Seguramente, foi um pouco duro para
Herluin! E quanto ao conde Robert, a santa condescendeu em
brincar com ele com um paradoxo! Bom, só posso dizer que foi
bastante justo, e é uma pena que ele não tenha a chave de que
necessita para interpretá-lo, pois dar-lhe-ia prazer. E depois, para
Shrewsbury... "Tu não me escolheste, mas eu escolhi-te." Vejo isso
como um aviso e não como um reconhecimento, ela escolheu-te a ti,
e pode muito bem abandonar-te, se lhe aprouver, e é bom que te
acauteles no futuro, pois ela talvez não suporte outro turbilhão que
venha perturbar a sua ordem estabelecida. Dirigido especialmente
ao prior Robert, arriscaria eu, que pensa realmente que a escolheu
e se comporta como se fosse seu proprietário. Espero que ele tenha
percebido a alusão.
— Duvido — disse Cadfael. — Usou a frase como se fosse um
halo.
— E depois, finalmente, Cadfael, as folhas voltarem-se
sozinhas, e abrirem de novo no mesmo lugar. Demasiados milagres
para uma manhã!
— Os milagres — declarou Cadfael, algo sentencioso — podem
ser simplesmente manipulação divina de circunstâncias normais.
Por que não? Quanto ao último oráculo, os Evangelhos foram
deixados abertos, e um vento soprou da porta sul e voltou as
páginas, passando de São João para São Mateus. É verdade que
ninguém entrou, mas penso que alguém deve ter erguido o ferrolho
e entreaberto a porta, e depois voltou a fechá-la de novo, ao ouvir
as vozes no interior e não querendo interromper. Não há dúvidas em
relação ao vento, todos o sentiram. E depois, parou naquele lugar
porque havia algumas pétalas e fragmentos do espinheiro negro que
eu tinha andado a apanhar caídos na lombada, caídos da minha
manga ou dos meus cabelos quando fechei o livro. Uma obstrução
tão ligeira não foi o bastante para afetar as sortes, quando eles
estavam a abrir o livro com cerimônia, com ambas as mãos a
separar as folhas e um dedo a apontar para a frase. Mas quando o
vento voltou as folhas, as flores do espinheiro negro foram o
bastante para parar o movimento naquele lugar. E, no entanto,
poderemos dizer que foi um acaso? E agora que penso no que
aconteceu — disse Cadfael, a abanar a cabeça entre a dúvida e a
convicção — aquele vento parou antes sequer de a página cair.
Observei a última página a voltar-se, e ela parou antes de descer. O
ar por cima do altar estava bastante parado. As chamas das velas
estavam direitas, nunca tremeluziram.
Durante aquele colóquio, Aline tinha estado sentada a escutar
todas as palavras atentamente, mas sem contribuir com nenhuma
sua. Cadfael pensou que ela tinha algo distante e misterioso, como
se parte do seu ser fosse levado para um lugar privado e agradável,
mesmo enquanto os seus olhos azuis olhavam para o marido e para
o amigo com grande inteligência, seguindo o argumento com uma
espécie de afeto indulgente e divertido, apropriado para uma
matriarca a observar os seus filhos.
— A minha senhora — declarou Hugh, captando o olhar dela e
esboçando um sorriso resignado — a minha senhora, como sempre,
está a troçar de nós os dois.
— Não — disse Aline, de repente séria — só que o passo entre
as coisas perfeitamente normais e as milagrosas parece-me tão
pequeno, quase acidental, que me pergunto por que é que vos
surpreende, ou por que vos dais ao trabalho de discorrer sobre ele.
Se fosse razoável, não poderia ser milagroso, pois não?

Na sala de estar do abade encontraram não apenas Radulfus,


mas também Robert de Leicester à espera deles. Logo que as
saudações de cortesia terminaram, o conde, muito educado,
considerou que seria delicado retirar-se.
— Tendes assuntos para tratar aqui que fogem à minha alçada
e competência, e não desejo complicar as coisas para vós. O
senhor abade teve a bondade de me confidenciar o que considerou
apropriado, uma vez que eu fui testemunha do que ocorreu esta
manhã, mas agora tendes causa para averiguar mais, segundo
compreendo. Perdi o pequeno direito que tinha de reivindicar a
santa — disse Robert Bossu, com um sorriso rasgado e um
encolher do seu ombro alto — e devia estar a preparar-me para
partir.
— Senhor — disse Hugh com sinceridade — a paz do rei, como
está e como conseguimos mantê-la, vos diz muito respeito, e a
vossa experiência é maior do que a minha. Se o senhor abade
concordar, espero que fiqueis e nos ajudeis com o benefício da
vossa opinião. Existem assuntos para considerar relacionados com
homicídio. Diz respeito a todos os homens, que têm uma vida para
manter ou para perder.
— Ficai conosco! — exclamou Radulfus. — Hugh tem razão,
precisamos de todos os bons conselhos que pudermos obter.
— E eu tenho tanta curiosidade em mim como qualquer outra
pessoa — concedeu o conde, e voltou a sentar-se de boa vontade.
— O abade diz-me que há mais a acrescentar ao que
testemunhamos aqui esta manhã. Presumo, senhor, que fostes
informado até onde esta odisséia nos leva ainda?
— Cadfael contou-me — disse Hugh — como correram as
sortes, e a confissão do irmão Jerome. Garantiu-me que nós os
dois, pelo que ele e eu vimos no local, podemos ir mais além do que
aquilo que o próprio Jerome sabe.
Cadfael instalou-se ao lado de Hugh no banco almofadado que
estava encostado a uma das paredes apaineladas da sala de visitas
do abade. Do outro lado da janela a luz ainda estava forte e clara,
pois os dias começavam a crescer. A Primavera não estava longe
quando os aglomerados espinhosos de espinheiros negros ao longo
dos promontórios se transformavam de branco em preto, como
montes de neve.
— O irmão Jerome contou a verdade, toda a verdade como a
conhece, mas não é a verdade completa. Vós viste-o, ele não
estava em condições para esconder o que quer que fosse, nem o
fez. Recordai, Padre, o que ele contou como ficou à espera. É
verdade, nós encontramos o local, um recanto recuado nos arbustos
junto ao carreiro, onde ele andou, inquieto, e pisou a erva. Contou
como pegou num ramo caído, quando o jovem apareceu no
caminho, e lhe bateu com ele, e ele caiu sem sentidos, e o capuz
escorregou da sua cabeça. Tudo verdade, nós descobrimos... Hugh
corroborará o que estou a dizer... o ramo caído onde ele o deixou.
Estava parcialmente apodrecido, mas bastante forte e pesado para
entorpecer. E o corpo estava caído como Jerome descreveu,
atravessado no caminho, com o capuz caído para trás da cabeça e
do rosto. E Jerome diz que ao aperceber-se do que tinha feito, e
acreditando que cometera um homicídio, fugiu e veio para cá
esconder-se. Foi o que fez, e estava realmente doente, pois o irmão
Richard encontrou-o pálido e a tremer na cama, quando ele faltou às
Completas. Mas ele nunca disse nada a não ser que estava doente,
como de fato era verdade, e eu dei-lhe remédios. Agora, em
confissão, ele falou apenas num golpe, e eu estou convencido de
que ele bateu apenas uma vez.
— Certamente — disse Radulfus, a franzir o sobrolho
pensativamente — ele não falou de mais nenhum ataque. Não creio
que estivesse a esconder alguma coisa.
— Não, Padre, eu também não. Ele tem andado a arrastar-se à
nossa volta como um homem muito doente desde aquela noite,
horrorizado com o ato que cometeu. Ora, esse golpe é confirmado
pelo exame que eu fiz à cabeça de Aldhelm. A nuca estava
manchada com um pouco de sangue, e no tecido tosco de lã
encontrei fragmentos de madeira do ramo partido. O golpe que
sofreu na nuca poderia deixá-lo inconsciente durante um curto
período de tempo, mas certamente não lhe tinha partido o crânio, e
não podia tê-lo morto. Que dizes, Hugh?
— Digo que a cabeça podia ter-lhe doído muito depois —
respondeu Hugh de imediato — mas nada pior. Mais, não o teria
deixado inconsciente por mais de um quarto de hora, no máximo. O
pior que Jerome podia fazer, talvez, mas não o suficiente para fazer
tanto mal à sua vítima.
— Eu digo o mesmo. E ele diz que bateu, foi verificar de perto e
percebeu o seu erro, e fugiu do local. E eu acredito nele.
— Duvido que lhe restasse coragem para mentir — disse o
conde. — Eu diria que nunca foi um vilão muito arrojado, e hoje
estava muito assustado em relação ao veredicto do Evangelho.
Porém, tinha a certeza de que tinha morto.
— Fugiu naquele terror — disse Cadfael — e a seguir ouviu
dizer que Tutilo encontrara um homem morto. Que outra coisa podia
Jerome pensar?
— E apesar das dúvidas — lembrou-lhes o abade — não
devíamos estar a pensar o mesmo? Tendo ele iniciado um ato tão
terrível, como podemos ter a certeza de que, afinal de contas, não
ficou e acabou o que pretendia fazer?
— Não podemos ter a certeza. Não podemos ter a certeza
absoluta. Não antes de estarmos seguros de tudo, e todos os
pormenores serem conhecidos. Mas estou convencido de que ele
nos contou a verdade, até ao ponto em que conhece a verdade.
Pois o que aconteceu a seguir foi muito diferente. Hugh lembrar-se-
á, e confirmará tudo o que tenho para dizer.
— Lembro-me de tudo bem demais — disse Hugh.
— Alguns passos mais abaixo do caminho encontramos uma
pilha de pedras que se encontravam ali há muito tempo e à volta
das quais tinham crescido musgos e líquenes. Há pedras calcárias
salientes no cume, mais acima, e em alguns lugares caem pela fina
camada de terra e até para o meio das árvores mais abaixo. Neste
monte, a pedra de cima, embora tivesse sido cuidadosamente
recolocada no seu leito, mostrava os selos de musgo crescido
perturbados e partidos. Era pesada, precisei das duas mãos para
pegar. No lado de baixo, irregular, havia sangue. Bastante
escondido quando a pedra estava no seu lugar, mas presente.
Trouxemos a pedra conosco para cá para a examinarmos com mais
cuidado. Foi seguramente a arma do crime. Assim como o sangue
de Aldhelm estava a escurecer na pedra, também fragmentos de
líquen e de pó da pedra estavam alojados nas feridas de Aldhelm.
Tinha o crânio esmagado, e a pedra foi friamente recolocada no
monte. A menos que se olhasse com atenção, parecia intocada.
Dentro de aproximadamente uma semana, o tempo e as plantas
teriam selado novamente todas as pontas soltas que teriam traído a
sua utilização. Pergunto a mim mesmo se Jerome seria capaz de
uma coisa dessas? Levantar uma pedra pesada, bater com ela na
cabeça de um homem que jazia sem sentidos, e depois recolocar a
pedra friamente no lugar onde ela estava antes? Surpreende-me
como é que ele conseguiu forças para bater com força suficiente
para atordoar, e para partir o ramo na pancada, embora este
estivesse parcialmente apodrecido. Lembrai-vos de que ele diz que
então, em temor do que tinha feito, foi espreitar a sua vítima, e
descobriu que tinha atacado o homem errado. Com Aldhelm, não
tinha desavenças. E não esqueçais também que ninguém o tinha
visto, naquele momento ninguém sabia que ele tinha saído do
enclave. Fez o que qualquer homem timorato em pânico teria feito,
fugiu e escondeu-se no interior da comunidade, onde era conhecido
e respeitado, e ninguém teria adivinhado que ele tentara tal façanha.
— Então, estais a dizer claramente — disse o conde Robert,
atento e calmo — que existiram dois assassinos, pelo menos em
intenção, e que este infeliz irmão, quando percebeu que tinha
atingido o homem errado, não tinha qualquer motivo neste mundo
para lhe desejar mais mal.
— É nisso que acredito — confirmou Cadfael.
— E vós, senhor xerife?
— Por tudo o que conheço de Jerome — declarou Hugh — é
essa a leitura que faço do que aconteceu.
— Então, seguindo o mesmo raciocínio — disse o conde —
estais a dizer que o homem que terminou o trabalho tinha motivo
para querer Aldhelm removido do mundo, antes de chegar ao portão
da abadia. Não Tutilo, mas Aldhelm. Este conhecia o seu homem, e
certificou-se de que ele nunca chegaria. Pois o capuz do pastor
escorregou quando ele caiu. Desta vez não foi um engano, ele foi
conhecido, e morto não no lugar de outro, mas por ser quem era.
Fez-se um silêncio breve, profundo, enquanto olhavam uns
para os outros e pesavam as possibilidades. Depois, o abade
Radulfus disse lentamente: — É lógico. O rosto ficou então exposto,
embora Jerome tivesse de se ajoelhar e olhar de perto, pois a noite
estava escura. Mas se ele conseguiu distinguir e reconhecer, o outro
também o poderia fazer.
— Há outro ponto — disse Hugh. — Duvido que Aldhelm
tivesse ficado inconsciente durante mais de um quarto de hora
devido àquela pancada na cabeça. Quem quer que o tenha morto,
foi nesse espaço de tempo, pois ele não se tinha mexido. Não havia
vestígios de movimento. Se o seu corpo se mexeu quando foi
atacado de novo, e fatalmente, não teve mais do que uma
convulsão momentânea. O assassino devia estar por perto. Talvez
tenha testemunhado o primeiro ataque. Certamente, chegou ao local
muito pouco tempo depois. — E perguntou bruscamente: — Padre,
mandastes soltar Tutilo?
— Ainda não — disse Radulfus, sem surpresa. O que Hugh
queria dizer era bastante claro. — Talvez seja melhor não termos
pressa. Tendes razão ao lembrar-nos. Tutilo percorreu aquele
mesmo caminho e encontrou o homem morto. A menos... a menos
que naquele momento ele ainda estivesse vivo. Sim, pode ter sido
Tutilo a terminar o serviço que Jerome tinha começado.
— Ele disse-me — declarou Hugh — como penso que vos disse
a vós, que na escuridão não percebeu quem era o homem morto.
Se o assassino tivesse estado lá antes dele, seria verdade. Mesmo
à luz do dia não conseguimos perceber quem era antes de Cadfael
ter voltado todo o seu rosto para a luz. Ele contou-vos, Padre
Abade, como pôs a mão no lado esquerdo desfeito da cabeça do
morto. Tudo isso, tudo nele, o seu comportamento, a sua voz, o frio
do horror que ele sentia, pois tremeu enquanto falava no assunto,
tudo me pareceu verdadeiro. E no entanto também pode ser
verdade que ele chegou minutos depois da fuga de Jerome,
encontrou o homem atordoado, debruçou-se sobre ele e
reconheceu-o, pois nessa altura o reconhecimento era possível, e
matou-o, e só depois pensou numa maneira de escapar à suspeita,
e foi correndo para a cidade, à minha procura.
— Nenhum dos dois me parece um caso provável — disse o
conde, pensativo — de esmagar a cabeça de outro homem com
uma pedra, embora seja imprevisível o que qualquer homem pode
fazer em situações extremas. Mas ter depois o discernimento e o
sangue frio para recolocar a pedra no seu lugar e disfarçar as
pistas... isso estaria para além do alcance da maioria de nós. Bem,
tende-os a ambos sob custódia, não há pressa.
— É uma questão de tempo — disse Cadfael. — Tu disseste-
me, Hugh, que o criado do padre de Upton contou como se tinha
separado de Aldhelm em Preston, e como Aldhelm foi para a
barcaça.
— Separaram-se aproximadamente às seis horas — confirmou
Hugh, com segurança. — Dali, barcaça e tudo, até ao lugar onde
sofreu a emboscada, demoraria, no máximo, meia hora. O barqueiro
declara o mesmo. Às seis e meia, no máximo, ele chegou ao local
onde morreu. Se me puderes mostrar claramente onde esteve Tutilo
até depois dessa hora, podemos riscá-lo da lista e esquecê-lo.
— Até agora não tive a oportunidade — disse Robert Bossu —
de aprofundar o vosso conhecimento. Mas devo dizer-vos... se não
sabeis já, pois parece-me que pouco vos escapa, e vedes através
das pessoas tão bem como uma floresta ao luar... que o nome de
Hugh Beringar não passa despercebido a homens de consciência.
Como poderia, quando o tesouro público está num caos a maior
parte do tempo, e os funcionários da chancelaria não estão em
contato com a maior parte da terra? Quantos condados, quantos
xerifes, supõe, pagam os seus impostos anuais regularmente e a
tempo e horas? O vosso é conhecido por nunca estar em falta, e o
vosso condado desfruta pelo menos de uma espécie de paz, um
homem pode esperar viajar até à feira da Abadia em segurança e os
vossos tribunais conseguem manter as estradas relativamente livres
daquilo a que nós chamamos, modestamente, maus costumes. Para
além do mais, conseguis manter uma relação amistosa com Owain
Gwynedd, segundo sei, mesmo que Powys se irrite de vez em
quando.
— Eu estudo e treino para manter o meu lugar — declarou
Hugh com um sorriso.
— Vós estudais e treinais para manter o vosso condado
funcionando o mais calmamente possível — disse o conde. —
Assim fazem todos os homens de consciência, mas contra a
corrente.
16

Estavam sentados no apartamento do conde, na ala de


hóspedes, voltados um para o outro e separados por uma pequena
mesa, a beber vinho, e uma porta com cortina fechada e
amortalhada contra o mundo. Robert Bossu estava bem servido. Os
seus escudeiros responderam prontamente ao seu chamado, e
entraram sem fazer barulho e com uma garrafa e copos nas mãos
limpas, e não pareciam temê-lo, mas antes sentir orgulho em igualar
o seu porte e serenidade; mas, apesar de tudo isso, ele mandou-os
sair antes de começar a fazer confidências a um homem que era
quase desconhecido, e Hugh não teve dúvidas de que eles faziam o
que ele ordenava e se mantinham onde não pudessem ouvir a sua
conversa, embora suficientemente perto para responderem
imediatamente, se ele chamasse.
— Eu gosto de ordem — declarou Hugh — e tenho preferência
por manter o meu povo vivo e inteiro, sempre que possível, embora
já tenhais visto que isso nem sempre pode ser feito. Detesto
desperdício. Desperdício de vidas, desperdício de tempo que
poderia ser lucrativo, desperdício da terra que podia ser fértil. Já
tivemos mais do que o suficiente das três situações. Se tento, pelo
menos, mantê-las longe do meu cargo, é caso de espantar?
— Eu devo dar valor à vossa opinião — disse o conde com
deliberação. — Aquilo que dizeis aqui, eu já disse antes de vós.
Agora, vedes algum fim? Quantos mais anos destes avanços e
retrocessos que acabam sempre num beco sem saída? Vós sois um
homem de Stephen. Eu também. Homens tão honrados como nós
seguem a imperatriz. Envolvemo-nos nisto sem pensar muito, mas
digo-vos, Hugh, que está a chegar o momento em que os homens
serão obrigados a pensar, em ambos os lados, antes de o
desperdício os ter perdido a todos, e nenhum homem poder já
erguer uma lança.
— E vós e eu estamos a conservar o que podemos para esse
dia? — inquiriu Hugh, com as sobrancelhas erguidas e uma boca
pesarosa.
— Oh, ainda vai demorar alguns anos, mas esse dia chegará.
Tem de chegar. Havia algum vestígio de sentido quando
começamos, quando Stephen tinha a Normandia e também a
Inglaterra, e a vitória estava à vista. Mas há mais de quatro anos
tudo mudou, quando Geoffrey de Anjou entrou à força na Normandia
e pôs o seu passado em cheque, mesmo que o tivesse feito em
defesa do direito da mulher e do nome do filho.
— Sim — concordou Hugh, terminantemente — no ano em que
o conde de Meulan nos deixou, para proteger o seu direito na
Normandia fazendo um acordo com Geoffrey e reconhecendo-o
como suserano em lugar de Stephen.
— Que mais — perguntou Robert, imperturbado e sem
indignação, até com um sorriso torcido — podia o meu irmão fazer?
O seu direito e o seu título estão lá. Ele é Waleran, conde de
Meulan; por muito que goste dos seus títulos em Inglaterra, a sua
linhagem e identidade estão lá. Nem sequer na Normandia, embora
a maior parte da sua herança esteja na Normandia. Mas o nome, o
nome está na própria França, ele deve vassalagem ao rei de França
por isso, e agora a Geoffrey de Anjou devido à maior parte da sua
herança. Abandone ele o que abandonar, não poderá viver sem a
raiz e o sangue do seu nome. Eu sou o mais sortudo dos dois,
Hugh. Herdei as terras e títulos ingleses de meu pai, posso firmar as
minhas raízes aqui, e aqui ficar. Na verdade, a minha esposa trouxe-
me Breteuil, mas é a parte que menos me interessa, como o título
de Worcester do meu irmão é o que menos lhe interessa a ele.
Assim, ele está lá, e repudiado como um vira-casaca a favor de
Maud, enquanto eu estou aqui, e sou considerado um homem leal a
Stephen. E que diferença vedes entre nós os dois, Hugh? Irmãos
gêmeos, que parentesco mais próximo poderá haver?
— Nenhum — disse Hugh, e ficou em silêncio durante alguns
instantes, a pesar e a ponderar a cuidadosa seleção de palavras. —
Compreendo muito bem — disse ele então — que, com a
Normandia perdida, se seguia isto. Para outros, além dos irmãos
Beaumont. Não existe um único homem entre nós que não fizesse
algumas concessões para proteger este direito enraizado e a
herança dos seus filhos. Podemos considerar que o vosso irmão é
agora um homem de Anjou, e no entanto fará o menor mal possível
a Stephen, e dará a Geoffrey muito pouco apoio ativo. E vós, que
ficastes aqui e sois ainda um homem de Stephen, mantereis a vossa
lealdade, mas o mais discretamente possível, evitando qualquer
ação contra o bando de Anjou da mesma forma que Waleran evita
ações contra Stephen. E ali ele glosará a vossa aliança continuada
e protegerá as vossas terras e interesses, como vós fazeis aqui pela
dele. A divisão entre vós não é divisão nenhuma. É uma
aproximação que unirá os interesses de muitos outros como vós.
Não na causa de Stephen, não na causa da imperatriz e do seu
filho.
— Na causa da sanidade — disse o conde terminantemente. E
estudou Hugh com um interesse forte e crítico, e sorriu. — Vós
também sentistes. Isto se transformou numa guerra que não pode
ser vencida nem perdida. A vitória e a derrota tornaram-se
igualmente impossíveis. Infelizmente, podem passar diversos anos
antes que a maioria dos homens comece a compreender. Nós, que
estamos a tentar montar dois cavalos, já sabemos.
— Se não podemos vencer nem perder — disse Hugh — tem
de haver outra maneira. Nenhuma terra pode continuar eternamente
num empate caótico entre duas forças exaustas, sem governo,
enquanto dois grupos de velhos desorientados se valem dos seus
magros ganhos e olham, impotentes, uns para os outros, incapazes
de erguer uma mão para desferir o coup de grâce.
Robert Bossu contemplou aquele resumo e as pontas dos seus
dedos com uma gravidade pensativa, e depois ergueu um olhar
penetrante, e os seus olhos, que tinham chispas de roxo ardente no
seu negrume, fitaram o olhar firme de Hugh com uma atenção
apreciadora.
— Gosto do vosso diagnóstico. Já dura há demasiado tempo, e
ainda vai continuar durante alguns anos, não vos iludais. Mas não
há maneira de terminar dessa forma, exceto com a morte de todos
os velhos, e não de ferimentos, de estagnação, de velhice e
desgosto. Eu preferia não esperar que me acontecesse uma coisa
dessas.
— Nem eu! — disse Hugh sinceramente. — E, no entanto —
perguntou, com uma sobrancelha inquisidoramente erguida para
fitar aquele olhar inteligente e imperial — que faz um homem
razoável enquanto suporta a espera o melhor possível?
— Cultiva o seu chão, guarda os seus rebanhos, remenda as
suas vedações e afia a sua espada — disse Robert Bossu.
— Recebe os seus rendimentos? — sugeriu Hugh. — E paga
os seus impostos?
— Ambos. Até ao último tostão. E guarda, Hugh... guarda os
seus projetos só para si. Mesmo enquanto termos como traidor e
vira-casacas são brandidos como flechas à procura de alvos ao
acaso. Vós tendes mais experiência. Eu adorava Stephen. Ainda
adoro. Mas não gosto deste nada ruinoso que ele e o primo criaram
entre eles.
A tarde estava a escurecer para dar lugar aos primeiros sinais
de lusco-fusco. Em breve chegaria a hora do sino das Vésperas.
Hugh esvaziou o copo e pousou-o em cima da mesa.
— Bom, é melhor ir cuidar do meu rebanho, se posso contar
com os dois prisioneiros do abade como responsabilidade minha.
Aquilo que temos em mãos continua a ser um homicídio. E vós, sua
senhoria? Suponho que partireis para a vossa região? Não vivemos
tempos em que um homem possa dar-se ao luxo de voltar as costas
durante mais do que alguns dias.
— Detesto ter de ir sem saber o final — admitiu o conde, a
preparar-se para soltar uma gargalhada auto depreciativa. — Eu sei
que o homicídio não é brincadeira, mas estes dois vossos
prisioneiros... Conseguis acreditar que qualquer um deles é capaz
de matar? Oh, eu sei que quem vê caras não vê corações, e que
lidais com eles o melhor possível. Quanto a mim, sim, dentro de um
dia ou dois tenho de me preparar e partir. Estou contente — disse
ele, erguendo-se quando Hugh se levantou — por ter-vos
conhecido. Oh, e obtive outros ganhos, pois Rémy e os seus servos
vêm comigo. Existe espaço na minha casa para tão bom poeta e
fazedor de canções. Sorte a minha tê-lo conhecido antes de ele
partir para o norte, para Chester. Sorte a dele, também, pois teria
desperdiçado a sua eloquência ali. Ranulf tem coisas em mente que
são mais sérias do que a música, mesmo que tenha uma nota de
música em si, coisa que duvido.
Hugh preparou-se para sair, e não foi pressionado para ficar,
embora o conde o tivesse acompanhado formalmente alguns
passos em direção à porta do átrio. Ele tinha dito o que sem dúvida
queria dizer a todos os homens que detinham autoridade, embora
limitada, depois de tê-los avaliado e gostado deles e respeitado o
que tinha encontrado. Tinha sementes para plantar, e andava a
selecionar o solo onde elas poderiam nascer e florescer. Quando
chegou ao cimo das escadas, Hugh ouviu a voz atrás de si proferir
com uma ênfase leve, mas impressionante: — Hugh! Tende isso em
mente!
Hugh e Cadfael vieram juntos da cela de Tutilo, e refugiaram-se
no herbário ao lusco-fusco, depois das Vésperas, para considerar o
pouco que tinham conseguido obter dele; e foi muito pouco, mas
fortemente consistente com o que tinha afirmado desde o começo.
O rapaz tinha os olhos inchados e estava tonto de sono, e se sentia
grande ansiedade em relação ao seu destino, ainda estava
demasiado entorpecido para ser capaz de apreciar as muitas
armadilhas que o esperavam em todos os caminhos. Nem uma
palavra de Daalny; em relação a ela, estava fortemente alerta.
Sentou-se no seu catre estreito, languidamente composto, perto da
resignação, e respondeu às perguntas sem pausas suspeitas,
escutando com o queixo caído e olhos espantados quando Cadfael
lhe contou como os Evangelhos tinham restituído Santa Winifred a
Shrewsbury, e como o irmão Jerome tinha balbuciado a sua
surpreendente confissão antes de ser acusado pelo céu.
— Eu? — gaguejou Tutilo, incrédulo. — A vítima pretendida era
eu? — E por um instante riu-se em voz alta com o absurdo da ideia
de Jerome como assassino, e ele próprio no papel de vítima, e
depois, numa mudança súbita e violenta, ficou horrorizado consigo
mesmo e levou as duas mãos ao rosto, como se quisesse apagar as
próprias marcas do riso. — E a pobre alma desamparada, e
alguém... Oh, Deus, como pôde algum homem... — E depois,
compreendendo inesperadamente as conclusões, ergueu-se
instantaneamente para refutar: — Oh, não, isso não! Não foi
Jerome, isso é impossível. — Bastante seguro, a declarar a sua
certeza com muita firmeza, ele que tinha encontrado os destroços
de um homem. — Não, é claro que não podem e não vão acreditar
nisso. — Não estava a protestar, não estava a exclamar, mas a
declarar outra certeza. Nessa altura já estava completamente
acordado e desperto, os olhos dourados muito abertos e a fitar os
interrogadores, tanto o monástico como o secular, com confiança.
Como homens inteligentes e sensíveis que eram ambos, não
podiam certamente acreditar que Jerome, por muito mesquinho e
malicioso que aquele pequeno ser pudesse ser, pudesse ter
esmagado a cabeça de um homem inconsciente com uma pedra
pesada.
— Uma vez que não estavas em Longner — disse Hugh —
para onde foste naquela noite, para voltares por aquele mesmo
caminho?
— Fui para longe daqui, para estar longe da vista e do
pensamento — disse Tutilo ardentemente. — Estive no sótão do
estábulo da Feira dos Cavalos até ouvir o sino para as Completas, e
depois fui quase até à barcaça, para ser visto a regressar pelo
caminho de Longner, se alguém reparasse em mim.
— Sozinho? — perguntou Hugh.
— É claro que estive sozinho. — Mentiu alegremente e com
firmeza. Não vale a pena mentir a não ser que a mentira seja dita
com convicção.
E aquilo era tudo o que se obteria dele. Não, não tinha
encontrado ninguém, nem à ida nem à vinda, que pudesse confirmar
os seus movimentos. Tinha contado todo o lado pior do que tinha
feito, e não parecia grandemente preocupado com o resto.
Fecharam de novo a porta à chave depois de saírem da cela,
recolocaram a chave no seu lugar na casa do porteiro, e retiraram-
se para a privacidade do herbário onde atiçaram a braseira e
cortaram a escuridão cada vez mais densa da noite.
— E agora — disse Cadfael — penso que serei perdoado se te
contar o resto do que ele fez naquela noite, a parte de que ele não
quis falar.
Hugh recostou-se contra a parede de madeira e disse
calmamente: — Eu devia ter sabido que tu terias o direito de entrar
onde mais ninguém pode. Que é que ele não me contou?
— Ele também não me contou. Eu soube por outra pessoa, e
sem autorização para contar a mais ninguém, nem sequer a ti, mas
acho que ela vai achar que tenho justificação para fazê-lo. A moça
Daalny... já a viste por aí, mas ela mantém-se discretamente
afastada no interior destas paredes...
— A cantora de Rémy — disse Hugh — aquela moça pequena
da Provença.
— Da Irlanda, para ser mais exato. Mas sim, é essa. A mãe foi
posta à venda em Bristol, uma preciosidade estrangeira. Esta
nasceu escrava. O negócio ainda se mantém, e os sermões do
bispo Wulstan não o tornaram ilegal, apenas mal visto. Parece-me
que neste momento o nosso santo ladrão está entre entusiasmos,
sem saber ao certo se quer ser um santo ou um cavaleiro errante.
Agora sonha em libertar a única escrava que encontrará
provavelmente por estas paragens, embora duvide de que ele tenha
percebido que ela é uma moça, e bonita, e que já o tem debaixo de
olho.
— Estás a dizer-me — perguntou Hugh, começando a
resplandecer de diversão — que ele esteve com ela naquela noite?
— Esteve, e não admite porque o senhor dela dá grande valor à
sua voz, e vive no pavor permanente de que ela possa escapar-lhe
por entre os dedos. O que aconteceu foi que o criado que viaja com
eles ouviu que Aldhelm vinha a caminho da abadia para identificar o
irmão que lhe tinha pedido ajuda, e contou a Daalny, sabendo muito
bem que ela própria tinha o rapaz debaixo de olho. Ela avisou-o, ele
inventou a história de que tinha sido mandado chamar a Longner, e
conseguiu obter autorização de Herluin, que não sabia nada sobre
Aldhelm ser esperado na abadia. Tutilo saiu pelo portão, como um
homem honesto, e seguiu pelo caminho de Foregate para a
barcaça, mas desviou para a Feira dos Cavalos e escondeu-se no
sótão por cima do nosso estábulo, exatamente como diz. E ela
esgueirou-se pelo portão grande do cemitério, e foi encontrar-se
com ele lá. Esperaram até ouvirem o toque do sino para as
Completas, e depois separaram-se e seguiram pelos mesmos
caminhos por onde tinham ido. É o que ela diz, e que ele não dirá,
para ela não ter problemas.
— Então eles passaram todo o serão ocupados no meio da
palha, como tantos rapazes e moças antes deles — disse Hugh, e
soltou uma gargalhada.
— Foi o que fizeram, por assim dizer, mas não como esses
pares. Não foi bem assim. Pois ela diz que conversaram. Nada
mais. E aqueles dois tinham muito que conversar, e poucas
oportunidades para fazê-lo até então. Foi a primeira vez que
estiveram juntos do lado de fora destas paredes. Mesmo assim,
duvido que tenham ido ao cerne do que deviam dizer. Pois, acredita
em mim, Hugh, ela já imprimiu a sua marca nele, e ele, embora
possa ainda não saber, está profundamente dominado por ela.
Segundo ela, quando ouviram o sino para as Completas, rezaram
juntos as orações noturnas.
— E acreditas nela?
— Se assim não fosse, por que diria? — disse Cadfael com
simplicidade. — Ela não tinha nada para me provar. Contou-me de
livre vontade, e não tinha necessidade de acrescentar uma única
palavra.
— Bom, se é verdade — disse Hugh, muito sério — fala por ele.
Coincide com a hora a que ele veio ter conosco ao castelo, e
coloca-o uma hora depois de Aldhelm naquele caminho. Mas
percebes tão bem como eu que a palavra da moça dificilmente será
tomada mais a sério como prova do que a dele, se as coisas
estiverem assim entre os dois. Por muito inocente que esse
encontro possa ter sido.
— Já pensaste — perguntou Cadfael sombrio — que Herluin
quererá seguramente voltar para casa, agora que perdeu a sua
aposta? E ele é o superior de Tutilo, e certamente quererá levá-lo
consigo. E segundo a minha opinião, tendo em conta o estado em
que o caso se encontra, tem todo o direito a fazê-lo. Se o tivesses
prendido no castelo por ações suspeitas, as coisas seriam
diferentes. Mas ele está aqui na prisão da Igreja, e sabes como a
Igreja se agarra aos seus. Entre uma condenação secular por
homicídio e uma clerical por roubo e fraude, é provável que o rapaz
prefira a última. Mas entre a tua custódia e a de Herluin,
francamente, eu preferiria que ele estivesse a teu cargo. Mas
Herluin nunca o libertará de boa vontade. A pobre criança fez o seu
prior ter esperança de ganhar uma santa que opera milagres, e
depois não conseguiu ser bem sucedido, e provocou uma
reprimenda e grande humilhação. Vai pagar por isso dez vezes,
quando Herluin o apanhar em casa. Não sei, mas preferia vê-lo
acusado de um crime de que é inocente, e levado para a tua prisão,
do que ser arrastado para uma penitência infinita pelo delito de que
ele próprio se confessa culpado.
Hugh estava a sorrir, um pouco retorcidamente, e a olhar para
Cadfael por cima do ombro com pesarosa afeição.
— É melhor ir trabalhar o dia ou dois que me resta, e encontrar
o homem que realmente cometeu o homicídio, já que estás tão certo
de que não foi este rapaz. Seguramente, vão partir todos juntos,
pois Rémy e o seu grupo vão trabalhar para Robert Bossu, e o
caminho que Herluin vai tomar para casa é pela mesma estrada até
Leicester... foi por isso que a carroça foi assaltada lá, e tudo isto
começou... assim sendo, ele seria louco se dispensasse uma
escolta segura e não pedisse para viajar com o conde, se na
verdade o conde não o convidar antes de ele ter oportunidade de
pedir. Talvez consiga adiar a partida de Robert por dois dias, mas
não mais do que isso.
Levantou-se e esticou-se. Tinha sido um dia repleto de
acontecimentos, com muitos mistérios apresentados e nenhum
solucionado. Tinha conseguido uma hora ou duas na companhia de
Aline, e uma brincadeira com o tirano Giles de cinco anos, antes de
o rapaz ter sido levado para a cama por Constance, a sua dedicada
escrava. Que as considerações menores, e já agora também as
grandes, ficassem suspensas até ao dia seguinte.
— E de que responsabilidades especiais queria ele falar contigo
em particular esta tarde? — perguntou Cadfael quando o amigo se
voltou para a porta.
— Da necessidade — disse Hugh, voltando-se para trás e
pesando as palavras com cuidado — de todos os homens
inteligentes envolvidos nesta contenção sem solução começarem a
procurar um meio de acabar com as facções, já que nenhuma delas
tem a menor esperança de vencer. A coisa está a tornar-se muito
simples: como sair de uma fossa antes de o esterco nos chegar ao
queixo. Podes pensar nisso, Cadfael, enquanto dizes uma palavra
ao ouvido de Deus durante as Completas.
Cadfael nunca conseguiu ter a certeza absoluta do que o levou
a pedir emprestada a chave de novo depois das Completas, e ir
fazer uma visita tardia a Tutilo. Podia ter sido o som da voz leve e
pura que vinha do interior da cela, e que ouviu de uma maneira
arrepiante do outro lado do pátio quando saiu do último Serviço
naquela noite. Via-se uma tira de luz fraca na janela alta com
grades; o prisioneiro ainda não tinha apagado a sua pequena
candeia. Cantava muito baixinho, pois não queria que ninguém o
ouvisse lá fora, mas o tom era tão pungentemente verdadeiro no
centro da nota como uma flecha no dourado de um alvo, que era
transportada na imobilidade do lusco-fusco para os cantos mais
remotos do pátio, e fez Cadfael parar a meio de um passo,
profundamente comovido com a sua beleza. O rapaz estava um
pouco fora do tempo: ainda estava a cantar o fecho do Serviço.
Nada tão maravilhoso tinha sido ouvido no coro da igreja. Anselm
era um chantre excelente, e há muito tempo, quando era jovem,
devia ter cantado assim: mas Anselm, apesar de todas as suas
capacidades, estava velho, e esta era uma voz sem idade que podia
pertencer a uma criança ou a um anjo. "Bendita seja a condição
humana", pensou Cadfael, "que nos permite a nós, criaturas
deterioradas e falíveis, que não são anjos nem crianças, produzir
sons como estes, que pertencem a outro mundo. Misericórdias não
procuradas, graça não merecida!"
Bom, podia ser um sinal. Ou, então, o que o fez ir buscar a
chave à casa do porteiro podia ter sido simplesmente a sensação de
que tinha de fazer mais um esforço para arrancar alguma coisa útil
ao rapaz antes de ir dormir, alguma coisa que pudesse indicar um
caminho em frente, talvez alguma coisa de que Tutilo nem se
tivesse apercebido de que sabia. Ou, pensou Cadfael depois, podia
ter sido uma forte cotovelada nas costelas dada por Santa Winifred,
a estender a sua graça de um pensamento desde a sua campa em
Gwytherin, depois de ter perdoado o jovem desavergonhado que
tivera o excelente gosto de desejá-la, tal como tinha perdoado o
velho desavergonhado que tivera a presunção de supor que estava
a interpretar a sua vontade, tão impudentemente, há tantos anos.
Fosse o que fosse, dirigiu-se para a casa do porteiro, com a beleza
arrebatadora e agonizante de Tutilo a segui-lo durante todo o
caminho. O irmão porteiro entregou-lhe a chave sem perguntas; na
sua solidão, Tutilo mostrara todos os sinais de resignação e
satisfação, como se gostasse da paz e sossego para pensar no seu
estado atual e nas perspectivas futuras. Independentemente dos
motivos complexos que se tivessem combinado para levar Tutilo
para o claustro, não havia nada de falso em relação à sua fé; se não
tinha feito mal, estava certo de que não lhe aconteceria mal
nenhum. Ou então, é claro, sendo o rapaz que era, estava a
convencer todas as pessoas à sua volta a acreditarem na sua
docilidade, até deixarem de observá-lo atentamente, e deixarem-no
sair da armadilha como uma enguia. Com Tutilo, nunca se podia ter
a certeza absoluta. Daalny tinha razão. Era preciso conhecê-lo
muito bem, para saber quando ele estava a mentir e quando estava
a falar a verdade.
Tutilo ainda estava de joelhos diante da cruz pequena e simples
da parede da cela, e não olhou em volta imediatamente quando a
chave rodou na fechadura, e a porta se abriu nas suas costas. Tinha
parado de cantar, e olhava pensativamente para frente, com os
olhos muito abertos, e o rosto plácido e abstraído. Voltou-se quando
a porta se fechou pesadamente, e ao ver Cadfael esboçou um
sorriso bastante triste e sentou-se no seu catre. Pareceu levemente
surpreendido, mas não fez qualquer comentário, submisso à espera
de ouvir o que queriam agora dele, e sem apreensão, porque fora
Cadfael quem viera.
— Não, nada — disse Cadfael com um suspiro, respondendo
ao olhar. — Apenas uma esperança torturante de que o fato de teres
falado conosco há pouco possa ter dado um novo rumo à conversa.
Que tivesses recordado alguma pequena coisa que possa ser útil.
Tutilo abanou a cabeça lentamente, com boa vontade, mas sem
novidades.
— Não, não me lembro de nada que não vos tenha dito. E tudo
o que vos disse é verdade.
— Oh, não duvido de ti — disse Cadfael, resignado. — No
entanto, não esqueças. O pormenor mais insignificante, algo que
pensas que não tem importância, pode ser o grão que faz o peso.
Não importa, deixa as tuas ideias assentar, algo poderá ocorrer-te.
— Olhou em volta da cela branca, vazia. — Estás suficientemente
quente aqui?
— Depois de estar debaixo das cobertas, bastante quente —
disse Tutilo. — Já dormi em camas mais duras e com mais frio
muitas vezes.
— E não falta nada? Alguma pequena coisa que possa fazer
por ti?
— De acordo com a Regra, nem devíeis oferecer — disse
Tutilo, e de repente esboçou um sorriso resplandecente. — Mas sim,
talvez haja uma coisa lícita que posso pedir, até para meu próprio
bem. Tenho mantido as horas, aqui sozinho, mas por vezes há
bocados de que me esqueço. E, para além disso, sinto a falta de ler
o livro para passar o tempo. Até o padre Herluin aprovaria. Podíeis
trazer-me um breviário?
— Que aconteceu ao teu? — perguntou Cadfael, surpreendido.
— Eu sei que tinhas um, um pequeno e fino. — O pergaminho
fino tinha sido dobrado muitas vezes e as folhas estavam
machucadas. — Precisas de bons olhos para aquela letra
minúscula, mas os teus olhos são suficientemente jovens para
serem bons.
— Perdi-o — disse Tutilo. — Tinha-o na missa, um dia antes de
ser preso aqui, mas onde o deixei ou o perdi, não sei. Sinto a falta
dele, mas não consigo descobrir o que fiz com ele.
— Tinha-o no dia em que Aldhelm devia vir para cá? No dia...
antes, na noite... em que o encontraste?
— É o último de que me lembro, e posso tê-lo deixado cair da
sacola ou tê-lo perdido algures no meio das árvores no escuro, é
disso que tenho receio. Naquela noite, não estava em condições de
prestar muita atenção — disse, tristemente — depois de tê-lo
encontrado. Quando corri pelo caminho e atravessei o rio para a
cidade, podia tê-lo perdido em qualquer lado. Neste momento, pode
estar no fundo do Severn. Gostaria de tê-lo — disse, seriamente —
e levanto-me para a Matina e para as Laudes à noite. A sério!
— Vou deixar-te o meu — disse Cadfael. — Bom, o melhor é
dormires, se vais levantar-te como nós à meia-noite. Mantém a
lamparina acesa até essa altura, se quiseres, tem azeite suficiente.
— Tinha verificado o pequeno recipiente com a ponta de um
dedo.
— Boa noite, filho!
— Não vos esqueçais de fechar a porta — disse Tutilo atrás
dele, e riu sem uma ponta de amargura.
Ela estava no canto mais escuro, magra e imóvel e ereta,
encostada às pedras da parede da cela, quando Cadfael virou a
esquina. O brilho tênue da candeia de Tutilo através das grades
altas, acima dela, incidia no seu rosto como não mais do que a luz
fraca de um pirilampo, conjurando da escuridão profunda a máscara
espectral de um rosto, oval, esquivo, com austeras feições cavadas,
mas a luz que se escoava da janela ocidental da igreja, pouco
menos intensa, incidia sobre o brilho forte e latente dos seus olhos,
e sobre alguns pontos de brilho que eram fios de prata bordados
junto às costuras laterais das suas vestes. Ela tinha vestido as suas
roupas melhores, pois estivera a cantar para Robert Bossu. Uma
presença esguia, imóvel e intensa na imobilidade da noite. Daalny,
rainha de Partholan, uma semideusa do paraíso ocidental.
— Ouvi as vossas vozes — disse ela, a sua própria voz apenas
um sussurro; os sussurros ouvem-se melhor do que frases
proferidas em voz baixa. — Não podia chamá-lo, alguém poderia
ouvir. Que vai acontecer-lhe, Cadfael?
— Espero — disse Cadfael — que não lhe aconteça muito mal.
— Se ficar muito tempo em cativeiro — declarou ela — vai
deixar de cantar. E depois morrerá. E depois de amanhã partimos
com o conde para Leicester. Eu já recebi ordens de Rémy, amanhã
tenho de começar a guardar os instrumentos para serem
transportados em segurança, e na manhã seguinte partimos.
Bénezet deve estar a cuidar de todos os cavalos, e a exercitar o de
Rémy para ter a certeza de que a ferida sarou bem. E vamos. E ele
fica. A mercê de quem?
— De Deus — respondeu Cadfael com firmeza — e com a
intercessão dos santos. Pelo menos de uma santa, pois ela
acotovelou-me com a semente de uma ideia. Agora vai para a tua
cama, e mantém a esperança, pois ainda nada acabou.
— E que é que ganho com isso? — replicou ela. — Podíamos
provar dez vezes que ele não cometeu homicídio, mas mesmo
assim ele seria arrastado para Ramsey, e eles vão vingar-se dele,
não tanto por ser um ladrão, mas por o seu roubo ter resultado mal.
No grupo do conde metade do caminho, e com uma escolta
demasiado forte para poder fugir. — Baixou os olhos ardentes para
a grande mão escura em que Cadfael tinha a chave, e de repente
sorriu. — Agora sei qual é a chave certa — disse.
— Pode ser trocada para o prego errado — disse Cadfael,
calmamente.
— Mesmo assim, eu a reconheceria. Só existem duas
semelhantes em tamanho e formato, e lembro-me bem do padrão
do denteado da errada. Não voltarei a cometer o mesmo erro.
Preparava-se para lhe dizer para não interferir e confiar na
justiça divina, mas depois teve uma súbita visão da justiça divina
como a Igreja por vezes a aplicava, de boa-fé mas de uma forma
pavorosa, com toda a tacanhez e desumanidade virtuosa de mentes
cegas e surdas perante a variedade infinita da humanidade, os seus
defeitos, e aspirações, e necessidades, e esquecidos de todos os
lembretes do Evangelho referentes aos publicanos e aos pecadores.
E pensou em rouxinóis em gaiolas, a definhar sem ar para fazer
vibrar as suas cordas vocais, sem alma para cantar, e percebeu que
podiam muito bem morrer. Metade da humanidade estava aqui
nesta moça magra e morena ao seu lado, e essa metade da
humanidade tinha o seu direito a pensar, a determinar e a imiscuir-
se, não menos do que a metade masculina. Afinal de contas, eram
igualmente responsáveis pela continuação da humanidade. Não
havia um único arcebispo nem um único abade no mundo que não
tivesse uma mãe de carne e osso, e tivesse sido gerado numa
cópula ardente.
Ela faria o que achasse melhor, e ele também. Depois de
recolocar a chave no seu lugar, ele não era responsável pela
vigilância das chaves.
— Bem, bem! — disse Cadfael com um suspiro. — Deixa-o
sossegado esta noite. Deixa todas as coisas como estão. Quem
sabe se os céus amanhã não estarão muito mais claros?
Deixou-a então, e percorreu o pátio para a casa do porteiro,
para devolver a chave ao irmão porteiro. Atrás dele, Daalny disse
suavemente: — Boa noite! — O seu tom era calmo, cortês e
alheado, não prometendo nada, não confidenciando nada, uma
saudação neutra da escuridão.
17

E que tinha ele em concreto daquele último regresso instintivo


para interrogar o rapaz uma vez mais, na esperança de alguma
recordação súbita que desvendasse a verdade como se estivesse a
abrir as portadas numa manhã de Verão? Apenas uma pequena
coisa: Tutilo tinha perdido o seu breviário, algures, não sabia
quando, no dia do crime. Com meia milha de bosque e duzentas ou
trezentas jardas de vielas de Foregate, e a corrida apressada para a
cidade e depois para a abadia, se fora apenas isso. Um breviário
pode ser recopiado. E no entanto, se aquilo era tudo, por que é que
sentira Santa Winifred a abaná-lo impacientemente no ombro e a
sussurrar-lhe ao ouvido que ele sabia muito bem onde começar a
procurar, e que era melhor fazê-lo de manhã, pois o tempo estava a
esgotar-se?
Cadfael levantou-se muito antes da Prima, abrindo os olhos
para um lusco-fusco matinal com a promessa cinzento prateada de
céu limpo e uma calmaria sem vento, e com a consciência de uma
tarefa já decidida e à espera de ser completada. Mais valia fazer o
empreendimento servir dois objetivos. Foi primeiro à sua oficina,
para selecionar os remédios que podiam estar em falta no hospital
de Saint Giles, no fim de Foregate; essencialmente unguentos e
loções para erupções cutâneas, pois os vagabundos que vinham
refugiar-se ali chegavam normalmente a sofrer dos males
provenientes de uma vida de fome e pouco asseio, muitas vezes
não por culpa deles. Os problemas do frio não eram menos graves,
especialmente entre os idosos, cujo ar chiava e arranhava nos seus
pulmões como folhas secas por deambularem pelas estradas. Com
a sacola já abastecida, olhou em volta para ver os trabalhos que
necessitavam de mais atenção, e marcou tarefas suficientes para
manter o irmão Winfrid ocupado durante as horas de trabalho da
manhã.
Depois da Prima, deixou Winfrid a cavar alegremente uma leira
para plantar couves mais tarde, e foi pedir uma chave ao porteiro. A
seguir à esquina oriental da parede das celas, no extremo mais
afastado da Feira dos Cavalos e a meio caminho de Saint Giles,
situava-se o grande celeiro e estábulo, com sótão, para onde os
cavalos tinham sido transferidos do estábulo do pátio no interior do
recinto da abadia durante a cheia. Fora naquela parte da estrada
que a carroça de Longner estivera à espera, enquanto os
carroceiros se esforçavam para salvar os tesouros da igreja, e fora
ali que Tutilo saíra pelos portões do cemitério para puxar Aldhelm
pela manga, e o tornara cúmplice involuntário daquele roubo
sacrílego. E ali, na noite da morte de Aldhelm, segundo Daalny, ela
e Tutilo haviam-se refugiado na palha do sótão, para ele evitar ter
de encarar a testemunha e admitir o crime, e não se atrevera a
voltar até ouvirem o sino para as Completas. Nessa altura o perigo
já tinha realmente passado, pois o jovem inocente estava morto.
Cadfael abriu as portas principais, e deixou uma parte aberta.
Na penumbra com odor a palha da sala inferior situavam-se os
estábulos para os cavalos, embora nenhum deles estivesse
ocupado. Nas vendas de gado sazonais haveria muitos criadores da
região a guardar os seus animais ali, mas nesta época o local era
pouco usado. Praticamente no meio da sala comprida, uma escada
de madeira dava acesso a um alçapão por onde se entrava para um
sótão. Cadfael subiu-a, tirou o ferrolho do alçapão e desviou-o para
o lado, e entrou numa sala superior iluminada por duas janelas
estreitas e sem portadas. Alguns barris alinhavam-se contra a
parede do fundo, uma série de ferramentas no canto mais próximo,
e ainda havia grandes quantidades de feno, pois as culturas de erva
tinham sido boas dois anos seguidos.
Eles tinham deixado a sua marca no feno empilhado. Não havia
dúvida de que duas pessoas tinham estado ali recentemente, os
dois ninhos acolhedores e fundos viam-se claramente. Mas quem
eles eram, foi o que levou Cadfael a parar durante alguns momentos
em interessada contemplação. Suficientemente próximos para se
consolarem e aquecerem, mas, no entanto claramente separados, e
tão bem preservados que podiam ter sido feitos deliberadamente.
Não houvera ali uma arrebatada cópula rústica, apenas dois
pequenos pecadores ansiosos, escondidos das partidas do destino
por uma noite, mesmo que o golpe tivesse de cair no dia seguinte.
Deviam ter estado sentados muito quietos, para evitar até o barulho
da palha à volta dos pés.
Cadfael olhou à sua volta, em busca da pequena coisa estranha
que tinha vindo procurar, sem qualquer garantia de que estaria ali,
apenas uma convicção íntima de que um dedo benevolente lhe tinha
indicado aquele lugar. Mal tinha começado a procurar quando
descobriu o que viera procurar, pois o canto do sólido quadrado de
madeira desviara-o algumas polegadas, e escondera-o
parcialmente. Um livro fino, encadernado em pele tosca, com os
cantos muito gastos de tanto ser transportado e usado, e pela
fricção de duras sacolas. O rapaz devia tê-lo pousado quando se
preparavam para sair, para ter as mãos livres para ajudar Daalny a
descer a escada, e concentrara-se tanto para colocar o alçapão no
lugar que se esquecera de pegar no livro.
Cadfael pegou-lhe e ergueu-o, agradecido. Havia uma tira de
palha amarela a marcar uma página, e o lugar que marcava era o
ofício das Completas. Ali no escuro não conseguiriam lê-lo, mas de
qualquer maneira Tutilo saberia o texto de cor, e aquele gesto era
simplesmente uma pequena celebração para provar que tinham
cumprido as horas fielmente. Cadfael pensou que seria fácil
afeiçoar-se àquele malandro dotado, por vezes uma afeição
divertida, muitas vezes exasperada, mas, no entanto afeição. Para
além, é claro, daquela voz angélica tão generosamente concedida a
quem não era certamente um anjo.
Estava muito quieto, a um ou dois passos do alçapão aberto,
quando ouviu um pequeno som lá em baixo. A porta tinha sido
deixado aberta, qualquer pessoa podia ter entrado, mas não tinha
ouvido passos. O que ele tinha ouvido fora um ligeiro raspar de
cerâmica tosca contra cerâmica tosca, barro mal cozido, uma tampa
pesada a ser erguida de um grande contentor de armazenamento. A
fricção de um pequeno movimento de içar fez um ruído breve e
desagradável que ecoou de forma estranha, e o fez ranger os
dentes. Alguém tinha tirado a tampa do contentor de milho. Fora
cheio quando os cavalos tinham sido retirados, e não teria sido
esvaziado novamente, em caso de maior necessidade, uma vez que
os rios ainda corriam um pouco cheios, e a estação ainda não era
completamente segura. E, uma vez mais, o barulho ligeiramente
diferente, mas ainda desagradável da tampa a ser recolocada. Foi
muito suave, um toque minúsculo, mas ele ouviu-o.
Mexeu-se cuidadosamente, para poder olhar pelo alçapão, e
alguém lá em baixo, ao ouvi-lo, cumprimentou-o alegremente: —
Estais aí, irmão? Está tudo bem! Vim buscar uma coisa de que me
esqueci quando mudamos os cavalos. — Pés pisaram a palha do
chão, agora com ruído, e Bénezet, o criado de Rémy, ficou à vista, a
sorrir amigavelmente para o sótão, e a brandir um freio que
mostrava reflexos de decoração dourada no freio e na rédea. — Do
meu senhor Rémy! Andei a passear o seu cavalo pela primeira vez
desde que ele ficou coxo, e trouxe-o para aqui aparelhado, e deixei
ficar isto. Vamos precisar dele amanhã. Estamos a arrumar as
nossas coisas.
— Já ouvi dizer — declarou Cadfael. — E partis com uma
escolta segura. — Guardou o breviário no hábito, pois deixara a
sacola lá embaixo, passou cuidadosamente pelo alçapão e começou
a descer a escada. Bénezet esperou por ele, a balançar o freio.
— Lembrei-me a tempo onde o tinha deixado — disse ele, a
passar um polegar pelas decorações gravadas em relevo no freio e
na rédea. — Perguntei ao porteiro, e ele disseme que o irmão
Cadfael tinha levado a chave e que estaria aqui, por isso vim buscar
isto enquanto o estábulo estava aberto. Se estais despachado,
irmão, podemos sair juntos.
— Ainda tenho de ir a Saint Giles — disse Cadfael, e voltou-se
para pegar na sacola. — Eu fecho a porta, se não tens mais que
fazer aqui, e vou para o hospital.
— Não, estou despachado — disse Bénezet. — Só precisava
disto. Ainda bem que me lembrei, se não os melhores arreios de
Rémy teriam ficado a balançar naquele ancinho, e eu teria de os
pagar do meu salário e com a minha pele.
Despediu-se rapidamente, seguiu para a esquina, e avançou
para a estrada a direito de Foregate, sem olhar para trás. Nunca
tinha olhado para o cesto de milho que se encontrava no seu nicho
sombrio. Mas ele tinha tirado o freio do último cesto de milho. Pelo
menos, fizera questão de deixar isso claro.
Cadfael dirigiu-se para o contentor de milho e levantou a tampa.
Havia grãos espalhados na borda, e no chão em volta. Não era uma
grande quantidade, mas estavam ali à vista. Mergulhou os dois
braços no cereal escorregadio, e procurou no fundo até os dedos
tocarem a base, e os grãos deslizarem, frios, pelas suas mãos, e
não encontrou nada estranho. Não estava a esconder uma coisa,
mas a retirá-la; e, fosse o que fosse, tinha uma natureza e formato
calculados para trazer apenas alguns grãos consigo quando
emergisse. O freio os faria deslizar de novo para a ânfora. Alguma
coisa com pregas que prendesse os grãos? Tecido?
Ou sentira simplesmente curiosidade de saber quanto cereal
ainda havia no interior? Uma simples curiosidade? De vez em
quando, as pessoas fazem coisas estranhas e inconsequentes,
divergindo sem motivo do que está a ocupá-las no momento. Coisas
estranhas e inconsequentes são por vezes extremamente
significativas. Cadfael sacudiu-se, fechou a grande porta à chave, e
dirigiu-se para Saint Giles.
Quando voltou com a sacola vazia, havia uma atividade
importante mas sem pressas no grande pátio, a azáfama natural
antes de uma partida. Não havia pressa, tinham o dia inteiro para se
preparar. Os dois escudeiros de Robert Bossu andavam para trás e
para frente na ala de hóspedes, a reunir as roupas e o equipamento
de que o seu senhor precisaria na viagem. Ele viajava com pouca
bagagem, mas gostava de um serviço meticuloso, e obtinha-o, por
norma, sem ter de se dar ao trabalho de dizer o que quer que fosse.
O criado Nicol e o seu companheiro mais jovem, o que tinha ficado
para voltar de Worcester para Shrewsbury a pé, e fizera o percurso
rapidamente, tinha muito pouco que fazer para se preparar, pois
desta vez as esmolas que tinham reunido para a sua casa seriam
levadas na carruagem da bagagem do conde Robert, a mesma que
trouxera o relicário de Santa Winifred para casa, e seria agora a
carruagem para as bagagens de todos, enquanto o cavalo de carga
do conde providenciaria um transporte digno para o sub prior
Herluin. Robert Bossu era generoso em pequenas atenções para
com Herluin, o que era muito reconfortante para a sua dignidade.
E o terceiro dos três grupos agora reunidos para a viagem era o
que tinha, talvez, os preparativos mais complicados para fazer.
Daalny desceu cuidadosamente os degraus da ala de hóspedes
com um bonito órgão portátil nas mãos, com o pescoço elegante
esticado para espreitar pelos lados do seu fardo para ver a ponta de
cada degrau, pois os instrumentos de Rémy eram talvez mais
preciosos do que a própria cantora. O órgão tinha um estojo feito
especialmente para protegê-lo, mas era muito volumoso, e como o
espaço no interior estava limitado, o estojo tinha sido guardado no
estábulo. Daalny atravessou o pátio, segurando o instrumento como
se tivesse uma criança no braço e a apertá-lo cuidadosamente com
a mão livre, pois para ela era um objeto de amor tão grande como
para o patrão. Ergueu os olhos para Cadfael, quando ele chegou
junto dela, e brindou-o com um sorriso circunspecto, como se
selecionasse e suprimisse mentalmente os tópicos que podiam
surgir com aquele companheiro, mas que seria melhor evitar.
— Tu trazes a carga mais pesada — disse Cadfael. — Deixa-
me levá-lo.
Ela sorriu mais calorosamente, mas abanou a cabeça.
— Eu sou a responsável, sou eu que o levo ou que o deixo cair.
Mas não é assim tão pesado, apenas volumoso. A caixa está ali
dentro. De couro, macia, almofadada. Podeis ajudar-me a colocá-lo
no interior, se quiserdes. São precisas duas pessoas, uma para
segurar a caixa bem aberta.
Ele entrou com ela no pátio do estábulo, e segurou
obedientemente a tampa levantada do estojo para ela pousar o
pequeno órgão no interior. Ela fechou a tampa do estojo, e apertou
as tiras que a mantinham segura. À volta deles, os jovens
escudeiros do conde faziam eficientemente o seu serviço com a
agilidade e graça prazenteira da juventude, e no extremo mais
afastado do pátio Bénezet estava a limpar selas e arreios, e a dispor
o seu trabalho num suporte de madeira, onde os xairéis estavam
estendidos a uma pálida luz do sol que começava já a ter um grau
surpreendente de calor. O freio ornamentado de Rémy encontrava-
se num gancho ao lado dele.
— O teu senhor gosta de arreios bonitos — disse Cadfael, e
apontou. Ela seguiu o olhar dele impassivelmente.
— Oh, aquilo! Não pertence a Rémy, mas a Bénezet. Nem vale
a pena perguntar onde é que ele arranjou aquele freio. Já pensei
muitas vezes que o roubou, mas ele mantém a boca calada, é
melhor não perguntar.
Cadfael digeriu aquilo sem comentários. Para quê uma mentira
tão escusada? Não tinha nenhum objetivo detectável, que ele visse,
por isso era em si causa para mais reflexão. Talvez Bénezet
pensasse que era sensato atribuir a posse de um bem tão precioso
ao seu senhor, para evitar curiosidade em relação a como a
obtivera. Daalny acabara de sugerir isso mesmo. Levou o assunto
um pouco mais longe, num tom muito casual.
— Ele não tem muito cuidado com ela. Tinha-a deixado no
celeiro da Feira dos Cavalos todo este tempo desde a cheia. Só foi
buscá-la esta manhã.
Desta vez ela voltou a cabeça, de repente atenta, e as mãos
pararam na última tira.
— Ele disse-vos isso? Ele passou meia hora a limpar e a polir
aquele freio hoje de manhã cedo. Nunca saiu daqui, vi-o uma dúzia
de vezes.
Os seus olhos eram grandes, brilhantes e rápidos a especular.
Cadfael não queria que ela começasse a pensar demais; ela já
estava mais profundamente envolvida do que ele gostaria, e era
bastante imprudente para se precipitar numa ação insensata
naquele extremo, quando estava prestes a ser levada para
Leicester, sem nada resolvido e nada ganho. Era de longe preferível
mantê-la longe daquilo, se era de alguma maneira possível. Mas ela
era muito inteligente; já tinha detectado a discrepância. Cadfael
encolheu os ombros e disse, indiferente: — Devo tê-lo
compreendido mal. Ele esteve lá a meio da manhã, com ela na mão.
Eu pensei que ele tinha ido lá buscá-la, pois estava no estábulo de
lá. Achei que pertencia a Rémy.
— Bom, é lógico que pensásseis — concordou ela. — Eu
própria tenho perguntado a mim mesma como a teria ele
conseguido. Talvez na Provença, muito provavelmente. Mas
honestamente? Duvido. — O brilho dos seus olhos estreitou-se no
rosto de Cadfael. Ela não se voltou para observar Bénezet, ainda
não. — Que estava ele a fazer na Feira dos Cavalos? — O seu tom
era casualmente curioso, como se nem a pergunta nem a resposta
lhe interessassem muito, mas o brilho dos seus olhos negava-o.
— Como posso eu saber? — disse Cadfael. — Eu estava no
sótão quando ele entrou. Talvez tivesse apenas ficado curioso ao
ver a porta aberta.
Era uma distração a que ela não conseguia resistir. Os seus
olhos arredondaram-se avidamente, um pouco receosos de esperar
demasiado.
— E que estáveis vós a fazer no sótão?
— Andava à procura de provas daquilo que me disseste —
declarou Cadfael. — E encontrei. Sabias que Tutilo se esqueceu do
breviário lá depois das Completas?
Ela disse:
— Não! — Quase inaudivelmente, num sopro suave,
esperançoso.
— Ontem à noite, pediu-me o meu emprestado. Não fazia ideia
onde perdera o dele, mas eu pensei num lugar, pelo menos, onde
valeria a pena procurá-lo. E sim, estava lá, e marcado nas
Completas. Dificilmente será uma testemunha ocular, Daalny, mas é
uma boa prova. E estou à espera de o pôr nas mãos de Hugh
Beringar.
— Vai servir para o libertar? — perguntou ela no mesmo
sussurro extasiado.
— No que diz respeito a Hugh, pode muito bem servir. Mas o
superior de Tutilo aqui é Herluin, e ele não pode ser ultrapassado.
— Ele precisa saber? — perguntou ela, furiosamente.
— Não toda a verdade, se Hugh vir com os meus olhos. Que
existem provas bastante concludentes de que o rapaz nunca
cometeu um homicídio, sim, isso ele vai saber, mas não precisa
saber onde estiveram nem o que fizeram, vocês os dois, nessa
noite.
— Não fizemos mal algum — disse ela, exultante e com
desprezo de um mundo onde se via mal em tudo, e onde ela
conhecia mal suficiente, mas desprezava a maior parte dele e não
tinha interesse em nenhum. — O abade não pode decidir contra
Herluin? Este é o domínio dele, não de Ramsey.
— O abade vai cumprir a Regra. Ele não pode continuar a deter
o rapaz aqui e privar Ramsey, tal como não poderia abandonar um
dos seus. Espera! Vejamos se até Herluin pode ser persuadido a
abrir a porta ao rapaz. — Não especulou sobre o que poderia
acontecer então, embora lhe parecesse que a ardente vocação de
Tutilo arrefecera para um ponto em que poderia desaparecer da
vista e da mente quando comparada com o encanto de libertar a
rainha de Partholan da escravidão. Ah, bom! Mais valia tirar as
mãos da relha do arado e ocupá-las com uma tarefa mais decente,
do que persistir, e fazer sulcos cada vez mais estreitos com o arado
até tudo o que era secular ser anátema, e tudo o que era humano
estar condenado à reprovação.
— Dai-me notícias — pediu Daalny, muito séria, com um olhar
majestosamente exigente.
Só quando Cadfael saiu de junto dela, para vigiar o portão à
espera da chegada de Hugh, é que ela olhou para Bénezet. Por que
se daria ele ao trabalho de contar mentiras desnecessárias? É
verdade que preferiria que as pessoas pensassem que um freio
invulgarmente bom pertencia ao seu senhor e não a si, se tinha
motivos para estar preocupado com curiosidade lisonjeadora, mas
inconveniente. Mas para quê dar uma explicação se nenhuma lhe
tinha sido pedida? Por que gastaria palavras com mentiras
desnecessárias um homem que era extremamente calado e era
extremamente frugal em palavras? E, mais interessante ainda,
seguramente ele não tinha ido até à Feira dos Cavalos para
recuperar aquele freio, quer fosse seu ou de Rémy. Era a desculpa,
não o motivo. Então por que é que fora lá? Para ir buscar outra
coisa qualquer? Alguma coisa que não tinha sido de maneira
nenhuma esquecida, mas deliberadamente deixada ali? No dia
seguinte partiriam para Leicester. Se ele tinha algo escondido ali,
algo que não podia correr o risco de mostrar, tinha de ir buscá-lo
hoje.
Para além do mais, se aquilo fosse verdade, o que tinha estado
escondido desde a noite da cheia, quando o caos entrara na igreja
com a água do rio, quando tudo o que era vulnerável no interior
estava a ser retirado, quando o roubo engenhoso de Tutilo fora
cometido — oh, ela tinha percebido isso — e a raiz de crescimento
lento mas certa do homicídio fora semeada? Homicídio do qual
Tutilo não era culpado. Homicídio de que outra pessoa era culpada.
Uma pessoa que tinha motivo para recear o que Aldhelm pudesse
ter para dizer sobre aquela noite, quando a sua memória fosse
espicaçada? Que outro motivo poderia alguém ter tido para
assassinar um jovem inofensivo, um pastor de uma casa senhorial a
algumas milhas de distância?
Daalny continuou o seu trabalho sem pressa, uma vez que não
pretendia sair do pátio do estábulo enquanto Bénezet se
encontrasse ali. Tinha de voltar à ala dos hóspedes para ir buscar
os instrumentos menores, mas perdeu o menor tempo possível com
isso, e colocou-se depois num local onde podia ver Bénezet
enquanto os guardava nas caixas e os arrumava com cuidado. O
escudeiro mais jovem do conde, interessado, veio examinar o ud
sarraceno que voltara com o pai de Rémy da Cruzada, e a presença
dele proporcionou um disfarce bem-vindo para a vigilância que ela
estava a exercer sobre o colega de trabalho, e atrasou o seu
trabalho de arrumação das bagagens, que de outra forma estaria
terminado dentro de aproximadamente uma hora, e não a deixaria
com uma boa desculpa para ficar ali. As flautas e pífaros
transportavam-se facilmente; a rabeca e a mandora tinham as suas
caixas almofadadas de proteção, embora o arco da rabeca tivesse
de ser guardado com cuidado.
O meio-dia estava a aproximar-se. Os jovens criados do conde
Robert empilharam toda a sua bagagem muito direita, pronta para
ser carregada no dia seguinte, e foram cuidar do bem-estar do seu
senhor no interior, e servir o jantar. Daalny amarrou a última tira, e
colocou o alforge que continha as flautas ao lado dos alforges mais
pesados.
— Estes estão prontos. Já acabaste de arranjar os arreios?
Ele tinha trazido uma das suas malas, e já a tinha meio cheia,
com uma braçada de roupas dobradas no interior. Ela pensou que
ele devia ter arrumado o que estava por baixo enquanto ela fora à
ala de hóspedes buscar a rabeca e a mandora. Quando ele se
voltou de costas, ela apalpou o saco macio de pele com o pé, e algo
no interior fez o mais leve e claro dos sons, o tilintar de moeda
contra moeda, muito rápido, como se a profundidade do movimento
de arrumar fosse quase impossível. Mas não existe nada com um
som exatamente igual àquele. Ele voltou a cabeça rapidamente,
mas ela olhou-o com uma expressão impávida e serena, e manteve
a sua posição como se não tivesse ouvido nada, e disse com
grande compostura: — Vem jantar. Ele já deve estar à mesa com
Robert Bossu e desta vez não tens de servi-lo.
Hugh escutou a história de Cadfael, e foi rodando o pequeno
breviário nas mãos com um sorriso leve, retorcido, entre o
divertimento e a exasperação.
— Eu posso responder e responderei pelo meu condado, mas
aqui dentro não tenho quaisquer poderes, como tu sabes muito
bem. Aceito que o rapaz nunca cometeu um homicídio, na verdade
nunca estive muito convencido de que o tivesse feito. Isto é prova
suficiente para mim em relação a essa acusação, mas se fosse tu
esconderia as circunstâncias até de Radulfus, e ainda mais de
Herluin. É melhor não apareceres nisto. Podias sentir que tinhas de
contar o último pormenor ao abade, mas eu duvido de que até ele
conseguisse libertar o pobre rapaz neste caso. Encontrar-se com
uma moça numa meda de palha seria um motivo excelente para
Herluin o castigar ainda mais, se alguma vez soubesse a história.
Uma acusação pior do que o roubo sacrílego... em todo o caso, pior
do que se tivesse sido bem sucedido. Vou ilibá-lo de homicídio,
mesmo sem conseguir provar que foi outra pessoa, mas não posso
prometer mais do que isso.
— Deixo tudo a teu cargo — disse Cadfael, resignado. — Faz o
que achares mais certo. Deus sabe que o tempo é curto. Amanhã
vão todos embora.
— Bem, pelo menos — disse Hugh, levantando-se — Robert
Bossu, com toda a herança Beaumont na Normandia e em
Inglaterra com que preocupar-se, dificilmente estará muito
interessado em servir de carcereiro a um noviço insignificante com
um inferno clerical à sua espera no fim da viagem. Eu não ficaria
muito surpreendido se ele deixasse uma porta destrancada algures
durante o caminho, e fingisse não ver, ou até indicasse que as
buscas deviam fazer-se na direção contrária. Há muita Inglaterra
entre esta abadia e Ramsey. — Ergueu o breviário; a palha amarela
ainda marcava o lugar onde Tutilo recitara o Ofício e partilhara as
orações noturnas com Daalny. — Devolve-lhe isto. Ele vai precisar.
E foi para a sua audiência com Radulfus, enquanto Cadfael se
sentava a pensar um pouco taciturnamente, com o livro gasto nas
mãos. Não sabia bem por que é que se preocupava tanto com
aquele pequeno insensato que tentara roubar a santa de
Shrewsbury, e dera início a uma série de acontecimentos
desagradáveis que tinham provocado sofrimento, problemas e
dificuldades a vários homens decentes, e custara a vida a um. Nada
disso, é claro, Tutilo tinha cometido ou pretendido realmente, mas
ele era sinônimo de sarilhos, e continuaria a ser enquanto estivesse
num lugar que não era o seu. Até a sua devoção demasiado
ardente, mas genuína não era do tipo que se adequava à disciplina
de uma irmandade monástica. Bem, pelo menos Hugh deixaria claro
que o rapaz não era um assassino, independentemente de outras
acusações que pudessem recair sobre ele, e o seu roubo
extremamente empreendedor não era grave a ponto de recair sobre
a jurisdição do xerife do rei. Quanto ao resto, se acontecesse o pior,
o rapaz tinha de fazer o que qualquer recalcitrante taco quadrado
fazia diante de um buraco redondo. Tinha de sobreviver à sua
penitência, resignar-se com o seu destino, e contentar-se em viver
subjugado e deformado, mas seguro. Um rouxinol engaiolado.
Embora, é claro, ainda houvesse Daalny. Dai-me notícias, pedira
ela. E sim, ele dar-lhe-ia notícias. Do melhor e do pior.
Na sala de visitas do abade, Hugh apresentou o seu veredicto
em poucas palavras. Se não ia dizer tudo, o melhor era falar o
menos possível.
— Vim dizer-vos, senhor abade, que não tenho qualquer
acusação a fazer contra o noviço Tutilo. Tenho agora provas
suficientes para ter a certeza de que ele não cometeu o crime. A lei
de que eu sou o garante deixou de ter interesse nele. Menos —
acrescentou calmamente — o interesse comum de lhe desejar boa
sorte.
— Encontrastes o assassino noutro lado? — perguntou
Radulfus.
— Não, não posso dizer isso. Mas agora tenho a certeza de
que não é Tutilo. O que ele fez naquela noite, quando veio
imediatamente contar-me o sucedido, foi bem feito, e o que podia
fazer mais no dia seguinte, não tenho queixas. A minha lei não
apresenta qualquer queixa dele.
— Mas a minha tem de apresentar — disse Radulfus. —
Roubar não é uma ofensa leve, mas é pior ter envolvido outra
pessoa no roubo, e ter colocado a sua vida em perigo. Tem a seu
favor o fato de ter confessado, e de ter sentido remorsos por ter
envolvido aquele infeliz jovem nos seus planos. Ele tem dons que
ainda pode usar para a glória de Deus. Mas há uma dívida para
pagar. — Refletiu durante alguns instantes com o silêncio atento de
Hugh, e depois disse: — Posso saber que testemunha é que vos
apareceu? Uma vez que não descobristes o culpado, deve ser por
isso que estais certo da inocência deste rapaz.
— Ele deu a desculpa de ter sido chamado a Longner —
declarou Hugh prontamente — para poder escapulir-se e esconder-
se até o perigo passar e a testemunha partir, pelo menos naquela
noite. Duvido que tenha olhado para a frente, a única coisa que
queria evitar era a ameaça imediata. Sei aonde se escondeu. Foi no
sótão do estábulo da abadia na Feira dos Cavalos, e existem provas
razoáveis de que não saiu de lá até ouvir o sino das Completas.
Nessa altura, Aldhelm já estava morto.
— E há outra voz que confirme essas horas?
— Há — disse Hugh, e não avançou mais nada.
— Bem — disse Radulfus, recostando-se no seu assento com
um suspiro — e ele só está nas minhas mãos por acaso, e eu não
posso, mesmo que quisesse, ignorar a sua ofensa nem suavizar o
seu castigo. O sub prior Herluin vai levá-lo para Ramsey, para o seu
abade, e enquanto estiver sob o meu teto tenho de respeitar o
direito de Ramsey, e mantê-lo preso em segurança até ele sair da
minha casa.
— Ele não estava curioso, não fez perguntas — comunicou
Hugh a Cadfael no herbário; a sua voz era apreciativa e divertida. —
Aceitou a minha garantia de que estava convencido de que Tutilo
não tinha cometido um homicídio nem quebrara a lei da terra, pelo
menos nenhuma fora do seio da Igreja, e isso foi o suficiente para
ele. Afinal de contas, amanhã vai estar livre de toda esta confusão,
tem o seu próprio delinquente para se preocupar. Jerome vai
precisar de muita absolvição. Mas o abade não fará aquilo que,
como abade desta abadia, suponho que poderia fazer, deixar o
nosso excomungado voltar aos serviços esta última noite. Ele tem
razão, é claro. Depois de saírem os nossos portões, deixa de ser da
responsabilidade de Shrewsbury, mas até então Radulfus é forçado
a agir por Ramsey e pela sua própria casa. Um irmão deve
comportar-se corretamente com outro irmão... Mesmo que o
deteste. Eu próprio sinto alguma pena, mas Tutilo permanece na
sua cela. Oficialmente, de qualquer maneira — acrescentou ele com
um sorriso pensativo. — Nem sequer as tuas recaídas, desde que
só ofendam a Igreja, me diriam respeito.
— Em algumas ocasiões disseram — declarou Cadfael, e
deixou os seus pensamentos vaguearem carinhosamente por certas
recordações que lhe trouxeram um brilho nostálgico ao olhar. — Há
muito tempo que não cavalgamos juntos de noite.
— Ainda bem para os teus ossos velhos — disse Hugh, e
olhou-o com uma expressão de rapazinho travesso. — Fica
contente, dorme na tua cama, e deixa pequenos bandidos espertos
como o teu Tutilo suar pelos seus pecados, e esperarem o seu
tempo de ser perdoados. Tanto quanto sabemos, o abade de
Ramsey é uma alma boa e humana, um apoio suave para pequenos
pecadores como tu. E talvez tenha bom ouvido musical. Isso seria
bom. Se o libertares e o deixares solto na noite agora, como viverá
ele, sem roupas, sem comida, sem dinheiro?
18

Cadfael reconheceu que era verdade. Ele arranjar-se-ia, sem


dúvida, mas com alguns riscos. Roupas roubadas do estendal de
uma mulher qualquer, um ovo ou dois de um galinheiro, algumas
moedas pedidas a viajantes na estrada com uma canção, mais
algumas mendigadas num mercado — mas nenhuma parede de
pedra a prendê-lo, e nenhuma porta fechada à chave, nenhum
homem mais velho e nada caridoso a pregar-lhe sermões
intermináveis pelos seus pecados imperdoáveis, nenhuma exclusão
para a solidão terrível da excomunhão, banido da refeição comunal
e do oratório, proibido de comunicar com os companheiros, e se
algum fosse arrojado e bondoso a ponto de lhe oferecer uma
palavra de consolo ficaria sujeito ao mesmo destino frio.
— Mesmo assim — declarou Hugh, a refletir — existe
justificação na Regra para deixar todas as portas abertas. Depois de
tudo ser feito pelo incorrigível, que diz a Regra? "Se o irmão infiel te
deixar, deixa-o ir."
Cadfael acompanhou-o até à casa do porteiro quando a tarde
comprida estava a acalmar e a arrefecer para dar lugar à hora calma
antes das Vésperas, com o trabalho diário concluído. Quando lhe
entregara a testemunha muda que era o breviário de Tutilo, não
tinha falado sobre o freio de Bénezet, e sobre a visita que este fizera
ao estábulo da Feira dos Cavalos. Como não havia certeza, nem
nada de significativo para oferecer, hesitava em adiantar uma
simples suspeita sem provas concretas contra qualquer homem. E,
no entanto, estava com medo de deixar passar alguma possibilidade
de mais descobertas. Ficar na dúvida permanente é pior do que um
conhecimento não desejado.
— Vens cá amanhã — perguntou ao portão — para te
despedires do grupo do conde? Ainda não ouvi nada sobre a hora a
que sua senhoria pretende partir, mas vão querer aproveitar a luz ao
máximo.
— Ele vai assistir à primeira missa antes de partir — disse
Hugh. — Foi o que me informaram. Eu virei despedir-me dele.
— Hugh... traz três ou quatro homens contigo. Os suficientes
para manter o portão guardado se houver alguma tentativa de fuga.
Não em número suficiente para comentários ou alarme.
Hugh parou bruscamente, e ficou a observá-lo com atenção por
cima do ombro.
— Isso não é para o pequeno irmãozinho — disse, com certeza.
— Tens outra presa em mente?
— Hugh, juro que não sei nada que valha a pena contar-te, e se
alguém se aventurar a dar um passo errado e fazer figura de grande
tolo, que esse alguém seja eu. Mas vem cá! Uma pena a flutuar ao
vento é mais substancial do que o que eu tenho, neste momento.
Talvez ainda consiga descobrir mais. Mas não faças nada até
amanhã. Na presença de Robert Bossu temos uma autoridade
formidável a apoiar-nos. Se eu me aventurar, e fizer asneira ao
apontar o dedo a um homem inocente, não será muito importante.
Mas não quero chamar assassino a um homem sem ter provas
concretas. Deixa-me tratar do assunto à minha maneira, e que todos
os outros durmam descansados.
Hugh estava dividido entre pressioná-lo para saber todos os
pormenores do que ele pretendia fazer, e para que ele lhe dissesse
que pena a flutuar ao vento é que estava a perturbá-lo; mas pensou
melhor. Ele e três ou quatro bons homens reunidos para assistir à
partida do distinto hóspede, e dois bons escudeiros ao lado do seu
formidável senhor — com uma guarda assim, que podia acontecer?
E Cadfael era uma ajuda forte e com prática, mesmo sem um grupo
atrás de si.
— Como achares melhor — disse Hugh, mas pensativo e
preocupado. — Nós estaremos aqui, e preparados para interpretar
os teus sinais. Numa altura destas, eu já devia estar letrado e
fluente neles.
O seu cavalo preferido, com manchas cinzentas e muito magro,
estava amarrado ao portão. Ele montou, e seguiu pela estrada em
direção à ponte que dava acesso à cidade. O ar estava muito calmo,
e havia luz suficiente para se refletir suavemente na superfície da
represa. Cadfael observou o seu amigo até os cascos distantes
fazerem um som oco na primeira parte da ponte, e depois voltou-se
para o grande pátio quando o sino para as Vésperas soou.
O jovem irmão que estava encarregue de alimentar os
prisioneiros naquela ocasião estava a regressar das celas deles
para recolocar as chaves no seu lugar na casa do porteiro, antes de
seguir, ao lado do irmão porteiro, para a igreja, para as Vésperas.
Cadfael seguiu sem pressa, e com os ouvidos atentos, pois havia
sem dúvida uma pessoa escondida nas sombras no ângulo do pilar
do portão, muito encostada à parede. Ela era sensata, não lhe
desejou boa noite, embora estivesse consciente da presença dele.
Na verdade, estava ali, perto e imóvel, a observá-lo a despedir-se
de Hugh ao portão. Não podia dizer-se que ele a tinha visto
realmente, nem ouvido qualquer som ou movimento; tinha tido todo
o cuidado para que isso não acontecesse.
Nas Vésperas, fez uma curta oração pelo pobre e infeliz irmão
Jerome, mergulhado no seu próprio veneno, e abalado num coração
não totalmente empedernido. Jerome seria levado para o oratório na
altura própria, subjugado e humilhado, e prostrar-se-ia na soleira do
coro até o abade considerar que tinha pago pela sua ofensa. Talvez
até conseguisse emergir assustadamente limpo do seu velho eu.
Era pedir muito, mas por vezes acontecem milagres.
Tutilo estava sentado na beira do seu catre, a escutar as
orações incessantes e histéricas do irmão Jerome na cela ao lado
da sua. Chegavam-lhe abafadas pela pedra, não como palavras
distintas, mas como lamentos fúnebres tão chorosos que Tutilo
sentiu pena do homem que tinha tentado, se não matá-lo, pelo
menos feri-lo. Devido à insistência desta ladainha nos ouvidos,
Tutilo não ouviu o som que a chave fez, a rodar suavemente na
fechadura, e a porta abriu-se com um cuidado tão extremo, com
medo de que chiasse, que ele só voltou a cabeça quando uma voz
abafada atrás de si disse: — Tutilo!
Daalny estava emoldurada na porta. A noite atrás de si ainda
estava luminosa com a última luz armazenada nas paredes pálidas
em frente, e com um céu salpicado de estrelas que ainda eram
quase invisíveis, num azul suave pouco mais escuro do que o seu
brilho prateado. Ela entrou, apressada, mas em silêncio, até ter
fechado a porta atrás de si, pois no interior da cela a pequena
lamparina estava acesa, e uma tira denunciadora de luz a escapar
pela soleira da porta poderia fazer com que os descobrissem
imediatamente. Ela olhou para ele e franziu o sobrolho, pois
pareceu-lhe que ele estava um pouco pálido e desencorajado, e não
era assim que pensava nele nem era assim que o queria.
— Fala baixo — avisou ela. — Se conseguimos ouvi-lo, ele
também pode ouvir-nos. Rápido, tens de ir. Desta vez tens de ir. É a
última oportunidade. Amanhã partimos, todos nós. Herluin vai levar-
te de volta para Ramsey, para uma escravidão pior do que a minha,
se depender dele.
Tutilo levantou-se lentamente, a olhar para ela. Tinha demorado
um longo e assombrado momento a sair do mundo infeliz das
orações frenéticas do irmão Jerome, e a perceber que a porta se
tinha aberto realmente para ela entrar, que ela estava mesmo ali à
sua frente, urgente, tangível, com os cabelos pretos soltos pelos
ombros, e os olhos como ardentes chamas azuis no oval translúcido
do seu rosto.
— Vai, agora, depressa — disse ela. — Eu mostro-te o
caminho. Pela portinhola para o moinho. Vai para oeste, para o País
de Gales.
— Ir? — disse Tutilo como um homem num sonho, a apalpar o
caminho num mundo desconhecido e improvável. E de repente
iluminou-se, como se se tivesse incendiado com o brilho dela. —
Não — disse — não irei para lado nenhum sem ti.
— Louco! — disse ela, impacientemente. — Não tens escolha.
Se não te mexes, vais para Ramsey, e o mais provável é que vás
amarrado depois de passarem por Leicester e de se separarem de
Robert Bossu. Queres voltar para ser flagelado e para passar fome
e para ser atormentado e para morrer cedo? Nunca devias ter voado
para aquele refúgio, para ti é uma gaiola. É melhor ires sem nada
para o País de Gales, e levares a tua voz e o teu saltério contigo, e
eles reconhecerão um dom de Deus, e te aceitarão. Depressa, vem,
não desperdices o que fiz.
Ela tinha pegado no saltério, que estava em cima da mesa de
orações guardado no seu saco de pele, e colocou-o nos braços
dele, e ao tocar-lhe ele apertou-o contra o coração, e ficou a olhá-la
por cima dele com olhos dourados, brilhantes. Abriu os lábios, ela
pensou que ele ia protestar de novo e, para impedi-lo, colocou a
palma da mão sobre a boca dele, e com a outra mão puxou-o
desesperadamente para a porta.
— Não, não digas nada, limita-te a ir. É melhor ires sozinho!
Que podias fazer com uma escrava fugida a tolher-te os passos, a
prejudicar-te? Ele não vai libertar-me, a lei não vai libertar-me. Eu
sou propriedade, tu és livre. Ordeno-te, Tutilo! Vai!
De repente o aço elástico voltou à coluna dele, e a audácia
arrebatadora ao seu rosto, e ele seguiu-a, já sem hesitações,
marcando o passo à porta, e pelo corredor sombrio. A chave foi de
novo rodada na fechadura, e sentiu o ar noturno frio e perfumado
com folhas jovens em volta. Não houve palavras à despedida, o
silêncio era muito melhor. Ela o fez sair pela portinhola na parede,
para fora do recinto da abadia, e fechou a porta que os separava. E
ele ficou com o escuro brilho peltre que escudava a represa à sua
frente, e o caminho para Foregate, e para a esquerda, pouco antes
da ponte que dava acesso à cidade, a estrada estreita que o levaria
para oeste em direção ao País de Gales.
Sem um único olhar para trás, Daalny voltou para o grande
pátio. Tinha uma coisa para fazer na manhã seguinte de que ele
nada sabia, uma coisa que, se fosse bem sucedida, acabaria com a
perseguição e o deixaria livre. A lei secular podia mover-se à
vontade até no reino dividido. A lei canônica não tinha a mesma
mobilidade. Uma meia prova empalidece perante a prova irrefutável
de culpa e inocência.
Ouviu as vozes ainda a cantar no coro, por isso aproveitou para
entrar novamente na cela dele e apagar a pequena candeia. Era
melhor e mais seguro que se pensasse que ele tinha ido para a
cama, e que dormiria a noite inteira.
A manhã da partida amanheceu úmida e sem vento, o sol
velado, e todas as coisas verdes pareciam ainda mais verdes
naquela luz suave e amorfa. Mais tarde, o véu diminuiria e
desapareceria, e o sol avançaria no seu brilho esquivo de
Primavera. Um bom dia para voltar para casa a cavalo. Daalny saiu
para o grande pátio de uma cama onde não pregara olho, e dirigiu-
se para a Prima, pois necessitava de todas as suas forças para
fazer o que tinha de fazer, e a oração e a paz no interior da nave
poderiam fortalecer a sua coragem para agir. Pois parecia-lhe que
mais ninguém sabia, nem sequer suspeitava, do que ela suspeitava,
por isso não havia mais ninguém para agir.
E no entanto podia estar enganada. O tilintar de moedas, o
peso de um embrulho sólido a mexer-se contra a pressão do seu pé
com aquele som suave e metálico — que provava aquilo? Mesmo
quando lhe acrescentou as estranhas circunstâncias que o irmão
Cadfael tinha relatado, a mentira sobre o freio de Rémy ter ficado
esquecido na parte da frente do estábulo. Todavia, ele tinha
mentido, e que assunto tinha, portanto, a tratar naquele lugar, a
menos que tivesse ido buscar algo secreto que lhe pertencia — ou,
é claro, a outra pessoa, e por que é que a escondera?
Bem, Tutilo tinha fugido, e ela esperava que naquele momento
já estivesse longe, para oeste. Os Beneditinos não tinham grande
influência no País de Gales, onde se mantinha teimosamente o
Cristianismo menos organizado da Igreja Celta, embora o ritual
Romano tivesse prevalecido. Eles aceitariam um noviço fugido,
ainda mais quando o ouvissem cantar e tocar; arranjar-lhe-iam um
patrono e uma harpa, e tirar-lhe-iam os hábitos e dar-lhe-iam boas
roupas como pagamento da sua música. E ela, por muito que lhe
custasse, afastaria dele a última sombra de suspeita de homicídio,
para que aonde quer que ele fosse pudesse ir como um homem livre
e ilibado. E quanto aos seus pecados menores, ser-lhe-iam
perdoados.
Sentira dor ao vê-lo partir, mas não ligaria, nem lamentaria que
ele a tivesse deixado, embora ele tivesse dito precipitadamente que
não iria a lado algum sem ela. Agora, tudo o que importava para
tornar o que ia fazer completo era que ele nunca mais fosse
recapturado, que nunca fosse sujeito a estreitas paredes de pedra
que lhe cortassem as asas, ou que lhe atrofiassem as cordas vocais
até que estas se silenciassem.

Durante todo o serviço rezou orações sem palavras por ele, e


esperou e escutou o primeiro grito a denunciar a sua ausência. Este
só se fez ouvir depois de o irmão porteiro ter ido levar o pão e a
cerveja fraca do pequeno-almoço ao irmão Jerome, e voltar para ir
buscar uma refeição semelhante para Tutilo, e mesmo então quase
não foi um grito, já que o irmão porteiro não era um homem de
exclamações, e tinha dificuldade em reconhecer uma crise, mesmo
quando tropeçava nela. Saiu rapidamente da cela, tirou uma mão da
bandeja de madeira que transportava para fechar a porta à chave, e
depois, recordando-se de que não havia ninguém lá dentro para ser
preciso tomar precauções, não só a deixou destrancada como a
abriu completamente. A vigiar cautelosamente aquele lado do pátio
a partir da porta da ala de hóspedes, inexplicavelmente Daalny
achou que a reação do monge era perfeitamente lógica. O mesmo
pensou Cadfael, que saiu nesse momento para o jardim. Mas devido
a esta ausência de surpresa do guardião, competia a outra pessoa
qualquer colmatar essa deficiência. Daalny esgueirou-se para os
seus preparativos no interior, e deixou-os a resolver o assunto como
quisessem.
— Ele desapareceu! — disse o irmão porteiro. — Mas como é
isso possível?
Era uma pergunta séria, não um protesto. Olhou para a chave
grande e pesada que tinha na bandeja, e de novo para a porta
aberta, e franziu as densas sobrancelhas grisalhas.
— Desapareceu? — disse Cadfael, muito honrosamente
surpreendido. — Como pode ele ter desaparecido, e a porta estar
fechada à chave, e a chave na vossa casa?
— Olhai por vós próprio — disse o porteiro. — A menos que o
diabo lhe tenha indicado o caminho, então outra pessoa roubou esta
chave à noite com um propósito e o soltou no mundo. A cela estava
vazia como a bolsa de um pobre, e a cama quase intocada. Ele já
deve estar bastante longe. O sub prior Herluin vai ficar desnorteado
quando souber. Neste momento, está a tomar o café com o abade,
acho que é melhor ir estragar-lhe a digestão das papas de aveia. —
Não parecia muito preocupado com essa perspectiva, mas também
não estava exatamente ansioso para dar a notícia.
— Eu próprio tenho de ir lá — disse Cadfael, e não disse uma
grande mentira porque acabara de conceber a intenção. — Larga a
bandeja e vem comigo, eu entro à frente e dou a notícia.
— Nunca percebi — observou o porteiro — que tivesses queda
para o martírio. Mas vai à frente e dá a notícia. E eu vou atrás de ti.
Graças a Deus, sua senhoria está preparada para sair hoje, e se
quiserem ter uma viagem segura, Herluin e os seus companheiros
serão insensatos se perderem a oportunidade para perseguirem um
rapaz escorregadio como aquele, que ainda por cima já leva uma
noite de avanço. Estaremos livres de todos eles antes do meio-dia.
— E afastou-se descontraidamente para se livrar da bandeja. Não
sabia se devia devolver a chave ao chaveiro, mas acabou por levá-
la consigo, como uma espécie de prova para atestar o que tinha
acontecido, e seguiu Cadfael para os aposentos do abade, mas sem
pressa.
Herluin recebeu a notícia de uma forma muito diferente.
Levantou-se da mesa do abade, perturbado com a perda, despojado
agora não só do seu tesouro reunido a pouco e pouco ali em
Shrewsbury, mas também da sua vingança, enraivecido para além
de todas as medidas por ter de regressar a Ramsey praticamente de
mãos vazias. Durante um curto espaço de tempo, embora ele
próprio não soubesse a história toda, tinha estado a caminho de
casa com um sucesso triunfal, com dádivas generosas para a
reconstrução, e a bênção incomensurável de uma santa milagrosa.
Tudo desaparecera agora, e o culpado escapulira-se por entre os
seus dedos, por isso restava-lhe voltar para casa com um fracasso
manifesto, magramente recompensado pelas suas viagens, e com
um noviço em falta, talvez não com um comportamento exemplar,
mas valioso pela voz, e, portanto, também lucrativo.
— Ele tem de ser perseguido! — disse Herluin, a morder cada
palavra com dentes raivosos e irregulares tal era a fúria que sentia.
— E, Padre Abade, seguramente o guarda que deixastes a vigiar o
cativeiro foi extremamente negligente, se não como poderia uma
pessoa não autorizada ter-se apoderado da chave da cela? Eu
devia ter cuidado pessoalmente do assunto e não confiá-lo a outros.
Mas ele tem de ser perseguido e capturado. Tem acusações para
responder, ofensas para expiar. O delinquente não pode ser deixado
ir sem castigo.
O abade, evidentemente e fortemente desagradado, embora
não houvesse maneira de saber se esse estado de espírito se devia
ao prisioneiro em fuga, aos seus guardas descuidados ou àquele
vingador fulminante provado do seu bode expiatório, disse
acidamente: — Ele pode ser procurado no interior dos meus
domínios, certamente. A minha autoridade não presume a
perseguição de homens no mundo exterior para serem castigados.
O conde Robert, que era igualmente convidado à mesa do
abade naquela última manhã, mas que até agora tinha permanecido
calmamente sentado no seu lugar, sem proferir uma única palavra, a
olhar com curiosidade e em silêncio de rosto para rosto sem omitir
Cadfael, que disparara o seu raio disruptivo sem expressão e na
mais impávida das vozes, para ser vigorosamente apoiado pelo
porteiro, ainda a segurar a chave que devia ter sido tirada do prego
durante as Vésperas, pelo menos assim pensava, e recolocada no
seu lugar antes de o ofício terminar. Como nunca se tinha ouvido
falar de tamanha interferência com as ordens do abade ali naquele
chão monástico, não tinha tomado quaisquer precauções, embora o
local estivesse vigiado a maior parte do tempo, e todas as chaves
sob o olhar do vigilante, e bastante seguras. O porteiro desculpou-
se valentemente. A sua missão era certificar-se de que os
prisioneiros eram alimentados de forma condigna, embora austera;
o seu encarceramento e o julgamento dos seus atos competia às
autoridades.
— Mas ainda recai sobre ele uma suspeita de homicídio —
exclamou Herluin, agressivamente triunfante enquanto recordava a
acusação secular. — Não podemos deixar que escape a isso. A lei
do rei tem o dever de apanhar o criminoso, mesmo que a Igreja não
tenha.
— Estais enganado — disse Radulfus, severamente paciente.
— O xerife já me garantiu, ontem, que está satisfeito com as provas
que tem e que atestam que o irmão Tutilo não matou o jovem
Aldhelm. A lei secular não tem qualquer acusação para apresentar
contra ele. Apenas a Igreja pode acusá-lo, e a Igreja não tem
sargentos para mandar procurar os seus fracassos pela província.
A palavra "fracasso" tinha imprimido uma cor muito forte no
rosto de Herluin, como se sentisse pessoalmente culpado por ter
sido incapaz de controlar melhor os seus subordinados. Cadfael
duvidava de que tivesse sido aquele o sentido da frase do abade.
Era mais provável Radulfus fazer essa acusação a si mesmo do que
fazer a mesma acusação a outra pessoa. Mesmo agora, o
significado podia ser esse. Mas Herluin assumia como seus, embora
negasse energicamente, todos os fracassos que tinham minado a
sua dignidade e autoridade, e ameaçavam mandá-lo para casa
humilhado e com necessidade de tolerância e consolo.
— Pode ser, Padre Abade — disse ele, rigidamente ereto e com
uma profecia trágica — que neste caso a Igreja tenha de se
examinar atentamente, pois se não consegue lutar contra os
malfeitores onde quer que eles se encontrem, a sua autoridade
pode cair em descrédito. Seguramente, a batalha contra o mal,
dentro ou fora do nosso território, é uma Cruzada tão nobre como a
contenção na Terra Santa. Não abona em nosso favor ficarmos de
parte e deixarmos o malfeitor ir em liberdade. Este homem desertou
da sua irmandade e abandonou os seus votos. Tem de ser trazido
de volta para responder pelos seus atos.
— Se o considerais uma criatura tão caída em desgraça —
disse o abade friamente — devíeis observar o que a Regra tem a
dizer de um caso assim, no vigésimo oitavo capítulo, onde está
escrito: "Afastai os homens malvados do vosso seio."
— Mas nós não o afastamos — persistiu Herluin, ainda
incandescente de raiva — ele não esperou pelo julgamento nem
respondeu pelas suas ofensas, mas fugiu em segredo durante a
noite, para nossa derrota.
— Mesmo assim — murmurou Cadfael como se estivesse a
falar sozinho mas muito audivelmente, incapaz de resistir à tentação
— no mesmo capítulo a Regra ordena-nos: "Se o irmão sem fé vos
abandonar, deixai-o ir."
O abade Radulfus olhou-o rispidamente, não completamente
aprovador; e Robert Bossu resplandeceu naquele seu sorriso breve,
privado e enervante, que desaparecia antes que qualquer alvo a que
se destinasse pudesse tomá-lo como uma ofensa.
— Eu sou responsável perante o meu abade — disse Herluin,
desviando o argumento para um canal diferente — pelo noviço
confiado à minha guarda, tenho pelo menos o dever de o procurar o
melhor que estiver ao meu alcance.
— Receio — disse Robert Bossu com uma doçura inquietante
— que o tempo seja demasiado curto até para isso. Se decidirdes
ficar e prosseguir esta busca, temo que sejais obrigado a retomar a
vossa viagem em circunstâncias menos favoráveis. Logo que a
primeira missa terminar nós preparamo-nos e partimos. Seríeis
sensato, tanto mais que agora tendes menos um homem, em
aproveitar os nossos números e viajar conosco.
— Se vossa senhoria pudesse adiar a viagem por dois dias... —
começou Herluin, a tremer.
— Lamento, mas não posso. Tenho problemas pessoais que
requerem a minha presença — disse o conde, exasperadamente
gentil e delicado. — Especialmente se alguns bandidos e
vagabundos como os que atacaram a vossa carroça ainda
estiverem a sair dos Pântanos para estradas mais seguras através
das minhas terras. Já é mais do que tempo de regressar. Perdi a
minha pretensão a Santa Winifred, mas não lamento, pois afinal de
contas, fui eu quem a trouxe, por isso, mesmo que ela tenha fugido
de mim, eu devo ter feito toda a sua vontade, e haverá com certeza
uma pequena bênção por isso em desconto dos meus pecados.
Porém, agora sou necessário mais perto de casa. Quando a missa
terminar — disse o conde Robert com firmeza, e começou a
levantar-se, pois estava quase na hora — aconselho-vos a juntar-se
a nós, padre Herluin, e a fazer o que São Benedito manda, deixar ir
o irmão sem fé.
19

A missa de despedida começou cedo e foi ativamente


conduzida, pois o conde, depois de se preparar para a partida,
passou de algum modo o ardor da sua disposição a todos os que o
rodeavam. Quando saíram para a primeira luz do sol, a azáfama do
carregamento e da aparelhagem dos cavalos começou
imediatamente. Nicol, o criado e o seu companheiro de Ramsey
saíram para o pátio, para ajudar um Herluin rabugento e taciturno,
ainda muito contrariado por abandonar a sua ovelha tresmalhada,
mas ainda mais relutante em ficar, e perder a oportunidade de uma
passagem segura e confortável até meio caminho de casa, pelo
menos, e provavelmente uma montada para o resto do caminho, já
que Robert Bossu sabia ser generoso com os homens da igreja,
mesmo com um de quem cordialmente não gostava.
Os lacaios vieram dos estábulos com a carruagem estreita que
transportara o relicário de Santa Winifred de volta para a sua casa.
Desprovida agora dos tecidos bordados que a tinham embelezado
quando transportava a santa, serviria agora como carroça de carga
para as bagagens de todo o grupo. Carregada com os pertences do
conde, e com os dos escudeiros, as esmolas conseguidas por
Herluin em Worcester e Evesham, e a maior parte dos instrumentos
e bens de Rémy, que eram bastante compactos, ainda podia
acomodar Nicol e o companheiro, sem ser uma carga demasiado
pesada para o cavalo. O cavalo de carga que tinha transportado a
bagagem do conde na viagem para a abadia estava agora livre para
transportar Herluin.
Os dois jovens escudeiros conduziram os cavalos aparelhados
desde o pátio dos estábulos, e Bénezet seguia com a montada de
Rémy e o seu próprio cavalo, e um jovem noviço trazia o garrano
forte de Daalny. O portão já estava aberto de par em par para a
passagem do grupo. Tudo fora feito com competente velocidade. A
observar de um canto do claustro, Cadfael mantinha um olho
ansiosamente no portão aberto, pois as coisas tinham acontecido
um pouco rapidamente de mais. Ainda era cedo para esperar Hugh
e os seus soldados, mas sem dúvida que as despedidas formais
demorariam algum tempo, e por enquanto os principais ainda não
tinham aparecido. Com toda a probabilidade, o conde não pensaria
em partir antes de se despedir de Hugh.
Os irmãos tinham dispersado respeitosamente para as suas
tarefas, mas de cada vez que se aproximavam do grande pátio
tinham tendência para ficar um pouco mais do que era estritamente
necessário, para contemplar o grupo de escudeiros e cavalos que
andavam impacientes pelas lajes, prontos e ansiosos para se porem
a caminho. Os meninos foram enxotados para a sua lição matinal,
mas provavelmente o irmão Paul deixá-los-ia sair no momento da
partida.
Daalny, com uma capa e os cabelos descobertos, saiu da ala
de hóspedes e desceu os degraus para se juntar ao grupo lá em
baixo. Tinha observado os alforges equilibrados no dorso do cavalo,
e sabia qual o que tinha os segredos dele pela esfoladela na frente,
por baixo das fivelas. Observou-o atentamente, como Cadfael
estava a observá-la. O rosto dela estava pálido; mas estava sempre
pálido, ela tinha a pele tão branca como magnólia, mas agora com a
palidez acrescida da tensão sobre os ossos finos e imaculados.
Tinha os olhos semicerrados, mas brilhantemente fixos sob as
longas pestanas escuras. Cadfael observou os sinais da sua tensão
e dor, e eles perturbaram-no, mas não sabia bem como interpretá-
los. Ela tinha feito o que decidira fazer, mandara Tutilo para um
mundo mais adequado para ele do que o claustro. Conformar-se
com o seu inevitável mundo diário sem ele, depois daquela breve
fantasia, devia custar-lhe horrores, mas não havia remédio. Ao fazer
os seus planos, esquecera-se de pensar que ela podia ter ainda
planos para um objetivo final, a única coisa que ainda lhe faltava
fazer.
Um dos jovens escudeiros tinha voltado à ala de hóspedes para
comunicar que estava tudo pronto, e para levar a capa e as luvas,
ou o que ainda faltava levar para o seu senhor e para o novo
dependente do senhor, que tinha um estatuto, sem dúvida, algures
entre a alta burguesia, muito acima dos criados, mas não era tão
reverenciado como com tocadores de harpa do País de Gales. E
naquele momento apareceram à soleira da porta, e o abade
Radulfus, pontual em todas as cerimônias, emergiu do jardim dos
seus aposentos, entre as roseiras ainda irregulares e compridas, no
mesmo momento, com o prior atrás, e veio cumprimentar os
hóspedes que estavam de partida.
O conde estava simples e elegante como sempre nas suas
roupas de cores escuras e tecidos bons, com uma cota carmesim
cortada razoavelmente curta para montar, e um manto de montar
azul-escuro acinzentado aberto até à anca à frente e atrás.
Raramente cobria a cabeça, a menos que estivesse vento, chuva ou
neve, mas o capuz caía sobre o ombro mais alto e compunha-o,
escondendo o defeito; embora fosse difícil acreditar que ele alguma
vez prestava atenção a tal problema, pois a deficiência nunca o
embaraçava nem dificultava a fluência dos seus movimentos. Ao
lado do conde vinha Rémy de Pertuis muito inchado, a soprar
conversa espirituosa ao ouvido do patrono. Desceram os degraus
juntos, e o escudeiro seguiu-os com a capa do patrão no braço. Lá
embaixo, o grupo estava completo, pois o abade e o prior
esperavam ao lado dos cavalos.
— Senhor — disse o conde — agora que chegou a altura, parto
com grande pena. A vossa hospitalidade foi generosa, e temo muito
pouco merecida, uma vez que vim com pretensões à vossa santa.
Mas estou contente porque, entre muitos que a cobiçam, a senhora
sabe como escolher os mais adequados e melhores. Espero ter a
vossa bênção para a viagem.
— De todo o coração — disse Radulfus. — Tive muito prazer e
proveito na vossa companhia, sua senhoria, e espero desfrutar dela
novamente quando o tempo permitir.
O grupo, que por momentos teve o aspecto formal da
separação imediata, começou a dissolver-se na civilidade geral das
visitas que, no último momento, sentem relutância em partir, e
demoram-se com muitas coisas de última hora ainda para dizer. O
prior Robert estava no seu espírito mais normando e patrício, e até
na sua disposição mais benigna, uma vez que, por fim, os
acontecimentos se tinham resolvido bem; certamente, era
improvável que deixasse ir um conde normando sem exercer um
último momento a sua eloquência e encanto. Lá estava Herluin, com
uma disposição não muito expansiva, mas nada disposto a ser
deixado de fora das cortesias, e Rémy, deliciado com a sua
mudança de sorte, a lançar os seus sorrisos resplandecentes
imparcialmente sobre todos. Cadfael, que tinha uma longa
experiência em partidas daquele gênero, estava seguro de que
demoraria mais de um quarto de hora até que alguém pusesse o pé
no estribo e montasse.
Daalny, sem tal certeza, pensava que tudo se desenrolaria
rapidamente. Não podia dar-se ao luxo de esperar, e chegar à
conclusão de que tinha esperado demais. Tinha-se fortalecido para
o ato, e temia que pudesse não ter tempo para dizer o que tinha
para dizer.
— Padre Abade... vossa senhoria Robert, posso dizer uma
palavra? Antes de deixarmos este lugar, tenho uma coisa que tem
de ser dita, pois está relacionada com roubo, e talvez até esteja
relacionada com homicídio. Imploro a vossas senhorias que me
ouçam, e que ajam da maneira certa, pois é demasiado para mim, e
não me atrevo a deixar passar e esquecer o que sei.
Todos ouviram, e todos os olhos se voltaram para ela. Fez-se
silêncio, de curiosidade, de surpresa, de desaprovação por a mais
insignificante de todas as pessoas presentes se atrever a pedir uma
audiência naquele momento, a céu aberto, e em público. Porém,
estranhamente, ninguém lhe fez sinal para se afastar nem lhe fez
ver com uma expressão severa que devia calar-se e ser humilde.
Ela viu o abade e o conde a olharem-na com grande interesse
contido, e fez-lhes uma profunda reverência para que partilhassem
entre os dois. Até agora, não tinha dito nada que fizesse qualquer
homem temer ou inquietar-se pela sua pessoa, nem sequer
Bénezet, que tinha um braço sobre o pescoço do cavalo, e o alforge
a fazer pressão contra o corpo. Ainda não tinha apontado a lança
que detinha em seu poder, mas Cadfael compreendeu o objetivo
dela e ficou abismado.
— Padre, posso falar?
Eram os domínios do abade. O conde deixou que ele
respondesse.
— Penso — disse Radulfus — que deves. Disseste duas
palavras que nos têm dado que pensar nesses últimos dias, roubo e
homicídio. Se tens alguma coisa a dizer com respeito a isto, temos
de escutar.
Um pouco afastado e com os olhos postos ansiosamente no
portão, e a rezar para que Hugh entrasse naquele momento,
imediatamente, com três ou quatro homens fortes atrás, Cadfael
lançou um olhar inquieto a Bénezet. O homem não se tinha mexido,
e embora o seu rosto estampasse apenas uma máscara de
curiosidade interessada, mas impessoal, muito como os outros, os
olhos intensamente fixos no rosto de Daalny estavam apontados
como as pontas de dois punhais, e a sua imobilidade parecia agora
deliberada e objetiva, um cão de caça preparado para a corrida.
"Se ao menos", pensou Cadfael, "se ao menos eu a tivesse
avisado! Eu devia ter sabido que ela podia fazer coisas terríveis por
uma causa que valesse a pena. Foi o que lhe disse sobre o freio
que a colocou na pista? Ela nunca deu qualquer sinal, mas eu devia
ter sabido. E agora ela desferiu o seu golpe cedo demais. Que ela
seja lógica, que ela seja lenta a chegar ao cerne da questão, que
recorde tudo o que aconteceu antes, e chegue à sua conclusão
gradualmente agora que conseguiu o que queria." Mas o tempo não
estava do lado dela. Até a missa tinha terminado cedo. Hugh
chegaria à hora combinada, e mesmo assim seria tarde demais.
— Padre, sabeis do roubo de Tutilo, na noite em que a água da
cheia entrou na igreja, e agora, depois, quando Aldhelm disse que
podia reconhecer o ladrão, e foi assassinado a caminho daqui para
fazer o que prometera, a razão não podia encontrar ninguém a não
ser Tutilo que tivesse alguma coisa para esconder, e de qualquer
maneira para temer a sua vinda, e impedi-la por meio de um crime.
Ela esperou que ele concordasse com o que tinha dito até
então, e o abade disse, neutralmente: — Foi o que pensamos, e
assim o dissemos. Parecia evidente. Certamente, não sabíamos de
mais ninguém.
— Mas, padre, eu tenho motivos para acreditar que havia outra
pessoa.
Ainda não tinha dito o seu nome, mas ele percebeu. Não havia
dúvida de que ele estava agora a olhar na direção do portão, e a
mexer-se ligeiramente, com cuidado para não chamar a atenção
sobre a sua pessoa, mas num esforço furtivo para sair gradualmente
do anel de homens e cavalos que o rodeavam. Mas os dois
escudeiros de Robert Bossu estavam perto, obrigando-o a manter-
se no meio do grupo, e ele não conseguia sair.
— Acredito — declarou ela — que existe uma pessoa entre nós
que escondeu no seu alforge bens que não lhe pertencem. Acredito
que foram roubados na mesma noite da cheia, quando tudo estava
um caos na igreja. Não sei se Aldhelm podia ter falado nisso, mas
mesmo que tivesse visto, não era o bastante? Se estou a acusar um
homem inocente, como posso estar — disse Daalny com grande
ferocidade — redimir-me-ei como me for ordenado. Mas procurai e
verificai, Padre. — E depois voltou-se para olhar para Bénezet, com
o rosto tão embranquecido que parecia uma chama branca; voltou-
se e apontou. E ele foi tão apertado no círculo que só com violência
poderia soltar-se; e a violência o trairia de imediato, e ele ainda não
tinha chegado ao limite da sua capacidade de resistência.
— No alforge do lado dele, tem alguma coisa que está
escondida desde que a cheia inundou a igreja. Se a tivesse recebido
honestamente, ou se já fosse sua, não precisaria de escondê-la.
Vossa senhoria, Padre Abade, fazei-me esta justiça, e se eu estiver
errada fazei-lhe justiça também a ele. Revistai, e vede!
Pareceu que por um instante Bénezet pensou rir-se da
acusação, ignorando-a com um encolher de ombros, dizendo com
desprezo que ela estava a mentir. Depois recompôs-se
convulsivamente, instado a uma reação por todos os olhares
pousados nele. Era fatalmente tarde para gritar a ira da inocência.
Também ele tinha falhado desta vez, e com esse fracasso todas as
possibilidades que lhe restavam.
— Estás louca? É uma mentira maldosa, eu não tenho nada
aqui a não ser o que me pertence. Senhor, falai por mim! Alguma
vez tivestes motivo para pensar mal de mim? Por que se voltaria ela
para mim com semelhante acusação?
— Eu tive sempre confiança em Bénezet — disse Rémy,
bastante resoluto e a falar por si, mas não muito à vontade.
— Não posso acreditar que tenha roubado. E que é que
desapareceu? Nada, que eu tenha conhecimento. Quem sabe de
alguma coisa que tenha sido perdida desde a cheia? Eu não sei de
nada.
— Não houve qualquer queixa — concordou o abade, a franzir
o sobrolho e hesitante.
— Existe um meio simples — declarou Daalny,
implacavelmente — de provar ou não. Abri o alforge! Se ele não tem
nada a esconder, que prove isso mesmo e me envergonhe! Se eu
não estou com medo, por que haveria ele de estar?
— Com medo? — chispou Bénezet. — De tamanha calúnia? O
que está na minha bagagem é meu, e eu não devo nenhuma
resposta a qualquer acusação falsa que tu me faças. Não, não
mostrarei as minhas pobres posses para satisfazer a tua malícia.
Não faço ideia por que proferes tais mentiras contra mim. Que mal
te fiz eu? Mas desperdiças as tuas mentiras, o meu senhor
conhece-me bem.
— Serias sensato em abrir, e deixar que a tua virtude seja vista
por todos — disse o conde Robert com fria autoridade — já que nem
todos aqui temos um conhecimento tão seguro da tua pessoa. Se
ela mente, desmascara a sua mentira. — Tinha olhado um instante
para os seus jovens criados, e erguido uma sobrancelha autoritária.
Eles deram um passo em frente, aproximando-se mais de Bénezet,
os rostos impassíveis, mas os olhos atentos.
— Há uma coisa aqui que é devida a um homem morto — disse
o abade Radulfus — uma vez que esta moça nos recordou uma
coisa muito preciosa que foi roubada. Se for de fato um assunto que
poderá lançar luz sobre aquele crime, e levantar a sombra de dúvida
de todos a não ser do culpado, penso que temos o dever de
investigar. Dá cá o teu alforge.
— Não! — ele apertou-o contra a parte lateral do corpo com um
braço protetor. — Não vale a pena, humilhação... Eu não fiz mal
nenhum, por que deveria submeter-me a tamanha indignidade?
— Tirem-lho — disse Robert Bossu.
Bénezet lançou um olhar selvagem e vibrante à sua volta
quando os dois escudeiros o cercaram e colocaram mãos fortes,
não nele, mas no freio e no alforge. Não havia esperança de saltar
para a sela e libertar-se do círculo fechado, mas os jovens tinham
largado os freios dos seus cavalos para encurralá-lo, e um dos
cavalos que ficou solto aproximou-se mais algumas jardas do
portão, mantendo-se docilmente afastado do grupo agitado no
centro do pátio. Bénezet tirou as mãos dos seus ganhos com um
soluço de fúria, deu ao seu surpreendido animal um pontapé na
barriga que o levou a escoicear e a mergulhar com um relincho
indignado, e a sair do ringue que o prendia. O grupo dispersou,
fugindo dos coices, e Bénezet agarrou no freio do cavalo que estava
à espera, e sem usar os estribos saltou e sentou-se na sela.
Ninguém estava suficientemente perto para agarrar na rédea
nem nos estribos. Ele montou e afastou-se antes de alguém
conseguir montar, voltando as costas à confusão de cavalos a fugir
e homens a gritar. Seguiu, não diretamente para o portão, mas de
lado numa curva rápida, onde Daalny tinha começado a recuar de
um perigo para se colocar no caminho de outro. Ele tinha
desembainhado o seu pequeno punhal e empunhava-o.
Ela só percebeu a intenção dele no último instante, quando ele
estava praticamente em cima dela. Ele não proferiu qualquer som,
mas Cadfael, a correr freneticamente para arrancá-la de debaixo
dos cascos voadores, viu claramente o rosto do cavaleiro, e ela
também, o semblante antes impassível convulsionado numa
máscara de ódio e raiva, com os lábios apertados como um lobo em
dificuldades. Não podia perder tempo a derrubá-la com o cavalo,
isso o atrasaria demasiado. Inclinou-se de lado na sela a toda a
velocidade, e o punhal rasgou a manga dela desde o ombro e fez
uma longa arranhadela no braço. Ela desequilibrou-se para trás e
caiu pesadamente nas lajes, e Bénezet desapareceu, saindo pelo
portão já a galope, e virando para a cidade.
Hugh Beringar, o seu delegado e três dos seus agentes
desciam naquele momento pelo tabuleiro da ponte. Bénezet viu-os,
parou bruscamente, e desviou o cavalo para a estrada estreita que
virava para a esquerda entre a represa e o rio, para sudoeste e para
as bordas da Floresta Comprida, para se esconder e seguir para o
País de Gales pelo caminho mais rápido.
Os cavaleiros vindos da cidade demoraram a compreender as
inferências, mas um cavaleiro a sair a galope do pátio da abadia
para a ponte, e depois parar ao vê-los e virar para uma estrada
secundária à mesma velocidade assustadora, era um fenômeno
para ser ponderado, se não seguido, e Hugh gritou: — Sigam-no! —
antes mesmo de o escudeiro mais jovem sair a correr do portão
para Foregate, a gritar: — Detenha-o! Ele é suspeito de roubo!
— Trazei-o de volta! — ordenou Hugh, e os seus oficiais
viraram prontamente para a estrada secundária, e puseram os
cavalos a galope atrás do fugitivo.
Daalny tinha-se levantado antes de Cadfael poder alcançá-la, e
voltou-se e correu às cegas para longe do turbilhão no pátio, do
terror doentio que se inclinara para ela da sela com uma raiva
assassina, e da reação esmagadora depois da crise, que a deixou a
tremer agora que o pior tinha passado. Pois aquilo era certo. Por
que outro motivo fugiria ele para salvar a pele antes sequer de o seu
alforge ser aberto? No entanto, ela nem sequer sabia o que ele tinha
escondido lá, mas sabia que devia ser terrível. Correu para a igreja
como um pássaro que volta para o ninho. Eles que fizessem o resto,
o seu papel terminara. Agora não duvidava de que seria suficiente.
Sentou-se nos degraus do altar de Santa Winifred, onde tudo
começara e tudo acabara, e inclinou a cabeça para trás para
descansar contra a pedra.
Cadfael tinha-a seguido para o interior da igreja, mas parou ao
vê-la ali sentada, de olhos abertos e imóvel, com a cabeça esticada
e direita como se estivesse a ouvir uma voz, ou uma recordação.
Depois do caos, aquela calma e silêncio eram assombrosos. Ela
sentira isso ao entrar, Cadfael sentiu o mesmo ao vê-la tão
arrebatada.
Aproximou-se dela suavemente, e falou num tom igualmente
suave, e por um momento não soube se ela o ouviria, pois estava
concentrada em algo mais distante.
— Ele feriu-te. É melhor me deixares ver.
— É um arranhão — retorquiu ela, indiferente; mas deixou-o
arregaçar a manga solta quase até ao ombro, onde tinha um rasgão
de um palmo. A pele mal tinha sido rompida, havia apenas uma
linha branca, salpicada em dois ou três lugares como uma
minúscula jóia de sangue. — Nada! Não vai infectar.
— Deste um tombo muito feio. Eu nunca pensei que ele se
atirasse a ti daquela maneira. Falaste cedo demais, eu queria
poupar-te essa necessidade.
— Achei que ele não conseguia amar nem odiar — disse
Daalny sem grande interesse. — Nunca o vi comovido até hoje. Ele
conseguiu fugir?
Ele não podia responder, pois não parara para ver.
— Eu estou muito bem — disse ela com firmeza — e está tudo
bem comigo. Voltai para ver o que ainda há para fazer. Pedi-lhes...
pedi-lhes que me deixem aqui sozinha durante algum tempo.
Preciso deste lugar. Preciso desta certeza.
— Vai tê-la — disse Cadfael, e deixou-a, pois ela tinha controlo
absoluto sobre si e sobre os seus pensamentos, palavras e atos
como talvez nunca tivera antes. Ele voltou-se para trás à porta, para
vê-la uma última vez, e ela estava majestosamente sentada nos
degraus do altar, com as mãos pousadas na pedra ao lado do corpo,
semi abertas, como se tivessem a insígnia da realeza. Havia a tênue
curva de um sorriso nos seus lábios, privado e solitário, e no entanto
teve a ilusão... seria uma ilusão?... de que ela não estava sozinha.
20

Tinham tirado o alforge da sela e levaram-no para a casa do


porteiro, já que era o lugar mais próximo onde uma mesa sólida
oferecia uma superfície hospitaleira para despejar o seu conteúdo.
Havia seis pessoas reunidas junto à mesa quando Cadfael se juntou
a eles para fazer sete: o abade Radulfus, o prior Robert, o sub prior
Herluin, Robert Bossu, Rémy de Pertuis e Hugh Beringar, acabado
de desmontar no interior do portão, e muito sucintamente informado
sobre o que se tinha passado ali. Foi Hugh, a convite silencioso do
conde, que tirou do alforge o modesto equipamento pessoal de um
bom criado, roupas dobradas, navalha de barba, pincéis, um bom
cinto, um par de luvas gastas, mas bem feitas. No fundo, mas a
ocupar metade do espaço, Hugh puxou por uma abertura atada com
um cordel e pousou em cima da mesa um saco de pele macia que
emitiu o tilintar inconfundível de moedas a bater umas nas outras,
enquanto era colocado sobre a mesa e ficava imóvel e enigmático
diante dos olhos de todos.
Pelo menos uma coisa já não era segredo. Três dos presentes
reconheceram-no imediatamente. Ao ouvirem o grito que escapou
de Herluin até os criados, reunidos avidamente na soleira da porta,
Nicol e os escudeiros, e o humilde laico de Ramsey, contiveram a
respiração em antecipação e aproximaram-se.
— Santo Deus! — disse Herluin num suspiro maravilhado. —
Eu conheço isto! Isto estava no cofre que se destinava a Ramsey,
no altar de Nossa Senhora, quando a cheia chegou. Mas como é
possível? Foi colocado na carroça com o carregamento de madeira.
Encontramos o cofre em Ullesthorpe, arrombado e vazio, tudo
roubado...
Hugh abriu os cordões do saco, virou a boca para cima da
mesa e deixou sair uma chuva tilintante de moedas de prata, e no
meio do tilintar e do brilho, um pouco mais volumosos e os últimos a
sair, certos ornamentos brilhantes: uma gargantilha de ouro, duas
pulseiras iguais, um colar de ouro com pedras preciosas toscamente
engastadas, e dois anéis, um o selo maciço de um homem, o outro
uma aliança de ouro larga, muito gravada. Por último, apareceu uma
grande e elaborada pregadeira, para apertar uma capa, em ouro
avermelhado, um belo trabalho saxônico.
Todos ficaram a olhar, e demoraram a acreditar e compreender.
— Também conheço estes — declarou Radulfus lentamente. —
Vi a pregadeira uma vez na capa de Lady Donata. A aliança simples
era a que usava sempre.
— Ela doou-os a Ramsey antes da sua morte — disse Herluin,
em voz baixa, maravilhado com o que parecia quase um milagre.
— Tudo isto estava no cofre que deixei a cargo de Nicol quando
ele partiu com a carroça para Ramsey. O cofre foi encontrado,
arrombado e esvaziado...
— Eu recordo-me bem — disse Nicol, em voz rouca, da porta.
— Levei a chave escondida, mas eles tinham arrombado a
fechadura, levado o tesouro e atirado a caixa fora... Pelo menos foi
isso que pensamos!
Era o que todos tinham pensado. Toda aquela boa vontade,
todos aqueles donativos para um mosteiro devastado, estavam no
seu cofre no altar de Nossa Senhora na noite da cheia, bastante
elevado para estar a salvo da maior cheia. A salvo do rio, mas não
de ladrões que vinham com o pretexto de ajudar a preservar as
coisas sagradas, enquanto aproveitavam a oportunidade para se
servir do que se encontrava tentadoramente à sua disposição. A
chave estava na fechadura, naquela altura não havia necessidade
de arrombá-la. Seria bastante fácil tirar o saco de pele, substituí-lo
pelo que estivesse à mão, trapos e pedras, para representar o peso
que tinha sido removido. Voltar a fechar o cofre, e deixá-lo ali para
ser transferido para a carroça ao cuidado de Nicol. E depois, pensou
Cadfael, com os olhos pregados na última caridade de Donata,
esconder o saque em local seguro, algures num lugar afastado, até
chegar o momento de partir de Shrewsbury. Algures num lugar
afastado, onde mesmo que fosse descoberto não poderia ser
associado a um nome; mas onde estava era improvável que fosse
descoberto. Bénezet tinha ajudado a retirar os cavalos dos
estábulos baixos dentro dos muros da abadia. Não demoraria nada
a enfiar o seu tesouro no fundo de um contentor cheio de milho,
recém abastecido para os poucos dias de estada dos cavalos. Era
pouco provável que ficassem tempo suficiente para expor o objeto
estranho por baixo do milho. Estaria mais seguro ali do que na ala
de hóspedes, por onde passavam viajantes para pernoitar, onde
havia pouca, se alguma, privacidade. Até os ladrões podem ser
roubados, e vizinhos curiosos conseguiam encontrar coisas que
estavam escondidas.
— Elas nunca saíram de Shrewsbury! — disse Hugh, a olhar
para a pilha de prata e ouro. — Padre Herluin, parece que Deus e
os santos vos restauraram o que vos pertence.
— Mas não podemos esquecer — disse Robert Bossu
secamente — que também temos de agradecer àquela vossa moça,
Rémy. Ela provou que tinha razão em relação ao roubo. Não
estamos a esquecer-nos dela? Espero que ele não a tenha ferido.
Onde está ela agora?
— Ela está na igreja — disse Cadfael — e pede para lhe
permitirdes algum tempo sozinha antes da partida. Não tem mais
que um arranhão, no que diz respeito ao corpo, pode viajar e pode
montar, mas do que o seu espírito precisa é de um pouco de
sossego.
— Esperaremos até ela estar pronta — disse o conde. —
Confesso que gostaria de ver o fim disto, Hugh. Se os vossos
companheiros trouxerem o ladrão vivo, tanto melhor, pois ele
roubou-me, de passagem, um bom cavalo. Ele tem muitas contas a
dar.
— Mais — disse Cadfael sombrio — do que simples roubo.
Ele tinha desviado a pilha de roupas que tapavam o saque de
Bénezet, e enfiou uma mão nas profundezas do alforge, e ali estava
uma peça de vestuário dobrada que continuava no fundo do saco,
enfiada por baixo de tudo. Desdobrou-a nas mãos, uma camisa de
linho, limpa de pregas depois de ter sido lavada, e olhou para o
punho de uma manga, virando-o entre os dedos com atenção fixa.
Bénezet era um homem muito auto suficiente, muito meticuloso no
tratamento das suas coisas, sem necessidade de uma mulher para
lavar e limpar para ele. Mas não suficientemente rico para poder
livrar-se de uma camisa, embora tivesse tido bastantes
oportunidades, fechado ali dentro de paredes monásticas ao serviço
do seu patrão, enquanto Rémy prosseguia a sua busca de um
patronato. Lavara-a e guardara-a no fundo de todas as suas coisas,
para esperar pelo próximo uso a milhas de distância dali e semanas
mais tarde. Mas há manchas que não saem com facilidade. Cadfael
estendeu a manga para debaixo do olhar intrigado de Hugh, e o
conde Robert inclinou-se para pegar na segunda manga. Cerca de
um palmo a partir da bainha estavam ambas levemente salpicadas
com pequenas manchas redondas, não mais do que uma auréola
cor-de-rosa clara, com um cor-de-rosa ainda mais tênue no interior.
Mas Cadfael já tinha visto nódoas semelhantes antes, bastantes
vezes para reconhecê-las. E pensou que Robert Bossu também.
— Isto é sangue — disse o conde.
— É o sangue de Aldhelm — disse Cadfael. — Nessa noite
choveu. Bénezet estaria a usar uma capa, a lã preta e grossa
absorve o sangue, e tenho a certeza de que foi cuidadoso. Mas...
Mas uma pedra irregular, erguida com ambas as mãos e atirada
contra a cabeça de um homem sem sentidos, faça-se como se fizer,
com a maior discrição, e sem grande pressa, sem interferências de
ninguém, deve mesmo assim ameaçar pelo menos as mãos e os
pulsos do assassino com vestígios indeléveis. O pior ficara preso
debaixo da pedra, e pingara depois para a erva, mas aqueles
salpicos leves tinham marcado a pele e o tecido. E, a menos que
seja lavado imediatamente, é difícil apagar do linho as pequenas
sombras que traem.
— Lembro-me — disse Rémy, assombrado e meio incrédulo,
completamente esquecido de si próprio — de que era vosso
convidado nessa noite, Padre Abade, e que ele ficou com a noite
livre para tratar dos seus assuntos. Disse que ia à cidade.
— Foi ele que disse à moça que Aldhelm era esperado —
declarou Cadfael — e foi ela que avisou Tutilo para que se
mantivesse longe daqui. Por isso Bénezet sabia da necessidade, se
havia necessidade para ele. Mas como poderia ter a certeza? Era
suficiente que Aldhelm, quando lhe fosse pedido que recordasse
com clareza, pudesse recordar de mais aquilo que vira em
inocência. E, assim, está morto em inocência. E Bénezet foi o seu
assassino. E Bénezet nunca saberá, nem nós, se o assassinou em
vão.
Alan Herbard, o delegado em exercício de Hugh, chegou ao
portão uma hora antes do meio-dia.
O grupo estava a reagrupar-se para a partida, depois do
generoso adiamento do conde Robert por causa de Daalny, e foi
pedido a Cadfael, autonomeado guardião dos seus interesses, por
bons motivos, que fizesse o favor de ir chamá-la para que se
juntasse ao grupo, se naquela altura já estivesse suficientemente
recuperada. Também houvera tempo para os outros assimilarem, o
melhor possível, a enchente de revelações e choques que tinham
contribuído para diminuir o seu número e mudar diversas vidas. O
sub prior Herluin tinha perdido um noviço e a sua vingança por
abusos fortemente sentidos, mas recuperara os tesouros que
pensara estarem perdidos para sempre, e a sua disposição, apesar
dos pecados e mortes e violência, tinha melhorado desde o seu
rosto furioso da manhã para uma quase benevolência. Rémy
perdera um criado, mas garantira o seu futuro com um patrono
muito influente: um criado substitui-se facilmente, mas a entrada na
casa de um dos condes mais importantes da terra é um prêmio para
a vida inteira. Rémy não estava disposto a queixar-se. Nem sequer
tinha perdido o cavalo com o homem, pois o animal roubado
pertencia ao escudeiro de Robert Bossu. O ruano calmo e velho de
Bénezet, aliviado dos alforges, esperava agora imperturbavelmente
por outro cavaleiro. Nicol podia montar, e deixar que o companheiro
conduzisse a carroça. Tudo estava a encaixar-se nas rotinas
normais da vida, embora estas se tivessem desviado do seu curso
até agora.
E de repente ali estava Alan Herbard ao portão, a desmontar,
curioso e um pouco temeroso de se aproximar de Hugh naquela
companhia tão ilustre.
— Temos o homem, senhor. Eu vim à frente para vos
comunicar. Eles trazem-no mais atrás. Para onde quereis que seja
levado? Não houve tempo para saber por que é que ele fugiu, e de
que é acusado.
— É acusado de homicídio — disse Hugh. — Leva-o em
segurança para o castelo e prende-o, e eu vou para lá logo que for
possível. Fostes rápidos. Ele não pode ter ido longe. Que
aconteceu?
— Ele levou-nos uma milha ou mais para dentro da Floresta
Comprida, e estávamos a aproximar-nos dele quando saiu da
estrada para tentar despistar-nos no meio da floresta densa. Acho
que começaram um salto, e o cavalo se recusou, pois ouvimo-lo
praguejar, e depois o cavalo relinchou e recuou. Creio que ele usou
o punhal...
O escudeiro tinha-se aproximado para ouvir o que acontecera à
sua montada. Indignado, disse: — Conradin nunca suportaria isso.
— Eles estavam bastante longe, só conseguíamos segui-los
pelos sons. Mas creio que ele recuou, e atirou com o fulano contra
um tronco baixo, pois quando o apanhamos ele estava no chão,
meio atordoado, debaixo de uma árvore. Está a coxear de uma
perna, mas não está partida. Estava tonto, e não nos deu trabalho.
— Mas ainda pode dar — disse Hugh, a avisar.
— Will não é um aprendiz, vai mantê-lo bem preso. Mas o
cavalo — disse Alan, um pouco apologético em relação a esse
ponto — não conseguimos apanhá-lo. Já tinha desaparecido antes
de chegarmos ao local, e apesar de todas as buscas que nos
atrevemos a fazer com o homem para guardar, não conseguimos
encontrá-lo por perto, nem sequer ouvir nada à nossa frente. Sem
cavaleiro, chegará muito longe antes de se recompor do susto e
parar.
— E o meu equipamento perdido com ele — disse o
desafortunado proprietário com um esgar, mas riu no momento
seguinte.
— Vossa senhoria, ficareis a dever-me roupas novas se ele
tiver desaparecido e nunca mais voltar.
— Amanhã faremos uma busca cuidada — prometeu Alan. —
Havemos de encontrá-lo. Mas primeiro irei prender o assassino.
Fez uma vênia ao abade e ao conde, voltou a montar ao portão
e desapareceu. Todos ficaram a olhar uns para os outros como
pessoas acabadas de acordar, que por instantes não sabem se o
que estão a contemplar é realidade ou sonho.
— Está bem acabado — disse Robert Bossu. — Se este for o
fim!
— E voltou um olhar grave e pensativo para o abade. — Parece
que vivemos esta despedida duas vezes, Padre, mas desta vez é
verdade, temos de ir. Espero que voltemos a encontrar-nos numa
ocasião mais feliz, mas agora ficareis satisfeito por ver-nos a todos
longe da vossa vista e dos vossos pensamentos, com todos os
problemas que vos trouxemos. A vossa casa ficará mais em paz
sem a nossa presença. — E para Cadfael disse, voltando-se para
pegar no freio do cavalo: — Fazeis o favor de perguntar à senhora
se pode juntar-se a nós? Está mais do que na hora de nos
metermos à estrada.
Ele só esteve ausente alguns momentos, e emergiu pela porta
sul e atravessou o claustro sozinho.
— Ela desapareceu — disse o irmão Cadfael, num tom calmo e
com o rosto inexpressivo. — Não está ninguém na igreja a não ser
Cynric, o bedel do padre Boniface, e ele não viu ninguém entrar ou
sair na última meia hora.
Mais tarde, perguntava ocasionalmente a si mesmo se Robert
Bossu esperara que isso acontecesse. Era um homem de uma
sutileza muito perigosa, e sabia apreciar a sutileza nas outras
pessoas, e ver mais num homem ao conhecê-lo superficialmente do
que a maioria das pessoas. E também não era avesso de todo a
soltar gatos no meio de pombos. Mas não, provavelmente não. Não
a conhecia há tempo suficiente para isso. Se ela alguma vez tivesse
chegado à sua casa em Leicester, e estivesse sob a sua observação
durante algumas semanas, ele tê-la-ia conhecido muito bem, e seria
muito capaz de avaliar as suas potencialidades noutros campos
para além da música. Mas pelo menos não constituía grande
surpresa para ele. Não foi ele, mas Rémy de Pertuis, que soltou o
grito de dor: — Não! Ela não pode ter desaparecido. Para onde iria?
Ela é minha! Tendes a certeza? Não, ela deve estar lá, não tivestes
tempo para procurá-la...
— Deixei-a lá há mais de uma hora — disse Cadfael
simplesmente — junto ao altar de Santa Winifred. Ela não está lá
agora. Vede com os vossos próprios olhos. Cynric encontrou a igreja
vazia quando foi preparar o altar.
— Ela fugiu de mim! — lamentou-se Rémy, muito pálido e
abalado, não simplesmente a protestar pela perda do seu bem mais
valioso, e certamente não a lamentar uma criatura que amava
profundamente. Para ele, ela não passava de uma voz, mas ele era
um verdadeiro Provençal e um verdadeiro músico, e uma voz era o
mais puro ouro para ele, um tesouro mais valioso do que rubis.
Possuí-la era possuir esse instrumento, a única coisa nela a que
dava valor. Não havia falsidade alguma no seu desgosto e
consternação. — Ela não pode ir. Tenho de procurá-la. Ela é minha,
eu comprei-a. Vossa senhoria, adiai a partida até eu conseguir
encontrá-la. Ela não pode estar longe. Mais dois dias... um dia...
— Outra busca? Outra frustração? — disse o conde, e abanou
a cabeça, decidido. — Oh, não! Já tive sonhos desses, nunca
levaram a um fim, apenas barreira atrás de barreira, recuo atrás de
recuo. Ela era de fato, e é, um bem muito precioso, Rémy, uma voz
maravilhosa e umas mãos leves e hábeis no organeto e nas cordas.
Mas já estou sem fazer nada há muito tempo, e se quereis a minha
aliança é melhor virdes comigo agora, e esquecer que pagastes
dinheiro por uma coisa que não tem preço. Nunca é lucrativo.
Existem outras tão dotadas como ela, tereis os meios para encontrá-
las e eu garanto que as manterei satisfeitas.
Ele estava a falar a sério, e Rémy sabia. Teve uma grande luta
interior para escolher entre a sua cantora e a sua segurança futura,
mas no fim nunca teve dúvida. Cadfael viu-o engolir em seco e
quase sufocar com o esforço, e naquele momento quase sentiu
pena dele. Mas com um patrono tão poderoso, tão culto e durável
como Robert de Beaumont, Rémy de Pertuis dificilmente poderia
inspirar pena durante muito tempo.
Antes de desistir, olhou em volta, atentamente, à procura de um
agente de confiança no meio daquele grupo.
— Senhor Abade, ou vós, senhor xerife... não gostaria de a
saber sozinha e a passar necessidades, nunca. Se ela reaparecer,
se souberdes dela, imploro-vos que me comuniquem, e eu mandarei
buscá-la. Ela será sempre bem-vinda junto de mim.
Era bastante verdade, e de maneira nenhuma porque era
valiosa para ele devido à sua voz. Provavelmente, nunca tinha
percebido até agora que ela era mais do que um bem, que era uma
criatura humana por direito próprio, e podia passar fome, até morrer
de inanição, cair vítima de vilãos na estrada, sofrer de mil maneiras
diferentes. Era como a fuga de uma freira desde a infância, a
aventurar-se de repente num mundo terrível que não dava tréguas a
ninguém. Então, pelo menos, podia pensar nela, vendo-a inteira no
instante em que ela desaparecera da sua vista. Como ele a
conhecia mal!
— Bem, vossa senhoria, eu fiz o que podia. Estou pronto.

Tinham partido, todos eles, seguindo ao longo de Foregate em


direção a Saint Giles, Robert de Beaumont, conde de Leicester, a
cavalgar lado a lado com o sub prior Herluin de Ramsey, que
recuperara o bom humor com a recuperação dos frutos do seu
trabalho em Shrewsbury, e gratificado por estar a viajar na
companhia de um nobre de tamanha envergadura; os dois
escudeiros de Robert seguiam atrás, o mais jovem um pouco
arreliado por ter de se haver com uma montada que não conhecia,
mas contente por ir para casa; o criado de meia-idade de Herluin
conduzia a carroça das bagagens, e Nicol, a fechar o cortejo ia
bastante satisfeito por ir montado ao invés de ir a pé. Dentro da
igreja, o som dos cascos dos cavalos ainda era audível até
chegarem à ponta do enclave, e virarem para a Feira dos Cavalos.
Depois fez-se um silêncio agradecido, tempo para respirar e refletir.
O abade Radulfus e o prior Robert foram tratar dos seus assuntos, e
os irmãos voltaram para as suas tarefas. Estava terminado.
— Bem — disse Cadfael, pensativo, inclinando a cabeça com
familiaridade para Santa Winifred — um patife cativante, e
inofensivo, mas não para o claustro, assim como não servia para a
servidão, por isso para quê lamentar-se? Ramsey estará muito bem
sem ele, e a rainha de Partholan já não é escrava. É verdade que
perdeu as suas coisas, mas provavelmente tê-las-ia rejeitado. Ela
disseme que não possuía nada, Hugh, nem sequer as roupas que
vestia. Agora vai gostar de saber que roubou apenas as poucas
coisas que traz vestidas.
— E o rapaz — disse Hugh — roubou apenas uma moça. — E
acrescentou, olhando de relance para o rosto satisfeito de Cadfael:
— Sabias que ele estava lá, quando a seguiste para o interior da
igreja?
— Juro-te, Hugh, que não vi nada, nem ouvi nada. Nem sequer
aconteceu nada que me tivesse levado a pensar nele. Mas sim,
sabia que ele estava lá. E ela também, desde o momento em que
entrou. Foi quase como se me tivesse sido falado ao ouvido: sai
discretamente. Não digas nada. Todas as coisas ficarão bem. Afinal
de contas, ela não estava a pedir muito. Um pouco de tempo
sozinha. E a porta da igreja está sempre aberta.
— Achas — perguntou Hugh, quando seguiram juntos para a
porta sul e para o claustro — que Aldhelm poderia ter revelado
alguma coisa contra Bénezet?
— Quem sabe? A possibilidade bastava.
Saíram para a luz forte do princípio da tarde, mas depois do
turbilhão e da intensidade, aquela imobilidade e calma que tinham
ficado falavam mais de noite e da lassidão encantadora do
descanso depois do trabalho e da calmaria depois da tempestade.
— Era fácil gostar do rapaz — disse Cadfael — mas perigoso,
sendo tamanha cabeça no ar. Mais vale termo-nos visto livres dele
agora do que mais tarde. Ele foi sem dúvida um ladrão, embora não
em proveito próprio, e igualmente mentiroso quando sentia que era
necessário. Mas foi verdadeiramente bondoso com Donata. O que
fez por ela foi feito sem um único pensamento de recompensa, e por
um coração sem mácula.
Não havia ninguém no grande pátio quando se voltaram para a
casa do porteiro. Um espaço ultimamente a pulsar de ira e agitação
permanecia sem pessoas, como se um criador menor se tivesse
desesperado com o mundo que havia feito, e o tivesse derrubado
para uma segunda tentativa.
— E pensaste — disse Hugh — que aqueles dois seguem
seguramente para sudoeste pela estrada que Bénezet tomou? Para
sul, para o lugar onde ela atravessa o velho trilho romano, e depois
para oeste, direito como uma lança, para o País de Gales. Com a
sorte dos santos, ou do próprio diabo, pode ser que encontrem
aquele cavalo perdido, ali na floresta, e não deixem nada para Alan
encontrar amanhã.
— E os alforges daquele infeliz rapaz ainda se encontram na
sela — percebeu Cadfael, e iluminou-se com a ideia. — Faziam-lhe
jeito umas roupas mais seculares do que o hábito e o capuz, e tanto
quanto me recordo eles são mais ou menos do mesmo tamanho.
— Não me digas mais nada — disse Hugh apressadamente.
— Encontrar não é roubar. — E quando pararam junto ao
portão, onde o cavalo de Hugh estava amarrado, Cadfael disse,
muito sério: — Donata compreendeu-o melhor do que qualquer um
de nós. Disse-lhe qual seria o seu futuro, de uma forma ligeira, mas
sensatamente. Um trovador, disse ela, precisa de três coisas, e três
coisas apenas, um instrumento, um cavalo e uma donzela para
amar. A primeira deu-lhe, as outras teria de arranjá-las. Agora,
talvez tenha encontrado as três.
Fonte: Silvio B.

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