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ELLIS PETER
O Verão Viking
Título original: The Summer of the Danes
Crônicas do Irmão Cadfael 18 – Abril de 1144
Tradução: Isabel Seqeira
Publicações Europa-América
1
O salto instintivo que ele deu para ir ter com ela só lhe permitiu
avançar dois passos. De ambos os lados os arbustos vergastavam-
no, e mãos estenderam-se para agarrá-lo pelo capuz e pelo hábito,
prender-lhe os braços e mantê-lo ereto mas indefeso, a lutar contra
um amplexo de que não conseguia libertar-se mas que,
curiosamente, não fez qualquer menção de molestá-lo, para além de
o manter prisioneiro. Subitamente, a pequena clareira estava a
fervilhar de homens enormes, de braços nus, cabelo louro e cintos
de cabedal, e do matagal à sua frente irrompeu um homem ainda
maior, um jovem gigante, muito acima da robusta altura média de
Cadfael, a rir tão alto que os bosques, até então silenciosos,
ecoaram com a sua alegria, e a segurar uma Heledd enraivecida,
aos pontapés e a contorcer-se com toda a força, mas produzindo
pouco efeito. As unhas da mão que ela tinha livre já tinham deixado
a sua marca na face do captor e puxavam os seus longos cabelos
louros, até que ele se virou, baixou a cabeça e tomou o pulso dela
entre os seus dentes e manteve-o ali. Dentes grandes, regulares,
brancos, que tinham brilhado quando ele rira, e agora mal
magoavam a pele macia de Heledd. Foi o espanto, e não o medo
nem a dor, que fez com que ela ficasse imóvel nos braços dele e,
com a desorientação, os seus dedos fechados abriram-se
gradualmente. Mas quando ele a largou e voltou a rir-se, ela
recuperou a sua raiva e atacou-o furiosamente, batendo inutilmente
com os punhos no seu peito largo.
Atrás dele vinha um rapaz sorridente com cerca de quinze
anos, conduzindo o cavalo de Heledd que coxeava ligeiramente de
uma pata. Ao ver uma segunda presa amarrada e a mudar
desconfortavelmente de posição na orla das árvores, o rapaz soltou
um grito de prazer. Na realidade, o ambiente do grupo de
saqueadores não parecia nada ameaçador, mas sim bem-humorado
e entusiástico. Não eram tantos como a princípio parecera, devido
ao seu tamanho e presença exuberantemente animal. Dois deles,
com um peito redondo como um barril e bigodes e tranças cor de
palha de cada lado do rosto, mantinham Cadfael preso pelos
braços. Um terceiro tinha pegado nas rédeas do ruano e acariciava
o focinho comprido e brilhante e a crina creme. Mas algures no
caminho desbravado havia outros, Cadfael ouvia-os mover-se e
conversar enquanto esperavam. O que era espantoso era que
homens tão grandes conseguissem mover-se tão suavemente para
cercar as suas presas. Os cavalos, chamando um pelo outro, tinham
alertado os saqueadores que já estava de regresso e tinham-nos
conduzido àquele ganho inesperado. Um monge, uma moça, pelo
cavalo e pelo traje uma moça da alta sociedade, e dois bons
cavalos.
O jovem gigante estava a observar as suas novas aquisições
com um ar muito prático por cima dos esforços inúteis de Heledd, e
Cadfael reparou que, embora tratasse a sua prisioneira com alguma
rudeza, não o fazia com brutalidade. Pareceu que Heledd
compreendeu isso e deixou gradualmente de opor resistência,
sabendo que esta era inútil, e ficou quieta, surpreendida com o fato
de não haver qualquer retaliação.
— Saeson? — perguntou o gigante, observando Cadfael com
curiosidade. Ele já sabia que Heledd era galesa, ela tinha-o
insultado nessa língua até ficar sem fôlego.
— Galês! — disse Cadfael. — Tal como a dama. Ela é filha de
um cônego de Santo Asaph, e está sob a proteção de Owain
Gwynedd.
— Ele tem gatos selvagens? — perguntou o jovem, desatando
novamente a rir e pousando-a no chão com um movimento ágil, mas
mantendo-a bem presa pela faixa do vestido, enrolada no seu
enorme punho para a apertar e segurar. — E ele vai querer este de
volta sem que lhe falte sequer um cabelo? Mas, ao que parece, a
dama escapou-se da trela, senão o que estaria ela a fazer aqui com
apenas um monge beneditino como guarda-costas? — Ele falava
numa mistura de erse, dinamarquês e galês muito capaz de se fazer
entendida naquela região. Ao longo dos séculos, nem todos os
contatos irregulares entre Dublin e Gales tinham sido de invasão e
rapina; tinham sido feitos muitos bons casamentos entre os
principados, e uma quantidade razoável de comércio tinha sido
lucrativa para ambas as partes. Aquele jovem sabia provavelmente
falar francês normando. Até mesmo latim, pois era provável que
tivesse sido ensinado por monges irlandeses. Ele era claramente
um jovem com uma boa posição social. Também, felizmente, franco
e bem disposto, nada interessado em estragar aquilo que poderia vir
a ser um bem valioso. — Tragam o homem — disse o jovem,
regressando energicamente às questões práticas — e mantenham-
no agarrado. Owain respeita o hábito preto, embora o das celta seja
mais do seu agrado. Quando é preciso negociar, a santidade
consegue um bom preço. Eu trato da moça.
Eles correram a obedecer-lhe, tão bem dispostos, ao que
parecia, como o seu líder, e todos eles muito satisfeitos com o
resultado da sua pilhagem. Quando emergiram no caminho
desimpedido com os seus cativos e os dois cavalos atrás, foi fácil
ver o motivo por que estavam tão contentes. Havia mais quatro à
espera, todos a pé, levando duas varas compridas carregadas com
animais mortos e sacos, o saque de redis dispersos, de pastagens
remotas e até mesmo da própria floresta, pois havia veados entre os
despojos. Um quinto homem tinha improvisado uma canga de
madeira para os ombros, para equilibrar dois odres de vinho. Este
devia ser um de, pelo menos, dois grupos que tinham ido a terra,
calculou Cadfael, pois o pequeno barco levava doze pares de remos
além de outra tripulação. Só podia tentar adivinhar o número dos
que compunham as forças dinamarquesas, mas certamente que não
lhes faltaria comida durante um ou dois dias.
Ele deixou-se levar para onde o empurraram, não inteiramente
por compreender sensatamente que não conseguiria levar a melhor
sobre um dos musculosos guerreiros que o agarravam, quanto mais
dois, nem sequer porque, mesmo que conseguisse fugir, não
poderia fazer nada para levar Heledd consigo. Para onde quer que
os levassem como reféns úteis, ele talvez conseguisse
proporcionar-lhe proteção e companhia. Ele já tinha deixado de
pensar que lhe poderia acontecer grande mal. Não fizera mais do
que confirmar algo que já sabia quando insistira que ela era valiosa;
e aquilo não era a guerra total, mas sim uma expedição comercial
com o objetivo de obter o maior lucro possível com o mínimo
dispêndio.
Houve alguma redistribuição do saque que tinham acumulado,
e o cavalo coxo de Heledd foi chamado a transportar parte da carga.
Eles eram notavelmente enérgicos e exatos nos seus movimentos,
equilibrando o peso e não sobrecarregando o valioso animal. Entre
si, eles falavam a sua própria língua nórdica, embora, com toda a
probabilidade, todos aqueles jovens e vigorosos guerreiros tivessem
nascido no reino de Dublin, tal como os seus pais antes deles, e
compreendessem bem as línguas celtas que rodeavam o seu
enclave e as falassem livremente em tempo de paz e de guerra. No
final daquele dia de pilhagem, estavam atentos ao sol e, com
exceção daquela incursão depois de terem ouvido o alarme dos
cavalos, não perderam tempo.
Cadfael tinha perguntado a si próprio o que faria o líder com o
cavalo são, e pensou que ele reclamaria para si próprio o privilégio
de montar. Em vez disso, o jovem ordenou ao rapaz, o mais leve
entre eles, que subisse para a sela, e colocou Heledd à sua frente,
nos braços que, mesmo só com quinze anos, eram suficientemente
musculosos para tornar ineficazes os esforços dela para se libertar
depois de as suas mãos terem sido atadas com a sua própria faixa.
Mas, nessa altura, ela já compreendera que resistir seria ao mesmo
tempo inútil e indigno, e deixou-se instalar de encontro ao peito
largo do rapaz sem opor resistência. Pela expressão do seu rosto,
ela iria aguardar a primeira oportunidade de fugir e, até esse
momento, manteria a presença de espírito e as suas forças de
reserva. Tinha ficado calada, cerrando os lábios e os dentes de
raiva ou de medo, e mantendo uma dignidade tensa e taciturna, mas
não era possível saber o que estaria a germinar por trás do rosto
imóvel.
— Irmão — disse o jovem, voltando-se energicamente para
Cadfael, ainda imobilizado no meio dos seus guardas — se preza a
moça, pode caminhar ao lado dela sem ninguém a agarrá-lo. Mas
aviso-o já que Torsten estará mesmo atrás de si, e ele consegue, a
cinquenta passos, atirar uma lança e rachar uma árvore jovem, por
isso mantenha a sua posição — ele estava a sorrir, seguro de que
Cadfael não tencionava fugir, deixando a moça em cativeiro. — Em
frente agora, e depressa! — disse ele alegremente, impondo o
passo, e o grupo inteiro colocou-se em fila ao longo do caminho, e
Cadfael fez o mesmo, ao lado do seu próprio ruano, com uma mão
no couro do estribo do cavaleiro. Se Heledd tivesse necessidade da
frágil segurança da sua presença, ela tê-la-ia, mas Cadfael duvidava
que precisasse. Ela não se tinha mexido desde que fora içada para
o cavalo, exceto para se mover de modo a ficar mais confortável no
seu poleiro, e a própria tensão do seu rosto tinha-se transformado
numa imobilidade pensativa. Todas as vezes que Cadfael erguia os
olhos para voltar a olhar para ela, descobria que ela se sentia cada
vez mais à vontade naquela situação inesperada. E, todas essas
vezes, os seus olhos estavam pousados, com um ar de
especulação, na cabeça loura que ficava acima de todas as outras,
avançando à frente deles com um penacho ereto e longos caracóis
louros a ondular na leve brisa.
Desceram a colina com um passo rápido, através de bosques e
pastagens, até vislumbrarem os primeiros lampejos prateados de
água a cintilar através da última cintura de árvores. O sol
mergulhava suavemente em direção a oeste, dourando a ondulação
levantada pela brisa ao longo da superfície quando emergiram na
praia do estreito, e os membros da tripulação que tinham ficado de
guarda soltaram um grito de boas vindas e trouxeram o barco-
dragão até à costa para eles subirem para bordo.
Quando regressava, de mãos a abanar, da sua busca a oeste,
para comparecer ao encontro na bifurcação antes do pôr do Sol, o
Irmão Mark ouviu um grupo de homens passar, rápida e
silenciosamente, atravessando o seu trilho um pouco à frente, e
descendo na direção da praia. Ele deixou-se ficar parado,
escondido, até eles terem passado, depois seguiu cautelosamente
na mesma direção, tencionando apenas certificar-se de que não
poderiam vê-lo nem ouvi-lo, antes de prosseguir para o local de
encontro. Mas o caminho que seguiu pela colina abaixo por entre as
árvores inclinou-se para o percurso do trilho deles e aproximou-o
rapidamente, pelo que recuou e voltou a parar, desta vez vendo-os
de relance por entre os ramos de arbustos agora quase cobertos
com a folhagem de Verão. Um jovem alto, louro, cuja cabeça passou
por ele a flutuar como uma prímula desabrochada mas com a altura
de um espruce de três anos, um cavalo carregado levado pelas
rédeas, dois homens com uma vara aos ombros e carcaças de
animais a balançar ao ritmo dos seus passos. Depois,
inequivocamente, viu passar Heledd e o rapaz, um par entrelaçado
e a flutuar um metro e meio acima do chão, sendo o cavalo por
baixo deles apenas sugerido pelo ritmo da sua passagem, pois
naquele momento os ramos eram impenetráveis, deixando ver
apenas uma tonsura castanha avermelhada quase totalmente
salpicada de cinzento a arrastar-se ao lado deles. Era apenas uma
pequeníssima pista quanto ao homem que a usava, mas bastava
para Mark identificar o Irmão Cadfael.
Então ele a tinha encontrado, e aqueles estrangeiros muito
menos bem-vindos tinham-nos encontrado a ambos antes de eles
terem conseguido escapar para um refúgio seguro. E Mark não
podia fazer nada a não ser segui-los, pelo menos o suficiente para
saber para onde eles estavam a ser levados, e como eram tratados,
e depois certificar-se de que a notícia era levada para onde estavam
os que podiam levar o seu desaparecimento em consideração e
fazer planos para os recuperarem.
Desmontou e deixou o cavalo preso, para se poder mover mais
rápida e silenciosamente por entre as árvores. Mas o grito que
ouviu, ecoando do barco, fê-lo abandonar todas as precauções e
emergir em terreno aberto, correndo pela colina abaixo para
encontrar um local de onde pudesse ver as águas do estreito e o
timoneiro a trazer o seu barco para perto, por baixo da margem
coberta de ervas, para um lugar em que até mesmo uma criança
conseguiria saltar para bordo, por cima da borda baixa dos bancos
dos remadores situado no meio do barco. Mark viu a maré de
homens louros, ferozes, a encher o barco, persuadindo o cavalo de
carga carregado a segui-los e arrumando o produto do saque por
baixo da minúscula coberta de proa e no poço no meio dos bancos.
Cadfael foi obrigado a entrar com eles, no entanto pareceu a Mark
que, mesmo ao ser persuadido, ele mantinha um ar jovial. Era certo
que ele tinha poucas possibilidades de escapar, mas outro homem
seria menos hábil a lidar com a situação.
O rapaz a cavalo mantinha Heledd bem segura, até que o
jovem gigante louro, depois de assistir ao embarque dos seus
homens, estendeu os braços e pegou nela, com tanta leveza como
se ela fosse uma criança, saltou com Heledd por entre os bancos
dos remadores e, pousando-a no chão, estendeu novamente a mão
para as rédeas do cavalo de Cadfael e persuadiu-o a entrar a bordo
com palavras murmuradas em voz baixa que soaram estranhas aos
ouvidos de Mark. O rapaz seguiu-o, o timoneiro afastou-se
rapidamente da margem, o nó de homens que repartia o saque
dissolveu-se ordenadamente e distribuiu-se pelos remos, e o
pequeno e esguio barco-dragão dirigiu-se para o meio da corrente.
Quando Mark recuperou a presença de espírito, ele avançava
rapidamente, deslizando como uma cobra para sul, na direção de
Carnarvon e Abermenai, onde os seus companheiros estariam
agora no porto ou atracados nos ancoradouros, no exterior das
dunas. Nem sequer era necessário virá-lo, pois os dois extremos
eram idênticos. A sua velocidade conseguia livrá-lo de problemas
em qualquer direção; mesmo que fosse avistado da cidade, Owain
não tinha nada que o pudesse apanhar. A rapidez com que ele se
transformou silenciosamente numa pequena mancha escura na
água deixou Mark espantado, sem respiração.
Ele deu meia volta para voltar para onde tinha deixado o cavalo
preso e partiu apressadamente para oeste, na direção de
Carnarvon.
Atirado pesadamente para o poço estreito no meio dos bancos
e ali abandonado com igual rapidez, Cadfael dedicou um momento a
encostar-se às tábuas do estreito convés da ré e a refletir sobre a
situação dos dois. As relações entre os captores e os capturados
pareciam já ter encontrado um nível viável, a um preço
surpreendentemente baixo em termos de tempo ou exaltação. A
resistência era impraticável. A prudência recomendava resignação
aos prisioneiros, e tornava possível aos seus carcereiros ocuparem-
se da tarefa mais imediata de regressar ao acampamento com o
saque, sem qualquer restrição mais rígida do que aquela que um
barco veloz e cerca de uma milha de água de cada lado
proporcionavam. Ninguém tinha tocado em Cadfael depois de terem
embarcado. Ninguém prestara mais atenção a Heledd, encostada,
com um ar defensivo, ao cadaste da popa, onde o dinamarquês a
colocara, com os joelhos puxados para si e os braços a abraçar as
saias. Ninguém receava que ela saltasse borda fora e nadasse para
Anglesey; os galeses não eram conhecidos como nadadores
notáveis. Ninguém tinha qualquer interesse em insultá-los ou
machucá-los; eles eram simplesmente bens a ser mantidos intatos
para utilização futura.
Para testar um pouco mais essa teoria, Cadfael percorreu o
poço no meio do barco, entre o saque de carne e provisões,
observando atentamente os pormenores do ágil barco comprido, e
nem um único remador interrompeu a cadência das suas remadas,
ou se virou para verificar o movimento junto do seu ombro. Um
barco concebido para ser veloz, elegante como um galgo, com
talvez uns dezoito passos de comprimento e não mais que três ou
quatro de largura. Cadfael calculou que houvesse dez fiadas de
tábuas ao lado, seis pés de profundidade no meio do barco, o único
mastro descido à ré. Reparou nos rebites que mantinham as tábuas
unidas. Sendo um batel chato, com um calado pouco fundo, leve
para a força que tinha e a velocidade que atingia, com os dois
extremos idênticos para poder ser instantaneamente manobrado,
era o barco ideal para aportar nas dunas de Abermenai. Não servia
para transportar uma carga mais volumosa; para isso, eles deviam
ter trazido barcos de carga, mais lentos, mais dependentes das
velas e com apenas alguns remadores para os livrar de problemas
quando se deparassem com uma calmaria. Tinha uma vela redonda,
como ainda sucedia a todos os barcos naquelas águas
setentrionais. Os barcos de dois mastros com velas latinas do
inesquecível mar mediterrâneo ainda não eram conhecidos por
aqueles navegadores nórdicos.
Ele estivera demasiado embrenhado naquelas observações
para ter consciência de que ele próprio estava a ser observado com
idêntica astúcia e curiosidade por um par de luminosos olhos azuis,
debaixo de sobrancelhas espessas louras erguidas num ar de
perplexidade. Ao jovem comandante daquele grupo não escapava
nada, e ele sabia interpretar aquela apreciação do seu barco. Saiu
subitamente de junto do timoneiro e foi ter com Cadfael ao poço.
— Sabe alguma coisa sobre barcos? — perguntou ele,
interessado e surpreendido com uma preocupação tão improvável
por parte de um irmão beneditino.
— Já soube. Há muito tempo que não me aventurava a andar
na água.
— Conhece o mar? — prosseguiu o jovem, com agradada
curiosidade.
— Este mar, não. Houve um tempo em que conheci bastante
bem o Mediterrâneo e as costas orientais. Entrei tarde para o
convento — explicou ele, vendo os olhos azuis dilatar-se e cintilar
numa expressão de deleitado espanto, e uma centelha mais
profunda de prazer e reconhecimento a brilhar dentro deles.
— Irmão, fez subir o seu preço — disse o jovem dinamarquês
alegremente. — Eu pensava que era mais sensato. Monges
navegadores são animais raros, eu nunca conheci nenhum. Como é
que se chama?
— O meu nome é Cadfael, um irmão galês da abadia de
Shrewsbury.
— Um nome em troca de outro nome é um negócio justo. Eu
sou Turcaill, filho de Turcaill, familiar de Otir, que chefia esta
expedição.
— E sabe o que está em disputa aqui? Entre dois príncipes
galeses? Porque é que colocam o seu peito no meio das suas
espadas? — perguntou Cadfael num tom calmo.
— Pelo dinheiro — respondeu Turcaill alegremente. — Mas,
mesmo que não fosse pago, eu não ficaria para trás se Otir se
fizesse ao mar. Torna-se enfadonho estar em terra. Eu não sou um
marinheiro de água doce, capaz de ficar numa quinta ano após ano,
contentando-se em ver as colheitas crescer.
Não, isso certamente ele não era, nem tinha temperamento
para ir para um convento e tomar o hábito, mesmo quando as
aventuras da juventude tivessem chegado ao fim. Bem fornecido de
carnes, brilhando com uma energia animal, aquele era um homem
feito para casar e ter filhos e criar mais gerações de aventureiros,
irrequietos como o próprio mar e prontos para entrar, por lucro, na
disputa de qualquer homem, pagando o preço de pôr em risco as
suas próprias vidas.
Seguidamente, com uma palmada de despedida no ombro de
Cadfael, ele afastou-se e atravessou o barco com uma passada
firme e foi colocar-se ao lado de Heledd, no convés de ré. A luz, que
estava a desaparecer no crepúsculo, ainda mostrou a Cadfael a
expressão desdenhosa dos lábios de Heledd e o arqueado frio da
sua sobrancelha enquanto afastava a bainha da saia da
contaminação do contato inimigo e virava a cara, recusando-se a
olhar para ele.
Turcaill soltou uma gargalhada, nada desagradado, sentou-se
ao lado dela e tirou pão de uma bolsa do cinto. Partiu-o com as suas
mãos jovens, grandes e macias, e ofereceu-lhe metade, e ela
recusou. Sem se sentir ofendido, pegou-lhe à força na mão direita,
colocou-lhe a oferenda na palma da mão e cobriu-a com a mão
esquerda dela. Heledd não o conseguiu impedir e não comprometeu
o seu desdém mudo com uma luta inútil. Mas quando ele se pôs de
pé e a deixou ali, sem olhar para trás, para fazer o que lhe
apetecesse com a sua oferta, ela não a atirou à água escura do
estreito nem mordeu a côdea em jeito de aceitação, mas ficou
sentada tal como ele a deixara, com o pão no meio das mãos e a
fitar a cabeça loura dele com uma expressão calculista nos olhos
semicerrados cujo significado Cadfael não conseguiu interpretar
mas que o intrigou e inquietou.
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