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Folha de Rosto
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ELLIS PETER
O Verão Viking
Título original: The Summer of the Danes
Crônicas do Irmão Cadfael 18 – Abril de 1144
Tradução: Isabel Seqeira
Publicações Europa-América
1

Pode-se dizer, com toda a propriedade, que os extraordinários


acontecimentos daquele Verão de 1144 tiveram início no ano
anterior, num emaranhado de fios tanto eclesiásticos como
seculares, numa teia em que as mais diversas pessoas ficaram
enredadas, desde o arcebispo até ao mais humilde diácono do bispo
Roger de Clinton, e, entre os laicos, desde os príncipes do Norte do
País de Gales até ao mais humilde habitante de Arfon. E, mais
exatamente, entre a plebe assim emaranhada, um monge
beneditino idoso da Abadia de S. Pedro e S. Paulo, em Shrewsbury.
O Irmão Cadfael tinha chegado a Abril sentindo-se cheio de
esperança, ligeiramente inquieto, como habitualmente lhe acontecia
quando as aves faziam os seus ninhos, as flores do campo
começavam a fazer despontar os seus botões através da erva nova
e todos os dias o sol estava um pouco mais alto no céu ao meio dia.
É verdade que havia problemas no mundo, como sempre houvera.
As dificuldades por que a Inglaterra passava, dilacerada por dois
primos que disputavam o trono, ainda não tinham qualquer
esperança de solução visível. O Rei Stephen ainda se mantinha
firme no sul e na maior parte da região leste; a Imperatriz Maud,
graças a Robert de Gloucester, o seu leal meio-irmão, estava
firmemente estabelecida na zona sudoeste e mantinha a sua própria
corte ilesa em Devizes. Mas, nos últimos meses, devido à exaustão
ou à política, tinha havido poucas escaramuças entre eles, e uma
estranha calma, que era quase paz, tinha-se instalado no país. Nos
Fens, o fora da lei Geoffrey de Mandeville, inimigo de todos, ainda
se encontrava em liberdade, mas uma liberdade limitada pelas
novas fortalezas circundantes do rei e cada vez mais vulnerável.
Bem vistas as coisas, havia motivo para um otimismo cauteloso, e a
própria frescura e luminosidade da Primavera interditava o
desalento, mesmo que o desalento estivesse entre as tendências de
Cadfael.
Assim, naquele dia específico no final de Abril, ele chegou ao
capítulo sentindo-se extremamente sereno e tolerante, cheio de
boas intenções para com todos os homens e satisfeito com a
perspectiva de as coisas continuarem calmas e rotineiras durante o
Verão, até ao Outono. Certamente que ele não tinha qualquer
premonição de uma mudança nesse estado idílico, muito menos dos
meios através dos quais ela chegaria.
Como se impelido, de um modo meio receoso, meio grato, para
a mesma tranquilidade precária, mas bem acolhida, o assunto
tratado nesse dia no capítulo foi simples e não provocou qualquer
discussão, não havia ninguém em falta, nem sequer um pequeno
pecado entre os noviços para o Irmão Jerome lamentar, e os alunos
da escola, intoxicados com a Primavera e a luz do sol, pareciam
comportar-se como os anjos que certamente não eram. Até mesmo
o capítulo da Regra, lido nos tons monótonos, reprovadores, do
Irmão Francis, era o 34º, explicando suavemente que a doutrina de
partes iguais para todos nem sempre podia ser mantida, uma vez
que as necessidades de um poderiam exceder as necessidades de
outro, e aquele que recebia mais de acordo com as suas
necessidades não devia vangloriar-se de receber mais do que os
seus irmãos, e o que tivesse recebido menos mas suficiente não
devia invejar o quinhão extra que fora atribuído aos seus irmãos. E,
acima de tudo, nada de queixas, nada de invejas. Tudo era plácido,
conciliatório, moderado. Talvez, até mesmo, um pouco monótono?
Era uma coisa abençoada, de um modo geral, viver numa
época ligeiramente enfadonha, especialmente depois das
desordens, dos cercos e das lutas amargas. Mas, algures em
Cadfael, ainda havia algo que começava a torná-lo impaciente
quando a quietude se prolongava durante demasiado tempo. Afinal
de contas, um pouco de excitação não significava necessariamente
que algo de mal se passava, e era um agradável contraponto à
ordem constante, por mais que esta possa ser amada e fielmente
servida.
Tinham chegado ao fim dos assuntos de rotina, e a atenção de
Cadfael vagueara para longe dos pormenores das contas do
adegueiro, uma vez que ele próprio não tinha qualquer função como
obediencial e deixava, de bom grado, essas questões para os que
tinham. O Abade Radulfus estava prestes a encerrar o capítulo,
olhando em volta para se certificar de que ninguém mais estava a
cismar com uma objeção ou reserva, quando o porteiro laico que
prestava serviço na casa do portão durante os serviços religiosos e
o capítulo, meteu a cabeça dentro da sala, numa atitude que sugeria
que estivera à espera daquele preciso momento, sem ser visto.
— Pai Abade, está aqui um visitante de Lichfield. O Bispo de
Clinton enviou-o numa missão a Gales, e ele solicitou alojamento
aqui por uma ou duas noites.
Se se tratasse de uma pessoa menos importante, pensou
Cadfael, ele teria aguardado até todos nós termos emergido da sala,
mas, se o bispo estava envolvido, podia muito bem ser um assunto
sério e exigir consideração oficial antes de dispersarmos. Ele tinha
boas recordações de Roger de Clinton, um homem decidido e
sensato, rápido a distinguir o que era genuíno e falso nos outros
homens, e uma maneira direta de encarar os problemas da doutrina.
Pelo brilho dos olhos do abade, embora o seu rosto permanecesse
impassível, Radulfus também guardava uma recordação grata da
última visita do bispo.
— O enviado do bispo é muito bem-vindo — disse ele — e pode
alojar-se aqui o tempo que quiser. Ele tem algum pedido imediato a
fazer-nos, antes de encerrarmos este capítulo?
— Pai, ele gostaria de cumprimentá-lo imediatamente e de lhe
dizer qual é a sua missão. Aqui ou em privado, conforme o Pai
quiser.
— Manda-o entrar — disse Radulfus.
O porteiro desapareceu, e o pequeno e discreto murmúrio de
curiosidade e especulação que percorreu a casa do capítulo como a
ondulação num lago desfez-se num silêncio de antecipação quando
o enviado do bispo entrou e se deixou ficar de pé no meio deles.
Era um homem baixo, de ossos finos, magro mas rijo, pequeno
como um rapaz de dezesseis anos e parecendo, de fato, ter apenas
dezasseis anos até uma observação atenta revelar a maturidade do
rosto oval, sem barba. Beneditino como aqueles seus irmãos, de
tonsura e hábito, ele manteve-se ereto na dignidade da sua posição
e na humildade e simplicidade da sua natureza, frágil como uma
criança e resistente como uma árvore. O seu cabelo curto, cor de
palha, era espetado e indisciplinado, fazendo lembrar a criança. Os
olhos cinzentos, espantosamente diretos e límpidos, confirmavam o
homem adulto.
Um pequeno milagre! Cadfael recebera subitamente um
presente por que ansiara com frequência ao longo dos últimos anos,
e que, dado o seu caráter repentino e improvável, era seguramente
milagroso. Roger de Clinton tinha escolhido como seu enviado
acreditado a Gales, não um corpulento cônego com uma presença
imponente, mas sim o mais jovem e humilde diácono da sua casa, o
Irmão Mark, que já estivera na abadia de Shrewsbury, onde, durante
dois anos de grata recordação, fora assistente de Cadfael no meio
das ervas aromáticos e medicamentos da sua oficina.
O Irmão Mark fez uma vênia profunda ao abade, baixando a
sua exuberante tonsura com uma solenidade que ainda retinha, até
ter voltado a erguer os olhos límpidos, o ligeiro eco e encanto do
absurdo que envolvia o rapaz calado de que Cadfael se recordava.
Quando se endireitou, ele era novamente o embaixador; a partir
desse momento, seria sempre ao mesmo tempo homem e criança,
até ao dia em que se tornasse padre, como era seu fervoroso
desejo. E isso só aconteceria daí a alguns anos, pois ainda não
tinha idade suficiente para ser aceito.
— Meu senhor — disse ele — eu fui enviado pelo meu bispo
numa missão de boa vontade a Gales. Ele pede que me receba e
aloje uma ou duas noites entre vós.
— Meu filho — disse o abade, sorrindo — aqui não precisas de
quaisquer credenciais para além da tua presença. Achas que nos
esquecemos de ti tão depressa? Aqui tens tantos amigos quantos
irmãos, e em apenas dois dias terás dificuldade em satisfazê-los a
todos. E quanto à tua missão ou, por outra, a missão do teu senhor,
faremos o que estiver ao nosso alcance para a ajudar. Desejas falar
sobre ela? Aqui, ou em privado?
O rosto solene do Irmão Mark desfez-se num sorriso de alegria,
não só por se lembrarem dele, mas por se recordarem com um
prazer óbvio.
— Não é uma história longa, Pai — disse ele — e posso bem
contá-la aqui, embora mais tarde vá pedir os seus conselhos, pois
uma missão destas é uma novidade para mim, e não há ninguém
melhor para me ajudar a levá-la fielmente a cabo. O Pai sabe que,
no ano passado, a Igreja decidiu restaurar a diocese de Santo
Asaph, em Llanelwy.
Radulfus concordou, inclinando a cabeça. A quarta diocese
galesa tinha estado suspensa durante cerca de setenta anos, muito
poucos homens vivos se conseguiam lembrar de ter havido um
bispo no trono de S. Kentigern. A localização da sé, com um pé de
ambos os lados da fronteira, e todo o poder de Gwynedd a oeste,
tinha sido sempre difícil de manter. A catedral estava situada em
terras que pertenciam ao conde de Chester, mas todo o vale do
Clwyd acima dela ficava no território de Owain Gwynned. O motivo
exato por que o Arcebispo Theobald tinha decidido reanimar a
diocese naquela altura não era bem claro para ninguém, talvez nem
sequer para o próprio arcebispo. Aparentemente, uma mistura de
razões políticas da Igreja e estratagemas seculares exigiam um
controle firme sobre aquelas terras fronteiriças, uma vez que o
homem que fora nomeado era normando. Não tinha havido muita
consideração pelas sensibilidades galesas naquela nomeação,
refletiu Cadfael com pesar.
— Depois da sua consagração, o ano passado, pelo Arcebispo
Theobald, em Lambeth, o Bispo Gilbert está finalmente instalado na
sua sé, e o arcebispo quer que ele receba a garantia de que tem o
apoio do nosso próprio bispo, uma vez que os deveres pastorais
naquela zona estavam antigamente a cargo da diocese de Lichfield.
Eu sou portador de cartas e ofertas para Llanelwy, em nome do meu
senhor.
Isso fazia sentido se a intenção da Igreja fosse obter uma
posição segura no interior de Gales e demonstrar que a mesma
seria preservada e defendida. Era espantoso, refletiu Cadfael, que
qualquer bispo tivesse alguma vez conseguido gerir uma sé tão
grande como a diocese original de Mercia, deslocando, com êxito, a
sua base de Lichfield para Chester, novamente para Lichfield, e
agora para Coventry, numa tentativa de permanecer em contato
com o rebanho mais variado que um pastor alguma vez tivera a seu
cargo. E, quer aprovasse ou não a estratégia que o privara daquelas
paróquias fronteiriças, Roger de Clinton talvez não lamentasse ter-
se visto livre delas.
— A missão que te traz de volta até nós, mesmo por apenas
alguns dias, é muito bem-vinda — disse Radulfus. — Se o meu
tempo e experiência te puderem ser úteis, eles são teus, embora eu
pense que consegues desenvencilhar-te perfeitamente bem sem
qualquer ajuda minha ou de qualquer homem.
— É uma pesada honra ser alvo de tamanha confiança — disse
Mark muito solene.
— Se o bispo não tem quaisquer dúvidas — disse Radulfus —
nós também não devemos ter. Eu considero-o um homem que sabe
muito bem avaliar onde pode depositar a sua confiança. Se vieste a
cavalo de Lichfield deves estar a precisar de descanso e comida,
pois é óbvio que partiste cedo. A tua montada está a ser cuidada?
— Está sim, Pai. — A velha forma de tratamento voltava-lhe
naturalmente.
— Então vem comigo até aos meus aposentos, aproveita para
descansares e usa o meu tempo como desejares. Toda a sabedoria
que eu possa ter está à tua disposição. — Tal como Cadfael, ele já
tinha uma profunda consciência de que aquela missão,
aparentemente simples, a um bispo estrangeiro, recentemente
ordenado em Santo Asaph, envolvia um grande número de outros
riscos calculados e problemas questionáveis que poderiam bem
obrigar aquele inocente sensato a atravessar, pé ante pé, um
pantanal, deparando-se a cada passo com turfa pouco firme. O que
tornava ainda mais impressionante o fato de Roger de Clinton ter
depositado a sua confiança no seu clérigo mais jovem e mais
insignificante.
— Este capítulo terminou — disse o abade, dirigindo-se para a
saída. Quando ele passou o visitante, os olhos cinzentos do Irmão
Mark, finalmente livres para percorrer a assembleia à procura de
outros velhos amigos, encontraram-se com os olhos de Cadfael e
retribuíram o seu sorriso, antes de o jovem se virar e seguir o seu
superior. Radulfus poderia mantê-lo ao seu lado durante algum
tempo, saboreá-lo, ouvir todas as notícias que ele trazia e todos os
pormenores que pudessem complicar a sua próxima viagem, e dar-
lhe o benefício da sua longa experiência e do seu senso comum.
Mais tarde, terminado tudo isso, Mark encontraria novamente o
caminho até ao herbário.
— O bispo tem sido muito bom para mim — disse Mark,
afastando firmemente a ideia de que o fato de ter sido escolhido
para aquela missão era uma manifestação de especial preferência.
— Mas ele é muito bom para todos os que o rodeiam. Há algo mais
nisto do que um privilégio que me é concedido. Agora que colocou o
Bispo Gilbert em Santo Asaph, o arcebispo sabe muito bem que a
sua posição deve ser bastante instável, e quer certificar-se que o
seu trono se encontra seguro, com todos os apoios possíveis. Foi
seu desejo, na verdade, foi uma ordem, que o nosso bispo fizesse
uma visita de cortesia a este novo homem, uma vez que foi à sua
diocese que a maior parte da nova sé de Gilbert foi retirada. Que o
mundo testemunhe a harmonia que existe entre os bispos... até
mesmo bispos que tiveram um terço do seu território retirado de
debaixo dos seus pés. Independentemente do que o Bispo Roger
possa pensar acerca da sensatez de colocar um normando, que não
fala uma palavra de galês, numa sé nove décimos galesa, ele não
podia dizer não ao arcebispo. Mas cabia-lhe a ele decidir a forma
como iria cumprir a ordem. Penso que me escolheu porque não
desejava manifestar-se de maneira demasiadamente efusiva e
lisonjeira. A carta dele é formal e muito bem executada, e a sua
oferta é mais do que apropriada. Mas eu... eu sou um discreto
embaixador de meia-tigela!
Estavam reunidos num dos recantos do claustro norte, onde
ainda chegavam os dedos oblíquos de ouro pálido do sol da
Primavera, até mesmo ao fim da tarde, cerca de uma hora antes das
Vésperas. Hugh Beringar tinha vindo da sua casa na cidade assim
que tivera conhecimento da chegada do Irmão Mark, não porque o
xerife tivesse oficialmente alguma coisa a ver com aquela
embaixada clerical, mas pelo prazer de voltar a ver um jovem que
recordava com afeto e a quem, neste caso, talvez pudesse dar
alguma ajuda e conselhos. As relações de Hugh com o Norte de
Gales eram boas. Ele tinha um acordo amigável com Owain
Gwynedd, uma vez que nenhum deles confiava no seu vizinho
mútuo, o conde de Chester, e podiam aceitar, sem qualquer dúvida,
a palavra um do outro. Com Madog ap Meredith de Powis, o xerife
tinha uma relação mais precária. A fronteira de Shropshire estava
constantemente em alerta contra ataques esporádicos e quase
insignificantes oriundos do outro lado do dique, embora, no
momento atual, tudo estivesse relativamente calmo. Hugh era o
homem que melhor deveria saber quais eram as condições de
viagem até Santo Asaph.
— Eu penso que és demasiado modesto — disse ele num tom
sério. — Calculo que o bispo, se te manteve constantemente perto
dele, já te conhece suficientemente bem para ter uma opinião muito
boa da tua sabedoria e sabe que vais agir com cautela, ao passo
que um embaixador mais importante poderia falar demasiado e ouvir
muito pouco. O Cadfael aqui poderá dizer-te mais do que eu sobre
os sentimentos de Gales quanto às questões da Igreja, mas eu sei
onde é que a política entra. Podes ter a certeza de que Owain
Gwynedd tem observado atentamente o que o Arcebispo Theobald
fez nos seus domínios, e é necessário ter sempre Owain em conta.
E há apenas quatro anos foi consagrado um novo bispo totalmente
galês na sua diocese natal de Bangor. Ali, pelo menos, eles deram o
seu consentimento a um galês que, de princípio, se recusou a jurar
fidelidade ao Rei Stephen e a reconhecer a dominância de
Cantuária. Meurig não era um herói e acabou por ceder e fazer
ambas as coisas, o que, na altura, lhe custou o apoio e a proteção
de Owain. A sua nomeação para o cargo deparou-se com uma forte
resistência. Mas eles chegaram a um acordo e resolveram as suas
diferenças, o que significa que certamente trabalharão juntos para
evitar que Gwynedd seja totalmente subserviente à influência de
Theobald. Consagrar agora um normando a Santo Asaph é um
desafio tanto para príncipes como para prelados, e quem efetuar
uma missão diplomática terá que observar ambos atentamente.
— E Owain, pelo menos — acrescentou Cadfael com astúcia —
observará atentamente os sentimentos da sua gente, e escutará o
que eles estão a dizer. Compete a Gilbert fazer o mesmo. Gwynedd
não tenciona ceder a Cantuária, eles têm santos, costumes e rituais
próprios.
— Eu ouvi dizer — disse Mark — que antigamente, há muito
tempo, a sé de S. David era a sé metropolitana de Gales, com o seu
próprio arcebispo que não estava sujeito a Cantuária. Atualmente,
existem alguns clérigos galeses que querem que essa regra seja
reposta.
Cadfael abanou a cabeça com um ar de alguma dúvida.
— É melhor não olharmos demasiado atentamente para o
passado; quanto mais o mandado de Cantuária nos é imposto, mais
ouvimos essa pretensão. Mas certamente que Owain irá lançar a
sua sombra sobre este novo bispo para lhe fazer lembrar que está
em território estrangeiro e que deverá ter o cuidado de se comportar
devidamente. Eu espero que ele seja um homem sensato e que
trate o seu rebanho com brandura.
— O nosso bispo concorda inteiramente contigo — disse Mark
— e eu recebi instruções claras. No capítulo, eu não referi toda a
minha missão, embora posteriormente a tenha contado ao Pai
Abade. Tenho outra carta e outra oferta para entregar. Vou até
Bangor... oh, não, isto certamente não é por ordem do Arcebispo
Theobald!... fazer a mesma visita de cortesia ao Bispo Meurig que
vou fazer ao Bispo Gilbert. Se Theobald insiste que os bispos se
devem manter unidos, então o texto de Roger de Clinton diz que
esse princípio se aplica tanto aos normandos como aos galeses. E
nós tencionamos tratá-los do mesmo modo.
O "nós"", aplicado a Mark e ao seu ilustre superior fez soar um
eco aos ouvidos de Cadfael. Ele recordou-se de uma suposta
sociedade que existira alguns anos antes, quando aquele rapaz
tinha emergido gradualmente da sua bem fundamentada
desconfiança de todos os homens para a cordialidade, afeto e
lealdade impulsiva para com aqueles que admirava e servia. Nessa
altura, o seu "nós" significara ele próprio e Cadfael, como se eles
fossem dois aventureiros a enfrentar o mundo juntos.
— Eu gosto cada vez desse nosso bispo — disse Hugh num
tom de apreço. — Mas ele enviou-te sozinho nesta viagem ainda
mais longa?
— Não exatamente sozinho. — O rosto magro, inteligente, do
Irmão Mark animou-se por um instante num sorriso levemente
malicioso, como se ainda tivesse uma surpresa misteriosa na
manga. — Mas ele não hesitaria em atravessar Gales sozinho, e eu
também não. Ele parte do princípio de que a Igreja e o hábito serão
respeitados. Mas claro que eu ficarei grato por quaisquer conselhos
que me possam dar sobre o melhor caminho a seguir. Conheceis
melhor a situação de Gales do que eu ou o meu bispo. Pensei em ir
diretamente através de Oswestry e Chirk. O que acham?
— As coisas estão bastante sossegadas por lá — concordou
Hugh. — Em todo o caso, Madog é uma alma pia no que diz
respeito aos homens da igreja, independentemente da forma como
possa tratar os laicos ingleses. E, de momento, ele mantém todos
os rapazes de Powys Fadog numa rédea curta. Sim, esse caminho
é o mais curto, e estarás em segurança, embora tenhas um duro
percurso a subir entre o Dee e o Clwyd.
Pelo brilho e ar de especulação dos olhos cinzentos de Mark,
ele estava certamente ansioso por aquela aventura. É ótimo ser-nos
confiada uma missão importante quando se é o mais recente e
humilde servidor do nosso senhor, e embora tivesse consciência de
que o seu estatuto humilde tinha a intenção de moderar a cortesia,
ele também sabia que a forma como ele desempenhasse a sua
tarefa era muito importante. Ele não deveria lisonjear, não deveria
exaltar mas, ao mesmo tempo, tinha que apresentar na sua pessoa
a formidável e real solidariedade de um bispo para com outro.
— Há alguma coisa que eu deva saber — perguntou ele —
sobre como estão as coisas em Gwynedd? A política da igreja tem
que ter em conta a política do estado, e eu não sei nada sobre o que
se passa em Gales. Preciso saber quando me deverei manter
calado, e quando falar, e o que será sensato dizer. Ainda mais
porque vou continuar até Bangor. E se a corte lá estiver? Eu posso
ter que prestar contas aos agentes de Owain. Talvez até mesmo ao
próprio Owain!
— E verdade — disse Hugh — pois ele consegue geralmente
ter conhecimento de todos os desconhecidos que entram no seu
território. Se te encontrares com ele, verás que é bastante acessível.
Nesse caso, podes apresentar-lhe os meus cumprimentos e
saudações. E o Cadfael já se encontrou com ele pelo menos duas
vezes. Um homem grande, em todos os sentidos! Mas não lhe fales
em irmãos! Essa ainda pode ser uma questão melindrosa para ele!
— Os irmãos têm sido a ruína dos principados galeses através
dos tempos — observou Cadfael com tristeza. — Os príncipes
galeses deviam ter apenas um filho cada. O pai constrói um
principado sólido e um poder forte e, depois da sua morte, os seus
três, quatro ou cinco filhos, nascidos dentro e fora do casamento,
exigem por direito partes iguais, e a lei diz que devem tê-las.
Depois, um mata outro para alargar as suas terras, e seria preciso
mais do que a lei para travar as mortes. Às vezes pergunto a mim
próprio o que irá acontecer quando Owain desaparecer. Ele já tem
filhos, e tempo suficiente à sua frente para ter mais. Será que eles
vão desfazer tudo o que ele fez?
— Queira Deus — disse Hugh num tom fervoroso — que a
morte de Owain só aconteça daqui a trinta ou mais anos. Ele
acabou de fazer quarenta anos. Eu consigo lidar com Owain, ele
cumpre a sua palavra e mantém o equilíbrio. Se Cadwaladr fosse o
mais velho e tivesse ficado com o poder, teríamos tido
constantemente guerras fronteiriças.
— Esse Cadwaladr é o irmão de que é melhor não falar? —
perguntou Mark. — O que fez com ele se tornasse proscrito?
— Várias coisas ao longo dos anos. Owain deve amá-lo, caso
contrário há anos que teria mandado alguém livrar-se da peste.
Alguns meses atrás, no Outono do ano passado, um grupo dos seus
homens mais próximos fez uma emboscada ao príncipe de
Deheubarth e mataram-no. Só Deus sabe o motivo louco por que o
fizeram. O jovem tinha uma aliança com ele e estava casado com a
filha de Owain, aquele ato não fez qualquer sentido. E embora
Cadwaladr não tivesse participado pessoalmente nele, Owain não
teve quaisquer dúvidas de que tinha sido levado a cabo sob as suas
ordens. Nenhum deles se teria atrevido, não por sua própria
iniciativa.
Cadfael recordava-se do choque do assassinato e do castigo
rápido e total. Owain Gwynedd, indignado, mandara o seu filho
Hywel expulsar Cadwaladr de todas as terras que ele detinha em
Ceredigion e queimar o seu castelo de Llanbadarn, e o jovem, com
pouco mais de vinte anos, tinha desempenhado a tarefa com
satisfação e eficiência. Sem dúvida que Cadwaladr tinha amigos e
apoiantes que lhe dariam pelo menos o abrigo de um teto, mas ele
permaneceu sem terras e proscrito. Cadfael não conseguia deixar
de perguntar a si próprio, não só onde andaria o criminoso, mas
também se ele não acabaria, tal como Geoffrey de Mandeville nos
Fens, reunindo à sua volta a escumalha do norte de Gales,
criminosos, descontentes, foras da lei inatos, a atormentar os
cumpridores da lei.
— O que é que aconteceu a esse Cadwaladr? — perguntou
Mark com compreensível curiosidade.
— Foi expropriado. Owain expulsou-o de todas as terras que
tinha em seu nome. Não resta nada dele em Gales.
— Mas ele ainda se encontra em liberdade, em algum lugar —
comentou Cadfael, com alguma preocupação — e não é, de modo
algum, homem para aceitar mansamente o seu castigo. Ainda
poderá haver problemas. Estou vendo que vais te meter num
labirinto perigoso. Penso que não deverias ir sozinho.
Hugh estava a examinar o rosto de Mark, exteriormente
impassível, mas com um brilho secreto de divertimento nos olhos
que observavam frequentemente Cadfael.
— Se bem me recordo — disse Hugh suavemente — ele disse
"Não completamente sozinho."
— Pois foi! — Cadfael olhou para o rosto jovem que o fitava
com um ar muito solene, com exceção do brilhinho que tinha nos
olhos. — O que foi que não nos contaste, rapaz? Fala! Quem vai
contigo?
— Mas eu já vos disse — replicou Mark — que ia a Bangor. O
Bispo Gilbert é normando e fala francês e inglês, mas o Bispo
Meurig é galês, e ele e muita da sua gente não fala inglês, e o meu
latim só me serviria para falar com os clérigos. Por isso estou
autorizado a levar um intérprete. Não há ninguém próximo do Bispo
Roger, nem que mereça a sua confiança, que fale bem galês. Eu
propus um nome, alguém que ele não esquecera. — O brilho
transformara-se numa auréola que lhe iluminava o rosto e refletia,
não só a luz, como o esclarecimento espelhado nos olhos
espantados de Cadfael. — Guardei o melhor para o fim — disse
Mark, radiante. — Tenho autorização para obter o meu homem, se o
Abade Radulfus autorizar a sua ausência. Praticamente já lhe jurei
que o empréstimo será, no máximo, por cerca de dez dias. Por isso,
como é que eu posso errar — perguntou Mark em conclusão — se
tu vens comigo?
Para o Irmão Cadfael, era uma questão de princípio, ou talvez
de honra, quando uma porta se abria súbita e inesperadamente à
sua frente, aceitar a oferta e passar a porta. E fazia-o com ainda
mais entusiasmo se a porta se abrisse tendo Gales como
perspectiva; dir-se-ia até que desatava a correr, não fosse a porta
voltar a fechar-se recusando-lhe aquela encantadora paisagem.
Desta vez, não era apenas uma breve deslocação a Powis, do outro
lado da fronteira, mas vários dias a cavalgar, com uma companhia
que ele próprio teria escolhido, através das regiões costeiras de
Gwynedd, de Santo Asaph até Carnarvon, passando por Aber dos
príncipes, sob as enormes espaldas de Moei Wnion. Tempo para
conversar sobre todos os dias dos tempos em que tinham estado
separados, tempo para ficar cordialmente em silêncio quando tudo o
que precisava de ser dito tivesse sido dito. E tudo isso era um
presente do Irmão Mark. Como é maravilhosa a riqueza que um
homem que, por escolha e vocação, nada possui, pode conceder. O
mundo está cheio de pequenos milagres beneficentes.
— Meu filho — disse Cadfael entusiasticamente — por um tal
repouso, eu serei teu cavalariço durante todo o caminho, além de
intérprete. Não há nada que tu ou qualquer outro homem me possa
dar que me dê mais prazer. E Radulfus disse mesmo que posso ir?
— Disse — garantiu-lhe Mark — e podes escolher um cavalo
das cavalariças. E tens hoje e amanhã para fazer os teus
preparados com Edmund e Winfrid para os dias em que estiveres
ausente, e para respeitar rigorosamente as horas do Santo Ofício de
modo a que até mesmo a tua alma errante esteja protegida durante
a viagem até Bangor e durante o regresso.
— Eu sou um homem totalmente virtuoso e regenerado — disse
Cadfael com enorme satisfação. — Os céus não acabaram de o
mostrar levando-me a Gales? Achas que vou arriscar a reprovação
agora?
Uma vez que pelo menos a primeira parte da missão de Mark
deveria ser pública e expansiva, não havia qualquer motivo para que
toda a gente do enclave não se interessasse avidamente por ela, e
não houve falta de conselhos espontâneos oriundos de todos os
lados sobre a melhor forma de a levar a cabo, especialmente por
parte do velho Irmão Dafydd da enfermaria, que há quarenta anos
não via Duffryn Clwyd, a sua terra natal, mas ainda estava
convencido de que a conhecia como a palma da sua velha mão. A
felicidade que sentira com o restabelecimento da diocese tinha sido
um pouco ensombrada pela nomeação de um normando, mas a
leve excitação tinha-lhe dado um novo interesse pela vida, e ele
voltara a usar a sua própria língua e foi loquaz em conselhos
quando Cadfael o visitou. O Abade Radulfus, pelo contrário,
contribuiu apenas com a sua bênção. A missão pertencia a Mark e
deveria ser deixada escrupulosamente nas suas mãos. O Prior
Robert absteve-se de comentar, embora o seu silêncio contivesse
um certo tom de reprovação. Um enviado com a sua dignidade e
presença seria mais apropriado numa corte de bispos.
O Irmão Cadfael reexaminou as suas provisões de
medicamentos, entregou o jardim, com toda a confiança, ao Irmão
Winfrid e fez uma visita de precaução a Saint Giles, para se
assegurar de que os armários do hospital estavam adequadamente
fornecidos e que o Irmão Oswin se encontrava em sereno comando
do seu rebanho, antes de se dirigir às cavalariças para ter o prazer
de selecionar o cavalo para a viagem. Foi lá que Hugh o encontrou
ao princípio da tarde, a olhar embevecido para um elegante ruano
claro com uma crina creme, que se deixava complacentemente
acariciar.
— É demasiado alto para ti — disse Hugh por cima do ombro.
— Precisarias de ser içado para a sela, e o Mark nunca conseguiria
levantar-te.
— Ainda não estou tão pesado nem tão velho que não consiga
subir para um cavalo — disse Cadfael com dignidade. — O que te
traz outra vez à minha procura?
— Uma boa ideia que a Aline teve, quando lhe contei o que tu e
o Mark vão fazer. Maio já está à porta e, dentro de uma ou duas
semanas, no máximo, vou mandá-la e ao Giles para Maesbury, para
passarem lá o Verão. Ali ele tem o solar todo por sua conta, e é
melhor para ele estar fora da cidade. — Era habitual Hugh deixar lá
a família até depois de a tosquia ter sido efetuada e os campos
respigados, enquanto ele dividia o seu tempo entre a casa e os
assuntos do condado. Cadfael estava familiarizado com a rotina. —
Ela perguntou porque é que nós não antecipamos a viagem uma
semana e vamos convosco amanhã, acompanhando-os até
Oswestry? O resto do pessoal pode seguir-nos mais tarde, e nós
podíamos passar um dia, pelo menos, na sua companhia, e vocês
podiam passar a noite conosco em Maesbury, se quiserem. O que
dizes?
Cadfael disse que sim, muito entusiasticamente, e o mesmo fez
Mark, quando lhe perguntaram, embora tivesse declinado a oferta
de alojamento por uma noite. Ele queria chegar a Llanelwy ao fim de
dois dias de viagem e chegar lá a uma hora civilizada, o mais tardar
a meio da tarde, para permitir as delicadezas da hospitalidade antes
da refeição noturna, por isso preferia passar Oswestry e entrar em
Gales antes de parar para pernoitar, deixando uma etapa fácil para
o segundo dia. Se conseguissem chegar ao vale do Dee,
encontrariam alojamento numa das igrejas e atravessariam o rio de
manhã cedo.

Assim, parecia que tudo estava já resolvido, e não faltava fazer


nada a não ser assistir reverentemente às Vésperas e às Completas
e entregar aquele empreendimento, como todos os outros, à
vontade de Deus, mas talvez lembrando também à Santa Winifred
que eles tinham por destino o país dela e, se ela se sentisse
disposta a permitir que a sua delicada mão os protegesse ao longo
do caminho, eles ficariam muito gratos por esse gesto.
Na manhã da partida, uma pequena fila de seis cavalos e um
pônei de carga atravessou a ponte ocidental e saiu da cidade. Havia
Hugh, no seu cavalo cinzento preferido, com o filho no arção da
sela, Aline, nada perturbada com os apressados preparativos para
sair da cidade, montada no seu ginete branco, a sua criada e amiga
Constance sentada atrás de um cavalariço, seguindo-se um
segundo cavalariço no pônei de carga e os dois peregrinos a Santo
Asaph alegremente escoltados por aquele grupo familiar. Era o
último dia de Abril, uma manhã verde e prateada. Cadfael e Mark
partiram antes da hora de prima e reuniram-se a Hugh e ao seu
grupo na cidade. Um aguaceiro, tão fino que era quase
imperceptível no ar, seguira-os enquanto atravessavam a ponte,
onde o Severn corria cheio mas tranquilo e, antes de se terem
reunido no pátio de Hugh, o sol tinha aparecido em toda a sua
glória, faiscando nas folhas e nas ervas. Todas as ondulações do rio
eram douradas pela luz caprichosa, cintilante. Um bom dia para
iniciar uma viagem, qualquer que fosse o seu motivo ou destino.
2

O sol estava alto, e a névoa perlada da manhã já se tinha


praticamente dissolvido quando atravessaram o rio em Montford. A
estrada era boa, alguns troços tinham bermas largas com ervas em
que o passo era confortável e rápido, e Giles exigia ocasionalmente
um galope suave. Ele era demasiado orgulhoso para partilhar uma
montada com outra pessoa além do pai. Uma vez instalado em
Maesbury, o pequeno pônei de carga, calmo e bem-humorado, seria
o seu pônei de montar durante o Verão, e o cavalariço que o
conduzia o discreto guardião das suas correrias pois, tal como a
maior parte das crianças que nunca tiveram motivo para ter medo,
ele era intrépido a cavalo — Aline diria imprudente, mas hesitava em
fazer avisos, talvez por temer abalar a sua confiança, ou talvez por
ter a certeza de que eles não seriam escutados.
Pararam ao meio-dia sob a colina de Ness, onde vivia um
rendeiro de Hugh, para descansar os cavalos e comer. Chegaram a
Felton antes do meio da tarde, e ali Aline e os seus acompanhantes
viraram para tomar o caminho mais próximo para casa, mas Hugh
decidiu acompanhar os seus amigos até aos arredores de Oswestry.
Giles foi transferido, a protestar mas obediente, para os braços da
mãe.
— Vão em segurança e regressem em segurança — disse
Aline, com a cabeça loura clara e resplandecente como a de uma
criança, o lustro da Primavera no seu rosto e o brilho da luz do sol
no seu sorriso. E ela fez o sinal da cruz no ar no meio deles antes
de conduzir o seu cavalo para o trilho da esquerda.
Livres das bagagens e das mulheres, eles percorreram mais
rapidamente as poucas milhas até Whittington, onde pararam junto
da parede de uma pequena torre de menagem de madeira.
Oswestry estava a seus pés, na rota do caminho para casa de
Hugh. Mark e Cadfael deviam continuar ainda para norte, mas já
estavam junto da fronteira, em terras que, durante séculos, antes da
chegada dos normandos, tinham sido alternadamente galesas e
inglesas, onde os nomes das aldeias e dos homens eram mais
provavelmente galeses do que ingleses. Hugh vivia no meio dos
dois enormes diques que os príncipes de Mercia tinham construído
muito tempo antes, para assinalar o local onde as suas terras e a
sua jurisdição tinham início, para que nenhuma força as usurpasse
facilmente e nenhum homem que as atravessasse de um lado para
o outro tivesse qualquer dúvida sobre a lei que o regia. A barreira
mais baixa, agora muito danificada, situava-se a leste do solar; a
mais alta tinha sido erguida a oeste, no tempo em que o poder dos
príncipes de Mercia tinha conseguido penetrar mais no interior de
Gales.
— É aqui que tenho de vos deixar — disse Hugh, olhando para
trás, para o caminho por onde tinham vindo, e para oeste, na
direção da cidade e do castelo. — É uma pena! Com este tempo,
teria muito gosto em ir convosco até Santo Asaph, mas é melhor
que os oficiais do rei se mantenham afastados dos assuntos da
igreja para evitar o fogo cruzado. Eu não gostaria de pisar os calos
de Owain.
— De qualquer modo, trouxeste-nos até à jurisdição do Bispo
Gilbert — disse o Irmão Mark, sorrindo. — Tanto esta igreja como a
tua de Santo Oswald pertencem agora à sé de Santo Asaph. Sabias
isso? Lichfield perdeu muitas paróquias aqui no nordeste. Eu acho
que deve ser política de Cantuária alargar a diocese em ambos os
lados da fronteira, de modo a que a linha entre os galeses e os
ingleses não tenha qualquer importância.
— Owain também terá algo a dizer a esse respeito. — Hugh
saudou-os com uma mão erguida e começou a conduzir o seu
cavalo na direção da estrada que o levaria até casa. — Que Deus
vos acompanhe, e boa viagem! Estaremos novamente daqui a cerca
de dez dias. — Ele já estava a alguns metros de distância quando
olhou para trás por cima do ombro e gritou: — Porta-te bem! Se
conseguires! — Mas não houve qualquer indicação sobre a qual dos
dois o pedido era dirigido, ou a possibilidade de mau
comportamento se aplicava. Eles podiam partilhá-lo entre si.
— Estou demasiado velho — comentou o Irmão Cadfael num
tom complacente — para me meter em aventuras destas.
— Reparei — disse Mark olhando-o de lado — que não
disseste nada desse teor antes de estarmos bem longe de
Shrewsbury, até não haver ninguém que acreditasse em ti, pobre
velhote, e insistisse para que ficasses em casa.
— Que idiota eu teria sido! — concordou, de bom grado,
Cadfael.
— Sempre que começas a invocar a tua idade, sei com o que é
que eu tenho de lidar. Um cavalo cheio de energia, acabado de sair
da baia e com o freio nos dentes. Nós temos que lidar com bispos e
cônegos — disse Mark num tom severo. — Façamos votos para que
sejamos poupados a encontros piores. — Mas ele não pareceu
demasiado convencido. A viagem a cavalo tinha posto cor no seu
rosto magro e pálido, e um brilho nos seus olhos.
Mark tinha sido criado com cavalos de quinta, a trabalhar como
um escravo para um tio que lhe dava, de má vontade, alojamento e
comida, e mesmo agora que a cavalariça do bispo lhe proporcionara
um belo cavalo alto em vez de um animal de trabalho, ainda
montava à maneira da quinta, deselegante mas resistente.
O cavalo era castanho, com um brilho acobreado no pelo, e
cheio de vida sob um peso tão leve.
Tinham parado no cume do espinhaço que dava para o
luxuriante vale verde do Dee. O sol dirigia-se para ocidente e tinha
passado do ouro do meio-dia para uma suave luz âmbar, brilhando
na corrente, onde a serpentina do rio cintilava e desaparecia
alternadamente no meio das orlas do bosque. Ali ainda era um rio
de montanha, dançando sobre um leito rochoso e criando arco-íris
com os borrifos iluminados pelo sol. Algures lá em baixo eles iriam
encontrar um local para pernoitar.
Retomaram o caminho ao lado um do outro, descendo o trilho
coberto de erva que era suficientemente largo para os dois.
— Apesar de tudo — disse Cadfael — nunca esperei, com a
minha idade, ser recrutado para uma expedição destas. Devo-te
mais do que tu imaginas. Shrewsbury é a minha casa, e eu não a
trocaria por qualquer lugar no mundo, a não ser de visita, mas de
vez em quando fico com um formigueiro nos pés. É ótimo uma
pessoa ir a caminho de casa, mas também é ótimo ir para longe de
casa, com a perspectiva da ida e do regresso. Foi bom para mim o
Theobald ter pensado em recrutar aliados para o seu novo bispo. E
que lhe enviava Roger de Clinton, para além da carta protocolar? —
Até essa altura, ele ainda não sentira qualquer curiosidade a esse
respeito. O rolo da sela de Mark era demasiado pequeno para
conter um objeto volumoso.
— Uma cruz peitoral abençoada no santuário de S. Chad. Foi
feita por um dos cônegos, que é um bom ourives.
— E uma igual para Meurig em Bangor, com as suas orações e
cumprimentos fraternais?
— Não, para Meurig é um breviário muito bonito. O nosso
melhor iluminista estava praticamente a terminá-lo quando o
arcebispo deu as suas ordens, por isso ele acrescentou uma folha
especial com um desenho de S. Deiniol, o fundador e patrono de
Meurig. Eu preferiria o livro — disse Mark descendo o caminho
sinuoso e íngreme na direção do vale, enquanto o sol se punha. —
Mas a cruz é supostamente um tributo mais formal. Afinal de contas,
nós recebemos as nossas ordens. Mas isso demonstra, não é
verdade, que Theobald sabe que deu um lugar muito difícil a
Gilbert?
— Eu não gostaria de estar no seu lugar — admitiu Cadfael. —
Mas, quem sabe, talvez o desafio lhe agrade. Há pessoas que
gostam de viver no meio da discórdia. Se ele interferir muito com os
costumes galeses, é o que vai ter.
Eles emergiram nos campos verdes, ondulantes, e nas
manchas de arbustos cerrados ao longo do rio, com o Dee ao seu
lado a refletir a luz cor de laranja do poente. No outro lado da água,
elevava-se uma enorme colina coberta de ervas, coroada pelos
contornos, feitos pelo homem, de fortificações erguidas muitos anos
antes e, sob uma estreita ponte de madeira, o Dee dançava sobre
um leito de pedra. Ali, na igreja de S. Collen, eles pediram e
encontraram alojamento para a noite na casa do padre da paróquia.
No dia seguinte, atravessaram o rio e subiram os montes sem
árvores do vale do Dee até ao vale do Clwyd, e ali seguiram ao
longo da corrente durante a manhã luminosa e a tarde de
aguaceiros suaves e espreitadelas decididas do sol. Atravessaram
Ruthin, sob a colina de pedra calcária vermelha coroada por um
forte de madeira baixo, e entraram no vale propriamente dito, largo,
belo, inundado pelo verde fresco da folhagem nova. Antes de o sol
se pôr, chegaram a uma língua estreita de terra entre o Clwyd e o
Elwy, antes de os dois rios se encontrarem acima de Rhuddlan, e se
dirigirem juntos para o mar. E no meio deles ficava a cidade de
Llanelwy e a catedral de Santo Asaph, confortavelmente aninhada
num verde vale abrigado.
Era tão pequena e compacta que não era exatamente uma
cidade. As casas de madeira baixas estavam muito juntas umas das
outras, o único caminho existente conduzia ao centro delas e
desvendava o inconfundível teto longo e o campanário de madeira
da catedral, no centro da aldeia. Embora fosse modesto, aquele era
o maior edifício que se via, e o único com paredes de pedra. Uma
série de outros telhados baixos enchia o recinto; na maior parte
deles tinham sido feitas algumas reparações apressadas, noutros
ainda havia alguns homens a trabalhar azafamadamente, pois
embora a igreja tivesse sido utilizada, a diocese estivera inativa
durante setenta anos e, se ainda havia cônegos ligados àquele
centro, os seus números deviam ter diminuído, e há muito que as
suas casas se teriam degradado. Ela tinha sido fundada, muitos
séculos antes, por S. Kentigern, sob o princípio monástico do antigo
cias celta, um colégio de cônegos sob um padre abade e com um ou
mais padres entre os seus membros. Os normandos desprezavam o
cias e estavam empenhados a fazer com que todas as coisas
religiosas de Gales ficassem sujeitas aos ritos romanos de
Cantuária. Um trabalho difícil, mas os normandos eram pessoas
persistentes.
Mas o que era espantoso naquela comunidade rural remota era
o fato de parecer ter uma população excessiva. Assim que se
aproximaram do recinto, viram-se rodeados por uma azáfama e
determinação mais consentânea com o llys de um príncipe do que
com um enclave religioso. Além dos atarefados carpinteiros e
pedreiros, havia homens e mulheres a andar de um lado para o
outro com jarros de água, roupa de cama, cortinas dobradas,
tabuleiros de pão acabado de cozer e cestos de comida, e um rapaz
forte com metade de um porco ao ombro.
— Isto é mais do que a criadagem de um bispo — disse
Cadfael, observando toda aquela atividade. — Eles estão a dar de
comer a um exército! Será que Gilbert declarou guerra ao vale do
Clwyd?
— Penso — disse Mark, olhando para além do redemoinho de
gente atarefada, para as colinas que se elevavam suavemente —
que têm convidados mais importantes que nós.
Cadfael seguiu o olhar de Mark e viu, na sombra das colinas,
pontos de cor a salpicar as verdes elevações acima da cidade.
Bandeiras garridas e galhardetes esvoaçantes estendiam-se ao
longo do verde, não as toscas tendas de um acampamento militar,
mas sim os alojamentos de uma casa principesca.
— Não é um exército — disse Cadfael — mas sim uma corte.
Nós viemos esbarrar com um grupo majestoso. Não seria melhor
irmos ver rapidamente se mais dois são bem-vindos? Poderá haver
questões que têm a ver com algo mais do que uma firme
solidariedade entre bispos. Embora, se os oficiais do príncipe se
mantiverem perto de Gilbert, talvez venha mesmo a calhar fazer-
lhes lembrar Cantuária. Por mais fria que seja a recepção!
Eles avançaram em direção ao recinto e olharam em volta. O
palácio do bispo era um edifício novo de madeira contendo o salão e
câmaras, e algumas pequenas habitações novas de ambos os
lados. Tinha decorrido quase um ano desde que Gilbert fora
consagrado em Lambeth, e era óbvio que tinha havido preparativos
apressados para restaurar alguma semelhança a um enclave de
catedral a fim de ele ser condignamente recebido. Cadfael e Mark
estavam a desmontar quando um jovem passou apressadamente no
meio da azáfama para se dirigir a eles e deu instruções a um
cavalariço que o seguia para que tomasse conta dos seus cavalos.
— Irmãos, posso vos ser útil?
Ele era jovem, não tinha seguramente mais de vinte anos, e
certamente que não era um dos eclesiásticos de Gilbert, pelo seu
traje parecia mais um cortesão, e usava joias à volta de um belo e
robusto pescoço. Movia-se e falava com uma segurança e
graciosidade descontraídas, tinha um rosto alegre e uma tez clara, e
o cabelo castanho arruivado. Era alto, tendo algo que pareceu
vagamente familiar a Cadfael, embora certamente nunca o tivesse
visto antes. Ele dirigira-se a eles primeiro em galês, mas mudou
facilmente para inglês depois de ter observado Mark da cabeça aos
pés com um olhar inteligente.
— Homens do seu hábito são sempre bem-vindos. Vieram de
longe?
— De Lichfield — disse Mark — com uma carta fraternal e uma
oferta para o Bispo Gilbert, do meu bispo de Coventry e Lichfield.
— Ele ficará muito satisfeito — disse o jovem, com uma
candura surpreendente — pois pode sentir necessidade de reforços.
— O seu sorriso foi malicioso mas amigável. — Eu vou arranjar
alguém para levar os sacos das selas e vos conduzirei a um local
onde poderão descansar e comer alguma coisa. Ainda falta algum
tempo para o jantar.
A um gesto seu, os criados correram para desapertar os sacos
de bagagem e seguir atrás dos visitantes enquanto o jovem os
conduzia através do pátio para uma das novas celas que davam
para o salão.
— Não tenho o direito de dar ordens aqui, uma vez que eu
próprio sou um convidado, mas eles já se habituaram a mim — isto
foi dito com uma segurança firme e ligeiramente divertida, como se
soubesse bem o motivo por que o círculo do bispo o devia
obsequiar, mas suficiente humilde para não exagerar. — Será isto
suficiente?
O alojamento era pequeno mas adequado, mobilado com
camas, um banco e uma mesa, e cheio do aroma a madeira seca
trabalhada há pouco tempo. Havia uma pilha de cobertores novos
em cima da cama, e o cheiro a lã de boa qualidade misturava-se
com o da madeira nova.
— Eu vou mandar alguém trazer-vos água — disse o seu guia
— e procurar um dos cônegos. Sua Excelência tem andado a
selecionar onde pode, mas as suas exigências são grandes. Ele
está a ter dificuldade em encher o capítulo. Mas estejam à vontade,
Irmãos, que virá alguém ter convosco.
E foi-se embora, com as suas passadas longas e leves e o
andar saltitante, e eles ficaram a instalar-se e a espreguiçar-se à
vontade depois do dia em cima da sela.
— Água? — perguntou Mark refletindo sobre aquela primeira
cortesia, aparentemente essencial. — Aqui em Gales, isso equivale
a tomar sal?
— Não, meu rapaz. Um povo que anda muito a pé conhece o
valor dos pés, da poeira e das dores das viagens. Eles trazem água
para lavarmos os pés. É uma maneira delicada de perguntar:
Tenciona passar cá a noite? Se a recusarmos, é porque é apenas
uma breve visita de cortesia. Se a aceitarmos, somos hóspedes da
casa a partir desse momento.
— E aquele jovem? Ele é demasiado fino para ser criado, e
certamente que não é um clérigo. Um visitante, disse ele. Em que
tipo de reunião tropeçamos, Cadfael?
Eles tinham deixado a porta aberta para deixar entrar a luz do
fim de tarde e para presenciar a animação do pátio. Uma moça
passou por entre a multidão com passos longos e graciosos,
transportando um jarro e uma bacia. Era alta e vigorosa. Uma trança
de cabelo preto azulado da grossura do seu pulso caía-lhe por cima
do ombro, e caracóis rebeldes esvoaçavam nas têmporas, soprados
pela brisa suave. Um regalo para os olhos, pensou Cadfael, ao vê-la
aproximar-se. Ela fez-lhes uma vênia profunda quando entrou e
manteve os olhos baixos enquanto os servia, deitando água para
eles, desapertando-lhes as sandálias com as mãos bonitas e
compridas; não era uma criada, mas sim uma anfitriã decorosa, e
seguramente que ocupava uma posição de dominância, pois podia
baixar-se para servir sem, em qualquer momento, se rebaixar. O
toque das suas mãos nos tornozelos magros e nos pés delicados,
quase femininos, de Mark, provocou neste um rubor que se
estendeu do pescoço até à testa e depois, como se o tivesse
sentido a queimar-lhe a testa, ela ergueu o olhar.
Embora durasse apenas um momento, foi um olhar
extremamente revelador. Assim que ergueu os olhos, um rosto até
então impassível e austero foi iluminado por uma rápida sequência
de expressões que o perpassaram num relâmpago. Ela observou
Mark num relance, e o mal-estar dele divertiu-a e, por um instante,
ela pensou em permitir que ele visse o seu riso, o que o teria
embaraçado ainda mais; mas depois ela compadeceu-se, sentindo
impulsivamente simpatia pela sua juventude e aparente inocência
frágil, e recompôs a gravidade do seu rosto oval.
Os olhos dela eram de um violeta tão escuro que, na sombra,
pareciam pretos. Não podia ter mais de dezoito anos. Talvez menos,
pois a sua altura e porte conferiam-lhe uma segurança de mulher.
Ela trouxera toalhas de linho por cima do ombro, e teria tido a
amabilidade deliberada e talvez ligeiramente provocadora de secar
os pés de Mark com as suas próprias mãos, mas ele não lho
permitiu. A autoridade que pertencia, não à sua pessoa franzina,
mas à gravidade do seu cargo, pegou-lhe com firmeza na mão e fê-
la erguer-se. Ela levantou-se obedientemente, e apenas um
relâmpago momentâneo nos seus olhos escuros comprometeu a
sua solenidade. Clérigos jovens, pensou Cadfael, apercebendo-se
de que ele próprio não corria perigo, talvez tivessem problemas em
lidar com uma situação daquelas. E os idosos também, afinal,
embora de uma forma ligeiramente diferente.
— Não — disse Mark com firmeza. — Não está certo. O nosso
papel no mundo é servir, não ser servido. E por tudo o que vimos lá
fora, já têm hóspedes suficientes, mais exigentes do que nós
gostaríamos de ser.
Aquilo a fez rir, obviamente não dele, mas dos pensamentos
que as palavras tinham suscitado na sua mente. Até essa altura, ela
não dissera nada para além da saudação que murmurara à porta.
Agora desatou a falar em galês, numa voz cadenciada que fazia da
língua poesia dançante.
— Mais do que suficiente para sua excelência o Bispo Gilbert, e
mais do que ele estava à espera! É verdade o que o Hywel disse,
que trouxeram saudações e ofertas dos bispos ingleses? Nesse
caso serão os visitantes mais bem-vindos aqui em Llanelwy esta
noite. O nosso novo bispo sente que precisa de todo o
encorajamento que conseguir encontrar. Algo que o faça lembrar
que tem um arcebispo a apoiá-lo far-lhe-á muito bem, uma vez que,
doutro modo, está a ser assediado por príncipes. Ele vai tirar o
maior partido possível da sua presença. Tenho a certeza de que vão
ficar na mesa alta no salão esta noite.
— Príncipes! — repetiu Cadfael. — E Hywel? Foi Hywel que
falou conosco quando chegamos? Hywel ab Owain?
— Não o reconheceu? — disse ela, espantada.
— Jovem, eu nunca o tinha visto. Mas conhecemos a sua
reputação. — Com que então aquele era o jovem que o pai mandara
atravessar o Aeron à frente de um exército e expulsar Cadwaladr de
North Ceredigion, deixando para trás o castelo de Llanbadarn em
chamas, e que desempenhara a tarefa com rapidez e
profissionalismo sem, aparentemente, perder a compostura ou a
calma. E ele parecia mal ter idade para empenhar armas!
— Eu bem achei haver algo nele que me era familiar! Eu
conheço Owain, encontramo-nos há três anos, por causa de uma
troca de prisioneiros. Com que então ele mandou o filho verificar
como é que o Bispo Gilbert está a levar a cabo os seus deveres
pastorais? — Cadfael ficou pensativo. Ao que parecia, eram
confiadas ao jovem missões tanto seculares como religiosas e,
provavelmente, ele resolvia-as com igual perfeição.
— Melhor que isso — disse a moça com uma gargalhada.
— Veio ele próprio! Não viram as tendas dele ali no prado?
Durante estes dias, LIanelwy é o llys de Owain, e nada menos do
que a corte de Gwynedd. É uma honra que o Bispo Gilbert teria
dispensado. Não que o príncipe faça algo para o reprimir ou
intimidar, exceto com a sua simples presença, com o bispo a olhá-lo
constantemente pelo canto do olho e consciente de tudo o que ele
diz ou faz. Mas esta noite jantarão todos no salão. Os Irmãos verão
que chegaram num momento muito oportuno.
Enquanto falava, ela tinha apanhado as toalhas e colocado em
cima do braço, mantendo-se atenta à azáfama do pátio. Seguindo o
seu olhar, Cadfael viu um homem com uma batina preta atravessar
a erva com um ar imponente, na direção dos aposentos deles.
— Eu trarei comida e hidromel — disse a moça, voltando
abruptamente para as coisas práticas; depois, pegou na bacia e no
jarro e saiu porta fora antes da chegada do clérigo alto. Cadfael viu-
os encontrar-se e passar um pelo outro, com o homem a dirigir uma
palavra à moça, e ela a inclinar mudamente a cabeça. Pareceu-lhe
que havia uma curiosa tensão entre eles, constrangida por parte do
homem, friamente respeitosa por parte da moça. A aproximação
dele apressara a partida dela, no entanto, a forma como ele lhe
falara quando se cruzaram e, em particular, a forma como ele voltou
a parar antes de chegar aos aposentos e se voltou para olhar para
ela, sugeria que era ele que a temia e não ela a ele, e que ela tinha
algum ressentimento ao qual não estava disposta a renunciar. Ela
não erguera os olhos para ele, nem interrompera o ritmo acelerado
do seu andar. Ele aproximou-se mais lentamente, talvez para
recuperar a dignidade antes de entrar no aposento dos
desconhecidos.
— Bom dia, Irmãos, e sejam bem-vindos! — disse ele do limiar.
— Espero que a minha filha tenha tomado bem conta de vós?
Isso estabelecia imediatamente a relação entre eles. Foi afirmado
com considerável clareza, como se uma questão implícita viesse
posteriormente a levantar-se, e seria bom que fosse devidamente
compreendida. O que poderia muito bem ser o caso, visto que
aquele homem tinha indubitavelmente uma tonsura, tinha autoridade
e era padre. Ele decidiu também dizer claramente: — Eu sou
Meirion, sirvo esta igreja há muitos anos. De acordo com uma nova
dispensação, sou cônego no capítulo. Se precisarem de alguma
coisa, qualquer coisa que vos possamos proporcionar durante a sua
estada, basta dizerem, que eu tratarei disso.
Ele falou num inglês formal, de um modo um pouco hesitante,
pois era óbvio que era galês. Era um homem robusto, musculoso,
atraente de um modo sombrio, com traços bem delineados e uma
postura muito ereta, e o anel do seu cabelo curto ainda mal
salpicado de branco. A moça herdara dele a cor da pele e os olhos
escuros, brilhantes, mas nos olhos dela o brilho era de alegria, até
mesmo malícia, e, nos dele, dava a impressão de uma vaga
apreensão por trás da sobrancelha autoritária. Um homem
orgulhoso, ambicioso, pouco seguro de si próprio e dos seus
poderes. E talvez numa situação delicada agora que se tornara um
dos cônegos que serviam um bispo normando? Era uma
possibilidade. Se havia uma filha reconhecida a justificar, tinha que
haver também uma mulher. Cantuária não ficaria muito satisfeita.
Eles garantiram-lhe que o alojamento que lhes fora proporcionado
era totalmente satisfatório, até mesmo luxuoso segundo os
princípios monásticos, e Mark tirou do seu saco a carta selada do
Bispo Roger, magnificamente gravada e sobrescrita, e a caixinha de
madeira esculpida que continha a cruz de prata. O Cônego Meirion
inspirou, satisfeito, pois o ourives de Lichfield era um bom artista, e
o trabalho era muito belo.
— Ele ficará muito satisfeito, disso podem ter a certeza. Não
preciso de vos ocultar, como homens da igreja, que a situação de
sua excelência o bispo está longe de ser fácil, e qualquer gesto de
apoio é uma ajuda para ele. Se me permitem a sugestão, seria bom
que aparecessem pessoalmente, quando estivermos todos reunidos
à mesa, e entregassem publicamente a sua mensagem. Eu os
levarei ao salão como seu arauto e terei reservado lugares para vós
à mesa do bispo. — Ele foi bastante direto, deveria ser tirado o
maior partido possível daquela visita protocolar, através da qual, não
meramente Lichfield, mas Theobald e a Cantuária, pretendiam fazer
lembrar que os ritos católicos tinham sido aceitos e que fora
colocado um prelado normando em Santo Asaph. Por um lado, o
príncipe tinha trazido o seu próprio poder e cavalaria, por outro, o
Cônego Meirion tencionava utilizar o Irmão Mark, por mais
inadequado que este parecesse ser, como símbolo.
— E, Irmão, embora o bispo não tenha necessidade de
tradução, seria bom se repetisse em galês o que o Irmão Mark
disser no salão. O príncipe sabe um pouco de inglês, mas poucos
dos seus chefes o compreendem. — E era intenção determinada do
Cônego Meirion que todos eles, até ao homem mais humilde da
guarda, soubessem o que se passava. — Eu informarei previamente
o bispo da sua chegada mas, por enquanto, não digam nada a
ninguém.
— Hywel ab Owain já sabe — disse Cadfael.
— E sem dúvida que disse ao pai. Mas o espetáculo não
perderá brilho por causa disso. Na verdade, foi um acaso feliz terem
chegado neste dia, pois o grupo real regressa a Aber amanhã.
— Nesse caso — disse Mark, decidindo ser franco para com
um anfitrião que estava certamente a ser franco para com eles —
nós podemos ir com eles, pois eu também sou portador de uma
carta para o Bispo Meurig de Bangor.
O cônego recebeu estas palavras com uma breve pausa para
reflexão, depois acenou a cabeça em sinal de aprovação. Ele
próprio era, afinal, galês, ainda que tivesse feito o possível por se
manter nas boas graças de um superior normando.
— Ótimo! O seu bispo é sensato. Isso nos coloca em pé de
igualdade e agradará aos príncipes. Eu e a minha filha Heledd
também faremos parte do grupo. Ela vai se casar com um
cavalheiro a serviço do príncipe que possui terras em Anglesey e irá
ter conosco em Bangor. Faremos o percurso juntos.
— Teremos muito gosto em ter companhia durante a viagem —
disse Mark.
— Eu virei buscá-lo assim que eles ocuparem seus lugares à
mesa — prometeu o cônego, muito satisfeito, e deixou-os
descansar. Só depois de ele ter ido embora é que a moça voltou,
trazendo um prato de bolo de mel e um jarro de hidromel. Ela serviu-
os em silêncio, mas não fez menção de ir embora. Ao fim de um
momento de soturnos pensamentos, perguntou abruptamente: — O
que ele lhes disse?
— Que ele e a filha partem para Bangor amanhã, como nós. Ao
que parece — disse Cadfael calmamente, observando o rosto
impassível dela — teremos a escolta de um príncipe até Aber.
— Então ele ainda reconhece que é meu pai — disse ela
franzindo o lábio.
— Reconhece, e por que motivo não o deveria declarar com
orgulho? Se te olhares ao espelho — disse Cadfael com candura —
verás uma esplêndida razão para ele se gabar. — As suas palavras
provocaram um sorriso relutante nela. Ele prosseguiu: — O que se
passa entre os dois? É alguma ameaça do novo bispo? Se ele
estiver decidido a livrar-se de todos os padres casados da sua
diocese, vai ter um osso duro de roer. E o teu pai parece ser um
homem capaz, que alguém que acabou de receber um benefício
não se pode dar ao luxo de perder.
— E é — concordou ela, animando-se. — E o bispo quer
mantê-lo. O caso dele podia ter sido muito pior, mas a minha mãe já
estava muito doente quando o Bispo Gilbert chegou, e parecia que
ela não ia conseguir durar muito, por isso eles esperaram!
Conseguem imaginar uma coisa dessas? Esperar que uma mulher
morra, para não ter que separá-la do marido, que lhe era útil! E ela
acabou por morrer, no Natal passado, e desde então eu tenho
tomado conta da casa dele, cozinhado e limpado para ele, e
pensava que podíamos continuar assim. Mas não, eu sou uma
lembrança de um casamento que o bispo diz que foi ilegal e
sacrílego. Aos olhos dele, eu nunca devia ter nascido! Mesmo que o
meu pai permaneça celibatário o resto da vida, eu continuo aqui, a
fazer lembrar o que ele quer que seja esquecido. Sim, ele, não o
bispo! Eu sou um obstáculo à sua carreira.
— Seguramente — disse Mark, chocado — que estás a ser
injusta para com ele. Eu tenho a certeza de que ele sente por ti um
afeto paternal, tal como julgo que sentes um amor de filha por ele.
— Nunca foi posto à prova antes — disse ela simplesmente.
— Ninguém nos invejou um verdadeiro amor. Oh, ele não me
deseja mal, nem o bispo. Mas ambos desejam ardentemente que eu
vá embora daqui, para tão longe que não volte a incomodá-los.
— Então foi por isso que planejaram casar-te com um homem
de Anglesey. O mais longe possível — disse Cadfael ironicamente
— que um homem poderá ir, permanecendo no norte de Gales. Sim,
isso certamente que deixará o bispo descansado. E tu? Conheces o
homem que te está destinado?
— Não, isso foi obra do príncipe, e ele o fez com boas
intenções, e eu aceito de bom grado. Não, o bispo queria enviar-me
para um convento na Inglaterra e fazer de mim uma freira. Owain
Gwynedd disse que isso seria um enorme desperdício, a não ser
que fosse esse o meu desejo, e perguntou-me no salão, na frente
de toda a gente, se era o que eu queria e eu respondi muito
claramente em voz alta que não. Por isso ele propôs-me este
casamento. O homem dele está à procura de mulher, e disseram-me
que é um bom homem, não muito jovem mas com pouco mais de
trinta anos, o que não é muito velho, atraente e com uma boa
reputação. Pelo menos, é melhor — disse ela sem grande
entusiasmo — do que ficar fechada atrás das grades de um
convento inglês.
— Lá isso é — concordou Cadfael entusiasticamente — a não
ser que o teu próprio coração te leve até lá, e eu duvido que isso
alguma vez te aconteça. Seguramente que é também melhor do que
continuares a viver aqui, sentindo-te uma proscrita e um fardo. Tu
não tens absolutamente nada contra o casamento?
— Não! — respondeu ela com veemência.
— E não tens conhecimento de nada contra esse homem que o
príncipe tem em mente?
— Só que não fui eu que o escolhi — disse ela, cerrando os
lábios numa expressão de teimosia.
— Quando o vires, podes gostar dele. Não seria a primeira vez
— disse Cadfael sagazmente — que um casamenteiro acerta.
— Bem ou mal — disse ela, pondo-se de pé com um suspiro —
não tenho outra opção a não ser ir. O meu pai vai comigo para ter a
certeza de que eu me comporto bem, e o Cônego Morgant, que é
tão rígido como o próprio bispo, vai conosco para se certificar de
que nos portamos os dois bem. Mais um escândalo, e adeus a
qualquer promoção junto de Gilbert. Eu podia destruí-lo, se quisesse
— disse ela, refletindo, com um ar vingativo, sobre algo que, apesar
de toda a sua ira e desdém, nunca poderia ser uma possibilidade. E
da porta, à luz do entardecer, ela olhou para trás e acrescentou: —
Eu posso muito bem viver sem ele. Mais cedo ou mais tarde, teria
de me casar. Mas sabe o que mais me mortifica? É que ele renuncie
a mim tão facilmente, e fique tão grato por se ver livre de mim.
3

Tal como prometera, o Cônego Meirion veio buscá-los quando a


azáfama do pátio se instalou numa quietude competente, com o
trabalho de construção abandonado até ao dia seguinte, todos os
preparativos para o festim da noite terminados, o pequeno exército
de serviçais colocado nos seus lugares e os membros da casa, dos
príncipes aos cavalariços, reunidos no salão. A luz ainda era radiosa
mas já se atenuava num silêncio dourado antes do pôr-do-sol.
O cônego estava vestido para a cerimônia, escovado e
imaculado mas com simplicidade, mantendo a austeridade do seu
cargo, talvez ainda mais meticulosamente para afastar a recordação
dos dias em que tinha sido casado com uma mulher. Houvera uma
altura, há muito tempo, na época dos santos, em que tinha sido
exigido o celibato a todos os padres celtas, com a mesma
insistência com que era agora exigido pelo Bispo Gilbert, pelo
simples fato de que toda a estrutura da Igreja Celta estava
construída sobre o ideal monástico, e qualquer coisa menos do que
isso era um desvio do precedente e uma perda de santidade. Mas
há muito que a memória desse tempo se tinha esbatido ao ponto de
ter desaparecido, e a reposição do ideal iria provocar uma reação de
indignação semelhante à que se devia ter verificado com o seu
abandono gradual. Há séculos que os padres viviam como homens
casados decentes e tinham famílias tal como os seus paroquianos.
Mesmo na Inglaterra, nos locais mais remotos do país, havia muitos
padres humildes casados, e certamente que ninguém os censurava.
Em Gales, não era invulgar o filho suceder ao pai como cura de uma
paróquia e, o que era ainda era pior, os filhos de bispos partiam do
princípio de que deveriam suceder aos pais, como se os cargos
cimeiros da Igreja tivessem passado a ser feudos hereditários.
Agora chegava aquele bispo estrangeiro, imposto de fora, a
denunciar essas práticas como pecado abominável, e a livrar a sua
diocese de todos os clérigos exceto dos celibatários.
E aquele homem capaz e imponente que veio chamá-los para
apoiar o seu senhor não tinha qualquer intenção de ser alvo de
despromoção simplesmente porque, embora tivesse enterrado a
mulher mesmo a tempo, a sobrevivência de uma filha continuava a
acusá-lo. Ele não tinha nada contra a moça, e certificar-se-ia de que
a sua subsistência ficaria garantida, mas noutro local, longe da vista
e longe do coração. Justiça lhe seja feita, ele não tinha qualquer
relutância em ir direto ao que queria, ao que lhe seria mais
vantajoso. Ele pretendia tirar o maior partido possível dos seus dois
visitantes monásticos e da sua missão, para alegria e satisfação do
seu bispo.
— Eles acabaram de sentar. Haverá silêncio até os príncipes e
os bispos estarem instalados. Certifiquei-me de que haveria um
espaço vago por baixo da mesa alta, onde todos vos poderão ver e
ouvir.
Justiça lhe seja igualmente feita, ele não ficou decepcionado
nem desanimado ao ver a pequenez de estatura e o modesto hábito
beneditino do Irmão Mark, nem a simplicidade do seu porte; na
realidade, ele examinou-o com um aceno de cabeça de aprovação,
satisfeito com a modéstia que, mesmo assim, tinha a sua própria
distinção.
Mark pegou no pergaminho iluminado da carta de Roger Clinton
e na caixinha esculpida que continha a cruz, e eles atravessaram o
pátio atrás do seu guia, até à porta do salão do bispo. No interior, o
ar estava cheio do odor rico da madeira e do fumo resinoso dos
archotes, e o murmúrio de vozes das mesas inferiores ficou
silencioso quando os três entraram, com o Cônego Meirion à frente.
Atrás da mesa alta colocada no extremo do salão, uma série de
rostos iluminados pelas luzes dos archotes observava atentamente
a pequena procissão que avançava para o espaço livre por baixo do
estrado. O bispo, àquela distância apenas uma figura sem traços,
estava sentado no meio, com os príncipes de ambos os lados e o
resto dos clérigos e dos nobres galeses da corte de Owain dispostos
alternadamente, e todos os olhos fixos no Irmão Mark, uma pequena
figura ereta, solitária no espaço livre, pois o Cônego Meirion tinha-se
afastado para que ele tivesse o palco inteiro para si, e Cadfael tinha
ficado alguns passos atrás dele.
— Senhor Bispo, tenho aqui o Diácono Mark, da casa do bispo
de Lichfield e Coventry, que solicitou uma audiência.
— O mensageiro do meu colega de Lichfield é muito bem-vindo
— disse a voz formal oriunda da mesa alta.
Mark fez o seu breve discurso com uma voz clara, com os olhos
fixos no rosto comprido e estreito em frente dele. Cabelo liso
cinzento-aço, com uma tonsura em forma de abóbada, um nariz
comprido, fino como uma lâmina, com narinas largas, e uma boca
altiva, de lábios rígidos, que usava o seu sorriso formal de um modo
um tanto hesitante devido à falta de prática.
— Meu senhor, o Bispo Roger de Clinton pediu-me que vos
saudasse com reverência em seu nome, como seu irmão em Cristo
e seu vizinho ao serviço da igreja, e deseja-vos um longo e frutuoso
desempenho na diocese de Santo Asaph. E pela minha mão ele
envia-vos com todo o amor fraternal esta carta e esta caixa, e
solicita-vos que as aceiteis com benevolência.
Cadfael ouviu tudo e, depois de uma breve pausa para provocar
um efeito teatral, começou a traduzir para galês, o que suscitou um
murmúrio de aprovação por parte dos seus próprios conterrâneos
entre a assembleia.
O bispo tinha-se levantado do seu assento e dera a volta à
mesa alta para chegar à beira do estrado. Mark foi ao seu encontro
e dobrou o joelho para colocar a carta e a caixa nas mãos grandes e
musculosas que se estenderam para as receber.
— Aceitamos com alegria a generosidade do nosso irmão —
disse o Bispo Gilbert com cortesia refletida e grata, pois o poder
secular de Gwynedd estava ali, ao alcance do ouvido, e não perdia
nada do que se passava. — E recebemos os seus mensageiros com
igual satisfação. Ergue-te, irmão, e sê mais um honroso convidado à
nossa mesa. E o teu companheiro também. Foi muito amável da
parte do Bispo de Clinton enviar um falante de galês contigo na tua
deslocação a uma comunidade galesa.
Cadfael manteve-se afastado e seguiu-o de longe até ao
estrado. Deixai Mark ter toda a atenção e ser conduzido para um
lugar de honra ao lado de Hywel ab Owain, que estava sentado à
esquerda do bispo. Isso seria obra do Cônego Meirion, decisão do
próprio bispo para tirar o maior partido possível da visita, ou teria
Hywel algo a ver com o assunto? Ele podia muito bem estar
interessado em saber mais sobre o que outros capítulos de
catedrais pensavam da ressurreição do trono de S. Kentigern e da
sua atribuição a um prelado estrangeiro. E as perguntas, que feitas
por ele, poderiam esperar uma resposta mais franca do que se
fossem colocadas pelo seu temível pai, e produzir uma colheita mais
inocente e abundante. Poderia ser uma primeira ocasião para Mark
dizer pouco e ouvir muito.
O lugar atribuído a Cadfael, perto da ponta da mesa, estava
muito mais distante do centro principesco mas dava-lhe uma
excelente perspectiva de todos os rostos alinhados ao longo dos
lugares de honra. À direita do bispo estava sentado Owain
Gwynedd, um homem grande em todos os sentidos, no corpo, na
mente, em capacidade, muito alto, com mais trinta centímetros do
que a média dos seus homens, e o seu cabelo muito louro
contrastava com a sua gente morena, pois a sua avó Ragnhild, neta
do Rei Sitric Barba de Seda, tinha sido uma princesa do reino
dinamarquês de Dublin, mais nórdica do que irlandesa, e a sua mãe
Angharad tinha sido famosa pelo seu cabelo louro no meio das
mulheres morenas de Deheubarth. À esquerda do bispo, Hywel ab
Owain sentava-se descontraidamente, com o rosto virado para o
Irmão Mark numa atitude cordial de boas-vindas. A semelhança era
óbvia, embora o filho fosse mais moreno do que o pai e não fosse
tão alto como o progenitor. Cadfael achou irônico o fato de alguém
tão parecido com o pai ser considerado ilegítimo pelo clérigo
sentado ao seu lado, pois ele nascera antes do casamento de
Owain, e a sua mãe também era irlandesa. Para os galeses, um
filho reconhecido era tanto filho como os nascidos no casamento, e
Hywel, ao atingir a idade adulta, tinha sido instalado honrosamente
em South Ceredigion e agora, depois da queda em desgraça do seu
tio, ficara com tudo. E, pelo que mostrara até então, era muito capaz
de se aguentar sozinho. Havia mais três ou quatro galeses do grupo
de Owain, todos eles alternados com cônegos e capelães, o secular
e o clero lado a lado e a conversar cautelosamente, embora agora
tivessem a caixa aberta e a sua cruz de filigrana como tema seguro,
pois Gilbert abrira-a e colocara-a na mesa à sua frente, com o
pergaminho de Clinton ao lado, indubitavelmente à espera de ser
lido cerimoniosamente em voz alta quando a refeição estivesse
prestes a terminar.
Entretanto, hidromel e vinho oleavam as rodas da diplomacia e
a babel de vozes erguia-se com êxito. E era melhor Cadfael
concentrar-se em desempenhar o seu papel naquela reunião social
e começar e cumprir os seus deveres para com os seus vizinhos.
A sua direita ele tinha um clérigo de meia-idade, certamente um
cônego da catedral, corpulento, bem fornecido de carnes mas com
uma expressão de tamanha retidão intransigente que Cadfael supôs
que ele poderia bem ser o tal Morgant cuja missão futura seria
certificar-se de que tanto o pai como a filha se comportavam
normalmente durante a viagem para entregar Heledd a um marido.
O nariz fino, altivo, e os olhos gélidos, penetrantes, pareciam
adequados a essa tarefa. Mas, quando ele falou, a sua voz e os
seus modos para com o convidado foram bastante delicados. Ele
estaria à altura de qualquer situação e reagiria de forma
conveniente, mas não parecia ser tolerante para com as falhas dos
outros.
À esquerda de Cadfael estava sentado um jovem do grupo do
príncipe, de constituição verdadeiramente galesa, robusto e
compacto, muito bem vestido e com cabelo e olhos escuros. Olhos
muito pretos, intensos, focados ao longe, e que não olhavam para o
que se encontrava à frente do seu olhar, quer fossem homens, quer
objetos, mas sim através deles. Só quando ele olhava ao longo da
mesa alta, para onde Owain e Hywel estavam sentados, é que o
alcance da sua visão se encurtava, se fixava e adquiria uma
expressão afetuosa de reconhecimento, e os seus lábios finos
quase sorriam. Os príncipes de Gwynedd possuíam pelo menos um
seguidor devoto. Cadfael observou o jovem de lado, com discrição,
pois ele merecia ser estudado, muito decoroso nos seus modos
sóbrios e tendendo para um silêncio contido e privado. Quando
falou, por deferência para com o novo conviva, a sua voz era baixa
mas ressoante, e movia-se em cadências que pareceram não
pertencer a Gwynedd. Mas o mais significativo que havia na sua
pessoa só se revelou algum tempo depois, uma vez que ele comeu
e bebeu pouco e utilizou apenas a mão direita que tinha pousada
sobre a mesa debaixo dos olhos de Cadfael. Só quando ele se virou
diretamente para o seu vizinho e descansou o cotovelo esquerdo na
beira da mesa, é que Cadfael viu que o seu antebraço esquerdo
terminava alguns centímetros abaixo da articulação, e que um belo
pano de linho, seguro por um fino fio de prata, estava colocado
sobre o coto como uma luva.
A revelação foi tão inesperada que era impossível não olhar;
mas Cadfael desviou imediatamente os olhos e absteve-se de
qualquer comentário, embora não conseguisse resistir a examinar
disfarçadamente a mutilação quando pensou que não estava a ser
observado. Mas o seu vizinho já vivia com a sua perda há tempo
suficiente para se habituar ao seu efeito nos outros.
— Pode perguntar, Irmão — disse ele com um sorriso triste. —
Não tenho vergonha de dizer onde é que a deixei. Era a minha
melhor mão, embora fosse capaz de usar as duas, e ainda consigo
arranjar-me bem com a que me resta.
Uma vez que a curiosidade era compreendida e esperada da
sua parte, Cadfael não fez qualquer segredo a esse respeito,
embora já estivesse a tentar adivinhar respostas possíveis. Porque
aquele rapaz era quase certamente do sul de Gales, muito longe
dos seus companheiros habituais que tinha ali em Gwynedd.
— Eu não tenho qualquer dúvida — disse ele cautelosamente
— de que, onde quer que a tenha deixado, a ocasião lhe
proporcionou apenas honra. Mas, se quiser contar, deve saber que
eu já empunhei armas no meu tempo e provoquei e recebi
ferimentos no campo de batalha. Eu serei capaz de o seguir até
onde me quiser admitir, e não como um desconhecedor de tais
assuntos.
— Eu já tinha pensado — disse o jovem, voltando para ele os
brilhantes olhos pretos com um ar de aprovação — que o Irmão não
tinha um ar monástico. Siga-me, então, e seja bem-vindo. Eu deixei
o meu braço esquerdo sobre o corpo do meu senhor, ainda a
segurar a espada.
— O ano passado — disse Cadfael lentamente, seguindo as
suas próprias suposições proféticas — em Deheubarth.
— Exatamente.
— Anarawd?
— O meu príncipe e irmão adotivo — disse o homem mutilado.
— O golpe, o golpe final que lhe levou a vida levou-me o meu braço.
— Quantos homens — perguntou Cadfael cuidadosamente,
após um breve silêncio — estavam com ele nessa altura?
— Éramos três. Numa viagem simples, pequena, não pensando
nada de mal. Eles eram oito. Eu sou o único que resta dos que
cavalgavam com Anarawd nesse dia. — A sua voz era baixa e
calma. Ele não se esquecera de nada e não perdoara nada, mas
tinha completo controlo sobre a voz e o rosto.
— Estou espantado — disse Cadfael — com o fato de ter
sobrevivido para contar a história. Com uma ferida dessas, não
demoraria muito tempo a esvair-se em sangue.
— E menos tempo ainda a desfechar outro golpe para acabar o
trabalho — concordou o jovem com um sorriso torto. — E eles tê-lo-
iam feito se outros homens nossos não tivessem ouvido a rixa e
acorrido ao local. Eles deixaram-me deitado no chão quando
fugiram. Fui levantado e tratado depois da fuga dos assassinos. E
quando Hywel chegou com o seu exército para vingar as mortes, ele
trouxe-me para aqui com ele, e Owain colocou-me ao seu serviço.
Um homem com um braço ainda serve para alguma coisa. E ainda
consegue odiar.
— Era muito chegado ao seu príncipe?
— Eu cresci com ele. Adorava-o. — Os seus olhos pretos
pousaram no perfil animado de Hywel ab Owain, que seguramente
tinha ocupado o lugar de Anarawd na sua lealdade, na medida em
que um homem consegue substituir outro.
— Posso saber o seu nome? — perguntou Cadfael. — E o meu
é, ou era, no mundo, Cadfael ap Meilyr ap Dafydd, sou um homem
de Gwynedd, nascido em Trefriw. E embora seja beneditino, não me
esqueci das minhas origens.
— Nem deve fazê-lo, quer se esteja no mundo, quer fora dele.
E o meu nome é Cuhelyn ab Einion, um filho mais novo do meu pai,
e homem da guarda do príncipe. Antigamente — disse ele num tom
mais sombrio — era uma desonra para um homem regressar com
vida do campo em que o seu senhor fora morto. Mas eu tinha e
continuo a ter bons motivos para viver. Dei o nome dos assassinos
que conhecia a Hywel, e eles pagaram. Mas havia alguns que eu
não conhecia. Guardo os seus rostos na minha memória, para o dia
em que os voltar a ver e ouvir os nomes que condigam com os
rostos.
— Há ainda outro, o chefe que pagou apenas o preço do
sangue em terras — disse Cadfael. — E ele? Com certeza que foi
ele que deu as ordens para a emboscada?
— Com certeza! Caso contrário, eles nunca se teriam atrevido.
E Owain Gwynedd não tem quaisquer dúvidas.
— E onde é que acha que esse Cadwaladr está neste
momento? Será que ele se resignou à perda de tudo o que possuía?
O jovem abanou a cabeça.
— Onde ele está, parece que ninguém sabe. Nem o que ele
está a planejar. Mas resignado à perda? Disso eu duvido! Hywel fez
reféns entre os chefes menores que serviam sob as ordens de
Cadwaladr e trouxe-os para o norte, a fim de garantir que não
haveria mais resistência em Ceredigion. A maior parte deles já foi
libertada, depois de terem jurado que não empunhariam armas
contra as forças de Hywel nem voltariam a servir Cadwaladr, a não
ser que, no futuro, ele jure emendar-se e seja reintegrado. Ainda
resta um preso em Aber, Gwion. Ele deu a sua palavra em como
não vai tentar fugir, mas recusa-se a jurar fidelidade a Cadwaladr ou
a prometer paz a Hywel. É um sujeito bastante decente — disse
Cuhelyn num tom tolerante — mas ainda é dedicado ao seu senhor.
Será que se deve levar-lhe isso a mal? Mas um senhor daqueles!
Ele merece venerar alguém melhor.
— Não lhe tem ódio?
— Não, não existe motivo para isso. Ele não tomou parte na
emboscada, é demasiado jovem e demasiado honesto para ser
apanhado numa vilania daquelas. De certo modo, gosto dele, tal
como ele gosta de mim. Somos parecidos. Como poderei culpá-lo
de manter a sua fidelidade do mesmo modo que eu mantenho a
minha? Tal como ele estava disposto a matar por Cadwaladr, eu
também estaria, e fiz, por Anarawd. Mas não furtivamente, em
vantagem numérica contra homens pouco armados que não
estavam à espera de enfrentar qualquer perigo. Honestamente, em
campo aberto, isso é outra questão.
A longa refeição estava quase no fim, só o vinho e o hidromel
ainda circulavam, e o murmúrio das conversas tinha-se
transformado num zumbido baixo, satisfeito, como um cortiço de
abelhas embriagadas e felizes nos prados de Verão. No centro da
mesa alta, o Bispo Gilbert tinha pegado no rolo da carta e quebrado
o lacre, e estava de pé com a folha de pergaminho desenrolada nas
mãos. Para atingir o seu efeito pleno, a saudação de Roger de
Clinton devia ser declamada em público, e tinha sido
cuidadosamente fraseada de modo a impressionar tanto os laicos
como o clero celta, que era quem talvez mais precisasse de uma
palavra de cautela. A voz sonora de Gilbert tirou o maior partido
possível dela. Ao escutá-la, Cadfael pensou que o Arcebispo
Theobald ficaria muito satisfeito com o resultado da sua embaixada.
— E agora, meu senhor Owain — prosseguiu Gilbert,
aproveitando o momento de tranquilidade por que devia ter estado à
espera durante o festim — peço autorização para apresentar um
suplicante que vem pedir a sua indulgência para um pedido em
nome de outro. A minha nomeação para este local dá-me algum
direito, devido ao meu cargo, de pedir a paz, quer entre indivíduos,
quer entre povos. Não é bom que haja raiva entre irmãos. No início,
poderá ter havido um motivo justo, mas deve haver um termo para
todos os banimentos, todas as brigas. Eu peço uma audiência para
um embaixador que fala em nome do seu irmão Cadwaladr, pedindo
que se reconcilie com ele como é adequado e lhe restitua o lugar
nas suas boas graças que ele perdeu. Posso mandar entrar Bledri
ap Rhys?
Houve um breve silêncio, durante o qual todos os olhos se
voltaram para o rosto do príncipe. Cadfael sentiu o jovem ao seu
lado ficar tenso e estremecer de irritação com tal violação de
hospitalidade, pois era óbvio que aquilo tinha sido preparado sem
uma palavra de aviso ao príncipe, sem qualquer consulta prévia,
aproveitando, de forma injusta, a cortesia que um homem daqueles
indubitavelmente manifestaria para com o anfitrião a cuja mesa
estava sentado. Mesmo que a audiência tivesse sido solicitada em
privado, Cuhelyn tê-la-ia considerado profundamente insultuosa.
Precipitá-la assim publicamente no salão, perante todos os
membros da casa, era uma falta de cortesia apenas possível para
um normando colocado num lugar de autoridade entre um povo a
respeito do qual ele não sabia nada. Mas se o abuso era tão
desagradável a Owain como era a Cuhelyn, aquele não o
manifestou. Ele deixou que o silêncio se mantivesse durante tempo
suficiente para que houvesse dúvidas quanto ao desfecho da
questão, e talvez abalar a corajosa autoconfiança de Gilbert, depois
disse claramente: — Como desejar, Excelência, eu certamente que
escutarei o que Bledri ap Rhys tem a dizer. Toda a gente tem o
direito de pedir para ser ouvido e de ser escutado. Sem qualquer
ideia preconcebida quanto ao desfecho.
Quando o mordomo do bispo fez entrar o suplicante no salão,
tornou-se óbvio que este não tinha vindo diretamente pedir a
audiência assim que chegara da viagem. Em algum lugar no
enclave do bispo, ele tinha aguardado confortavelmente a sua
entrada no salão e tinha-se preparado com cuidado, pelo que quer o
seu traje, quer a sua pessoa, tinham um ar muito elegante e
imponente, com todas as partículas de poeira das estradas bem
sacudidas. Era um homem alto, vigoroso, de ombros largos, cabelo
e bigode pretos, com um arrogante nariz aquilino e um porte mais
agressivo do que conciliatório. Dirigiu-se com passadas largas para
o centro do espaço livre em frente do estrado e fez uma elaborada
vênia na direção do príncipe e do bispo. Pareceu a Cadfael que o
gesto tendia mais a ser um gesto de vaidade do que uma
manifestação de particular reverência para com os que eram
saudados. Ele tinha captado a atenção de toda a gente e tencionava
mantê-la.
— Senhor príncipe, senhor bispo, Excelências, seu servo
dedicado! Eu venho perante vós como suplicante. — Ele não
parecia adequado a esse papel, nem a sua voz cheia, confiante, se
coadunava com tal função.
— Foi o que ouvi dizer — disse Owain. — Tem uma coisa a
pedir-me. Peça à vontade.
— Meu senhor, eu sou fiel ao seu irmão Cadwaladr e atrevo-me
a falar em defesa dos seus direitos, na medida em que ele está
privado das suas terras e tornou-se um estranho e um deserdado no
seu próprio país. Seja do que for que o considereis culpado, atrevo-
me a considerar que esse castigo é superior ao que ele merece, e
algo que um irmão não deve infligir ao outro. E eu venho pedir-vos
aquela medida de generosidade e perdão que vos permita devolver-
lhe o que é dele. Há já um ano que ele suporta esta espoliação,
permiti que isso seja castigo suficiente e restitui-lhe as terras de
Ceredigion. O senhor bispo adiciona a sua voz à minha a favor da
reconciliação.
— O senhor bispo falou antes de si — disse Owain secamente
— e de uma forma igualmente eloquente. Eu não sou, nem nunca
fui, contra o meu irmão, quaisquer que sejam as loucuras que ele
tenha cometido, mas o assassínio é pior que a loucura e exige
alguma penitência antes do perdão. Os dois, por si sós, não
possuem qualquer valor e, quando um não existe, não vou
desperdiçar outro. Cadwaladr enviou-o nesta missão?
— Não, meu senhor, ele não tem conhecimento da minha vinda.
E ele que sofre a privação, e sou eu que peço que os seus direitos
sejam reinstituídos. O fato de ele ter errado no passado será um
bom motivo para o excluir da possibilidade de praticar o bem no
futuro? E o que lhe foi feito é excessivo, pois ele foi transformado
num exilado no seu próprio país, sem qualquer apoio no seu próprio
solo. Isso é justo?
— É menos excessivo — disse Owain friamente — do que o
que foi feito a Anarawd. As terras podem ser restituídas, se a
restituição for merecida. A vida perdida não pode ser restituída.
— É verdade, meu senhor, mas até mesmo o homicídio pode
ser resgatado por uma compensação monetária. Ser despojado de
tudo, para toda a vida, é outra forma de morte.
— Nós não estamos a falar de um mero homicídio, mas sim de
assassínio — disse Owain — como muito bem sabe.
À esquerda de Cadfael, Cuhelyn estava tenso e imóvel no seu
lugar, com os olhos fixos em Bledri, com o olhar alongado de modo
a penetrar através dele e para além dele. O seu rosto ficara pálido, e
a sua única mão agarrava com força a beira da mesa, com os nós
dos dedos bem vincados e brancos como o gelo. Ele não disse uma
única palavra e não emitiu qualquer som, mas o seu olhar sombrio
nunca oscilou.
— Um nome demasiado duro para um ato cometido no ardor
duma briga — disse Bledri impetuosamente. — Vós também não
haveis esperado para ouvir o lado do meu príncipe a esse respeito.
— Para um ato cometido no ardor duma briga — disse Owain
com uma compostura impassível — este foi muito bem planejado.
Oito homens não ficam escondidos, à espera de quatro viajantes
inocentes e desarmados, com o sangue quente. Não está a
favorecer a causa do seu senhor ao defender o seu crime. Disse
que veio suplicar. A minha mente não está fechada à reconciliação,
procurada de uma forma educada. Está imune às ameaças.
— No entanto, Owain — exclamou Bledri, flamejando como um
archote resinoso — compete-vos a vós pesar as consequências que
poderão advir se fordes obstinado. Um homem sábio sabe quando
ceder antes de ser queimado pelo seu próprio ferrete.
Cuhelyn saiu da imobilidade, a tremer, e já se tinha soerguido
quando readquiriu o controlo e voltou a afundar-se no assento,
calado e imóvel. Hywel não se tinha movido, e o seu rosto não se
alterara. Ele possuía a enorme compostura do pai. E a inabalada e
inabalável calma de Owain reprimiu de imediato a agitação e os
murmúrios que tinham percorrido a mesa alta e provocaram ecos
mais altos no chão do salão.
— Devo tomar isso como uma ameaça, uma promessa ou uma
previsão de uma condenação do céu? — perguntou Owain, numa
voz extremamente cordial, que continha, no entanto, um tom
cortante que lhe conferia uma doçura penetrante, e fez com que
Bledri atirasse um pouco a cabeça para trás como se estivesse à
espera de receber um soco e, por um momento, velasse o fogo que
ardia nos seus olhos pretos e mitigasse a expressão dura dos seus
lábios cerrados. Um pouco mais cautelosamente, ele respondeu por
fim: — Eu só queria dizer que a inimizade e o ódio entre irmãos é
impróprio entre os homens e não pode deixar de desagradar a
Deus. Só pode produzir frutos catastróficos. Suplico-vos, restitui os
direitos ao seus irmão.
— Isso — disse Owain num tom pensativo, observando o
suplicante com um olhar que ajuizava e sondava para além das
palavras proferidas. — Eu ainda não estou pronto para ceder. Mas
talvez devêssemos refletir mais longamente sobre este assunto.
Amanhã de manhã eu e a minha gente partimos para Aber e
Bangor, juntamente com alguns membros da casa do bispo e estes
visitantes de Lichfield. Eu sou da opinião, Bledri ap Rhys, de que
deves vir conosco e ser nosso hóspede em Aber e, quer no
caminho, quer em casa, no meu llys, poderás desenvolver melhor o
teu argumento, e eu poderei refletir melhor sobre as consequências
daquilo a que te referes. Eu não gostaria — disse Owain docemente
— de atrair a catástrofe por falta de antevisão. Aceita a minha
hospitalidade e senta-te conosco à mesa do nosso anfitrião.
4

Tornou-se totalmente claro para Cadfael, bem como para


muitos outros no interior do salão, que, nessa altura, Bledri tinha
pouca possibilidade de escolha. Os homens da guarda de Owain
tinham compreendido plenamente a natureza do convite. Pelo seu
sorriso tenso, o mesmo acontecera a Bledri, embora ele o tivesse
aceitado manifestando muito prazer e satisfação. Sem dúvida que
lhe era útil continuar na companhia do príncipe, quer fosse como
hóspede, quer como prisioneiro, e manter os olhos e os ouvidos
abertos durante o caminho para Aber. Ainda mais se a sua
insinuação de consequências funestas significasse mais do que a
perspectiva do desagrado divino com a inimizade entre irmãos. Ele
dissera um pouco demasiado para ser tomado à letra. E, como
hóspede, em liberdade ou sob guarda, a sua própria segurança
estava garantida. Aceitou o lugar que lhe foi arranjado à mesa do
bispo e bebeu à saúde do príncipe com uma expressão discreta e
um sorriso descontraído.
O bispo respirou fundo, visivelmente aliviado com o fato de o
seu esforço bem intencionado de manter a paz ter sobrevivido pelo
menos à primeira escaramuça. Era duvidoso que ele tivesse
compreendido o que estava subjacente ao que acontecera. As
sutilezas dos galeses eram provavelmente desperdiçadas num
devoto normando terra-a-terra, refletiu Cadfael. Felizmente para ele,
pois assim podia despedir-se dos seus hóspedes, aos quais tinha
sido acrescido mais um elemento, e consolar-se com a ideia de que
tinha feito tudo o que era possível para conseguir a reconciliação. O
que quer que se seguisse, não seria da sua responsabilidade.
O hidromel dava a volta cordialmente à mesa, e o harpista do
príncipe cantou a grandiosidade e as virtudes da linha de Owain e a
beleza de Gwynedd. E, depois dele, para respeitosa surpresa de
Cadfael, Hywel ab Owain levantou-se e pegou na harpa, e
improvisou num tom melífluo sobre as mulheres do norte. Poeta e
bardo, bem como guerreiro, aquele era indubitavelmente um rebento
admirável daquele admirável caule. Ele sabia o que fazer com a sua
música. Todas as tensões da noite se dissolveram em amizade e
canções. Ou, se elas sobreviveram, pelo menos o bispo,
reconfortado e descontraído, perdeu toda a noção da sua existência.
Na privacidade dos seus aposentos, com a noite ainda
sonolentamente agitada no exterior da porta entreaberta, o Irmão
Mark ficou, durante alguns momentos, sentado em silêncio e
pensativo à beira da cama, a refletir sobretudo o que se passara, até
finalmente dizer, com a convicção de alguém que reexaminara todas
as circunstâncias e tinha chegado a uma conclusão firme: — Ele só
tinha boas intenções. É um bom homem.
— Mas não é um homem sensato — disse Cadfael da ombreira
da porta. A noite lá fora estava escura, sem lua, mas as estrelas
preenchiam-na com um brilho azul distante que mostrava sombras
ocasionais a atravessarem de edifício para edifício, dirigindo-se para
os seus locais de repouso. A babel do dia era agora um quase-
silêncio, estremecendo de vez em quando com o murmúrio de vozes
baixas a desejar tranquilamente uma boa noite. Era mais um tremor
no ar do que um som audível. Não havia vento. Até mesmo os
movimentos mais suaves vibravam ao longo das cordas dos
sentidos, tornando o silêncio eloquente.
— Ele confia com demasiada facilidade — concordou Mark com
um suspiro. — A integridade espera integridade.
— E achas que Bledri ap Rhys não a tem? — perguntou
Cadfael respeitosamente. O Irmão Mark ainda conseguia
surpreendê-lo de vez em quando.
— Eu duvido dele. É demasiado atrevido, sabendo que, uma
vez recebido como hóspede, não sofrerá quaisquer danos físicos
nem afrontas. E sente-se tão seguro da hospitalidade galesa que
até faz ameaças.
— É verdade — disse Cadfael num tom pensativo. — E fez
passar as ameaças como uma lembrança do desagrado de Deus. O
que achaste disso?
— Ele moderou o tom — disse Mark com segurança —
sabendo que tinha ido demasiado longe. Mas as suas palavras
contiveram mais do que um aviso pastoral. E eu gostaria muito de
saber onde está Cadwaladr agora, e o que está fazendo. Porque eu
acho que houve uma ameaça direta para o caso de Owain se
recusar a satisfazer as exigências do irmão. Há alguma coisa a ser
planejada, e este Bledir sabe disso.
— Calculo — disse Cadfael placidamente — que o príncipe seja
da mesma opinião que tu ou, pelo menos, que tenha essa
possibilidade em mente. Tu ouviste-o. Ele avisou todos os seus
homens que Bledri ap Rhys permanecerá na comitiva real aqui, em
Aber, e durante o caminho até lá. Se estiver a ser planejada alguma
velhacaria, Bledri, embora não possa ser obrigado a denunciá-la,
poderá ser impedido de participar nela ou de comunicar ao seu
senhor que o príncipe está avisado e está a tomar as devidas
providências. Agora, será que Bledri compreendeu tudo isso e dar-
se-á ele ao trabalho de o testar?
— Ele não me pareceu preocupado — disse Mark num tom de
dúvida. — Se ele o compreendeu assim, isso não o inquietou. Será
que o provocou de propósito?
— Quem sabe? Pode convir-lhe ir conosco até Aber e manter
os olhos e os ouvidos atentos ao longo do caminho e no interior do
Hys, se estiver a sondar as intenções do príncipe a respeito do seu
senhor. Ou dele próprio! — admitiu Cadfael pensativamente. —
Embora eu confesse não compreender as vantagens que isso lhe
possa trazer, a não ser afastá-lo em segurança da luta. — Porque
não pode, em caso algum, acontecer algo de mal a um prisioneiro
que tem oficialmente o estatuto de hóspede. Se o seu próprio
senhor vencer, ele é-lhe entregue sem opróbrio e, se o seu captor
for o vencedor, ele fica igualmente imune, livre de ferimentos da
batalha e de represálias depois dela. — Mas ele não me pareceu
ser um homem cauteloso — admitiu Cadfael, rejeitando a opção,
embora com alguma relutância.
Alguns restos de sombras ainda atravessavam a escuridão que
se ia apoderando do precinto, como ondulações num lago à noite. A
porta aberta do salão do bispo formava um retângulo de luz fraca,
pois a maior parte dos archotes já tinha sido apagado, a lareira tinha
sido abafada mas ainda brilhava, murmúrios distantes de
movimentos e vozes eram um leve frêmito no silêncio enquanto os
criados retiravam os restos do festim e as mesas em que este fora
servido.
Uma figura alta, escura, de ombros largos e ereta de encontro à
luz pálida surgiu à porta do salão, parou por um momento como se a
respirar o ar fresco da noite, depois desceu lentamente os degraus e
começou a andar de um lado para o outro do pátio, lenta e
sinuosamente, como um homem a exercitar os músculos depois de
ter estado sentado durante demasiado tempo. Cadfael abriu um
pouco mais a porta, para ter os movimentos na sombra dentro do
seu campo de visão.
— Onde vais? — perguntou Mark atrás dele, antecipando-se
com uma inteligência atenta.
— Não muito longe — disse Cadfael. — Apenas
suficientemente longe para ver o que morde a isca do nosso amigo
Bledri. E como ele reage!
Ele deixou-se ficar imóvel à porta durante um longo momento,
fechando a porta atrás de si, para habituar os olhos à noite, como
sem dúvida Bledri ap Rhys estava também a fazer enquanto
arrastava o seu casaco atrás de si de um lado para o outro, cada
vez mais perto do portão do recinto. A terra era suficientemente
firme para tornar audíveis os seus passos rápidos, deliberados,
como era claramente sua intenção. Mas nada se moveu e ninguém
reparou nele, nem sequer os poucos criados que se dirigiam às
suas camas, até ele se ter virado deliberadamente e caminhado na
direção do portão aberto. Cadfael tinha avançado calmamente ao
longo da linha de modestas casas de cônegos e alojamentos de
hóspedes, para continuar a ver o que se passava.
Com admirável aprumo, duas figuras entraram rapidamente
pelo portão vindos dos campos no exterior, afavelmente abraçados,
chocaram com Bledri no meio do portão, separaram-se e
abraçaram-se a ele.
— Meu senhor Bledri! — exclamou uma alegre voz galesa. — É
o senhor? Tomando um pouco de ar antes de dormir? E está uma
bela noite para isso!
— Nós temos todo o gosto em fazer-lhe companhia — propôs a
segunda voz num tom entusiástico. — Ainda é cedo para ir para a
cama. E, se se perder no escuro, nós levamo-lo em segurança até
ao seu cobertor.
— Não estou tão embriagado que vá me perder — respondeu
Bledri sem surpresa nem preocupação. — E apesar de toda a boa
companhia que existe em Santo Asaph, esta noite acho que vou
para a cama. E os senhores também vão precisar de dormir, se
vamos partir amanhã cedo. — Pressentia-se claramente o sorriso na
sua voz. Ele tinha a resposta de que estivera à procura, e ela não
lhe provocara qualquer desalento, pelo contrário, causara-lhe algum
divertimento, talvez até satisfação. — Boa noite! — disse ele,
voltando-se para se dirigir novamente à porta do salão, ainda
ligeiramente iluminada do interior.
O silêncio pairou sobre o muro do precinto, embora as tendas
mais próximas do acampamento de Owain não estivessem
distantes. O muro não era tão alto que não se pudesse trepar por
ele acima, embora, por onde quer que um homem subisse,
houvesse sempre alguém lá em baixo, do outro lado, à espera. Mas,
em qualquer caso, Bledri ap Rhys não tinha intenção de se ir
embora, tinha apenas confirmado a sua suposição de que qualquer
tentativa nesse sentido seria muito simples e rapidamente frustrada.
As ordens de Owain, mesmo quando dadas de uma forma indireta,
eram prontamente compreendidas e levadas a cabo com eficiência.
Se Bledri tivesse tido quaisquer dúvidas a esse respeito, agora já
estava esclarecido. Quanto aos dois simpáticos guardas, estes
retiraram-se novamente para a escuridão com uma ausência de
fingimento que era quase insultuosa.
E isso, aparentemente, foi o fim do incidente. Cadfael, porém,
permaneceu imóvel e interessado à distância, invisível contra o
volume escuro dos edifícios de madeira, como se estivesse à
espera que algum tipo de epílogo pusesse termo ao entretenimento
da noite.
No oblongo da luz fraca ao topo das escadas, surgiu a moça
Heledd, inconfundível até mesmo em silhueta pela graciosidade
impetuosa do seu porte e pela elegância da sua figura alta. Até
mesmo ao fim de uma noite a servir os convidados do bispo e os
membros da sua casa, ela se movia como um fauno. E se Cadfael
observou a sua aparição com um prazer impessoal, o mesmo fez
Bledri ap Rhys do local onde se encontrava, ao lado do fundo das
escadas, com uma admiração um tanto menos impessoal, uma vez
que não tinha quaisquer restrições monásticas a controlá-la. Ele
tinha acabado de confirmar que era agora, voluntária ou
involuntariamente, membro da comitiva do príncipe pelo menos até
Aber e, uma vez que estava alojado na casa do bispo, com toda a
probabilidade já sabia que aquela moça promissora era a que iria
partir com o grupo ao amanhecer. Aquela perspectiva
proporcionava-lhe a esperança de um suave prazer ao longo do
caminho, de passar o tempo de uma forma agradável. No mínimo,
ali estava aquele momento, a finalizar uma noite agradável e rica em
acontecimentos. Ela vinha a descer, com uma das cobertas
bordadas da mesa alta enrolada no braço, a caminho das
habitações dos cônegos no outro lado do recinto. Talvez alguém
tivesse derramado vinho no tecido ou um dos fios dourados tivesse
sido repuxado pela fivela de um cinto, pelo punho de um punhal ou
por uma pulseira, e ela estava encarregada de a arranjar. Ele
estivera prestes a subir, mas ficou à espera ao lado das escadas,
pelo prazer de a ver ainda mais de perto à medida que ela descia,
de olhos baixos para ter a certeza de pousar o pé em segurança.
Ele estava tão quieto, e ela tão preocupada, que não reparara nele.
E quando ela chegou ao terceiro degrau a contar do chão, ele
estendeu subitamente a mão, agarrou-a bem pela cintura, fê-la
descrever um semicírculo e, por um longo momento, segurou-a
assim suspensa no ar, com o rosto próximo do seu, antes de a
pousar suavemente no chão. Mas não a largou.
Foi tudo feito de uma forma ligeira e brincalhona e, tanto quanto
Cadfael conseguiu ver, que foi apenas um jogo de sombras, Heledd,
uma vez passada a surpresa, recebeu-o sem qualquer manifestação
de desagrado nem de alarme. Ela tinha soltado uma pequena
exclamação de espanto quando ele a levantou no ar, mas isso foi
tudo e, uma vez pousada no chão, ficou a olhá-lo nos olhos e não
fez qualquer movimento para se afastar. Não é desagradável para
uma mulher ser admirada por um homem bonito. Ela disse-lhe
qualquer coisa, as palavras eram imperceptíveis mas, aos ouvidos
de Cadfael, o tom era ligeiro e tolerante, se não encorajador. E ele
disse-lhe qualquer coisa em resposta, no mínimo sem qualquer sinal
de desencorajamento. Sem dúvida que Bledri ap Rhys tinha uma
opinião muito boa sobre si próprio e sobre os seus atrativos, mas
Cadfael pensou que Heledd, embora pudesse gostar das atenções
dele, era bastante capaz de as manter dentro de limites decorosos.
Era duvidoso que ela estivesse a pensar em deixá-lo ir muito longe
e poderia libertar-se daquele agradável encontro com ele quando
quisesse. Nenhum deles estava a levá-lo a sério.
Em qualquer caso, ela não teve oportunidade de o concluir à
sua vontade, porque a luz oriunda da porta aberta foi subitamente
escurecida pela forma de um corpo de homem grande, e o eclipse
abrupto lançou o par na obscuridade relativa. O cônego Meirion
parou por um momento para adaptar a vista à noite e começou a
descer as escadas com a sua dignidade habitual. Com a diminuição
da sua enorme sombra, a luz voltou a cair sobre o cabelo brilhante
de Heledd, sobre o seu pálido rosto oval e sobre os ombros largos e
a cabeça arrogante de Bledri ap Rhys, os dois muito juntos um do
outro no que era quase um abraço.
Pareceu ao Irmão Cadfael, que os observava do seu canto
escuro com um interesse despudorado, que ambos tinham bem
consciência da tempestade prestes a desabar sobre eles, e nenhum
estava disposto a fazer o que quer que fosse para a evitar ou
mitigar. De fato, ele reparou que Heledd suavizou um pouco a
rigidez da sua postura e permitiu que a cabeça se inclinasse na
direção da luz e brilhasse com um sorriso luminoso, mais com a
intenção de inquietar o pai do que de gratificar Bledri. O pai que
lutasse pelo seu cargo e pela promoção que desejava! Ela dissera
que, se quisesse, poderia destruí-lo. Era algo que nunca faria mas,
se ele era assim tão estúpido, e a conhecia tão mal que acreditasse
que ela seria capaz de provocar a sua ruína, então ele merecia
pagar pela sua estupidez.
O instante de intensa imobilidade explodiu num movimento
agitado, quando o Cônego Meirion recuperou a respiração e desceu,
furioso, os degraus, num tumulto de negro clerical, como uma
nuvem de tempestade súbita, pegou no braço da filha e arrancou-a
com firmeza das mãos de Bledri. Ela afastou-se daquela nova
coerção com igual firmeza e competência, e sacudiu a mão dele da
sua manga. Os olhares como punhais entre o pai e a filha que
devem ter atravessado a obscuridade foram embotados pela noite.
E Bledri suportou graciosamente a sua privação, sem dar um passo,
e riu muito suavemente.
— Oh, perdoe-me se violei a sua coutada — disse ele,
deliberadamente obtuso. — Não estava a contar com um rival de
hábito. Não aqui, na casa do Bispo Gilbert. Estou a ver que
subestimei a sua largueza de vistas.
Ele estava a ser deliberadamente provocador, claro. Mesmo
que ele tivesse a mínima ideia que este idoso indignado era o pai da
moça, sabia certamente que aquela intervenção não podia ter a
interpretação que lhe estava a dar. Mas não tinha o impulso para a
diabrura tido início com Heledd? Ela não gostara que o cônego
tivesse tão pouca confiança no seu discernimento que supusesse
que ela ia precisar de ajuda para lidar com um gesto passageiro de
desfaçatez por parte daquele visitante questionavelmente bem
recebido. E Bledri era suficientemente conhecedor de mulheres para
compreender a suave malícia dela e fingir-se cúmplice, tanto para
gratificação dela como para seu próprio divertimento.
— Senhor — disse Meirion com grave e ameaçadora dignidade,
dominando a sua ira — a minha filha está noiva e vai-se casar em
breve. Aqui na corte de Sua Senhoria, deve tratá-la, bem como a
todas as outras mulheres, com respeito. — E, dirigindo-se a Heledd,
prosseguiu bruscamente, com um gesto abrupto da mão na direção
da sua casa situada sob o muro oposto do enclave. — Vai para
dentro, moça! Já é tarde, devias estar dentro de casa.
Heledd, sem pressa nem falta de compostura, dirigiu-lhes uma
leve e abrupta inclinação da cabeça para eles partilharem entre si,
deu meia volta e afastou-se. A visão das suas costas enquanto
caminhava era expressiva e desdenhosa dos homens em geral.
— Ela é, de fato, uma bela moça — disse Bledri com ar
aprovador, vendo-a afastar-se. — Pode estar orgulhoso da sua
descendência, Pai. Espero que esteja a casá-la com um homem que
aprecie a sua beleza. A pequena cortesia de pegar na moça para a
colocar no chão plano não pode ter manchado o seu bom negócio
— a sua voz clara, incisiva, tinha-se demorado afetuosamente na
palavra "Pai", bem consciente do ferrão duplo. — Bem, o que os
olhos não veem, o coração não sente, e ouvi dizer que o noivo está
bem longe, em Anglesey. E sem dúvida que o Pai pode manter o
silêncio no que diz respeito ao casamento. — A implicação simples
estava lá, muito docemente insinuada. Não, era extremamente
improvável que o Cônego Meirion fizesse algo que pusesse em risco
o seu prometedor futuro purificado e celibatário. Bledri ap Rhys era
de compreensão muito rápida e estava bem informado sobre as
reformas clericais do bispo. Ele tinha até pressentido o
ressentimento de Heledd por se desembaraçarem tão
implacavelmente dela, e o seu impulso de se vingar antes de partir.
— Senhor, é um hóspede do príncipe e do bispo e, como tal,
deve observar as normas da sua hospitalidade — Meirion estava
rígido como uma lança, e a sua voz era fina e de aço como a lâmina
de uma espada. Dentro da sua pessoa culta havia um feroz
temperamento galês arduamente controlado. — Se não o fizer, irá
arrepender-se. Independentemente da minha própria situação, eu
certificar-me-ei disso. Não se aproxime da minha filha, nem tente ter
mais alguma coisa a ver com ela. As suas gentilezas não são bem-
vindas.
— A dama, julgo eu, não é da mesma opinião — disse Bledri,
com um sorriso extremamente complacente implícito do tom da sua
voz. — Ela tem uma língua e uma palma da mão, e eu creio que
utilizaria ambas prontamente se eu lhe causasse algum desagrado.
Eu gosto de uma moça com fibra. Se ela me conceder essa
oportunidade, lhe direi. Por que é que ela não pode receber a
admiração que merece, nestas poucas horas na estrada a caminho
do seu casamento?
O breve silêncio caiu como uma pedra entre eles. Cadfael
sentiu o ar estremecer com a tensão do silêncio. Seguidamente, o
Cônego Meirion disse, através de dentes cerrados e de uma
garganta contraída com o esforço de dominar a sua ira: — Meu
senhor, não pense que o hábito que eu visto lhe servirá de alguma
proteção se afrontar a minha honra, ou o bom nome da minha filha.
Escute o aviso e mantenha-se longe dela, caso contrário terá um
excelente motivo para se arrepender. Embora talvez — terminou ele
num tom ainda mais baixo e mais malévolo — muito pouco tempo.
— Tempo suficiente — disse Bledri, pouco perturbado pela
ameaça palpável — para todo o arrependimento que provavelmente
sentirei. É algo em que tenho tido pouca prática. Boa noite,
Eminência! — E ele passou tão perto de Meirion que as mangas dos
dois se tocaram, talvez intencionalmente, e começou a subir as
escadas do salão. E o cônego, arrancando-se si próprio, com
esforço, à paralisia causada pela ira, compôs a sua dignidade o
melhor que conseguiu e dirigiu-se para a sua própria porta.
Cadfael regressou, pensativo, aos seus aposentos e relatou o
pequeno incidente ao Irmão Mark, que estava deitado, acordado e
de olhos abertos depois das suas orações, sentindo, através de uma
particular sensibilidade pessoal, as turbulentas contracorrentes que
estremeciam no ar noturno. Ele escutou, nada surpreendido.
— Até que ponto, dirias tu, Cadfael, está ele preocupado
apenas com a sua carreira, e até que ponto com a filha? Porque ele,
de fato, sente-se culpado em relação a ela. Culpado por considerá-
la um obstáculo à sua carreira, culpado por amá-la menos do que
ela o ama. Uma culpa que o torna ainda mais ansioso por que ela
desapareça da vista dele, para muito longe, passando a estar sob a
responsabilidade de outro homem.
— Quem consegue decifrar os motivos de qualquer homem? —
disse Cadfael num tom resignado. — Muito menos os de uma
mulher. Mas digo-te uma coisa, seria bom ela não o provocar
demasiado. O homem tem um âmago de violência nele. Eu não
gostaria de a ver à solta. Pode ser uma força assassina.
— E contra qual deles — interrogou-se Mark, olhando para o
teto escuro acima — seria lançado o raio, se houvesse uma
tempestade?
5

A comitiva do príncipe reuniu-se ao amanhecer, por um


momento hesitante entre o mau humor e sorrisos. A erva fora
umedecida por um breve aguaceiro quando Cadfael e Mark
atravessavam o pátio até à igreja para rezarem antes de selarem os
cavalos, mas o sol cintilava nas gotas finas, e o céu no alto era do
mais pálido e límpido azul, com exceção de alguns farrapos de
nuvens a leste, abraçando a orbe de luz nascente com dedos
acariciadores. Quando emergiram de novo no pátio este já
transbordava de azáfama e som, os cavalos de carga estavam a ser
carregados, a galharda cidade de tendas ao longo da colina dobrada
e em movimento, e até mesmo as frágeis plumas de nuvens se
tinham dissolvido numa úmida e cintilante radiância.
Mark ficou a observar com prazer os preparativos da partida
com o rosto corado e alegre, como uma criança a partir para uma
aventura. Até esse momento, pensou Cadfael, ele não se tinha
apercebido plenamente das possibilidades, das fascinações, até
mesmo dos perigos da viagem que empreendera. A viagem com os
príncipes não era mais do que metade da história; havia uma
ameaça à espreita algures, um irmão hostil, um prelado decidido a
reformar um modo de vida que, nas mentes da sua população, não
precisava de qualquer reforma. E quem conseguiria adivinhar o que
poderia acontecer entre aquele local e Bangor, entre os dois bispos,
o estrangeiro e o nativo?
— Eu disse uma palavra ao ouvido de Santa Winifred — disse
Mark, corando com um ar de culpa, como se se tivesse apropriado
de uma patrona que pertencia, por direito, a Cadfael. — Achei que
devíamos estar muito próximos dela aqui, e pareceu-me delicado
informá-la da nossa presença e das nossas esperanças, e pedir-lhe
a sua bênção.
— Se a merecermos! — disse Cadfael, embora tivesse
praticamente a certeza de que uma santa tão meiga e sensível
olharia com indulgência para aquele sensato inocente.
— É verdade! Qual é a distância, Cadfael, daqui até à sua fonte
sagrada?
— Cerca de catorze milhas para leste.
— É verdade que ali nunca neva? Por mais rigoroso que o
Inverno seja?
— É verdade. Nunca ninguém a viu parada... borbulha sempre
no centro.
— E Gwytherin, onde a tiraste da sua sepultura?
— Isso fica mas para sul e oeste — disse Cadfael, coibindo-se
de referir que também voltara a colocá-la na sepultura nesse mesmo
local. - Nunca tentes limitá-la — aconselhou ele cautelosamente. —
Onde quer que a chames, ela estará presente, e ouvir-te-á assim
que fizeres o teu pedido.
— Disso eu nunca duvidei — disse Mark com simplicidade e,
com um passo ágil e esperançoso, foi juntar os seus parcos haveres
e selar o seu cavalo castanho. Cadfael deixou-se ficar alguns
minutos a apreciar a azáfama à sua volta, depois dirigiu-se mais
calmamente para as cavalariças. No exterior dos muros do enclave,
os guardas e os nobres de Owain já se estavam a juntar, o seu
acampamento desaparecera do relvado, deixando apenas as
manchas pisadas, mais claras, que em breve readquiririam o seu
tom verde vivo, apagando a memória da sua visita. No interior dos
muros, cavalariços assobiavam e chamavam, cascos batiam
energicamente no chão, ritmos abafados na terra compacta, os
arreios tiniam, as criadas gritavam estridentemente umas para as
outras por cima da babel de vozes masculinas, e uma leve poeira
levantada por todo aquele vigoroso movimento elevava-se na
direção da luz do sol e cintilava como neblina dourada.
O grupo reuniu-se tão alegremente como se fosse celebrar a
Festa da Primavera, e certamente que uma manhã tão luminosa
convidava a folguedos agradáveis. Mas, enquanto montavam, havia
acontecimentos mais graves a ser recordados. Heledd apareceu já
pronta, com a capa vestida, serena e séria, mas ladeada pelo
Cônego Meirion, de lábios cerrados e sobrolho carregado, e pelo
Cônego Morgant, também de lábios cerrados mas com as
sobrancelhas arqueadas numa expressão de intransigente
severidade, e os olhos penetrantes a pousar alternadamente no pai
e na filha, sem aprovar seguramente qualquer deles. E apesar de
todas as suas precauções, no último momento Bledri ap Rhys
meteu-se entre eles e içou a moça para a sela com as suas mãos
grandes e potencialmente predatórias, com uma vênia tão elaborada
que rondava a insolência; e, pior ainda, Heledd aceitou o préstimo
com uma graciosa inclinação da cabeça e um sorriso frio, reservado,
ambíguo entre a reprovação casta e a malícia discreta. Desaprovar
o comportamento de qualquer deles teria sido um disparate, tão
bem tinham eles preservado o ar de decoro, mas os cônegos,
embora tivessem mantido a boca fechada, contemplaram o
incidente com irritação e sobrolhos cada vez mais carregados.
E aquela não foi a única nuvem súbita naquele céu limpo, pois
Cuhelyn, surgindo já montado ao portão, demasiado tarde para ter
observado qualquer motivo de ofensa, ficou sentado no cavalo com
a testa franzida, enquanto os seus olhos atentos percorriam todo o
grupo até encontrar Bledri, fixando-se nele com um ar mal-
humorado, um homem de memória longa e paixões intensas, a
avaliar o inimigo. Pareceu a Cadfael, que observava a cena com um
ar pensativo, que a abastada bagagem daquele grupo principesco
continha uma quantidade considerável de má vontade e
ressentimento.
O bispo desceu para o pátio para se despedir dos hóspedes
reais. O primeiro encontro tinha decorrido com bastante êxito, tendo
em conta a tensão que ele lhe conferira ao convidar o enviado de
Cadwaladr para a reunião. Ele não era tão insensível que não
tivesse sentido a tensão e o desagrado momentâneos, e sem dúvida
que respirava de alívio por ter sobrevivido ao perigo. Se ele tinha a
humildade de compreender que devia isso à clemência do príncipe
era outra questão, refletiu Cadfael. E ali vinha Owain ao lado do seu
anfitrião, com Hywel atrás. À sua chegada, a alegre comitiva
animou-se, expectante, e, quando ele estendeu a mão para as
rédeas e para a espora, todos o imitaram. Demasiado alto para mim,
hem, Hugh? pensou Cadfael, subindo para a sela alta do cavalo,
com uma leveza que lhe proporcionou uma opinião muito
gratificante de si próprio. Eu vou-te mostrar se perdi a vontade de
viajar e se esqueci tudo o que aprendi no Oriente antes sequer de
teres nascido.

Partiram, saindo pelo portão aberto em direção a oeste, atrás


da altiva cabeça loura do príncipe, descoberta no sol da manhã. Os
membros da casa do bispo ficaram a vê-los partir, cautelosamente
satisfeitos com o fato de o encontro diplomático ter sido levado a
cabo com êxito. As ameaças que persistiam da troca de palavras da
noite anterior lançavam as suas sombras sobre os hóspedes que
partiam. O Bispo Gilbert, mesmo que acreditasse em todas elas,
podia deixá-las partir incontestadas, pois não representavam
qualquer ameaça para ele.
À medida que os que se encontravam no interior do enclave
emergiam para o trilho verde no exterior, os oficiais de Owain que se
encontravam no acampamento iam-se juntando ordeiramente a
eles, ladeando cada um dos flancos, e Cadfael observou com
interesse mas sem surpresa que havia arqueiros entre eles, dois
dos quais se mantiveram alguns metros atrás do ombro esquerdo de
Bledri. Dada a indubitável rapidez de percepção daquele hóspede
específico, ele apercebeu-se igualmente da presença deles, e foi
igualmente óbvio que não tinha qualquer objeção a que eles ali
estivessem pois, durante o primeiro quilômetro, não permitiu que
isso o inibisse de mudar de posição duas ou três vezes para dizer
uma palavra cortês ao ouvido do Cônego Morgant, ou para trocar
amabilidades com Hywel ab Owain, que seguia próximo do pai. Mas
não fez qualquer movimento para se esgueirar por entre a fila de
guardas. Do mesmo modo que eles o faziam lembrar que se
encontrava praticamente em cativeiro, ele estava decidido a
garantir-lhes que se sentia perfeitamente satisfeito e não tinha
qualquer intenção de tentar fugir. Na verdade, ele olhou uma ou
duas vezes para a esquerda e para a direita para fazer uma
avaliação da eficiência discreta do príncipe, e pareceu ficar
favoravelmente impressionado com o que viu.
Tudo aquilo era de considerável interesse para um homem
curioso, mesmo que, nessa fase, permanecesse indecifrável. Era
melhor guardar tudo no fundo da mente, juntamente com tudo o
mais que parecesse estranho naquela expedição, pois sem dúvida
que chegaria a altura em que o seu significado seria revelado.
Entretanto, ali estava Mark, silencioso e feliz ao seu lado, com a
estrada para oeste à sua frente, e o sol a brilhar na flâmula de
cabelo claro de Owain à cabeça da coluna. Que mais poderia um
homem querer numa bela manhã de Maio?
Eles não seguiram, como Mark esperara, um pouco para norte
em direção ao mar, encaminhando-se antes para oeste, sobre
colinas suavemente ondulantes e através de vales bem protegidos,
ao longo de trilhos verdes por vezes nitidamente marcados, outras
vezes menos bem definidos, mas mantendo acentuadamente uma
linha direta tanto na subida como na descida da colina, ali onde
havia campo aberto e o declive era suficientemente suave para uma
cavalgada agradável.
— Uma estrada muito, muito antiga — disse Cadfael. —
Começa em Chester e vai direta à origem da água de maré do
Conwy, onde outrora, segundo dizem, havia uma fortaleza igual ao
de Chester. Na maré baixa, conhecendo as areias, pode-se passar o
rio a vau ali mas, na maré cheia, os barcos conseguem passar um
pouco mais adiante.
— E depois de atravessarmos o rio? — perguntou Mark, atento
e feliz.
— Depois subimos. De lá, se olharmos para oeste, pensar-se-ia
que não seria possível haver um trilho que passasse por ali, mas ele
existe e leva-nos pelas montanhas acima até ao outro lado,
descendo finalmente para o mar. Já alguma vez viste o mar?
— Não. Como poderia tê-lo visto? Até entrar para a casa do
bispo, nunca tinha saído do condado, nem sequer dez milhas do
local onde nasci. — Ele estava a esforçar-se por ver ao longe
enquanto cavalgava, com ansiedade e alegria, sedento por tudo o
que nunca tinha visto. — O mar deve ser uma grande maravilha —
disse ele num murmúrio.
— É um bom amigo e um mau inimigo — disse Cadfael,
evocando recordações antigas. — Se o respeitares, ele servirá bem,
mas nunca facilites.
O príncipe tinha estabelecido um ritmo constante, fácil, que
podia ser mantido milha após milha naquele terreno ondulante,
verde e luxuriante, salpicado de aldeias nos vales, com as casas e a
igreja muito juntas, com a orla de campos aráveis como uma
tapeçaria à sua volta, e aqui e ali, solitárias, espalhadas pelo tref, as
casas de proprietários de terras livres e, não menos solitária,
algures no meio delas, a sua igreja paroquial.
— Estes homens têm uma vida solitária — disse Mark,
reparando na diferença com algum espanto.
— Estes são os homens nascidos livres. São donos da sua
própria terra, mas não podem fazer com ela o que quiserem, é
herdada através de uma rígida lei da herança no interior da família.
As aldeias de vilões trabalham a terra entre si e pagam juntas os
impostos comunais, embora todos os homens tenham a sua casa, o
seu gado e o seu justo quinhão de terra. Nós certificamo-nos disso
supervisionando frequentemente a distribuição. Assim que os filhos
se tornam homens, eles recebem a sua parte na distribuição
seguinte.
— Por conseguinte, ninguém herda — deduziu Mark.
— Ninguém a não ser o irmão mais novo, o último a ter idade
suficiente para receber a sua parte. Ele herda a parte e a casa do
pai. Nessa altura, os seus irmãos mais velhos já terão casado e
construído as suas próprias casas. — Parecia a Cadfael, e
aparentemente também a Mark, uma forma justa, se bem
rudimentar, de garantir a todos os homens um meio de sustento e
um lugar onde viver, uma porção justa do trabalho e uma porção
justa do lucro da terra.
— E tu? — perguntou Mark. — Era aqui que pertencias?
— Pertencia e não podia pertencer — admitiu Cadfael,
recordando, com alguma surpresa, as suas próprias origens. — Sim,
eu nasci num tref vilão deste gênero e, quando fiz catorze anos,
recebi um pedaço de terra. E consegues acreditar numa coisa?... Eu
não o quis! Boa terra galesa, e eu não sentia nada por ela. Quando
o mercador de lã de Shrewsbury gostou de mim e me ofereceu
trabalho que me permitiria ver pelo menos mais algumas milhas do
mundo, saltei para a porta aberta como tenho saltado para todas as
que já me surgiram à frente. Eu tinha um irmão mais novo, mais
interessado em ficar a vida inteira num pedaço de terra. Parti, até
onde a estrada me levou, e ela levou-me a metade do mundo até eu
ter compreendido. A vida não segue em linha reta, meu rapaz, mas
sim num círculo. Passamos a primeira metade a aventurar-nos até
ao fim do mundo, para longe da casa, da família e do silêncio, e a
segunda metade traz-nos de volta, através de caminhos indiretos
mas acabando sempre por nos levar à situação de que partimos.
Assim, acabei ligado, através dos votos, a um lugar restrito, com
exceção das raras oportunidades de partir em missão da minha
casa, e a trabalhar um pequeno pedaço de terra, na companhia dos
meus familiares mais próximos. E feliz — disse Cadfael, com um
suspiro de satisfação.

Antes do meio-dia, chegaram ao cume de um espinhaço


elevado; abaixo deles abria-se o vale do Conwy e, para além deste,
o terreno elevava-se suavemente a princípio, mas acima daqueles
níveis verdes destacavam-se ao longe os enormes bastiões de
Eryri, elevando-se em picos de aço polido contra o azul pálido do
céu. O rio era um fio de prata sinuoso, serpenteando ao longo de
um curso tortuoso através e por cima de bancos de lama e areia da
maré, a caminho do mar a norte; àquela hora, as suas águas
estavam tão espalhadas e reduzidas que seria possível atravessá-lo
sem qualquer dificuldade. E, depois da travessia, tal como Cadfael
avisara, subiram.
As primeiras milhas verdes e soalheiras deram lugar a uma
trilha ascendente que acompanhava um pequeno afluente, subindo
a pique até as árvores terem ficado para trás, e eles emergiram
gradualmente num mundo soberbo de charneca, tojo e urze, aberto
e nu como o céu. Arado algum tinha alguma vez penetrado no solo
ali, não havia qualquer movimento visível a não ser a ondulação do
vento súbito entre o tojo e os arbustos baixos, nem quaisquer
habitantes a não ser os pássaros que surgiam diante dos cavaleiros
da frente e os falcões que pairavam, quase imóveis, lá no alto. E, no
entanto, através daquela imensidão desolada mas bela, havia uma
estrada perceptível pavimentada com pedras almofadadas com
ervas, elevada acima dos ocasionais lugares pantanosos,
escarranchada por cima de poças pouco fundas de água castanha
escura, dirigindo-se para a majestosa parede de rocha que parecia
ao Irmão Mark totalmente impenetrável. Nos lugares em que a rocha
firme penetrava no solo e proporcionava uma base sólida, o trilho
elevado continuava visível como um caminho muito usado que não
precisava de qualquer rampa de pedras, mantendo sempre a linha
reta em frente.
— Isto foi feito por gigantes — disse o Irmão Mark, espantado.
— Foi feito por homens — disse Cadfael. Nos troços
claramente visíveis a estrada era larga, suficientemente larga para
uma coluna de seis filas a marchar, embora a cavalaria tivesse que
seguir com não mais de três, e os arqueiros de Owain, que
conheciam bem aquele território, se tivessem colocado em ambos
os flancos, deixando a estrada livre para o grupo que eles
guardavam. Uma estrada, pensou Cadfael, construída, não para
prazer, não para a falcoaria ou para a caça, mas como um meio de
deslocar um grande número de homens de uma fortaleza para outra
o mais rapidamente possível. Ela não tinha em conta a inclinação do
solo, seguia sempre em frente, fazendo desvios apenas quando
essa linha reta era impossível de manter e, nesses casos, só até o
obstáculo ter sido ultrapassado.
— Mas através daquela parede alcantilada — disse Mark num
tom de espanto, olhando para a barreira de montanhas à sua frente
— certamente que não conseguiremos passar.
— Sim, vais ver que há uma passagem, estreita mas
suficientemente larga, no desfiladeiro de Bwlch y Ddeufaen. Vamos
serpentear através daquelas colinas, mantendo este nível elevado
durante mais três ou quatro milhas, depois começamos a descer.
— Em direção ao mar?
— Em direção ao mar — respondeu Cadfael.
6

Chegaram ao primeiro declive, o primeiro vale de arbustos e


árvores abrigado, e, no seu centro, borbulhava uma nascente que
se transformava num alegre regato e que os acompanhou na
descida gradual em direção à costa. Há muito que tinham deixado
para trás os riachos que corriam para leste, para o Conwy; ali, os
ribeiros reluzentes tinham vidas breves, precipitosas, e dirigiam-se
para o mar. E juntamente com o menor do seu gênero o trilho
descia, elevado num nível de terra firme acima da água, à beira da
fenda de árvores. A descida tornou-se mais gradual, o ribeiro
afastou-se um pouco do trilho e, subitamente, o campo visual abriu-
se à frente deles e lá estava, de fato, o mar.
Imediatamente abaixo deles havia uma aldeia com campos
cultivados que formavam padrões, para além dela um prado estreito
que se dissolvia em salinas e seixos, depois a imensidão do mar e,
para além deste, distante mas nítida na luz do fim de tarde, a costa
de Anglesey estendia-se para norte, terminando na pequena ilha de
Ynys Lanog. Na praia em direção à qual se deslocavam, a água
pouco funda cintilava com um brilho de ouro pálido revestido de
água-marinha, quase até onde os olhos conseguiam distinguir a cor,
pois as areias abrangiam a maior parte do percurso até à praia, e só
ali, ao longe, é que o mar escurecia, adquirindo o azul puro,
esverdeado de um canal fundo. Ao ver a maravilha com que
sonhara e sobre a qual especulara o dia inteiro, Mark parou o cavalo
por um momento e ficou a olhar, com o rosto corado e olhos
brilhantes, encantado com a beleza e a diversidade do mundo.
Aconteceu de Cadfael virar a cabeça para olhar para o local
onde alguém tinha parado naquele mesmo momento, talvez com o
mesmo deleite extasiado. No meio dos seus guardiães cônegos,
Heledd tinha estancado e ficado a olhar, mas a sua visão estava
erguida para além do cristal e ouro dos baixios, para além do canal
cor de cobalto, para a costa distante de Anglesey, e tinha os lábios
austeramente cerrados e as sobrancelhas direitas, não
manifestando qualquer emoção. Ela olhou para a terra do seu noivo,
do qual não sabia nada, o homem de quem só ouvira falar bem; ela
viu o casamento avançar demasiado depressa, e havia no seu rosto
uma tristeza tão perplexa e ressentida, bem como uma rejeição tão
obstinada do seu destino, que Cadfael ficou admirado por sentir a
sua veemente indignação e virou-se, alarmado, para descobrir a
origem daquela intensa inquietação.
Depois, tão subitamente como parara, ela pegou nas rédeas e
fez o cavalo descer a colina num trote impaciente, deixando para
trás os seus acompanhantes de hábito preto, e enfiou-se no meio da
cavalgada para que eles a perdessem de vista pelo menos durante
alguns minutos de rebeldia.
Ao observar a sua impetuosa passagem através das filas da
comitiva do príncipe, Cadfael absolveu-a de qualquer intenção
deliberada de se aproximar da montada de Bledri. Ele estava
simplesmente no seu caminho, dentro de um momento ela passaria
por ele. Mas houve bastante intenção na alacridade oportunista com
que Bledri estendeu a mão para o freio dela e a fez parar com o
joelho muito próximo do seu, bem como no sorriso íntimo, seguro,
que lhe dirigiu quando ela cedeu à persuasão. Houve, pensou
Cadfael, um instante em que ela quase o sacudiu, quando enrolou o
lábio numa expressão de troça tolerante, que era tudo o que ela
sentia por ele. Depois, com uma intencionalidade perversa, ela
sorriu-lhe e consentiu em ficar ao seu lado, sem qualquer pressa de
se libertar da mão musculosa que a detinha. Seguiram juntos num
ambiente de aparente amizade, a passo idêntico e conversando
descontraidamente. A visão traseira deles não sugeria a Cadfael
mais do que uma continuação de um jogo um tanto malicioso mas
divertido para ambas as partes, mas quando ele virou
cautelosamente a cabeça para ver o efeito que o incidente tivera
nos dois cônegos de Santo Asaph, foi óbvio que, para estes, ele
sugeria algo muito diferente. Se as sobrancelhas carregadas e os
lábios rígidos de Meirion ameaçavam tempestades na direção de
Heledd e ira em relação a Bledri ap Rhys, eles estavam igualmente
tensos de apreensão pelo que se devia estar a passar atrás da
retidão controlada mas ameaçadora do rosto cheio de Morgant.
Ah, bem! Mais dois dias, e tudo estaria terminado. Chegariam
finalmente a Bangor, o noivo atravessaria o estreito para ir ao seu
encontro, e Heledd seria levada para aquela costa envolta em
neblina para além do ouro pálido e azul gelo de Lavan Sands. E o
Cônego Meirion poderia finalmente respirar de alívio.
Chegaram à orla das salinas e viraram para oeste, com a
trêmula face plana dos baixios a refletir a luz cintilante à direita, e o
verde dos campos e dos bosques à esquerda, elevando-se em
socalcos sucessivos até às colinas. Por uma ou duas vezes eles
chapinharam através dos tênues riachos que gotejavam, através
dos pântanos salgados, para o mar. E, ao fim de uma hora, estavam
a cavalgar ao longo da estacada alta da mansão real de Owain e da
aldeia de Aber, e os carregadores e as sentinelas de guarda aos
portões tinham visto o brilho das suas bandeiras a aproximar-se e
anunciaram a sua chegada no interior.
De todos os edifícios que orlavam as paredes do pátio do
maenol de Owain, das cavalariças à sala das armas e ao salão, bem
como da série de aposentos para hóspedes, surgiram os membros
da casa para receber e para desejar as boas-vindas aos seus
visitantes. Acorreram cavalariços para tomar conta dos cavalos,
escudeiros com jarros e chifres. Hywel ab Owain, que tinha
distribuído meticulosamente as suas atenções hospitaleiras durante
a viagem, indo amavelmente de cavaleiro em cavaleiro como
representante do seu pai, e sem dúvida reparando em todas as
tensões entre eles, tendo em mente os interesses do pai, foi o
primeiro a desmontar, tendo pegado imediatamente nas rédeas do
príncipe, num elegante gesto de respeito filial, antes de entregar o
cavalo ao cavalariço que estava à espera e de beijar a dama que
tinha saído do salão de madeira para dar as boas vindas ao seu
senhor. Não era a mãe dele! Os dois rapazes que saíram pela porta
do salão e desceram os degraus aos saltos atrás da dama eram
dela, ágeis diabinhos morenos com cerca de dez e sete anos, a
gritar de excitação e com uma confusão de cães a enrolar-se à volta
dos seus pés. A mulher de Owain era filha de um príncipe de
Arwystli, do centro de Gales, e os seus irrequietos filhos tinham a
sua cor morena. Mas um rapaz mais velho, com talvez quinze ou
dezesseis anos, desceu as escadas atrás deles com uma atitude
mais circunspecta, dirigiu-se diretamente a Owain com um ar de
autoridade e confiança, e foi abraçado com um afeto que não
deixava lugar para dúvidas. Este rapaz tinha o cabelo claro do pai,
mas da cor do ouro puro, e o impressionante garbo masculino do
seu progenitor refinara-se numa espantosa beleza. Alto, ereto, com
a graciosidade de movimentos de um atleta, ele não podia emergir
na companhia de quem quer que fosse sem que se reparasse nele,
e até mesmo ao longe o azul nórdico luminoso dos seus olhos era
tão límpido como se um sol interior brilhasse através de cristais de
safira. O Irmão Mark viu-o e susteve a respiração.
— Filho dele? — murmurou ele, espantado.
— Mas não dela — disse Cadfael. — É outro como Hywel.
— Não pode haver muitos assim no mundo — disse Mark,
olhando-o atentamente. Ele sempre se considerara o mais feio e
insignificante dos mortais e observava a beleza nos outros com
particular deleite.
— Só há um, rapaz, como muito bem sabes, pois só há um de
cada homem que jamais existiu, moreno ou louro. E, no entanto —
admitiu Cadfael, reconsiderando a singularidade do invólucro físico,
se não da alma que o habita — nós estamos próximos de duplicar
este lá em casa, em Shrewsbury. O rapaz chama-se Rhun. Se
olhares para o nosso Irmão Rhun, uma vez que a Santa Winifred o
aperfeiçoou, poderás pensar que um deles é um reflexo miraculoso.
Até mesmo no nome! E seguramente, pensou Mark, recordando
com prazer o mais jovem dos que tinham sido seus irmãos em
Shrewsbury, era assim que devia ser o molde de um príncipe, do
filho de um príncipe... e não menos, um santo, o protegido de um
santo. Todo radiosidade e claridade, todo franqueza e serenidade no
rosto. Não era de admirar que o seu pai, reconhecendo um prodígio,
o amasse mais do que aos outros.
— Gostaria de saber — disse Cadfael, em parte para si próprio,
lançando involuntariamente uma sombra sobre a contemplação da
luz por parte de Mark — como é que os dois dela olharão para ele
quando forem todos adultos.
— É impossível — disse Mark com firmeza — que eles alguma
vez lhe queiram mal, mesmo que a ganância pela terra transforme
por vezes irmãos em inimigos. Este jovem não seria capaz de odiar.
Junto dele, uma voz fria e seca comentou ironicamente: —
Irmão, eu invejo a tua certeza, mas não a partilharia por nada deste
mundo... a queda é demasiado mortal. Não há ninguém que não
possa ser detestado, por mais improvável que pareça. Nem
ninguém que não possa ser amado, contra toda a razão.
Cuhelyn tinha-se aproximado sem que eles se tivessem dado
conta, abrindo caminho por entre o movimento de homens e
cavalos, cães, criados e crianças. Apesar da sua soturna
intensidade, ele era um homem muito calmo, discreto em todos os
seus movimentos. Ao ouvir a observação inesperada, Cadfael virou-
se, mesmo a tempo de ver o olhar atento dos olhos astuciosos do
jovem, naquele momento fixos com um afeto irônico, indulgente, no
rapaz Rhun, avivar-se e esfriar quando outra figura se interpôs, e
seguir a azáfama com uma fixidez que, ao princípio, sugeriu a
Cadfael, apenas um interesse distante mas que, numa questão de
segundos, endureceu numa composta mas indubitável hostilidade.
Talvez até mais que hostilidade, alguma desconfiança contida mas
implacável.
Um jovem com a idade de Cuhelyn e não muito diferente dele
em estatura e cor, embora com o rosto mais magro e um pouco
mais alto, mantivera-se um pouco distante, a observar a azáfama à
sua volta, de braços cruzados e com os ombros encostados à
parede do piso inferior, como se aquela chegada tumultuosa lhe
dissesse menos respeito do que aos restantes membros da casa.
Subitamente, ele abandonou aquela atitude distante e moveu-se,
atravessando no meio de Cuhelyn e do par abraçado, pai e filho,
encobrindo o rosto radioso de Rhun. Afinal, havia ali algo que
interessava ao jovem, ele tinha avistado alguém que significava
mais para ele do que os clérigos de Santo Asaph ou os jovens
nobres da guarda de Owain.
Cadfael seguiu a sua impetuosa passagem através da multidão
e viu-o agarrar na manga de um cavaleiro que descia do cavalo. O
mesmo toque, o mesmo encontro que tinha tornado tensos todos os
traços do rosto de Cuhelyn. Bledri ap Rhys virou-se, ficou frente a
frente com o jovem que o abordara, reconheceu claramente alguém
conhecido e cumprimentou-o disfarçadamente. Não foi um gesto de
boas-vindas muito exuberante, mas houve, em ambas as partes, um
lampejo momentâneo de cordialidade e reconhecimento, antes de
Bledri fazer com que o seu rosto ficasse formalmente inexpressivo,
e o rapaz aceitou a sugestão e deu início ao que parecia ser a mais
habitual das amabilidades da corte. Não havia, aparentemente,
necessidade de fingir que não se conheciam suficientemente bem,
mas havia toda a necessidade de manter o conhecimento em
termos meramente corteses.
Cadfael olhou por um pequeno instante por cima do ombro para
o rosto do Cuhelyn e perguntou simplesmente: — Gwion?
— Gwion!
— Eles eram muito chegados? Estes dois?
— Não. Não mais chegados do que devem ser dois homens
que servem o mesmo senhor.
— Isso poderá ser suficientemente chegado para fazer o mal —
disse Cadfael abruptamente. — Tal como me disse, o seu homem
deu a sua palavra de que não iria tentar fugir. Ele não jurou
renunciar à sua fidelidade para além disso.
— É bastante natural que ele goste de ver outro vassalo —
disse Cuhelyn num tom firme. — Ele vai cumprir a sua palavra.
Quanto a Bledri ap Rhys, eu me certificarei de que cumpre os
termos da sua estadia entre nós. — Ele sacudiu-se um pouco e
pegou nos dois pelo braço. O príncipe, a mulher e os filhos estavam
a subir as escadas que iam dar ao salão, seguidos, sem pressa, dos
membros da casa mais chegados. — Venham, Irmãos, permiti-me
que seja o seu guia aqui. Vou levar-vos aos seus aposentos e
mostrar-vos a capela. Usem-na como pretenderem, o capelão do
príncipe irá dar-se a conhecer.
Na privacidade dos aposentos que lhes foram atribuídos,
protegidos pela parede do maenol, o Irmão Mark estava sentado,
revigorado e pensativo, a recordar, com olhos cinzentos bem
abertos, tudo o que acontecera durante a chegada a Aber. Por fim,
disse: — O que mais me despertou a curiosidade e o espanto foi a
semelhança entre aqueles dois... os jovens vassalos de Anarawd e
Cadwaladr. Não é uma mera questão da mesma idade, do mesmo
tipo de corpo, do mesmo gênero de rosto, é a mesma paixão dentro
deles. Em Gales, Cadfael, esta é outra forma de lealdade, diferente
da dos normandos, ou, pelo menos, é o que me parece. Eles estão
em lados opostos, o teu Cuhelyn e este Gwion, e podiam ser
irmãos.
— E como irmãos deviam, embora por vezes não o façam,
respeitar-se mutuamente e gostar um do outro. O que não os
impediria de se matarem — admitiu Cadfael — se houvesse um
conflito entre os seus senhores no campo de batalha.
— É o que eu acho que está tão errado — disse Mark num tom
sério. — Como é que aqueles jovens conseguem olhar um para o
outro e não se ver a si próprios? Ainda mais agora que vivem juntos
na mesma corte e admitiram sentir afeto um pelo outro?
— Eles parecem gêmeos, tendo um nascido canhoto e o outro
destro; são ao mesmo tempo duplos e opostos. Eles podiam matar
sem maldade, e morrer sem maldade. Que Deus não permita —
disse Cadfael — que alguma vez se chegue a esse ponto. Mas uma
coisa é certa. Cuhelyn estará atento a todos os momentos em que o
seu reflexo se encontrar com Bledri ap Rhys e tomará nota de todas
as palavras e todos os olhares que eles trocarem. Porque eu acho
que ele sabe um pouco mais a respeito do enviado de Cadwaladr do
que nos contou.
Ao jantar, no salão de Owain, havia boa comida, muito hidromel
e cerveja, e música de harpa da melhor. Hywel ab Owain cantou,
improvisando sobre a beleza de Gwynedd e o esplendor da sua
história, e o coração recalcitrante de Cadfael despiu o hábito
durante meia hora e seguiu os versos até às montanhas do interior
de Aber e através do espelho pálido de Lavan Sands até ao
cemitério real de Llanfaes em Anglesey. Na juventude, as suas
aventuras tinham-no levado para leste, agora, na sua idade
avançada, os olhos e o coração voltavam-se para oeste. Todos os
céus, todos os santuários dos abençoados ficavam a oeste, em
todas as lendas e em todas as imaginações, pelo menos para os
homens de origem celta; uma meditação apropriada para os velhos.
No entanto, ali no llys real de Gwynedd, Cadfael não se sentia
velho.
Também não parecia que os seus sentidos estivessem menos
apurados, mesmo quando se comprazia nos seus sonhos, pois
encontrava-se suficientemente atento para detectar o momento em
que Bledri ap Rhys fez deslizar o braço pela cintura de Heledd
quando esta lhe serviu hidromel. Nem perdeu a rigidez gélida do
rosto do Cônego Meirion quando viu a cena, nem a intencionalidade
com que Heledd, bem consciente do mesmo olhar malévolo, se
coibiu de se libertar imediatamente e disse uma palavra sorridente
ao ouvido de Bledri, que tanto poderia ter sido uma maldição como
um elogio, embora não houvesse qualquer dúvida sobre o modo
como o pai dela a interpretou. Bem, se a moça estava a brincar com
o fogo, de quem era a culpa? Ela vivera com o pai durante muitos
anos e tinha sido uma filha leal, afetuosa; ele tinha obrigação de a
conhecer melhor, o suficiente para confiar nela. Bledri ap Rhys
servia-lhe apenas para ela se vingar do pai que estava com
tamanha pressa de se livrar dela.
Pensando bem, também não parecia que Bledri ap Rhys
estivesse seriamente interessado em Heledd. Ele fez o gesto de
admiração e corte quase distraidamente, como se esse fosse o
comportamento que, de acordo com o uso, era esperado dele, e
embora o gesto tivesse sido acompanhado por um elogio sorridente,
ele largou-a assim que ela se afastou, e o seu olhar recaiu
novamente num determinado jovem sentado entre os nobres da
guarda na mesa inferior. Gwion, o último refém obstinado que se
recusava a renunciar à sua lealdade absoluta para com Cadwaladr,
estava sentado em silêncio no meio dos seus pares e inimigos,
alguns dos quais, como Cuhelyn, se tinham tornado seus amigos.
Durante o festim, ele mantivera-se calado e guardara os seus
pensamentos para si próprio, não olhando sequer em volta. Mas
sempre que erguia o olhar, era em Bledri ap Rhys que os seus olhos
pousavam, e Cadfael viu-os trocar um olhar breve e vivo pelo menos
duas vezes, do tipo que os aliados utilizam para transmitir mundos
de significado quando é impossível falar abertamente.
Aqueles dois vão arranjar forma de se encontrarem em privado
antes da noite chegar ao fim, pensou Cadfael. E com que
finalidade? Não é Bledri que procura afincadamente um encontro,
embora ele tenha andado em liberdade e se suspeite que tenha
algum assunto secreto a transmitir. Não, é Gwion que quer, exige e
contar em ser escutado por Bledri. É Gwion que tem um objetivo
importante e urgente que, para ser atingido, precisa de um aliado.
Foi Gwion que deu a sua palavra em como não iria deixar o cativeiro
suave de Owain. Bledri ap Rhys não o fez.
Bem, Cuhelyn garantira que Gwion estava de boa fé e jurara
vigiar constantemente Bledri. Mas pareceu a Cadfael que o llys era
suficientemente grande e suficientemente complexo para lhe
proporcionar uma vigilância difícil, se aqueles dois estivessem
decididos a escapar-lhe.
A dama tinha permanecido com os filhos em privado e não
jantara no salão, e o príncipe também se retirara cedo para os seus
aposentos, pois estivera ausente da família durante alguns dias. Ele
levou o seu filho preferido com ele e deixou Hywel a presidir à mesa
até os seus hóspedes decidirem retirar-se. Todos os homens tinham
agora liberdade para mudar de lugar ou para sair para apanhar o ar
fresco da noite, e houve um movimento considerável no salão; e,
com o barulho das muitas conversas e da música dos harpistas,
com o fumo dos archotes e a obscuridade dos cantos sombrios,
quem ia conseguir manter um olho atento num homem entre tantos?
Cadfael reparou que Gwion tinha deixado a companhia dos jovens
da casa, mas Bledri ap Rhys continuava sentado no seu modesto
lugar perto da base da mesa alta, bebendo serenamente o seu
hidromel — mas com moderação, reparou Cadfael — e observando
atentamente tudo o que se passava à sua volta. Ele pareceu estar
cautelosamente impressionado com a força e com a rígida ordem da
casa real, bem como com o número, a disciplina e a confiança dos
jovens da guarda.
— Eu penso — disse o Irmão Mark em voz baixa ao ouvido de
Cadfael — que, se formos agora, talvez tenhamos a capela só para
nós.
Eram quase horas das Completas. O Irmão Mark não teria
descanso se negligenciasse o ofício religioso. Cadfael pôs-se de pé
e foi com ele, saindo pela porta do salão para o frio e para a
frescura da noite e atravessando o pátio interior até à capela de
madeira junto do muro exterior. Ainda não estava muito escuro nem
era muito tarde, e os bebedores determinados que ainda se
encontravam no salão não poriam ainda termo ao convívio, mas nas
passagens sombrias entre os edifícios do maenol, os que tinham
obrigações a cumprir movimentavam-se sem pressa e em voz baixa,
desempenhando as suas tarefas habituais com a languidez tranquila
do final de um longo e satisfatório dia.
Ainda estavam a alguns metros da porta da capela quando um
homem emergiu desta e virou para a fila de aposentos que orlava o
muro do pátio, desaparecendo numa das passagens estreitas atrás
do salão. Ele não passou muito perto deles, e podia ser qualquer um
dos frequentadores mais altos e mais velhos da corte de Owain.
Não tinha pressa e dirigia-se tranquilamente e com um ar um pouco
cansado para o seu local de repouso noturno, no entanto, a mente
de Cadfael estava tão constantemente concentrada em Bledri ap
Rhys que, mesmo ao lusco-fusco cada vez mais acentuado, ele
tinha quase a certeza da identidade do homem.
Teve a certeza absoluta quando entraram na capela pouco
iluminada pelo pavio rosado de uma lamparina colocada em cima do
altar, e viu os contornos sombrios de um homem ajoelhado um
pouco ao lado do pequeno lago de luz. Este não se apercebeu
imediatamente da presença deles ou, pelo menos, pareceu não ter
reparado nela, embora eles tivessem entrado sem grande cuidado
em preservar o silêncio; e quando pararam e se deixaram ficar
imóveis para não interromper as suas orações, ele não deu qualquer
sinal e continuou curvado e preocupado, com o rosto na sombra.
Por fim, moveu-se, suspirou e pôs-se de pé e, ao passar por eles a
caminho da saída, desejou-lhes "Boas-noites, Irmãos!" em voz
baixa. A pequena luz vermelha da lamparina do altar desenhou
claramente o seu perfil no ar, mas apenas durante um momento,
tempo suficiente, contudo, para mostrar com nitidez os traços
jovens, intensos e taciturnos de Gwion.
Há muito que as Completas tinham terminado, já passava da
meia-noite, e eles estavam a dormir tranquilamente nos pequenos
aposentos que partilhavam quando se deu o alarme. Os primeiros
sinais, um clamor súbito ao portão principal do maenol, o ruído
surdo de cascos a entrar, a agitada troca de vozes entre cavaleiro e
sentinela, passaram distantes, como um sonho, pelos sentidos de
Cadfael sem quebrar o seu sono, mas o ouvido mais jovem de Mark
e a sua mente hiperativa devido à excitação do dia acordaram-no
mesmo antes de o murmúrio de vozes se transformar em ordens
dadas em voz alta, e os homens da casa começarem a reunir-se no
pátio, prontos mas sonolentos, vindos dos recantos do salão e dos
inúmeros aposentos do maenol. Seguidamente, o que restava do
repouso da noite foi estilhaçado pelo som de uma corneta, e Cadfael
rolou do seu cobertor para o chão, completamente acordado e
pronto para a ação.
— O que se passa?
— Entrou alguém a cavalo. Cheio de pressa. Apenas um
cavaleiro.
— Eles não iam acordar a corte por causa de uma
insignificância — disse Cadfael, agarrando nas sandálias e
dirigindo-se para a porta. A corneta voltou a soar, e os ecos faziam
ricochete entre os edifícios do llys do príncipe, suavizando a sua
aspereza nas paredes. No pátio aberto, os jovens acorreram,
armados, à chamada, e o murmúrio das vozes, ainda num tom baixo
por ser noite, foi aumentando, tendo-se transformado num rugido
mudo, sem palavras, como a maré numa tempestade. De todas as
portas abertas um fio de luz de candeeiros e velas apressadamente
acendidos jorrava para o escuro, fazendo aparecer um rosto
reconhecido no meio da multidão. Um cavalo exausto que tivera
uma viagem dura estava a ser conduzido com a cabeça caída em
direção às cavalariças, e o seu cavaleiro, ignorando as inúmeras
mãos que se estendiam para o segurar e as inúmeras vozes que lhe
faziam perguntas, abria caminho por entre a multidão e dirigia-se
para o salão. Mal tinha chegado ao fundo dos degraus quando a
porta acima dele se abriu e Owain apareceu com o seu roupão de
pele, grande e escuro de encontro à luz do interior, com o escudeiro
que tinha corrido a acordá-lo com a notícia da chegada ao seu lado.
— Aqui estou eu — disse o príncipe em voz alta, clara e bem
desperta. — Quem quer falar comigo? — Quando ele se aproximou
da beira das escadas, a luz vinda do interior recaiu sobre o rosto do
mensageiro, e Owain reconheceu-o. — És tu, Goronwy? De
Bangor? Que notícias trazes?
O mensageiro mal dobrou o joelho. Ele era conhecido e de
confiança, e a cerimônia era um desperdício de momentos
preciosos.
— Meu senhor, ao princípio da noite chegou um mensageiro
com notícias de Carnarvon, e eu trouxe-vos essas notícias o mais
rapidamente que o meu cavalo conseguiu. Por volta das Vésperas,
foram avistados barcos a oeste de Abermenai, uma frota grande de
guerra. O marinheiro diz que são barcos dinamarqueses do reino de
Dublin que vêm atacar Gwynedd e obrigar-vos a agir. E que
Cadwaladr, o seu irmão, vem com eles! Ele trouxe-os até cá por
despeito para se vingar e ser reinstalado. A lealdade que não
conseguiu manter por amor, comprou ele com a promessa de ouro.
Num país sob o domínio de Owain, a invasão da desordem
poderia provocar uma consternação momentânea, mas não podia
ter esperança de, por sua vez, dar azo à desordem. A sua mente
era demasiado rápida e resoluta para albergar o caos. Antes de o
rugido surdo de ira ter envolvido o pátio, o comandante da guarda
do príncipe estava ao seu lado, à espera de ordens. Eles
compreendiam-se demasiado bem para precisar de muitas palavras.
— Esta notícia é segura? — perguntou Owain.
— É, sim, meu senhor. O próprio mensageiro viu-os das dunas.
Demasiado distante para ter a certeza de quantos barcos eram, mas
sem qualquer dúvida acerca de onde eles vinham e poucas dúvidas
sobre o motivo. Sabia-se que ele tinha fugido para junto deles. Por
que motivo havia de voltar com uma força tão grande a não ser para
um ajuste de contas?
— Ele o terá — disse Owain tranquilamente. — Quando é que
eles deverão desembarcar?
— Antes da manhã, seguramente, meu senhor. Eles vinham à
vela, e há um vento constante de oeste.
Owain refletiu durante um longo momento. Talvez um quarto
dos cavalos que estavam nas cavalariças tivesse feito uma viagem
longa, mas não dura, no dia anterior, e um igual número dos seus
homens armados tinha feito essa mesma viagem e estivera
alegremente no salão até noite alta. E a viagem que agora
enfrentavam seria urgente e rápida.
— Pouco tempo — disse ele, refletindo — para organizar
sequer metade de Gwynedd, mas vamos ver se temos reservas e
reuniremos todos os homens disponíveis no caminho entre aqui e
Carnarvon. Preciso de seis mensageiros, um que vá agora à nossa
frente, os outros para levar as minhas ordens através do resto de
Arlechwedd e Arfon. Chamem-nos a Carnarvon. Poderemos não
precisar deles, mas não há mal nenhum em termos certeza. — Os
seus escrivães ouviram as suas palavras e desapareceram, com
uma calma louvável, para prepararem as ordens seladas que os
mensageiros levariam aos chefes dos dois clãs antes do fim da
noite. — Agora, todos os homens que pegam em armas — disse
Owain, erguendo a voz de modo a que esta chegasse às paredes e
ecoasse — devem ir para a cama repousar o mais que puderem.
Temos que nos reunir à primeira luz do dia.
Cadfael, que estava a ouvi-lo na orla da multidão, aprovou. Os
mensageiros podiam certamente cavalgar de noite, mas deslocar
uma hoste disciplinada através do país no escuro era um
desperdício de tempo que poderia ser mais bem utilizado a
conservar a sua energia. Embora com relutância, os guerreiros da
casa dispersaram; apenas o comandante da guarda pessoal de
Owain voltou para junto do seu senhor, depois de se ter assegurado
da obediência rígida dos seus homens.
— Tira as mulheres do nosso caminho — disse Owain por cima
do ombro. A sua mulher e as damas desta tinham permanecido
junto da porta aberta do salão, silenciosas, com exceção dos
murmúrios agitados das mais jovens. Elas foram-se embora com um
ar inquieto e a olhar frequentemente para trás, mais curiosas e
excitadas do que alarmadas, mas foram-se embora. A princesa
tinha uma mão tão firme sobre os membros da sua casa como
Owain tinha sobre os seus guerreiros. Ficaram os administradores e
conselheiros mais velhos, e os criados que poderiam vir a ser
necessários para qualquer serviço da sala de armas, das
cavalariças, dos armazéns, da destilaria ou da padaria. Os homens
armados também tinham outras necessidades para além das suas
lanças e arcos, e a adição de várias centenas de homens a uma
guarnição significava que um comboio de abastecimentos se
seguiria.
Cadfael reparou que entre o grupo menor que agora rodeava o
príncipe se encontrava Cuhelyn, pelo aspecto acabado de sair da
cama, talvez mesmo arrancado ao sono, pois vestira-se
apressadamente, ele que habitualmente gostava de apresentar-se
elegantemente vestido. E estava Hywel, vigilante e calado ao lado
do pai. E Gwion, atento e imóvel, um pouco afastado, tal como na
primeira vez que Cadfael o vira, como se se mantivesse sempre
indiferente às preocupações de Owain e de Gwynedd, por mais
honrosamente que as reconhecesse. E o Cônego Meirion e o
Cônego Morgant, que se tinham aproximado ao serem confrontados
com uma crise que não tinha nada a ver com Heledd e que não
representava uma ameaça direta a qualquer deles. Eles também
eram espectadores, e não participantes. A sua tarefa era levar a
noiva relutante em segurança até Bangor, para os braços do seu
noivo, e não havia barcos dinamarqueses perto de Bangor, nem era
provável que viesse a haver. Heledd tinha sido colocada em
segurança junto das mulheres da princesa, e sem dúvida que
estaria agora a conversar animadamente com elas sobre o que lhe
parecia ser uma diversão quase agradável.
— Então isto — disse Owain no silêncio relativo que aguardava
as suas ordens — são as consequências funestas que Bledri ap
Rhys tinha em mente. Ele sabia perfeitamente bem o que o meu
irmão tinha planeado. Ele avisou-me. Deixá-lo esperar a sua vez,
nós temos outras coisas a fazer antes do amanhecer. Se ele estiver
deitado, deixá-lo lá estar.
Os mensageiros escolhidos para transmitir as suas ordens aos
príncipes vassalos estavam a reaparecer envergando o manto para
a cavalgada noturna, e os cavalariços surgiram das cavalariças a
conduzir os cavalos selados e prontos para eles. O cavalo de guia
vinha quase a trote, conduzido pelo primeiro cavalariço, e o homem,
num estado de contida agitação, disse rapidamente antes sequer de
parar.
— Meu senhor, desapareceu um cavalo das cavalariças,
juntamente com os arreios! Voltamos a verificar, pois queríamos
proporcionar-lhe o melhor para a manhã. Um ruano novo, bom, sem
uma única mancha branca, teliz, sela, rédeas e tudo o que lhe
pertencia.
— E o cavalo que ele montou até cá... Bledri ap Rhys? O cavalo
que ele levou consigo para Santo Asaph? — perguntou Hywel
secamente. — Um cavalo cinzento, com manchas mais claras nos
flancos? Ele ainda aí está?
— Eu sei qual é, meu senhor. Não se compara ao ruano. Ainda
está exausto de ontem. Ainda está aqui. O ladrão, quem quer que
ele seja, soube escolher.
— E queria ir depressa! — disse Hywel, furioso. — Ele
certamente que desapareceu. Foi ter com Cadwaladr e os seus
dinamarqueses irlandeses em Abermenai. Como é que ele
conseguiu sair pelo portão? E com um cavalo!
— Vão, alguns de vós, interrogar o vigia — ordenou Owain,
mas sem grande preocupação e sem se voltar para ver quem correu
a cumprir a sua ordem. As sentinelas de todos os portões do maenol
eram homem em quem ele confiava, conforme testemunhava o fato
de nenhum deles ter deixado o seu posto e vindo a correr para ali,
por maior que tenha sido a curiosidade que pudesse ter sentido a
respeito do tumulto audível que tinha lugar longe do seu campo de
visão.
Só ali na porta principal, por onde o mensageiro de Bangor
tinha entrado, é que um homem se movera do seu posto, e esse
fora o oficial da guarda.
— Não existe qualquer forma de fechar um homem aqui dentro
— refletiu Owain filosoficamente — se ele tiver o vigor necessário e
estiver decidido a sair. Por uma causa suficientemente importante, é
possível trepar por qualquer muro jamais construído. E ele é um
homem do meu irmão de corpo e alma — ele virou-se novamente
para o mensageiro cansado. — No escuro, um viajante sensato iria
pela estrada. Enquanto vinhas para cá encontraste algum homem
que seguisse para oeste?
— Não, meu senhor, nem um. Não desde que atravessei o
Cegin, e esses eram homens eram nossos, meus conhecidos, e não
estavam com pressa.
— A esta hora, ele já deve estar fora do nosso alcance mas,
pelo menos, vamos mandar partir Einion com as minhas ordens.
Quem sabe? Um cavalo pode ficar coxo, se tiver uma viagem difícil
durante a noite, um homem pode perder-se em terras que não são
suas. Talvez ainda o possamos apanhar — disse Owain, virando-se
para o administrador que tinha ido ver como era feita a vigia nas
portas traseiras do llys. — Então?
— Ninguém foi interpelado pelas sentinelas, ninguém passou.
Embora ele possa ser um estranho, eles já o conhecem de vista.
Seja como for que ele fugiu, não foi pelos portões.
— Eu nunca pensei que tivesse sido — concordou o príncipe
num tom sombrio. — Eles sempre fizeram uma vigia meticulosa.
Bem, envia os mensageiros, Hywel, e depois vem comigo para
dentro, para a minha câmara privada. Cuhelyn, vem conosco. — Ele
olhou rapidamente em volta enquanto os seus mensageiros
montavam. — Gwion, isto não é culpa tua nem tem nada a ver
contigo. Vai-te deitar. E continua a manter a tua palavra em mente.
Se a retirares — acrescentou ele secamente — ficarás fechado a
cadeado enquanto estivermos ausentes.
— Eu dei-a — disse Gwion num tom altivo — e vou mantê-la.
— E eu aceitei-a — disse o príncipe, tornando-se menos severo
— e confio nela. Pronto, podes ir, tens alguma coisa a fazer aqui?
Teria ele, de fato, alguma coisa a fazer, pensou Cadfael com
ironia, a não ser invejar a todos nós a liberdade que se negara a si
próprio? E, no mesmo instante, veio-lhe o pensamento que Bledri ap
Rhys, o fogoso defensor que tão descaradamente desculpara o seu
senhor e ameaçara em seu nome, não tinha dado a sua palavra e
tinha tido, quase certamente, uma conversa muito privada e urgente
com Gwion na capela do llys algumas horas antes, e estava agora a
caminho de se encontrar com Cadwaladr em Abermenai, sabendo
muito sobre os movimentos, as forças e as defesas de Owain.
Gwion nunca tinha prometido nada, a não ser não fugir. No interior
dos muros ele podia movimentar-se à vontade, talvez a sua
liberdade se estendesse até ao tref situado no exterior do portão.
Em troca disso, ele dera o seu consentimento à detenção. Ninguém
tinha prometido o mesmo em nome de Bledri ap Rhys. E Gwion não
ocultara a sua forte lealdade a Cadwaladr. Poderia ele ser acusado
de deslealdade por ter ajudado o seu aliado inesperado a fugir e
voltar para junto do seu príncipe? Uma boa questão! Conhecendo,
ainda que apenas em segunda mão, através de Cuhelyn, a teimosa
e ardente lealdade de Gwion, este poderia muito bem ter avisado
repetidas vezes os seus captores sobre os limites que impunha à
sua palavra, e sobre o fervor com que agarraria qualquer
oportunidade de servir o senhor que tão obstinadamente amava,
mesmo àquela distância.
Gwion tinha-se virado, lenta e hesitantemente, acatando a
ordem para que se fosse embora, mas depois parou, deixou-se ficar
com a cabeça curvada e um passo indeciso, até que, ao fim de um
momento, se dominou abruptamente e começou a caminhar na
direção da capela; da porta aberta, a pequena centelha vermelha
atraía-o como um ímã. E por que é que Gwion iria rezar agora? Por
um desembarque bem sucedido para os mercenários
dinamarqueses de Cadwaladr, e um acordo rápido e sem sangue
entre irmãos, em vez de uma guerra desastrosa? Ou pela sua
própria paz de espírito? Possuído de um forte sentido de honra, ele
poderia considerar até mesmo a sua lealdade um pecado no caso
de uma violação involuntária do seu juramento. Tinha uma mente
complicada, sensível a qualquer auto-repreensão, por mais venial
que o pecado fosse.
Cuhelyn, que era quem talvez melhor o conhecia e quem mais
se parecia com ele, tinha-o visto afastar-se com um ar pensativo,
chegando até a dar dois passos impulsivos para o seguir, antes de
refletir melhor e voltar para junto de Owain. O príncipe e os
comandantes subiram os degraus para o salão e aposentos
privados, e desapareceram no interior. Cuhelyn seguiu-os sem voltar
a olhar para trás, e Cadfael e Mark, juntamente com alguns criados,
ficaram no pátio quase vazio, e o silêncio sucedeu ao clamor, e a
imobilidade escura ao tumulto de movimento. Tudo era conhecido e
compreendido, tudo estava preparado e seria tratado com
competência.
— E isto não contempla qualquer tarefa para nós — disse o
Irmão Mark em voz baixa ao lado de Cadfael.
— Nada, a não ser selar os cavalos amanhã e seguir para
Bangor.
— Sim, eu tenho que o fazer — concordou Mark. Havia uma
curiosa nota de inquietação e pena na sua voz, como se ele
considerasse quase uma incúria da sua humanidade o fato de se
afastar daquela crise para cumprir a sua própria missão, deixando
tudo confuso e incompleto. — Eu estive a pensar, Cadfael... Vigiar
dos portões, todos os portões, foi considerado suficiente? Achas
que o homem era vigiado, mesmo aqui dentro, ou será que o fato de
estar rodeado de paredes era suficiente? Não havia ninguém de
guarda à porta dos seus aposentos e ninguém o seguiu do salão até
à cama?
— Da capela até à cama — corrigiu Cadfael — se é que alguém
estava encarregado disso. Não, Mark, nós o vimos. Não havia
ninguém a segui-lo. — Ele olhou através do pátio, para o beco em
que Bledri tinha desaparecido quando saiu da capela. — Não
estaremos todos a tirar conclusões precipitadas? O príncipe tem
assuntos mais urgentes entre mãos, é verdade, mas não deveria
alguém confirmar o que todos nos apressamos a acreditar?
Gwion emergiu lenta e silenciosamente da porta aberta da
capela, fechando-a atrás de si, pelo que a pequena centelha
vermelha desapareceu. Ele atravessou o pátio com um ar cansado,
aparentemente sem reparar nos dois homens que estavam imóveis
e calados nas sombras, até Cadfael dar um passo em frente para o
interceptar, procurando suavemente informação junto de alguém
que deveria ser capaz de a fornecer.
— Um momento! Sabes em qual destes inúmeros aposentos
este Bledri ap Rhus dormiu? — E quando o jovem parou
abruptamente, virando-se para ele com um ar de espanto e
desconfiança, ele prosseguiu: — Eu vi-te cumprimentá-lo ontem
quando chegamos, pensei que talvez soubesses. Podias ter ficado
contente por conversar com um velho conhecido enquanto ele aqui
estivesse.
Por qualquer motivo, o longo silêncio foi mais eloquente do que
o que foi finalmente dito em resposta. Teria sido bastante natural
responder imediatamente: "Por que é que quer saber? O que
interessa isso agora?", uma vez que o aposento deve estar vazio,
se o homem que lá dormiu fugiu durante a noite. A pausa tornou
claro que Gwion sabia bastante bem quem o surpreendera na
capela, e tinha bem a noção de que eles deviam ter visto Bledri a
sair de lá. Ele tivera tempo para pensar antes de falar, e o que disse
foi: — Eu fiquei contente por ver um homem da minha própria tribo.
Eu estou refém aqui há mais de meio ano. Já devem saber isso. O
administrador tinha-lhe dado um dos aposentos junto do muro a
norte. Eu posso mostrar-lhe. Mas que diferença faz isso agora? Ele
foi-se embora. As pessoas podem culpá-lo — disse ele num tom
altivo — mas eu não. Se eu fosse livre, teria feito o que ele fez. Eu
nunca fiz segredo sobre qual dos lados tinha a minha fidelidade. E
ainda tem!
— Deus não permita que alguém condene um homem por se
manter fiel — concordou Cadfael tranquilamente. — Bledri tinha o
quarto só para ele?
— Tinha — Gwion encolheu os ombros, numa expressão de
desdém por um interesse que não compreendia, mas aceitava como
significando qualquer coisa para os dois beneditinos errantes,
mesmo que não significasse nada para ele.
— Eu estava pensando — disse Cadfael, desvalorizando a
questão — se não estaremos a tirar conclusões precipitadas só
porque um cavalo desapareceu. Se o aposento dele ficava num
canto remoto do pátio, como muitas paredes até lá, será que ele não
podia ter continuado a dormir mesmo com todo o barulho, e ainda
estar a ressonar em toda sua inocência? Uma vez que ele estava
sozinho, não havia ninguém para o acordar, se ele tivesse um sono
assim tão pesado.
Gwion ficou a fitá-lo nos olhos, com as espessas sobrancelhas
escuras erguidas.
— Bem, isso é verdade, um homem que tivesse bebido o
suficiente podia não ter acordado se não fosse o toque da corneta.
Eu duvido, mas se sente necessidade de ver por si próprio... Não
me fica a caminho, mas eu mostro-lhe. — E sem mais palavras, ele
entrou na passagem que ficava entre o salão e o longo edifício de
madeira do armazém e da sala de armas. Eles seguiram a sua
figura rápida, sombria no escuro, em direção à longa fila de edifícios
abrigados pelo muro exterior.
— A porta dele era a terceira. — Ela estava entreaberta, e não
se via luz nenhuma através da fenda. — Entrem, Irmãos, e vejam
por vós próprios. O mais certo é verem que ele se foi embora,
levando todas as suas coisas consigo.
A fila de pequenos quartos estava construída por baixo da
plataforma de vigia ao longo do muro exterior, e a projetura fazia
sombra sobre ela. Cadfael tinha visto apenas uma escada que ia dar
à plataforma, larga e de fácil acesso mas claramente visível do
portão principal. Além disso, não seria fácil descer no exterior,
exceto com uma corda comprida, pois a galeria projetava-se para
fora da parede, e havia um fosso por baixo dela. Cadfael levou a
mão à porta e abriu-a. Os seus olhos, nessa altura já habituados à
noite e à luz que o céu límpido mas sem lua proporcionava, ficaram
novamente cegos. Não havia qualquer movimento, nem qualquer
som no interior. Ele abriu bem a porta e deu um ou dois passos para
o interior do pequeno quarto.
— Devíamos ter trazido um archote — disse Mark, junto dele.
Ao que parecia, isso não era necessário para mostrar que o quarto
não continha qualquer ser vivo. Mas Gwion, tolerante em relação
àqueles dois visitantes exigentes, sugeriu do limiar: — A braseira
ainda deve estar a arder na casa da guarda. Eu vou buscar luz.
7

Cadfael dera mais um passo para o interior e quase tropeçou


quando o seu pé se enredou silenciosamente numa dobra de
material macio, como se um cobertor amarrotado tivesse sido
atirado da cama para o chão. Ele baixou-se e levou a mão ao tecido
e encontrou algo mais firme dentro dele. Uma manga elevou-se
quando agarrou nela, o calor e o odor da lã agitaram-se no ar e,
quando a levantou, um peso articulado balouçou, suspenso, sólido
no interior do tecido. Ele deixou-o cair suavemente e percorreu-o
com os dedos até chegar a uma bainha grossa e, para além desta, o
toque macio, lasso, de carne humana a arrefecer, mas não
completamente fria. Era, de fato, uma manga e um braço dentro
dela, e uma mão grande, vigorosa no extremo do braço.
— Faz isso — disse ele por cima do ombro. — Traz uma luz.
Vamos precisar de toda a luz que conseguirmos arranjar.
— O que é? — perguntou Mark, atento e ainda atrás dele.
— Segundo todas as indicações, um homem morto. Morto há
algumas horas. E a não ser que tenha lutado com alguém que lhe
impedia a fuga e que ele deixou aqui para contar a história, quem
poderá ele ser senão Bledri ap Rhys?
Gwion veio correndo com um archote e colocou-o no
candelabro da parede, concebido para conter apenas uma lanterna
pequena. Normalmente, nunca seria permitido um archote em
quartos tão pequenos, mas tratava-se de uma crise. Os contornos
do esparso conteúdo da câmara saltaram, nítidos, do escuro; uma
cama desmanchada encostada à parede do fundo, os cobertores
caídos no chão, a impressão de um corpo comprido ainda
discernível na coberta do colchão de palha. Em cima da prateleira
ao lado da cabeceira da cama, à mão do hóspede, havia um
pequeno pires lamparina. Não fora apagado, pois tinha ardido e
restava apenas uma mancha de azeite e o pavio queimado. Por
baixo da prateleira, meio desdobrada, estava uma bolsa de cabedal
e, caídos descuidadamente em cima dela, as calças, os sapatos e a
camisa de um homem, bem como uma capa enrolada de que ele
não precisara durante a viagem. E, ao canto, as botas de montar,
uma delas caída e fora do lugar como se lhe tivessem dado um
pontapé.
E entre a cama e a porta, estendido de costas aos pés de
Cadfael, com as pernas e os braços abertos, a cabeça encostada à
parede de madeira, como se um enorme soco o tivesse levantado
do chão e atirado para trás, estava Bledri ap Rhys com os olhos
semiabertos, os lábios afastados dos seus dentes grandes,
regulares, num esgar contorcido. As saias da sua túnica ondeavam
desordenadamente à sua volta, o corpete tinha-se aberto quando
ele caíra, e por baixo dele, estava nu. À luz trêmula do archote, era
difícil dizer se a mancha escura no maxilar e na face esquerda era
uma sombra ou uma nódoa negra, mas não podia haver qualquer
engano a respeito da ferida por cima do coração e do sangue que
dela escorrera para as dobras de tecido por baixo do seu lado
esquerdo. O punhal que infligira a ferida tinha sido retirado
rapidamente e levado a vida atrás de si.
Cadfael ajoelhou-se ao lado do corpo e abriu com cuidado o
corpete da túnica de lã para observar melhor a ferida à luz trêmula.
Gwion, que estava atrás dele, à porta, hesitante em entrar, respirou
fundo e soltou um enorme soluço que fez com que a chama
vacilasse, e o que pareceu um arrepio vivo percorreu o rosto morto.
— Tem calma — disse Cadfael num tom tolerante, inclinando-se
para fechar os olhos semiabertos. — Porque ele agora está em paz.
Eu bem sei que lhe eras leal. E lamento muito.
Mark estava de pé, calado e imóvel, olhando para baixo com
um ar de impávida compaixão.
— Será que ele tem mulher e filhos? — disse ele por fim.
Cadfael reparou na primeira preocupação de um padre recente, e
aprovou. O primeiro instinto de Cristo poderia ter sido muito
semelhante. Não: "Sem confissão, e com a alma em perigo!" Nem
sequer: "Quando foi a última vez que ele se confessou e recebeu a
absolvição?" mas sim "Quem vai cuidar dos seus filhos?"
— Tem! — disse Gwion. — Tem mulher e filhos. Eu sei. Eu
tratarei disso.
— O príncipe certamente que te dará autorização — disse
Cadfael, levantando-se lentamente. — Temos que ir todos contar-lhe
o que aconteceu. Estamos na sua jurisdição e somos hóspedes em
sua casa, todos nós, incluindo este homem, e isto é assassinato.
Leva o archote, Gwion, que eu fecho a porta.
Gwion obedeceu à voz do estranho sem protestar, embora ela
não tivesse qualquer autoridade sobre ele a não ser a que lhe
atribuísse de sua livre vontade. No limiar, ele cambaleou, com o
archote na mão. Mark pegou-lhe no braço até ele ter recuperado o
equilíbrio e soltou-o com igual cortesia assim que o seu passo se
tornou seguro. Gwion não disse nada, não agradeceu, pois Mark
não precisava de agradecimentos. Ele foi à frente como um arauto,
com o archote na mão, direto aos degraus do salão, e iluminou-os
até estarem no interior.
— Estávamos todos enganados, meu senhor — disse Cadfael
— ao supormos que Bledri ap Rhys tinha fugido da sua
hospitalidade. Ele não foi longe, nem precisou de um cavalo para a
viagem, embora seja a viagem mais longa que um homem pode
fazer. Ele está morto no aposento em que o seu administrador o
alojou. Pelo que lá vimos, ele nunca teve intenção de fugir. Eu não
diria que ele dormiu. Mas certamente que tinha estado deitado na
cama, e seguramente que tinha coberto a sua nudez com a túnica
quando se levantou, para defrontar quem quer que tenha entrado
quando ele estava a descansar. Estes dois que me acompanham
viram o que eu vi e irão confirmá-lo.
— Assim é — disse o Irmão Mark.
— Assim é — disse Gwion.
À volta da mesa do conselho do seu apartamento privado,
austeramente mobilado, o silêncio durou muito tempo, todos os
homens entre os comandantes se imobilizaram, aguardando a
reação do príncipe. Hywel, que estava de pé ao lado do pai, a
colocar um pergaminho à sua frente, tinha ficado parado com a folha
meio desenrolada nas mãos e os olhos muito abertos a fitar
atentamente o rosto de Cadfael.
Owain disse num tom pensativo, mais a digerir do que a
questionar a notícia que lhe fora dada tão subitamente.
— Morto. Bem! — E passado um momento: — E como é que
esse homem morreu?
— Com um punhal no coração — disse Cadfael com toda a
certeza.
— Pela frente? Cara a cara?
— Nós deixamo-lo tal como o encontramos, meu senhor. O seu
próprio médico poderá vê-lo exatamente como nós o vimos. Penso
— disse Cadfael — que foi atingido por um enorme murro que o
atirou contra a parede, pelo que caiu atordoado. Certamente que
quem o atacou estava de frente para ele; esta foi uma confrontação,
não um ataque pelas costas. E sem armas, até essa altura. Alguém
deu um murro, com grande raiva. Mas depois ele foi apunhalado
enquanto estava caído. O sangue escorreu para baixo e juntou-se
nas dobras da túnica debaixo do seu lado esquerdo. Não houve
qualquer movimento. Ele estava inconsciente quando foi
apunhalado. Por alguém!
— O mesmo alguém? — perguntou Owain.
— Quem sabe? É provável. Não é certo. Mas eu duvido que ele
estivesse deitado indefeso durante mais de alguns momentos.
Owain colocou as mãos abertas em cima da mesa à sua frente,
afastando os pergaminhos ali espalhados.
— Está-me dizendo que Bledri ap Rhys foi assassinado.
Debaixo do meu teto. Sob o meu cuidado, independentemente da
forma como ele possa ter chegado, amigo ou inimigo, para todos os
efeitos, ele era um hóspede na minha casa. Isso eu não tolerarei —
ele olhou para além de Cadfael, para o rosto sombrio de Gwion. —
Não deves recear que eu atribua menos valor à vida de um inimigo
honesto do que à de qualquer homem meu — disse ele,
tranquilizando-o generosamente.
— Meu senhor — disse Gwion, num tom muito baixo — disso
eu nunca duvidei.
— Embora tenha que ir tratar de outros assuntos agora — disse
Owain — será feita justiça, se eu conseguir garanti-la, por quaisquer
meios. Quem foi a última pessoa a ver o homem vivo?
— Eu vi-o sair da capela, já tarde — disse Cadfael — e seguir
na direção do seu aposento. O Irmão Mark estava comigo e também
o viu. Mais do que isso, não sei.
— Nessa altura — disse Gwion, com a voz um pouco rouca de
constrangimento — eu estava na capela. Conversei com ele. Fiquei
satisfeito por ver um rosto conhecido. Mas quando ele saiu, não o
segui.
— Serão feitas perguntas — disse Owain — a todos os criados
da casa, que são os que estariam acordados até mais tarde no
maenol. Trata disso, Hywel. Se algum deles teve ocasião de passar
por lá e viu Bledri ap Rhys ou qualquer outro homem a entrar ou sair
tarde da porta dele, traz a testemunha aqui. Temos que nos reunir
assim que o dia nascer, mas ainda temos algumas horas antes do
amanhecer. Se isto puder ser resolvido antes de eu ir lidar com o
meu irmão e os seus dinamarqueses, tanto melhor.
Hywel saiu imediatamente, pousando a sua folha de
pergaminho em cima da mesa e escolhendo dois homens do
conselho para o ajudar na busca. Não haveria descanso nessa noite
para os criados, administradores e criadas da corte de Owain, nem
para os membros da guarda pessoal, nem para os jovens que o
seguiam armados. Bledri ap Rhys tinha vindo a Santo Asaph com a
intenção de fazer o mal, ameaçara fazer o mal, e o preço tinha
recaído sobre a sua própria cabeça, mas os ecos se espalhariam
como a ondulação provocada por uma pedra atirada a um lago e
atormentaria as vidas de todos que ali estavam até o crime ter sido
punido.
— O punhal que foi utilizado — disse Owain, voltando para a
sua investigação como um falcão a lançar-se sobre a presa. — Não
foi deixado na ferida?
— Não foi. Também não observei a ferida tão atentamente que
me atreva a arriscar dizer que tipo de lâmina tinha. Os seus próprios
homens, meu senhor, conseguirão fazê-lo tão bem como eu. Melhor
ainda — disse Cadfael — uma vez que os punhais mudam com os
anos, e há muito que perdi a prática com as armas.
— E disse que ele tinha dormido na cama. Ou pelo menos
tinha-se deitado nela. E o homem não tinha feito quaisquer
preparativos para montar e não deixou qualquer indício de que
tencionava fugir. Não era uma questão tão importante que me
fizesse colocar um homem a vigiá-lo durante a noite. Mas há outro
mistério aqui — disse o príncipe. — Porque, se não foi ele que fugiu
com um dos nossos cavalos, quem foi? Não existe qualquer dúvida
de que o animal desapareceu.
Era uma questão que Cadfael, com a sua preocupação com a
morte de Bledri, nem sequer ponderara. Em algum lugar no fundo
da sua mente ele sentira a arreliadora e indefinível sensação de que
algo mais teria que ser investigado antes do fim da noite, mas nos
breves instantes em que tentou vê-la claramente, ela tinha
desaparecido do canto do seu olho. Subitamente confrontado com o
quebra-cabeças que lhe escapava, ele previu uma longa e
cuidadosa contagem de todas as pessoas que estavam no maenol
para encontrar a única que desaparecera sem deixar rasto. Alguém
mais teria que fazer isso, pois a partida do príncipe ao amanhecer
não poderia sofrer qualquer atraso.
— Eu estou nas suas mãos, meu senhor — disse ele. — tal
como todos nós.
Owain colocou a palma da mão aberta sobre a mesa à sua
frente.
— O meu plano está traçado, e só pode ser alterado quando os
dinamarqueses de Dublin contratados por Cadwaladr forem
enviados de volta para a sua terra, de orelhas murchas. E vocês,
Irmãos, têm o seu próprio caminho a percorrer, com menos pressa
do que o meu, mas também não se devem atrasar. O seu bispo tem
direito a um serviço tão rigoroso como aquele que os príncipes
exigem. Tentemos saber, no tempo que nos resta, qual de nós
poderia ter cometido um assassínio. É possível que esta questão
tenha que ser adiada para outro dia, mas não será esquecida.
Venham, eu quero ver por mim próprio esta desgraça, e depois
trataremos do morto e providenciaremos uma compensação à sua
família. Não era um homem meu, mas ele não me fez mal, e agirei o
mais corretamente possível para com ele.
Voltaram para a reunião na câmara do conselho cerca de uma
hora depois. Nessa altura, o corpo já tinha sido decentemente
colocado na capela, entregue aos cuidados do capelão do príncipe,
e já não era possível saber mais pelo esparso conteúdo do quarto
em que ele morrera. Não restava qualquer arma digna de nota, até
mesmo o fluxo de sangue era reduzido, deixando um pequeno
vestígio, pois o golpe fora certeiro, estreito e preciso. Não era difícil
apunhalar o coração de um homem de uma forma limpa e exata
quando este já estava sem sentidos. Bledri mal teria sentido a morte
a removê-lo do mundo.
— Suponho que ele não era um homem muito amado — disse
Owain enquanto se dirigiam novamente ao salão. — Muitos homens
aqui deviam ter-lhe ressentimento, pois ele mostrou-se bastante
arrogante. Depois disso, talvez não fosse preciso mais do que uma
discussão para fazer com que um homem o agredisse
violentamente. Mas matá-lo? Porque é que qualquer dos meus
homens iria tão longe, quando eu fizera dele meu hóspede?
— Seria necessário um homem muito irado — admitiu Cadfael
— para ir tão longe contra a sua vontade. Mas para desferir um
golpe basta apenas um instante, e menos de um instante para
esquecer toda a precaução. Ele fez alguns inimigos, mesmo até
durante o breve tempo em que cavalgamos juntos. — Era
necessário a todo o custo suprimir nomes, mas ele estava a pensar
no ameaçador olhar assassino do Cônego Meirion ao presenciar a
familiaridade de Bledri com a sua filha, e a consequente ameaça a
uma carreira que o bom cônego não tinha qualquer intenção de pôr
em risco.
— Uma discussão em público não seria um mistério — disse
Owain. — Isso eu teria resolvido. Mesmo que resultasse em morte,
seria paga uma compensação, a culpa não seria toda de uma das
partes. Ele provocou, de fato, o ódio. Mas segui-lo até ao quarto e
arrastá-lo da cama? Isso já é muito diferente.
Atravessaram o salão e entraram na câmara do conselho.
Todos os olhares se voltaram para eles quando entraram. Mark e
Gwion tinham aguardado com os outros. Estavam de pé muito
próximos um do outro, em silêncio, como se o fato de terem
descoberto uma morte juntos os tivesse unido numa amizade
permanente que os diferenciava dos comandantes à volta da mesa
do conselho. Hywel regressou antes do pai e tinha trazido consigo
um dos criados da cozinha, um rapaz moreno e desgrenhado, um
pouco intumescido do sono, mas que ficou bem desperto,
revigorado, com os olhos brilhantes, quando soube que tinha havido
uma morte súbita e que ele tinha algo, por mais insignificante que
fosse, a relatar a esse respeito.
— Meu senhor — disse Hywel — o Meurig aqui foi o último a
passar pelos aposentos em que Bledri ap Rhys estava alojado. Ele
contará o que viu. Ele ainda não disse nada, estávamos à sua
espera.
O rapaz falou com bastante ousadia. Pareceu a Cadfael que ele
não estava muito convencido da importância do que tinha para dizer,
embora lhe agradasse estar ali a declará-lo. Os príncipes que
julgassem se era ou não importante.
— Meu senhor, passava da meia-noite quando acabei o meu
trabalho e atravessei aquele corredor para ir para a cama. Nessa
altura, não havia ninguém por ali, eu era um dos últimos. Não vi
vivalma até chegar à terceira porta daquela fileira, onde agora me
dizem que era onde esse Bledri ap Rhys estava alojado. Havia um
homem à porta, a olhar para o quarto, com a aldraba na mão.
Quando ele me ouviu aproximar fechou a porta e seguiu ao longo do
beco.
— À pressa? — perguntou Owain com rispidez. —
Furtivamente? No escuro, ele podia muito bem afastar-se sem ser
reconhecido.
— Não, meu senhor, nada disso. Ele simplesmente fechou a
porta e foi-se embora. Eu não dei qualquer importância ao assunto.
E ele não se preocupou em não ser visto. Quando passou por mim,
deu-me as boas noites. Como se tivesse estado a acompanhar um
hóspede em segurança até à cama... alguém que tivesse dificuldade
em andar, ou que não conhecesse bem o caminho.
— E tu respondeste-lhe?
— Com certeza, meu senhor.
— Agora diz como é que ele se chama — disse Owain — pois
eu penso que o conhecias suficientemente bem para o chamares
pelo nome nessa altura.
— Chamei, sim, meu senhor. Todos os homens na corte de
Aber o conhecem e gostam dele, embora ele fosse um
desconhecido quando o senhor Hywel o trouxe de Deheubarth. Era
Cuhelyn.
Um sussurro de surpresa percorreu a mesa. Todas as cabeças
se voltaram e todos os olhos se fixaram em Cuhelyn que se deixou
ficar sentado, aparentemente nada perturbado com o fato de ser,
subitamente, o centro das atenções. As suas sobrancelhas
espessas e escuras tinham-se erguido numa expressão de ligeira
surpresa, até mesmo com uma ponta de divertimento.
— Isso é verdade — disse ele simplesmente. — Eu podia ter-
vos dito mas, tanto quanto sabia ou sei agora, podiam lá ter estado
outros depois de mim. Como certamente houve um. O último a vê-lo
vivo, sem dúvida. Mas esse não fui eu.
— No entanto tu não disseste nada sobre o assunto — fez notar
o príncipe tranquilamente. — Por quê?
— É verdade. Não agi muito bem. Era um assunto demasiado
melindroso — disse Cuhelyn. — Abri a boca uma vez para falar,
mas voltei a fechá-la sem dizer nada. Por que é verdade que eu
tinha a morte daquele homem em mente e, apesar de não lhe ter
tocado nem ter discutido com ele, quando o Irmão Cadfael nos disse
que ele estava morto, senti o dedo frio da culpa no meu pescoço. Se
não fosse o acaso e o fato de este rapaz ter aparecido quando foi
mais necessário, sim, eu podia ter sido o assassino de Bledri. Mas
não fui, graças a Deus!
— Por que é que foste lá, e àquela hora? — perguntou Owain,
não dando qualquer indicação se acreditava ou não.
— Fui lá para o confrontar. Para matá-lo em combate. Por que
àquela hora? Porque o ódio tinha levado horas a ferver dentro de
mim, e só então é que eu atingira o ponto de matar. Também, acho
eu, porque queria que ficasse claro, sem sombra de dúvida, que
nenhum outro homem estava envolvido na minha contenda e que
nenhum outro podia ser acusado sequer de saber o que eu tinha
feito — a voz de Cuhelyn manteve-se baixa e calma, mas o seu
rosto tinha ficado tenso e tinham-lhe surgido vincos pálidos sobre as
maçãs do rosto e à volta do ângulo magro e forte do maxilar.
Hywel disse em voz baixa, preenchendo e suavizando a pausa:
— Um homem com um só braço contra um guerreiro experiente com
dois?
Cuhelyn olhou com indiferença para o fio de prata que segurava
o pedaço de linho que cobria o coto do seu braço esquerdo.
— Um braço ou dois, o desfecho teria sido o mesmo. Mas,
quando abri a porta, ele dormia profundamente. Ouvi a sua
respiração, longa e plácida. É um comportamento honesto fazer um
homem acordar, sobressaltado, e desafiá-lo para um duelo de
morte? E enquanto eu estava ali à porta, apareceu Meurig. E eu
fechei outra vez a porta e fui-me embora, deixando Bledri a dormir.
Não que eu tivesse desistido do meu propósito — disse ele
erguendo a cabeça impetuosamente. — Se ele estivesse vivo de
manhã, meu senhor, eu tencionava acusá-lo abertamente de ter
cometido uma ofensa mortal, e desafiá-lo a combater pela vida. E se
me desse autorização, matá-lo.
Owain estava a olhá-lo atentamente, tentando perscrutar a
mente que formulara o discurso amargo e lhe conferia uma força tão
apaixonada. Com imperturbável calma, ele disse: — Tanto quanto
eu saiba, ele não cometeu qualquer ofensa grave contra mim.
— Contra vós não, meu senhor, para além da sua arrogância.
Mas contra mim, a pior possível. Ele estava entre os oito que nos
montaram a emboscada e mataram o príncipe ao meu lado. Quando
Anarawd foi assassinado, e esta mão foi decepada, Bledri ap Rhys
estava lá, armado. Só quando ele chegou ao salão do bispo é que
eu soube o seu nome. O seu rosto eu nunca esqueci. Nem podia
alguma vez esquecer, até tê-lo feito pagar com sangue a morte de
Anarawd. Mas houve alguém que fez isso por mim. E eu estou livre
dele.
— Diz-me outra vez — ordenou Owain, quando Cuhelyn
terminou a sua declaração — que deixaste o homem com vida e que
não és culpado da sua morte.
— Foi assim que o deixei. Nunca lhe toquei, a sua morte não é
culpa minha. Se me ordenar, jurarei no altar.
— Por enquanto — disse o príncipe com voz grave — sou
obrigado a deixar esta questão por solucionar até regressar de
Abermenai com um assunto mais urgente decidido e revolvido. Mas
continuo a precisar de saber quem fez o que tu não fizeste, pois
nem todos aqui têm um verdadeiro motivo de queixa contra Bledri
ap Rhys. E do mesmo modo que, no que me diz respeito, eu aceito
a tua palavra, poderá haver muitos que duvidem de ti. Se deres a
tua palavra em como regressas comigo e suportas o que poderá ser
ainda descoberto, até estarmos todos satisfeitos, então vem comigo.
Eu preciso de ti, tal como preciso de todos os homens bons.
— Deus é minha testemunha — disse Cuhelyn. — Não vos
deixarei, por qualquer motivo, até me mandardes embora. E serei
ainda mais feliz se nunca o fizerdes.
A última e mais inesperada palavra de uma noite de
acontecimentos inesperados foi a do administrador de Owain, que
entrou na câmara do conselho no momento em que o príncipe se
levantava para mandar embora os seus oficiais, com instruções
suficientes para a partida ao amanhecer. Já tinham sido tomadas
providências para os ritos devidos aos mortos. Gwion permaneceria
em Aber, de acordo com o seu juramento, e já se tinha
comprometido a informar a mulher de Bledri em Ceredigion, e a
cumprir as obrigações necessárias para com o morto que ela
exigisse. Uma tarefa melancólica, mas era preferível que fosse
levada a cabo por um homem fiel ao mesmo senhor. A reunião
matinal das tropas estava planejada com precisão, e tinham sido
dadas ordens para que fossem dadas provisões adequadas ao
enviado do bispo de Lichfield que ia para Bangor, enquanto as
forças do príncipe seguiam uma estrada mais direta para Carnarvon,
a estrada velha que tinha ligado as grandes fortalezas com as quais
um povo estranho tinha mantido o seu poder em Gales, há muito
tempo. Os locais em que eles tinham vivido ainda tinham nomes
latinos, embora atualmente só os padres e os estudiosos os
usassem. Estava tudo preparado, até ao último pormenor. Exceto
que o cavalo desaparecido se perdera novamente, esgueirando-se
para o limbo através das fendas no meio de preocupações maiores.
Até Goronwy ab Einion ter entrado com o resultado de um longo e
tortuoso inquérito a todos os membros da casa no interior do llys.
— Meu senhor, o senhor Hywel colocou-me um quebra-
cabeças, encontrar a pessoa que devia estar aqui e não está. Achei
por bem deixar de lado os nossos criados... por que é que algum
deles havia de querer fugir? Meu senhor, a dama de companhia da
princesa conhece perfeitamente as suas criadas e todas as
hóspedes femininas estão sob seu cuidado. Há uma moça que veio
no seu séquito ontem, meu senhor, que desapareceu do lugar que
lhe foi atribuído. Ela veio com o pai, um cônego de Santo Asaph, e
um segundo cônego dessa diocese viajava com eles. Nós ainda não
incomodamos o pai dela. Esperei pela sua palavra. Mas não há
qualquer dúvida, a jovem desapareceu. Ninguém a viu desde que os
portões se fecharam.
— Raios me partam! — praguejou Owain, entre o riso e a
exasperação. — O que me disseram era verdade! A moça morena
que não queria ser freira na Inglaterra... Deus a guarde, porque
havia ela de o ser, uma galesa morena!... e disse que sim a Ieuan
ab Ifor como um alívio abençoado, em comparação... estás-me a
dizer que ela roubou um cavalo e fugiu no meio da noite antes da
guarda fechar os portões? Que diabo! — disse ele, estalando os
dedos. — Como é que a moça se chama?
— Chama-se Heledd — disse o Irmão Cadfael.
8

Não havia qualquer dúvida, Heledd tinha desaparecido. Ali ela


não era anfitriã, com deveres e estatuto, mas talvez a mais
insignificante dos hóspedes que tinham chegado, e mantivera-se
distante da dama de companhia da princesa, reservada e, ao que
parecia, à espera da sua oportunidade. Tão pouco conformada com
a perspectiva de casar com o noivo desconhecido de Anglesey
como com uma cela conventual entre desconhecidos em Inglaterra,
Heledd tinha-se esgueirado através dos portões de Aber antes de
eles terem sido fechados à noite e ido à procura de um futuro
escolhido por ela própria. Mas como tinha ela tirado também um
cavalo, selado e arreado, ainda por cima um cavalo rápido, de
primeira?
A última vez que alguém a vira fora quando ela saíra do salão
com um jarro vazio, no meio do festim do príncipe, deixando toda a
nobreza ocupada à mesa, e o pai ainda a olhá-la severamente
quando ela correu a cortina atrás de si. Talvez ela tencionasse
realmente encher novamente o jarro e regressar ao salão para
continuar a encher os chifres de beber galeses, mais que não fosse
para aborrecer o Cônego Meirion. Mas ninguém tinha voltado a vê-la
desde esse momento. E, ao nascer do dia, quando as forças do
príncipe começassem a reunir-se nos pátios, e a azáfama e o
clamor, embora cuidadosos e moderados, trouxessem todos os
membros da casa para o exterior, quem iria contar ao bom cônego
que, durante a noite, a filha tinha fugido do convento, do casamento
e do amor e do afeto muito imperfeito do seu pai por ela?
Owain decidiu não delegar essa tarefa inevitável. Quando a luz
vinda de oriente tocou na parede exterior do maenol, e o pátio
começou a encher-se de cavalos, cavalariços, guerreiros e
arqueiros despertos e prontos, ele mandou chamar os dois cônegos
de Santo Asaph à casa do portão, onde aguardou com um olho
atento nos soldados que se juntavam e montavam, e outro no céu e
na luz que prometia bom tempo para viajar. Ninguém se tinha
antecipado a dar as más notícias; isso era óbvio no rosto sereno,
seguro, do Cônego Meirion enquanto atravessava o pátio com uma
delicada boa manhã já a formar-se nos lábios, e uma graciosa
bênção pronta para a seguir assim que o príncipe montasse. Atrás
dele, de pernas mais pequenas e mais corpulento e preocupado
com o seu porte, o Cônego Morgant vinha envolvido na sua
imponência majestosa e mantinha um rosto inexpressivo.
Owain não tinha o hábito de estar com rodeios. O tempo era
pouco, a questão urgente, e o que interessava agora era tomar as
providências necessárias para reparar o que tinha corrido mal, tanto
no que dizia respeito às ameaças de um irmão obstinado como ao
perigo que uma filha perdida corria.
— Houve notícias durante a noite — disse o príncipe
energicamente assim que os dois clérigos se aproximaram — que
não vão agradar a suas reverências e não me agradam a mim.
Cadfael, que os observava de junto do portão, não conseguiu
detectar qualquer inquietação no Cônego Meirion ao ouvir aquelas
palavras. Sem dúvida que ele pensava que se referiam apenas à
ameaça da frota dinamarquesa, e possivelmente à fuga de Bledri ap
Rhys, pois os dois clérigos tinham ido deitar-se antes de essa
suposta fuga se ter transformado em morte. Mas tanto uma coisa
como outra seria motivo de alívio e satisfação para ele, uma vez que
Bledri e Heledd lhe tinham dado motivos para recear pela sua
carreira futura, com o Cônego Morgant a armazenar por detrás da
sua austera testa todos os olhares inconvenientes e palavras
libertinas para comunicar ao seu bispo. Pelo seu porte atual, Meirion
não tinha conhecimento de nada de errado, nada no mundo que
perturbasse a sua complacência, quer Bledri tivesse fugido ou
morrido.
— Meu senhor — começou ele a dizer afavelmente — nós
estávamos presentes e ouvimos falar da ameaça à sua costa.
Certamente que ela poderá ser repelida sem quaisquer danos...
— Não é isso! — disse Owain bruscamente. — Isto tem a ver
consigo. Senhor, a sua filha fugiu durante a noite. Lamento
comunicar-lhe este fato e deixá-lo a tratar do assunto na minha
ausência, mas não é possível evitá-lo. Dei ordens ao comandante
da minha guarnição para que lhe dê toda a ajuda possível para
procurá-la. Fique o tempo que precisar, utilize os meus homens e as
minhas cavalariças como mais lhe convier. Eu e todos os que irão
comigo estaremos atentos e perguntaremos por ela ao longo do
caminho em direção a oeste, até Carnarvon. O mesmo, creio eu,
farão o Diácono Mark e o Irmão Cadfael na sua viagem para
Bangor. Entre nós, deveremos cobrir o país a oeste. O Cônego pode
perguntar e procurar à volta de Aber e a leste, e também a sul, se
necessário, embora eu pense que ela não se arriscaria a ir para as
montanhas sozinha. Eu retomarei a busca assim que puder.
Ele tinha falado sem ser interrompido apenas porque o Cônego
Meirion tinha emudecido de espanto às primeiras palavras, e
olhava-o fixamente com olhos redondos e lábios entreabertos,
empalidecendo cada vez mais até os picos das maçãs do rosto
salientes ficarem brancos sob a pele esticada. A consternação fez-
lhe parar a respiração na garganta.
— A minha filha! — repetiu ele lentamente, por fim, formando as
palavras quase sem som. E depois, com voz ofegante, rouca: —
Desapareceu? A minha filha sozinha por aí, e esses piratas em
terra?
Pelo menos, pensou o irmão Cadfael aprovadoramente, se ela
ali estivesse para o ouvir, saberia que ele gostava realmente dela. A
sua primeira exclamação tivera a ver com a segurança dela,
esquecendo a sua própria carreira. Mesmo que fosse durante
apenas um momento.
— Eles estão a metade da largura de Gales daqui — disse
Owain num tom decidido — e eu farei com que não se aproximem
mais do que isso. Ela ouviu o mensageiro, não vai cair nos braços
deles. Esta sua filha não é tola nenhuma!
— Mas é teimosa! — lamentou-se Meirion, angustiado,
recuperando a voz. — Quem sabe que riscos ela irá correr? E se
fugiu de mim agora, vai continuar a esconder-se de mim. Nunca
imaginei uma coisa destas, que ela se sentisse assim impelida e
encurralada.
— Eu volto a dizer — disse Owain com firmeza — utilize a
minha guarnição, as minhas cavalariças, os meus homens como lhe
aprouver, mande perguntar por ela, pois certamente que não pode
ter ido muito longe. Quanto aos caminhos para oeste, procuraremos
ao longo da viagem. Mas temos que partir. O cônego conhece bem
essa necessidade.
Meirion recuou um pouco, muito ereto, e sacudiu os ombros
largos.
— Ide com Deus, meu senhor, não podeis fazer mais nada. A
vida da minha filha é apenas uma, e muitas dependem de vós. Ela
será responsabilidade minha. Eu receio me não ter preocupado
tanto com ela ultimamente como me preocupei comigo próprio,
senão ela não me teria deixado assim.
E, com uma vênia apressada, ele virou-se e dirigiu-se para o
salão, tão precipitadamente que Cadfael estava já a vê-lo a calçar
furiosamente as botas e a seguir a passo de marcha para a
cavalariça para selar o cavalo e a sair para interrogar toda a gente
da aldeia no exterior dos muros, à procura da filha morena que se
esforçara para despachar para longe, e que agora estava ansioso
por recuperar. E, atrás dele, ainda silencioso, friamente
inexpressivo, potencialmente reprovador, seguiu o Cônego Morgant,
um anjo negro a anotar tudo o que passava.
Tinham percorrido mais de uma milha ao longo do trilho costeiro
na direção de Bangor quando o Irmão Mark quebrou o seu profundo
e pensativo silêncio. Tinham-se separado das forças do príncipe
quando deixaram Aber, com Owain a seguir para sudoeste para
tomar a estrada mais direta para Carnarvon, enquanto Cadfael e
Mark se mantiveram junto da costa, com a cintilante e pálida
planície de baixios sobre Lavan Sands a refletir a luz da manhã à
sua direita, e os picos de Fryri a elevarem-se uns acima dos outros
à esquerda, para além das estreitas e verdejantes planícies
costeiras. Acima do canal fundo a seguir a Lavan Sands, a costa de
Anglesey brilhava à luz do sol.
— Será que ele sabia — perguntou Mark subitamente em voz
alta — que o homem estava morto?
— Ele? Meirion? Quem sabe? Ele estava lá com todos nós
quando o cavalariço disse que faltava um cavalo, e pensamos que
Bledri o tivesse levado para ir para junto do seu senhor. Isso ele
sabia. Ele não estava conosco quando procuramos o homem e o
encontramos morto, nem esteve presente no conselho do príncipe.
Se estavam os dois deitados, só podiam ter tido conhecimento da
notícia esta manhã. Isso é importante? Quer tivesse morrido ou
fugido, o homem estava fora do caminho de Meirion, e não podia
voltar a escandalizar Morgant. Não admira que ele tenha reagido tão
calmamente.
— Não era isso o que queria dizer — disse Mark. — Ele saberia
por si próprio? Antes de mais alguém saber? — E, quando Cadfael
ficou calado, ele prosseguiu, hesitante. — Não tinhas pensado
nisso?
— Já me tinha ocorrido — admitiu Cadfael. — Achas que ele é
capaz de matar?
— Não a sangue-frio, não furtivamente. Mas o sangue dele não
é frio, aquece demasiado rapidamente. Há pessoas que vociferam e
gritam, e que assim se libertam da bílis. Ele não! Ele refreia-a, e ela
ferve dentro dele. É muito mais capaz de explodir em ação do que
em barulho. Sim, eu acho que ele é capaz de matar. E se ele
confrontou Bledri ap Rhys, dali só poderia esperar provocação e
desdém. O suficiente para contribuir para um fim violento.
— E será que ele seria capaz de ir desse fim diretamente para
a cama, com uma companhia tão enervante, e manter a calma? Até
mesmo dormir?
— Quem diz que ele dormiu? Ele só tinha que ficar quieto e em
silêncio. Não havia nada que mantivesse o Cônego Morgant
acordado.
— Vou fazer-te outra pergunta — disse Cadfael. — Cuhelyn
será capaz de mentir? Ele não se envergonhou do seu propósito.
Porque é que ele haveria, então, de mentir quando esse propósito
se tornou conhecido?
— O príncipe acreditou nele — disse Mark franzindo a testa
com um ar pensativo.
— E tu?
— Qualquer homem pode mentir, sem sequer ser por uma
razão muito grave. Até mesmo Cuhelyn pode mentir. Mas eu penso
que ele não mentiria a Owain. Nem a Hywel. Ele fez o seu segundo
juramento de uma forma tão absoluta como o primeiro. Mas há uma
outra pergunta a fazer a respeito de Cuhelyn. Não, há duas. Será
que ele contou a alguém o que sabia a respeito de Bledri ap Rhys?
E, se ele não é capaz de mentir a Hywel, que o tinha salvo e o
trouxera para um serviço honroso, será ele capaz de mentir por ele?
Porque se ele contou a alguém que reconhecera Bledri como um
dos assassinos do seu príncipe, seria a Hywel. Que não tinha mais
motivos para amar os perpetradores daquela emboscada do que o
próprio Cuhelyn.
— O mesmo se aplica a qualquer homem que tenha ido com
Hywel expulsar Cadwaladr de Ceredigion por causa de Anarawd —
concordou Cadfael num tom de resignação — ou qualquer um que
se tivesse sentido ofendido ao ouvir Bledri naquela noite no salão a
ser tão insolente em nome de Cadwaladr, a cuspir ameaças para o
rosto de Owain. É verdade, morreu um homem que, quando vivo,
era odiado e que não se empenhou em ser algo melhor do que
odiado. Numa corte cheia de gente em que a sua mera presença
era uma afronta, é de admirar que ele tenha morrido tão cedo? Mas
o príncipe não vai deixar as coisas assim.
— E nós não podemos fazer nada — disse Mark com um
suspiro. — Nem sequer podemos procurar a moça antes de eu ter
cumprido a minha missão.
— Podemos perguntar — disse Cadfael.
E perguntaram, em todas as aldeias e casas ao longo do
caminho, se uma jovem não tinha passado a cavalo por aquela
estrada, uma moça galesa morena montada num ruano jovem, todo
da mesma cor. Um cavalo da cavalariça do príncipe não passaria
despercebido, especialmente com uma moça na sela. Mas o dia foi
passando, o céu ficou ligeiramente nublado e voltou a ficar limpo, e
eles chegaram a Bangor ao meio da tarde; mas ninguém lhes deu
notícias de Heledd, a filha de Meirion.
O Bispo Meurig de Bangor recebeu-os assim que eles abriram
caminho por entre as ruas da cidade até ao enclave da catedral e se
apresentaram ao arcediago. Parecia que tudo ali era feito ativa e
rapidamente, com poucas semelhanças com o cerimonial planejado
e público que o Bispo Gilbert tinha preferido. Ali estavam muito mais
próximos da ameaça dos atacantes dinamarqueses e tomavam
muito sensatamente as precauções possíveis para lhes fazer frente
se eles conseguissem penetrar até lá. Além disso, Meurig era galês
e sentia-se em casa, não tendo necessidade dos preceitos que
Gilbert considerava necessários para manter a sua posição. Talvez
fosse verdade que ele fora, a princípio, uma desilusão para o seu
príncipe ao sucumbir à pressão normanda e submetendo-se a
Cantuária, mas continuava a ser fortemente galês e a sua
resistência, ainda que desviada, devia prosseguir através de formas
mais subtis. Pelo menos ele não pareceu a Cadfael, quando foram
admitidos à sua presença em privado, o tipo de homem que
comprometesse a sua identidade galesa e a sua adesão aos hábitos
da Igreja Galesa sem uma longa e valente ação de retaguarda.
O bispo não era nada parecido com o seu colega de Santo
Asaph. Em vez do Gilbert alto, digno, patrício e austero no exterior e
apreensivamente inseguro no interior, ali estava um clérigo baixo,
rotundo, azafamado, na casa dos quarenta, falador mas indo direto
ao assunto, de movimentos rápidos e um pouco desgrenhado, com
olhos vivos e modos bem dispostos, vigorosos, como um cão
ruidosamente alegre a seguir afincadamente uma pista. O seu
prazer no simples fato de eles terem vindo numa missão daquele
tipo foi muito óbvio e ultrapassou até o seu deleite com o breviário
que Mark lhe trouxera, embora ele tivesse claramente olho para
uma letra bonita e virasse as folhas com movimentos delicados dos
seus dedos grossos e fortes.
— Já devem ter ouvido falar, Irmãos, da ameaça às nossas
costas, por isso compreenderão que aqui estejamos preocupados
com as nossas defesas. Deus não permita que os nórdicos
desembarquem, ou que não vão para além da praia, mas, se o
fizerem, temos uma cidade a defender, e os homens da igreja têm
que agir como todos os outros. Por esse motivo, observamos
atualmente muito pouca pompa ou cerimonial, mas espero que
sejam meus hóspedes durante um dia ou dois antes de precisarem
de regressar com as minhas cartas e cumprimentos ao seu bispo.
Competia a Mark responder ao convite, que foi feito com
bastante cordialidade, mas como uma expressão vagamente
preocupada nos olhos astuciosos do bispo. Pelo menos parte da
sua mente estava a varrer a frente marítima da sua cidade, onde a
pequena faixa de terra lamacenta entre as marés dava lugar ao
istmo do estreito. Faltavam vinte quilômetros ou mais para o
extremo ocidental de Abermenai, mas os barcos menores, de calado
baixo, com vinte remadores, conseguiam percorrer rapidamente
essa distância. Era uma pena os galeses nunca se terem realmente
feito ao mar! E o Bispo Meurig tinha o seu rebanho a ter em conta, e
o seu temperamento pouco submisso não permitiria que ele
sofresse alguma coisa que o seu vigor conseguisse evitar. Ele não
lamentaria enviar os seus visitantes de volta a Inglaterra, para
Lichfield, para ter as mãos livres. Mãos que pareciam muito capazes
de pegar numa espada ou num arco sempre que necessário.
— Meu senhor — disse o Irmão Mark, após uma breve e
pensativa hesitação. — Eu penso que devemos partir amanhã, se
isso não vos causar demasiado incômodo. Por mais que eu
gostasse de ficar mais tempo, prometi regressar o mais cedo
possível. E, além disso, o grupo com o qual viajamos de Santo
Asaph incluía uma jovem que deveria ter vindo para Bangor
conosco, sob a proteção de Owain Gwynedd, mas agora, privada
dessa proteção, uma vez que o príncipe teve que se dirigir
apressadamente para Carnarvon, ela, insensatamente, partiu de
Aber sozinha, e perdeu-se. Andam à procura dela a partir de Aber.
Mas uma vez que nós viemos até Bangor, se eu puder justificar a
demora de pelo menos um dia ou dois, gostaria de passar a
procurá-la também por estas partes. Se me autorizardes a
aproveitar essa breve demora, usaremos esse tempo em proveito
da dama e, vós, eu sei, utilizareis todos os momentos para proteger
o seu próprio povo.
Um bom discurso que Cadfael aprovou e que não denunciou
nada do que estava por detrás da fuga de Heledd, poupando assim
a reputação dela e a respeitável preocupação daquele bom prelado.
Ele traduziu-o cuidadosamente, improvisando um pouco quando a
memória falhava, uma vez que Mark não lhe permitira qualquer
pausa entre as frases. O bispo acenou a cabeça em sinal de
compreensão imediata e perguntou pragmaticamente: — A dama
tinha conhecimento desta ameaça de Dublin?
— Não — respondeu Mark. — O mensageiro de Carnarvon só
chegou mais tarde. Ela não podia ter sabido.
— E ela se encontra entre Aber e Bangor, e sozinha? Eu
gostaria de ter mais homens para irem à procura dela — disse
Meurig franzindo o sobrolho — mas já enviamos para Carnarvon
todos os guerreiros que podem ser dispensados, para se juntarem
ao príncipe lá. Os que restam poderão ser necessários aqui.
— E se, nesta altura, ela já tiver ouvido falar do perigo —
acrescentou Mark ansiosamente — e procurar, muito sensatamente,
um abrigo seguro, existe nesta região alguma casa de religiosas
onde ela se possa refugiar?
Cadfael traduziu isto também, embora ele próprio pudesse ter
dado uma resposta sem incomodar o bispo. A Igreja de Gales nunca
tivera conventos para freiras, e até mesmo a vida conventual para
os homens nunca existira nos mesmos moldes monásticos que em
Inglaterra. Em vez de uma casa de irmãs metódica, bem regulada,
com uma autoridade reconhecida e um regulamento, ali poderia
surgir, na vastidão mais remota e solitária, um pequeno oratório
vedado com vimes, com uma única santa no seu interior, um santo
do antigo sistema religioso, sem o benefício do Papa nem
canonização, que cultivava algumas hortaliças e ervas aromáticas
para a sua alimentação, apanhava bagas e frutos selvagens e
travava amizade com os pequenos animais da zona, de tal modo
que eles corriam a esconder-se debaixo das suas saias quando
eram perseguidos nas caçadas, e nem os caçadores nem as
cornetas conseguiam incitar os cães a afrontar a dama ou a fazer
mal aos seus pequenos visitantes. Embora Cadfael, pensando bem,
tivesse que admitir que os dinamarqueses de Dublin poderiam não
sentir o respeito devido a testemunhos de santidade tão invulgares.
O bispo abanou a cabeça.
— As nossas mulheres santas não se juntam em comunidades,
como as suas; elas montam as suas celas em lugares ermos,
solitários. Essas ermitãs nunca se instalam perto das cidades. É
mais habitual retirarem-se para as montanhas. Nós temos
conhecimento de uma que tem a sua ermida perto deste mesmo rio
Menai, algumas milhas a oeste daqui, para além do estreito. Mas
assim que soubemos desta ameaça oriunda do mar, mandei avisá-la
e trazê-la para cá para se abrigar. E ela teve o bom senso de vir,
sem levantar quaisquer objeções. Deus é a primeira e a melhor
defesa das mulheres sós, mas eu não vejo qualquer mérito em
deixar tudo a seu cargo. Não quero mártires nos meus domínios, e a
santidade não confere grande proteção.
— Então a cela dela está vazia — disse Mark, com um suspiro.
— Mas se esta moça tivesse vindo até cá e não tivesse encontrado
uma mão amiga que a ajudasse, para onde iria ela?
— Para o interior, certamente, para a proteção dos bosques. Eu
não tenho conhecimento da existência de nenhuma propriedade
próxima que possa ser defendida, mas estes atacantes, se
desembarcarem, não se afastarão muito dos seus barcos. Qualquer
casa em Arfon receberia uma moça. Embora os habitantes das mais
próximas, as que estão mais em risco — acrescentou ele
simplesmente — possam ter também fugido para as colinas. O seu
amigo aqui sabe com que facilidade podemos desaparecer, se
necessário.
— Eu duvido que ela possa estar muito à nossa frente — disse
Cadfael, refletindo sobre as possibilidades. — E, tanto quanto
sabemos, ela pode ter os seus próprios planos e saber muito bem
para onde fugir. Pelo menos podemos perguntar em todos os locais
por que passarmos no caminho de regresso. — Havia sempre a
possibilidade de o Cônego Meirion já ter encontrado a filha, mais
perto do palácio real de Aber.
— Eu posso mandar rezar pela segurança dela — disse o bispo
num tom enérgico — mas tenho o meu próprio rebanho para cuidar
e não posso, por mais que queira, ir à procura de uma ovelha que
se tenha perdido. Pelo menos, Irmãos, passem cá a noite, antes de
voltarem a fazer-se à estrada, e espero que façam uma boa viagem
e tenham boas notícias da jovem que procuram.
9

O Bispo Meurig podia estar preocupado em proteger a sua casa


alargada, mas não permitiu que isso interferisse com a sua
hospitalidade. A mesa estava bem fornecida, a carne e o hidromel
eram abundantes e estavam bem preparados, e ele não deixou os
seus hóspedes partir na manhã seguinte sem se levantar ao
amanhecer para se despedir deles. Estava uma manhã límpida,
úmida, depois de alguns aguaceiros durante a noite, e o sol nasceu
brilhante e radioso, dourando os baixios a leste.
— Vão com Deus! — disse o bispo, sólido e quadrado ao portão
do seu precinto, como se conseguisse protegê-lo sozinho contra
todos os que ali aparecessem. As suas cartas de saudações já
estavam guardadas no saco de Mark, juntamente com um frasco de
vidro dourado contendo o xarope que ele fazia com o seu próprio
mel, e Cadfael levava à sua frente um cesto com comida para um
dia que era suficiente para seis homens, e não dois. — Regressem
em segurança para junto do seu bispo, que Deus o abençoe, e ao
seu convento, Irmão Cadfael, onde a sua graça certamente
prevalece. Espero que nos voltemos a encontrar um dia destes.
Ele certamente que não parecia receoso do perigo que agora o
ameaçava. Quando olharam para trás, da estrada, ele atravessava
energicamente o pátio aberto, com a cabeça baixa, impelida para a
frente, como um pequeno touro determinado, ainda não beligerante
mas com o qual certamente não se devia brincar.
Eles já tinham saído da orla da cidade e chegado à estrada
quando Mark estancou e se deixou ficar, calado e pensativo,
sentado no cavalo, a olhar primeiro para trás ao longo da estrada
que ia ter a Aber, depois para oeste, na direção das invisíveis curvas
sinuosas do estreito que separava Anglesey de Arfon. Cadfael parou
ao lado dele e aguardou, sabendo o que se passava na cabeça do
amigo.
Será que ela conseguiu passar para além deste ponto? Não
deveríamos ir para oeste? Ela saiu de Aber algumas horas antes de
nós. Quanto tempo terá demorado a saber da chegada dos
dinamarqueses?
— Se ela cavalgou durante toda a noite — disse Cadfael —
provavelmente só saberia de manhã, não haveria ninguém para a
avisar. De manhã, ela já estaria bastante a oeste e, se tencionava
fugir ao casamento, não ia aproximar-se de Bangor, pois era ali que
deveria encontrar-se com o marido. Sim, tens razão, ela pode estar
bastante a oeste, e em perigo. Também não tenho a certeza de que
ela, se soubesse, voltaria para trás.
— Então de que é que estamos à espera? — perguntou
simplesmente Mark, virando o cavalo para oeste.
Na igreja de S. Deiniol, várias milhas a sudoeste de Bangor e
talvez a duas do estreito, tiveram finalmente notícias dela. Ela devia
ter seguido a estrada antiga, direta, a mesma que Owain e o seu
anfitrião tomariam, mas com algumas horas de avanço. O único
enigma era o motivo por que demorara tanto tempo a chegar lá,
pois, quando perguntaram ao padre daquele local não houve
qualquer hesitação da sua parte, sim, ela tinha desmontado ali para
pedir indicações na tarde anterior, por volta das Vésperas.
— Uma mulher jovem num ruano claro, sozinha. Ela perguntou
o caminho para a cela da Norma. Esta fica a oeste daqui, no meio
das árvores perto da água. Ofereci-lhe abrigo para passar a noite,
mas ela disse que iria ter com a santa.
— Ela iria encontrar a cela deserta — disse Cadfael. — O Bispo
Meurig receou pela segurança da ermitã e mandou levá-la para
Bangor. De que direção é que a moça veio?
— Veio das florestas, do sul. Eu não sabia — disse o padre,
perturbado — que ela iria encontrar o local vazio. O que faria ela,
pobre criança? Ainda haveria tempo para se refugiar em Bangor.
— Duvido que ela fizesse isso — disse Cadfael. — Se chegou
tão tarde à cela, provavelmente passou lá a noite, em vez de se
arriscar a deslocar-se no escuro. — Olhou para Mark, não tendo
qualquer dúvida sobre o que o jovem estaria a pensar. Era Mark
quem detinha a liderança daquela viagem, e Cadfael não lha
roubaria por nada deste mundo, por palavras ou atos.
— Vamos à procura dela na ermida — disse Mark num tom
firme — e, se ela lá não estiver, separamo-nos e tentamos os trilhos
em que mais provavelmente ela encontraria abrigo. Nestas planícies
de pastagem deve haver casas que ela poderá ter tentado.
— Muitos terão seguido os conselhos — sugeriu o padre,
abanando a cabeça com um ar de dúvida. — Mesmo sem esta
ameaça, dentro de algumas semanas eles teriam deslocado as suas
manadas e rebanhos para as terras altas. Alguns poderão ter-se
deslocado mais cedo, para não se arriscarem a ser pilhados.
— Não temos outra alternativa senão tentar — disse Mark num
tom firme. — Se necessário for, iremos procurá-la nas colinas.
Ele fez uma vênia rápida ao seu informador, fez o cavalo dar
meia volta e partiu em direção a oeste, direito como uma flecha. O
padre de S. Deiniol ficou a olhar para ele de sobrancelha erguida e
com uma expressão meia divertida, meio solícita, abanando a
cabeça com um ar de dúvida.
— Aquele jovem anda à procura da moça por bondade? Ou
para si próprio?
— Mesmo em relação àquele jovem — disse Cadfael com
cautela — eu não me atreveria a dizer que alguma coisa é
impossível. Mas isso não importa. Qualquer ser em perigo de vida
ou em risco de sofrer qualquer mal, seja ele homem, mulher, cavado
de arado ou lebre de S. Melagell, pode levá-lo a atravessar
pântanos e areais movediços. Eu sabia que não conseguiria fazê-lo
voltar para Shrewsbury enquanto Heledd andasse perdida.
— O Irmão vai voltar? — perguntou o padre secamente.
— Nem pensar! Se ele está ligado a ela, também eu estou a
ele. Vou acompanhá-lo até casa!
— Bem, mesmo que a preocupação dele com ela seja mais
pura que o orvalho — disse o padre com convicção — é bom que
ele pense nos seus votos quando a encontrar. Porque ela é uma
bela morena como eu nunca vi. Fiquei satisfeito por já ser velho
quando me atrevi a oferecer-lhe hospedagem por uma noite em
minha casa. E fiquei grato quando ela não aceitou. E, com ou sem
tonsura, aquele rapaz está ainda na sua juventude.
— Mais uma razão para eu ir atrás dele — concordou Cadfael.
— E os meus agradecimentos pelo bom conselho. Por todos os
bons conselhos. Eu transmiti-los-ei fielmente quando o apanhar.
— A Santa Norma — disse Cadfael didaticamente,
atravessando a cintura de bosques que se estendia durante mais de
uma milha a partir do estreito — era a mãe de S. David. Ela tem
muitas fontes sagradas espalhadas pelo país que têm poderes
curativos, especialmente para os olhos, curam até a cegueira. Esta
mulher santa deve ter decidido adotar o nome da santa.
O Irmão Mark prosseguiu determinadamente o seu caminho ao
longo do trilho estreito e não disse nada. De ambos os lados, as
árvores cintilavam à luz úmida do sol depois dos aguaceiros
matinais, um bosque misto suficientemente aberto para deixar entrar
o brilho do início da tarde, suficientemente fechado para ser
percorrido a cavalo em fila indiana, e todo ele novo e fresco, com as
primeiras folhas a despontar, e cheio de aves. Todas as Primaveras
são uma Primavera única, um espanto perpétuo. Ela irrompe sobre
os homens todos os anos, pensou Cadfael, contemplando-a com
deleite apesar de todas as ansiedades, como se ela nunca tivesse
acontecido antes, como se Deus tivesse acabado de lhe ensinar o
que fazer e, depois de tentar, ela visse que o impossível era
possível.
À frente dele, Mark tinha parado na erva pisada pelo cavalo, a
olhar em frente. No meio das árvores, ali menos compactas, a luz
brilhava à frente deles, ainda a alguma distância mas já não muito
longe, cintilante com reflexos brilhantes da água. Estavam a
aproximar-se do estreito. E, à esquerda de Mark, um caminho
estreito serpenteava por entre as árvores e ia ter a uma cabana de
teto baixo situada a alguns metros do trilho.
— É este o lugar.
— E ela esteve aqui — disse Cadfael. A erva molhada, que não
fora sacudida pelo vento em nenhum dos lados, tinha retido o
orvalho suave da chuva que transformava o seu verde novo em
cinzento prateado, mas um cavalo tinha certamente passado por
cima dela, deixando um trilho mais escuro e roçando as pontas das
ervas novas, pois a abertura que ia dar à cela era muito estreita. O
caminho em que tinham parado era usado regularmente, e não lhes
ocorrera examiná-lo enquanto cavalgavam. Mas de certeza que ali,
no meio dos arbustos invasores, tinha passado um cavalo depois de
ter chovido. E não se dirigia para o interior, mas sim para o exterior.
Alguns rebentos novos tinham sido partidos na ponta, inclinando-se
para o caminho aberto, e as ervas mais longas, escurecidas por
cascos, mostravam claramente a direção em que tinham sido
roçadas à sua passagem. — E foi embora — disse Cadfael — esta
manhã.
Eles desmontaram e aproximaram-se da cela a pé. Esta era
pequena e baixa, com apenas uma divisão, construída para uma
mulher que não tinha necessitava de quase nada, para além do
pequeno altar de pedra encostado a uma parede e do colchão de
palha junto de outra, e do pequeno espaço de horta atrás da cela,
para plantar hortaliças e ervas aromáticas. A porta estava
encostada, mas não se via nenhuma fechadura no exterior nem
tranca no interior, apenas um trinco que qualquer viajante podia
levantar. A cela estava vazia. Norma tinha obedecido ao desejo
expresso pelo bispo e permitira que a acompanhassem até Bangor,
para ali se refugiar, não se sabe se com grande vontade. Se ela
tinha tido uma hóspede ali durante a sua ausência, a hóspede
também já tinha ido embora. Mas num pedaço de turfa no meio das
árvores a erva tinha sido pastoreada, e tinha havido um animal com
cascos preso por uma corda comprida, deixando os seus vestígios
antes da chuva, pois ainda havia gotas nas ervas que não tinham
sido sacudidas. E, num sítio, o animal tinha deixado os seus
excrementos, frescos e ainda úmidos, mas já frios. — Ela passou a
noite aqui — disse Cadfael — e partiu de manhã. Foi-se embora
depois de ter chovido. Por onde terá ido? Ela chegou a
Llandeiniolen vinda do interior, tendo saído das colinas e
atravessado a floresta, segundo disse o padre. Teria ela em mente
algum local de refúgio lá, algum parente de Meirion que talvez a
acolhesse? E será que ela encontrou esse local vazio e pensou na
ermitã como a esperança seguinte? Isso explicaria a razão por que
ela demorou tanto tempo a cá chegar. Mas para onde foi ela agora,
como é que havemos de saber?
— Nesta altura, ela já tem conhecimento do perigo que vem do
mar — disse Mark. — Certamente que ela não iria para oeste, em
direção a esse perigo? Mas voltar para Bangor e para o casamento?
Ela já tinha arriscado muito para fugir a ele. Será que voltaria para
Aber, para junto do pai? Isso não a libertaria desse casamento, se
ela se opõe tanto a ele.
— De qualquer modo, ela não o faria — disse Cadfael. — Por
muito estranho que pareça, ela ama o pai, tanto como o detesta. Um
sentimento é o reflexo do outro. Ela detesta-o porque o seu amor
por ele é muito mais forte do que qualquer amor que ele sinta por
ela, porque ele está tão prontamente disposto a renunciar a ela, a
afastá-la através de todos os meios possíveis, de modo a que ela
não possa continuar a projetar uma sombra sobre a sua reputação e
a sua carreira. Ela disse-o muito claramente uma vez, segundo me
recordo.
— Eu também me lembro — disse Mark.
— No entanto, ela não fará nada para prejudicá-lo. Recusou o
véu. Aceitou este casamento por causa dele, como o menor dos
males. Mas, quando a oportunidade lhe surgiu, fugiu desse também
e, para não bloquear a luz dele, preferiu retirar-se a permitir que
outros conspirassem para a afastar. Ela tomou a sua vida nas
próprias mãos, preparou-se para correr os seus próprios riscos e
pagar as suas próprias dívidas, deixando-o livre. Ela não vai voltar
atrás com essa decisão.
— Mas ele não está livre — disse Mark pondo, com tristeza, um
dedo no cerne da dór daquela relação, aparentemente simples,
entre pai e filha. — Ele está mais preso a ela na ausência do que
jamais esteve quando ela o servia obedientemente todos os dias,
presente e visível. Ele não vai ter paz até saber que ela está em
segurança.
— Então — disse Cadfael — é melhor irmos à procura dela.
No caminho, Cadfael olhou para trás através das árvores, na
direção das centelhas de água trêmula para além da qual ficava a
costa de Anglesey. Tinha-se levantado uma leve brisa, e as folhas
de um verde vivo ondulavam numa cortina cintilante, mas os
reflexos fugazes da água eram faíscas ainda mais brilhantes através
dos ramos. E havia outra coisa, algo que aparecia e desaparecia
quando os ramos a revelavam e voltavam a esconder, mas
permanecia constante no mesmo lugar, parecendo apenas subir e
descer como se flutuasse e ondulasse com a maré. Um fragmento
de cor garrida, vermelho, mudando de forma com o movimento da
sua moldura de folhas.
— Espera aí! — disse Cadfael, parando. — O que é aquilo?
Não era um tom de vermelho que se encontrasse na natureza,
certamente não no fim da Primavera, quando a terra se permite
apenas tons delicados de ouro pálido, lilás e branco de encontro ao
verde virgem. Aquele vermelho tinha uma solidez dura,
impenetrável. Cadfael desmontou e voltou-se para ele, passando
por entre as árvores até ter chegado a um local mais elevado onde
ele próprio poderia ficar invisível, mas ver nitidamente, através da
orla do bosque, os trezentos passos ou mais até ao estreito. Uma
planície verde de pasto e alguns campos, uma habitação,
certamente já abandonada, depois o brilho azul prateado da água,
que ali quase atingia o seu ponto mais estreito, mas ainda com meia
milha de largura. E, mais além, a planície rica e fértil de Anglesey, o
celeiro de Gales. A maré estava a encher, e via-se metade do troço
de seixos e areia sob a costa do outro lado. E ancorado junto da
praia debaixo do aglomerado de árvores onde Cadfael se
encontrava, um barco comprido e estreito, com uma cabeça de
dragão na proa e na popa, mergulhava e subia suavemente na
maré, com a vela central descida, os remos arrumados, e um
conjunto de escudos vermelhos colocados ao longo do seu flanco
baixo. Um navio ágil como uma serpente, com o mastro baixado à
ré, a limpar o corpo vazio para a ação enquanto oscilava
suavemente, preso à sua amarração como um lagarto adormecido,
gracioso e inofensivo. Dois membros da tripulação, grandes, de
cabelo claro, um deles com uma trança de cada lado do pescoço,
estavam parados no estreito convés posterior, por cima dos bancos
dos remadores. Outro, nu, nadava preguiçosamente no meio do
estreito. Mas Cadfael contou o que considerou ser orifícios para
remos na terceira fiada de tábuas do casco, doze deles naquele
lado. Doze pares de remos, vinte e quatro remadores, e mais
tripulação para além dos três que tinham ficado de guarda. Os
restantes não deviam estar longe.
O Irmão Mark tinha prendido os cavalos e aproximara-se de
Cadfael. Ele viu o que Cadfael tinha visto e não fez quaisquer
perguntas.
— Aquilo — disse Cadfael em voz baixa — é um barco
dinamarquês de Dublin.
Nenhum deles falou. Deram meia volta, voltaram
apressadamente para junto dos cavalos e conduziram-nos para o
interior através do trilho do bosque, até se encontrarem
suficientemente longe para montar e prosseguir viagem. Se Heledd,
depois de ter passado a noite na ermida, tivesse assistido à
chegada daquele barco de pilhagem com o seu formidável
complemento de guerreiros, não era de admirar que ela se tivesse
apressado a abandonar aquela zona. E sem dúvida que ela se
dirigiria para o interior o mais rapidamente possível e, uma vez
suficientemente longe, procuraria refúgio numa cidade. Isso, pelo
menos, é o que faria qualquer moça no seu perfeito juízo. Ali, ela
estava a meio caminho entre Bangor e Carnarvon. Que direção
tomaria?
— Um barco solitário — disse Mark finalmente, quando o
caminho alargou e se tornou possível seguirem lado a lado. — Isso
é sensato? Não correm o risco de encontrar oposição, de serem até
capturados?
— Neste momento, talvez fossem — concordou Cadfael — mas
não está aqui ninguém para tentar fazê-lo. Certamente que eles
passaram por Carnarvon de noite, e vão voltar a sair
sorrateiramente de noite. Este deve ser um dos barcos menores e
mais velozes da frota; com mais de vinte remadores a bordo, nós
não temos nada que o consiga apanhar. Tu viste como ele é
construído, podem remá-lo para a frente ou para trás, e virá-lo
enquanto o diabo esfrega um olho. O único risco que eles correm é
enquanto a maior parte da tripulação estiver em terra, a saquear, e
isso eles farão em investidas súbitas, indo rapidamente a terra e
regressando rapidamente ao barco.
— Mas por que é que eles haviam de enviar um barco sozinho?
Segundo ouvi dizer — disse Mark — eles atacam em força e, além
de saquear, fazem escravos. Eles não podem fazer isso com um só
barco.
— Desta vez — disse Cadfael, refletindo — não se trata disso.
Se Cadwaladr os trouxe até cá, então ele prometeu-lhes um
pagamento grande pelos seus serviços. Eles estão aqui para
persuadir Owain que seria sensato devolver as terras ao irmão, e
contam ser bem pagos pelo serviço; se este puder ser feito, de uma
forma barata, apenas com a ameaça da sua presença, sem perda
de homens em batalha, eles preferem isso, e Cadwaladr não
levantará qualquer objeção, desde que o resultado seja o mesmo.
Digamos que ele consegue o que quer e recupera as suas terras.
De futuro, ele vai ter que viver ao lado no irmão, porque é que há-de
tornar as relações entre eles mais difíceis do que o necessário?
Não, eles não vão queimar e matar, e não vão fazer escravos, a não
ser que o negócio azede.
— Então por que esta incursão por um único barco até tão
longe no estreito? — perguntou Mark sensatamente.
— Os dinamarqueses têm que dar de comer às suas forças, e
não é seu hábito levar consigo provisões quando se dirigem a uma
terra em que podem se alimentar sem qualquer custo. Eles já
conhecem os galeses suficientemente bem para saber que nós
vivemos com pouca coisa e viajamos com pouca bagagem, e que
podemos deslocar as nossas famílias e o nosso gado para as
montanhas com poucas horas de aviso. Aquele pequeno barco não
perdeu tempo a ir a terra, a partir de Abermenai, assim que
alcançou a costa, para chegar às aldeias que ouviram as notícias
tarde ou foram lentas a reunir o gado. Eles voltarão para junto dos
seus companheiros esta noite com o barco cheio de boas carcaças,
e de toda a farinha ou trigo a que conseguiram deitar a mão. E
algures ao longo destes bosques e campos eles estão a fazer
exatamente isso neste preciso momento.
— E se eles encontrarem uma moça sozinha? — perguntou
Mark. — Será que se coibiriam de cometer um ultraje
desnecessário?
— Numa situação dessas, eu não me responsabilizaria por
ninguém, dinamarquês, galês ou normando — admitiu Cadfael. —
Se fosse uma princesa de Gwynedd, ela valeria muito mais intacta e
bem tratada do que violada ou maltratada. E, ainda que Heledd não
seja de nascimento real, ela tem língua para falar e pode muito bem
tornar claro que está sob a proteção de Owain, por isso, se a
ultrajarem, eles terão que responder perante ele. Mas, mesmo
assim...
10

Tinham chegado a um local onde o trilho do bosque se dividia,


com uma ramificação a manter-se ainda no interior mas inclinando-
se para oeste, a outra dirigindo-se mais diretamente para leste.
— Estamos mais perto de Carnarvon do que de Bangor —
calculou Cadfael, parando no ponto em que as estradas se dividiam.
— Mas ela saberia isso? E agora, Mark? Para leste ou para oeste?
— É melhor separar-nos — disse Mark, preocupado com uma
decisão tomada às cegas. — Ela não pode ter ido muito longe. Teria
que se manter escondida. Se o barco tiver que regressar esta noite,
ela poderá encontrar um sítio para se esconder em segurança até
eles terem partido. Vai por um caminho, que eu vou por outro.
— Não podemos perder o contato um com o outro — avisou
Cadfael, muito sério. — Se nos separarmos aqui, deverá ser durante
apenas algumas horas, e temos que nos voltar a encontrar aqui.
Não somos livres de fazer o que queremos. Segue na direção de
Carnarvon e, se a encontrares, acompanha-a até lá. Se não, volta
para cá antes do crepúsculo, que eu farei o mesmo. E se eu a
encontrar neste caminho da esquerda, irei abrigá-la onde puder,
mesmo que isso signifique regressar a Bangor. Se não te
encontrares comigo aqui ao pôr-do-sol, esperarei por ti em Bangor.
E, se eu não aparecer, procura-me lá.
Um arranjo improvisado, mas o melhor que conseguiram fazer,
com um tempo tão limitado e uma tarefa inevitável à espera deles.
Ela tinha deixado a cela situada na costa nessa manhã, e teria que
ter muito cuidado e seguir pelos caminhos do bosque, em que um
cavalo tem que andar devagar. Não, ela não podia estar longe. E
àquela distância do estreito, certamente que ela se manteria num
trilho usado e não serpentearia pelo bosque, embrenhando-se mais
no seu interior. Talvez ainda a encontrassem e trouxessem até ali
antes do anoitecer, ou a acompanhassem a um lugar seguro
algures, voltando a encontrar-se os dois ali sem ela e regressando
finalmente a Inglaterra.
Mark olhou para a luz e para o ligeiro declínio do sol do seu
zênite.
— Temos quatro horas ou mais — disse ele e, virando
rapidamente o cavalo em direção a oeste, partiu.
O trilho de Cadfael virava para leste num troço plano durante
talvez oitocentos metros, emergindo ocasionalmente do bosque
para uma pastagem aberta, e permitindo relances do estreito
através das árvores dispersas lá em baixo. Depois, ele virava para o
interior e começava a subir, embora o declive ali não fosse muito
grande, pois aquela cintura de terra do continente partilhava,
nalguma medida, a fertilidade rica da ilha antes de se elevar para as
montanhas. Ele seguiu lentamente, à escuta, parando de vez em
quando para ouvir mais atentamente, mas não havia qualquer sinal
de vida a não ser os pássaros, muito atarefados com as suas
ocupações primaveris e nada perturbados com o tumulto entre os
homens. O gado ovino e caprino tinha sido conduzido para as
colinas, para cercas guardadas; os atacantes encontrariam apenas
alguns que tinham ficado para trás e talvez não se aventurassem a
ir mais adiante ao longo do estreito. As notícias deviam certamente
precedê-los onde quer que eles surgissem, e as capturas mais
lucrativas já teriam sido feitas. Se Heledd tivesse virado para aquele
lado, talvez estivesse em segurança e já não corresse qualquer
perigo.
Ele tinha atravessado um campo aberto e entrado numa cintura
de bosque mais elevada, cerrada e salpicada de raios de sol à
esquerda, floresta ainda mais cerrada à direita, quando uma cobra
atravessou o caminho por baixo dos cascos do seu cavalo como um
pequeno clarão de relâmpago verde prateado e desapareceu na
erva mais basta do outro lado, e o animal parou por um instante e
soltou um relincho surdo de susto. Algures à direita, no meio das
árvores e não muito longe, outro cavalo respondeu com um excitado
relincho de reconhecimento. Cadfael parou e escutou atentamente,
na esperança de que outro relincho lhe permitisse fazer uma leitura
mais exata da direção, mas o som não se repetiu. Provavelmente,
quem quer que fosse que estava refugiado ali, bem afastado do
trilho, se tivesse apressado a acalmar e persuadir o animal a ficar
silencioso. Naquela colina, os relinchos de um cavalo poderiam
ouvir-se a uma grande distância.
Cadfael desmontou e conduziu o seu cavalo por entre as
árvores, seguindo um caminho sinuoso na direção do local em que
pensou que o outro viajante deveria estar, parando frequentemente
para tentar escutar e, por fim, quando já estava no meio dos
arbustos cerrados, ouviu o farfalhar súbito de galhos a serem
sacudidos mais adiante, seguido do silêncio. Os seus próprios
movimentos, por mais cauteloso que ele tivesse sido, tinham
certamente sido ouvidos. Havia alguém escondido à espreita, à
espera dele.
— Heledd! — disse Cadfael em voz alta.
O silêncio pareceu tornar-se ainda mais silencioso.
— Heledd? Sou eu, o Irmão Cadfael. Podes estar descansada,
aqui não há dinamarqueses de Dublin. Mostra-te.
E ela mostrou-se, passando por entre os arbustos para ir ter
com ele. Era, de fato, Heledd, com um punhal desembainhado na
mão, embora, por um momento, ela se deva ter esquecido que o
tinha. Tinha o vestido amarrotado e um pouco sujo dos arbustos,
uma face ligeiramente manchada de verde por se ter deitado no
musgo e na erva, e o cabelo solto à volta dos ombros era preto na
sombra, uma nuvem da meia-noite. Mas o seu rosto oval estava
composto, descontraindo-se um pouco da sua prontidão para lutar, e
os seus olhos, enormes à sombra, eram muito pretos, com laivos
arroxeados. Atrás dela, no meio das árvores, ele ouviu o cavalo dela
mexer-se e bater com as patas, pouco à vontade naquele ermo
desconhecido.
— É realmente o Irmão — disse ela, deixando cair a mão que
segurava a faca com um enorme suspiro. — Como é que me
encontrou? E onde está o diácono Mark? Eu pensei que, nesta
altura, já estariam a caminho de casa.
— E estaríamos — concordou Cadfael, extremamente aliviado
por encontrá-la tão segura de si própria — se não tivesses fugido no
meio da noite. Mark está na estrada para Carnarvon, a uma milha
ou mais de distância de nós, à tua procura. Separamo-nos quando a
estrada se bifurcou. Pusemo-nos a tentar adivinhar por onde terias
ido. Fomos à tua procura à cela de Norma. O padre disse-nos que te
tinha dito onde era.
— Então já viram o barco — disse Heledd, encolhendo os
ombros numa atitude de resignação perante o inevitável. — Nesta
altura, eu já teria subido as colinas à procura dos primos da minha
mãe nas cabanas dos borregos, aqueles que eu tinha esperança de
ainda encontrar na sua quinta na planície, se o meu cavalo não
tivesse ficado um pouco coxo. Achei que era melhor esconder-me e
descansar até ao cair da noite. E agora somos dois — disse ela, e o
seu sorriso brilhou na sombra com uma segurança recuperada —
três se conseguirmos encontrar o seu pequeno diácono. E agora,
que caminho devemos tomar? Venha comigo pelas colinas, que
encontrará um caminho seguro de regresso ao Dee. Porque eu não
vou voltar para o meu pai — avisou ela, com um brilho ameaçador
nos seus olhos escuros. — Ele livrou-se de mim, tal como queria.
Não lhe desejo mal. Mas não fugi de todos eles para acabar por
regressar e casarem-me com um homem que nunca vi, nem para
definhar num convento. Pode dizer-lhe, ou deixar uma mensagem a
alguém que lha transmita, que estou em segurança junto dos
familiares da minha mãe, e que ele pode ficar satisfeito.
— Tu vais para o primeiro refúgio seguro que conseguirmos
encontrar — disse Cadfael com firmeza, impelido por uma
indignação que não poderia ter sentido se a tivesse encontrado
infeliz ou com medo. — Mais tarde, quando os problemas
terminarem, podes fazer o que quiseres com a tua vida. — Mesmo
no momento em que o disse, teve a sensação de que ela era capaz
de fazer qualquer coisa ou até mesmo algo admirável com a sua
vida e, se tivesse que ser contra a opinião do mundo, isso não a
demoveria. — O teu cavalo consegue andar?
— Eu posso levá-lo pela rédea, e vamos ver.
Cadfael refletiu durante um momento. Ali estavam a meio
caminho entre Bangor de Carnarvon, mas quando voltassem para o
trilho que seguia para oeste por que Mark seguira, a estrada para
Carnarvon era mais direta e, se a tomassem, acabariam por se
encontrar com Mark. Quer ele tivesse ido até à cidade ou voltasse
para trás para regressar ao ponto de encontro na bifurcação antes
do crepúsculo, se seguissem por esse trilho haviam de o encontrar.
E numa cidade cheia de guerreiros de Owain não haveria perigo.
Uma força contratada para ameaçar não seria louca ao ponto de
provocar todos os exércitos de Gwynedd. Alguma pilhagem, talvez,
o agradável desporto de roubar algum gado tresmalhado e levar
consigo alguns aldeões tresmalhados, mas eles não eram tolos ao
ponto de atrair contra si todo o exército de Owain.
— Traz o cavalo para a trilha — disse Cadfael. — Podes montar
o meu, que eu levo o teu a pé.
Não havia nada no olhar cintilante que ela lhe dirigiu que lhe
assegurasse que faria o que ele disse, nem nada que o inquietasse
com dúvidas. Ela hesitou apenas um instante, durante o qual o
silêncio da tarde sem vento pareceu fenomenalmente intenso,
depois virou-se, apartou os ramos atrás de si e desapareceu,
quebrando o silêncio com o sussurro da sua passagem através dos
arbustos cerrados. Ao fim de alguns momentos, ele ouviu o cavalo a
relinchar suavemente, e depois os arbustos a moverem-se quando a
moça e o cavalo se viraram para voltar para junto dele através de
um caminho mais aberto. E, seguidamente, ouviu-a gritar, um grito
espantosamente agudo, furioso e indignado.

O salto instintivo que ele deu para ir ter com ela só lhe permitiu
avançar dois passos. De ambos os lados os arbustos vergastavam-
no, e mãos estenderam-se para agarrá-lo pelo capuz e pelo hábito,
prender-lhe os braços e mantê-lo ereto mas indefeso, a lutar contra
um amplexo de que não conseguia libertar-se mas que,
curiosamente, não fez qualquer menção de molestá-lo, para além de
o manter prisioneiro. Subitamente, a pequena clareira estava a
fervilhar de homens enormes, de braços nus, cabelo louro e cintos
de cabedal, e do matagal à sua frente irrompeu um homem ainda
maior, um jovem gigante, muito acima da robusta altura média de
Cadfael, a rir tão alto que os bosques, até então silenciosos,
ecoaram com a sua alegria, e a segurar uma Heledd enraivecida,
aos pontapés e a contorcer-se com toda a força, mas produzindo
pouco efeito. As unhas da mão que ela tinha livre já tinham deixado
a sua marca na face do captor e puxavam os seus longos cabelos
louros, até que ele se virou, baixou a cabeça e tomou o pulso dela
entre os seus dentes e manteve-o ali. Dentes grandes, regulares,
brancos, que tinham brilhado quando ele rira, e agora mal
magoavam a pele macia de Heledd. Foi o espanto, e não o medo
nem a dor, que fez com que ela ficasse imóvel nos braços dele e,
com a desorientação, os seus dedos fechados abriram-se
gradualmente. Mas quando ele a largou e voltou a rir-se, ela
recuperou a sua raiva e atacou-o furiosamente, batendo inutilmente
com os punhos no seu peito largo.
Atrás dele vinha um rapaz sorridente com cerca de quinze
anos, conduzindo o cavalo de Heledd que coxeava ligeiramente de
uma pata. Ao ver uma segunda presa amarrada e a mudar
desconfortavelmente de posição na orla das árvores, o rapaz soltou
um grito de prazer. Na realidade, o ambiente do grupo de
saqueadores não parecia nada ameaçador, mas sim bem-humorado
e entusiástico. Não eram tantos como a princípio parecera, devido
ao seu tamanho e presença exuberantemente animal. Dois deles,
com um peito redondo como um barril e bigodes e tranças cor de
palha de cada lado do rosto, mantinham Cadfael preso pelos
braços. Um terceiro tinha pegado nas rédeas do ruano e acariciava
o focinho comprido e brilhante e a crina creme. Mas algures no
caminho desbravado havia outros, Cadfael ouvia-os mover-se e
conversar enquanto esperavam. O que era espantoso era que
homens tão grandes conseguissem mover-se tão suavemente para
cercar as suas presas. Os cavalos, chamando um pelo outro, tinham
alertado os saqueadores que já estava de regresso e tinham-nos
conduzido àquele ganho inesperado. Um monge, uma moça, pelo
cavalo e pelo traje uma moça da alta sociedade, e dois bons
cavalos.
O jovem gigante estava a observar as suas novas aquisições
com um ar muito prático por cima dos esforços inúteis de Heledd, e
Cadfael reparou que, embora tratasse a sua prisioneira com alguma
rudeza, não o fazia com brutalidade. Pareceu que Heledd
compreendeu isso e deixou gradualmente de opor resistência,
sabendo que esta era inútil, e ficou quieta, surpreendida com o fato
de não haver qualquer retaliação.
— Saeson? — perguntou o gigante, observando Cadfael com
curiosidade. Ele já sabia que Heledd era galesa, ela tinha-o
insultado nessa língua até ficar sem fôlego.
— Galês! — disse Cadfael. — Tal como a dama. Ela é filha de
um cônego de Santo Asaph, e está sob a proteção de Owain
Gwynedd.
— Ele tem gatos selvagens? — perguntou o jovem, desatando
novamente a rir e pousando-a no chão com um movimento ágil, mas
mantendo-a bem presa pela faixa do vestido, enrolada no seu
enorme punho para a apertar e segurar. — E ele vai querer este de
volta sem que lhe falte sequer um cabelo? Mas, ao que parece, a
dama escapou-se da trela, senão o que estaria ela a fazer aqui com
apenas um monge beneditino como guarda-costas? — Ele falava
numa mistura de erse, dinamarquês e galês muito capaz de se fazer
entendida naquela região. Ao longo dos séculos, nem todos os
contatos irregulares entre Dublin e Gales tinham sido de invasão e
rapina; tinham sido feitos muitos bons casamentos entre os
principados, e uma quantidade razoável de comércio tinha sido
lucrativa para ambas as partes. Aquele jovem sabia provavelmente
falar francês normando. Até mesmo latim, pois era provável que
tivesse sido ensinado por monges irlandeses. Ele era claramente
um jovem com uma boa posição social. Também, felizmente, franco
e bem disposto, nada interessado em estragar aquilo que poderia vir
a ser um bem valioso. — Tragam o homem — disse o jovem,
regressando energicamente às questões práticas — e mantenham-
no agarrado. Owain respeita o hábito preto, embora o das celta seja
mais do seu agrado. Quando é preciso negociar, a santidade
consegue um bom preço. Eu trato da moça.
Eles correram a obedecer-lhe, tão bem dispostos, ao que
parecia, como o seu líder, e todos eles muito satisfeitos com o
resultado da sua pilhagem. Quando emergiram no caminho
desimpedido com os seus cativos e os dois cavalos atrás, foi fácil
ver o motivo por que estavam tão contentes. Havia mais quatro à
espera, todos a pé, levando duas varas compridas carregadas com
animais mortos e sacos, o saque de redis dispersos, de pastagens
remotas e até mesmo da própria floresta, pois havia veados entre os
despojos. Um quinto homem tinha improvisado uma canga de
madeira para os ombros, para equilibrar dois odres de vinho. Este
devia ser um de, pelo menos, dois grupos que tinham ido a terra,
calculou Cadfael, pois o pequeno barco levava doze pares de remos
além de outra tripulação. Só podia tentar adivinhar o número dos
que compunham as forças dinamarquesas, mas certamente que não
lhes faltaria comida durante um ou dois dias.
Ele deixou-se levar para onde o empurraram, não inteiramente
por compreender sensatamente que não conseguiria levar a melhor
sobre um dos musculosos guerreiros que o agarravam, quanto mais
dois, nem sequer porque, mesmo que conseguisse fugir, não
poderia fazer nada para levar Heledd consigo. Para onde quer que
os levassem como reféns úteis, ele talvez conseguisse
proporcionar-lhe proteção e companhia. Ele já tinha deixado de
pensar que lhe poderia acontecer grande mal. Não fizera mais do
que confirmar algo que já sabia quando insistira que ela era valiosa;
e aquilo não era a guerra total, mas sim uma expedição comercial
com o objetivo de obter o maior lucro possível com o mínimo
dispêndio.
Houve alguma redistribuição do saque que tinham acumulado,
e o cavalo coxo de Heledd foi chamado a transportar parte da carga.
Eles eram notavelmente enérgicos e exatos nos seus movimentos,
equilibrando o peso e não sobrecarregando o valioso animal. Entre
si, eles falavam a sua própria língua nórdica, embora, com toda a
probabilidade, todos aqueles jovens e vigorosos guerreiros tivessem
nascido no reino de Dublin, tal como os seus pais antes deles, e
compreendessem bem as línguas celtas que rodeavam o seu
enclave e as falassem livremente em tempo de paz e de guerra. No
final daquele dia de pilhagem, estavam atentos ao sol e, com
exceção daquela incursão depois de terem ouvido o alarme dos
cavalos, não perderam tempo.
Cadfael tinha perguntado a si próprio o que faria o líder com o
cavalo são, e pensou que ele reclamaria para si próprio o privilégio
de montar. Em vez disso, o jovem ordenou ao rapaz, o mais leve
entre eles, que subisse para a sela, e colocou Heledd à sua frente,
nos braços que, mesmo só com quinze anos, eram suficientemente
musculosos para tornar ineficazes os esforços dela para se libertar
depois de as suas mãos terem sido atadas com a sua própria faixa.
Mas, nessa altura, ela já compreendera que resistir seria ao mesmo
tempo inútil e indigno, e deixou-se instalar de encontro ao peito
largo do rapaz sem opor resistência. Pela expressão do seu rosto,
ela iria aguardar a primeira oportunidade de fugir e, até esse
momento, manteria a presença de espírito e as suas forças de
reserva. Tinha ficado calada, cerrando os lábios e os dentes de
raiva ou de medo, e mantendo uma dignidade tensa e taciturna, mas
não era possível saber o que estaria a germinar por trás do rosto
imóvel.
— Irmão — disse o jovem, voltando-se energicamente para
Cadfael, ainda imobilizado no meio dos seus guardas — se preza a
moça, pode caminhar ao lado dela sem ninguém a agarrá-lo. Mas
aviso-o já que Torsten estará mesmo atrás de si, e ele consegue, a
cinquenta passos, atirar uma lança e rachar uma árvore jovem, por
isso mantenha a sua posição — ele estava a sorrir, seguro de que
Cadfael não tencionava fugir, deixando a moça em cativeiro. — Em
frente agora, e depressa! — disse ele alegremente, impondo o
passo, e o grupo inteiro colocou-se em fila ao longo do caminho, e
Cadfael fez o mesmo, ao lado do seu próprio ruano, com uma mão
no couro do estribo do cavaleiro. Se Heledd tivesse necessidade da
frágil segurança da sua presença, ela tê-la-ia, mas Cadfael duvidava
que precisasse. Ela não se tinha mexido desde que fora içada para
o cavalo, exceto para se mover de modo a ficar mais confortável no
seu poleiro, e a própria tensão do seu rosto tinha-se transformado
numa imobilidade pensativa. Todas as vezes que Cadfael erguia os
olhos para voltar a olhar para ela, descobria que ela se sentia cada
vez mais à vontade naquela situação inesperada. E, todas essas
vezes, os seus olhos estavam pousados, com um ar de
especulação, na cabeça loura que ficava acima de todas as outras,
avançando à frente deles com um penacho ereto e longos caracóis
louros a ondular na leve brisa.
Desceram a colina com um passo rápido, através de bosques e
pastagens, até vislumbrarem os primeiros lampejos prateados de
água a cintilar através da última cintura de árvores. O sol
mergulhava suavemente em direção a oeste, dourando a ondulação
levantada pela brisa ao longo da superfície quando emergiram na
praia do estreito, e os membros da tripulação que tinham ficado de
guarda soltaram um grito de boas vindas e trouxeram o barco-
dragão até à costa para eles subirem para bordo.
Quando regressava, de mãos a abanar, da sua busca a oeste,
para comparecer ao encontro na bifurcação antes do pôr do Sol, o
Irmão Mark ouviu um grupo de homens passar, rápida e
silenciosamente, atravessando o seu trilho um pouco à frente, e
descendo na direção da praia. Ele deixou-se ficar parado,
escondido, até eles terem passado, depois seguiu cautelosamente
na mesma direção, tencionando apenas certificar-se de que não
poderiam vê-lo nem ouvi-lo, antes de prosseguir para o local de
encontro. Mas o caminho que seguiu pela colina abaixo por entre as
árvores inclinou-se para o percurso do trilho deles e aproximou-o
rapidamente, pelo que recuou e voltou a parar, desta vez vendo-os
de relance por entre os ramos de arbustos agora quase cobertos
com a folhagem de Verão. Um jovem alto, louro, cuja cabeça passou
por ele a flutuar como uma prímula desabrochada mas com a altura
de um espruce de três anos, um cavalo carregado levado pelas
rédeas, dois homens com uma vara aos ombros e carcaças de
animais a balançar ao ritmo dos seus passos. Depois,
inequivocamente, viu passar Heledd e o rapaz, um par entrelaçado
e a flutuar um metro e meio acima do chão, sendo o cavalo por
baixo deles apenas sugerido pelo ritmo da sua passagem, pois
naquele momento os ramos eram impenetráveis, deixando ver
apenas uma tonsura castanha avermelhada quase totalmente
salpicada de cinzento a arrastar-se ao lado deles. Era apenas uma
pequeníssima pista quanto ao homem que a usava, mas bastava
para Mark identificar o Irmão Cadfael.
Então ele a tinha encontrado, e aqueles estrangeiros muito
menos bem-vindos tinham-nos encontrado a ambos antes de eles
terem conseguido escapar para um refúgio seguro. E Mark não
podia fazer nada a não ser segui-los, pelo menos o suficiente para
saber para onde eles estavam a ser levados, e como eram tratados,
e depois certificar-se de que a notícia era levada para onde estavam
os que podiam levar o seu desaparecimento em consideração e
fazer planos para os recuperarem.
Desmontou e deixou o cavalo preso, para se poder mover mais
rápida e silenciosamente por entre as árvores. Mas o grito que
ouviu, ecoando do barco, fê-lo abandonar todas as precauções e
emergir em terreno aberto, correndo pela colina abaixo para
encontrar um local de onde pudesse ver as águas do estreito e o
timoneiro a trazer o seu barco para perto, por baixo da margem
coberta de ervas, para um lugar em que até mesmo uma criança
conseguiria saltar para bordo, por cima da borda baixa dos bancos
dos remadores situado no meio do barco. Mark viu a maré de
homens louros, ferozes, a encher o barco, persuadindo o cavalo de
carga carregado a segui-los e arrumando o produto do saque por
baixo da minúscula coberta de proa e no poço no meio dos bancos.
Cadfael foi obrigado a entrar com eles, no entanto pareceu a Mark
que, mesmo ao ser persuadido, ele mantinha um ar jovial. Era certo
que ele tinha poucas possibilidades de escapar, mas outro homem
seria menos hábil a lidar com a situação.
O rapaz a cavalo mantinha Heledd bem segura, até que o
jovem gigante louro, depois de assistir ao embarque dos seus
homens, estendeu os braços e pegou nela, com tanta leveza como
se ela fosse uma criança, saltou com Heledd por entre os bancos
dos remadores e, pousando-a no chão, estendeu novamente a mão
para as rédeas do cavalo de Cadfael e persuadiu-o a entrar a bordo
com palavras murmuradas em voz baixa que soaram estranhas aos
ouvidos de Mark. O rapaz seguiu-o, o timoneiro afastou-se
rapidamente da margem, o nó de homens que repartia o saque
dissolveu-se ordenadamente e distribuiu-se pelos remos, e o
pequeno e esguio barco-dragão dirigiu-se para o meio da corrente.
Quando Mark recuperou a presença de espírito, ele avançava
rapidamente, deslizando como uma cobra para sul, na direção de
Carnarvon e Abermenai, onde os seus companheiros estariam
agora no porto ou atracados nos ancoradouros, no exterior das
dunas. Nem sequer era necessário virá-lo, pois os dois extremos
eram idênticos. A sua velocidade conseguia livrá-lo de problemas
em qualquer direção; mesmo que fosse avistado da cidade, Owain
não tinha nada que o pudesse apanhar. A rapidez com que ele se
transformou silenciosamente numa pequena mancha escura na
água deixou Mark espantado, sem respiração.
Ele deu meia volta para voltar para onde tinha deixado o cavalo
preso e partiu apressadamente para oeste, na direção de
Carnarvon.
Atirado pesadamente para o poço estreito no meio dos bancos
e ali abandonado com igual rapidez, Cadfael dedicou um momento a
encostar-se às tábuas do estreito convés da ré e a refletir sobre a
situação dos dois. As relações entre os captores e os capturados
pareciam já ter encontrado um nível viável, a um preço
surpreendentemente baixo em termos de tempo ou exaltação. A
resistência era impraticável. A prudência recomendava resignação
aos prisioneiros, e tornava possível aos seus carcereiros ocuparem-
se da tarefa mais imediata de regressar ao acampamento com o
saque, sem qualquer restrição mais rígida do que aquela que um
barco veloz e cerca de uma milha de água de cada lado
proporcionavam. Ninguém tinha tocado em Cadfael depois de terem
embarcado. Ninguém prestara mais atenção a Heledd, encostada,
com um ar defensivo, ao cadaste da popa, onde o dinamarquês a
colocara, com os joelhos puxados para si e os braços a abraçar as
saias. Ninguém receava que ela saltasse borda fora e nadasse para
Anglesey; os galeses não eram conhecidos como nadadores
notáveis. Ninguém tinha qualquer interesse em insultá-los ou
machucá-los; eles eram simplesmente bens a ser mantidos intatos
para utilização futura.
Para testar um pouco mais essa teoria, Cadfael percorreu o
poço no meio do barco, entre o saque de carne e provisões,
observando atentamente os pormenores do ágil barco comprido, e
nem um único remador interrompeu a cadência das suas remadas,
ou se virou para verificar o movimento junto do seu ombro. Um
barco concebido para ser veloz, elegante como um galgo, com
talvez uns dezoito passos de comprimento e não mais que três ou
quatro de largura. Cadfael calculou que houvesse dez fiadas de
tábuas ao lado, seis pés de profundidade no meio do barco, o único
mastro descido à ré. Reparou nos rebites que mantinham as tábuas
unidas. Sendo um batel chato, com um calado pouco fundo, leve
para a força que tinha e a velocidade que atingia, com os dois
extremos idênticos para poder ser instantaneamente manobrado,
era o barco ideal para aportar nas dunas de Abermenai. Não servia
para transportar uma carga mais volumosa; para isso, eles deviam
ter trazido barcos de carga, mais lentos, mais dependentes das
velas e com apenas alguns remadores para os livrar de problemas
quando se deparassem com uma calmaria. Tinha uma vela redonda,
como ainda sucedia a todos os barcos naquelas águas
setentrionais. Os barcos de dois mastros com velas latinas do
inesquecível mar mediterrâneo ainda não eram conhecidos por
aqueles navegadores nórdicos.
Ele estivera demasiado embrenhado naquelas observações
para ter consciência de que ele próprio estava a ser observado com
idêntica astúcia e curiosidade por um par de luminosos olhos azuis,
debaixo de sobrancelhas espessas louras erguidas num ar de
perplexidade. Ao jovem comandante daquele grupo não escapava
nada, e ele sabia interpretar aquela apreciação do seu barco. Saiu
subitamente de junto do timoneiro e foi ter com Cadfael ao poço.
— Sabe alguma coisa sobre barcos? — perguntou ele,
interessado e surpreendido com uma preocupação tão improvável
por parte de um irmão beneditino.
— Já soube. Há muito tempo que não me aventurava a andar
na água.
— Conhece o mar? — prosseguiu o jovem, com agradada
curiosidade.
— Este mar, não. Houve um tempo em que conheci bastante
bem o Mediterrâneo e as costas orientais. Entrei tarde para o
convento — explicou ele, vendo os olhos azuis dilatar-se e cintilar
numa expressão de deleitado espanto, e uma centelha mais
profunda de prazer e reconhecimento a brilhar dentro deles.
— Irmão, fez subir o seu preço — disse o jovem dinamarquês
alegremente. — Eu pensava que era mais sensato. Monges
navegadores são animais raros, eu nunca conheci nenhum. Como é
que se chama?
— O meu nome é Cadfael, um irmão galês da abadia de
Shrewsbury.
— Um nome em troca de outro nome é um negócio justo. Eu
sou Turcaill, filho de Turcaill, familiar de Otir, que chefia esta
expedição.
— E sabe o que está em disputa aqui? Entre dois príncipes
galeses? Porque é que colocam o seu peito no meio das suas
espadas? — perguntou Cadfael num tom calmo.
— Pelo dinheiro — respondeu Turcaill alegremente. — Mas,
mesmo que não fosse pago, eu não ficaria para trás se Otir se
fizesse ao mar. Torna-se enfadonho estar em terra. Eu não sou um
marinheiro de água doce, capaz de ficar numa quinta ano após ano,
contentando-se em ver as colheitas crescer.
Não, isso certamente ele não era, nem tinha temperamento
para ir para um convento e tomar o hábito, mesmo quando as
aventuras da juventude tivessem chegado ao fim. Bem fornecido de
carnes, brilhando com uma energia animal, aquele era um homem
feito para casar e ter filhos e criar mais gerações de aventureiros,
irrequietos como o próprio mar e prontos para entrar, por lucro, na
disputa de qualquer homem, pagando o preço de pôr em risco as
suas próprias vidas.
Seguidamente, com uma palmada de despedida no ombro de
Cadfael, ele afastou-se e atravessou o barco com uma passada
firme e foi colocar-se ao lado de Heledd, no convés de ré. A luz, que
estava a desaparecer no crepúsculo, ainda mostrou a Cadfael a
expressão desdenhosa dos lábios de Heledd e o arqueado frio da
sua sobrancelha enquanto afastava a bainha da saia da
contaminação do contato inimigo e virava a cara, recusando-se a
olhar para ele.
Turcaill soltou uma gargalhada, nada desagradado, sentou-se
ao lado dela e tirou pão de uma bolsa do cinto. Partiu-o com as suas
mãos jovens, grandes e macias, e ofereceu-lhe metade, e ela
recusou. Sem se sentir ofendido, pegou-lhe à força na mão direita,
colocou-lhe a oferenda na palma da mão e cobriu-a com a mão
esquerda dela. Heledd não o conseguiu impedir e não comprometeu
o seu desdém mudo com uma luta inútil. Mas quando ele se pôs de
pé e a deixou ali, sem olhar para trás, para fazer o que lhe
apetecesse com a sua oferta, ela não a atirou à água escura do
estreito nem mordeu a côdea em jeito de aceitação, mas ficou
sentada tal como ele a deixara, com o pão no meio das mãos e a
fitar a cabeça loura dele com uma expressão calculista nos olhos
semicerrados cujo significado Cadfael não conseguiu interpretar
mas que o intrigou e inquietou.
11

Ao início da noite, num crepúsculo através do qual deslizaram


rápida e silenciosamente no meio da corrente, com apenas leves
centelhas de fosforescência a dourar a imersão dos remos,
passaram pelas luzes costeiras da Carnarvon de Owain e
emergiram numa bacia larga, isolada do mar alto apenas por línguas
gémeas de dunas de areia encimadas por arbustos cerrados e
árvores dispersas. Ao longo da água, viam-se formas escuras de
barcos, alguns com mastros com carlingas, outros estreitos e baixos
como a pequena serpente de Turcaill. Espaçados ao longo da costa,
os archotes dos postos avançados dinamarqueses ardiam no ar
parado e, mais acima, na direção do cume, brilhavam as fogueiras
de um acampamento.
Os remadores de Turcaill deram a última remada e arrumaram
os lemes, ao mesmo tempo que o timoneiro fazia o barco descrever
uma curva e abicava na areia, nas sombras. Os dinamarqueses
saíram pelo lado, carregando o saque, e chapinharam na água até
chegarem a terra firme, sendo recebidos pelos companheiros que
estavam de sentinela na orla da maré. E lá foi Heledd pelo lado,
erguida com leveza nos braços de Turcaill, desta vez não
oferecendo qualquer resistência, uma vez que esta seria, em todo o
caso, inútil, e ela estava preocupada sobretudo em preservar a sua
dignidade.
Quanto a Cadfael, ele não teve outra opção a não ser segui-los,
mesmo que dois dos remadores não o tivessem obrigado a saltar
para fora e o tivessem levado a vau até terra, agarrando-o com
firmeza pelos ombros. Quaisquer que fossem as oportunidades que
lhe surgissem, ele só fugiria daquele cativeiro quando pudesse levar
Heledd consigo. Subiu filosoficamente as dunas, entrou no
perímetro guardado do acampamento e seguiu para onde foi
conduzido, com a certeza de que o círculo de guardiães se fechava
confortavelmente atrás dele.
Cadfael acordou com a luz cinzenta pérola do amanhecer, o
imenso céu aberto por cima dele, ainda salpicado de estrelas no
zênite, a empalidecer, e a recordação instantânea da sua situação
atual. Tudo o que tinha acontecido tinha confirmado que eles tinham
pouco a recear dos seus captores, pelo menos enquanto
mantivessem o seu valor de troca, e nada a esperar no que dizia
respeito à fuga, uma vez que os dinamarqueses estavam
claramente seguros da eficiência das suas precauções. A costa
estava bem guardada, a orla do acampamento bem vigiada.
Naquele recinto, não havia necessidade de manter uma jovem e um
monge idoso sob vigilância constante. Eles podiam vaguear à
vontade que não conseguiriam sair do círculo e, no interior deste,
eles não poderiam causar qualquer mal.
Cadfael recordava-se claramente que lhe tinha sido dado de
comer, tão generosamente como aos jovens da guarda que se
moviam à sua volta, e tinha a certeza de que Heledd, por mais
informal que fosse o seu alojamento ali, também tinha recebido
comida e, uma vez entregue a si própria, sem ser observada, teria
tido o bom senso de comer o que lhe fora dado. Ela não era tão tola
que fosse, por despeito, deitar fora os seus trunfos quando tinha
uma luta entre mãos.
Ele estava deitado, bastante confortavelmente, abrigado por um
quebra-ventos formado uma barreira, numa depressão de erva
grossa, embrulhado na sua própria capa. Lembrou-se de Turcaill lha
atirar quando ela fora desenrolada do meio dos seus parcos haveres
quando o cavalo fora descarregado. A volta dele, uma dúzia de
jovens dinamarqueses ressonavam tranquilamente. Cadfael
levantou-se, espreguiçou-se e sacudiu a areia do hábito. Ninguém
fez qualquer movimento para o interceptar quando ele se dirigiu a
um local mais elevado para olhar em volta. O acampamento
fervilhava de atividade, as fogueiras já estavam acesas, e os poucos
cavalos, incluindo o seu, já tinham bebido água e sido levados para
níveis abrigados mais verdes na direção da costa, onde havia
pastagens melhores. Cadfael olhou naquela direção, para a familiar
solidez de Gales, e atravessou, sem quaisquer impedimentos, o
acampamento, à procura de um local elevado de onde pudesse ver
para além do perímetro da base de Otir. Se quisesse atacar aquela
praça-forte por terra, Owain devia vir de sul, após uma longa marcha
à volta da baía que penetrava muito para sul. Por mar, ele estaria
em desvantagem, não tendo nada que se comparasse aos
compridos barcos nórdicos. E Carnarvon parecia estar longe, muito
longe daquele acampamento militar.
No centro do acampamento tinham sido montadas algumas
tendas resistentes que alojavam os líderes da expedição. Cadfael
passou muito perto delas e parou para observar os homens que se
moviam por perto. Dois em particular tinham os inconfundíveis sinais
de autoridade, embora, curiosamente, fossem muito diferentes,
como se a autoridade de cada um deles tivesse um desígnio oposto.
Um era um homem de cinquenta anos ou mais, entroncado, com o
tronco como um barril e a estrutura de um tronco de uma árvore, e
tão queimado pelo sol, pelos borrifos da água e pelo vento, que o
castanho avermelhado da sua pele era mais escuro do que as duas
tranças cor de palha que emolduravam o seu rosto largo e o bigode
comprido que caía abaixo do queixo. Tinha os braços nus até aos
ombros, com exceção das braceletes de cabedal à volta dos
antebraços e das grossas pulseiras de ouro nos pulsos.
— Otir! — disse a voz de Heledd suavemente ao ouvido de
Cadfael. Ela tinha surgido atrás dele sem que ele desse por isso,
com passos silenciosos na areia, e o tom da sua voz era cauteloso e
preocupado. Ali ela tinha que enfrentar mais do que um jovem bem-
humorado cuja atitude tolerante talvez nem sempre lhe fosse útil.
Ali, Turcaill era um mero subordinado; aquele homem imponente à
frente deles podia anular todas as outras autoridades. Ou seria
possível que até mesmo o seu poder fosse controlado? Ali estava
outra personagem a seu lado, com um olhar altivo e modos
autoritários, pelo seu ar, um homem que não aceitaria com
humildade ordens de qualquer outro homem.
— E o outro? — perguntou Cadfael sem virar a cabeça.
— Aquele é Cadwaladr. Não era mentira, ele trouxe estes
bárbaros de cabelo comprido para Gales para arrancar os seus
direitos à força ao senhor feudal Owain. Eu conheço-o. Já o vi
antes. Ouvi o dinamarquês chamá-lo pelo nome.
O homem atraente era então Cadwaladr, refletiu Cadfael,
aprovando a boa aparência da forma, embora tivesse dúvidas a
respeito da mente no seu interior não era tão alto como o irmão,
mas era suficientemente alto para ter um porte gracioso, e movia-se
com grande à vontade e poder ao lado do dinamarquês entroncado
e musculoso. Era mais escuro que Owain, tinha o cabelo castanho
avermelhado grosso aos caracóis em cima de uma cabeça bem
proporcionada, e olhos escuros, altivos, por baixo de sobrancelhas
que quase se encontravam e que eram de um castanho mais escuro
que o cabelo. Estava bem barbeado, mas tinha adquirido alguma da
roupa e dos adornos dos seus anfitriões de Dublin durante a sua
estadia entre eles, pelo que não era imediatamente perceptível que
estava ali o príncipe galês que trouxera toda aquela expedição
através do mar para causar danos ao seu país. Ele tinha fama de
ser impetuoso, precipitado, extremamente generoso para com os
amigos, irreconciliavelmente rancoroso para os inimigos. O seu
rosto espelhava tudo o que se dizia a seu respeito. Também não era
difícil imaginar que Owain ainda pudesse amar o seu problemático
irmão, depois de tantas e repetidas reconciliações.
— Uma bela figura de homem — disse Cadfael, observando
atentamente a sua perigosa presença.
— Se ao menos o seu comportamento fosse igualmente belo —
disse Heledd.
Os chefes tinham-se retirado para leste, na direção do estreito,
rodeados pelo círculo dos seus comandantes. Cadfael, por outro
lado, continuou a andar para sul, para ter uma visão da aproximação
por terra que Owain deveria levar acabo se tencionasse isolar os
invasores na sua praia arenosa. Heledd colocou-se ao seu lado,
não, supôs ele, porque precisasse do conforto da sua companhia ou
de qualquer outra, mas porque ela também sentia curiosidade a
respeito das circunstâncias do seu cativeiro e achava que duas
cabeças talvez fizessem melhor sentido delas do que uma sozinha.
— Como tens passado? — perguntou Cadfael olhando-a
atentamente enquanto ela caminhava a seu lado, e reparando na
expressão composta, auto suficiente e resoluta dos lábios e dos
olhos. — Têm-te tratado bem neste lugar em que não há mulheres?
Ela franziu um lábio tolerante e sorriu.
— Não cometeram falta nenhuma. Se houver razão para isso,
sou bem capaz de me defender mas, por enquanto, ainda não
houve motivo. Tenho uma tenda para me abrigar, o rapaz traz-me
comida e, se quiser mais alguma coisa, eles deixam-me ir buscá-la.
Só se me aproximar demasiado da praia a leste é que me fazem
voltar para trás. Já tentei. Eu penso que eles sabem que sei nadar.
— Não fizeste qualquer tentativa quando estávamos apenas a
cem jardas da costa — disse Cadfael sem qualquer insinuação de
aprovação ou censura.
— Não — concordou ela com um pequeno sorriso triste, sem
acrescentar mais nada.
— E mesmo que conseguíssemos roubar os nossos cavalos de
volta — refletiu ele filosoficamente — não íamos conseguir sair
deste recinto armado com eles.
— E o meu está coxo — concordou ela novamente, sorrindo o
seu sorriso íntimo.
Até esse momento, ele ainda não tivera oportunidade de lhe
perguntar como é que ela fora dar com aquele cavalo, roubando-o
dos estábulos do rei quando o festim estava no seu auge, e antes
de terem chegado as notícias de Bangor a alertar Owain para a
ameaça oriunda da Irlanda. Perguntou-lhe: — Como conseguiu este
cavalo que chama de seu?
— Encontrei — respondeu simplesmente Heledd. — Selado,
arreado, preso no meio das árvores, não muito longe da casa do
portão. Era melhor do que eu alguma vez estaria à espera,
considerei-o um bom augúrio e senti-me muito grata por não ter que
vaguear ao longo da noite a pé. Mas eu faria. Quando fui encher o
jarro ainda não tinha pensado nisso mas, quando estava no pátio,
pensei, porque é que vou voltar para dentro? Já não havia nada em
Llanelwy que eu pudesse guardar, e nada em Bangor ou Anglesey
que eu quisesse. Mas tinha que haver algo para mim, algures no
mundo. Por que é que eu não havia de ir à sua procura, já que
ninguém o obteria para mim? E enquanto eu ali estava na sombra
junto do muro, os guardas do portão não tinham reparado em mim,
e esgueirei-me quando estavam de costas. Eu não tinha nada. Não
levava nada. Teria ido a pé assim, e nunca me queixaria. Foi a
minha decisão. Mas encontrei o cavalo no meio das árvores, selado,
arreado e pronto para mim, uma dádiva de Deus que não podia
recusar. Se agora o perdi – disse ela muito solenemente — pode ser
que ele me tenha trazido onde eu deveria estar.
— Pode ser que seja uma etapa da tua viagem — disse
Cadfael, preocupado — mas certamente que não é o fim. Por que
aqui estamos nós, reféns numa situação muito questionável, e eu
acho que és uma moça que preza muito a sua liberdade. Ainda
temos que nos libertar a nós próprios do cativeiro, ou aguardar aqui
que Owain o faça por nós. — Ele estava a refletir, admirado, sobre o
que ela lhe dissera, e os seus pensamentos voltavam
continuamente para tudo o que acontecera em Aber. — Então ali
estava aquele animal escondido no exterior do enclave, pronto para
ser montado. E embora os céus o tivessem destinado a ti, houve
outra pessoa que tinha em mente um desfecho muito diferente
quando o selou e levou para o bosque. Agora parece-me que Bledri
ap Rhys tencionava, de fato, fugir para junto do seu senhor para o
informar sobre as forças do príncipe. No entanto, ele foi encontrado
nu no seu quarto, de forma alguma preparado para montar. Tu
colocaste-nos um enigma. Foi ele deitar à espera que o llys
estivesse a dormir profundamente? Terá sido morto antes da hora
favorável? E como é que ele tencionava sair do maenol, se todas as
portas estavam guardadas?
Heledd estava a observá-lo atentamente por cima do ombro,
com as sobrancelhas franzidas, só compreendendo parcialmente,
mas adivinhando, muito viva e inteligentemente, o que ainda lhe era
obscuro.
— Está a dizer-me que Bledri ap Rhys morreu? Assassinado,
disse. Naquela mesma noite? Na noite em que deixei o llys?
— Não sabias? Foi depois de teres ido embora, tal como as
notícias que chegaram de Bangor. Ninguém te contou?
— Eu soube da vinda dos dinamarqueses, sim, ouvia-se essa
notícia por todo o lado na manhã seguinte. Mas não ouvi nada sobre
qualquer morte, nem uma palavra.
Não, não seriam notícias de importância crucial como era a
invasão vinda da Irlanda, um tref não a espalharia a outro tref um
maenol a outro maenol, do mesmo modo que os mensageiros de
Owain tinham levado até Carnarvon a notícia da reunião das tropas.
Heledd estava a pensar nas notícias tardias, entristecida pela morte
de qualquer homem, especialmente a de um que conhecera durante
algum tempo, tinha-o até utilizado, à sua maneira, para atormentar
um pai que procedera mal para com o afeto que ela lhe dedicava.
— Tenho muita pena — disse ela. — Ele era tão cheio de vida.
Que desperdício! Morto, acha, para impedir a sua fuga? Mais um
guerreiro para Cadwaladr, e conhecendo os planos de príncipe para
o receber? Então quem? Quem podia ter descoberto e cometido um
ato tão terrível para o impedir?
— Isso não se sabe, e eu não me vou pôr com suposições que
não servem para nada. Mas, mais cedo ou mais tarde, o príncipe irá
descobrir. O homem era, em certo sentido, seu hóspede, ele não
permitirá que a sua morte não seja vingada.
— Está a prever outra morte — disse Heledd, com amargura. —
O que é que isso repara?
E para essa pergunta não havia qualquer resposta que não
suscitasse mais perguntas, sondando todos os cantos obscuros do
que estava certo e do que estava errado. Continuaram a caminhar
juntos, até um ponto mais elevado da orla sul do acampamento
militar, sem qualquer impedimento, embora fossem observados com
um breve e curioso interesse por parte dos guerreiros
dinamarqueses por cujas linhas passavam. Na pequena colina, sem
árvores, pararam para olhar em volta.
Otir tinha optado por fazer a sua aproximação a terra não a
partir da praia a norte do estreito, onde a costa de Anglesey se
estendia numa extensão larga de dunas e buracos, nenhum deles
seguro na maré alta, e terminava numa língua comprida de areia e
seixos, mas sim a sul, onde a península de terra era mais elevada e
mais seca, abrigava uma ancoragem mais funda e proporcionava
um acampamento mais fácil de defender, bem como um acesso
mais rápido ao mar em caso de necessidade. O fato de estar
voltado mais diretamente para a forte base de Carnarvon, onde as
forças de Owain se reuniam, não tinha dissuadido o invasor. As
praias do acampamento que escolhera estavam bem guarnecidas
de homens, o ponto de aproximação por terra era suficientemente
compacto para proporcionar uma vigorosa defesa se fosse
assaltada, e estava separado da cidade por uma baía larga de água
de maré. Vários rios desaguavam na baía, lembrou-se Cadfael,
mas, na maré baixa, eles seriam meros veios sinuosos de prata
numa traiçoeira extensão de areia onde um exército não se
arriscaria de ânimo leve. Owain teria que fazer as suas forças dar a
volta pelo sul para se aproximar do inimigo em terreno seguro. Com
cerca de seis ou sete milhas de marcha entre ele e Owain, e tendo
conquistado já uma base segura, sem dúvida que Cadwaladr se
sentia quase invulnerável.
Exceto que as seis ou sete milhas pareciam ter encolhido para
uma única milha durante a noite. Porque quando Cadfael chegou ao
cimo da crista de arbustos e teve uma vista nítida para além da orla
do acampamento para sul, com o mar aberto a cintilar com a luz da
manhã à direita, e as águas pálidas pouco fundas e as areias nuas
da baía à esquerda, ele viu ao longe, espalhado ao longo da
extensão de dunas, campos aráveis e terras cobertas de arbustos, o
brilho inconfundível de armas e o lampejo pálido de tendas
coloridas, um muro oculto durante a noite. A luz matinal iluminava
contornos de movimentos, como um trémulo vento passageiro a
ondular um campo de trigo, à medida que os homens andavam com
um ar decidido de um lado para o outro, levando pausadamente a
cabo a tarefa de fortificar a posição escolhida. Fora do alcance de
lanças ou arcos, Owain tinha trazido o seu exército sob a cobertura
da noite, fechando o topo da península e encurralando as forças
dinamarquesas no seu interior. Não havia tempo a perder. Assim,
frente a frente, como dois carneiros rivais a estudar-se um ao outro,
uma ou outra das partes tinha que dar início sem demora à tentativa
de resolução do problema em causa.
Foi Owain que abriu as negociações e, antes do fim da manhã,
enquanto os chefes dinamarqueses ainda estavam a debater a
aparição das suas hostes tão perto dos seus limites, e a perguntar a
eles próprios que ação teria ele mente, agora que ali estava. Era
pouco provável que estivessem preocupados com a sua própria
segurança, uma vez que tinham acesso ao mar aberto se
necessário, bem como barcos com os quais os galeses não
conseguiam rivalizar e, sem dúvida, pensou Cadfael, discretamente
afastado dos homens armados reunidos agora no outeiro, que
estavam também a especular sobre a guarnição que ele teria
deixado a defender Carnarvon, se valeria a pena efetuar um ataque
por mar à cidade se o príncipe tentasse um ataque direto ali. Por
enquanto, eles não estavam convencidos de que ele se arriscaria a
levar a cabo uma ação de tão elevado custo. Ficaram a observar as
linhas distantes e aguardaram. Ele que falasse primeiro. Se já
estivesse decidido a receber o irmão com benevolência, como fizera
várias vezes antes, porque é que haviam de levar a cabo qualquer
ação que frustrasse uma resolução tão desejável?
Foi a meio da manhã, com o sol pálido alto, que dois cavaleiros
foram vistos a emergir de uma ligeira depressão nos terrenos
arenosos entre as duas hostes. Por enquanto eram apenas salpicos
movediços, por vezes perdidos em concavidades, seguidamente
surgindo na elevação seguinte, avançando na direção das linhas
dinamarquesas. Havia menos de meia dúzia de habitações em todo
aquele troço de dunas e buracos, uma vez que havia pouco pasto
utilizável e nenhuma terra arável, e sem dúvida que essas poucas
habitações tinham sido evacuadas durante a noite. Aquelas duas
figuras solitárias eram os únicos habitantes de uma terra de
ninguém no meio de dois exércitos e, ao que parecia, estavam
encarregados de dar início a negociações para evitar um confronto
desnecessário que teria um elevado custo. Otir esperou que eles se
aproximassem mais, e havia no seu rosto cautela e satisfação;
Cadwaladr tinha o corpo rígido e o rosto tenso, mas previa já uma
vitória. Via-se isso na forma arrogante como pisava o solo galês
com os pés afastados, na altiva elevação da sua cabeça e nos olhos
semicerrados que observavam os enviados do príncipe.
Ainda no limite do alcance de lanças ou setas, o segundo
cavaleiro parou e aguardou, protegido por uma fina cintura de
árvores. O outro continuou a cavalgar até se encontrar a uma
distância em que poderia ser ouvido, e ali parou o cavalo, a olhar
para o grupo que o observava, atento, do outeiro acima dele.
— Meus senhores — a sua voz chegou claramente até eles —
Owain Gwynedd envia o seu emissário para negociar convosco em
seu nome. Um homem de paz, desarmado, acreditado pelo príncipe.
Recebem-no?
— Deixem-no entrar — disse Otir. — Ele será honradamente
recebido.
O mensageiro retirou-se para uma distância respeitosa. O
segundo cavaleiro avançou na direção da orla do acampamento.
Quando se aproximou, tornou-se óbvio que era um homem
pequeno, magro e jovem que cavalgava com determinação, mais do
que com graciosidade, como se tivesse lidado sempre mais com
cavalos de quinta do que com elegantes montadas de príncipes e
embaixadores. Quando se aproximou mais, Cadfael que, do cimo
das dunas, observava a cena com tanto interesse como qualquer
outro, inspirou profundamente e soltou um enorme suspiro. O
cavaleiro vestia o hábito negro dos beneditinos e mostrava o rosto
jovem, composto e decidido do Irmão Mark. Era, na verdade, um
homem de paz, um mensageiro de bispos e agora de príncipes.
Não havia qualquer dúvida de que ele próprio pedira para
desempenhar aquela tarefa, nem que ele fizera ver ao príncipe o
aspecto prático de utilizar alguém cujos motivos não suscitariam
desconfiança, que não tinha nada a ganhar a não ser a sua própria
liberdade, vida e paz de espírito, sem quaisquer contas a ajustar,
sem qualquer perspectiva de lucro, sem qualquer senhor a
apaziguar neste mundo, galês, dinamarquês ou qualquer outro. Um
homem cuja humildade se podia mover como uma barreira
encantada por entre os excessos de orgulho de outros homens.
O Irmão Mark chegou à orla do acampamento, e os guardas
afastaram-se para o deixar passar. Foi o jovem Turcaill, que tinha o
dobro do tamanho de Mark, que avançou hospitaleiramente para lhe
pegar nas rédeas quando ele desmontou e começou a subir
energicamente a pequena colina onde Otir e Cadwaladr
aguardavam para o cumprimentar.
Na tenda de Otir, apinhada até à entrada com os comandantes
das suas forças e todos os homens que conseguiram pôr o pé no
limiar, o Irmão Mark transmitiu o que viera dizer, em parte em seu
nome, e em parte em nome de Owain Gwynedd. Sabendo
instintivamente que aqueles piratas partiam do princípio de que
tinham direitos a assistir aos conselhos dos seus líderes, ele elevou
a voz de modo a esta chegar aos ouvintes que se apinhavam no
exterior da tenda. Cadfael fez questão de conseguir colocar-se
suficientemente perto para ouvir o que estava a acontecer, e
ninguém levantou quaisquer objecções à sua presença. Ele era um
refém ali, e tinha as suas preocupações, tal como eles tinham as
deles. Todos os homens que tinham um interesse na expedição
exerciam o seu livre direito de salvaguardar a sua posição.
— Meus senhores — disse o Irmão Mark, levando algum tempo
a encontrar as palavras certas e a dar-lhes a ênfase apropriada. —
Eu pedi para efetuar esta missão porque não estou envolvido em
qualquer das partes da querela que vos trouxe a Gales. Não
empunho armas e não tenho nada a ganhar, mas vós e todos os
homens que aqui estão têm muito, demasiado a perder se esta
disputa terminar num derrame de sangue desnecessário. Se ouvi
muitas palavras a atribuir a culpa a qualquer dos lados, aqui não
usarei nenhuma. Direi apenas que deploro a inimizade e o ódio
entre irmãos e entre povos, e que considero que todas as disputas
deviam ser resolvidas sem derramamento de sangue. E quanto ao
príncipe de Gwynedd, Owain ap Griffith ap Cynan, direi o que ele me
mandou dizer. Esta querela tem a ver apenas com dois homens, e
todos os outros devem afastar-se de uma causa que não é sua.
Owain Gwynedd pediu-me que dissesse que se Cadwaladr, o seu
irmão, tiver qualquer queixa a fazer, ele que venha discuti-la cara a
cara, com a segurança garantida na ida e no regresso.
— E eu devo aceitar a sua palavra, sem qualquer garantia? —
perguntou Cadwaladr. Pelo brilho velado dos seus olhos, aquela
abordagem não lhe desagradava.
— Sabeis muito bem que podeis fazê-lo — disse Mark
simplesmente.
12

Sim, ele sabia. Todos os homens que ali estavam o sabiam. A


Irlanda já tinha tido muitos contatos com Owain Gwynedd, e nem
sempre sob a forma de disputa. Ele tinha familiares lá que
conheciam o seu valor tão bem como este era conhecido em Gales.
O rosto de Cadwaladr tinha um ar brilhante de contido prazer, como
se pensasse que aquela primeira troca de palavras era mais do que
encorajadora. Owain tinha ouvido o aviso, tinha visto a força do
exército invasor e estava a preparar-se para ser conciliatório.
— O meu irmão é conhecido por ser um homem de palavra —
admitiu ele graciosamente. — Ele não deve pensar que tenho medo
de me encontrar com ele cara a cara., Certamente que irei.
— Espera um pouco! Espera um pouco! — Otir moveu o seu
corpo enorme no banco em que estava sentado a ouvir. — Não tão
depressa! Esta questão pode bem ter surgido entre dois homens,
mas agora nós também estamos envolvidos nisto, convidados de
acordo com condições que eu cumpro e que conto que cumpras,
meu amigo. Se estás disposto a abandonar os teus bens confiando
na palavra de qualquer homem, sem garantia, eu não estou disposto
a abandonar os meus. Se saíres daqui para entrar no acampamento
de Owain para te submeteres à persuasão de Owain ou à coerção
de Owain, então eu exijo um refém que assegure o teu regresso em
segurança, não uma promessa oca.
— Retenham-me — disse simplesmente o Irmão Mark. — Eu
estou disposto a ficar como garantia de que Cadwaladr irá e
regressará sem qualquer impedimento.
— Recebeu instruções nesse sentido? — perguntou Otir, algo
desconfiado com a eficácia daquela troca de palavras.
— Não. Mas faço eu a proposta. É o seu direito, se receia a
traição. O príncipe não lhe diria que não.
Otir observou a figura franzina à sua frente com um cauteloso
grau de aprovação, mas permaneceu céptico.
— E o príncipe atribui-lhe, Irmão, um valor igual ao do seu
próprio parente e inimigo? Eu penso que ele talvez se sinta tentado
a agarrar um pássaro na mão e deixar o outro voar ou afogar-se.
— Eu sou, de certo modo, hóspede de Owain — disse Mark
num tom firme — e, de certo modo, seu mensageiro. O valor que ele
me atribui é o valor do seu mandado e da sua honra. Eu nunca
valerei mais do que valho tal como me vê aqui.
Otir deu uma enorme gargalhada e bateu as palmas.
— Uma ótima resposta. Fique, então, Irmão, e seja bem-vindo!
Já tem um irmão aqui. Esteja à vontade no meu acampamento, tal
como ele está, mas deixe-me avisá-lo de uma coisa, não se
aproxime muito da orla. Os meus guardas têm as suas ordens.
Aquilo que eu tomo eu guardo até ser resgatado por um preço justo.
Quando o senhor feudal Cadwaladr regressar, poderá voltar para
junto de Owain e dar-lhe a resposta que vocês dois considerarem
apropriada.
Foi, pensou Cadfael, um aviso deliberado a Cadwaladr, bem
como a Mark. Aqueles dois não confiavam muito um no outro. Se
Otir exigia que Cadwaladr regressasse em paz, certamente que não
era apenas por preocupação com a segurança de Cadwaladr, mas
também por zelar pelos seus próprios interesses no negócio. O
homem era o seu investimento, a ser guardado cuidadosamente,
mas em que nunca, nunca, confiaria totalmente. Uma vez longe da
vista, quem sabe o que um príncipe tão impetuoso faria das
circunstâncias vantajosas que lhe fossem oferecidas?
Cadwaladr pôs-se de pé e espreguiçou o seu corpo admirável
com uma suave, agradável segurança. Quaisquer reservas que os
outros pudessem ter, ele interpretara a proposta do irmão como
totalmente encorajadora. A ameaça à paz de Gwynedd tinha sido
astuciosamente avaliada, e Owain estava pronto para ceder terreno,
talvez apenas algumas polegadas, mas o suficiente para afastar o
caos. E agora a única coisa que ele, Cadwaladr, tinha que fazer, era
ir encontrar-se com ele, comportar-se corretamente aos olhos dos
outros, como ele bem sabia fazer com elegância e, em privado, não
ceder nem um pouco naquilo que exigira, e assim recuperaria tudo,
todas as terras que lhe tinham sido tiradas, todos os homens que
anteriormente o tinham seguido. Não podia haver outro desfecho,
quando Owain falava num tom tão suave e razoável na primeira
aproximação.
— Eu irei me encontrar com o meu irmão — disse ele, com um
sorriso sinistro — e o que trouxer comigo será um ganho teu, tanto
como meu.
O Irmão Mark estava sentado com Cadfael numa concavidade
das dunas que davam para o mar aberto, à luz límpida, quase sem
sombras, da tarde. À sua frente, faixas de areia, esculpidas pelos
ventos marítimos, rolavam em ondas de ouro estéril e erva áspera,
persistente, até à beira da água. A uma profundidade segura
estavam ancorados sete barcos de Otir, quatro deles de carga,
atarracados e resistentes, com capacidade suficiente para receber
um enorme saque se chegassem a arrancar o seu prêmio a
Gwynedd à força, e os outros três eram os maiores dos seus barcos
compridos. Os barcos menores e mais velozes estavam todos à
entrada da baía, onde havia ancoradouros seguros se necessário, e
possibilidade de abicar confortavelmente na praia. Para além dos
barcos, a oeste, estendia-se a água prateada, espelhando um céu
azul sem nuvens, mas salpicado, em diversos lugares, com o ouro
velado dos baixios.
— Eu sabia — disse Mark — que ia te encontrar aqui. Mas teria
vindo, mesmo sem esse estímulo. Eu estava de volta ao ponto de
encontro quando eles passaram por mim. Vi-vos prisioneiros, tu e a
moça. O melhor que consegui fazer foi ir até Carnarvon contar a
história a Owain. Ele tem o teu caso bem em mente. Mas que mais
tem ele em mente com este encontro que pediu, não sei. Parece-me
que não te tens dado muito mal com estes dinamarqueses. Acho-te
muito satisfeito. Confesso que receei por Heledd.
— Não havia necessidade — disse Cadfael. — Era óbvio que
tínhamos o nosso próprio valor para o príncipe, e ele não deixaria de
pagar um resgate, de uma forma ou doutra. Eles não desperdiçam
os seus reféns. Está-lhes prometida uma recompensa, e eles estão
decididos a recebê-la com o menor custo possível, e não farão nada
que provoque a ira de Gwynedd, a não ser que toda a expedição
lhes corra mal. Eles não cometeram qualquer afronta contra Heledd.
— E ela te disse o que a levou a fugir de nós em Aber, e como
conseguiu sair do llys. E o cavalo que ela montou... pois eu vi-o a
ser levado pelos piratas, e ele tinha uns bons arreios das
cavalariças do príncipe... como é que ela arranjou o cavalo?
— Encontrou-o — disse Cadfael simplesmente — selado,
arreado e preso no meio das árvores no exterior das muralhas,
quando saiu sorrateiramente pelo portão no momento em que os
guardas estavam de costas. Ela diz que teria fugido a pé, se
necessário fosse, mas ali estava o cavalo pronto, à espera dela. O
que pensas disto? Porque eu tenho a certeza de que ela está a falar
a verdade.
Mark refletiu muito seriamente sobre a pergunta durante vários
minutos. — Bledri ap Rhys? — arriscou ele, num tom de dúvida. —
Será que ele tencionava realmente fugir e se certificou de que tinha
um cavalo disponível quando os portões ainda estavam abertos,
durante o dia? E outro homem, desconfiando da sua teimosa
lealdade para com o seu senhor, impediu a sua partida? Mas não
havia nada que indicasse que ele tencionava ir-se embora. Parecia
que o homem estava satisfeito por ser hóspede de Owain e por ter a
mão de Owain a protegê-lo.
— Só há um homem que sabe a verdade — disse Cadfael — e
ele tem um bom motivo para não abrir a boca. Mas, apesar de tudo
isso, a verdade virá ao de cima, pois o príncipe não esquecerá o
assunto. Foi o que eu disse a Heledd, e ela respondeu: "Está a
prever outra morte. Como é que isso repara alguma coisa?"
— Ela tem razão — concordou Mark num tom sombrio. — Ela
tem mais senso comum do que a maior parte dos príncipes e de
muitos padres. Eu ainda não a vi aqui no acampamento. Ela tem
liberdade para andar à vontade, dentro dos limites, como tu?
— Podes vê-la neste preciso momento — disse Cadfael — se
virares a cabeça e olhares ali para baixo, para a direita, onde a
língua de areia se projeta para os baixios ao longe.
O Irmão Mark virou obedientemente a cabeça para onde
Cadfael apontava. A língua de areia, com uma crista de erva grossa
na ponta para mostrar que não estava completamente submersa
nem mesmo na maré alta normal, projetava-se para os baixios à
direita deles como um pulso magro e uma mão a esticar-se na
direção de um braço mais comprido que se estendia para sul a partir
da costa de Anglesey. No seu ponto mais elevado, havia solo
suficiente para suportar alguns arbustos, e ali uma pequena rocha
emergia através da areia macia. Heledd caminhava sem pressa ao
longo do pulso estendido em direção àquela articulação rochosa, a
certa altura chapinhando com água até ao tornozelo para lá chegar;
e, uma vez lá, sentou-se na rocha, a olhar para o mar, para a
invisível e desconhecida costa da Irlanda. Àquela distância ela
parecia muito frágil, muito vulnerável, uma pequena figura magra e
solitária. Poder-se-ia julgar que ela estava a distanciar-se o mais
possível dos seus captores, numa atitude de defesa contra um
destino ao qual não tinha forma de escapar fisicamente. Sozinha
junto do mar, com o céu vazio por cima e um oceano vazio à sua
frente, pelo menos a sua mente procurava uma forma de liberdade.
O Irmão Cadfael achou o quadro enganadoramente cativante.
Heledd tinha, astuciosamente, consciência da força, bem como da
fraqueza, da sua situação e, mesmo que fosse uma pessoa
temerosa, o que decididamente não era, sabia muito bem que não
tinha nada a recear. Ela também sabia até onde podia ir na
reivindicação da sua liberdade de movimentos. Ela não se teria
aproximado da praia da baía sem ter sido interceptada. Eles sabiam
que ela sabia nadar. Mas aquela praia não lhe proporcionava
qualquer possibilidade de fuga. Ali ela podia passar a vau por entre
os baixios que ninguém levantaria um dedo para a impedir. Era
pouco provável que ela desatasse a nadar para a Irlanda, mesmo
que não houvesse uma pequena frota de barcos irlandeses na água.
Ela estava sentada imóvel, com os braços nus à volta dos joelhos, a
olhar para oeste, mas com a cabeça tão atentamente ereta que,
mesmo àquela distância, ela parecia estar à escuta. As gaivotas
giravam e gritavam por cima dela. O mar era plácido, iluminado pelo
sol, de momento complacente como um gato. E Heledd aguardava e
escutava.
— Já alguma vez se viu alguém mais desanimado! — indagou-
se o Irmão Mark, a meia voz. — Cadfael, eu tenho que falar com ela
o mais depressa possível. Eu vi o noivo dela em Carnarvon. Ele veio
apressadamente da ilha para se juntar a Owain, ela tem que saber
que ele não renunciou a ela. Este Ieuan é um homem honesto,
decente, e lutará pela sua noiva. Mesmo que Owain se sentisse
tentado a deixar a moça entregue ao seu destino aqui (e isso é
impossível!) Ieuan não o permitiria. Se ele tivesse que vir buscá-la
sem quaisquer outras forças a não ser o seu pequeno séquito, tenho
a certeza de que nunca desistiria. A igreja e o príncipe ofereceram-
na a ele, e ele está desejoso de a ter.
— Eu acredito — disse Cadfael — que lhe arranjaram um bom
homem, com todas as qualidades à exceção de uma. Um defeito
fatal! Não foi ela que o escolheu.
— Ela podia arranjar muito pior. Quando o conhecer, irá gostar
dele. E neste mundo — refletiu Mark com tristeza — as mulheres, tal
como os homens, têm que tirar o maior partido possível daquilo que
conseguirem arranjar.
— Com trinta anos ou mais — disse Cadfael — ela talvez
tivesse disposta a contentar-se com isso. Mas com dezoito... duvido!
— Se ele vier em pé de guerra para levá-la, aos dezoito anos
isso talvez a influencie — observou Mark, mas o tom da sua voz não
era de plena convicção.
Cadfael tinha virado a cabeça e estava a olhar para trás, na
direção da crista das dunas, onde um homem tinha acabado de
subir ao outeiro e descia agora na direção da praia. O passo largo,
generoso, o movimento exuberante dos seus ombros largos, o porte
alegre da cabeça loura, mais brilhante que o sol, atribuir-lhe-iam um
nome mesmo a uma distância maior.
— Eu não apostaria nisso — disse Cadfael cautelosamente. —
E, mesmo que assim seja, ele chega um pouco tarde, pois já veio
alguém para a levar. Essa questão também está em dúvida.
O jovem Turcaill emergiu no campo de visão do Irmão Mark
apenas quando se aproximou da língua de terra e, em vez de a
percorrer toda para manter os pés secos, passou alegremente a vau
através dos baixios para o local onde Heledd estava sentada. Ela
continuava de costas para ele, mas os seus ouvidos estavam
indubitavelmente atentos.
— Quem é aquele? — perguntou Mark, ficando tenso.
— Aquele é Turcaill, filho de Turcaill, e, se nos viste a ser
levados para o barco, deves ter visto a cabeça dele a passar. Não é
possível deixar de vê-la, ela fica bem acima de nós.
— Aquele é o homem que a fez prisioneira? — Mark estava a
olhar, de sobrancelha franzida, para a ilha minúscula de Heledd,
onde ela continuava a fingir que não dera pelo aparecimento de um
intruso na sua solidão.
— Foi tal como disseste. Ele veio em pé de guerra e levou-a.
— O que é que ele quer dela agora? — interrogou-se Mark,
fitando-o.
— Nada de mal. Aqui ele está sujeito a uma autoridade mas,
mesmo que não estivesse, não lhe faria mal. — O jovem tinha
emergido, com uma pequena chuva de borrifos, ao lado da rocha de
Heledd e deixou-se cair com graciosidade na areia aos pés dela. Ela
não mostrou dar pela presença dele, a não ser que se considere
como tal o fato de se ter afastado um pouco dele. O que quer que
tivessem dito um ao outro não podia ser ouvido àquela distância e,
estranhamente, Cadfael teve a certeza súbita de que não era a
primeira vez que Heledd se sentava ali, nem a primeira vez que
Turcaill enroscava as suas pernas confortavelmente ao lado dela.
— Eles estão a travar uma pequena guerra privada — disse ele
placidamente. — Isso dá-lhes grande prazer. Ele adora fazê-la
cuspir fogo, ela gosta de troçar dele.
Uma brincadeira de crianças, pensou ele, uma batalha animada
que lhes faz passar o tempo de uma forma tanto mais agradável
porque nenhum deles precisa de a levar a sério. Bem vistas as
coisas, nós também não precisamos levar a sério.
Ocorreu-lhe mais tarde que ele estava a violar a suas próprias
regras, e a apostar numa questão que ainda estava em dúvida.
Na quinta abandonada em que Owain tinha montado o seu
quartel general, a uma milha da orla do acampamento de Otir,
Cadwaladr deu a conhecer todas as suas razões de queixa,
fazendo-o com alguma discrição porque falou na presença, não só
do seu irmão, mas também de Hywel, contra quem ele sentia talvez
uma mais azeda animosidade, e de meia dúzia de comandantes de
Owain, homens que ele não desejava alienar se pudesse manter a
sua simpatia. Mas ele foi incapaz de conter a sua indignação ao
longo da longa história, e a própria reserva e tolerância com que o
escutaram agravou o seu furioso rancor. Quando chegou ao fim,
estava inflamado com as injustiças sofridas e encontrava-se
disposto a prosseguir com o que estava implícito em todas as
palavras, a ameaça de guerra aberta se as suas terras não lhe
fossem devolvidas.
Owain ficou silencioso durante alguns minutos, a olhar para o
irmão com uma expressão que Cadwaladr não conseguia decifrar.
Por fim, moveu-se, sem pressa, e disse calmamente: — Tu estás
um pouco equivocado sobre a situação e esqueceste-te, muito
convenientemente, de uma pequena questão que foi a morte de um
homem, pela qual foi cobrado um preço. Trouxeste estes
dinamarqueses de Dublin como forma de me pressionar. Eu não sou
pressionado tão facilmente, nem sequer por um irmão. Agora deixa-
me mostrar-te a realidade. Agora a bota encontra-se no outro pé. Já
não é uma questão de tu me dizeres: devolve-me todas as minhas
terras, senão eu deixo estes bárbaros à solta em Gwynedd até o
fazeres. Agora deixa-me dizer-te: Tu trouxeste estas hostes, agora
livra-te delas, depois talvez... eu estou a dizer talvez... te seja
devolvido o que já foi teu.
Não era de modo algum aquilo que Cadwaladr esperara, mas
ele estava tão seguro do seu êxito junto daqueles aliados, que não
se coibiu de fazer a interpretação que mais lhe convinha. Owain
queria dizer mais e melhor do que estava disposto a pôr em
palavras. Ele já se mostrara muitas vezes tolerante em relação às
ofensas do irmão, e sê-lo-ia de novo. À sua maneira, ele já estava a
falar numa aliança para desafiar e expulsar os invasores
estrangeiros. Não podia ser outra coisa.
— Se estiveres disposto a receber-me e juntar-te a mim... —
começara ele, num tom suave e respeitoso, tendo em conta o seu
temperamento exaltado, mas Owain interrompeu-o impiedosamente.
— Eu não falei em tal intenção. Volto a dizer-te, livra-te deles, e
só então eu considerarei restituir-te os teus direitos em Ceredigion.
Eu disse sequer que te prometia alguma coisa? A possibilidade de
alguma vez voltares a governar em Gales depende de ti, e não
apenas no que diz respeito a esta questão. Não te prometo nada,
nenhuma ajuda para enviares esses dinamarqueses de volta
através do mar, nenhum tipo de pagamento, nenhuma trégua a não
ser se ou quando eu decidir estabelecer tréguas com eles. Eles são
um problema teu, não meu. Eu posso ter, e reservar, a minha
própria desavença com eles por terem ousado invadir o meu
domínio. Mas, neste momento, essas considerações ficam em
suspenso. A tua desavença com eles, se os mandares embora
agora, é problema teu.
O rosto de Cadwaladr tinha ficado vermelho de ira, e os seus
olhos chamejavam com uma raiva incrédula.
— O que é que estás a exigir de mim? Como é que queres que
eu lide com um exército daqueles? Sem ajuda? O que é que queres
que eu faça?
— Não há nada mais simples — disse Owain, imperturbável. —
Mantém o acordo que tinhas com eles. Paga-lhes o dinheiro que
prometeste, ou acarreta com as consequências.
— E isso é tudo o que tens a dizer-me?
— É tudo o que tenho a dizer-te. Mas podes ter tempo para
pensar no que mais poderá ser dito entre nós se mostrares que tens
juízo. Passa a noite aqui — disse Owain — ou volta quando
quiseres. Mas não receberás mais nada de mim enquanto houver
um dinamarquês não desejado em solo galês.
Ele estava tão claramente a mandá-lo embora, e Owain era
implacavelmente o príncipe e não o irmão, que Cadwaladr se pôs
mansamente de pé e saiu, chocado e silencioso. Mas não estava na
sua natureza aceitar a possibilidade de todos os seus esforços não
terem dado em nada. No acampamento compacto e bem planejado
do irmão, ele foi recebido e reconhecido como hóspede e, ao
mesmo tempo, como membro da família, inviolável e com direito à
máxima cortesia por um lado, tratado com confortável familiaridade
por outro. Esse trato só confirmou o seu otimismo natural e reforçou
a sua arrogante autoconfiança. O que ele ouvira era a superfície que
cobria uma realidade muito diferente. Muitos dos chefes de Õwain
nutriam algum afeto por aquele príncipe incômodo, por mais
duramente que esse afeto tivesse sido posto à prova no passado, e
por mais abertamente que condenassem os excessos a que o seu
temperamento altivo o impelia. Como era maior, refletiu ele sentado
à mesa de campanha de Owain e na tenda de Owain durante a
noite; o amor que o irmão lhe dedicava. Quantas vezes ele o
desprezara e tinha sido por isso castigado, tendo até caído em
desgraça, mas apenas durante algum tempo? Quantas vezes Owain
o tinha perdoado e recebido fraternalmente de volta ao seu
inevitável afeto? Ele voltaria a fazê-lo. Porque é que desta vez havia
de ser diferente?
De manhã, levantou-se com a certeza de que conseguiria
manobrar o irmão tão seguramente como sempre fizera antes. Por
mais monstruoso que fosse o delito, os laços de sangue que os
uniam não podiam ser ignorados. Por causa desse sangue, uma vez
lançados os dados, Owain faria melhor do que dissera e apoiaria
incondicionalmente o irmão.
Tudo o que Cadwaladr tinha a fazer era lançar os dados que
forçariam Owain a agir. O resultado nunca estivera em dúvida. Uma
vez profundamente enredado na sua teia, o irmão não o
abandonaria. Um homem menos otimista teria visto aquelas
maquinações como sendo uma aposta um tanto duvidosa.
Cadwaladr via o resultado final como uma certeza.
Alguns dos que estavam no acampamento tinham sido homens
seus antes de Hywel o ter expulso de Ceredigion. Calculou o seu
número e sentiu uma falange atrás de si. Ele não estaria sem
defensores. Mas, naquele momento, não usou nenhum deles. A
meio da manhã mandou selar o cavalo e deixou o acampamento de
Owain sem se despedir formalmente, como se regressasse para
junto dos dinamarqueses para negociar com eles com a menor
perda possível de gado, dinheiro ou prestígio. Muitos viram-no partir
com uma simpatia meio relutante. Provavelmente, o próprio Owain
também o fez, observando o cavaleiro solitário a afastar-se no
campo aberto, até ter desaparecido numa das depressões do
terreno, reaparecendo na encosta mais distante já transformado
numa minúscula figura anônima sozinha na vastidão da areia
soprada pelo vento. Aceitar censuras, suportar o fardo que lhe era
imposto e regressar sem se queixar para fazer o melhor que podia
com ele, era algo novo em Cadwaladr. Se ele mantivesse aquela
virtude inusitada, ainda valeria bem a pena o irmão salvá-lo.
A reaparição de Cadwaladr, avistado antes do meio-dia das
linhas de patrulha que cobriam a aproximação por terra ao
acampamento de Otir, não suscitou qualquer surpresa. Tinha-lhe
sido prometida liberdade para ir e voltar. O vigia, comandado pelo
homem Torsten, o que tinha a reputação de conseguir rachar uma
árvore a cinquenta passos, mandou comunicar a Otir que o seu
aliado estava de regresso, sozinho e ileso, conforme tinha sido
prometido. Ninguém estivera à espera de qualquer outro desfecho;
queriam apenas saber que recepção ele tivera, e que condições
trazia do príncipe de Gwynedd.
De um local mais elevado no interior das linhas, desde manhã
cedo que Cadfael tinha estado atento a ver se chegava alguém e,
ao saber da notícia que Cadwaladr tinha sido avistado a atravessar
as dunas, Heledd veio, curiosa, ver por ela própria, acompanhada
pelo Irmão Mark.
— Se o seu penacho estiver alto — disse Cadfael
sensatamente — quando ele se aproximar o suficiente para vermos
bem, então é porque Owain cedeu, de algum modo. Ou então
acredita que, com mais um pouco de persuasão, consegue fazê-lo
ceder. Se há algum pecado mortal em que Cadwaladr nunca cairá,
certamente que é o desânimo.
O cavaleiro solitário chegou sem pressa ao esparso véu de
árvores no cimo de um outeiro, a alguma distância da orla do
acampamento. Cadwaladr sabia calcular o alcance das setas e das
lanças tão bem como a maior parte dos outros homens pois, durante
alguns minutos, ficou ali parado, sentado em silêncio no cavalo.
Essa demora provocou o primeiro murmúrio de leve surpresa que
atravessou as fileiras dos guerreiros de Otir.
— O que se passa com ele? — perguntou Mark ao lado de
Cadfael. — Ele tem liberdade para ir ou vir. Owain não deu qualquer
passo para o reter, os seus dinamarqueses querem-no de volta. Mas
parece-me que o penacho dele é suficientemente alto. Se ele não
tiver motivo para se sentir envergonhado, pode muito bem vir
transmitir as notícias que tiver.
Em vez disso, o cavaleiro soltou um grito que ecoou sobre as
dunas até os que estavam à escuta na paliçada.
— Chamem Otir! Tenho uma mensagem de Gwynedd para ele.
— O que poderá ser? — perguntou Heledd, intrigada. — E
lógico que ele tenha uma mensagem, por que outro motivo foi ele
lá? Mas porque transmitiria a mensagem aos gritos, a cem passos?
Otir apareceu no cimo do acampamento com uma dúzia de
chefes atrás de si, entre eles Turcaill. Da entrada da paliçada, ele
respondeu com um grito: — Aqui estou eu, Otir. Entre e traga sua
mensagem, seja bem-vindo.
Mas se ele, nesta altura, não se sentia apreensivo e cheio de
dúvidas, pensou Cadfael, então ele deveria ser certamente o único
homem ainda seguro do controlo daquela expedição. E, se se
sentia, decidira de momento esquecer as dúvidas e aguardar que
tudo fosse esclarecido.
— Esta é a mensagem que te trago de Gwynedd — disse
Cadwaladr devagar, num tom de voz alto e claro, de modo a ser
ouvido por todos os homens no interior das linhas dinamarquesas.
— Volta para Dublin, com todo o teu exército e todos os teus barcos.
Porque Owain e Cadwaladr fizeram as pazes, Cadwaladr vai reaver
as suas terras e já não precisa de ti. Vai-te embora!
E, no mesmo instante, ele deu meia volta com o cavalo e
desceu as dunas a galope, na direção do acampamento galês. Um
enorme uivo de raiva seguiu-o, e duas ou três setas, que a
desconfiança levara a colocar no arco, caíram inofensivamente na
areia atrás dele. Era impossível segui-lo, o seu cavalo era tão rápido
como qualquer um que os dinamarqueses conseguissem arranjar, e
partiu a toda a velocidade para junto do irmão, para cumprir o que
se atrevera a dizer em voz alta. Eles viram-no desaparecer e
reaparecer duas vezes durante a fuga, descendo e subindo com as
ondas das dunas, até não ser mais do que um mero ponto ao longe.
— Isto será possível? — espantou-se o Irmão Mark, chocado e
incrédulo. — Ele pode ter virado a casaca tão rápida e facilmente?
Owain teria aprovado?
O clamor de ira e incredulidade que tinha sacudido os piratas
dinamarqueses transformou-se, subitamente, num murmúrio de
compreensão e aceitação mais contido e muito mais
impressionante. Otir reuniu os chefes à sua volta, virando as costas
ao ato de traição e, com um ar decidido, subiu as dunas até à sua
tenda, para conferenciar sobre o que se seguiria. Não houve
desperdício de tempo com acusações ou ameaças, não houve nada
no seu rosto moreno largo que denunciasse o que se passava por
detrás da testa de cobre. Otir encarava as coisas como elas eram,
não como ele gostaria que fossem. Ele nunca hesitaria em enfrentar
a realidade. — Se uma coisa é certa — disse Cadfael, ao vê-lo
passar, enorme, reservado e perigoso — é que ali vai um homem
que cumpre os seus acordos, bons ou maus, e exigirá o mesmo
daqueles que estabelecem acordos com ele. Com ou sem Owain,
Cadwaladr terá que ter muito cuidado, porque Otir vai arrancar-lhe o
preço acordado, em bens ou em sangue.
Nenhuma premonição daquele gênero incomodava Cadwaladr
na sua viagem de regresso ao acampamento do irmão. Quando a
sentinela no exterior o mandou parar, ele parou o tempo suficiente
para tranquilizar alegremente a sentinela: — Deixa-me passar,
porque eu sou tão galês como tu, e este é o meu lugar. Agora temos
uma causa comum. Eu responderei perante o príncipe pelo que fiz.
Levaram-no à presença do príncipe, na verdade escoltaram-no
até lá, sem saberem bem o que estava por detrás do seu regresso,
e decididos a que ele confirmasse o seu objetivo a Owain antes de
falar com qualquer outra pessoa. Havia bastantes antigos
associados seus entre os soldados, e ele conseguia manter a
devoção que os outros lhe dedicavam até muito depois de ter sido
provado que não a merecia. Se ele tinha trazido os dinamarqueses
para ali para ameaçar Gwynedd, era bem possível que tivesse
conspirado com eles, de uma forma nova e sutil, para atingir os seus
objetivos. E Cadwaladr chegou junto de Owain no meio deles,
sorrindo desdenhosamente da sua desconfiança implícita, deixando-
se convencer, como sempre, pelos argumentos da sua própria
mente otimista, e seguro do seu poder.
Owain afastou-se da secção da paliçada que os seus
engenheiros estavam a reforçar e olhou, de sobrolho franzido, para
o irmão, regressado tão inesperadamente. A sua expressão era de
surpresa e espanto, até mesmo de preocupação com a
possibilidade de que alguma coisa inesperada tivesse impedido a
liberdade de movimentos de Cadwaladr.
— Já estás de volta? O que é que se passa?
— Caí em mim — disse Cadwaladr, num tom confiante — e
voltei para onde pertenço. Eu sou tão galês como tu, e igualmente
real.
— Até que enfim que te lembras disso — disse Owain
secamente. — E agora que aqui estás, quais são as tuas intenções?
— Eu tenciono libertar este país de irlandeses e
dinamarqueses, como julgo que é também teu desejo. Eu sou teu
irmão. As tuas forças e as minhas são uma única força, têm que ser
uma única força. Nós temos os mesmos interesses, as mesmas
necessidades, os mesmos objetivos...
O sobrolho franzido de Owain acentuara-se, e o seu rosto era
como uma nuvem de trovoada, ainda silenciosa, mas ameaçadora.
— Fala claramente — disse ele. — Eu não estou com
disposição para rodeios. O que é que fizeste?
— Desafiei Otir e todos os seus dinamarqueses! — Cadwaladr
estava orgulhoso do seu gesto e tinha a certeza de que conseguiria
torná-lo aceitável e fundir num só os poderes que a iriam fazer
cumprir. — Mandei-os embarcar e voltar para Dublin, pois eu e tu
estamos decididos a expulsá-los do nosso solo, e o melhor que eles
têm a fazer é ir-se embora e evitar um recontro sangrento. Foi um
erro da minha parte trazê-los para cá. Se quiseres, sim, eu
arrependo-me. Entre nós dois não há necessidade de uma briga tão
feroz. Agora renunciei aos seus serviços pagos e rejeitei-os. Livrar-
nos-emos deles, até ao último homem. Se estivermos unidos, eles
não se atreverão a enfrentar-nos...
Até então, ele tinha falado numa torrente de palavras cada vez
mais rápida, como estivesse desesperado por se convencer a si
próprio, mais do que a Owain. Quase sem se dar conta, as dúvidas
tinham-se instalado na sua mente, suscitadas pela gélida
imobilidade do rosto do irmão e pela expressão sombria e silenciosa
da sua boca debaixo da testa franzida. O fluxo de eloquência
enfraqueceu e vacilou, e embora Cadwaladr tivesse respirado fundo
e retomasse o fio, já não conseguiu recuperar a convicção anterior.
— Eu ainda tenho partidários, eu farei a minha parte. Não
podemos falhar, eles não têm uma base de operações firme, ficarão
encurralados pelas suas próprias defesas e serão varridos para o
mar que os trouxe até cá.
Desta vez, ele acabou por se calar. Fez-se até silêncio, muito
eloquente para vários homens de Owain que tinham parado de
trabalhar nas defesas para escutar com um interesse de homem
livre, e sem dispersar. Não havia galês nenhum que não dissesse
claramente o que pensava, nem que fosse ao seu príncipe.
— O que será — perguntou Owain a si próprio em voz alta,
para o céu acima dele e a terra abaixo de si — que leva este
homem a pensar que as minhas palavras não querem dizer o que
parecem querer dizer aos ouvidos de homens sãos? Eu não disse
que não vais conseguir nada de mim? Que não vou gastar uma
única moeda, nem arriscar a vida de um só homem? O mal que tu
fizeste, meu irmão, és tu que tens que o desfazer. Foi o que eu
disse e mantenho.
— E eu já fiz muita coisa! — explodiu Cadwaladr, corando até à
raiz dos cabelos. — Se fizeres a tua parte com o mesmo empenho,
o assunto fica resolvido. E quem irá arriscar a vida? Eles não se
atreverão a travar uma batalha. Retirar-se-ão enquanto é tempo.
— E tu acreditas que eu iria participar numa traição dessas? Tu
fizeste um acordo com esses piratas, agora quebrá-lo com a leveza
da lanugem do cardo soprada pelo vento e estás à espera que eu te
elogie por isso? Se a tua palavra é assim tão leve, pelo menos
deixa-me sobrecarregá-la com o meu desagrado. Se fosse só por
isso — disse Owain, subitamente furioso — eu não mexeria um
dedo para te salvar das tuas loucuras. Mas há pior. Quem irá
arriscar a vida, dizes tu! Já te esqueceste, ou nunca te deste ao
trabalho de compreender, que os teus dinamarqueses têm em seu
poder dois frades beneditinos, um dos quais que se ofereceu como
refém da tua boa fé, que agora já todos viram que não vale
absolutamente nada, quanto mais a liberdade e a vida de um
homem bom. Além disso, eles têm também uma moça que fazia
parte da minha comitiva e estava ao meu cuidado, mesmo que ela
tivesse decidido aventurar-se a deixá-lo e partir sozinha. Eu sou
responsável por todos três. E tu abandonaste-os ao destino que Otir
pode decidir dar aos seus reféns, agora que lhe cuspiste, o
enganaste e colocaste em perigo à custa da tua própria honra. Foi
isso o que tu fizeste! Eu não vou desfazer nada disso, e tu podes
fazer os acordos que puderes fazer com os aliados que traíste e
abandonaste.
E sem fazer uma pausa para ouvir qualquer resposta, mesmo
que o seu irmão tivesse recuperado o fôlego suficiente para falar,
Owain virou-lhe as costas e ordenou ao homem mais próximo: —
Manda selar o meu cavalo! Já, e rápido!
Cadwaladr caiu em si com uma violenta convulsão e correu
atrás dele, pegando-lhe no braço.
— Que é que vai fazer? Está louco? Agora já não tem escolha,
está tão envolvido nisto como eu. Não pode me abandonar!
Owain libertou-se, empurrando o irmão para longe, num gesto
de breve e amarga aversão.
— Deixa-me! Fica ou vai-te embora, faz o que quiseres, mas
mantém-te longe da minha vista até eu conseguir suportar olhar
para ti ou tocar-te. Tu não falaste em meu nome. Se o fizeste,
mentiste. Se eles tocaram num só cabelo do jovem diácono, tu
responderás por isso. Se a moça foi insultada ou magoada, pagarás
o preço. Vai, esconde-te, pensa no teu próprio problema, pois não
és meu irmão nem meu aliado; tens que suportar as consequências
das tuas próprias loucuras até ao fim.
Ainda não passava duas horas do meio-dia quando outro
cavaleiro solitário foi avistado do acampamento nas dunas,
cavalgando velozmente e dirigindo-se para o perímetro
dinamarquês. Um homem sozinho, com um objetivo manifesto e não
parando cautelosamente fora do alcance das armas, mas
avançando com um ar decidido na direção dos sentinelas, que
ficaram a vê-lo aproximar-se de olhos semicerrados para avaliar o
seu porte e os seus aprestos, tentando adivinhar as suas intenções.
Ele não usava cota de malha nem trazia armas visíveis.
— Não há mal nenhum nele — disse Torsten. — Pelo seu porte,
ele dirá o que pretende. Vão dizer a Otir que temos outro visitante.
O portador da mensagem foi Turcaill, que a transmitiu tal como
a interpretou.
— Pelo cavalo e pelos arreios, é um homem de boa posição
social. Mais louro que eu, podia ser um dos nossos, e bastante
grande. Mais ou menos do meu tamanho, julgo. Pode ser até mais
alto que eu. Nesta altura, ele já estará próximo. Trago-o até aqui?
Otir refletiu apenas por um momento.
— Sim, ele que venha. Um homem que vem ter diretamente
comigo de homem para homem merece ser ouvido.
Turcaill voltou alegremente para o posto da sentinela a tempo
de ver o cavaleiro parar junto do portão e desmontar de mãos vazias
para falar.
— Vão dizer a Otir e aos seus pares que Owain Griffith ap
Cynan, príncipe de Gwynedd, pede para falar com ele.
Desde o desafio de Cadwaladr que tinha havido conversações
muito sérias e muito calmas no círculo interior dos chefes de Otir.
Não eram homens que aceitassem uma traição daquelas e
tentassem sair mansamente da armadilha em que ela os tinha
deixado. Mas o que quer que tivessem discutido e contemplado em
retaliação ficou subitamente suspenso quanto Turcaill, sorrindo,
satisfeito, com aquela espantosa visita, entrou e anunciou: — Na
porta está Owain Gwynedd na sua pessoa real, pedindo para falar
com os senhores.
13

Otir teve um sentido protocolar que não precisou de instigação.


O espanto que aquela chegada lhe provocou foi posto de parte num
instante, e ele levantou-se, dirigiu-se à porta aberta da tenda e levou
o visitante pela sua própria mão até à mesa desmontável à volta da
qual estavam reunidos os seus comandantes.
— Senhor meu príncipe, seja o que for que tendes a dizer, sois
muito bem-vindo. Conhecemos a sua linhagem e a sua reputação,
os seus antepassados por parte da sua avó são familiares próximos
dos nossos. Ainda que tenhamos as nossas discordâncias e já
tenhamos lutado em lados opostos e possamos voltar a fazê-lo,
nada impede que nos encontremos e conversemos francamente.
— Eu não espero nada menos que isso — disse Owain. — Não
tenho qualquer motivo para vos estimar, uma vez que estais aqui no
meu solo sem terdes sido convidado e sem qualquer propósito bom
em relação a mim. Eu não vim trocar saudações convosco, nem
fazer queixas, mas sim esclarecer o que poderá ser um mal-
entendido entre nós.
— Será que há algum mal-entendido? — perguntou Otir com
um bom humor irônico. — Eu achava que a nossa situação era
bastante clara, pois aqui estou eu, e aqui estais vós a reconhecer
que eu não tenho o direito de aqui estar.
— Isso, para já — disse Owain — podemos deixar para ser
resolvido noutra altura. O que vos poderá ter iludido foi a visita que o
meu irmão Cadwaladr vos fez esta manhã.
— Ah, isso! — disse Otir, sorrindo. — Então ele está de volta ao
seu acampamento?
— Está. Ele está de volta, e eu estou aqui para vos dizer...
podia até dizer, para vos avisar... que ele não falou em meu nome.
Eu desconhecia as suas intenções. Pensei que ele tivesse voltado
para junto de vós tal como vos deixou, ainda seu aliado, ainda hostil
em relação a mim, ainda um homem de palavra ligado a vós. Não foi
meu desejo nem com a minha autorização que ele vos abandonou,
e, ao abandonar-vos, renunciou ao valor sagrado da sua palavra. Eu
não fiz as pazes com ele, nem farei guerra com ele contra vós. Ele
não recuperou as terras que lhe tirei, por uma boa razão. Ele tem
que cumprir o acordo que fez convosco o melhor que puder.
Eles estavam a olhar atentamente para ele, e uns para os
outros, em redor da mesa, à espera de ser esclarecidos e coibindo-
se de fazer qualquer juízo até as dúvidas se terem dissipado.
— Nesse caso, estou com dificuldade em compreender o
objetivo desta visita — disse Otir educadamente — por mais prazer
que a companhia de Owain Gwynedd me proporcione.
— É muito simples — disse Owain. — Eu estou aqui para
reclamar os três reféns que detêm no seu acampamento. Um deles,
o jovem diácono Mark, permaneceu voluntariamente para garantir o
regresso em segurança do meu irmão, que agora tornou esse
regresso impossível. Os outros dois, a moça Heledd, filha de um
cônego de Santo Asaph, e o Irmão Beneditino Cadfael, da Abadia
de Shrewsbury, foram capturados pelo jovem guerreiro que me
conduziu até vós, quando fez uma incursão em Menai, à procura de
provisões. Eu vim certificar-me de que nada de mal deve acontecer
a nenhum deles devido ao fato de Cadwaladr ter renunciado ao seu
acordo. Eles não têm nada a ver com ele. Todos os três estão sob
minha proteção. Eu estou aqui para oferecer um resgate justo por
eles, independentemente do que possa vir a acontecer entre o meu
povo e o seu. Eu assumo honrosamente as minhas
responsabilidades. As de Cadwaladr não têm nada a ver comigo.
Exijam dele o que ele vos deve, não de qualquer destes três seres
inocentes.
Otir não disse abertamente: "É o que tenciono fazer!", mas
esboçou um pequeno sorriso que falava claramente por ele.
— A sua proposta poderá interessar-me — disse ele — e não
duvido que, entre nós, possamos acordar um resgate justo. Mas, por
enquanto, tereis que me desculpar por eu decidir manter todos os
meus bens. Quando tiver refletido sobre tudo isto, então sabereis se
estou disposto a vender-vos os seus hóspedes de volta, e por que
preço.
— Então, pelo menos — disse Owain — prometei-me que eles
regressarão ilesos quando eu os recuperar... quer seja através da
compra, quer da captura.
— Eu não estrago aquilo que posso desejar vender —
concordou Otir. — E quando eu exigir o que me é devido, será ao
devedor que o exigirei. Isso eu prometo.
— E eu aceito a sua palavra — disse Owain. — Mandai-me
uma mensagem quando quiserdes.
— E não há mais nada a ser dito entre nós?
— Por enquanto — disse Owain — não há mais nada. Vós
haveis reservado as suas escolhas. Eu reservo igualmente as
minhas.
Cadfael saiu do lugar onde estivera imóvel e em silêncio, no
abrigo da tenda, e seguiu ao longo das fileiras mudas de
dinamarqueses que se afastaram, abrindo caminho para o príncipe
de Gwynedd se dirigir ao cavalo que o aguardava. Owain montou e
cavalgou, agora sem pressa, mais seguro do seu inimigo do que
alguma vez estivera do seu irmão, desde a juventude. Depois de a
cabeça loura, descoberta ao sol, ter desaparecido duas vezes de
vista e voltado a aparecer, e de se ter transformado num ponto
distante de ouro pálido ao longe, Cadfael voltou para trás ao longo
das dunas e foi à procura de Heledd e Mark. Eles deviam estar
juntos. Mark tinha assumido, um tanto timidamente, o dever de
proteger a privacidade da moça. Ela podia mandá-lo embora quando
lhe apetecesse, quando não o quisesse; quando ela o quisesse, ele
estaria por perto. Cadfael achara estranhamente comovente o fato
de Heledd suportar esses cuidados tímidos mas resolutos, pois ela
usava Mark como uma irmã mais velha faria, mostrando-se
atenciosa para com a sua dignidade e tendo o cuidado de nunca
lançar sobre ele as perigosas armas que tinha à sua disposição ao
lidar com outros homens, e por vezes usava para seu próprio prazer,
não menos do que em magoada retaliação contra o pai. Porque não
havia qualquer dúvida de que Heledd, com o vestido rasgado na
manga e amarrotado por dormir na areia em concavidades orladas
de ervas, o cabelo solto à volta dos ombros numa juba escura a que
o sol conferia laivos azuis, e os pés geralmente descalços na areia
quente e nos baixios frescos ao longo da costa, estava mais
próxima da beleza pura do que alguma vez estivera e, se quisesse,
podia ter semeado o caos na vida da maior parte dos jovens que ali
estavam. Também não era totalmente para sua própria defesa que
ela se deslocava tão discretamente no acampamento, suprimindo a
sua radiosidade e evitando o contato com os seus captores, com
exceção do jovem que a servia e de Turcaill, a cuja companhia
brincalhona ela se acostumara, e cujas farpas ela se comprazia em
retribuir.
Naqueles dias de cativeiro, havia em Heledd uma frescura, um
fulgor de Verão que era mais do que o brilho do sol no seu rosto.
Parecia que agora que ela era prisioneira, por mais suave que fosse
o seu cativeiro dentro dos seus rígidos limites, e tinha aceite o fato
de não estar indefesa, agora que toda a ação e todas as decisões
lhe eram negadas, ela deixara de sentir ansiedade e contentava-se
em viver o dia a dia, sem se preocupar com o dia seguinte. Mais
satisfeita do que alguma vez estivera, pensou Cadfael, desde que o
Bispo Gilbert chegara a Llanelwy e começara a reformar o seu clero
enquanto a mãe dela se encontrava no seu leito de morte. Ela podia
até ter sofrido o intenso azedume de perguntar a si própria se o pai
não estaria ansioso pela morte que lhe garantiria o seu cargo.
Naquele momento, não havia qualquer nuvem desse tipo a pairar
sobre ela, ela irradiava um calor que parecia não ter uma única
preocupação no mundo. Ela resignara-se a aceitar e sobreviver, até
mesmo retirar prazer daquilo que não podia influenciar.
Quando Cadfael os encontrou, eles estavam no meio das
árvores na crista das dunas. Eles tinham visto Owain chegar, e
tinham subido até ali para o ver partir. Heledd ainda estava a olhar,
de olhos muito abertos e em silêncio, depois de a cabeça loura do
príncipe ter desaparecido ao longe. Mark estava um pouco afastado
dela, evitando tocar-lhe. Ela tratava-o como uma irmã, mas Cadfael
perguntava-se por vezes se Mark não se sentiria em perigo,
mantendo sempre, por isso, um espaço entre eles. Quem poderia
garantir que os seus sentimentos permaneceriam sempre
fraternais? A preocupação que ele sentia por ela, assim suspensa
entre um passado incerto e um futuro ainda mais questionável, era
uma perigosa armadilha.
— Owain não tolera a situação — anunciou Cadfael
calmamente. — Cadwaladr mentiu, Owain esclareceu o assunto. O
irmão tem que resolver sozinho a sua salvação ou condenação.
— Como é que sabes tanto? — perguntou Mark tranquilamente.
— Eu tive o cuidado de estar perto. Achas que um bom galês ia
negligenciar os seus interesses no que diz respeito às maquinações
dos seus superiores?
— Eu achava que um bom galês nunca reconhecia superiores
— disse Mark, sorrindo. — Tinhas o ouvido encostado à tenda?
— Já que queres saber, foi isso mesmo. Owain propôs comprar
o nosso resgate a Otir. E Otir, embora não tenha concordado
imediatamente, prometeu manter-nos sãos e salvos e com alguma
liberdade até tomar uma decisão. Não temos nada de pior a recear.
— Eu não estava com medo — disse Heledd, ainda a olhar
pensativamente para sul. — Então o que é que vai acontecer a
seguir, se Owain deixou o irmão entregue à sua sorte?
— Ficamos à espera, aqui onde estamos, até Otir decidir
aceitar o resgate, ou Cadwaladr conseguir arranjar o dinheiro e o
gado que prometeu aos dinamarqueses.
— E se Otir não puder esperar e decidir arrancar o seu preço à
força a Gwynedd? — interrogou-se Mark.
— Ele não fará isso, a não ser que algum tolo provoque alguma
morte e o obrigue a agir. Eu exigirei o pagamento, disse ele, ao
devedor. E ele estava sendo sincero, não apenas por interesse
próprio, mas por um profundo ressentimento contra Cadwaladr, que
o enganou. Ele não vai obrigar Owain e todas as suas forças a
combater se conseguir, por qualquer meio, evitá-lo e, mesmo assim,
obter os seus lucros. E ele ainda é tão capaz de fazer os seus
próprios planos como qualquer outro homem e, tanto quanto eu
consiga ver, melhor do que a maioria. Não são apenas Owain e o
irmão que dominam a situação, Otir pode muito bem ter um ou dois
trunfos na manga.
— Eu não quero mortes — disse Heledd peremptoriamente,
como se tivesse o direito de dar ordens a todos os homens
armados. — Nem para nós, nem para eles. Eu prefiro continuar aqui
como prisioneira a provocar a morte de um homem. E, no entanto —
disse ela com tristeza — sei que não podemos continuar neste
impasse, ele tem que terminar de alguma forma.
Terminaria, refletiu Cadfael, a não ser que algum desastre
imprevisto interviesse, na aceitação, por parte de Otir, do resgate
que Owain pagaria pelos seus prisioneiros, muito provavelmente
depois de Otir ter lidado, da forma que considerasse apropriada,
com Cadwaladr. Esse acerto de contas estaria em primeiro lugar na
sua mente e teria que ser resolvido primeiro. Ele já não tinha
qualquer obrigação para com o seu antigo aliado, esse acordo tinha
sido quebrado de uma forma definitiva. Uma vez paga a dívida,
Cadwaladr poderia ir para o exílio ou podia ajoelhar-se aos pés do
irmão a suplicar a devolução das suas terras. Otir não lhe devia
nada. E uma vez que tinha que pagar aos seus seguidores, não iria
recusar o lucro adicional do resgate pago por Owain. Heledd ficaria
livre e voltaria a estar sobre a proteção de Owain. Entre as forças de
Owain havia agora um homem à espera de a reclamar quando ela
regressasse. Um homem bom, dissera Mark, de ar apresentável,
com uma boa reputação, um homem de posses, nas boas graças do
príncipe. Ela podia sair-se muito pior.
— Não há qualquer razão no mundo — disse Mark — para que
não acabes por ter uma vida muito boa. Esse Ieuan que nunca viste
está totalmente disposto a receber-te e a amar-te, e ele merece a
tua aceitação.
— Eu acredito em ti — disse Heledd, num tom que, para ela,
era quase submisso. Mas os seus olhos estavam fixos no horizonte
sobre o mar, onde a luz do ar e a luz da água se fundiam numa
neblina cintilante, indissolúvel e misteriosa, e tudo o que se
encontrava para além dela estava escondido na luminosidade. E
Cadfael perguntou subitamente a si próprio se não estaria, afinal, a
imaginar a convicção na voz do Irmão Mark e o tom de graciosa
resignação feminina na de Heledd.
Turcaill saiu da reunião na tenda de Otir e desceu em direção à
praia da baía abrigada, onde o seu pequeno e ágil barco-dragão se
encontrava perto da areia, com os lados refletidos na água parada
dos baixios. O ancoradouro na foz do Menai estava separado das
praias largas da baía a sul por uma longa língua de seixos, para
além da qual a água dos dois rios e dos seus afluentes serpenteava
até ao estreito e ao mar aberto, num percurso sinuoso através da
imensidão da areia. Turcaill ficou a olhar para a enorme extensão de
terra e água, para a enorme baía que se estendia mais de duas
milhas para sul, para o ouro pálido dos bancos de areia e da
sinuosa água prateada, e para a costa verde de Arfon mais ao
longe, estendendo-se para as colinas distantes. A maré estava a
encher, mas só daí a duas horas ou mais é que atingiria a preia-mar
e cobriria tudo exceto uma cintura estreita de salgadiço que orlava a
areia da praia. À meia noite ela teria começado de novo a baixar,
mas estaria suficientemente cheia para fazer flutuar o pequeno
barco com o seu calado pouco fundo para mais perto da praia. Na
areia a seguir ao salgadiço haveria, se tivessem sorte, arbustos
suficientes para dar cobertura a alguns homens hábeis e silenciosos
que se deslocassem para terra. Também não iriam muito longe. O
acampamento de Owain devia abarcar a cintura da península. Até
mesmo no seu ponto mais estreito devia ter uma milha de largura,
mas certamente que haveria sentinelas em ambas as praias. Em
menor número e menos vigilantes, talvez, na praia da baía, uma vez
que era pouco provável que ocorresse algum ataque por mar por
esse lado. Os navios maiores de Otir não tentariam passar por entre
os baixios. Os galeses estariam a concentrar a sua vigilância no mar
a oeste.
Turcaill estava a assobiar para si próprio, muito baixinho e com
um ar satisfeito, enquanto observava o céu a escurecer com o
crepúsculo. Ainda faltavam duas horas para eles poderem partir e,
com o entardecer, as nuvens tinham-se reunido suavemente nos
céus, formando um véu cinzento que não ameaçava chuva mas que
prometia protegê-los de uma noite demasiado clara. Daquele
ancoradouro exterior ele teria que fazer um desvio à volta da
barreira de seixos até à foz do rio, para chegar ao canal, mas isso
adicionaria apenas cerca de um quarto de hora à viagem. Muito
antes da meia-noite, decidiu rapidamente, podiamos embarcar.
Ele ainda estava a assobiar alegremente quando deu meia volta
para regressar para o centro do acampamento, a fim de refletir
sobre os pormenores da sua expedição. E ali à sua frente estava
Heledd, a descer o outeiro com o seu passo longo e elástico, e a
juba escura do seu cabelo a balouçar à volta dos ombros na brisa
que se levantara ao cair da tarde, trazendo as nuvens que serviriam
de cobertura. Todos os encontros entre eles eram, de certo modo,
um confronto que provocava em ambos uma pulsação mais
acelerada, curiosamente agradável.
— O que é que estás a fazer aqui? — perguntou ele, parando
de assobiar. — Estavas a pensar em fugir através da areia? — Ele
estava a troçar dela, como sempre.
— Segui-te — disse ela simplesmente. — Desde a tenda de
Otir, ao longo deste caminho, e a olhar para o céu, para a maré e
para aquele teu barco que parece uma cobra. Fiquei curiosa.
— Foi a primeira vez que ficaste curiosa a meu respeito ou a
respeito de qualquer coisa que eu fizesse — disse ele alegremente.
– Por que agora?
— Porque subitamente te vi empenhado numa busca, e não
posso deixar de perguntar a mim própria que malfeitorias estarás
prestes a cometer.
— Não há malfeitoria nenhuma — disse Turcaill. – Por que é
que havia de haver? — Ele estava a observá-la, enquanto faziam
juntos o percurso de volta, com uma atenção maior do que a que
dava às habituais escaramuças entre eles, pois pareceu-lhe que ela
estava a sondá-lo quase a sério, até mesmo com alguma
ansiedade. Ali, no seu cativeiro, entre dois acampamentos armados,
uma mulher sozinha podia muito bem farejar a maldade, do tipo que
mata, em todos os movimentos, e temer pelo seu povo.
— Eu não sou tola — disse Heledd impacientemente. — Sei tão
bem como tu que Otir não vai permitir que a traição de Cadwaladr
fique sem vingança, nem que o preço acordado lhe escape por entre
os dedos. Ele não é homem para isso! Durante todo o dia de hoje,
ele e os seus chefes estiveram a planejar o lance seguinte, e agora,
subitamente, tu apareces resplandecente com a alegria que vocês,
homens tolos, sentem quando se atiram de cabeça para uma briga,
e estás a querer dizer-me que não há nada no ar. Malfeitoria
nenhuma.
— Nada com que te devas preocupar — garantiu-lhe ele. — Otir
não tem nada contra Owain nem contra qualquer soldado de Owain;
eles mandaram Cadwaladr resolver sozinho os seus problemas e
pagar as suas dívidas, porque é que havíamos de causar problemas
maiores? Se o preço prometido for pago, fazemo-nos ao mar e não
vos incomodaremos mais.
— Façam boa viagem! — disse Heledd secamente. — Mas
porque é que eu devo confiar que tu e os teus companheiros façam
as coisas bem? Basta haver um ferimento ou uma morte por acaso,
e haverá guerra e uma grande carnificina.
— E uma vez que tens tanta certeza de que eu estou envolvido
nessa malfeitoria, tu prevês...
— Tu és o seu instrumento — disse ela com veemência.
— Então não confias que eu a possa levar a bom termo? —
estava a rir-se novamente dela, mas com uma delicadeza quase
apreensiva.
— Confio em ti menos que em qualquer outro — disse ela com
uma certeza mordaz. — Eu conheço-te, tu gostas do perigo, não há
nada mais idiota, mas tu o desafiarias e destruirias tudo numa
guerra sangrenta contra todos nós.
- E tu, sendo uma boa galesa — disse Turcaill sorrindo
ironicamente — temes pelo teu Gwynedd e por todos os homens do
acampamento de Owain, a pouco mais de uma milha de nós.
— Eu tenho um noivo entre eles — recordou-lhe ela vivamente,
cerrando os dentes.
— É verdade que tens. Não me esquecerei do teu noivo —
prometeu Turcaill, sorrindo. — Cada passo que der, pensarei no teu
Ieuan ab Ifor, e impedirei a minha mão de desferir qualquer golpe
que possa pô-lo em perigo no campo de batalha. Nenhuma outra
consideração poderá moderar tanto a minha impetuosidade como a
necessidade de te ver casada com um bom, sólido uchelwr de
Anglesey. Isso satisfaz-te?
Ela tinha-se virado para o olhar atentamente, com os enormes
olhos pretos muito sérios.
— Então vais, de fato, fazer uma incursão para Otir!
Praticamente que o admitiste. — E como ele não protestou nem
tentou negá-lo, acrescentou: — Cumpre o que me prometeste. Toma
cuidado! Regressa sem que ninguém se tenha ferido. Eu não quero
que te aconteça mal nenhum. — E fitando os olhos azuis, um tanto
demasiado vivos, acrescentou sacudindo a cabeça, mas um pouco
depressa demais para a desdenhosa dignidade que pretendia: —
Muito menos aos meus compatriotas.
— E, à cabeça dos teus compatriotas, Ieuan ab Ifor —
concordou Turcaill com um rosto solene; mas ela já lhe tinha virado
as costas e partido, com a cabeça erguida e um passo firme na
direção da concavidade abrigada onde a sua pequena tenda estava
colocada.
Cadfael acordou no ninho que escolhera à sombra dos arbustos
salgados, bem desperto e inquieto sem qualquer motivo aparente,
deixou Mark a dormir e largou a capa ao pé do amigo, porque a
noite estava quente. Fora Mark que insistira para que dormissem
sempre perto da tenda de Heledd, de modo a poderem ouvi-la se
ela chamasse, mas não tão perto que ofendesse o seu espírito
independente. Nessa altura, Cadfael não tinha dúvidas a respeito da
segurança dela no interior do enclave dinamarquês. Otir tinha dado
as suas ordens, e era pouco provável que algum dos homens que o
seguiam não as levasse a sério, mesmo que as suas mentes não
estivessem concentradas num saque mais lucrativo do que uma
raparia galesa, por mais tentadora que ela fosse. Os aventureiros,
reparara Cadfael ao longo da sua vida de aventura enquanto jovem,
eram pessoas eminentemente práticas e conheciam o valor do ouro
e dos bens materiais. As mulheres ocupavam um lugar muito inferior
na escala dos despojos desejáveis.
Ele olhou na direção da tenda dela, e ali tudo estava escuro e
silencioso. Devia estar a dormir. Por qualquer razão
incompreensível, ele não tinha sono. O céu tinha uma leve cobertura
de nuvens, através da qual brilhavam apenas algumas estrelas. Não
havia vento, e naquela noite não haveria lua. A nuvem talvez se
tornasse mais espessa de manhã, trazendo até a chuva. À meia-
noite, o silêncio era profundo, até mesmo opressivo, e a escuridão
por cima das dunas, tanto a leste como a oeste, tornava-se mais
clara, dando a impressão de uma luz movediça oriunda do mar,
agora quase na maré cheia. Cadfael virou para leste, onde havia
menos sentinelas e era menos provável que houvesse alguma
objeção ao fato de ele andar por ali a meio da noite. Não havia
fogueiras, exceto as que tinham sido abafadas no centro do
acampamento de modo a arderem lentamente até de manhã, nem
archotes a perfurar a escuridão. As sentinelas de Otir confiavam nos
seus olhos noturnos. O mesmo fez o Irmão Cadfael. Gradualmente,
foram surgindo formas na noite informe, até mesmo as curvas e os
declives das dunas ficaram vagamente perceptíveis. Era estranho
como um homem podia estar tão só no meio de milhares, como se a
solidão pudesse ser conseguida quando se quisesse, e como
alguém que era, para todos os efeitos, um prisioneiro, conseguia
sentir-se mais livre do que os seus captores, que eram tolhidos pelo
seu número e acorrentados pela sua disciplina.
Ele tinha chegado ao cimo da colina por cima do ancoradouro
onde estavam os barcos dinamarqueses mais leves e mais rápidos,
bem protegidos entre o mar aberto e o estreito. Uma linha trêmula
de luz fugidia que aparecia e desaparecia enquanto ele olhava
beijava a praia, e ali no interior da curva da areia estavam eles,
muitos peixes magros, compridos, perceptíveis apenas como pontos
mais escuros momentaneamente delineados pelas carícias da maré.
Eles estremeciam, mas não se deslocavam dos seus lugares.
Exceto um, o mais estreito e o menor. Ele viu-o rastejar do seu
ancoradouro, tão suavemente que, por um momento, pensou que
estivesse a imaginar o impulso para a frente. Depois viu os remos a
mergulhar, alfinetes de fogo que desapareceram quase antes de ele
compreender o que eram. Nenhum som chegou até ele vindo de
longe, nem mesmo naquela quietude e silêncio noturnos. O menor e
provavelmente o mais rápido dos barcos-dragão estava a
serpentear na direção da foz do Menai, dirigindo-se para leste, para
o canal.
Outra expedição de pilhagem? Se fosse essa a intenção, fazia
sentido percorrer o estreito durante a noite e aguardar algures
depois de Carnarvon para começar a pilhagem em terra antes do
amanhecer. Certamente que teria sido deixada uma boa guarnição
na cidade, mas as zonas costeiras para além dela ainda podiam ser
pilhadas, mesmo que a maior parte dos seus habitantes tivesse
deslocado o gado e todos os seus bens portáteis para as colinas. E
o que possuía um bom galês que não fosse portátil? Eles podiam
facilmente, se necessário, abandonar as suas casas e construí-las
de novo quando já não houvesse perigo. Há séculos que o faziam, e
eram bons nisso. No entanto, as aldeias e os campos mais próximos
já tinham sido saqueados uma vez e não poderiam proporcionar
comida para um pequeno exército. Cadfael imaginou que, apesar da
presença do exército de Owain, eles prefeririam procurar na suave
costa a sul do mar aberto. No entanto, aquele pequeno caçador
dirigia-se silenciosamente para o estreito. Nessa direção ficava
apenas a longa passagem do Menai ou, alternativamente, ele
tencionava contornar a barra de seixos e virar para sul, para a baía,
aproveitando a maré cheia. À primeira vista, isso era pouco
provável, embora um barco tão pequeno conseguisse ter uma boa
corrente durante algumas horas, até a maré vazar. Um barco maior,
refletiu Cadfael, nunca se aventuraria a ir por ali. Seria essa a razão
por que aquele fora escolhido e enviado sozinho? Nesse caso, com
que objetivos teria saído de noite?
— Então eles partiram — disse a voz de Heledd atrás dele, num
tom muito suave e sombrio.
Ela tinha surgido silenciosamente junto dele, descalça na areia
ainda quente da luz do sol do dia. Tal como ele, ela estava a olhar
para a praia, e o seu olhar seguia a remada vagamente luminosa da
esteira do barco que desaparecia rapidamente em direção a leste.
Cadfael virou-se para olhar para ela, calma e imóvel, com a nuvem
de cabelo comprido à sua volta.
— Então partiram! Já sabias? Não ficaste surpreendida!
— Não — disse ela — não fiquei surpreendida. Não que eu faça
alguma ideia do que se passa nas suas mentes, mas houve alguma
coisa no ar o dia inteiro desde que Cadwaladr os enganou. Não sei
o que eles estão a planejar para ele, e não me atrevo a tentar
adivinhar o que isso poderá significar para todos nós, mas
certamente que não é nada de bom.
— Aquele é o barco de Turcaill — disse Cadfael. Ele já se
encontrava tão longe na escuridão que agora só conseguiam segui-
lo com os olhos da mente. Mas ele não podia ter chegado ao
extremo da barra de seixos.
— Deve ser — disse ela. — Se estiverem a preparar alguma
malfeitoria, ele deve estar envolvido. Não há nada que Otir lhe
possa pedir, por maior que seja a loucura, que ele não se atire
alegremente de cabeça, sem pensar nas consequências.
— E tu pensaste em todas as consequências possíveis —
deduziu Cadfael — e elas não te agradam.
— Não — retorquiu ela com veemência — não me agradam!
Se, por acaso, ele matar um homem de Owain, pode haver uma
batalha e uma carnificina. Basta um rastilho desses para atear um
fogo.
— E o que te leva a pensar que ele se vai aproximar dos
homens de Owain e correr esse risco?
— Como é que eu vou saber o que aquele tolo está a pensar?
— perguntou ela impacientemente. — O que me preocupa é o mal
que ele nos poderá causar a nós.
— Eu não o classificaria tão prontamente de tolo — disse
Cadfael suavemente. — Eu considero-o tão astucioso mentalmente
como é habilidoso com as mãos. O que quer que ele esteja a fazer,
julga-o quando ele regressar, pois eu acredito que ele irá regressar
com êxito. — Ele teve o cuidado de não acrescentar: "Por isso pára
de te preocupar com ele!" Ela teria negado tal preocupação, embora
com menos veemência do que a que outrora teria utilizado. Era
melhor não dizer nada. Por mais que tivesse esperança de enganar
os outros, Heledd não era moça que conseguisse enganar-se a si
própria.
E lá ao longe, a sul, no campo de Owain, estava o homem que
ela nunca vira, Ieuan ab Ifor, com pouco mais de trinta anos, o que
não era muito velho, um homem de quem o príncipe tinha uma boa
opinião, proprietário de boas terras, de boa aparência, possuidor de
todas as qualidades exceto uma, e invisível e desprezível sem ela.
Não era o homem que ela escolhera.
— Amanhã veremos — disse Heledd, com um enorme sentido
prático. — É melhor irmos dormir para estarmos preparados.
Eles tinham contornado a ponta da barra de seixos e
mantiveram-se fora do canal principal enquanto viravam para sul,
para a baía. Uma vez bem no interior dela, podiam aproximar-se da
praia e vigiar a linha da costa, para tentar ver as primeiras
sentinelas do acampamento de Owain. Leif, o rapaz de Turcaill,
ajoelhou-se no minúsculo convés da proa, semicerrando os olhos a
observar atentamente a praia. Ele tinha quinze anos e falava o galês
de Gwynedd, pois a sua mãe tinha sido raptada daquela mesma
costa noroeste aos doze anos, durante um ataque dos
dinamarqueses, e tinha-se casado com um dinamarquês do reino de
Dublin. Mas ela nunca se esquecera da sua língua e falara-a
sempre com o filho, a partir do momento em que ele começou a
falar. Um rapaz seminu no pino do Verão, Leif podia percorrer as
aldeias piscatórias e os trefs galeses, passar por um deles, e o seu
talento para adquirir informação já tinha produzido uma útil colheita.
— Cadwaladr manteve-se sempre em contato com os que se
mantêm fiéis a ele — relatara Leif alegremente — e há alguns
homens entre os guerreiros do seu irmão que o seguiriam se ele
tentasse fazer alguma coisa sozinho. E ouvi dizer que ele enviou
uma mensagem do acampamento de Owain aos seus homens em
Ceredigion. Que mensagem foi essa, ninguém sabe, se foi para
virem juntar-se a ele, armados, se foi para reunirem o dinheiro e o
gado para o caso de ele ser obrigado a pagar o que nos prometeu.
Mas se um mensageiro vier perguntar por ele, ele não pensará nada
de mal, julgará que é para seu proveito.
E havia mais a contar, o resultado de muita escuta atenta.
— Owain não o quer perto de si. Agora ele rodeou-se de alguns
dos seus homens e fez a sua base na orla sul do acampamento, no
canto mais próximo da baía. Ali, se chegarem notícias das suas
antigas terras, ele pode deixar entrar o mensageiro sem Owain
saber. Porque ele jogará uns contra os outros, conforme lhe for mais
vantajoso — disse Leif num tom intencional.
Não havia qualquer dúvida a esse respeito. Todos os que
conheciam Cadwaladr sabiam que era verdade. E embora os
dinamarqueses tivessem sido lentos a compreender isso, agora
também já sabiam. E Leif podia ser um mensageiro tão bom como
qualquer outro. Aos catorze anos, um garoto galês torna-se homem
e é reconhecido como adulto.
14

O barco aproximou-se cautelosamente da praia. Contornos de


dunas, seixos e arbustos espalhados surgiam como formas mais
densas ou mais claras no escuro, deslizando à direita deles. Ao fim
de algum tempo, a orla exterior do acampamento tornou-se
perceptível, mais através de persistentes sugestões de seres
humanos, do fumo das fogueiras, dos odores resinosos da madeira
da paliçada rachada há pouco tempo, até mesmo dos sons
murmurados das atividades que persistiam durante a noite, do que
de qualquer coisa que eles vissem ou ouvissem claramente. O
timoneiro aproximou o barco ainda mais, cauteloso com as
ondulações da erva do salgadiço por baixo da superfície plácida dos
baixios, até terem passado a parte principal do acampamento e se
encontrarem paralelos ao canto sul onde se dizia que Cadwaladr
tinha montado o seu acampamento reunindo à sua volta antigos
seguidores, cuja adesão ao seu irmão permanecia menos confiável
do que os laços que os ligavam ao seu príncipe anterior. Mais do
que um tipo de mensageiro podia contactar com ele lá, trazendo-lhe
outras novidades para além da gratificante notícia de que a sua
sumptuosa generosidade ainda era recordada por alguns, e que ele
ainda era respeitado como senhor e príncipe, a quem era devida
fidelidade. Ainda lhe podiam recordar, não só privilégios, mas
também responsabilidades a que estava obrigado, e dívidas por
pagar.
A linha da costa recuava, mergulhando para oeste, e fechou-se
gradualmente com eles à medida que passavam. O ligeiro calor e o
movimento que não era bem som, mas apenas uma sensibilidade
primitiva à presença de outros seres humanos invisíveis, inaudíveis,
vigilantes e potencialmente hostis ficou para trás, no silêncio vazio
da noite.
— Já passamos — disse Turcaill em voz baixa ao ouvido do
timoneiro. — Leva-nos para terra.
Os remos mergulharam suavemente na água. O ágil barco
deslizou por entre os tufos de ervas e tocou no fundo com a leveza
de uma pena. Leif rodou as pernas sobre o lado e deixou-se cair
para os baixios. Havia areia firme debaixo dos seus pés descalços,
e a água mal lhe chegava a meio da canela. Ele olhou para trás, ao
longo da linha da costa por onde tinham passado, e até mesmo por
cima do acampamento às escuras pairava ainda uma leve
luminosidade que restara do dia.
— Estamos perto. Esperem até eu dizer qualquer coisa.
Ele desapareceu, serpenteando por entre ervas e arbustos até
à elevação das dunas, que ali eram estreitas e em breve davam
lugar a pastagens irregulares e, seguidamente, a bons campos
férteis. A sua pequena figura fundiu-se com a escuridão suave e
densa.
Saindo tão silenciosamente da noite como um farrapo de
neblina, ele estava de volta em menos de um quarto de hora, antes
de eles estarem preparados para o seu regresso, embora tivessem
aguardado sem impaciência, com os ouvidos atentos a qualquer
som estranho. Leif passou por entre os arbustos salgados com a
água fria, pouco funda, à volta das suas pernas, estendeu o braço
para o lado do barco e murmurou num silvo excitado.
— Encontrei-o! É perto! Ele tem um homem seu no posto da
sentinela. Não há nada mais simples do que chegar até ele em
segredo por este lado. Aqui eles não estão à espera de qualquer
ataque por terra, e ele pode movimentar-se à vontade, e o mesmo
acontece com alguns homens mais dispostos a obedecer-lhe do que
a Owain.
— Não estiveste lá dentro? — perguntou Turcaill. — Depois da
sentinela?
— Não foi necessário! Houve outra pessoa que lá chegou um
momento antes de mim, vindo do sul. Eu estava no meio dos
arbustos, suficientemente perto para ouvir a sentinela perguntar
quem vinha ali. Quem quer que ele fosse, bastou-lhe abrir a boca
para o mandarem entrar. E eu vi para onde o levaram. Neste
momento, ele está na tenda de Cadwaladr com ele, e até a sentinela
foi mandada prosseguir com a vigia. Não está mais ninguém na
tenda para além de Cadwaladr e o seu visitante, e apenas uma
sentinela entre eles e nós.
— Tens a certeza de que Cadwaladr está lá? — perguntou
Torsten, em voz baixa. — Não podes tê-lo visto.
— Ouvi a sua voz. Eu fui criado do homem desde que saímos
de Dublin — disse o homem com firmeza. — Achas que não
conheço a voz dele?
— E ouviste o que eles disseram? Esse outro... ele chamou-o
pelo nome?
— Não houve nomes! "Tu!", disse ele claramente em voz alta,
mas não disseram nomes. Mas ele ficou surpreendido e contente,
muitíssimo contente ao vê-lo. Quando a sentinela for silenciada,
vocês podem apanhar os dois e fazer com que o homem vos diga
como é que se chama.
— Nós viemos buscar um — disse Turcaill — e vamos voltar
com um. E nada de mortes! Owain está fora desta briga, mas ele
entrará rapidamente nela se matarmos um dos seus homens.
— Mas ele não vai fazer nada pelo irmão? — perguntou Leif em
voz baixa, admirado.
— O que tem ele a recear pelo irmão? Nem uma beliscadura
em Cadwaladr, lembrem-se! Se ele pagar o resgate que nos é
devido, pode ir-se embora, tão inteiro como quando nos contratou.
Owain sabe isso melhor do que qualquer um. Não é preciso dizê-lo.
Vá, vão, que temos que partir com a maré.
Os planos tinham sido feitos com antecedência; e se não
tinham tomado em conta aquele viajante inesperado oriundo do sul,
eles podiam muito simplesmente adaptar-se de modo a integrá-lo.
Dois homens sozinhos numa tenda convenientemente próxima da
orla do acampamento constituíam um alvo fácil, quando a sentinela
estivesse fora de campo. O homem de Cadwaladr, em que ele tinha
confiança e que estava envolvido nos esquemas que ele tinha em
mente, tinha que se arriscar a ser tratado com aspereza, mas não
lhe deveria acontecer nada de mal.
— Eu trato da sentinela — disse Torsten, o primeiro a deslizar
sobre o lado do barco para o local onde Leif o aguardava. Cinco
outros remadores de Turcaill seguiram o seu líder até ao salgadiço e
através da praia arenosa. A noite recebeu-os silenciosamente e com
indiferença, e Leif foi à frente, voltando atrás pelo mesmo caminho,
indo de um local abrigado para uma cobertura esparsa, na direção
do perímetro do acampamento. Parou debaixo de um grupo de
árvores e espreitou por entre os ramos. A linha das defesas era
perceptível mais adiante apenas como uma escuridão mais rígida e
mais sólida, quando todas as outras sombras eram sinuosas e
passageiras. Mas conseguia ver-se o vassalo de Cadwaladr na
abertura que era o portão que ele guardava, percorrendo-a de um
lado para o outro, com a cabeça e os ombros recortados com nitidez
de encontro ao céu. Um homem grande, armado, mas movendo-se
descontraidamente, não esperando qualquer alarme. Torsten
observou a calma patrulha durante alguns minutos, assinalou a
distância que ela cobria e esgueirou-se de lado por entre as árvores,
de modo a estar atrás no seu extremo a leste, onde os arbustos
chegavam a alguns metros da paliçada, e um homem se podia
aproximar sem que o vissem nem ouvissem.
A sentinela estava a assobiar suavemente para si própria
quando deu meia volta na areia macia, e o musculoso braço
esquerdo de Torsten lhe tolheu o corpo e os braços, e o direito lhe
colocou uma palma da mão com força sobre a boca e interrompeu
abruptamente o assobio. Ela tentou freneticamente erguer os braços
para agarrar no braço que a amordaçava, mas não conseguiu
chegar lá, e as suas tentativas de dar pontapés para trás fizeram-na
perder o equilíbrio e não atingiram Torsten, que a fez rodar e caiu
sobre ela na areia, mantendo-a de barriga para baixo. Nessa altura,
Turcaill estava ao lado deles, pronto para enfiar um bocado de
tecido de lã na boca do homem assim que este fosse autorizado a
levantar-se e a cuspir a areia e a erva que lhe enchiam a boca.
Puseram a capa dele à volta da cabeça e dos ombros e amarraram-
lhe as mãos e os pés. Colocaram-no em segurança, se bem que
pouco confortavelmente, no meio dos arbustos, e voltaram a sua
atenção para a orla do acampamento. Não houvera qualquer
clamor, nem qualquer movimento no interior da paliçada. Algures em
redor das tendas do príncipe haveria homens despertos e atentos
mas ali, no canto mais remoto, escolhido deliberadamente por
Cadwaladr para os seus próprios fins, não havia ninguém por perto
que impedisse a vingança contra ele.
Apenas Turcaill, Torsten e outros dois seguiram Leif quando
este passou cautelosamente o portão sem guarda e seguiu ao longo
da paliçada na direção do local em que se recordava de ouvir os
tons inconfundíveis, autoritários, da voz de Cadwaladr, que se
erguera de satisfação e espanto ao reconhecer o seu visitante
noturno. As linhas do acampamento acabavam ali, em imobilidade e
silêncio, os invasores moviam-se como sombras no meio de
sombras. Leif apontou, mas não disse uma palavra. Não havia
necessidade. Até mesmo num acampamento militar seria tida em
consideração a posição social de Cadwaladr e seria assegurado o
seu conforto. A tenda era ampla, à prova do vento e da chuva, e
sem dúvida bem fornecida no interior. Na orla da aba que protegia a
entrada viam-se finas linhas de luz e, no ar parado da noite, vozes
baixas formavam um murmúrio regular, confidencial, demasiado
baixo para se conseguir distinguir as palavras. O mensageiro do sul
ainda lá estava com o seu príncipe; os dois refletiam sobre as
notícias que ele trouxera e os planos a ser feitos.
Turcaill aproximou a mão na porta da tenda e esperou por
Torsten que, com o punhal na mão, tinha dado a volta à tenda para
procurar uma junção onde as peles tinham sido cosidas. Tanto as
tiras de couro finas como o fio ensebado podiam ser cortados com
uma lâmina afiada. A luz no interior, pela forma constante como
ardia e pela sua origem baixa, devia ser um simples pavio num pires
de óleo, colocado talvez num banco ou numa mesa desmontável.
Não se veriam os contornos de corpos que se movessem no
exterior, ao passo que Torsten, enquanto selecionava o local,
conseguia sentir, mais do que ver, as formas vagas dos dois no
interior. Muito perto um do outro, atentos, absortos, não estando à
espera de qualquer interrupção.
Turcaill afastou a porta da tenda e lançou-se para o interior tão
rapidamente e com os outros dois a segui-lo tão de perto, que
Cadwaladr só teve tempo de se pôr de pé, alarmado, com a boca
aberta para expressar a sua indignação, antes de ter um punhal
junto da garganta, e a sua ira principesca por ter sido rudemente
interrompido transformou-se de imediato numa compreensão
paralisada e numa imobilidade reverente e trêmula. Ele era um
homem temerário, mas com excelentes reações rápidas, e a sua
temeridade não ia ao ponto de discutir com um punhal
desembainhado quando as suas próprias mãos estavam vazias. Foi
o homem que estava sentado ao seu lado que deu um salto para
atacar, lançando-se à garganta de Turcaill. Mas atrás dele a faca de
Torsten tinha cortado as tiras de couro que uniam as peles da tenda,
e uma enorme mão agarrou no desconhecido pelo cabelo e
arrastou-o para trás. Antes de ele conseguir levantar-se outra vez,
foi embrulhado na colcha da cama e agarrado pelos homens de
Turcaill.
Cadwaladr deixou-se ficar imóvel e em silêncio, bem consciente
do aço a picar-lhe a garganta. Os seus belos olhos pretos faiscavam
de ira, os dentes estavam cerrados com o esforço para se dominar,
mas não fez qualquer movimento quando o companheiro que tinha
recebido com prazer foi, apesar de ter oferecido resistência,
amarrado de modo a não se poder mexer e colocado, quase com
ternura, em cima da cama do seu senhor.
— Não faça barulho — disse Turcaill — e não lhe acontecerá
nada de mal. Se gritar, a minha mão pode deslizar. Há uma pequena
questão que Otir quer discutir consigo.
— Vais-te arrepender disto! — disse Cadwaladr por entre os
dentes.
— É possível — concordou Turcaill num tom conciliatório —
mas ainda não. Eu deixo-o escolher entre andar ou ser arrastado,
mas não confio em si. — E aos dois remadores ele disse: —
Agarrem-no! — retirando a mão e embainhando o punhal que
segurava.
Cadwaladr não foi suficientemente rápido para aproveitar o
instante em que poderia ter gritado em voz alta para chamar uma
dúzia de homens em seu auxílio. De fato, quando o aço foi retirado,
ele abriu a boca para chamar os seus homens, mas um cobertor foi-
lhe atirado para cima da cabeça, e uma mão larga apertou-o contra
a sua boca aberta. O único som que emergiu foi um gemido
estrangulado, imediatamente sufocado. Ele tentou atacar com os
punhos e com os pés, mas o áspero tecido de lã envolvia-o,
tolhendo-lhe os movimentos.
No exterior da tenda, Leif estava de sentinela com o ouvido
atento, e os seus olhos percorriam os espaços escuros do
acampamento, tentando detectar qualquer movimento que pudesse
ameaçar o seu empreendimento, mas estava tudo sossegado. Se
Cadwaladr tinha desejado e ordenado uma conversa privada, sem
perturbações, com o seu visitante, ele tinha feito muito bem o
trabalho de Turcaill por ele. Ninguém se movia. No arvoredo em que
tinham deixado a sentinela, os últimos membros do grupo saíram da
escuridão para se juntar a eles e riram-se baixinho ao ver o fardo
que transportavam, suspenso pelas cordas que o tolhiam.
— A sentinela? — perguntou Turcaill num murmúrio.
— Está viva, e a balbuciar pragas. E é melhor embarcarmos
antes que dêem pela falta dele e venham à sua procura.
— E o outro? — atreveu-se Leif a perguntar em voz baixa,
enquanto serpenteavam de cobertura em cobertura, de regresso à
praia e às salinas. — O que fizeram com ele?
— Deixamo-lo a descansar — disse Turcaill.
— Tu disseste nada de mortes!
— E não houve nenhuma. Ele não tem uma única beliscadura,
podes estar descansado. Owain não tem mais motivo de contenda
contra nós do que quando pusemos pela primeira vez o pé em solo
seu.
— E continuamos sem saber — admirou-se Leif, seguindo com
firmeza a seu lado ao longo da orla úmida deixada pela maré
vazante — quem era o outro, e o que estava ele a fazer aqui. Ainda
podes vir a arrepender-te de não o teres detido quando podias.
— Nós viemos buscar um, e levamos um de volta. Era tudo o
que queríamos e precisávamos — disse Turcaill.
A tripulação deixada a bordo estendeu as mãos para içar
Cadwaladr para o poço no meio dos bancos e, seguidamente,
ajudar os seus companheiros. O timoneiro inclinou-se sobre a sua
pesada cana do leme, os remadores empurraram os seus remos,
impelindo o pequeno barco suavemente ao longo do sulco que ele
fizera na areia, até ficar solto e se erguer animadamente na maré
vazante.
Antes do amanhecer eles entregaram o seu troféu, com algum
orgulho, a um Otir que acabara de ser acordado, mas que chegara
de olhos brilhantes e satisfeito ao encontro. Cadwaladr emergiu
corado, despenteado e furioso do seu invólucro paralisante, mas
contendo a sua fúria num silêncio aguerrido.
— Tiveram algum problema no caminho? — perguntou Otir,
observando o prisioneiro com astuta satisfação. Sem qualquer
marca, sem sangue, retirado do meio dos seus seguidores sem
pisar os calos do seu poderoso irmão nem fazer mal a qualquer
outra pessoa. Uma missão levada a cabo de uma forma muito
satisfatória e que deveria ser lucrativa.
— Nenhum — disse Turcaill. — O homem tinha preparado a
sua própria queda, retirando-se mesmo para a orla do
acampamento e colocando um homem seu de sentinela. E por
algum motivo! Calculo que estivesse à espera de notícias das suas
antigas terras, e encontrou um meio de manter um portão aberto.
Porque eu duvido que ele obtenha qualquer simpatia de Owain, ou
que esteja a contar com ela.
Ao ouvir isto, Cadwaladr abriu a boca, descerrando os dentes
com esforço, pois era duvidoso que ele próprio acreditasse no que
estava prestes a dizer.
— Tu estás enganado a respeito da força dos laços de sangue
galeses. Um irmão defende sempre outro irmão. Fizeste com que
Owain te ataque com todo o seu exército, conforme virás a saber.
— Do mesmo modo que um irmão defende sempre outro irmão
quando contrataste homens de Dublin para ameaçar o teu irmão
com a guerra — disse Otir com uma breve e dura gargalhada.
— Vocês vão ver o que Owain fará por mim — disse Cadwaladr
acaloradamente.
— É o que realmente vamos ver, e tu também. Eu duvido que
encontres menos conforto nisso do que nós. Ele avisou-nos, tanto a
mim como a ti, que a tua contenda não é a contenda dele e que tu
deves assumir as tuas próprias responsabilidades. E é o que irás
fazer — disse Otir com satisfação — antes de voltares a pôr os pés
fora deste acampamento. Eu tenho-te em meu poder e manter-te-ei
aqui até me pagares o que prometeste. Vais pagar-me todas as
moedas, todas as vitelas, ou o equivalente em mercadoria. Feito
isso, podes partir em liberdade, ir novamente para as tuas terras, ou
voltar para o mundo, como um pedinte, conforme Owain quiser. E
aviso-te já, nunca mais procures ajuda em Dublin, agora nós
conhecemos o valor da tua palavra. E, sendo assim — disse ele,
esfregando o seu enorme queixo com um punho musculoso —
agora que te temos em nosso poder, certificar-nos-emos de que
assim permanecerás! — Ele virou-se para Turcaill, que estava a
observar o encontro com um interesse distante, uma vez que o seu
próprio papel já fora cumprido. — Entrega-o a Torsten para tomar
conta dele, mas manda amarrá-lo. Sabemos demasiadamente bem
que a sua palavra e juramento não significam nada para ele, por
isso é melhor usarmos outros meios. Ponham-lhe correntes e
assegura-te de que é bem vigiado.
— Vocês não se atreveriam! — cuspiu Cadwaladr num silvo,
fazendo um movimento convulsivo para se lançar contra o seu juiz,
mas mãos prontas puxaram-no para trás com uma facilidade
insultuosa e seguraram-no, a contorcer-se e a transpirar no meio
dos seus guardas sorridentes. Perante uma atitude tão indiferente e
despreocupada, a sua raiva ardente parecia pouco mais do que a
birra de uma criança turbulenta e extinguiu-se inevitavelmente por si
própria na fria tomada de consciência de que estava indefeso e
tinha que se resignar à reversão da sua sorte, pois não podia fazer
nada para a alterar.
— Paga o que nos deves, e podes ir-te embora — disse
simplesmente Otir. E para Torsten: — Levem-no!
De madrugada, ao fazerem a ronda completa da orla sul do
acampamento, dois homens da companhia de Cuhelyn encontraram
o portão mais distante sem sentinela e comunicaram o fato ao seu
comandante. Para começar, se este não fosse Cuhelyn, aquela
verificação das defesas não teria sido ordenada. Para ele, a
presença de Cadwaladr no acampamento de Owain, tolerada ainda
que não aceite, era uma profunda ofensa, não apenas por causa da
morte de Anarawd, mas também por causa de Owain. E o
comportamento de Cadwaladr no interior do acampamento também
não tinha sido de molde a mitigar a desconfiança e o ódio que
Cuhelyn lhe nutria. O fato de ele se ter retirado para aquele canto
remoto podia ter sido interpretado por outros como demonstrando
alguma sensibilidade em relação à irritação que o irmão pudesse
sentir ao vê-lo. Cuhelyn conhecia-o melhor, um ser arrogante, cego
às necessidades e aos sentimentos dos outros homens. E nunca se
podia ter confiança nele, uma vez que todos os seus atos eram
imprudentes e imprevisíveis. Por isso, Cuhelyn fazia questão, sem
dizer nada a ninguém, de vigiar os movimentos de Cadwaladr, bem
como o comportamento dos que se reuniam à sua volta. Quando
eles se encontravam, havia necessidade de vigilância.
A deserção de uma sentinela levou Cuhelyn apressadamente
até ao portão, antes de as linhas terem acordado. Encontraram o
homem desaparecido ileso mas embrulhado como um rolo de tecido
de lã, deitado no meio dos arbustos, não muito longe da paliçada.
Ele tinha conseguido alargar o cordão que lhe atava as mãos,
embora não o suficiente para as libertar, e tinha soltado
parcialmente o tecido que o amordaçava. Os roncos abafados, a
única coisa que ele conseguia murmurar, foram suficientes para o
localizar assim que os que o procuravam chegaram às árvores. Uma
vez solto, ele pôs-se rigidamente de pé e relatou, com os lábios
inchados, o que lhe acontecera durante a noite.
— Dinamarqueses... pelo menos cinco. Vieram da baía. Um
rapaz que podia ser galês mostrou-lhes o caminho...
— Dinamarqueses! — repetiu Cuhelyn, entre o espanto e o
esclarecimento. Ele estivera à espera de uma diabrura qualquer por
parte de Cadwaladr, seria possível que aquilo significasse, em vez
disso, uma diabrura contra Cadwaladr? Este pensamento provocou-
lhe algum divertimento amargo, mas ele não acreditou bem nele.
Aquilo poderia ser ainda um outro tipo de malfeitoria,
dinamarqueses e galeses a lamentarem o seu rompimento e a
resolverem secretamente as suas divergências agindo juntos à
revelia de Owain.
Dirigiu-se apressadamente para a tenda de Cadwaladr, e entrou
sem qualquer cerimônia. A brisa que se levantava soprou-lhe no
rosto, fazendo esvoaçar as peles rasgadas atrás do cobertor. A
figura embrulhada em cima da cama soerguia-se e contorcia-se,
proferindo pequenos sons animalescos. Esta segunda vítima atada
confundiu todas as explicações que pudessem justificar a primeira.
Porque é que um grupo de dinamarqueses, tendo chegado
clandestinamente junto de Cadwaladr, haveria seguidamente de o
atar e silenciar, deixando-o depois de modo a ser inevitavelmente
encontrado e libertado ao nascer do sol? Se eles tivessem vindo
conspirar de novo com ele, se tivessem vindo fazê-lo refém devido
ao que ele lhes devia, nenhuma destas hipóteses fazia sentido.
Assim refletia, intrigado, Cuhelyn, enquanto desatava as cordas que
amarravam os braços e as pernas, desfazendo pacientemente os
nós com uma só mão e desenrolando o corpo dos tapetes torcidos.
Uma mão vincada pela corda ergueu-se às apalpadelas ao ser
libertada e puxou para trás as últimas dobras, revelando uma
cabeleira despenteada e um rosto que Cuhelyn conhecia bem.
Não o semblante imperioso de Cadwaladr, mas sim o rosto
mais jovem, mais magro, mais intenso e mais sensível do reflexo
gêmeo de Cuhelyn, Gwion, o último refém de Ceredigion.
Chegaram juntos ao quartel-general de Owain um não tanto a
conduzir o outro como a dignar-se a caminhar atrás dele, o outro
andando com firmeza à sua frente para tornar claro a todos os que o
vissem que ele não estava a ser conduzido, mas sim a dirigir-se
para onde queria ir. O ar entre eles vibrava com a animosidade que
nunca existira entre os dois até àquele momento e que, pela sua
própria intensidade e dor, não poderia durar muito. Owain viu isso
na pose rígida dos seus corpos e na árdua inexpressividade dos
seus rostos quando eles chegaram à sua presença e se colocaram
lado a lado à sua frente, a aguardar o seu juízo.
Dois jovens morenos, graves, apaixonados, um deles um pouco
mais alto e mais magro, o outro ligeiramente mais corpulento e
menos trigueiro, mas vistos ali ao lado um do outro, a tremer de
tensão, poderiam bem ser irmãos gêmeos. A diferença gritante entre
eles era que a um fora decepado metade de um membro, e isso
num ato de traição por parte do senhor que o outro servia e
venerava. Mas não era isso que os mantinha equilibrados naquela
intensidade de ira e hostilidade tão estranhas para ambos, e que
lhes causava tamanha dor indignada.
Owain olhou de um rosto sombrio para o outro e perguntou num
tom neutro a ambos: — O que significa isto?
— Significa — disse Cuhelyn, descerrando os dentes — que a
palavra deste homem não vale mais do que a do seu senhor.
Encontrei-o amarrado e amordaçado na tenda de Cadwaladr. A
razão disso deverá ser ele a dizer-vos, porque eu não sei mais
nada. Mas Cadwaladr desapareceu, e este homem ficou, e a
sentinela que vigiava aquelas linhas diz que os dinamarqueses
vieram da baía durante a noite e o deixaram também amarrado no
meio dos arbustos, para poderem entrar. Se tudo isto tem um
significado, deverá ser ele a dizê-lo, não eu. Mas eu sei e vós
também sabeis, meu senhor, que ele jurou não tentar fugir de Aber e
que quebrou o seu juramento e desonrou o seu compromisso.
— O que não foi exatamente vantajoso para ele — disse Owain,
coibindo-se de sorrir ao ver o rosto de Gwion marcado pelas dobras
ásperas do cobertor, o cabelo preto despenteado e espetado, e os
lábios inchados, magoados pela mordaça. E ao jovem silencioso,
numa atitude de desafio, ele disse suavemente: — E o que tens a
dizer, Gwion? Renegaste o teu juramento? Estás desonrado, com o
teu juramento em apuros?
Os lábios inchados separaram-se e tremeram por um momento,
à medida que a tensão diminuía. Num tom tão baixo que mal se
ouvia, Gwion disse sem remorsos: — Sim.
Foi Cuhelyn que se virou um pouco para o lado e evitou o seu
olhar. Tendo admitido o pior, Gwion fixou os olhos pretos no rosto de
Owain e respirou fundo.
— E por que fez, Gwion? Eu já o conheço há algum tempo.
Solucione esse enigma para mim. É um fato que eu lhe deixei
trabalho para fazer em Aber relacionado à morte de Bledri ap Rhys.
É um fato que me deu sua palavra. Até aí nós sabemos. Agora
conte como se desviou a ponto de renunciar ao juramento.
— Esquecei! — disse Gwion, estremecendo. — Eu fiz! Deixem-
me pagar por isso.
— Mesmo assim, conte! — disse Owain com uma calma
terrível. — Porque eu quero saber!
— Acham que eu vou usar desculpas em minha defesa — disse
Gwion. A sua voz tinha-se tornado mais firme e assumira um tom
calmo de total distanciamento, indiferente ao que lhe pudesse
acontecer. Começou a falar timidamente, como se ele próprio nunca
tivesse, até esse momento, sondado as complexidades do seu
próprio comportamento, e receasse o que poderia encontrar. —
Não, eu fiz o que fiz, não o desculpo, o meu comportamento é, de
fato, vergonhoso. Mas eu vi vergonha em todos os caminhos, e não
tinha outra opção a não ser aceitar e suportar a vergonha menor.
Não, aguardai. Não me compete a mim dizer. Deixai-me dizer como
o fiz. Eu estava incumbido de devolver o corpo de Bledri à sua
mulher e de lhe contar como é que ele tinha morrido. Achei que
podia, sem ofensa, fazer-lhe a cortesia de a enfrentar e de o levar
eu próprio até ela, tencionando regressar ao meu cativeiro... se
assim se pode chamar às condições confortáveis que tinha junto de
vós, meu senhor. Assim, fui ter com ela a Ceredigion, e ali
sepultamos Bledri. E ali falamos sobre o que Cadwaladr, o seu
irmão, tinha feito, trazendo uma frota para exigir os seus direitos, e
eu cheguei à conclusão de que, tanto para vós como para ele, para
Gwynedd inteiro, para Gales, o melhor seria que os dois se unissem
e juntos enviassem os dinamarqueses de volta para Dublin, de
mãos vazias. A ideia não veio de mim — disse ele meticulosamente.
— Veio dos homens velhos, sábios que sobreviveram a guerras e
caíram em si. Eu era, eu sou um homem de Cadwaladr, não posso
ser outra coisa. Mas quando eles me demonstraram que,
precisamente por causa dele, deverá haver paz entre os dois
irmãos, eu vi as coisas da forma que eles viam. E eu juntei-me aos
antigos comandantes dele o mais depressa que pude e reuni uma
força que lhe é leal, mas que pretende a reconciliação que eu
também desejava ver. E quebrei o meu juramento — disse Gwion
com uma veemência brutal. — Quer os nossos belos planos
tivessem tido êxito ou não, digo-vos abertamente que teria lutado
por ele. Contra os dinamarqueses, alegremente. Quem lhes mandou
fazer um acordo daqueles? Contra vós, meu senhor Owain, com
muita tristeza, mas, se as coisas chegassem a esse ponto, eu o
teria feito. Porque é ele o meu senhor, e não sirvo nenhum outro.
Por isso não voltei para Aber, trouxe cem bons guerreiros para
entregar a Cadwaladr, seja qual for o uso que ele lhes queira dar.
— E encontraste-o no meu acampamento — disse Owain,
sorrindo. — E metade dos teus desígnios pareceram já ter sido
conseguidos, e as pazes entre nós feitas.
— Foi o que eu pensei e tive esperança que sucedesse.
— E foi o que encontraste? Porque tu falaste com ele, não
falaste, Gwion? Antes de os dinamarqueses chegarem da baía e o
levarem como prisioneiro e te terem deixado para trás? Ele
concordou contigo?
Por um instante, o rosto moreno de Gwion contorceu-se.
— Eles vieram e levaram-no. Não sei mais do que isso. Agora
já vos disse, e estou nas suas mãos. Ele é o meu senhor e, se me
permitirdes que lute sob o seu comando, ainda lhe poderei ser útil
mas, se me negardes isso, tendes esse direito. Eu imaginei-o
sitiado, e o meu coração não conseguiu suportá-lo. No entanto, dei-
lhe a minha fidelidade, agora renunciei por ele até mesmo à minha
honra, e sei muito bem que a perda desta me coloca numa situação
muito pior. Façais como julgardes melhor.
— Estás a querer dizer-me — perguntou Owain observando-o
atentamente — que ele não teve tempo de te contar como estão as
coisas entre nós? Se eu permitir que lutes sob o meu comando,
dizes tu! Se eu estivesse a pensar em lutar, era bem capaz de o
fazer, e não serias o pior homem que já tive sob a minha bandeira,
mas enquanto eu conseguir o que quero sem guerra, não estou a
pensar nisso. O que te faz pensar que estou prestes a ordenar um
ataque?
— Os dinamarqueses têm o seu irmão em seu poder! —
protestou Gwion, gaguejando, subitamente desorientado. —
Certamente que tencionais salvá-lo.
— Não tenho tal intenção — disse Owain secamente. — Não
levantarei um só dedo para o tirar das mãos deles.
— Por que, se o fizeram refém por ele ter feitos as pazes
convosco?
— Eles fizeram-no refém — disse Owain — por causa dos dois
mil marcos que lhes prometeu se eles me obrigassem a devolver-lhe
as terras que lhe foram confiscadas.
— Não importa, não importa o que eles têm contra ele, embora
não possa ser só isso! Ele é seu irmão, está em mãos inimigas e
corre perigo de vida! Não podeis abandoná-lo assim!
— Ele não correrá o mínimo perigo — disse Owain — se pagar
o que deve. Como certamente fará. Eles irão tratá-lo como tratam os
seus próprios bebês e irão libertá-lo sem uma beliscadura quando
tiverem carregado o gado e os bens dele, no valor que ele lhes
prometeu. Eles não querem envolver-se numa guerra mais do que
eu, desde que recebam o que lhes é devido. E eles sabem que, se
mutilarem ou matarem o meu irmão, então terão que se haver
comigo. Eu e os dinamarqueses compreendemo-nos. Mas colocar
os meus homens no campo de batalha para o tirar do atoleiro que
ele escolheu para si próprio? Não! Nem um homem, nem uma
espada, nem um arco!
— Eu não consigo acreditar no que estou a ouvir! — disse
Gwion, de olhos muito abertos.
— Diz-lhe, Cuhelyn, como vai esta discórdia — disse Owain,
recostando-se com um suspiro perante uma lealdade tão inocente e
irreconciliável.
— O meu senhor Owain recebeu o seu irmão sem qualquer
ideia preconcebida — disse Cuhelyn resumidamente — e disse-lhe
que tinha que se livrar dos dinamarqueses antes de as suas terras
lhe serem devolvidas. E só havia uma forma de os mandar
regressar a casa, e esta era pagar-lhes o que ele prometera. A
desavença era dele, e ele é que tinha que a resolver. Mas
Cadwaladr achou que era mais esperto e que, se forçasse o meu
senhor a agir, o meu senhor teria que se juntar a ele para expulsar
os dinamarqueses por meio da guerra. E assim ele não teria que
pagar nada! Por isso desafiou Otir e mandou-o regressar a Dublin,
pois Owain e Cadwaladr tinham feito as pazes e expulsá-los-iam
para o mar se eles não levantassem âncora e partissem. O que —
disse Cuhelyn entre dentes, com uma expressão feroz, firme e de
desafio nos olhos fixos em Owain que era, afinal, irmão daquele
homem desonesto e talvez sentisse relutância em falar demasiado
claramente — ele mentiu. As pazes não foram feitas, e não houve
qualquer aliança. Ele mentiu e quebrou um acordo solene, e estava
à espera de ser louvado por isso! Pior ainda, com essa intrujice, ele
colocou em perigo três reféns, dois monges e uma moça
aprisionados pelos dinamarqueses. O meu senhor prontificou-se a
protegê-los e ofereceu um preço justo pelo seu resgate. Mas quanto
a Cadwaladr, ele não vai levantar um dedo. E agora já sabes —
disse ele num tom feroz — o motivo por que os dinamarqueses
vieram buscá-lo durante a noite, por que te trataram bem a ti que
não lhes fizeste afronta nenhuma. Eles têm uma dívida a receber de
Cadwaladr. Porque até mesmo tratando-se de dinamarqueses, um
príncipe de Gales deve manter a sua palavra.
Tudo aquilo foi dito numa voz firme, lenta e, ao mesmo tempo
com uma acalorada indignação que manteve Gwion em silêncio até
ao fim.
— Tudo o que Cuhelyn te disse é verdade — disse Owain.
Gwion abriu os lábios rígidos e disse num tom inexpressivo: — Eu
acredito. Mesmo assim, ele ainda é seu irmão e meu senhor. Eu sei
que ele é imprudente e impulsivo. Age sem pensar. Por conseguinte,
eu não posso renunciar à minha fidelidade, mesmo que vós
repudieis o seu sangue.
— Isso — disse Owain com uma paciência principesca — eu
não fiz. Ele que cumpra a sua palavra para com aqueles que trouxe
com o objetivo de recuperar os seus direitos, e liberte o meu solo
galês de um invasor indesejado, que será meu irmão tal como
dantes. Mas eu quero-o livre de malevolência e falsidades e não
darei a minha aprovação às coisas que ele fez e que o desonram.
— Eu não posso fazer tal estipulação — disse Gwion com um
sorriso triste e doloroso — nem colocar tais limites à minha
fidelidade. Eu próprio estou renegado, até mesmo nisto sou seu
companheiro. Irei com ele para onde ele for, até mesmo para o
Inferno.
— Tu estás à minha mercê — disse Owain — e eu não tenho o
Inferno em mente para ti nem para ele.
— No entanto, não o ides ajudar agora! Oh, meu senhor —
suplicou Gwion com veemência — pensai no que os homens dirão
de vós, se deixardes o seu irmão nas mãos dos inimigos.
— Há apenas uma semana — disse Owain pacientemente —
esses dinamarqueses eram seus amigos e camaradas de armas. Se
ele não me tivesse enganado e resolvido não pagar o que lhes
devia, eles estariam quietos. Mesmo que eu ignore a traição que ele
lhes fez, não posso ignorar o modo grosseiro e tolo como ele se
enganou a meu respeito. Eu não gosto de ser considerado um
homem que é condescendente para com aqueles que quebram
juramentos e que faltam desavergonhadamente à palavra livremente
dada.
— Vós me condenais não menos que a ele — disse Gwion,
contorcendo-se.
— A ti, pelo menos eu compreendo. A tua traição deriva de uma
lealdade demasiado imutável. Não é motivo de honra — disse
Owain, cansado de ser paciente — mas não afastará os teus
amigos de ti.
— Eu estou à sua mercê, então. O que ides fazer comigo?
— Nada — disse o príncipe. — Fica ou vai-te embora, como
quiseres. Alimentar-te-emos e alojar-te-emos como fizemos em
Aber, se quiseres ficar e esperar pela sorte que lhe cabe. Se não,
vai quando e para onde quiseres. Tu és um homem dele, não meu.
Ninguém te impedirá.
— E já não ides pedir a minha submissão?
— Já não lhe atribuo qualquer valor — disse Owain, erguendo-
se com um movimento da mão a mandá-los retirar-se da sua
presença.
Saíram juntos, tal como tinham entrado, mas, assim que se
encontraram no exterior, Cuhelyn virou-se e ter-se-ia afastado
bruscamente sem dizer uma palavra se Gwion não lhe tivesse
agarrado no braço.
— Ele condena-me com a sua misericórdia! Ele podia ter-me
tirado a vida, ou amarrado com as correntes que eu mereço. Tu
também desvias os teus olhos de mim? Se fosse ao contrário, se
fosse o próprio Owain, ou o Hywel, que estivesse cercado de
inimigos, tu não terias colocado a tua lealdade para com ele acima
da tua palavra e ido ter com ele, ainda que desonrado, se
necessário?
Cuhelyn tinha parado tão abruptamente como se virara. O seu
rosto estava tenso.
— Não. Eu só dei a minha fidelidade a senhores de honra
absoluta e que exigem o mesmo dos que os servem. Se eu tivesse
feito o que fizeste e trazido a desonra como um presente para
Hywel, ele ter-me-ia insultado e expulsado. Cadwaladr, não tenho
qualquer dúvida, recebeu-te bem e ficou satisfeito por teres vindo.
— Foi uma coisa difícil de fazer — disse Gwion com a
solenidade do desespero. — Mais difícil do que morrer.
Mas Cuhelyn já se tinha soltado com um cuidado fastidioso e
estava a atravessar a passos largos o acampamento que estava a
acordar com a luz da manhã.
Gwion sentia-se um exilado e um proscrito entre os homens de
Owain, embora eles aceitassem a sua presença sem qualquer
objeção e não se esforçassem por evitá-lo ou excluí-lo. Ali, ele não
tinha qualquer função. As suas mãos e as suas capacidades não
pertenciam àquele senhor, e ele não podia ir para junto do seu
próprio senhor. Retraído e em silêncio, atravessou as linhas e, de
uma pequena colina dentro do perímetro norte do acampamento,
ficou durante muito tempo a olhar para as dunas distantes onde
Cadwaladr era prisioneiro, um refém por dois mil marcos em gado,
dinheiro e bens, o preço de uma frota dinamarquesa.
15

Em sua visão, os campos ao longe davam lugar às primeiras


ondulações de areia e as árvores dispersas passavam a
agrupamentos de arbustos e vegetação rasteira. Algures para além
deles, Cadwaladr, possivelmente acorrentado depois da sua
captura, cismava e esperava pela ajuda que o irmão friamente lhe
negava. Nenhuma afronta, nem o fato de ele ter voltado atrás com a
palavra dada, nem mesmo o assassínio de Anarawd, se, de fato,
essa culpa o tocava, nada podia justificar aos olhos de Gwion o
abandono do irmão por parte de Owain. Gwion considerava a sua
própria quebra de juramento ao deixar Aber um gesto imperdoável,
e não culpava os que o condenavam, mas não havia nada que
Cadwaladr tivesse feito ou pudesse ainda fazer que levasse aquele
vassalo devoto a deixar de o venerar ou seguir. A fidelidade, uma
vez dada e aceita, era para toda a vida.
E ele não podia fazer nada! E verdade que ele tinha autorização
para se ir embora se quisesse, e também era verdade que ele tinha
uma companhia de cem bons guerreiros estacionados a poucas
milhas dali, mas o que era isso contra o elevado número de homens
que os dinamarqueses deviam ter e as defesas que eles deviam ter
construído? Uma tentativa irrefletida de invadir o acampamento
deles para libertar Cadwaladr poderia custar-lhe a vida ou, o que era
mais provável, fazer com que os dinamarqueses levantassem ferros
e se fizessem ao mar, onde não era possível rivalizar com eles,
levando o prisioneiro para a Irlanda, fora do alcance de qualquer
operação de salvamento.
Essa possibilidade distante não lhe proporcionou qualquer
esclarecimento, nem lhe fez ver um caminho que conduzisse à
libertação do seu senhor. Entristecia-o o fato de Cadwaladr, que já
tinha perdido tanto, ser obrigado a dar o que lhe restava em dinheiro
e gado para pagar a sua liberdade, sem ter sequer a certeza de vir a
recuperar as terras que perdera, em troco das quais tinha sido
prometida a quantia que agora lhe era exigida. Mesmo que Owain
tivesse razão, e os dinamarqueses não tencionassem fazer-lhe mal
se a dívida fosse paga, a humilhação do cativeiro e da submissão
consumiria como uma úlcera aquele espírito orgulhoso. Gwion
sentiu ressentimento contra Otir e os seus homens por cada marco
do dinheiro que exigiam. Poder-se-ia dizer que Cadwaladr nunca
deveria ter pedido ajuda estrangeira contra o irmão, mas esses
impulsos impetuosos e errados tinham constituído sempre uma
ameaça à sabedoria de Cadwaladr, e os homens que o amavam
tinham-nos suportado como se fossem tropelias perigosas de uma
criança valente e temerária, fazendo o melhor possível com o caos
resultante. Não era generoso nem justo negar-lhe a indulgência que
nunca lhe fora recusada, agora que ela era mais necessária que
nunca.
Gwion moveu-se ao longo do cimo da colina, ainda a esforçar
os olhos em direção a norte. Uma franja de árvores coroava o topo,
atarracadas e deformadas pelo ar salgado, e inclinando-se para o
interior com o vento. E do outro lado dessa linha irregular estava um
homem imóvel, robusto e enraizado como uma árvore, a olhar para
as forças dinamarquesas invisíveis, tal como Gwion olhava. Era um
homem com cerca de trinta e cinco anos, entroncado e musculoso,
com os primeiros salpicos cinzentos no cabelo castanho, e os olhos
sombreados por baixo de espessas sobrancelhas pretas estavam
fixos nas curvas, moldadas pela areia, do horizonte nu. Não estava
armado e tinha o peito e os braços nus à luz do sol matinal, um
corpo vigoroso, imponentemente imóvel na sua concentração no
horizonte. Embora ele tivesse ouvido os passos de Gwion na erva
seca por baixo das árvores, e era óbvio que ele os devia ter ouvido,
não virou a cabeça nem se mexeu durante alguns momentos, até
Gwion se encontrar muito perto dele. Mesmo então, ele moveu-se e
virou-se lentamente e com uma expressão de indiferença.
— Eu sei — disse ele, como se há muito tivessem dado conta
da presença um do outro. — Ficar a olhar não traz as coisas para
mais perto.
Era exatamente o pensamento de Gwion, expresso de uma
forma muito adequada e, por um momento, ele ficou sem
respiração. Cautelosamente, perguntou: — Também tu? Que
interesse tens entre os dinamarqueses?
— Uma mulher — disse o outro homem, com um força breve e
seca que não necessitava de mais palavras para expressar a
enormidade de sua privação.
— Uma mulher! — repetiu Gwion, sem compreender. — Por
que estranho acaso... — O que dissera Cuhelyn sobre três reféns
deixados em perigo depois da fuga e do desafio de Cadwaladr, dois
monges e uma moça raptados pelos dinamarqueses? Dois monges
e uma moça tinham partido de Aber integrados na comitiva de
Owain. Que primeiro tinham sido vítimas dos mercenários de
Cadwaladr, e depois tinham ficado prisioneiros, para pagar o preço
da traição de Cadwaladr, no caso de os dinamarqueses estarem a
pensar em vingar-se? Oh, o cômputo já ia longo, e a obstinação de
Owain tornava-se cada vez mais fácil de compreender. Mas
Cadwaladr não tinha pensado, ele nunca pensava antes, agia
primeiro e arrependia-se depois, e nesse momento já devia estar
arrependido de tudo o que fizera desde que cometera o primeiro
erro fatal de fugir para o reino de Dublin à procura de retaliação.
Sim, a moça... Gwion recordava-se da moça. Uma bonita moça
morena, alta, magra e calada, a servir vinho e hidromel à volta da
mesa do príncipe sem um sorriso, exceto, ocasionalmente, o sorriso
malicioso e triste com que atormentava o clérigo que diziam que era
seu pai, recordando-lhe a posição precária em que ele se
encontrava, e como ela poderia prejudicá-lo se quisesse. Essa
história tinha circulado em murmúrios pelo llys, dos cavalariços às
criadas, aos armeiros e aos pajens e chegado, ao fim de pouco
tempo, aos ouvidos do último refém de Ceredigion, o único que
podia observar todos aqueles acontecimentos com indiferença, uma
vez que Gwynedd não era a sua terra e Owain não era o seu
senhor, nem Gilbert de Santo Asaph o seu bispo. Seria a mesma
moça? Ela ia casar-se, recordou-se, com um homem de Anglesey
ao serviço de Owain.
— Tu és Ieuan ab Ifor — disse ele — que ia casar com a filha
do cônego.
— Sou, sim — disse Ieuan, franzindo as sobrancelhas pretas.
— E quem és tu, que sabes o meu nome e o que eu estou a fazer
aqui? Até agora, eu não te vi entre os vassalos do príncipe.
— Por uma boa razão. Eu não sou seu vassalo. Eu sou Gwion,
o último dos reféns que ele trouxe de Ceredigion. A minha fidelidade
era e é para com Cadwaladr — disse Gwion secamente, e viu o fogo
lento brilhar nos olhos penetrantes que o observavam. — Para o
bem ou para o mal, sou um homem dele, mas eu preferia que fosse
para bem.
— É por culpa dele — disse Ieuan, irritado — que a filha de
Meirion é prisioneira daqueles piratas. O bem que alguma vez veio
dele cabe dentro de uma chávena de bolotas e, tal como as bolotas,
pode ser dado aos porcos. Ele traz piratas bárbaros para Gwynedd,
depois volta atrás com a sua palavra e foge para um lugar seguro,
deixando reféns inocentes a sofrer as consequências da ira de Otir.
Ele tem sido uma maldição tão grande para os seus familiares mais
próximos como foi para Anarawd, que ele mandou matar.
— Tem cuidado e não vás demasiado longe a censurá-lo —
disse Gwion, mas num tom de cansaço e dor, mais do que de
indignação -- pois eu não suporto ouvir alguém insultá-lo.
— Oh, tem calma! Deus sabe que eu não censuro homem
nenhum por apoiar o seu príncipe, mas que Deus te envie um
príncipe melhor para apoiares. Tu podes perdoar-lhe tudo,
independentemente do quanto ele te desonra, mas não me peças
que o perdoe por ter abandonado a minha noiva ao destino que os
dinamarqueses lhe reservam.
— O príncipe declarou que ela está sob sua proteção — disse
Gwion — eu ouvi dizer há apenas uma hora. Ele ofereceu um
resgate justo por ela e pelos dois monges que vieram de Inglaterra,
e avisou-os quanto ao valor que atribui ao fato de ela se encontrar
sã e salva.
— O príncipe está aqui — disse Ieuan num tom de tristeza — e
ela está lá, e eles perderam o domínio sobre aquele que preferiam
ter sob o seu poder. Os outros prisioneiros poderão acabar por
ocupar o seu lugar.
— Não — disse Gwion — estás enganado. Por mais que o
possas odiar, podes ficar satisfeito! A noite passada, eles trouxeram
um barco até à baía e puseram homens em terra para assaltarem a
tenda dele, no acampamento. Fizeram Cadwaladr prisioneiro e
levaram-no de volta com eles, para pagar o seu próprio resgate ou
suportar o seu destino. Não são necessárias outras vítimas, eles
têm a que escolheram em sua posse.
As sobrancelhas irregulares de Ieuan, o seu traço mais
expressivo, uniram-se abruptamente numa linha de desconfiança e
incredulidade e, seguidamente, confrontado com o olhar firme de
Gwion, descontraíram-se numa expressão de perplexidade e
espanto.
— Estás enganado, isso não pode...
— É verdade.
— Como é que sabes? Quem te disse?
— Não foi preciso ninguém dizer-me — respondeu Gwion. —
Eu estava com ele quando eles chegaram. Eu vi. Quatro
dinamarqueses de Otir entraram de rompante durante a noite. A ele,
levaram-no, a mim deixaram-me amarrado e amordaçado, tal como
fizeram à sentinela que estava de guarda ao portão. Tenho aqui as
marcas dos cordões com que me ataram. Olha!
Os cordões tinham feito vergões profundos nos pulsos quando
ele tentara libertar-se; as queimaduras provocadas pelas cordas
eram inconfundíveis. Ieuan olhou para elas, em silêncio, durante um
longo momento, avaliando e aceitando o que lhe fora dito.
— Foi por isso que me perguntaste: "Também tu?" Agora eu
sei, sem ter que perguntar, que interesses tens entre os
dinamarqueses. Desculpa-me por te dizer claramente que a tua dor
não me aflige. Foi ele que provocou o que lhe vier a acontecer. Mas
o que fez a minha moça para merecer o perigo em que ele a
deixou? Se a captura dele a libertar, isso alegrar-me-á.
Uma vez que não era possível contestar tal argumento, Gwion
ficou calado.
— Se tivesse uma dúzia de homens que pensassem como eu
— prosseguiu Ieuan, mais para si próprio do que para outra pessoa
— eu próprio a tiraria de lá, contra todos os dinamarqueses que
Dublin possa enviar a Gwynedd. Ela é minha, e a terei.
— No entanto, ainda não a viste — disse Gwion, sacudido pela
súbita convulsão de paixão num homem tão contido e imóvel.
— Ah, mas eu já a vi. Eu já estive a dois passos da paliçada
deles sem eles me verem, e posso voltar a fazê-lo. Via-a lá, no cimo
das dunas, a olhar para sul, à procura da libertação que ninguém lhe
envia. Ela é mais do que me disseram. Ágil e viva como o aço, e
move-se como um fauno. Eu aventuraria ir buscá-la sozinho, mas
receio provocar a sua morte mesmo antes de conseguir chegar
perto dela.
— Eu faria o mesmo pelo meu senhor — disse Gwion, ficando
imóvel e atento, pois aquele amante ousado e fervoroso tinha feito
nascer uma centelha de esperança dentro de si. — Embora
Cadwaladr não signifique nada para ti, e a tua Heledd pouco mais
seja para mim, se juntarmos as nossas cabeças e unirmos as
nossas forças, podemos ambos beneficiar com isso. Dois é melhor
que um só.
— Mas continuamos a ser apenas dois — disse Ieuan. Mas ele
estava à escuta.
— Dois é apenas um começo. Dois agora podem ser mais
dentro de alguns dias. Mesmo que eles obriguem o meu senhor a
pagar o resgate, serão necessários alguns dias para trazer e
carregar o gado e juntar o que faltar em moedas de prata. — Ele
aproximou-se mais e prosseguiu em voz baixa, de modo a ser
ouvido apenas por Ieuan, se mais alguém passasse por ali. — Eu
não vim sozinho. Eu reuni e trouxe de Ceredigion cerca de cem
homens que ainda são fiéis a Cadwaladr. Oh, não com o objetivo
que temos em mente neste momento. Eu tinha a certeza de que os
irmãos fariam as pazes e que eles se uniriam para expulsar os
dinamarqueses, e trouxe ao meu senhor pelo menos um número de
seguidores razoável para lutar por ele lado a lado com os que lutam
por Owain. Eu não queria que ele se libertasse e permanecesse vivo
apenas por graça do irmão, mas sim à frente de uma companhia
dos seus próprios homens. Eu vim à frente para lhe trazer a notícia
e descobri que Owain o tinha abandonado. E agora os
dinamarqueses levaram-no.
O rosto de Ieuan tinham readquirido a sua calma impassível
mas, por trás da testa larga e do olhar distante, uma mente
perspicaz estava ocupada com os cálculos das possibilidades até
então imprevistas.
— A que distância estão os teus cem homens?
— A dois dias de marcha. Eu deixei o meu cavalo e um
cavalariço que veio comigo a uma milha a sul e vim sozinho à
procura de Cadwaladr. Agora que Owain me deu a liberdade de ficar
ou partir, eu posso voltar dentro de uma hora para o local em que
deixei o meu homem e mandá-lo trazer a companhia o mais
depressa que homens a pé conseguirem marchar.
— Há alguns homens aqui dentro — disse Ieuan — que
gostariam de se aventurar. Alguns eu posso persuadir, outros não
precisam de qualquer persuasão. — Ele esfregou as mãos grandes,
vigorosas, e fechou os dedos com força sobre uma arma invisível.
— Eu e tu, Gwion, havemos de conversar mais sobre isto. E não
devias estar já a caminho antes do fim do dia?
Passava do meio-dia quando Torsten levou novamente o seu
prisioneiro acorrentado, humilhado e extremamente irritado, à
presença de Otir. Os belos lábios de Cadwaladr estavam cerrados, e
os seus olhos pretos ardiam de raiva, ainda mais amarga por estar
acorrentado. Apesar de todos os seus protestos, ele sabia tão bem
como qualquer outra pessoa que Owain não cederia na posição que
assumira. O tempo para esperanças inúteis tinha passado, a
realidade tinha-o submergido e colocado numa situação de que era
impossível escapar. Não valia a pena resistir, uma vez que a
submissão acabaria por ser inevitável.
— Ele tem uma coisa para te dizer — disse Torsten, sorrindo. —
Ele não gosta de viver acorrentado.
— Ele que fale por si próprio — disse Otir.
— Eu pagarei os seus dois mil marcos — disse Cadwaladr. A
sua voz saiu fina entre dentes cerrados, mas ele estava bem seguro
de si. — Tu não me deixas outra opção, uma vez que o meu irmão
me trata de uma forma pouco fraternal. — E, testando os baixios
que lhe restavam da sua maré de azares, acrescentou: — Vais ter
que me permitir alguns dias de liberdade para reunir uma tão grande
quantidade de bens, pois não pode ser tudo em dinheiro.
Isso provocou uma enorme gargalhada de Torsten e um
enfático movimento de cabeça de Otir.
— Oh, não, não, meu amigo! Eu não sou tão tolo que volte a
acreditar em ti. Tu não vais dar um passo para fora daqui, nem te
vais livrar dos teus grilhões, até os meus barcos estarem
carregados, prontos para se fazerem ao mar.
— Então como é que propões que eu efetive esta questão do
resgate? — perguntou Cadwaladr num tom ríspido. — Estás à
espera que os meus administradores te tragam o meu gado e o meu
dinheiro, simplesmente a uma ordem tua?
— Usarei um intermediário em que confio — disse Otir, nada
perturbado com qualquer lampejo de ira ou desafio vindo de um
homem que se encontrava inteiramente em seu poder. — Isto é, se
ele agir em teu nome mesmo nesta questão. Que ele a aprova, isso
já nós sabemos, tu melhor do que qualquer de nós. O que vais
fazer, antes de eu deixar à solta, mesmo sob a minha guarda, é
entregar o teu pequeno selo... eu sei que o tens, tu não vais a lado
nenhum sem ele... e dar-me uma pequena mensagem, fraseada de
modo a que o teu irmão saiba que ela só poderia vir de ti. Eu lidarei
com um homem em quem confio, independentemente de a situação
entre nós ser de amizade ou inimizade. Owain Gwynedd, ainda que
não pretenda pagar o teu resgate, não deixará de receber bem a
notícia de que tencionas pagar as tuas dívidas honrosamente, nem
te recusará ajuda para que a compensação seja efetuada. Owain
Gwynedd fará os ajustes entre eu e tu.
— Ele não o fará! — inflamou-se Cadwaladr, picado. — Porque
é que ele havia de acreditar que eu te dei o meu selo de livre
vontade, quando podias ter-me despido e mo tirado?
Independentemente da mensagem que eu possa enviar, como é ele
vai confiar, como é que ele poderá ter a certeza de que a enviei de
minha livre vontade, e que ela não foi arrancada com o teu punhal
junto da minha garganta, ameaçando-me de morte?
— Ele já me conhece suficientemente bem — disse Otir
secamente — para saber que eu não sou tolo ao ponto de destruir o
que me pode ser e será lucrativo. Mas, se tens dúvidas, muito bem,
enviaremos alguém em quem ele confiará, e esse homem aceitará
as ordens diretamente da tua pessoa e testemunhará a Owain que
as recebeu desse modo. Owain saberá a verdade pelo seu portador.
Eu duvido que, neste momento, ele tenha muito prazer em ver-te.
Mas quando souber que decidiste honrar as tuas dívidas, ele
procederá como um irmão e juntará rapidamente o dinheiro. Ele
quer que eu vá embora, e eu irei assim que tiver aquilo por que vim,
e ele poderá ter-te de volta e que faça bom proveito.
— Tu não tens um homem assim na tua companhia — disse
Cadwaladr enrolando o lábio. — Porque é que ele havia de confiar
num homem teu?
— Ah, mas tenho! Não é um homem meu, nem de Owain, nem
teu, o seu serviço pertence a outra jurisdição. Um homem que se
ofereceu livremente como garantia do teu regresso quando saíste
para ir falar com o teu irmão. Sim, um homem que deixaste entregue
ao seu destino e ao meu senso comum quando me lançaste o teu
desafio à cara e fugiste de volta para um irmão que te desprezou
por o teres feito. — Otir viu o rosto moreno do príncipe corar e ficou
muito satisfeito por o ter picado.
— Ele ficou refém por ti, por bondade, e agora que regressaste,
embora de má vontade, já não tenho o direito de mantê-lo aqui. E
esse é o homem que irá ter com Owain como teu enviado e, em teu
nome, reunir os meios e os bens que ainda tiveres e trazer cá o teu
resgaste. — Ele virou-se para Torsten, que se mantivera à espera
durante a troca de palavras, com um ar obviamente satisfeito. — Vai
à procura do jovem diácono de Lichfield, o rapaz do bispo, Mark, e
pede-lhe que venha falar comigo.
Quando recebeu a notícia, Mark estava com o Irmão Cadfael no
meio das árvores raquíticas ao longo do outeiro, a apanhar galhos
para a fogueira. Ele endireitou-se com a sua carga reunida na dobra
de uma manga larga e ficou a olhar para o mensageiro, um pouco
surpreendido, mas sem o mínimo vestígio de alarme. Naqueles dias
de cativeiro nominal, ele nunca se sentira prisioneiro, nem em
perigo, mas também nunca imaginara que tinha qualquer particular
interesse ou importância para os seus captores, para além do valor
negocial que o seu corpo franzino pudesse ter.
Tal como uma criança curiosa, ele perguntou, de olhos muito
abertos: — O que poderá o seu comandante querer de mim?
— Nada de mal — disse Cadfael. — Tanto quanto eu consigo
ver, ao fim deste tempo todo, estes dinamarqueses irlandeses têm
mais de irlandês do que de dinamarquês neles. Otir parece-me tão
cristão como a maior parte dos habitantes da Inglaterra ou de Gales,
e muito mais cristão do que alguns deles.
— Ele tem uma tarefa para ti — disse Torsten, sorrindo com um
ar bem disposto — que será benéfica para todos. Vem ouvir por ti
próprio.
Mark empilhou o combustível que tinha apanhado perto da
lareira que tinham construído com pedras na concavidade de areia
abrigada que ocupavam, e seguiu Torsten, com curiosidade, até à
tenda aberta de Otir. Ao ver Cadwaladr, rigidamente ereto,
acorrentado e tenso como a corda de um arco, Mark parou e
respirou fundo, espantado. Era a primeira indicação que ele tinha de
que o turbulento fugitivo estava de regresso ao acampamento, e era
desconcertante vê-lo ali amarrado e em apuros. O seu olhar
deslocou-se do prisioneiro para o captor e viu Otir, obviamente muito
satisfeito, com um sorriso intimidante nos lábios. O destino estava
ocupado a pôr tudo de pernas para o ar, para se divertir.
— Mandou-me chamar — disse Mark simplesmente. — Estou
aqui.
Otir observou, com um ar indulgente e surpreendentemente
suave e divertido, aquele jovem franzino que falava ali em nome de
uma igreja que tanto os galeses como os irlandeses e os
dinamarqueses de Dublin reconheciam. Um dia, daí a alguns anos,
ele talvez até tivesse que chamar "Pai" àquele rapaz! "Irmão" já ele
lhe podia chamar.
— Como vê — disse Otir — o senhor feudal Cadwaladr, por
quem o Irmão ficou cá como garantia de que ele iria e viria sem
qualquer impedimento, voltou para junto de nós. O seu regresso faz
com que o Irmão fique livre para se ir embora. Se levar uma
mensagem dele ao seu irmão Owain Gwynedd, estará a fazer uma
boa ação para ele e para todos nós.
— Tem que me dizer o que é — disse Mark. — Eu não me senti
privado da minha liberdade aqui. Não tenho qualquer queixa.
— O próprio senhor Cadwaladr dir-lhe-á — disse Otir, e o seu
sorriso satisfeito alargou-se. — Ele diz que está disposto a pagar os
dois mil marcos que nos prometeu se viéssemos a Abermenai com
ele. Ele quer que transmita ao seu irmão como isso deverá ser feito.
Ele contará.
Mark olhou com alguma dúvida para o rosto tenso e para os
ardentes olhos escuros de Cadwaladr.
— É verdade?
— É — a voz era forte e clara, embora um pouco irritada. Uma
vez que não podia fazer nada, Cadwaladr aceitava a necessidade,
se não com elegância, pelo menos com os restos recuperados da
sua dignidade. — Eu sou obrigado a pagar a minha liberdade. Muito
bem, decidi pagar.
— Isso é realmente uma decisão sua? — perguntou Mark num
tom de dúvida.
— É. Para além do que vê, não estou a ser ameaçado. Mas eu
só serei livre quando o resgate tiver sido pago e os barcos
carregados para se fazerem ao mar e, por conseguinte, não posso ir
eu próprio dar ordens para reunir o meu gado, nem ir buscar o
dinheiro para perfazer a quantia. Eu quero que o meu irmão faça
tudo isso por mim o mais rapidamente possível. Eu enviarei a minha
autoridade por si, e o meu selo como prova.
— Se é isso o que deseja — disse Mark — sim, eu serei
portador da sua mensagem.
— É o que eu desejo. Se lhe contar que eu próprio lhe disse,
ele irá acreditar. — Naquele momento, os seus lábios estavam muito
finos do esforço de conter o azedume e a fúria, mas ele tinha
tomado uma decisão. Mais tarde poderia vingar-se, poderia exigir
outro pagamento como retribuição deste, mas do que ele agora
precisava era da sua liberdade. Tirou o seu selo privado de um
bolso da manga e estendeu a mão, não para Otir, que o observava
com um sorriso radioso, mas para Mark. — Leve isto ao meu irmão,
diga-lhe que o recebeu da minha mão e peça-lhe que se apresse a
obter aquilo de que preciso.
— Sim, eu o farei fielmente — disse Mark.
— Então peça-lhe que envie alguém por mim a Llanbadarn ter
com Rhodri Fychan, que era o meu administrador e será novamente
o meu administrador se eu alguma vez recuperar o que é meu. Ele
saberá onde encontrar o que resta do meu dinheiro e, de acordo
com as minhas ordens, testemunhadas pelo meu selo, ele entregá-
lo-á. Se a quantia não for suficiente, o que falta terá que ser coberto
com gado. Rhodri sabe onde está o meu gado. Ainda há manadas
que estão a ser cuidadas para mim, mais do que suficientes. A
quantia é dois mil marcos. Peça ao meu irmão que se apresse.
— Sim — disse Mark simplesmente, começando a apressar-se.
Foi ele que se despediu deles como um embaixador, e não como se
reconhecesse que Otir o mandava embora. Uma pequena vênia e
umas breves palavras de despedida, e ele já estava a caminho. Por
qualquer motivo, o espaço no interior da tenda e em redor desta
pareceu ficar curiosamente vazio com a remoção da sua figura
franzina.
Ele foi a pé; a distância era pouco mais de uma milha. Dentro
de meia hora ele estaria a transmitir a mensagem a Owain Gwynedd
e a pôr em movimento os acontecimentos que devolveriam a
liberdade a Cadwaladr, se não as suas terras, e faria desaparecer
de Gwynedd a ameaça da guerra e a presença opressora de um
exército estrangeiro.
A única pausa que fez antes de partir foi para comunicar a
Cadfael a missão de que fora incumbido.
O Irmão Cadfael dirigiu-se muito pensativamente para onde
Heledd estava a atiçar o fogo na lareira de pedra, para preparar a
comida para a refeição noturna. A sua mente estava ocupada com o
que acabara de saber, mas não pôde deixar de notar como Heledd
se dava bem com a vida errante de um acampamento militar. Ela
recebera o sol com graciosidade, a sua pele adquirira um tom de
bronze dourado que tinha a suave frescura da azeitona e que ficava
muitíssimo bem com o cabelo e os olhos escuros, e com o vermelho
vivo da boca. Ela nunca fora tão livre na vida como era agora em
cativeiro. O brilho da liberdade envolvia-a como um manto de ouro,
e não tinha qualquer importância que a sua manga estivesse
rasgada e que a bainha do vestido estivesse suja e puída.
— Há notícias que podem ser boas para todos nós — disse
Cadfael observando os seus movimentos simples com prazer. —
Não só Turcaill regressou são e salvo da sua expedição da meia-
noite, como parece que ele trouxe Cadwaladr de volta com ele.
— Eu sei — disse Heledd. As suas mãos ocupadas ficaram
imóveis por um momento, e ela olhou para o fogo e sorriu. — Eu vi-
os regressar antes do nascer do sol.
— E não disseste nada? — Não, ela não diria, ainda não, não a
qualquer pessoa. Isso revelaria mais do que ela estava disposta a
revelar por enquanto. Como é que ela podia dizer que se tinha
levantado antes do nascer do sol, para ficar à espera de ver o
pequeno barco voltar, são e salvo? — Eu mal te vi hoje. O que quer
que eles tivessem feito não teve quaisquer consequências nefastas,
isso era a única coisa que interessava. Por quê, o que há? Como é
que é bom para todos nós?
— Bem, o homem caiu em si e concordou em pagar aos
dinamarqueses o que lhes prometeu. Mark acabou de ser enviado
para encarregar Owain de, em nome do seu irmão e com o selo do
irmão como garantia da veracidade, reunir e pagar o resgate. Assim
que o receber, Otir vai-se embora, deixando Gwynedd em paz.
Agora ela tinha-se realmente virado para prestar a devida
atenção ao que ele estava a dizer, com as sobrancelhas erguidas e
as mãos imóveis.
— Ele cedeu? Já? Vai pagar?
— Foi Mark quem me disse e Mark já vai a caminho. Nada pode
ser mais certo.
— E eles vão-se embora! — disse ela, num tom que era um
mero murmúrio nos seus lábios imóveis. Ela puxou os joelhos para
cima, colocou os braços à volta deles, e ficou a olhar em frente, sem
sorrir nem franzir a testa, limitando-se a pesar os prós e os contras
daquelas novas perspectivas. — Quanto tempo pensas, Cadfael,
que demorarão a trazer o gado de Ceredigion até cá?
— Três dias, pelo menos — disse Cadfael, vendo-a armazenar
aquele fato nos metódicos recantos da sua mente, para ser tido em
conta.
— Três dias no máximo, então — disse ela — pois Owain terá
pressa em ver-se livre deles.
— E tu ficarás contente por te veres em liberdade — disse
Cadfael sondando suavemente áreas em que a verdade tinha pelo
menos duas caras, e ele não tinha a certeza de qual delas estava
virada para ele, e qual não estava.
— Sim — disse ela. — Ficarei contente! — e ela olhou para
além dele, para a inconstante superfície azul acinzentada do mar, e
sorriu.
Gwion tinha chegado sem qualquer impedimento ao posto da
sentinela, o mesmo através do qual o seu senhor tinha sido raptado,
e estava a atravessar o limiar quando a sentinela lhe barrou o
caminho com uma lança e lhe perguntou secamente: — És Gwion,
não és, o vassalo de Cadwaladr?
Mais perplexo do que alarmado, Gwion admitiu que era. Não
havia dúvida de que, depois da incursão da noite anterior, o portão
estava a ser vigiado mais atentamente, e aquela sentinela não sabia
o que Owain tinha em mente e não tencionava ser acusado de
permitir que alguém entrasse ou saísse sem ser interrogado.
— Sou. O príncipe deu-me autorização para ficar ou partir,
conforme eu quiser. Pergunta a Cuhelyn. Ele confirmará.
— Eu tenho notícias para ti — disse a sentinela, sem se mexer.
— Porque o príncipe há ainda pouco tempo pediu que te
procurássemos, se ainda estivesses no interior da paliçada, e te
levássemos novamente à sua presença.
— Eu nunca o vi mudar de ideias desta maneira — protestou
Gwion num tom desconfiado. — Ele tornou claro que não estava
interessado em mim e que lhe era indiferente que eu ficasse ou
partisse. Ou que eu vivesse ou morresse.
— No entanto, parece que ele tem qualquer coisa útil para
fazeres. Não deve ser nada de mal, uma vez que ele não fez
qualquer ameaça. Vai ver. Ele quer falar contigo. Não sei nada mais
do que isso.
Não era possível evitá-lo. Gwion deu meia volta e dirigiu-se à
casa atarracada, com a mente num tumulto de especulações
infrutíferas. Owain não podia ter ouvido falar do que ainda era, na
melhor das hipóteses, apenas uma intenção vaga, nem sequer um
plano, embora ele tivesse passado muito tempo a conversar com
Ieuan ab Ifor sobre números e meios, e tudo o que Ieuan tinha
conseguido saber a respeito da disposição do acampamento
dinamarquês. Demasiado tempo, ao que parecia agora. Ele devia
ter partido imediatamente, antes de ter sido possível detê-lo. Nesta
altura, ele já devia ter enviado o seu cavalariço para sul, para trazer
as forças prometidas, e regressado ao interior da paliçada antes de
terem dado pela sua falta. Os planos podiam ter esperado. Agora
era demasiado tarde, estava encurralado. No entanto, ainda nada
estava perdido. Owain não podia saber. Ninguém sabia a não ser
Ieuan, e Ieuan ainda não tinha dito uma única palavra aos homens
que ele sabia que participariam de bom grado numa aventura. Esse
recrutamento ainda não fora feito. Nesse caso, o que Owain queria
dele não podia ter nada a ver com o seu embrionário
empreendimento.
Ele ainda estava febrilmente a imaginar e a pôr de parte
possibilidades quando entrou no salão de traves baixas e fez uma
vênia rígida e cautelosa ao príncipe, sentado do outro lado da tosca
mesa desmontável.
Hywel estava lá, perto do pai, e dois comandantes de confiança
do príncipe encontravam-se um pouco afastados, testemunhando
algo que ainda era inexplicável para Gwion. Pois a outra pessoa
presente no salão era o franzino diácono de Lichfield, com o seu
hábito preto, o seu anel espetado de cabelo cor de palha a crescer
teimosamente para todos os lados, os seus olhos cinzentos muito
abertos, francos e tranquilos como sempre. Eles olharam para
Gwion, e Gwion virou a cabeça, como se receasse que eles lessem
os seus pensamentos se o olhassem de frente. Até mesmo o olhar
benevolente daqueles olhos o enervava. Mas o que podia aquele
pequeno clérigo ter a ver com qualquer questão entre Owain,
Cadwaladr e os invasores dinamarqueses? No entanto, se se
tratasse de algo completamente diferente, o que poderia isso ter a
ver com ele, e que necessidade havia de o terem chamado?
— Ainda bem que ainda não nos deixaste, Gwion — disse
Owain — porque, afinal de contas, há uma coisa que podes fazer
por mim e, por conseguinte, também pelo teu senhor.
— Certamente que o farei, com todo o gosto — disse Gwion,
embora não muito convencido.
— O diácono Mark acabou de chegar de junto de Otir, o
dinamarquês — disse o príncipe — que mantém prisioneiro o meu
irmão e teu senhor. Ele trouxe uma mensagem de Cadwaladr, que
concordou em pagar a quantia que prometeu, saldando assim a sua
dívida e comprando a sua liberdade.
— Não acredito! — disse Gwion, empalidecendo de choque. —
Eu só acreditarei se for ele a dizer, livre e abertamente.
— Então somos os dois da mesma opinião — disse Owain
secamente — porque eu não estava à espera que ele visse a razão
tão depressa. Tu tens bons motivos para saber o que eu penso
sobre este assunto. Eu preferia que o meu irmão fosse um homem
de palavra e que cumprisse o que promete. Mas eu também não
aceitaria de outra pessoa as instruções que o vão reduzir à miséria.
Otir é uma pessoa justa. Não poderás ouvir o desejo do meu irmão
da sua própria boca, pois ele só será livre quando a sua dívida tiver
sido paga. Mas podes ouvi-lo do Irmão Mark, que o recebeu dele e
testemunhará que ele o expressou com firmeza e intenção, com o
corpo intato e no seu juízo perfeito.
— Eu, de fato, testemunho-o — disse Mark. — Ele é prisioneiro
há apenas um dia. Está acorrentado, mas, para além disso,
ninguém lhe pôs a mão em cima, e não foi feita qualquer ameaça
contra o seu corpo ou a sua vida. Foi o que ele disse, e eu acredito,
porque nem a mim nem aos outros reféns dos dinamarqueses foram
feitas quaisquer ameaças de violência. E ele próprio me entregou o
seu selo, como autorização para o ato, e eu entreguei-o ao príncipe,
de acordo com as ordens de Cadwaladr.
— E o conteúdo da mensagem? Tenha a amabilidade de
repetir, — pediu o príncipe cortezmente. — Eu não quero que Gwion
receie que eu o tenha instigado, ou deturpado as suas palavras.
— Cadwaladr pede ao senhor feudal Owain, seu irmão — disse
Mark fixando os intimidantes olhos límpidos no rosto de Gwion —
que enviasse alguém o mais depressa possível a Llanbadarn falar
com Rhodri Fychan, que era seu administrador e que sabe onde
está guardado o dinheiro que lhe resta, dizendo-lhe que o seu
senhor quer que lhe seja enviado para Abermenai dinheiro e gado
no valor de dois mil marcos, a serem entregues às forças
dinamarquesas de Otir, conforme lhes foi prometido no acordo feito
em Dublin. E, para esse fim, ele enviou o seu selo como garantia.
Houve um longo silêncio depois de a voz clara e suave ter
terminado o discurso; Gwion ficou imóvel e calado, lutando contra a
fúria da negação, desespero e ira dentro de si. Não era possível que
uma pessoa tão orgulhosa e intolerante como Cadwaladr se tivesse
conformado, e tão depressa. E, no entanto, os homens, até mesmo
os mais arrogantes e impulsivos, atribuem um grande valor às suas
vidas e à sua liberdade e, quando a ameaça se aproxima e passa
da imaginação à realidade, são capazes de as comprar mesmo que
isso acarrete humilhação e vergonha. Mas atrever-se a desafiar e
abandonar os dinamarqueses primeiro, e depois rastejar perante
eles e juntar o dinheiro para lhes pagar com uma pressa pouco
dignificante... isso era desonroso. Se ele tivesse aguardado alguns
dias, poderia ter havido outro desfecho. Os seus próprios homens
estavam muito perto e não o deixariam acorrentado durante muito
tempo, mesmo que o irmão e todos os outros o tivessem
abandonado. Meu Deus, dá-me dois dias, rezou Gwion atrás do seu
rosto moreno fechado, que eu irei buscá-lo à força, e ele cancelará
as instruções ao administrador e recuperará os seus bens, e será
novamente Cadwaladr, ereto como sempre foi.
— Eu tenciono – dizia Owain, em algum lugar na orla do
consciente de Gwion, uma voz que vinha de longe, ou das
profundezas — cumprir esta incumbência rapidamente, como ele
pede, para recuperar a sua pessoa e o seu bom nome o mais
depressa possível. O meu filho Hywel irá imediatamente para sul.
Mas uma vez que aqui estás, Gwion, e a tua única preocupação é
servi-lo, vais acompanhar Hywel, e a tua presença será mais uma
garantia para Rhodi Fychan de que esta é, de fato, a voz de
Cadwaladr a falar, e os que o servem devem obedecer-lhe. Vais?
— Vou.
Que outra coisa podia ele dizer? Já estava decidido. Era uma
maneira de mandá-lo embora, mas com uma concessão à sua
inabalável lealdade. Em nome dessa lealdade, ele era agora
obrigado a ajudar a tirar ao seu senhor uma grande parte dos bens
que lhe restavam, quando há apenas pouco tempo ele se sentia
muito animado, prestes a levar um exército para resgatar
Cadwaladr, sem aquela ignomínia e perda. Mas Gwion disse: "Vou",
dissimulando. Talvez ainda houvesse uma oportunidade de
contactar com as forças que o aguardavam antes de os
dinamarqueses terem carregado os barcos, levantado ferros com o
seu saque e partido triunfantemente para Dublin.
16

Partiram menos de uma hora depois, Hywel ab Owain, Gwion e


uma escolta de dez homens armados, com boas montadas e
autoridade para exigir cavalos frescos ao longo do caminho.
Quaisquer que fossem os sentimentos de Owain em relação ao seu
irmão, ele não queria que ele ficasse prisioneiro durante muito
tempo — nem talvez um devedor negligente. Não havia qualquer
forma de saber qual duas situações era mais importante.
Os três dias previstos por Cadfael decorreram com enérgica
atividade noutro local, mas nos dois acampamentos opostos eles
arrastaram-se interminavelmente, como uma respiração suspensa.
Até mesmo a vigia das paliçadas se tornou um pouco descuidada,
não se esperando qualquer ataque, uma vez que o problema estava
perto de ser solucionado sem necessidade de recorrer à guerra. Só
Ieuan estava ainda inquieto com a espera e mantinha sempre em
mente o fato de negociações daquele gênero poderem sempre
falhar e os prisioneiros serem mantidos prisioneiros, as dívidas por
pagar, os casamentos adiados para além do que era suportável. E à
medida que as horas passavam, ele falava em privado com um ou
outro dos seus amigos mais jovens e mais obstinados, explicava-
lhes o caminho seguro que fizera duas vezes durante a noite com a
maré vazia ao longo dos seixos e da areia para espiar as defesas
dinamarquesas, e como havia um local em que a aproximação a
partir do mar era possível com uma cobertura razoável de arbustos
e árvores. Cadwaladr podia ter-se submetido, mas aqueles jovens
galeses exaltados não o tinham feito. Eles sentiam um amargo
ressentimento pelo fato de os invasores da Irlanda não só voltarem
para casa sem qualquer perda, mas levando ainda um lucro
substancial resultante da sua incursão. Mas não seria já demasiado
tarde, agora que se sabia que Hywel tinha ido para sul com ordens
para trazer e pagar a quantia que Otir exigira e com a qual
Cadwaladr concordara?
De modo algum. Porque Gwion tinha ido com eles, e entre
aquele local e Ceredigion Gwion tinha colocado cem homens
dispostos a lutar por Cadwaladr. Nenhum deles tinha consentido em
que o seu senhor fosse roubado de dois mil marcos ou obrigado a
rastejar perante o dinamarquês. Mesmo que Cadwaladr tivesse sido
levado a descer tão baixo que se tivesse submetido, eles não
suportariam. Ieuan falara com Gwion antes de este ter partido com o
grupo de Hywel. No caminho para sul, se houvesse oportunidade,
ele afastar-se-ia dos seus companheiros e iria ter com os guerreiros
que o aguardavam.
Quando estivesse novamente a caminho do norte, se ele
tivesse sido observado com demasiada suspeita no caminho para
sul, até mesmo Hywel estaria satisfeito com ele pelo papel que
desempenhara a lidar com Rhodri Fychan em Llanbadarn, e
ninguém estaria a prestar demasiada atenção ao que ele fazia.
Algures ao longo do percurso das manadas, ele conseguiria afastar-
se e ir à frente. A única coisa de que precisavam era de uma noite
escura com a maré vazia e, com os seus números assim reforçados,
Heledd e Cadwaladr seriam arrancados ao cativeiro e Otir se
lançaria ao mar para salvar a vida, voltaria a Dublin de mãos vazias.
Entre os seguidores de Owain, havia alguns jovens exaltados
cujos instintos tendiam mais para resolver todas as questões de um
modo sangrento do que para tentar a saída do impasse sem perda
de vidas. Havia alguns que diziam abertamente que Owain agia
erradamente ao abandonar o seu irmão à sua sorte, obrigando-o a
pagar as suas dívidas sozinho. Era verdade que as promessas
deviam ser cumpridas, mas a força de laços sanguíneos e familiares
podia até fazer esquecer as promessas. Por isso eles escutaram, e
a ideia de assaltar as defesas dos dinamarqueses, varrendo Otir e
os seus homens para os seus barcos na ponta das lanças e de os
expulsar para o mar começou a ter um poderoso atrativo. Eles
estavam cansados de estar inativos dia após dia. Que glória havia
em negociar uma saída do perigo com dinheiro e conciliação?
A imagem de Heledd ardia na memória de Ieuan, a moça
morena sentada de encontro ao céu numa colina das dunas. Ele
tinha-a visto lá duas vezes e observado o passo longo e ágil, e a
cabeça de pose orgulhosa. Mesmo quando imóvel, ela tinha uma
impetuosa graciosidade. E ele não conseguia acreditar, não
conseguia convencer-se a si próprio, de que uma mulher nas suas
condições, sozinha num acampamento de homens, pudesse
continuar até ao fim sem ser violada, sem ser cobiçada. Isso era
contra a natureza dos mortais. Fosse qual fosse a autoridade de
Otir, alguém a desafiaria. E agora o seu maior receio era que,
quando tivessem carregado o seu saque, tão mansamente
entregue, e estivessem a levantar ferros para navegar em direção a
casa, eles levassem Heledd consigo, tal como tinham levado muitas
mulheres galesas no passado, para ser escrava de um dinamarquês
de Dublin o resto da sua vida.
Ele não se teria empenhado como fazia só por causa de
Cadwaladr, a quem só devia desventuras. Mas pela hostilidade que
sentia contra os invasores, e para recuperar Heledd, ele ousaria
atacar com apenas o seu pequeno grupo de heróis de opiniões
semelhantes, se necessário fosse. Mas seria muito melhor que
Gwion regressasse a tempo com os seus cem homens. Por isso,
durante o primeiro dia, bem como no segundo, Ieuan aguardou com
paciência e ficou de vigia, atento a qualquer sinal oriundo do sul.
No campo de Otir, os dias de espera passaram lenta mas
confiantemente, talvez com demasiada confiança, pois havia
certamente algum afrouxamento na rígida vigia que era feita. Os
barcos de carga, de vela quadrada, com os poços centrais prontos a
serem carregados, foram levados para mais próximo de terra, a fim
de serem facilmente trazidos para a praia quando chegasse a altura,
e apenas os pequenos e rápidos barcos-dragão permaneceram no
interior do ancoradouro. Otir não tinha qualquer motivo para duvidar
da boa fé de Owain e, como prova da sua, retirara as correntes de
Cadwaladr, embora Torsten se mantivesse vigilante junto do
prisioneiro, pronto para qualquer movimento temerário. Eles não
confiavam em Cadwaladr, conheciam-no demasiado bem.
Cadfael via as horas passar e não sabia bem o que pensar. As
coisas ainda podiam correr mal, embora não parecesse haver
qualquer motivo para que isso acontecesse. Simplesmente, quando
dois exércitos armados se encontravam tão perto um do outro numa
atitude de confronto, bastava uma faísca para incendiar a
hostilidade latente entre eles. A espera podia até fazer com que o
silêncio parecesse agoirento, e ele sentia a falta da companhia
serena de Mark. O que mais atraiu a sua atenção durante aquele
interlúdio foi o comportamento de Heledd. Ela prosseguia com a
simples rotina que tinha concebido para viver ali sem aparente
impaciência ou antecipação, como se tudo estivesse pré-
determinado e já tivesse sido aceito, e não pudesse fazer nada a
esse respeito e não houvesse nada na situação que lhe agradasse
ou a perturbasse. Ela estava, talvez, mais silenciosa do que era
habitual, mas sem que isso implicasse tensão ou angústia, mais
como se as palavras fossem desperdiçadas em questões já tidas
como certas. Essa atitude poderia ter sugerido nada mais do que a
resignação a um destino que ela não podia influenciar, mas não
havia qualquer alteração na luz de Verão que tinha transformado o
seu rosto atraente em beleza, ou no fulgor profundo dos seus olhos
quando eles observavam a praia de seixos e o balouçar dos barcos
na água sob o ímpeto das diferentes marés. Cadfael não a seguia
com demasiada frequência, nem a observava atentamente. Se ela
tinha segredos, ele não queria saber quais eram. Se ela quisesse
fazer confidências, fá-las-ia. Se precisasse alguma coisa dele, pedi-
la-ia. E ele tinha a certeza de que ela estava em segurança. A única
coisa que aqueles rapazes inquietos queriam agora era carregar os
barcos e regressar a Dublin com os seus ganhos, livres de uma
missão que poderia bem ter terminado em catástrofe, dado o seu
parceiro vira-casacas.
Assim, o segundo dia chegou ao fim nos dois acampamentos.
Confrontado com a autoridade de Hywel ab Owain e o
testemunho relutante e altivo de Gwion, que tão obviamente
detestava ter de admitir a capitulação do seu senhor, e com o selo
de Cadwaladr na mão, Rhodri Fychan, nas suas terras em
Ceredigion, não encontrou motivo para duvidar das instruções que
lhe foram dadas. Ele aceitou-as com um encolher de ombros e
entregou a Hywel a maior parte dos dois mil marcos em moedas.
Estas constituíam um fardo pesado para alguns cavalos de carga
que também foram entregues como parte do preço do resgate. E o
resto, disse ele num tom de resignação, podia ser reunido nas
pastagens perto da fronteira norte de Ceredigion, perto da raia de
Gwynedd, nas manadas que ainda pertenciam a Cadwaladr e que
tinham sido levadas para lá quando o mesmo Hywel o expulsara do
castelo e deitara fogo a este, há mais de um ano. Os seus próprios
vaqueiros pastoreavam lá desde que ele fora expulso.
Foi Gwion quem sugeriu que ele próprio fosse encarregado de
cavalgar novamente para norte à frente dos seus companheiros a
fim de levar o gado, cujo andamento seria lento, imediatamente para
Abermenai. Os cavaleiros poderiam apanhá-los facilmente depois
de terem carregado a prata, e não se desperdiçaria tempo na
viagem de regresso. Um cavalariço de Rhodri, satisfeito com a
oportunidade de viajar, iria com ele, para testemunhar que tinham
autorização do próprio Cadwaladr, através do seu administrador,
para separar cerca de trezentas cabeças de gado e para as levar
para norte.
Era tudo ou mais do que ele podia ter desejado. Na viagem
para sul, ele não tinha tido oportunidade de se afastar nem de
preparar a sua fuga. Agora que ia novamente em direção a norte,
tudo lhe vinha parar às mãos. Assim que atravessasse a fronteira de
Gwynedd, com a manada e os vaqueiros atrás de si, nada seria
mais fácil do que separar-se deles e cavalgar à frente, com o
pretexto de comunicar a Otir que podia preparar os barcos para
receber os animais e deixá-los seguir para Abermenai o mais
depressa que eles conseguissem deslocar-se.
Foi na manhã do segundo dia, muito cedo, que ele partiu,
chegando ao fim da tarde ao acampamento onde tinha deixado os
seus cem companheiros a viver à custa dos camponeses da zona e,
naquela altura, pouco mais benquistos pelos seus vizinhos do que
exércitos desse gênero geralmente são, e satisfeitos por se
encontrarem novamente em movimento.
Pareceu sensato aguardar até de manhã antes de marcharem.
Eles encontravam-se num local abrigado numa clareira, afastado
das estradas. Passariam mais uma noite ali e partiriam à primeira
luz do dia, pois, a partir desse momento, só se poderiam deslocar a
um passo rápido e, mesmo em marchas forçadas, os soldados de
infantaria não conseguem andar mais depressa que a cavalaria. Os
vaqueiros de Cadwaladr teriam que deixar a manada descansar
durante a noite, não havendo, por conseguinte, receio de serem
ultrapassados por eles. Gwion dormiu algumas horas, satisfeito por
ter feito tudo o que um homem podia fazer.
Durante a noite, Hywel e a sua escolta montada passaram por
eles na estrada, a meia milha do acampamento.
No fim da tarde do terceiro dia, o Irmão Cadfael foi até ao cimo
das dunas e viu os barcos de carga dinamarqueses abicados nos
baixios lá em baixo, e uma fila de homens seminus, a ir a vau da
praia até aos barcos, transportando barricas de moedas de prata
para bordo, guardando-as debaixo da coberta da proa e no convés
da ré. Dois mil marcos dentro daqueles pequenos e pesados
recipientes. Não, um pouco menos, porque, segundo constava, os
cavalos de carga e algum gado iriam também com eles, como parte
do pagamento que Otir exigia. Porque Hywel regressara de
Llanbadarn antes do meio-dia e, por conseguinte, os vaqueiros não
viriam muito atrás.
No dia seguinte, tudo teria terminado. Os dinamarqueses
levantariam ferros e partiriam para casa, o exército de Owain vê-los-
ia partir do solo galês e depois regressaria a Carnarvon e, a partir
dali, os homens dispersariam para as suas casas. Heledd seria
entregue ao seu noivo, Cadfael e Mark voltariam para as suas
tarefas quase esquecidas em Inglaterra. E Cadwaladr? Nessa
altura, Cadfael tinha a certeza de que Cadwaladr, uma vez resolvida
a questão em causa, recuperaria algum poder e algumas das suas
antigas terras. Owain não podia estar contra a força do sangue para
sempre. Além disso, apesar de todo o desalento e exasperação que
o irmão lhe tinha provocado, Owain sempre tivera esperança e
acreditara que haveria uma mudança, que ele aprenderia a lição,
que se iria arrepender de uma loucura ou de um crime que
cometera. E iria, mas por pouco tempo. Cadwaladr nunca mudaria.
No meio dos seixos cinzentos, Hywel ab Owain observava o
carregamento do dinheiro que trouxera de Llanbadarn. Não havia
pressa, ele tinha dúvidas de que conseguissem embarcar animais
antes do dia seguinte, mesmo que eles chegassem antes do
anoitecer. Lá em baixo, em terreno neutro, o dinamarquês e o galês
passavam cordialmente um pelo outro, satisfeitos por se separarem
com as dívidas pagas e sem sangue derramado. O problema tinha-
se tornado quase numa questão protocolar. Isso não agradaria aos
membros do clã de Owain mais aventureiros. Era bom que ele os
tivesse bem sob controlo, caso contrário ainda poderia haver guerra.
Eles não gostavam de ver prata a ser levada de Gales para Dublin,
mesmo que fosse prata resultante de um acordo, uma dívida de
honra. Mas as pequenas barricas foram passando de homem para
homem, e as costas queimadas pelo sol inclinavam-se e
balouçavam, e os braços musculosos estendiam a cadeia da praia
até ao porão. À volta das suas pernas nuas, a água pouco funda
espalhava-se em tons claros de azul e verde sobre a areia dourada,
e o céu acima deles era muito azul, quase branco, com algumas
nuvens mais brancas, diáfanas como plumas. Um dia radioso num
belo Verão.
Da paliçada, Cadwaladr também estava a observar o embarque
do seu resgate, com Torsten, a sua imperturbável sombra, ao seu
lado. Cadfael tinha-os visto, um pouco para trás à sua direita,
Torsten placidamente satisfeito, Cadwaladr sério e com um ar
zangado, mas resignado à sua perda. Turcaill estava lá em baixo a
bordo do barco mais próximo, içando as barricas para debaixo do
convés da ré, e Otir encontrava-se ao lado de Hywel, a observar a
cena com um ar benevolente.
Heledd subiu a colina e atravessou a vegetação rasteira e o
salgadiço para chegar ao pé de Cadfael. Ela olhou para a atividade
que se desenrolava entre a praia e o barco, e o seu rosto estava
calmo, quase indiferente.
— Ainda falta levar o gado para bordo — disse ela. — Será
uma viagem difícil para eles. Disseram-me que aquela travessia
pode ser terrível.
— Com um tempo tão bom — disse Cadfael, num tom
semelhante ao dela — terão uma travessia fácil. — Não havia
necessidade de perguntar quem lhe dera aquela informação.
— Amanhã à noite — disse ela — eles já terão partido. Um bom
desfecho para todos nós. — E a sua voz era serena, até mesmo
fervorosa, e os seus olhos seguiam os movimentos do último
carregador quando este chegou a terra, com a água a cintilar à volta
dos joelhos. Turcaill deixou-se ficar no convés da ré durante alguns
momentos a examinar o resultado dos seus esforços antes de saltar
pelo lado e atravessar os baixios, impulsionando água azul e
borrifos brancos à sua frente e, ao erguer a vista, viu Heledd no alto
a olhar para baixo, atirou a cabeça loura para trás, sorriu-lhe com
um deslumbramento de dentes brancos e acenou a mão para
saudar.
Entre os homens armados que se encontravam atrás de Hywel
para ver o dinheiro a ser entregue em segurança, Cadfael tinha
observado um, entroncado, vigoroso, moreno e atraente, que
também estava a olhar na direção do outeiro. Ele mantinha a
cabeça inclinada para trás, e pareceu a Cadfael que os seus olhos
estavam fixos em Heledd. É verdade que uma mulher num
acampamento de invasores dinamarqueses poderia muito bem atrair
a atenção e o interesse de qualquer homem, mas havia algo na sua
imobilidade tensa, na sua concentração e na postura do seu corpo
que o intrigou. Puxou a manga de Heledd.
— Moça, há um rapaz ali em baixo, no meio dos que trouxeram
a prata... estás a vê-lo? A esquerda de Hywel! ... que está a olhar
muito fixamente para ti. Conhece-o? Pelo ar dele, ele conhece-te.
Ela virou-se para olhar para onde ele estava a apontar,
demorou um momento a estudar o rosto tão atentamente virado
para si e abanou a cabeça com um ar de indiferença.
— Nunca o vi antes. Como é que ele me pode conhecer? — E
ela voltou-se para ver Turcaill atravessar a praia e parar para trocar
amabilidades com Hywel ab Owain e com a sua escolta antes de
conduzir os seus próprios homens pela encosta da duna acima, em
direção à paliçada. Ele passou à frente de Ieuan ab Ifor sem olhar
para ele, e Ieuan apenas se moveu um pouco para voltar a ver
Heledd nas dunas acima dele, pois a cabeça loura de Turcaill, ao
passar, tinha-a cortado do seu campo de visão.
Durante aquelas vitais vigias noturnas, Ieuan ab Ifor tivera o
cuidado de ser o comandante da guarda do portão ocidental do
acampamento de Owain, e de ter um homem seu de vigia ao longo
da noite. Perto da meia-noite da terceira noite, Gwion tinha chegado
com os seus homens, após marchas forçadas, perto da paliçada de
Owain, e ali desviara-os para a estreita cintura de seixos expostos
pela maré baixa, para passarem sem ser detectados. Ele próprio
dirigiu-se silenciosamente para o posto da guarda e Ieuan foi ao seu
encontro.
— Chegamos — disse Gwion num murmúrio — eles estão na
praia.
— Chegaram tarde — silvou Ieuan. — Hywel chegou cá antes
de ti. Eles já colocaram o dinheiro a bordo dos barcos e só estão à
espera do gado.
— Como pode ser? — perguntou Gwion, num tom de
desalento. — Eu parti de Llanbadarn primeiro. A única paragem que
fiz foi para dormir algumas horas a noite passada. Esta manhã
começamos a marchar antes do nascer do sol.
— E durante essas horas, durante a noite, Hywel ultrapassou-
vos e passou por vós, porque ele estava aqui a meio da manhã. E
amanhã de manhã a manada estará cá e será carregada. É
demasiado tarde para salvar qualquer coisa exceto uma vida de
pedinte para Cadwaladr, que irá viver das esmolas de Owain em vez
de ser prisioneiro de Otir. — Ele não tinha muita pena de Cadwaladr,
exceto na medida em que o seu apuro tinha dado força à
possibilidade de efetuar um salvamento que, ao mesmo tempo,
libertaria Heledd.
— Não é demasiado tarde — disse Gwion, inflamado como um
fogo atiçado. — Traz os teus homens e despacha-te! A maré está
baixa e ainda está a vazar. Temos tempo suficiente!
Eles tinham estado prontos todas as noites à espera do sinal e
vieram um a um, silenciosa e ansiosamente, evitando ser vistos e
interrogados. Deslizaram pelas suaves encostas das dunas abaixo e
atravessaram a cintura de seixos até à areia úmida e firme para
além desta, onde os seus pés não faziam qualquer som. Havia mais
de milha e meia entre os acampamentos, mas faltava uma hora para
a maré atingir o ponto mais baixo, e eles tinham bastante tempo
para voltar. Uma luz trêmula irradiava da água, uma luz movediça
mas suave que era suficiente para os seus objetivos, e as orlas
brancas de cada ondulação mostravam a dimensão da terra
descoberta. Ieuan ia à frente, e eles seguiram-no numa linha longa,
silenciosa e furtiva sob os diques das defesas de Owain, até à terra
de ninguém mais adiante. A frente deles, ancorados depois de
terem sido carregados, os barcos de carga dinamarqueses
balouçavam recortados na leve luminosidade das ondas e na
relativa palidez do céu. Gwion parou quando os viu.
— Eles já guardaram as moedas? Nós podíamos exigir que as
devolvessem — disse ele num murmúrio. — Eles devem ter pouca
gente a bordo durante a noite.
— Amanhã! — disse Ieuan com uma brusca autoridade. —
Ainda demora bastante a nadar até lá, e a água ali é funda. Eles
conseguiam apanhar-nos um a um antes de lá chegarmos. Amanhã
eles vão trazê-los novamente até à praia para carregar os animais.
Há bastantes homens no exército de Owain que são contra dar uma
única moeda aos piratas; se nós começarmos, eles seguir-nos-ão, e
o príncipe não terá outra opção a não ser lutar. Esta noite vamos
buscar a minha mulher e o teu senhor. Amanhã o dinheiro!
Cadfael acordou de madrugada com um clamor súbito de vozes
aos gritos e cornetas a tocar, e levantou-se do seu ninho na areia
ainda atordoado entre a realidade e o sonho, batalhas antigas
regressaram-lhe à mente com espantosa nitidez, pelo que ele
estendeu o braço às cegas para pegar numa espada antes de se
pôr de pé, consciente da noite estrelada no alto e da areia fria sob
os seus pés nus. Procurou à sua volta para acordar Mark antes de
se recordar que este já não estava a seu lado, mas sim novamente
na comitiva de Owain, fora do alcance do que aquela súbita ameaça
pudesse conter. A sua direita, do lado em que o mar aberto se
estendia para ocidente até à Irlanda, o choque ácido do aço
acrescentava uma nota feroz ao ruído de homens a lutar.
Movimentos confusos de luta e alarme sacudiram o ar imóvel no
tumulto convulsivo entre a areia e o céu, como se uma enorme
tempestade de areia se tivesse levantado para varrer os homens
sem tocar na erva que eles pisavam. A terra estava imóvel, fria e
indiferente, o céu permanecia silencioso e calmo, mas a força e a
violência tinham vindo do mar para pôr termo à paz precária entre
os homens.
Cadfael correu na direção de onde o tumulto chegava
intermitentemente aos seus ouvidos. Outros, saindo das suas
camas situadas no lado do acampamento virado para terra, corriam
como ele, desembainhando as armas enquanto corriam,
convergindo todos para as defesas do lado do mar, onde o clamor
da batalha se tinha movido para o interior em direção a eles, como
se a paliçada tivesse sido derrubada. No meio da luta, erguia-se a
voz trovejante de Otir, comandando os seus homens. E eu não sou
um homem dele, pensou Cadfael, espantado mas ainda a correr na
direção dos gritos, porque é que me hei-de ir meter em problemas?
Ele podia ter-se deixado ficar a uma distância segura, à espera de
ver quem tinha planeado o que era claramente um ataque
premeditado, e de saber como corriam as coisas para os
dinamarqueses ou para os galeses, antes de avaliar a sua influência
no seu próprio bem-estar mas, em vez disso, ele estava a dirigir-se
para o coração da batalha o mais depressa que conseguia,
amaldiçoando quem quer que tivesse decidido destruir o que
poderia ter sido uma resolução ordeira de um assunto melindroso.
Owain, não! Disso ele tinha a certeza. Owain tinha provocado
um desfecho justo e sensato, e não poderia ter originado nem
aprovado uma ação destinada a destruir o que ele tinha conseguido.
Alguns jovens de sangue quente, envenenados de ódio contra os
dinamarqueses, ou ansiosos pela glória da guerra! Owain poderia
sentir animosidade contra uma frota estrangeira que invadira a sua
terra sem ser convidada, poderia até decidir esforçar-se por
expulsá-los quando todos os problemas tivessem sido resolvidos,
mas nunca deitaria fora o seu próprio trabalho paciente ao tentar
resolver o assunto. A batalha de Owain, se alguma vez chegasse a
esse ponto, como ainda podia acontecer, seria direta, simples e
profissional, sem mortes desnecessárias.
Ele estava agora perto do local da luta e conseguia ver a linha
da paliçada quebrada aqui e ali pelas cabeças e ombros dos
homens envolvidos na batalha, bem como uma enorme brecha na
barreira no meio dos postos de vigia, onde os atacantes tinham
forçado a entrada sem terem sido detectados. Eles não tinham
penetrado até muito longe, e Otir já tinha um temível anel de aço à
sua volta, mas nas franjas, na escuridão e em tamanha confusão,
não era possível distinguir os amigos dos inimigos, e alguns dos que
tinham passado primeiro pela brecha podiam muito bem andar à
solta dentro do acampamento.
Ele estava ao pé do anel exterior de dinamarqueses que se
esforçavam por deslocar toda a massa intrusa novamente através
da paliçada em direção ao mar, quando apareceu alguém a correr
atrás dele, leve e rápida, e ele sentiu uma mão agarrar-lhe o braço,
e ali estava Heledd, com o rosto oval pálido e sobressaltado,
cintilante no escuro, iluminado pelos olhos muito abertos,
chamejantes.
17

— O que é? Quem são eles? São loucos, loucos... O que


poderá tê-los levado a isto?
Cadfael parou abruptamente, afastando-a da multidão, para
longe do alcance das lanças.
— Moça tola, sai daqui! Enlouqueceste? Mantém-te longe até
isto ter terminado. Queres que te matem?
Ela agarrou-se a ele, mas deixou-se ficar onde estava, mais
excitada do que com medo.
— Mas por quê? Por que é que algum dos homens de Owain
faria uma coisa destas, quando estava tudo a correr tão bem?
A massa de homens a lutar, demasiado emaranhada para
permitir a ação das lanças, cambaleou, alguns deles perderam o
equilíbrio, a massa desfez-se, alguns caíram, e pelo menos um foi
espezinhado e expirou com um gemido ofegante. Heledd foi
arrancada das mãos de Cadfael e soltou um pequeno grito irado
num tom claro, penetrante, que se ouviu no meio da algazarra e, até
mesmo na tensão da batalha, fez virar cabeças para olhar
abruptamente na direção dela com uma expressão de espanto. Ela
tinha sido atirada tão bruscamente para o lado, que teria caído se
um braço não a tivesse agarrado pela cintura e arrastado para
longe, ao mesmo tempo que a luta se deslocava na direção dela.
Cadfael foi atirado, por um momento, na direção oposta, e
seguidamente o grito de chamamento de Otir retesou o círculo
dinamarquês, e o seu peso fez os atacantes recuar, comprimindo-os
contra a brecha que tinham feito na paliçada e empurrando-os
desordenadamente. Uma dúzia de lanças foi atirada atrás deles, e
retiraram-se e desceram a encosta das dunas em direção à praia.
Um punhado de jovens dinamarqueses, excitados e
impacientes, pretendeu perseguir os atacantes em retirada pelas
dunas abaixo, mas Otir chamou-os asperamente à ordem. Mesmo
que não houvesse mortos, já havia feridos, porque haveria de se
arriscar a ter mais? Eles vieram com relutância, mas vieram. Talvez
ainda chegasse a altura de se vingarem de um ato que era
praticamente de traição, pois o acordo, embora não tivesse sido
feito sob juramento e selado, fora quase uma trégua. Mas aquela
era a altura de reparar o que fora danificado e reforçar a vigilância
que se tornara menos atenta quando a necessidade parecera ter
diminuído.
Com uma calma e um silêncio relativos, eles começaram a
apanhar os que tinham caído, a tratar dos ferimentos menores, a
reparar a brecha na paliçada, tudo num silêncio sombrio quebrado
apenas pelas poucas palavras necessárias. Debaixo da cerca
quebrada estavam três homens mortos, os primeiros defensores
dominados pelo elevado número de atacantes antes de terem
podido receber ajuda. Apanharam um quarto a sangrar de uma
ferida feita por uma lança destinada ao seu coração, mas desviada
para o ombro. Ele sobreviveria, mas talvez tivesse perdido a força
muscular do braço esquerdo para o resto da vida. Havia muitas
feridas e arranhadelas pouco profundas, e o homem que tinha sido
espezinhado cuspia sangue, de lesões interiores. Cadfael esqueceu
todas as outras considerações e, juntamente com os outros, deitou
mãos à obra no abrigo mais próximo, à luz dos archotes, com os
panos e os medicamentos que eles conseguiram arranjar. Eles
tinham experiência de ferimentos e sabiam como tratá-los, embora o
seu tratamento fosse um tanto improvisado. O rapaz Leif levava e ia
buscar coisas, admirado e excitado com aquele surto de violência
durante a noite. Quando tudo o que podia ser feito foi feito, Cadfael
recostou-se com um suspiro e olhou em volta para o seu vizinho
mais próximo. Ele deu consigo a olhar para os olhos azuis e para o
rosto invulgarmente sombrio de Turcaill. O jovem tinha sangue no
rosto proveniente de uma escoriação, e sangue nas mãos oriundo
das feridas dos seus amigos.
— Por quê? — perguntou Turcaill. — O que havia a ganhar?
Estava tudo praticamente terminado. Agora eles também têm os
seus mortos e feridos. Eu vi homens a serem levados ou arrastados
quando eles desataram a fugir. O que é que os levou a assaltar-
nos?
— Eu penso — disse Cadfael, esfregando os olhos cansados
com uma mão — que eles vieram buscar Cadwaladr. Ele ainda tem
seguidores tão impulsivos como ele próprio. Eles podiam bem ter
pensado em arrancá-lo à sua guarda, contra a vontade de Owain.
Que outra coisa têm vocês com tanto valor para eles que
arriscassem a vida por ela?
— Bem, o dinheiro já foi pago — disse Turcaill
pragmaticamente. — Certamente que eles não tentariam apoderar-
se dele?
— Podem muito bem fazê-lo — admitiu Cadfael. — Se tentaram
apoderar-se de um, podem fazer o mesmo em relação ao outro.
— Quando trouxermos os barcos novamente para a praia
amanhã — os olhos brilhantes de Turcaill abriram-se muito
enquanto ele pensava. — Eu direi a Otir: eles podem levar o
homem, e bons ventos o levem, mas o resgate é nosso com toda a
justiça, e ficaremos com ele.
— Se eles estiverem seriamente interessados — disse Cadfael
— ainda terão que lutar por ambos. Pois suponho que Cadwaladr
ainda está sob a guarda de Torsten?
— E novamente acorrentado. E passou esta incursão com uma
faca apontada à garganta. Oh, eles foram-se embora de mãos
vazias — disse Turcaill com uma satisfação amarga, pondo-se de pé
e dirigindo-se para junto do seu líder, que conferenciava sobre os
seus três mortos. E Cadfael foi à procura de Heledd, mas não a
encontrou.
— Estes levaremos nós conosco para lhes fazer o funeral —
disse Otir com tristeza olhando para os corpos dos seus homens. —
Tu dizes que os que vieram durante a noite não foram enviados por
Owain. É possível, mas como poderemos sabê-lo? Certamente que
eu o julgava um homem de palavra. Mas nós iremos ficar com aquilo
que é nosso por direito, contra Owain ou qualquer outro. Se tiveres
razão, e eles vieram buscar Cadwaladr, então só lhes resta uma
oportunidade de levar o homem e o seu resgate. E nós os
enfrentaremos, com os barcos e o mar atrás de nós, com os
mastros nos seus lugares e prontos para navegar. O mar é mais
nosso amigo do que deles. Estaremos armados entre eles e a praia,
e veremos se eles se atrevem a fazer à luz do dia o que tentaram de
noite.
Ele deu as suas ordens clara e sucintamente. De manhã, o
acampamento já teria sido evacuado, as fileiras dinamarquesas
estariam em ordem de batalha na praia, os barcos seriam trazidos
para perto, para embarcar o gado. Se este chegasse, disse Otir,
então Owain estava a agir de boa fé, e os atacantes não agiam sob
as suas ordens. Se ele não viesse, então todos os acordos seriam
quebrados, e ele e o seu exército far-se-iam ao mar e atacariam
locais da costa não guardados, para se apropriaram eles próprios do
saldo da dívida, acrescido de mais alguma coisa pelas vidas
perdidas.
— O gado virá — disse Turcaill. — Só pela loucura do gesto,
isto não foi obra de Owain. E ele entregou-te o dinheiro pela mão do
seu próprio filho. E fará o mesmo com o gado. E o monge e a
moça? Foi oferecido um preço justo por eles, mas tu nunca
aceitaste esse acordo. O Irmão Cadfael mereceu a sua liberdade
esta noite, e é demasiado tarde para regatear o seu valor.
— Deixaremos provisões para ele e para a moça, eles podem
ficar aqui em segurança até termos partido. Owain poderá tê-los de
volta tão inteiros como quando chegaram.
— Eu direi isso — disse Turcaill, com um sorriso.
O Irmão Cadfael estava nesse momento a atravessar o
acampamento desfeito para se dirigir a eles, por entre as linhas que
em breve seriam abandonadas. Ele não tinha pressa, uma vez que
não era possível fazer nada a respeito da notícia de que era
portador, esta era um fato consumado. O seu olhar deslocou-se dos
três corpos deitados decorosamente direitos por baixo dos mantos
que os cobriam para o rosto sombrio de Otir, e deste diretamente
para Turcaill.
— Falamos antes de tempo. Eles não se foram embora de
mãos vazias. Eles levaram Heledd.
Turcaill, cujos movimentos eram, de um modo geral, constantes
e fluidos como o mercúrio, ficou subitamente imóvel. O seu rosto
não se alterou, apenas os seus espantosos olhos se estreitaram um
pouco, como se para olhar para longe, para além do tempo e da
distância actuais. Um último vestígio do seu sorriso muito privado
permaneceu nos seus olhos.
— Como é que ela — perguntou ele — chegou tão perto da
batalha? Não interessa, ela certamente que iria correr na direção do
que era proibido ou perigoso, não para longe. Tem a certeza, Irmão?
— Tenho a certeza. Eu já a procurei por todo o lado. O Leif viu-
a a ser arrancada do meio da barafunda, mas não consegue dizer
por quem. Mas o certo é que ela desapareceu. Ela esteve ao meu
lado até nos separarem, pouco antes de vocês os terem feito recuar
através da paliçada. Quem quer que a tenha agarrado pela cintura,
levou-a consigo.
— Foi por causa dela que eles vieram — disse Turcaill com
convicção.
— Pelo menos, foi por causa dela que um deles veio. Porque
eu penso — disse Cadfael — que esse deve ser o homem a quem
Owain a prometera. Ontem, quando estavam a carregar o dinheiro,
havia um perto de Hywel que não conseguia tirar os olhos dela. Mas
eu não conhecia o homem e não dei importância ao assunto.
— Então ela está em segurança e já se encontra em liberdade
— disse Otir, não adiantando mais. — E o Irmão também, se assim
o desejar mas, se fosse a si, eu ficaria um pouco afastado até nós
termos partido. Nenhum de nós sabe que mais eles tencionam fazer
de manhã. Não há necessidade de o Irmão se colocar entre
dinamarqueses e galeses em guerra.
Cadfael ouviu-o sem escutar, embora mais tarde se tivesse
apercebido das palavras e da sua importância. Ele estava a
observar Turcaill tão atentamente que não conseguia pensar no que
iria fazer a seguir. O jovem tinha-se movido e saído fácil e
naturalmente da sua imobilidade temporária. Ele respirou
regularmente como sempre, e o resto do sorriso permaneceu como
uma faísca nos seus olhos claros e brilhantes depois de ter
abandonado os lábios. Não era possível ler nada naquele rosto para
além do ar francamente apreciador e divertido que era a sua
abordagem constante a Heledd, e isso desapareceu
instantaneamente quando baixou novamente os olhos para as
baixas da noite.
— Ainda bem que ela está longe do que vai acontecer hoje —
disse ele simplesmente. — Não se sabe como é que vai terminar.
E isso foi tudo. Ele atarefou-se a levantar o acampamento e a
armar-se para a ação como todos os outros. Na escuridão, eles
desarmaram as tendas e os abrigos existentes e deslocaram os
barcos mais leves do cais da baía para o mar aberto, de modo a se
juntarem aos barcos maiores e proporcionarem uma guarda
vigilante e móvel para as tripulações e para a carga. O mar era o
seu elemento e lutava ao lado deles, o mesmo acontecendo até à
leve brisa que tremulava através da calmaria antes do amanhecer.
Com as velas içadas e enfunadas, até mesmo os barcos mais lentos
podiam ser colocados rapidamente no mar, a salvo de ataques. Mas
sem o gado! Otir nunca partiria sem a última moeda que lhe era
devida.
E agora Cadfael não tinha nada para fazer a não ser percorrer o
cimo das dunas no meio das fogueiras abandonadas e dos detritos
da ocupação, e observar o exército dinamarquês a arrumar as
coisas, reunir-se e descer metodicamente a esteva rasteira em
direção aos barcos ancorados.
E eles vão-se embora! Dissera Heledd, séria mas com um ar
que não era nem de felicidade nem de desânimo. Eles praticamente
que já se foram embora, satisfeitos por estarem a caminho de casa.
Se tinha sido, de fato, Ieuan ab Ifor quem inspirara o ataque
noturno, talvez não houvesse, afinal de contas, alguém a agir em
benefício de Cadwaladr, da sua pessoa, prestígio ou dos seus bens,
e não houvesse mais confrontos, na praia ou no mar, mas apenas
uma partida ordeira, talvez até com uma fria troca de amabilidades
entre galeses e dinamarqueses, em jeito de despedida. Ieuan tinha
vindo buscar a sua esposa prometida e já tinha o que queria. Não
havia necessidade de voltar a agir. Mas como convencera ele tantos
homens a segui-lo? Os homens não tinham nada a ganhar, e não
tinham ganho nada. Alguns talvez tivessem perdido a vida para o
ajudar a casar.
O pequeno e ágil barco-dragão saiu silenciosamente para o mar
aberto e ocupou a sua posição, navegando bem até à praia. Cadfael
desceu um pouco na direção da faixa de seixos e viu a praia agora
meio seca, meio a cintilar sob a água que a lambia, e vazia até à
frente da linha dinamarquesa, depois virou para sul ao longo da
praia, que era uma linha mais escura que ia clareando até atingir o
cinzento claro que precede o amanhecer. Os atacantes em retirada
tinham fugido para os campos desertos e para bosques esparsos no
meio dos acampamentos, para terem alguma cobertura. Havia
locais em que o caminho pela praia seria agora demasiado
perigoso, com a maré a encher, embora Cadfael tivesse a certeza
de que eles tinham vindo por ali. Era melhor e mais rápido
deslocarem-se para o interior com os seus feridos e o seu troféu, e
chegarem com os pés secos ao seu próprio acampamento.
Cadfael colocou uma colina de arbustos enfezados pelo sal
entre si próprio e o vento refrescante, fez um buraco na areia e
sentou-se à espera.
À luz suave da manhã, imediatamente após o nascer do sol,
Gwion reuniu os seus cem homens e os poucos que Ieuan
mobilizara e que permaneciam com eles, numa depressão no meio
das dunas, fora do campo de visão da praia, com uma sentinela de
vigia na colina acima deles. Havia uma neblina a elevar-se do mar,
uma diáfana espiral azul clara por cima da praia, que permanecia na
sombra, enquanto a oeste a superfície da água já brilhava,
salpicada por cintilação branca de borrifos soprados pela brisa. Os
dinamarqueses, formados em fileiras abertas, alinhadas à beira-mar,
aguardavam imóveis e sem impaciência que os vaqueiros de Owain
trouxessem o gado de Cadwaladr. Atrás deles, os barcos de carga
tinham sido trazidos para junto da costa e estavam ancorados nos
baixios. E ali, no meio dos dinamarqueses, estava o próprio
Cadwaladr, sem correntes mas ainda prisioneiro, indefeso no meio
dos seus inimigos armados. O próprio Gwion tinha ido para o topo
da colina para olhar para ele, e vê-lo assim foi como sentir uma faca
na barriga.
Ele tinha falhado em tudo o que tentara fazer. Não tinha ganho
nada; ali estava o seu senhor feudal, humilhado às mãos dos
dinamarqueses, exposto ao desdém do irmão, não tendo sequer,
depois de todo aquele desagradável empreendimento, a garantia de
recuperar uma única polegada das terras na posse do irmão. Gwion
remoía incessantemente a sua própria frustração e sentia que esta
lhe deixava um gosto amargo na boca. Ele não devia ter confiado
em Ieuan ab Ifor. O homem só estivera preocupado com a mulher e,
já com o seu troféu nos braços, não quisera ficar, como Gwion
fizera, para tentar um novo ataque. Não, ele fugira com ela, abafara
os seus gritos tapando-lhe a boca com uma mão até conseguir
silvar-lhe ao ouvido, bem longe dos dinamarqueses na sua paliçada
desfeita, que ela não tinha motivo para ter medo porque ele só
desejava o seu bem pois era o homem dela, o marido que arriscara
a vida para a libertar do perigo, e que, com ele, ela estava e estaria
para sempre em segurança. Gwion ouvira-o, totalmente absorto com
o que ganhara e sem se preocupar absolutamente nada com o que
os outros tinham perdido. Assim, a moça estava livre, mas
Cadwaladr, humilhado e furioso, teria que vir debaixo de guarda
para ser entregue, por um preço, ao irmão que o abandonara e
desprezara.
Era insuportável. Ainda havia tempo para o tirar do meio dos
inimigos antes de Owain chegar para se deleitar vendo-o prisioneiro.
Até mesmo sem Ieuan, que partira com a sua magoada e perplexa
mulher, e os cerca de doze recrutas que tinham preferido voltar para
o acampamento para recuperar da derrota, ainda ali havia
guerreiros fortes em número suficiente para o fazer. Mas era melhor
esperar até à chegada da manada e da sua escolta. Pois
certamente que, uma vez lançado o ataque, outros veriam que esse
era o caminho certo e iriam segui-los. Nem sequer Hywel, se Hywel
fosse novamente o enviado do príncipe, seria capaz de fazer parar
os seus guerreiros depois de eles terem visto sangue dinamarquês
a correr. E, depois de Cadwaladr, os barcos. Uma vez atirada a
cautela às urtigas, os galeses iriam até ao fim, para recuperar o
dinheiro e expulsar Otir e os seus piratas para o mar.
A espera foi longa, e pareceu ainda mais longa, mas Otir não se
moveu do seu posto à frente das suas linhas. Eles tinham baixado a
guarda uma vez, não voltariam a fazê-lo. Aquela tinha sido a
oportunidade perdida, pois agora não podia haver uma segunda
surpresa. Eles não voltariam a confiar totalmente em Hywel, nem
sequer no próprio Owain.
O vigia que estava no alto da colina informava, regular e
monotonamente, que não havia nenhuma alteração, nenhum
movimento, nenhum sinal ainda da poeira da manada ao longo do
caminho de areia. Passava mais de uma hora do nascer do sol
quando ele gritou finalmente: "Eles vêm aí!" E seguidamente
ouviram o mugido do gado, intermitente e sonolento no ar. Pelo
som, tinham comido e bebido água, e estavam novamente em
movimento depois de terem descansado pelo menos algumas horas
durante a noite.
— Estou vendo. Uma boa meia companhia, a avançar ao lado,
à frente dos vaqueiros, longe da poeira. Hywel veio em força. Eles
avistaram os dinamarqueses... — Essa visão podia bem tê-los feito
fazer uma pausa, pois não estariam à espera de ver o exército
inteiro de invasores em formação de batalha para o carregamento
de algumas centenas de cabeças de gado. Mas eles continuaram a
andar, acompanhando o passo dos animais. E agora ele conseguia
ver nitidamente o cavaleiro que vinha à frente, muito alto na sela, de
cabeça nua, muito louro. — Não é o Hywel, é o próprio Owain!
18

Na sua colina acima do acampamento deserto, Cadfael tinha


visto o sol brilhar na cabeça loura, e até mesmo àquela distância ele
soube que o príncipe de Gwynedd viera pessoalmente assistir à
partida do nórdico do seu país. Ele aproximou-se mais lentamente,
olhando na direção do encontro iminente que teria lugar na praia.
Na concavidade no meio das dunas, Gwion formou as suas
linhas e deslocou-as um pouco para a frente, ainda resguardadas
pelas ondas curvas de areia que o vento formara e que as ervas e
os arbustos resistentes tinham revestido parcialmente e mantido no
seu lugar. ; — A que distância estão? — Apesar da presença de
Owain, ele ia arriscar. E os membros do clã que vinham atrás de
Owain e que não podiam ser todos dóceis até mesmo em relação ao
controlo do seu príncipe, deveriam ver o ataque e estar
suficientemente perto para se entusiasmarem com ele e engrossar
as suas fileiras.
— Ainda não estão suficientemente perto para nos ouvirem,
mas estão próximos. Ainda falta um pouco.
Otir estava de pé como uma rocha à beira do mar, com as
pernas sólidas bem assentes no chão, a observar o avanço do gado
escuro e corpulento e a sua escolta de homens armados. Com
armas ligeiras, como um homem que leva a cabo os seus afazeres
normais. Dali não havia a esperar traição. Também não parecia
provável que Owain tivesse alguma coisa a ver com o ataque mal
amanhado da noite anterior, nem que tivesse conhecimento dele. Se
ele tivesse agido, as coisas teriam sido mais bem feitas.
— Agora! — disse o vigia secamente do alto. — Agora,
enquanto estiverem todos a olhar para Owain. Podes atacá-los pelo
flanco.
— Avançar agora! — repetiu Gwion, saindo de rompante da
encosta abrigada com um grande rugido de libertação e
determinação, quase de exultação. Atrás dele, as fileiras dos seus
companheiros avançaram com as espadas desembainhadas e as
lanças curtas erguidas, e o aço lampejou subitamente quando eles
emergiriam das sombras para o sol. Já bem à vista, descendo a
última encosta de areia para os seixos da praia, diretos ao exército
dinamarquês. Otir deu meia volta, com um grito de alarme que fez
virar todas as cabeças para fazer frente ao ataque. Os escudos
ergueram-se para desviar as primeiras lanças atiradas, e o silvo das
espadas a serem desembainhadas em simultâneo elevou-se no ar
com um enorme sopro. Seguidamente, a primeira vaga do exército
de Gwion lançou-se sobre as fileiras dinamarquesas, e o seu peso
obrigou-os a recuar, chocando com os seus companheiros, pelo que
toda a batalha se desenrolou com a água do mar até aos joelhos.
Cadfael viu tudo do seu local elevado, o impacto e o estrondoso
baque quando as fileiras colidiram num choque trémulo, e ouviu o
clamor súbito de vozes a gritar e do gado sobressaltado a berrar. Os
dinamarqueses tinham disposto as suas fileiras de modo a que
todos os homens pudessem usar livremente o seu braço direito e
empunhassem rapidamente a arma. Houve um ou dois que foram
derrubados pelo primeiro ímpeto da colisão e arrastaram os seus
atacantes consigo para o mar numa confusão de borrifos, mas a
maior parte deles manteve-se firmemente de pé. Gwion tinha-se
atirado diretamente a Otir. Não havia outra maneira de chegar a
Cadwaladr a não ser por cima do cadáver de Otir. Mas o
dinamarquês tinha o dobro do tamanho de Gwion e três vezes mais
experiência com as armas. A espada bateu com força num escudo
erguido e torcido, e quase foi arrancada das mãos do atacante. A
seguir, a única coisa que Cadfael conseguiu ver foi uma massa de
galeses e dinamarqueses a lutar, envolvidos por borrifos de água
cintilantes. Começou a descer rapidamente para a praia, sem que
ele próprio soubesse bem porquê.
Ressoaram gritos de entre os membros do clã que marchavam
atrás de Owain, e alguns começaram a sair das suas fileiras e
correram na direção da confusão nos baixios, levando
instantaneamente as mãos aos punhos das espadas, com uma
intenção bem óbvia. Cadfael não ficou surpreendido. Já era bem
visível que havia galeses a lutar contra um invasor estrangeiro. O
sangue galês não suportava ficar de fora, o certo e o errado não
contava para nada. Eles gritaram a sua aprovação e mergulharam
nos baixios em ebulição. A massa vacilante de corpos emaranhados
elevava-se e distendia-se, tão cerrada que não havia espaço para
fazerem grande mal uns aos outros. Só quando as fileiras se
abrissem é que poderia haver mortes.
Uma voz alta de comando elevou-se acima do ruído das vozes
raivosas e do tilintar do aço, ao mesmo tempo que Owain Gwynedd
metia as esporas ao seu cavalo e cavalgava até à orla do mar
batendo nos seus homens demasiado impetuosos com a parte
plana da sua espada embainhada.
— Para trás! Para trás! Voltem para as suas fileiras, e ergam as
suas armas!
A sua voz, que raramente se levantava, conseguia, quando ele
estava zangado, cortar o ar como o trovão que vem logo atrás do
relâmpago. Foi essa irada chamada, mais do que os golpes, que fez
com que os fugitivos se sentissem intimidados e se afastassem do
seu caminho, chapinhando até à praia, com uma pressa relutante.
Até mesmo os ex-vassalos de Cadwaladr vacilaram e recuaram da
sua luta corpo a corpo. Os dois lados separaram-se, e os golpes
que poderiam ter sido abafados pelo peso dos corpos a lutar,
encontraram espaço para ferir antes de serem refreados ou
defendidos.
Estava terminado. Eles recuaram para o chão de seixos firme,
baixaram as espadas, os machados e os dardos, receosos do olhar
gélido dos olhos de Owain e do som irado dos cascos do seu cavalo
aos círculos na água, criando uma zona de quietude no meio dos
combatentes. Os dinamarqueses mantiveram as suas fileiras,
alguns deles ensanguentados, mas nenhum tinha caído. Dos
atacantes, dois saíram a rastejar debilmente das ondas e ficaram
deitados na areia. Em seguida, fez-se silêncio.
Owain ficou sentado no seu cavalo, agora tranquilizado por uma
mão calmante mas ainda a tremer, e olhou para Otir, olhos nos
olhos, durante um longo momento. Otir manteve-se firme e retribuiu-
lhe o olhar penetrante. Não eram necessárias explicações nem
protestos. Owain vira com os seus próprios olhos.
— Isto — disse ele por fim — não foi engendrado por mim.
Agora eu saberei, e ouvirei da sua própria boca, quem usurpou o
meu poder e lançou dúvidas sobre a minha boa fé. Avança e
mostra-te!
Não havia qualquer dúvida de que ele já sabia, pois vira a carga
sair do esconderijo. Era, em certa medida, generoso da sua parte
permitir que um homem admitisse o que tinha feito, afirmando que
tinha agido de livre vontade e enfrentando as consequências. Gwion
deixou cair o braço que ainda estava erguido, com a espada na
mão, e afastou-se dos seus companheiros. Avançou muito
lentamente, mas não por relutância, pois tinha a cabeça
orgulhosamente erguida e os olhos fixos em Owain. Saiu, a
chapinhar, cambaleante, da água, enquanto as ondas, uma após
outra, lhe lambiam os pés e recuavam. Ele chegou à beira dos
seixos e, subitamente, um fio de sangue escorreu-lhe dos lábios
cerrados e salpicou-lhe o peito, e uma pequena mancha vermelha
formou-se no linho acolchoado da sua túnica e expandiu-se numa
enorme estrela ensopada. Por um momento, manteve-se direito em
frente de Owain e abriu os lábios para falar, e o sangue jorrou-lhe da
boca numa golfada vermelha escura. Caiu de bruços junto das patas
do cavalo do príncipe, e o animal, espantado, recuou e soltou um
enorme sopro de lamentação por cima do corpo dele.
— Tratem dele! — disse Owain, olhando, impassível, para o
homem caído. As mãos de Gwion moveram-se e agarraram
debilmente nos seixos polidos, vagamente conscientes do toque e
da textura. — Ele não está morto, levem-no daqui e tratem dele. Eu
não quero mais mortos, mais do que aqueles que não é possível
salvar.
Eles apressaram-se a cumprir a ordem. Três homens da fileira
da frente, com Cuhelyn à frente, acorreram a virar suavemente
Gwion de costas e a limpar-lhe a boca e as narinas da areia.
Fizeram uma padiola com lanças e escudos e embrulharam-no em
mantos para o transportar. E o Irmão Cadfael afastou-se da praia
sem que tivessem reparado nele e seguiu a padiola até ao local
abrigado pelas dunas. Em matéria de pano para ligaduras ou
bálsamos, ele tinha pouca coisa consigo, mas era melhor do que
nada até conseguirem colocar o ferido numa cama e prestar-lhe
cuidados menos improvisados.
Owain olhou para a poça de sangue a escurecer nos seixos a
seus pés e ergueu seguidamente o olhar para o rosto atento de Otir.
— Ele é um homem de Cadwaladr, fiel e leal. No entanto, ele
agiu mal. Se te custou homens, já o fizeste pagar por isso. — Dois
dos homens que tinham seguido Gwion estavam caídos à beira mar,
suavemente embalados pelas ondas que avançavam. Um terceiro
tinha-se ajoelhado, e os que estavam ao seu lado ajudaram-no a
pôr-se de pé. Ele estava a sangrar de um ombro e de um braço
feridos, mas não corria perigo de vida. Otir também não se deu ao
trabalho de acrescentar ao número de mortos os três que já tinha
posto a bordo, para serem sepultados na sua terra natal. Porque é
que ia desperdiçar fôlego a queixar-se àquele príncipe que
reconhecera o gesto de loucura e a quem não podiam ser atribuídas
quaisquer culpas?
— Eu considero-te obrigado a cumprir o acordo — disse ele —
que estabelecemos entre nós dois. Nada mais, nada menos. Nem tu
nem eu tivemos alguma coisa a ver com isto. Foi uma escolha
deles, e o que disso resultou foi entre mim e eles.
— Assim seja! — disse Owain. — E agora guardem as suas
armas, carreguem o seu gado e vão-se embora, mais livremente do
que chegaram, pois vieram sem o meu conhecimento ou
autorização. E digo-te na tua cara que, se alguma vez voltares a
pisar a minha terra sem teres sido convidado, expulso-te outra vez
para o mar. Desta vez, pega no que te foi pago e vai em paz.
— Então aqui entrego eu o teu irmão Cadwaladr — disse Otir
num tom igualmente frio. — A ele próprio, não a ti, pois isso não
fazia parte do acordo entre nós. Ele pode ir para onde quiser, ou
ficar e fazer o seu próprio acordo contigo. — Ele deu meia volta,
virando-se para os homens que ainda seguravam Cadwaladr, cheio
de azedume, no meio deles. Embora estivesse no centro de todo o
conflito, ele tinha sido reduzido a nada, um bem inútil, uma questão
inteiramente resolvida por outros homens. Ele tinha ficado em
silêncio enquanto outros homens decidiam sobre a sua pessoa, os
seus meios e a sua honra, e tinham-no feito com manifesta
repugnância. Agora ele não tinha nada a dizer, mas reprimiu o
azedume e a ira que lhe subiam à garganta e lhe queimavam a
língua, enquanto os seus captores o soltavam e se afastavam,
deixando o caminho livre para ele partir. Avançou rigidamente para a
praia, em direção ao local onde o seu irmão estava à espera.
— Carreguem os seus barcos! — disse Owain. — Têm o dia de
hoje para abandonar o meu país.
E ele fez rodar o cavalo e virou as costas, dirigindo-se a passo
lento para o seu próprio acampamento. As fileiras dos seus homens
fecharam-se numa marcha ordenada e seguiram-no, e os homens
feridos e enlameados do malfadado exército de Gwion pegaram nos
seus mortos e arrastaram-se atrás deles, deixando deserta a
espezinhada e ensanguentada praia, com exceção dos vaqueiros e
do seu gado, e de Cadwaladr que, sozinho, afastado de todos os
outros homens, caminhava envolto numa ameaçadora nuvem negra
de repulsa e humilhação atrás do irmão.
No ninho de erva espessa onde o tinham deitado, Gwion abriu
os olhos e disse num fio de voz, mas bastante claramente: — Tenho
uma coisa para dizer a Owain Gwynedd. Tenho que ir ter com ele.
Cadfael estava ajoelhado ao lado dele, estancando com o pano
que tinha à mão, a fazer de tampão por baixo das dobras espessas
dos cobertores, o sangue que fluía abundantemente de uma enorme
ferida num dos lados do jovem, debaixo do coração. Cuhelyn,
ajoelhado com a cabeça de Gwion no colo, tinha limpo a espuma de
sangue da boca aberta e o suor da testa já fria e lívida com a
aproximação lenta da morte. Ele ergueu os olhos para Cadfael e
disse quase silenciosamente: — Temos que o levar de volta para o
acampamento. Ele está ansioso por ir. Tem que ir.
— Ele não vai a lugar nenhum neste mundo — disse Cadfael
numa voz igualmente baixa. — Se o levantarmos, ele morrerá nas
nossas mãos.
Algo semelhante ao mais pálido e breve dos sorrisos, no que foi
indubitavelmente um sorriso, aflorou os lábios abertos de Gwion. Ele
disse, no mesmo tom de surdina com que eles tinham falado.
— Então Owain tem que vir ter comigo. Ele tem mais tempo que
eu. Ele virá. É uma coisa que ele quer saber e que mais ninguém
lhe pode dizer.
Cuhelyn afastou a madeixa de cabelo preto que caía, úmida,
sobre a testa de Gwion, com medo que ela o incomodasse, agora
que toda a comodidade estava a desaparecer demasiado
rapidamente. A sua mão era firme e suave. Já não havia qualquer
hostilidade. Não havia espaço para ela. E, ao seu modo oposto, eles
tinham sido amigos. A semelhança ainda lá estava, cada um deles
estava a olhar para um espelho, um espelho cada vez mais escuro e
com uma imagem desfigurada.
— Eu vou chamá-lo. Tem calma. Ele virá.
— Vai depressa! — disse Gwion, fechando a boca com um
sorriso distorcido.
Já de pé, e com uma mão estendida para a rédea do cavalo,
Cuhelyn hesitou.
— Cadwaladr não? Queres que ele venha?
— Não — disse Gwion, virando a cabeça com uma convulsão
de dor aguda. O último golpe defensivo de Otir, que não tinha a
intenção de matar, tinha sido desferido no momento em que Owain
gritara o seu desagrado e separara as fileiras, e Gwion tinha
deixado cair a lança e a guarda, deixando o flanco aberto ao aço.
Não tinha remédio, estava feito e não podia ser desfeito.
Cuhelyn foi-se embora apressadamente, com os cascos do
cavalo a levantar uma nuvem de poeira até ter chegado ao prado do
planalto, deixando as dunas para trás. Não havia ninguém mais
empenhado em levar o recado de Gwion do que Cuhelyn que, por
um breve espaço de tempo, tinha perdido a capacidade de ver o seu
próprio rosto no seu oposto. Isso também pertencia ao passado.
Gwion ficou deitado de olhos fechados, dominando a dor que
pudesse sentir. Cadfael não achou que esta fosse muito intensa, ele
quase perdera a consciência. Aguardaram juntos. Gwion estava
imóvel, pois a imobilidade parecia diminuir a hemorragia e conservar
a vida nele, e ele ainda precisava de viver mais algum tempo.
Cadfael tinha água ao seu lado no capacete de Cuhelyn e lavava as
gotas de suor que se juntavam, frias como o orvalho, na testa e por
cima do lábio do seu doente.
Já não se ouvia qualquer clamor vindo da praia, apenas a
rápida troca de palavras e os movimentos dos homens a levarem a
cabo as suas tarefas, agora sem quaisquer impedimentos, e os
mugidos e berros ocasionais do gado ao ser incitado a atravessar os
baixios e a subir as rampas para os barcos. Para os animais, seria
uma viagem desconfortável nos poços fundos no meio dos barcos
mas, ao fim de algumas horas, estariam novamente em prados
verdes, com boas pastagens e água doce.
19

— Ele virá? — perguntou Gwion, subitamente ansioso.


— Virá.
Ele já vinha a caminho, um momento depois ouviram o ruído
surdo de cascos, e Owain Gwynedd surgiu, vindo da praia, com
Cuhelyn atrás. Desmontaram em silêncio, e Owain olhou para o
jovem corpo arruinado, sem se aproximar demasiado, com receio de
que até o ouvido ainda estivesse suficientemente apurado para ouvir
o que não deveria ser ouvido.
— Há possibilidade de ele viver?
Cadfael abanou a cabeça e não deu qualquer outra resposta.
Owain deixou-se cair na areia e inclinou-se.
— Gwion... eu estou aqui. Não fales muito, não é preciso.
Os olhos pretos de Gwion, um pouco ofuscados pelo sol,
abriram-se muito e reconheceram-no. Cadfael molhou os lábios que
se abriram com uma expressão triste e se esforçaram por articular
as palavras.
— É preciso. Eu tenho uma coisa a dizer.
— Para fazermos as pazes — disse Owain — eu volto a dizer
que não são necessárias palavras. Mas, se queres falar, eu estou a
ouvir.
— Bledri ap Rhys... — começou Gwion, depois fez uma pausa
para respirar. — Tu querias saber quem o matou. Não culpes mais
ninguém. Fui eu que o matei.
Ele ficou à espera, com resignada paciência, de uma
exclamação de incredulidade, mais do que de indignação, mas
nenhuma delas se ouviu. Apenas um silêncio de reflexão e
aceitação que pareceu durar muito e, seguidamente, a voz de
Owain, calma e serena como sempre, a dizer: — Por quê? Ele era,
tal como tu, vassalo do meu irmão.
— Ele tinha sido — disse Gwion, sacudido por uma gargalhada
que lhe contorceu a boca e fez um fino fio de sangue escorrer pelo
queixo. Cadfael inclinou-se e limpou-o. — Fiquei satisfeito quando
ele chegou a Aber. Eu sabia o que meu senhor estava a preparar.
Eu estava ansioso por ir ter com ele e poder contar-lhe tudo o que
sabia sobre as tuas forças e os teus movimentos, e tê-lo-ia feito. Era
justo. Eu tinha-te dito que era totalmente e para sempre um homem
do teu irmão, tu sabias o que eu pensava. Mas eu não podia ir, tinha
dado a minha palavra em como não me iria embora.
— E tinhas cumprido a tua palavra — disse Owain. — Até
agora!
— Mas Bledri não tinha feito qualquer juramento. Ele podia
partir. Por isso eu contei-lhe tudo o que ficara a saber em Aber, as
forças que poderias reunir, quanto tempo levarias a chegar a
Carnarvon, tudo o que meu senhor Cadwaladr precisava de saber
para sua defesa. Antes do anoitecer, quando os portões ainda
estavam abertos, eu tirei um cavalo dos estábulos e prendi-o no
meio das árvores para ele. E, como um idiota, nunca duvidei que
Bledri agisse como devia. E ele ouviu tudo e não disse nada,
deixando-me acreditar que estava de acordo comigo!
— Como é que contavas fazê-lo sair do llys depois de os
portões estarem fechados? — perguntou Owain, tão suavemente
como se estivesse a fazer uma pergunta sobre uma vulgar tarefa
diária.
— Há maneiras... Eu estive muito tempo em Aber. Nem todos
são cuidadosos com as chaves. Mas, enquanto esperava, ele
reparou em tudo o que se passava na tua corte, e ele sabia contar
tão bem como eu e avaliar as possibilidades de êxito com igual
perspicácia, ao mesmo tempo que se comportava de modo a afastar
quaisquer suspeitas sobre as suas intenções. O que eu julgava que
eram as suas intenções! — disse Gwion com amargura. A voz
falhou-lhe por um momento, mas ele recuperou a energia e
prosseguiu esforçadamente: — Quando lhe fui dizer que eram horas
de partir e certificar-me de que ele ia em segurança, ele estava nu,
deitado na cama. Sem qualquer pejo, disse-me que não ia a lado
nenhum, não era assim tão idiota, tendo visto por si próprio o teu
poder e o número dos teus homens. Ele ficaria em segurança em
Aber à espera de ver de que lado sopraria o vento e, se ele
soprasse para o lado de Owain Gwynedd, então ele seria um
homem de Owain. Eu recordei-lhe o seu juramento de fidelidade, e
ele riu-se de mim. Atirei-o ao chão — disse Gwion através dos
dentes. — E depois, uma vez que ele não ia fazer nada, apercebi-
me de que, para me manter fiel a Cadwaladr, eu tinha que quebrar o
juramento que te fizera e partir no lugar de Bledri. E, como ele virara
a casaca, vi que tinha que o matar porque, para cair nas tuas boas
graças, ele certamente que me trairia. E antes de ele recuperar os
sentidos, apunhalei-o no coração.
Alguma da tensão trêmula do seu corpo descontraiu-se, e ele
respirou fundo e soltou um enorme suspiro. Ele já tinha feito quase
tudo que a verdade exigia dele. O resto não custava muito.
— Fui à procura do cavalo, mas o cavalo tinha desaparecido. E
depois chegou o mensageiro, e eu já não podia fazer nada. Foi tudo
em vão. Eu tinha cometido um assassínio para nada! O que me foi
confiado fazer por Bledri ap Rhys, que eu matei, fiz por penitência. E
já sabes qual foi o resultado. Mas é justo! — disse ele, mais para si
próprio do que para qualquer outra pessoa, mas eles ouviram. —
Ele morreu sem se ter confessado, e vai-me acontecer o mesmo.
— Não necessariamente — disse Owain, com uma compaixão
desapaixonada. — Aguenta-te neste mundo um pouco mais, que o
meu sacerdote estará cá, pois eu mandei-o chamar.
— Ele chegará demasiado tarde — disse Gwion fechando os
olhos.
No entanto, ele ainda estava vivo quando o capelão de Owain
chegou, obedientemente apressado, para ouvir a última confissão
de um homem moribundo e guiar a sua voz cada vez mais fraca
através do seu último ato de contrição. Cadfael, presente até ao fim,
duvidou que o coração penitente tivesse ouvido as palavras de
absolvição, pois depois de elas terem sido proferidas não houve
qualquer resposta, qualquer estremecimento no rosto exangue, nem
nas pálpebras arqueadas que cobriam os intensos olhos pretos.
Gwion tinha dito as suas últimas palavras na terra e não tinha
medo do que pudesse vir a acontecer no mundo em que estava a
entrar. Ele vivera tempo suficiente para ter a certeza de que tinha a
absolvição de que tanto necessitava, bem como a clemência e o
perdão de Owain, nunca formalmente proferidos, mas
generosamente dados.
— Amanhã — disse o Irmão Mark — temos que iniciar o
regresso a casa. Já ficamos mais tempo do que devíamos.
Estavam os dois na orla dos campos no exterior do
acampamento de Owain, a olhar para o mar aberto. Ali as dunas
eram apenas uma estreita franja de ouro acima da descida para a
praia e, à luz suave da tarde, o mar estendia-se em azuis nebulosos
que ao longe se transformavam num verde límpido, e a longa
península submersa de bancos de areia brilhava através da água.
Nos canais profundos, no meio do mar, os barcos de carga
dinamarqueses iam-se transformando gradualmente em barcos à
vela de brinquedo, impulsionados por uma brisa constante, na
direção da costa irlandesa. E, mais ao longe, os barcos mais leves,
ainda menores, dirigiam-se ansiosamente para casa.
O perigo tinha passado, Gwynedd estava salvo, as dívidas
tinham sido pagas, os irmãos encontravam-se novamente juntos, se
bem que ainda não reconciliados. O problema poderia ter-se
tornado muito mais sangrento e mais destruidor. Mesmo assim,
tinham morrido homens.
No dia seguinte, também as defesas improvisadas do
acampamento atrás deles seriam desmanteladas, os agricultores
regressariam às suas quintas, levando os seus animais consigo, e
voltariam, imperturbáveis, a tratar da terra e do seu gado, como os
seus antepassados tinham feito repetidas vezes, cedendo
docilmente terreno aos inimigos saqueadores que eles sabiam que
acabariam por se ir embora. Os galeses, que deixavam as suas
casas e iam para as colinas quando o inimigo se aproximava,
sabiam que voltariam para as reconstruir.
O príncipe levaria o seu exército para Carnarvon e ali mandaria
embora aqueles cujas terras se situavam em Arfon e Anglesey,
antes de prosseguir para Aber. Dizia-se que Cadwaladr regressaria
com ele, e os que os conheciam melhor acrescentavam que pelo
menos parte dos seus bens seriam restituídos a Cadwaladr. Porque,
apesar de tudo, Owain amava o irmão, e não conseguia vê-lo caído
em desgraça durante muito mais tempo.
— E Otir levou o seu pagamento — disse Mark, ponderando
ganhos e perdas.
— Foi prometido.
— Não lhe levo a mal. Podia ter sido muito mais elevado.
E podia, embora dois mil marcos não pudessem comprar de
volta as vidas dos três jovens de Otir que voltariam a Dublin para
serem sepultados, nem as dos seguidores de Gwion que tinham
sido retirados mortos do mar, nem a de Bledri ap Rhys na sua
deslealdade fria e calculista, nem a do próprio Gwion na sua
lealdade inflexível e destrutiva, sendo uma tão fatal como a outra.
Nem todos os que tinham morrido nesse ano podiam devolver a vida
a Anarawd, morto no ano anterior no sul, sob instigação de
Cadwaladr, se não pelas suas próprias mãos.
— Owain enviou um mensageiro ao Cônego Meirion, de Aber
— disse Mark — para o tranquilizar a respeito da filha. Nesta altura,
ele sabe que ela está em segurança, com o seu noivo. O príncipe
enviou-o assim que Ieuan a trouxe para o acampamento ontem à
noite.
O seu tom de voz, pensou Cadfael, era cuidadosamente neutro,
como se se tivesse colocado à margem e se coibisse de emitir
qualquer juízo, observando com igual distanciamento os dois lados
de um problema complexo que não lhe competia resolver.
— E como é que ela se tem comportado? — perguntou Cadfael.
Mark poderia desejar abster-se de participar naqueles
acontecimentos, mas não podia deixar de observar.
— Ela é muito obediente e sossegada. Agrada a Ieuan. Agrada
ao príncipe, pois é como uma noiva deve ser, submissa e obediente.
Ela estava aterrorizada, diz Ieuan, quando a tirou do acampamento
dinamarquês. Agora já não tem medo.
— Eu pergunto a mim próprio — disse Cadfael — se submissa
e obediente é o que a Heledd deve ser. Alguma vez a vimos ser
assim, desde que veio conosco de Santo Asaph?
— Aconteceu muita coisa desde essa altura — disse Mark,
sorrindo pensativamente. — Pode ser que ela esteja cansada de
aventuras e não lamente assentar, casando-se sensatamente com
um homem decente. Tu viste-a. Viste algum motivo para duvidar que
ela esteja satisfeita?
20

E, na verdade, Cadfael não podia dizer que tivesse observado


qualquer vestígio de descontentamento no seu porte. De fato, ela
fazia, sorridente, o trabalho que encontrava para si própria, servia
Ieuan hábil e serenamente, e continuava a irradiar à sua volta um
tipo de brilho que não podia ter vindo de uma mulher infeliz. O que
quer que ela tivesse em mente e mantivesse ali de reserva com
profunda satisfação, era algo que seguramente não a inquietava
nem perturbava. Heledd encarava o caminho que se abria à sua
frente com inconfundível prazer.
— Já conversaste com ela? — perguntou Mark.
— Ainda não tive ocasião.
— Podes tentar agora, se quiseres. Ela está vindo para cá.
Cadfael virou a cabeça e viu Heledd a caminhar agilmente ao longo
da colina em direção a eles, com um passo decidido e o rosto
voltado para norte. Mesmo quando parou ao lado deles, foi apenas
por um momento, como um pássaro a parar a meio do voo.
— Irmão Cadfael, estou muito satisfeita por vê-lo são e salvo. A
última vez que soube de si foi quando nos separaram, junto da
brecha da paliçada. — Ela olhou para o mar, onde os barcos se
tinham tornado pontos pretos na água cintilante. O seu olhar seguiu
a linha deles. Era possível que estivesse a contá-los. — Então eles
foram-se embora com o dinheiro e o gado. Assistiu à partida?
— Assisti — disse Cadfael.
— Eles não me fizeram mal nenhum — disse ela, olhando para
a frota que se afastava, com um leve sorriso nos lábios, como se a
recordar-se. — Eu tinha vontade de lhes acenar a desejar uma boa
viagem, mas Ieuan achou que não era seguro.
— Ainda bem — disse Cadfael, muito sério — porque não foi
uma partida inteiramente pacífica. E onde vais agora?
Ela virou-se e encarou-os de frente, e os seus olhos muito
abertos, da cor roxa da íris, tinham um ar muito inocente.
— Deixei uma coisa no acampamento dos dinamarqueses —
disse ela. — Vou à procura dela.
— E o Ieuan deixa-te ir?
— Tenho autorização — disse ela. — Já se foram todos
embora. De fato, já se tinham ido todos embora, e agora era seguro
deixar a sua noiva, obtida com dificuldade, voltar às dunas desertas
onde tinha estado prisioneira durante algum tempo mas onde nunca
se sentira em cativeiro. Viram-na retomar o seu passo decidido ao
longo da orla dos campos. Faltava pouco mais de meia milha.
— Não te ofereceste para ir com ela — disse Mark com um
rosto solene.
— Eu não ia ser estúpido a esse ponto. Mas deixa-a ter um
bom avanço — disse Cadfael num tom pensativo — e talvez vamos
nós dois atrás dela.
— Achas — perguntou Mark — que a nossa companhia talvez
seja mais desejada no caminho de regresso?
— Eu duvido que ela volte — admitiu Cadfael.
Mark acenou a cabeça em sinal de concordância, não se
mostrando nada surpreendido.
— Eu próprio pensei nisso — disse ele.
A maré estava a vazar, mas ainda não estava tão baixa ao
ponto de expor a longa e fina língua de areia que se estendia como
uma mão e um pulso na direção da costa de Anglesey. Era possível
vê-la, da cor do ouro pálido, sob os baixios, e aqui e ali um tufo de
erva e solo quebrava a superfície. Na extremidade, onde os nós dos
dedos se projetavam numa rocha, os arbustos enfezados do
salgadiço erguiam-se como uma cabeleira áspera e rija, com as
raízes a orlar o amarelo da areia. Cadfael e Mark deixaram-se ficar
na colina e olharam para baixo como já tinham olhado uma vez e
fizeram a mesma descoberta. Repetida, ela revelava todas as
vezes, todas as noites em que tinha sido repetida sem testemunhas.
Eles até recuaram um pouco, para que a sua forma fosse menos
indiscreta na linha do horizonte, se ela olhasse para cima. Mas ela
não olhou para cima. Olhou para baixo, para a água límpida, de um
verde muito claro à luz do entardecer, que lhe chegava quase aos
joelhos enquanto percorria o estreito caminho dourado em direção
ao trono de pedra rodeado pelo mar. Ela segurava as saias, ainda
rasgadas e sujas da viagem e de ter vivido ao ar livre, e inclinou-se
para observar a água fria e doce a estremecer à volta das suas
pernas, quebrando os seus contornos flexíveis num tremor
desincorporado, como se, em vez de passar a vau, ela estivesse a
flutuar. Tinha tirado todos os ganchos do cabelo, e este caía numa
nuvem preta, ondulante, à volta dos ombros, ocultando o rosto oval
que ela levava inclinado para a frente, para ver onde punha os pés.
Movia-se como uma dançarina, lentamente, com uma graciosidade
lânguida. Pois qualquer que fosse o encontro que ela ali tivesse,
tinha chegado cedo, e sabia. Mas porque não havia qualquer
incerteza, o tempo era uma bênção, até mesmo a espera seria um
prazer antecipado.
De vez em quando, ela parava e ficava imóvel, deixando a água
assentar e ficar parada à volta dos seus pés, depois inclinava-se
para observar o ardor trémulo do seu rosto cintilante, à medida que
as ondas recuavam para o mar. A maré era muito suave, naquele
momento mal havia vento. Mas, naquela altura, os barcos de Otir já
estariam a mais de meio caminho de Dublin.
Ela sentou-se no trono de pedra, espremeu a água da borda do
vestido e ficou a olhar para o mar à espera, sem impaciência e sem
dúvidas. Outrora, naquele local, ela parecera inconsolavelmente só
e abandonada mas, mesmo nessa altura, isso tinha sido uma ilusão.
Agora ela parecia alguém que se encontrava na serena posse de
tudo o que a rodeia, uma companheira querida do mar e do céu. A
orbe do sol estava a declinar à sua frente, dourando o rosto e o
corpo.
O barco pequeno, estreito, escuro e súbito, surgiu velozmente
vindo de norte, emergindo do esconderijo proporcionado pela linha
da costa que, para além dos baixios arenosos do outro lado do
estreito, estava agora a subir. Em algum lugar na costa mais acima
ao largo de Anglesey, ele tinha estado à espera até ao pôr do sol.
Não tinha havido, pensou Cadfael, um encontro marcado. Eles não
tinham tido tempo para trocar uma só palavra quando ela fora
levada por Ieuan. Tinha havido apenas a garantia interior de que se
manteriam fiéis, de que o barco viria e de que ela estaria a espera.
Eles tinham estado soberbamente seguros um do outro. Assim que
Heledd recuperara o fôlego e aceitara o fato do seu inocente rapto,
ela passou a aceitar os acontecimentos, sabendo como deveriam
terminar e como, de fato, terminariam. Por que outro motivo tinha
andado tão serena enquanto aguardava, iludindo as suspeitas, até
mesmo esforçando-se, quem sabe com que tristeza, por dar a Ieuan
algum prazer antes de ele ter que pagar com uma perda perpétua.
No fim, a filha do Cônego Meinon sabia o que queria e era
implacável a consegui-lo, uma vez que ninguém de entre os homens
e os senhores à sua volta manifestava algum sinal de a ajudar a
realizar os seus desejos.
Pequeno, sinuoso e incrivelmente veloz, com os remos a
impulsioná-lo como se fossem um só, o barco-dragão de Turcaill
chegou à praia mas não abicou. Ficou imóvel por um momento, com
os remos a roçar na água, como uma ave a pairar no céu.
Turcaill saltou sobre o lado e dirigiu-se a vau, com água até à
cintura, para a minúscula ilha de pedra. O pôr do Sol carmesim
conferira um brilho quase vermelho ao seu cabelo louro, parecido
com o de Owain Gwynedd, igualmente forte e louro. E quando eles
olharam novamente para Heledd, esta tinha-se levantado e entrado
no mar. A força da maré vazante arrastou-a consigo, com as saias a
flutuar. Turcaill emergiu, cintilante, da água mais funda.
Encontraram-se a meio do caminho e ela dirigiu-se para os braços
dele e foi levantada de encontro ao seu coração. Não houve uma
grande manifestação, apenas um breve e distante repique de
gargalhadas que se ergueu no ar e chegou até aos dois que os
observavam. Não havia necessidade de mais, pois nenhum
daqueles seres do mar tivera jamais alguma dúvida a respeito do
inevitável desfecho.
Turcaill tinha virado as costas e caminhava na água em direção
ao seu barco, com Heledd nos braços, e a maré, a vazar mais
rapidamente à medida que o Sol se punha, formava fontes de
borrifos iridescentes à sua frente, pequenos arco-íris que rodeavam
os seus pés nus. Ele içou a moça por cima do lado baixo do seu
dragão e subiu depois dela. E ela, assim que recuperou o equilíbrio,
virou-se para ele e abraçou-o. Eles ouviram o riso dela, alto,
selvagem e doce, mais tênue que a canção de um pássaro àquela
distância, mas penetrante e límpido como um carrilhão de sinos.
Todo o longo e sinuoso banco de remos, suspenso no ar,
mergulhou ao mesmo tempo. A pequena serpente obedeceu e
dirigiu-se, veloz, levantando espuma, para a passagem estreita
entre os baixios arenosos que já mostravam níveis dourados por
baixo do azul, mas que ainda eram suficientemente fundos para
aquele viajante veloz. Ele afastou-se rapidamente, cada vez menor,
uma folha levada por uma corrente impetuosa, transportada para a
Irlanda, para a Dublin dos reis dinamarqueses e dos irrequietos
navegadores. E Turcaill tinha levado consigo uma companheira
adequada, juntos teriam uma formidável descendência que
dominaria aqueles mares agitados durante gerações.
O Cônego Meirion não precisava se preocupar com a
possibilidade de a sua filha voltar alguma vez a aparecer para pôr
em perigo o seu estatuto junto do seu bispo, a sua reputação ou a
sua carreira. Embora talvez a amasse e provavelmente lhe
desejasse felicidades, ele tinha desejado com todo o coração que
ela fosse feliz noutro local, longe da vista, se não longe do coração.
O seu desejo fora satisfeito. Também não precisava de se
preocupar, pensou Cadfael observando aquela partida
resplandecente, com a felicidade dela. Ela tinha o que queria, um
homem que ela própria escolhera. Ela cumpriria a sua parte,
sensata ou insensata de acordo com os padrões do seu pai. Mas ela
tinha outros padrões e era pouco provável que alguma vez se viesse
a arrepender.
A pequena mancha preta que se dirigia velozmente para casa
mal era visível apenas como um ponto escuro num luminoso mar
cintilante.
— Foram-se embora — disse o Irmão Mark, virando-se e
sorrindo. — E nós também nos podemos ir embora.
Eles tinham ficado mais tempo do que tencionavam. Dez dias
no máximo, dissera Mark, e o Irmão Cadfael estaria de volta, são e
salvo, ao seu herbário e ao seu trabalho junto dos doentes. Mas
talvez, tendo em causa o desfecho, o Abade Radulfus e o Bispo de
Clinton considerassem os dias ociosos como bem passados. Talvez
até mesmo o Bispo Gilbert ficasse muito satisfeito por conservar o
seu eficiente e enérgico cônego, com a inconveniente filha de
Meirion em segurança no outro lado do mar, e o seu escandaloso
casamento esquecido. Todos os outros pareciam bastante contentes
com a satisfatória resolução do que poderia ter sido um problema
sangrento. O que interessava agora era voltar para a tranquilidade
da vida diária e deixar os rancores e as animosidades antigas
desaparecer gradualmente na obscuridade do passado. Sim,
Cadwaladr seria reinstituído condicionalmente, Owain não podia
ignorá-lo totalmente. Mas não plenamente reinstituído, e não para
já. Gwion, que tinha sido, sob todos os pontos de vista, o perdedor,
seria sepultado decentemente, sem grande reconhecimento da sua
lealdade por parte do senhor que tão amargamente o desiludira.
Cuhelyn permaneceria em Gwynedd e, com o tempo, certamente
que ficaria satisfeito por não ter tido que assassinar ninguém com as
suas próprias mãos para vingar a morte de Anarawd, pelo menos
Bledri ap Rhys. Os príncipes, que mandam outros fazer o trabalho
menos agradável por eles, geralmente escapam a todos os juízos
temporários, mas não ao final.
E Ieuan ab Ifor teria simplesmente que se resignar à perda da
imagem ilusória de uma mulher submissa, um ser em que Heledd
nunca se poderia tornar. Ele mal a vira ou falara com ela e, por
muito que a sua dignidade ficasse ferida, o seu coração não podia
ficar despedaçado por a perder. Se ele olhasse à sua volta, havia
mulheres agradáveis em Anglesey que poderiam consolá-lo.
E ela... ela tinha o que queria, e estava onde queria estar, não
onde os outros tinham achado conveniente colocá-la. Owain tinha-
se rido quando ouvira a história, embora, por consideração por
Ieuan, tivesse mantido um rosto grave na sua presença. E havia um
outro homem à espera em Aber que teria a última palavra da história
de Heledd.
A última palavra, depois de o Cônego Meirion ter ouvido e
digerido a história da escolha da sua filha, foi pronunciada após um
longo suspiro de alívio pelo fato de, pelo menos, ela se encontrar
em segurança — ou teria sido por ele próprio ter ficado liberto?
— Quem diria! — disse Meirion, entrelaçando e
desentrelaçando as suas mãos compridas. — Há um mar entre nós.
— Era verdade, e isso era um alívio para ambos. Mas ele
prosseguiu: — Nunca mais voltarei a vê-la! — e as suas palavras
continham tanta dor como satisfação. Cadfael nunca saberia bem o
que pensar a respeito do Cônego Meirion.

Chegaram à fronteira do condado ao entardecer do dia seguinte


e, seguindo o princípio de que o mal já estava feito, fizeram um
desvio para passar a noite com Hugh em Maesbury. Os cavalos
ficariam gratos pelo descanso, e Hugh gostaria de saber, em
primeira mão, o que acontecera em Gwynedd e como o bispo
normando se estava a dar com o seu rebanho galês. Havia também
o prazer de passar algumas horas tranquilas com Aline e Giles, num
ambiente doméstico contemplado com ainda mais deleite porque
tinham renunciado a ele para si próprios, bem como ao mundo no
exterior da Ordem.
Foi esse o comentário afoito que Cadfael teceu quando estava
sentado, feliz, à lareira de Hugh, com Giles ao colo. E Hugh riu-se
dele.
— Tu, renunciar ao mundo? E acabado de voltar de um passeio
à orla mais ocidental de Gales? Será um milagre se, depois deste
passeio, eles conseguirem manter-te dentro do mosteiro durante
mais de um mês ou dois. Eu já te vi ficar irrequieto ao fim de uma
semana de observância rígida. Eu pergunto a mim próprio de vez
em quando se um dia não partes para S. Giles e acabas em
Jerusalém.
— Oh, não, isso não! — disse Cadfael, com uma certeza
serena.
— É verdade que, de vez em quando, os meus pés anseiam
pela estrada. — Ele estava a olhar para dentro de si próprio, onde
as memórias antigas sobreviviam e permaneciam, à sua maneira,
calorosas e satisfatórias, mas no passado, uma vez que nunca
seriam repetidas já não eram desejáveis. — Mas, afinal de contas —
disse Cadfael, com profunda satisfação — quando se trata de
estradas, a estrada a caminho de casa é tão boa como qualquer
outra.
Fonte: Silvio B.

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