Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Folha de Rosto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
O EREMITA DA FLORESTA EYTON
Ellis Peters
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: The Hermit of Eyton Forest # 14
Tradução de Carla Mendonça Tradução portuguesa de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
The Hermit of Eyton Forest © Ellis Peters 1987
secretariado@europa-america.pt
Edição nº: 160709/7505 Outubro de 2000
Execução técnica: Gráfica Europam Lda.
Mira-Sintra — Mem Martins
1
Por muito sábio que fosse, esta foi uma das ocasiões em que o
Pai Abade Radulfus verificaria que as suas previsões estavam
totalmente erradas.
2
Era tido como certo por todos eles, ao que parecia, que Cadfael
se encontrava do lado deles e entregara-se de coração à
conspiração. Como poderia ser de outra forma? Aqui estava a prova
absoluta de que o rapaz não era nenhum assassino, prova que
podia ser colocada nas mãos de Hugh Beringar com confiança na
sua justiça, sem qualquer dúvida disso. Todavia, isso não poderia
ser feito sem expor Hyacinth ao mesmo perigo do qual ele tinha
fugido outrora, e mal podia ter esperança de conseguir escapar uma
segunda vez. Hugh era obrigado pela lei como outro homem
qualquer, e até mesmo a sua capacidade para olhar para outro lado
e fazer ouvidos de mercador não ajudaria Hyacinth se alguma vez
Bosiet tivesse notícias de onde ele estava e de quem o estava a
abrigar.
— Entre nós — disse Cadfael, apesar de um pouco duvidoso —
talvez consigamos tirar-te do condado e colocar-te em direção a
Gales, livre de perseguição...
— Não — disse Hyacinth firmemente. — Não fugirei. Vou me
esconder o quanto possível, mas não vou continuar a fugir. Era o
que eu pretendia ter feito quando me meti neste caminho, mas
mudei de ideia.
— Por quê? — exigiu Cadfael simplesmente.
— Por duas boas razões. Primeiro, porque Richard está perdido e
ele salvou-me a pele, trazendo-me a notícia de que me procuravam
e eu sou seu devedor até saber que ele está salvo, e de regresso
aonde deve estar. E segundo, porque eu quero a minha liberdade
aqui na Inglaterra, aqui em Shrewsbury, e pretendo arranjar trabalho
na cidade quando puder, com segurança, ganhar a vida e arranjar
mulher — olhou para cima para Eilmund com um brilho vivo e
desafiador nos seus olhos âmbar e sorriu. — Se a Annet me aceitar!
— É melhor pedires a minha opinião a esse respeito — disse
Eilmund, mas com tão bom humor que era óbvio que a ideia não lhe
era totalmente nova, nem seria necessariamente mal recebida.
— Eu o farei quando chegar a altura, mas não te ofereceria nem a
ti nem a ela o que sou e o que tenho agora. Por isso. deixa isso
esperar, mas não te esqueças — avisou o fauno, brilhando. — Mas
eu tenho de encontrar Richard, vou encontrá-lo! Isso está primeiro!
— O que podes fazer — perguntou Eilmund prático — mais do
que Hugh Beringar e todos os seus homens estão a fazer? E tu
próprio um homem caçado, com os cães no teu rastro! Mantém-te
quieto como um rapaz razoável e esconde a tua cabeça até a caça
de Bosiet lhe começar a custar mais do que o ódio que tem por ti,
como acontecerá por fim. Tem agora feudos em casa em que
pensar.
Porém, se Hyacinth era, através de padrões comuns, um rapaz
inteligente, era uma questão de conjectura. Sentou-se muito quieto,
naquele modo tenso e sugestivo que ele tinha, o qual prometia ação
iminente, o suave brilho do fogo de Annet brilhando nas suas faces
subtilmente lívidas e na sua testa, transformando o bronze em
dourado. E Annet, a seu lado no banco almofadado, junto à parede,
possuía algo de semelhante. A cara dela estava calma, mas os seus
olhos eram de um tom de safira vivo. Deixava que eles falassem
dela na sua presença e não sentia necessidade de acrescentar uma
palavra em seu favor, nem tão-pouco tocou o esbelto ombro de
Hyacinth para confirmar a sua posse. Quem quer que fosse que
tivesse dúvidas em relação às reivindicações de Annet sobre o
futuro, Annet não tinha nenhuma.
— Richard deixou-te assim que te entregou o aviso? — perguntou
Cadfael.
— Deixou. Hyacinth quis ir com ele até a orla do bosque — disse
Annet -. mas ele não aceitou isso. Não se moveria, a não ser que
Hyacinth se escondesse imediatamente, por isso prometemos. E ele
voltou a partir pelo mesmo caminho. E nós voltamos para aqui para
o pé do pai, como ele lhe contou, e não vimos mais ninguém ao
longo do caminho. Richard não teria ido para nenhum lugar perto de
Eaton, ou eu teria pensado que a avó dele teria ficado com ele. Mas
ele estava inclinado a voltar para a sua cama.
— Foi o que todos nós pensamos — admitiu Cadfael —, menos
Hugh Beringar. Mas ele foi lá hoje cedo e virou o local de pernas
para o ar, e o rapaz não está lá. Acho que John de Longwood e
metade da casa teriam dito se o tivessem visto por lá. A Dama
Dionísia é uma senhora formidável, mas Richard é o suserano de
Eaton, é a ele que eles têm de obedecer de futuro, não a ela. Se
eles não se tivessem atrevido a falar perante ela, tê-lo-iam feito
facilmente nas suas costas. Não, ele não está lá. Já passava havia
muito da hora do serviço das Vésperas. Mesmo que regressasse
agora, Cadfael chegaria demasiado tarde para as Completas, mas
mesmo assim fixou-se teimosamente em rever toda esta nova
situação na sua cabeça, procurando pela melhor solução a seguir,
onde parecia não restar mais nada para fazer do que esperar, e
continuar a evitar a caçada. Sentia-se satisfeito por Hyacinth não ser
nenhum assassino, pelo menos isso era um benefício, mas como
mantê-lo fora do alcance de Bosiet era outra questão.
— Por amor de Deus, rapaz — disse ele suspirando —, o que foi
que tu fizeste ao teu suserano, lá em Northamptonshire, para seres
tão amargamente odiado? Agrediste de fato o seu lacaio?
— Agredi — reconheceu Hyacinth com satisfação, e uma faísca
vermelha reminiscente ateou-se nos seus olhos. — Foi depois do
final da colheita e havia uma moça a recolher as espigas nos pobres
restos de um dos campos da propriedade. Não havia uma moça a
salvo se ele a apanhasse sozinha. Foi só por acaso que eu estava
perto. Ele tinha um bastão e desferiu-o sobre a minha cabeça
girando-o, quando eu o ataquei. Fiquei com umas quantas
contusões, mas deitei-o ao chão sobre as pedras debaixo duma
pequena porção de terra por semear, retirando-lhe as suas
faculdades mentais. Portanto, não havia nada que eu pudesse fazer
senão fugir. Não tinha nada para deixar, nem terra... Drogo
penhorara o meu pai dois anos antes, quando ele estava a morrer e
eu tinha tudo para fazer, os nossos campos e o trabalho da colheita
de Bosiet, e acabamos por ficar endividados. Estava atrás de nós
havia já algum tempo, dizia que eu estava sempre a incitar os seus
servos feudais contra ele... Bem, se o estava, era pelos seus
direitos. Existem leis para defender e escapar a salvo até mesmo
para os servos, mas eles significam pouco nos feudos de Bosiet. Ele
ter-me-ia morto por ter atacado o lacaio, teria mandado que eu fosse
enforcado, se eu não fosse tão lucrativo para ele. Era a
oportunidade pela qual esperava.
— De que modo eras tu lucrativo para ele? — perguntou Cadfael.
— Eu tinha jeito para trabalho de curtumes, cintos, couraças,
bolsas e esse gênero de trabalho. Quando ele me retirou as terras,
ofereceu-se para me deixar a pequena quinta, se eu me
comprometesse a entregar-lhe todo o meu trabalho para o meu
sustento. Eu não tive escolha, era ainda seu servo. Mas comecei a
fazer estampagem e a dourar. Uma vez, quis obter um favor do
conde e mandou-me fazer uma capa para um livro para lhe dar
como presente. E depois o Prior dos cânones Agostinhos em
Huntingdon viu-o e encomendou uma oferta para o grande códice
que lhes pertencia, e o subprior de Cluny em Northampton quis o
seu melhor missal reencadernado e, assim, continuou. E eles
pagavam bem, mas eu não ficava com nada. Drogo saiu-se bem às
minhas custas. Essa é a outra razão pela qual ele me queria de
volta vivo. E também o quererá o seu filho Aymer.
— Se tiveres um dom como esse nas pontas dos teus dedos —
disse Eilmund aprovador —, podes seguir para onde quiseres,
assim que estiveres livre destes Bosiets. O nosso abade pode muito
bem arranjar-te trabalho e qualquer mercador da cidade ficará
satisfeito por te ter a trabalhar para si.
— Onde e como é que tu conheceste o Cuthred? — perguntou
Cadfael, curiosamente.
— Foi no priorado de Cluniac em Northampton. Eu dormi lá uma
noite, mas não me atrevi a entrar no enclave, estavam lá um ou dois
que me conheciam. Arranjei comida sentando-me com pedintes no
portão e quando me preparava para partir antes da madrugada.
Cuthred também se encontrava de partida, tendo passado a noite no
salão dos hóspedes — um súbito sorriso sombrio repuxou os cantos
dos lábios eloquentes de Hyacinth. Manteve os seus espantosos
olhos ocultos sob as suas pestanas arqueadas e douradas. —
Propôs que viajássemos juntos. Por caridade, certamente. Ou para
que eu não tivesse de roubar para comer, e afundar-me ainda mais
do que anteriormente numa situação pior.
Igualmente de modo súbito, olhou para cima, desvendando todo o
brilho dos seus olhos, fixando-os total e solenemente na cara de
Eilmund. O sorriso desaparecera.
— Está na altura de saberes o pior a meu respeito, não quero
mentiras entre nós. Cheguei aqui sem dever nada ao mundo e
pronto para qualquer dano, e poderia ser um rufião e um
vagabundo, e tenho sido um ladrão por necessidade. Antes que me
acolhas por mais uma hora, deves saber que motivos tens para
pensar melhor acerca disso. A Annet — disse ele, a sua voz
baixando e suavizando-se ao dizer o seu nome — já sabe aquilo
que também tu tens de saber. Tens esse direito. Contei-lhe a
verdade na noite em que o Irmão Cadfael esteve aqui para te
colocar no lugar o osso deslocado.
Cadfael lembrava-se da figura estática sentada pacientemente no
exterior da cabana, o sussurro urgente: “Tenho de falar contigo!”. E
Annet a sair para a escuridão e fechando a porta atrás de si.
— Fui eu — disse Hyacinth com uma deliberação de aço — que
obstruí o riacho com arbustos, de modo que as tuas jovens árvores
ficassem inundadas. Fui eu que escavei por baixo da ladeira e fiz a
ponte sobre o fosso, de modo que o veado entrasse na pequena
mata. Fui eu que mudei uma das paliçadas da cerca de Eaton, para
deixar sair as ovelhas em direção aos rebentos de freixo. Recebi as
minhas ordens da Dama Dionísia para ser um tormento constante
para a abadia, até eles lhe darem de volta o seu neto. Foi por isso
que ela instalou o Cuthred no seu eremitério, para me colocar lá
como seu criado. E, na altura, eu não sabia nada acerca de nenhum
de vocês e nem queria saber, e não ia discutir com o que me
proporcionava uma vida confortável e um refúgio seguro até eu
poder fazer melhor. Foi o meu ato, o que ainda aumenta mais a
pena, que poderia ter provocado o pior e a árvore caiu sobre ti e
pregou-te no riacho, por eu ter feito isso tu ficaste a coxear e
aprisionado aqui, apesar daquela escorregadela ter sido
espontânea, eu não lhe voltei a tocar. Portanto, agora sabes —
disse Hyacinth —, e se achares necessário arrancar-me a pele por
causa disso, eu não levantarei uma mão para o impedir e se me
expulsares depois disso, eu irei — ergueu uma mão na direção da
mão de Annet e acrescentou simplesmente —, mas não para longe!
Houve uma longa pausa enquanto os dois ficaram sentados
olhando-o fixamente, intensa e silenciosamente e Annet observava-
os não menos apreensivamente, todos eles retendo o seu próprio
julgamento. Ninguém se insurgira contra ele, ninguém interrompera
esta confissão meio desafiadora. A verdade de Hyacinth foi usada
como um punhal e a sua humildade rasou muito de perto a
arrogância. Se ele estava envergonhado, não o mostrava na sua
cara. Contudo, podia não ter sido fácil despir-se assim com a
consideração e generosidade que o pai e a filha lhe tinham
mostrado. Se ele não tivesse falado, obviamente Annet não teria
dito uma palavra. E ele não tinha suplicado, nem tentara nenhuma
atenuante. Estava preparado para receber o que era devido sem
queixas. Era de se duvidar se algum confessor, por muito eloquente
ou terrível, conseguisse alguma vez fazer com que esta criatura
orgulhosa se penitenciasse mais do que isto.
Eilmund estremeceu, colocando os seus largos ombros mais
descontraidamente contra a parede e exalou um grande e
tempestuoso fôlego.
— Bem, se fizeste com que a árvore caísse sobre mim, também a
içaste de cima de mim. E se pensas que eu entregaria de volta um
servo fugitivo à escravatura, por ele me ter pregado algumas
partidas, não estás bem familiarizado com o meu tipo simples. Acho
que o susto que te preguei naquele dia foi todo o castigo de que tu
precisavas. E desde aí não me fizeste mais mal nenhum, pois de
tudo o que eu ouvi dizer tem havido sossego nos bosques desde
esse dia. Duvido que a senhora esteja satisfeita com o que obteve.
Mostra a tua sensatez e fica onde estás.
— Eu afirmei — disse Annet, sorrindo com confiança — que não
retaliarias. Eu nunca disse uma palavra, eu sabia que ele haveria de
falar por si. E o Irmão Cadfael sabe agora que Hyacinth não é
nenhum assassino, bem como o pior a seu respeito. Não há aqui
ninguém que o vá trair.
Não, nem um! Mas Cadfael manteve-se sentado de certo modo
ansiosamente, pensando no melhor que se poderia fazer agora.
Certamente que a traição seria impossível, mas a caça continuaria e
podia bem voltar a revirar todos estes bosques e entretanto, Hugh
na sua natural concentração motivada por esta busca, podia estar a
perder toda a possibilidade de encontrar o verdadeiro assassino. Até
mesmo Drogo Bosiet tinha direito à sua justiça, contudo ele infringia
os direitos de outros. Ocultando de Hugh a garantia e a prova da
inocência de Hyacinth, podia estar a atrasar a nova avaliação que
colocaria em movimento a perseguição do culpado.
— Confias em mim e deixas-me contar ao Hugh Beringar o que
me contaste? Permite-me ausentar-me — insistiu Cadfael
apressadamente, vendo as caras deles endurecidas de
consternação —, para lidar com ele privadamente...
— Não! — Annet colocou a sua mão possessivamente sob o
ombro de Hyacinth, ardendo como um fogo agitado. — Não, não
pode entregar! Confiamos em ti, não pode nos abandonar.
— Não, não, não é isso! Eu conheço bem o Hugh, ele não
entregaria de boa vontade um servo feudal para ser mal tratado, ele
é a favor da justiça até mesmo antes da lei. Deixa-me contar-lhe
apenas que o Hyacinth está inocente, e mostrar-lhe a prova. Não
preciso de dizer nada acerca de como é que o sei ou onde é que ele
está, o Hugh acreditará em mim. Então ele poderá suspender a sua
busca e deixar-te em paz, até ser seguro tu apareceres e falares
abertamente.
— Não! — gritou Hyacinth. de pé num movimento selvagem e
ligeiro, os seus olhos duas chamas amarelas de alarme e rejeição.
— Nem uma palavra dirigida a ele, nem uma palavra! Se
soubéssemos que iria vê-lo, nunca teríamos contado. Ele é o xerife,
ele deve tomar o lado de Bosiet, ele tem feudos, ele tem servos
seus. acha que ele alguma vez se colocaria do meu lado contra o
meu suserano legal? Eu seria arrastado de volta até os pés de
Aymer e enterrado vivo na sua prisão.
Cadfael virou-se para Eilmund em busca de ajuda.
— -Juro-te que consigo levantar esta suspeita do rapaz, falando
com o Hugh. Ele acreditará na minha palavra e se afastará da caça,
retirará seus homens ou os enviará para outro lado qualquer. Ainda
tem o Richard para encontrar; Eilmund, tu conheces o Hugh
Beringar para não duvidar da sua justiça.
Mas não. Eilmund não o conhecia, não como Cadfael o conhecia.
O couteiro abanava a cabeça duvidosamente. Um xerife é um xerife,
comprometido com a lei e a lei é rígida e com contrapeso, ao todo
contra o camponês e o servo e o homem sem terra.
— Ele é um homem decente, justo, suficientemente seguro —
disse Eilmund —, mas eu não me atrevo a arriscar a vida deste
rapaz com nenhum oficial do rei. Não, deixa-nos ficar como
estamos, Cadfael. Não digas nada a nenhum homem, não até o
Bosiet chegar e partir.
Estavam todos unidos contra ele. Fez o seu melhor,
argumentando calmamente como seria bom saber que a caça não
continuaria contra Hyacinth, que a sua inocência, uma vez
comunicada em privado a Hugh, libertaria as forças da lei para
procurar noutro lugar o assassino de Drogo, e também permitir-lhes
aumentar a sua busca por Richard mais exaustivamente, e com
mais recursos, através das florestas onde a criança tinha
desaparecido. Porém, eles também tinham os seus argumentos e
estes tinham fundamentos.
— Se dissesse ao xerife, mesmo que em segredo — disse Annet
—, e se ele acreditasse em si, ainda teria de lidar com o Bosiet. O
homem do seu pai dirá que é certo e sabido que o fugitivo está em
alguma parte por aqui escondido, seja assassino ou não. Utilizará
cães, se o xerife retirar os seus homens. Não, não diga nada a
ninguém, ainda não. Espere até eles desistirem e irem para casa.
Então avançaremos. Prometa! Prometa-nos silêncio até lá!
Não havia nada a fazer acerca disso. Ele prometeu. Eles tinham
confiado nele e contra a sua proibição absoluta, ele não poderia
escapar. Suspirou e prometeu.
Era muito tarde quando por fim se levantou, dada a sua palavra,
para iniciar a cavalgada noturna de regresso à abadia. Também
fizera uma promessa a Hugh, nunca imaginando quão difícil seria
mantê-la. Dissera que se tivesse alguma coisa para contar, Hugh o
saberia antes de qualquer outro. Um arranjo de palavras subtil,
embora sincero, através do qual uma mente tortuosa poderia
encontrar várias fugas; mas o que ele dissera fora tão óbvio para
Hugh como para Cadfael. E agora ele nada podia fazer. Ainda não,
não até Aymer Bosiet se tornar impaciente, até contar os custos da
sua vingança e achasse melhor ir para casa gozar, em vez disso, a
sua nova herança.
Na entrada, virou-se para perguntar a Hyacinth uma última
questão, um pensamento repentino.
— E o Cuthred? Com vocês os dois a viverem tão perto... ele
participou em todos os estragos que fizeste na floresta de Eilmund?
Hyacinth olhou fixa e gravemente para ele, com uma surpresa
moderada, os seus olhos âmbar abertos e cândidos.
— Como poderia ele? — disse simplesmente. — Ele nunca sai do
seu próprio recinto.
Aymer Bosiet entrou a cavalo no grande pátio da abadia, por volta
do meio-dia do dia seguinte, com um jovem lacaio atrás de si. O
Irmão Denis, o hospitalário, tinha ordens para o trazer à presença do
Abade Radulfus assim que chegasse, pois o abade estava pouco
disposto a delegar em qualquer outro a tarefa de lhe dar as notícias
da morte do seu pai. Isto foi conseguido com uma delicadeza para a
qual, ao que parecia, não havia necessidade. O filho despojado
sentou-se silenciosamente revolvendo as notícias e todas as suas
implicações a longo prazo, e, tendo aparentemente digerido e
chegado a termo com elas. Expressou o seu pesar filial muito
convenientemente, mas com a sua mente ainda empenhada em
questões laterais; uma mente astutamente calculista, por detrás de
uma cara menos poderosa e brutal que a do seu pai, mas
mostrando pouca evidência de sofrimento. Franziu a testa acerca do
acontecimento, pois envolvia deveres problemáticos, tais como
comissionar um caixão, carroça e ajuda extra para a viagem de
regresso a casa, e fazendo a melhor utilização possível do seu
tempo aqui. Radulfus já mandara Martin Bellecote, o carpinteiro-
mestre da cidade, fazer um caixão de interior simples para o corpo,
o qual ainda não estava coberto, visto que sem dúvida, Aymer
haveria de querer olhar para a cara do seu pai por uma última vez e
despedir-se dele.
— Ele não encontrou o nosso servo fugitivo? — perguntou,
categoricamente e com intenção astuta, o filho despojado depois de
dar voltas ao assunto na sua mente.
— Não — disse Radulfus. e se estava chocado conteve-se para
reprimir o choque. — Foi sugerido que o jovem rapaz estaria na
vizinhança, mas sem qualquer certeza que o jovem em questão
fosse realmente o que era perseguido. E eu agora acredito que
ninguém sabe para onde ele foi.
— O assassino do meu pai está a ser perseguido?
— Muito arduamente, com todos os homens do xerife.
— O meu servo também, creio eu. Quer seja quer não — disse
Aymer severamente —, os dois acabam por ser o mesmo. A lei tem
o dever de fazer tudo o que puder para recuperar minha propriedade
e me entregar. O velhaco só dá chatices, mas é valioso. Por
nenhum preço, eu estaria disposto a libertá-lo — cuspiu as palavras
com um estalar de dentes grandes e fortes. Era igualmente alto e
com uma estrutura óssea semelhante à do seu pai, mas possuía
menos carne e apesar da sua cara ser mais magra, tinha os
mesmos olhos frívolos de uma cor indeterminada e opaca, que
aparentavam uma superfície sem profundidade. Talvez uns trinta
anos de idade e agradavelmente consciente do seu novo estatuto. A
satisfação da propriedade já começara a vibrar debaixo da pesada
tonalidade da sua voz. Já falava na “minha propriedade”. Esse era
um aspecto da sua dor que certamente não lhe escapara.
— Vou querer falar com o xerife acerca deste rapaz que se diz
chamar Hyacinth. Se ele fugiu, isso não faz com que seja ainda
mais provável que seja ele, de fato, o Brand? E que ele teve a ver
com a morte do meu pai? Existe já uma grande dívida contra ele. Eu
não tenciono deixar tal dívida passar sem ser paga.
— Isso é uma questão para a lei secular, não para mim — disse
Radulfus com um civismo frio. — Não existem provas de quem
matou o suserano Drogo, a questão encontra-se em aberto. Mas o
homem está a ser procurado. Se quiser me acompanhar, levo-o até
a capela onde o seu pai repousa.
Aymer permaneceu ao lado do caixão aberto com o seu interior
drapeado e a luz das velas altas, que ardiam à cabeça e aos pés de
Drogo, não mostravam grandes alterações na cara do seu filho. Ele
olhou para baixo com as sobrancelhas franzidas, mas era o franzir
de pensamentos atarefados, em vez de pesar ou raiva perante tal
morte.
— Sinto amargamente — disse o abade — que um hóspede na
nossa casa chegue a um fim tão maléfico. Mandamos rezar missas
pela sua alma, mas outras emendas estão fora do meu âmbito.
Espero que ainda possamos ver juntos a justiça a ser feita.
— Certamente! — concordou Aymer, mas tão ausente, que era
óbvio que a sua cabeça estava a pensar noutras coisas. — Não
tenho outra opção senão levá-lo para casa para o funeral. Mas não
posso ir ainda. Esta busca não pode ser abandonada tão depressa.
Tenho de ir até a cidade esta tarde e ver esse carpinteiro-mestre,
mandá-lo fazer um caixão exterior, forrá-lo com chumbo e selá-lo.
Uma pena, bem podia ser enterrado aqui, mas os homens da nossa
casa estão todos enterrados em Bosiet. A minha mãe não ficaria
satisfeita de outro modo.
Disse-o com uma nota de humilhação nas suas meditações, mas
devido à necessidade de transportar para casa um cadáver, ele
podia ficar por aqui durante mais alguns dias, para continuar a sua
caça ao servo fugitivo. Mesmo como as coisas estavam, ele
pretendia aproveitar o máximo do seu tempo e Radulfus não podia
deixar de sentir que ele se queria vingar mais do servo, do que do
assassino do seu pai.
Por acaso, Cadfael atravessava o pátio quando o recém-chegado
voltou a montar o cavalo ao princípio da tarde. Era o seu primeiro
vislumbre do filho de Drogo e Cadfael parou e colocou-se de lado
para o estudar com interesse. A sua identidade nunca esteve em
questão, pois a semelhança estava lá, apesar de existir algo de
temperado neste rapaz mais novo. Os olhos curiosamente
superficiais, tão vilmente diminuídos pela falta de sombra e de forma
que as órbitas covas fornecem, tinham a mesma absoluta
malevolência, e a forma como tratava o seu cavalo enquanto
montava era de longe mais delicada do que os seus modos em
relação ao seu lacaio. A mão que segurava o seu estribo foi
afastada para o lado pelo cabo do seu chicote assim que se sentou
na sela e Warin recuou do golpe tão subitamente, que o cavalo,
assustando-se, recuou sob o pavimento de pedras, atirando a sua
cabeça e resfolegando. O cavaleiro agitou o chicote sobre os
ombros do lacaio tão prontamente e com tão pouca raiva ou
desprezo aparente, que era óbvio que este era o pagamento comum
dos seus procedimentos aos seus subalternos. Levou consigo
apenas o jovem lacaio para a cidade, ele próprio montando o cavalo
do seu pai, o qual estava descansado e ansioso por exercício. Sem
dúvida, Warin estava demasiado satisfeito por ser deixado para trás,
ficando em paz durante umas quantas horas.
Cadfael alcançou o lacaio e acompanhou a sua passada
mantendo-se a seu lado, enquanto este regressava aos estábulos.
Warin olhou à sua volta, mostrando-lhe uma nódoa negra que se
desvanecia rapidamente, mas que se mantinha amarela como
pergaminho velho, e uma boca que ainda se alongava pela marca
da cicatriz num dos cantos.
— Não te vi durante estes dois dias — disse Cadfael, observando
os vestígios da violência antiga e alerta face a novos vestígios. —
Vem comigo até o jardim das ervas e deixa-me revestir novamente
esse corte. Por certo, ficará longe uma hora ou duas, suponho, e tu
poderás respirar facilmente. E te faria bem outro tratamento, apesar
de eu ver que este está agora limpo.
Warin hesitou apenas por um momento.
— Eles levaram os dois cavalos que estavam repousados e
deixaram-me os outros para que eu tratasse deles. Mas podem
esperar um pouco — e manteve-se de livre vontade ao lado de
Cadfael. A sua magra estatura um pouco murcha antes do tempo,
parecendo expandir-se na ausência do seu suserano. Na agradável
frescura aromática da oficina, debaixo das ervas que ondulavam
ligeiramente por cima da sua cabeça, sentou-se aliviado e satisfeito
por deixar a sua ferida ser lavada e untada, não mostrando pressa
nenhuma em voltar para os seus cavalos, até mesmo quando
Cadfael já tratara dele.
— Ele ainda está mais ansioso do que o velho estava por
perseguir o Brand — disse ele, abanando uma cabeça impotente
mas solidária com a sorte do seu antigo vizinho. — Dividido de duas
maneiras, entre querer enforcá-lo e querer matá-lo de trabalhar por
ganância, e não é o fato do Brand ter morto ou não o velho
suserano que irá determinar onde param as modas, pois não houve
ali também grande perda de amor. Não havia muito amor em todo
aquele lar para ser ganho ou perdido, e sim indivíduos que se
odeiam uns aos outros, todos eles.
— Existem mais? — perguntou Cadfael interessado. — Drogo
deixou uma viúva?
— Uma pobre senhora pálida, toda a sua essência esgotada —
respondeu Warin -. mas melhor nascida do que os Bosiet e com
uma família poderosa, por isso, têm de a usar melhor do que usam
todos os outros. E Aymer tem um irmão mais novo. Não tão vistoso,
nem tão violento, mas mais perspicaz e mais capaz de desvios e
rodeios. Estes são todos eles, mas já chega.
— Nenhum deles é casado?
— O Aymer já teve uma mulher, mas ela era uma coisinha doente
e morreu jovem. Existe uma herdeira não muito longe de Bosiet, por
quem ambos agora anseiam, apesar de na verdade ansiarem as
suas terras. E se Aymer é o herdeiro, Roger é o que mais agradável
se mostra. Não que dure muito, quando ele consegue levar a dele
avante.
Parecia uma pobre perspectiva para a moça qualquer dos dois
que levasse a melhor na competição, mas também mostrava uma
razão possível para que Aymer não vadiasse por aqui durante
demasiado tempo, ou poderia perder as suas vantagens em casa.
Cadfael sentiu-se encorajado. A ausência de uma honra recém-
herdada até podia ser perigosa se houvesse um irmão mais novo,
mais esperto e traiçoeiro deixado para trás, para fazer um uso
premeditado das suas oportunidades. Aymer teria isso em mente,
até mesmo quando concedesse de má vontade em desistir da sua
perseguição vingativa a Hyacinth. Cadfael ainda não conseguia
pensar no rapaz como Brand, o nome que ele escolhera para si
próprio encaixava muito melhor.
— Às vezes penso — disse Warin, recordando-se
inesperadamente da mesma pessoa — para onde Brand terá
realmente ido? Sorte a dele que nós lhe demos alguma distância,
não que o meu senhor o pretendesse!, pois a princípio eles
pensaram que um homem com a perícia que ele possuía nas pontas
dos dedos se dirigiria certamente para Londres, e nós
desperdiçamos uma semana ou mais a revistar todas as estradas
para sul. Já ultrapassáramos o Tamisa, quando um dos seus
homens veio atrás de nós, dizendo que Brand fora visto em
Northampton. Se ele tinha partido em direção a norte, Drogo achava
que ele iria continuar, e provavelmente virar para oeste à medida
que prosseguia e dirigir-se para Gales. Será que ele chegou lá?
Nem mesmo Aymer o perseguira para além da fronteira.
— E tu não voltaste a avistá-lo ao longo do percurso? —
perguntou Cadfael.
— Não, nem um rastro, mas nós estamos longe de terras onde
alguém o pudesse conhecer e nem toda a gente se quer meter em
tal assunto. E certamente ele terá adotado outro nome — Warin
levantou-se, refrescado mas relutante por ter de voltar para os seus
deveres. — Espero que possa arranjar um bom lugar.
Independentemente daquilo que os Bosiet dizem, ele era um rapaz
decente.
Uma vez convencida, foi ela que fez os planos. Ela conhecia a
casa e os criados, e enquanto não houvesse quaisquer dúvidas
acerca da sua subserviência, ela tinha entrada em todo o lado e
podia dar ordens aos lacaios e às criadas como lhe apetecesse.
— Será melhor esperar até depois de eles terem trazido o teu
jantar e de terem levado, de novo, o prato. Levará então muito mais
tempo antes que alguém regresse. Existe um portão nas traseiras
atrás da paliçada, que sai do estábulo para o exterior na direção do
cercado para os cavalos. Eu podia dizer ao Jehan para colocar o teu
pônei aqui fora para pastar, ele tem estado fechado há demasiado
tempo para poder estar a gostar disso. Existem ali alguns arbustos
por trás do estábulo, perto do postigo. Esconderei aí tua sela e
arreios, antes do meio-dia. Consigo tirar-te daqui pela galeria,
enquanto estão todos ocupados no salão e nas cozinhas.
— Mas então o teu pai estará em casa — protestou Richard
duvidosamente.
— Depois de jantar, o meu pai estará a ressonar. Se ele vier até
aqui para te espreitar, será antes de se sentar à mesa para se
assegurar que estás seguro na tua gaiola. Melhor para mim
também, eu tive de passar aqui a minha manhã contigo
galantemente, e quem irá pensar que eu mudei de ideia depois
disso? Até poderá ser engraçado — disse Hiltrude, tornando-se
mais animada ao contemplar a sua própria velhacaria benevolente
— quando eles te forem levar o jantar e encontrarem a janela ainda
fechada e trancada, e o pássaro fugido.
— Mas então toda a gente será perseguida, amaldiçoada e
culpabilizada — disse Richard — porque alguém deve ter tirado o
ferrolho.
— Então todos o negaremos e quem quer que pareça ser mais
suspeito, eu o protegerei dizendo que ele nunca saiu da minha vista
e nunca tocou na porta desde que o teu jantar entrou. Se chegar ao
pior — disse Hiltrude, com uma resolução pouco comum —, direi
que me devo ter esquecido de fechar o ferrolho depois de te ter
deixado pela última vez. O que é que ele pode fazer? Ele vai
continuar a pensar que continuas aprisionado ao casamento, para
onde quer que fujas. Melhor ainda — gritou ela, batendo as mãos —
serei eu a trazer-te o jantar, esperarei contigo e trarei para fora o
prato, portanto mais ninguém pode ser culpado por ter deixado a
porta destrancada. Uma esposa deve começar imediatamente a
servir o seu marido, dará bom aspecto.
— Não tens medo do teu pai? — aventurou-se Richard a dizer, de
olhos abertos com respeito e até admiração, mas relutante em
deixá-la suportar uma parte tão perigosa.
— Tenho, tinha! Agora aconteça o que acontecer, valerá a pena o
sofrimento. Tenho de ir, Richard, enquanto não há ninguém no
estábulo. Espera e confia em mim, e mantém o teu coração alegre.
Alegraste o meu!
Ela já estava junto à porta quando Richard, seguindo
pensativamente a sua passagem leve e flutuante, e tão diferente da
criatura submissa e amarga cuja mão fria ele segurara durante a
noite, lhe disse impulsivamente: — Hiltrude, acho que afinal posso
fazer coisas piores do que casar contigo — e acrescentou, com uma
pressa pouco decente —, mas por enquanto ainda não!
Ela fez tudo o que lhe prometera. Trouxe-lhe o jantar, sentou-se
com ele e manteve uma conversa inconstante e desajeitada
enquanto ele o comia, o tipo de conversa que se podia esperar de
um estranho ou de uma criança, e uma que lhe fora forçada e
relutantemente aceito, por isso, por muito ressentido que ele
pudesse estar, não havia qualquer objetivo em continuar a manter
disparidades com ele. Não tanto por maldade, mas porque tinha
fome e estava ocupado a comer, Richard respondeu com grunhidos,
em vez de palavras. Tivesse estado alguém a ouvir, teria certamente
achado que a troca de palavras era deprimentemente apropriada.
Hiltrude transportou o prato de volta para a cozinha e voltou,
assim que se certificou de que toda a gente na casa estava
ocupada. A estreita escada de madeira que descia para a galeria
era convenientemente encoberta desde a passagem que conduzia à
cozinha, e eles não tiveram qualquer problema em se escapulirem
apressadamente por ela abaixo, emergindo debaixo do chão através
da longa entrada onde Hyacinth se abrigara e, a partir daí, era
apenas uma corrida perigosa ao longo do campo aberto até o
postigo na cerca, meio escondido pelo tamanho do estábulo. Ela
deixara os arreios escondidos atrás dos arbustos, a sela, as rédeas
e tudo o resto, e o pônei veio ter com ele alegremente. Perto da
parede traseira do estábulo, ele selou o pônei tremendo com a
pressa e conduziu-o para fora do cercado dos cavalos na direção do
rio, onde a cintura de árvores oferecia proteção, antes de se atrever
a apertar a cilha e a montar. Agora, se tudo corresse bem, teria até
o cair da noite, antes que pudessem dar pela sua falta.
Hiltrude voltou a subir as escadas da galeria e ocupou-se em
passar a tarde irrepreensivelmente entre as mulheres da casa, à
vista de todos e ocupada com os afazeres adequados à senhora do
feudo. Ela colocara o ferrolho na porta de Richard, já que seria óbvio
que se esta tivesse sido deixada inadvertidamente aberta e o
prisioneiro tivesse tirado vantagem do fato, até mesmo um rapaz de
dez anos teria o bom senso de fazer correr novamente o ferrolho e
preservar as aparências. Quando a fuga fosse descoberta, ela
poderia muito bem protestar que não se lembrava de se ter
esquecido de o fechar apesar de, por fim, admitir que o deveria ter
feito. Por essa altura, se tudo corresse bem, Richard estaria de volta
ao enclave da abadia, e começaria a pensar com algum atraso em
como se apresentaria como uma vítima inocente, enterrando as
recordações do culpado ocioso que saíra sem permissão e causara
todo este tumulto e ansiedade. Bem, isso eram assuntos de
Richard. Ela cumprira a sua parte.
Foi uma pena que a meio da tarde o servo que recolhera o pônei
de Richard no interior do cercado dos cavalos tivesse de ir buscar
outro dos animais para pastar no exterior, já que reparara que o
animal coxeava ligeiramente. Mal pôde deixar de notar que o pônei
desaparecera. Pensando na primeira e óbvia, se não demasiado
provável possibilidade, ele encontrava-se no meio do pátio a gritar
que tinham estado ladrões no cercado dos cavalos, antes de lhe ter
ocorrido regressar e procurar no estábulo por uma sela e arreios.
Isso deu uma outra luz ao desaparecimento. E além disso, por que
levar o animal menos valioso à vista? E por que se arriscar a roubá-
lo em plena luz do dia? As noites escuras eram mais favoráveis.
Assim, chegou ao salão anunciando ruidosamente e sem fôlego
que o pônei do jovem noivo desaparecera, selado e tudo, e que era
melhor que o seu suserano fosse ver se o rapaz ainda estava
seguro sob fechadura e chave. Apressadamente, o próprio Fulke
dirigiu-se à sua procura, dificilmente acreditando nas novidades, e
encontrou a porta firmemente trancada como anteriormente, mas o
interior do quarto vazio. Soltou um berro de raiva que fez Hiltrude
estremecer sobre o bastidor do seu bordado, mas manteve os olhos
baixos sobre o seu trabalho e prosseguiu com recato afetado,
cosendo até a tempestade ter estourado na entrada e aumentado
até encher o salão.
— Qual de vocês é que foi? Quem foi o último a servi-lo? Qual
dos tolos entre vós, pois todos vós sois tolos, é que deixou a porta
aberta? Ou será que um de vocês o soltou deliberadamente, apesar
das minhas ordens? Ajustarei contas com o traidor miserável, quem
quer que ele seja. Falem! Quem é que levou o jantar ao diabrete
escorregadio?
Os homens afastaram-se do seu alcance imediato, balbuciando
todos a sua própria inocência. As criadas tremeram e olharam de
lado umas para as outras, mas hesitaram em dizer uma palavra
contra a sua senhora. Hiltrude, mantendo a sua coragem com
ambas as mãos e aumentando em firmeza agora que era posta à
prova, colocou o seu trabalho de lado e disse corajosamente, ainda
não soando defensiva: — Mas, Pai, tu sabes que eu própria o fiz. Tu
viste-me no fim trazer o prato quando ele terminou. Seguramente
que tranquei novamente a porta, tenho certeza que a tranquei. Mais
ninguém esteve lá dentro com ele, desde então, a não ser que o
senhor o tenha visitado. Quem mais o faria, a não ser que tivesse
sido enviado? E eu não enviei ninguém.
— Tem assim tanta certeza, senhora? — rugiu Fulke. — A seguir,
vai dizer que o rapaz não fugiu de todo, mas que está lá sentado
onde deveria estar. Se foi a última a lá entrar, então é a culpada por
o ter deixado fugir e ter dado corda aos sapatos. Deve ter deixado a
porta destrancada, senão como teria ele fugido? Como é que
pudeste ter sido tão tola?
— Eu não a deixei destrancada — repetiu ela, mas agora com
menos certeza. — Nem sequer sei se me esqueci — concedeu ela
defensivamente —, apesar de achar que não o fiz, mas se o fiz, isso
tem agora alguma importância? Ele não pode alterar o que está
feito, nem o pode mais ninguém. Não vejo por que tanta agitação.
— Tu não vês, tu não vês, tu não vês nada para além da ponta do
teu nariz, senhora! E ele a ir a correr de volta para o seu abade, com
as histórias que ele pode contar?
— Mas ele teria de regressar para a luz do dia mais cedo ou mais
tarde — disse ela humildemente. — Não o podia manter fechado
para sempre.
— De fato teria, todos sabemos isso, mas ainda não, não até
termos a sua marca, não, não a sua marca pois ele sabe assinar o
seu nome, o que é ainda melhor!, nos acordos de casamento e fazê-
lo ver que bem pode encaixar a sua história na nossa e aceitar o
que está feito. Mais uns dias e tudo podia ter sido feito à nossa
maneira, da maneira adequada. Mas eu não o vou deixar escapar
sem o perseguir — jurou Fulke vingativamente e virou-se para rugir
para os seus criados petrificados — Selem o meu cavalo e
despachem-se com isso! Eu vou atrás dele. Ele vai diretamente para
a abadia e, certamente, ficará bem afastado de Eaton. Ainda vou
trazê-lo pelas orelhas!
Em plena luz do dia, Richard não se atreveu a tomar a estrada,
mesmo dando uma grande volta à aldeia. Por aí. poderia ter
aumentado a velocidade, mas podia atrair facilmente a atenção dos
vassalos ou de rendeiros, que serviriam os propósitos de Astley
pelos seus próprios motivos, e o arrastariam de volta para o seu
cativeiro.
Além disso, a estrada o levaria perto demais de Eaton. Manteve-
se perto da cintura do bosque que se estendia em direção a oeste
aproximadamente meio quilômetro acima do rio, estreitando-se ao
longo do curso do rio até não ser mais do que um cinto de carvalhos
solitários e espaçados que ladeavam a água. Para lá destes, prados
de água esmeralda enchiam uma grande curva do Severn, aberta e
sem árvores. Aí manteve-se suficientemente longe no interior, de
forma a ter a proteção dos poucos arbustos que cresciam ao longo
dos promontórios de terra por cultivar dos campos de Leighton. Rio
acima, para onde ele se dirigia, o vale alargava-se num grande
planalto verde de prados inundados, apenas com algumas árvores
isoladas nos pontos mais altos, mas a margem norte por onde ele
viajava erguia-se mais um quilômetro para o interior do baixo cume
da floresta de Eyton, onde ele se podia esconder sob a sua densa
cobertura, durante mais de metade do percurso até Wroxeter.
Significaria ter de ir mais devagar, mas não era a perseguição que
ele temia então, era o ser reconhecido e interceptado pelo caminho.
Teria de evitar Wroxeter a todo o custo, e o único caminho que ele
conhecia era atravessar a vau e naquele lugar o Severn, perto da
aldeia e longe das vistas do feudo, para alcançar a estrada do lado
sul e depois cavalgar a toda a pressa em direção à cidade.
Apressou-se mais rapidamente na floresta, onde a sua
familiaridade com a terra o fizera apanhar um atalho por entre
caminhos e pagou por isso com uma queda, quando o seu pônei
pisou na abertura de uma toca de texugo, mas caiu com leveza
suficiente na espessa almofada de folhas e escapou apenas com
algumas contusões e o pônei, assustado e enervado mas dócil,
voltou prontamente assim que o susto inicial passou. Depois disso,
lembrou-se que a pressa não era necessariamente outra palavra
para velocidade e tomou mais cuidado até chegar aos caminhos
mais abertos. Richard não tinha pensado muito na fuga, mas partira
decidido em regressar à abadia e ficar por lá em paz, quaisquer que
fossem as repreensões e os castigos que o aguardassem, assim
que toda a ansiedade da sua ausência fosse esquecida. Sabia o
suficiente acerca das pessoas crescidas, por muito diferentes que
pudessem parecer sob todos os outros aspectos, para compreender
que todas elas partilhavam o mesmo instinto quando uma criança a
seu cargo era recuperada do perigo; abraçavam-na primeiro e, em
seguida, davam-lhe uma pancada na cabeça com os nós dos dedos.
Se, de fato, a pancada não surgisse primeiro! Ele não se importaria
com isso. Agora que fora violentamente arrastado da sala de aula, e
afastado do Irmão Paul, dos seus companheiros e até mesmo da
cara temerosa do Pai Abade, tudo o que queria era regressar para
eles, de sentir a segurança das paredes da abadia e até mesmo o
horário seguro do dia monástico, enrolado à sua volta como uma
capa quente. Ele podia, se tivesse pensado nisso, ter cavalgado até
a azenha perto do rio em Eyton ou até a cabana do couteiro ou a
qualquer outra habitação destes terrenos pertencentes à abadia, e
seria recebido num abrigo seguro, mas essa possibilidade nunca lhe
passou pela cabeça. Dirigiu-se para a abadia como um pássaro
para o seu ninho. Nesse momento, não possuía outro lar apesar de
ser suserano de Eaton.
Uma vez fora da floresta, havia um caminho bom e aberto quase
até o vau, que ficava do lado sul da aldeia de Wroxeter. Durante
esses dois quilômetros, continuou rapidamente, mas não tão
depressa que a atenção sobre si, pois aqui existiam pessoas que
poderia encontrar ocasionalmente, as quais regressavam dos seus
afazeres diários nos campos ou percorriam o caminho entre aldeias.
Não viu nenhuma que conhecesse e respondeu a essas saudações
casuais rapidamente, sem se demorar.
A cintura de árvores do lado mais próximo do vau avistou-se, os
poucos salgueiros mergulhando na água, e surgiu o topo da torre da
igreja entrevista por entre os ramos, vendo-se apenas um dos
cantos do telhado. O resto da aldeia e do domínio ficavam mais
afastados. Richard aproximou-se cautelosamente do abrigo das
árvores e desmontou, sob essa cobertura, para espreitar para a
baixa extensão da água que rodeava uma pequena ilhota e o
caminho que descia da aldeia até o vau. Ouviu as vozes antes de
ter uma visão clara e deteve-se para escutar atentamente,
esperando que os passantes se dirigissem à aldeia e deixassem o
seu caminho desimpedido. Duas mulheres, conversando e rindo,
acompanhadas por uma luz que se refletia na margem da água e
depois a voz de um homem, igualmente ocioso e à vontade,
provocando e arreliando as moças. Richard atreveu-se a aproximar-
se, até os conseguir ver claramente e deteve-se com um suspiro de
exasperação e desânimo.
As mulheres tinham estado a lavar roupa e tinham-na estendido
nos ramos baixos para secar, e como o dia não estava frio e se
juntara a elas um companheiro jovem e atraente, elas não
mostravam pressa de deixar a margem. Richard não conhecia as
mulheres, mas quanto ao homem conhecia-o bem demais, apesar
de não saber o seu nome. Este pavão jovem, grande, ruivo e
robusto era o capataz de Astley na quinta da propriedade, e um dos
dois que encontrara e reconhecera Richard nos bosques quando
este trotava apressadamente para a abadia, e tinham-se
aproveitado da hora e da solidão para fazer um favor ao seu
suserano. Aqueles mesmos braços musculosos, que agora faziam
cócegas a uma das lavadeiras que soltava risadinhas, tinham
ignominiosamente puxado Richard para fora da sela, e tinham-no
segurado enquanto ele pontapeava furioso um ombro forte que
podia ser feito de carvalho se se considerasse todo o efeito que os
seus punhos tinham produzido sobre ele, até o outro herético lhe ter
enchido a boca com o seu próprio capuz e lhe ter atado os braços
com as suas próprias rédeas. Nessa mesma noite, quando passava
da meia-noite, estava completamente escuro, e todas as pessoas
honestas metidas nas suas camas, este mesmo par de confiança
enviara-o para longe, para o feudo mais distante por motivos de
custódia. Richard lembrava-se amargamente destas indignidades. E
agora aqui estava este mesmo sujeito a meter-se de novo à sua
frente, pois ele não podia sair a cavalo da cobertura e dirigir-se para
o vau sem passar perto deles, ser reconhecido e quase certamente
recapturado.
Não havia nada a fazer senão recuar para uma cobertura mais
profunda e esperar que todos se afastassem, regressando à aldeia
e ao feudo. Sem esperança de contornar Wroxeter através de um
caminho mais amplo e continuar na margem do rio, ele estava já
demasiado perto da extremidade da aldeia e todos os caminhos se
encontravam à vista. E estava a perder tempo e, sem pensar no
porquê, sentiu que o tempo era vital. Perdeu ali uma hora, roendo os
nós dos dedos numa frustração desesperada e esperando pelo
primeiro movimento. Mesmo quando decidiram recolher a roupa e
dirigirem-se para casa, as mulheres não mostraram muita pressa
nisso, mas deslocaram-se vagueando pelo caminho acima,
gracejando e rindo, com o homem jovem que caminhava com
passadas largas entre elas. Só quando as suas vozes se
transformaram em silêncio e mais nenhuma alma se agitava pelo
vau, é que Richard se aventurou a sair da cobertura e a esporear o
seu pônei, chapinhando nos bancos de areia.
A princípio, o vau era suave, arenoso e pouco fundo, depois o
caminho atravessava a ponta da linha sem molhar os pés,
mergulhando novamente para dentro da longa passagem que
conduzia ao lado oposto, um arquipélago amplo de pequenos
baixios arenosos, que ondulavam e reluziam com o movimento
suave e circular da água. A meio da passagem, Richard puxou as
rédeas durante um momento para olhar para trás, pois a larga e
inocente extensão de prados verdes oprimia-o com uma sensação
de nudez e de apreensão. Aqui podia ser visto a um quilômetro de
distância ou mais, uma pequena figura escura montada a cavalo,
indefesa e vulnerável, contra uma paisagem toda umidade, luz
perlífera e cores pálidas.
E ali, galopando a toda a brida em direção ao vau no mesmo
caminho pelo qual ele viera, ainda distante e pequeno, mas
cavalgando intencionalmente atrás dele, aproximava-se um único
cavaleiro num grande cavalo de um tom cinzento claro, Fulke Astley,
numa perseguição determinada ao genro fugitivo.
Richard disparou através dos bancos de areia numa agitação de
espuma e galopou numa pressa desesperada através dos prados
molhados, enveredando para oeste para o troço que o haveria de
levar durante mais de quatro quilômetros até Saint Giles, e à última
corrida direta até o portão da abadia. Faltava mais de um quilômetro
antes que pudesse encontrar proteção no terreno acidentado e nos
pequenos bosques, mas até mesmo aí, não podia esperar afastar
de si a perseguição agora que fora avistado, como certamente o
deveria ter sido. E o seu pônei não era par para aquela besta às
manchas, que o perseguia, mas a velocidade era a sua única
esperança. Ainda tinha um avanço considerável, embora tivesse
perdido grande parte dele ao esperar para atravessar o vau. Cravou
os calcanhares nos flancos do pônei, cerrou os dentes com força e
dirigiu-se para Shrewsbury, como se lobos estivessem no seu
encalce.
O terreno elevou-se, dobrado em colinas baixas, salpicadas com
árvores e pequenos renques de arbustos, escondendo a presa e o
caçador um do outro, mas a distância entre eles devia estar a
diminuir e no bocado em que o percurso era nivelado e nu. Richard
deitou um olhar inquieto sobre o ombro, vislumbrando novamente o
seu inimigo, agora mais perto do que anteriormente, e pagou pela
sua momentânea desconcentração com outra queda, só que desta
vez agarrou as rédeas e evitou o pior do embate, bem como o
esforço de apanhar novamente o seu pônei. Enlameado,
ligeiramente ferido e furioso consigo mesmo, ergueu-se novamente
sobre a sela e galopou selvaticamente, sentindo o olhar fixo de
Astley como um punhal nas suas costas. Felizmente, o pônei era
robusto e de criação galesa, e estivera durante alguns dias a
necessitar de fazer exercício, e o peso que carregava era leve. mas
mesmo assim o seu galopar era duro e Richard sabia-o e receava-o,
mas não podia abrandar. Quando avistou a vedação de Saint Giles
e o troço que se alargava numa estrada, conseguiu ouvir os cascos
embatendo em alguma parte por atrás dele. Se não fosse por isso,
ele podia ter-se ali refugiado, já que a leprosaria era dirigida e
servida pela abadia, e o Irmão Oswin não o teria entregue a
ninguém a não ser com ordens do abade. Todavia, naquela altura, já
não tinha tempo para parar ou para se desviar.
Richard baixou-se e galopou ao longo do Foregate, esperando a
cada momento ver a sombra maciça de Fulke Astley surgir a seu
lado e uma mão grande a esticar-se para lhe agarrar as rédeas.
Virou a esquina do muro da abadia e galopando ao longo do
caminho que se dirigia diretamente à casa do portão, dispersou os
artífices e couteiros que terminavam o seu dia de trabalho e se
dirigiam a casa, e as crianças e cães que brincavam na estrada
principal.
A distância era pouco menor do que seis metros, quando Richard
se lançou despreocupadamente para dentro da casa do portão.
Nessa noite, no serviço de Vésperas, Cadfael. sentado no seu
lugar no coro, reparou que alguns dos adoradores provinham do
salão de hóspedes. Rafe de Coventry estava presente, taciturno e
moderado como sempre, e até Aymer Bosiet, depois das atividades
do seu dia em perseguição da sua propriedade fugitiva, tinha uma
aparência sombria e taciturna, possivelmente para rezar por uma
pista fidedigna do céu. Pelo seu olhar, tinha assuntos de peso na
mente, visto que franzia a testa sobre todos eles durante o serviço
de Vésperas, como um homem tentando decidir-se. Talvez a
necessidade de permanecer em boas relações com a poderosa
família da sua mãe o estivesse a instigar a apressar-se de imediato
para casa com o corpo de Drogo e a mostrar alguns sinais de
devoção familiar. Talvez a ideia de um irmão mais novo e mais
subtil, que se encontrava no local e absolutamente capaz de fazer o
mal pelas suas próprias mãos, também pudesse estar a argumentar
a favor do abandono de uma busca infrutífera com a contrapartida
de uma certa herança.
Quaisquer que fossem as suas preocupações, tornou-se mais
uma testemunha da cena que confrontou irmãos e hóspedes
quando o ofício terminou e eles emergiram pela porta sul e
passaram ao longo da ala oeste do claustro na direção do pátio,
para se dispersarem para as diversas preparações para jantar. O
Abade Radulfus estava justamente a descer para o pátio com o
Prior Robert, seguidos por todo o cortejo dos irmãos, quando a
quietude da noite foi quebrada pelo bater apressado de cascos ao
longo da terra batida da estrada no exterior da casa do portão,
transformando-se subitamente num ruído metálico nas pedras do
interior, enquanto um robusto pônei preto se deslocava com ruído
passando pela casa do portão sem parar, escorregando e batendo
com as patas nas pedras, e seguido de perto por um cavalo
cinzento e alto. O cavaleiro que montava o cavalo cinzento era um
homem grande, carnudo, de barba, de cara vermelha devido à raiva
e à pressa ou a ambas, o qual se inclinava para a frente para
agarrar as rédeas do rapaz que montava o pônei. Os dois tinham
penetrado cerca de vinte metros dentro do pátio, quando a sua mão
esticada agarrou a rédea, arrastando ambas as montadas, e
fazendo-as deslizar e bufar até se deterem, cobertas de espuma e
tremendo. Ele conseguira segurar o pônei, mas não o rapaz, o qual
soltando um grito de alarme largou as rédeas e, caindo em vez de
desmontar, voou como um pássaro até os pés do abade, onde
tropeçou e caiu estatelado de cara para baixo, e agitando os seus
braços desesperadamente em redor dos tornozelos do abade,
lançou um apelo imperceptível para as saias do hábito negro e
segurou-se firmemente, esperando ser arrancado à força e certo de
que ninguém o poderia impedir, se a tentativa fosse feita, à exceção
desta rocha ereta e estável à qual ele se agarrava.
O sossego que fora tão rudemente destroçado reinstalara-se
acompanhado por alguma surpresa no grande pátio. Radulfus
ergueu o seu olhar fixo e austero da pequena figura que lhe
abraçava os tornozelos para o robusto e confiante homem que
deixara os cavalos, que tremiam e suavam lado a lado, e avançava
alguns passos para o cumprimentar, nada envergonhado perante a
autoridade monástica.
— Meu senhor, isto é de certo modo descortês. Não estamos
acostumados a tais visitas súbitas — disse Radulfus.
— Meu senhor abade, pesa-me ser forçado a perturbá-lo. Se a
nossa entrada foi sem modos, peço o seu perdão. Por Richard mais
do que por mim — disse Fulke com desafio consciente e confiante.
— A sua tolice é a causa. Espero poupá-lo a este tolo motim ao
levá-lo e acompanhá-lo em segurança de regresso a casa. Para
onde vou levá-lo agora e certificar-me que ele não o incomodará de
novo.
Parecia estar muito seguro de si próprio, apesar de não ter
avançado outro passo ou esticado uma mão para agarrar o rapaz
pelo colarinho. Olhou o abade, olhos nos olhos, sem pestanejar. Por
trás das costas do Prior Robert, os irmãos abriram fileiras para se
aproximarem do centro do pátio e se reunirem num semicírculo
discreto, espreitando com admiração o rapaz agachado, o qual
começara a pronunciar com dificuldade protestos abafados e
súplicas ainda incoerentes, já que não erguia a cabeça ou relaxava
a força frenética dos seus braços. Seguindo os Irmãos,
aproximaram-se os hóspedes, não menos interessados num
espetáculo tão invulgar. Cadfael, deslocando-se metodicamente
para uma posição da qual tinha uma visão mais clara, captou o
distante mas atento olhar de Rafe de Conventry e viu a passagem
fugidia de um sorriso varrer os lábios barbados do falcoeiro.
Em vez de responder a Astley, o abade olhou novamente para
baixo, com a cara franzida, para o rapaz a seus pés e disse
rispidamente: — Para de fazer barulho, criança, e larga-me. Não
corres perigo nenhum. Levanta-te!
Richard afrouxou a força dos seus braços relutantemente, e
ergueu uma cara manchada com lama e o verde das folhas das
suas quedas, com o suor da sua pressa e medo e umas quantas
lágrimas frenéticas de alívio, de um terror que via agora não ser
nada razoável.
— Pai, não o deixes levar-me! Eu não quero regressar, eu quero
ficar aqui, eu quero ficar com o Irmão Paul, eu quero aprender. Não
me mandes embora! Eu nunca quis ficar longe, nunca! Eu
regressava a casa quando eles me apanharam. Eu regressava a
casa, de verdade, regressava!
— Parece — disse o abade secamente — que há aqui alguma
disputa quanto ao fato de onde é a tua casa, visto que o senhor
Fulke está a oferecer-te um salvo conduto até lá, enquanto que tu és
da opinião de que já chegaste. Qualquer justificação que tenhas
para dar acerca do que se passou pode esperar por outra ocasião.
Onde tu pertences, parece que não pode. Levanta-te, Richard,
imediatamente, e coloca-te de pé, como deverias estar — e
estendeu uma mão magra e musculada, segurando em Richard pelo
antebraço e puxando-o vivamente para cima.
Pela primeira vez, Richard olhou à sua volta, desconfortavelmente
consciente dos muitos olhos sobre si e um pouco humilhado por ter
apresentado tal figura tão desgrenhada e suja perante todos os
irmãos reunidos, e ainda mais a vergonha humilhante que sentia
quanto aos endurecidos rastros de lágrimas nas suas bochechas.
Endireitou as costas e esfregou apressadamente com uma manga a
sua cara suja. Procurou rapidamente o Irmão Paul entre o círculo de
hábitos e, encontrando-o, ficou um pouco reconfortado. O Irmão
Paul, que fora avisado para não correr para o seu carneiro
tresmalhado, colocou a confiança no Abade Radulfus e manteve a
sua boca fechada.
— Ouvimos, senhor — disse o abade —, qual é a preferência de
Richard. Sem dúvida que sabe que o pai dele o colocou aqui ao
meu cuidado e desejava que ele aqui permanecesse e estudasse
até atingir a maioridade. Eu tenho uma reivindicação para a custódia
deste rapaz através de escritura, devidamente testemunhada, e foi
do meu cargo que ele fugiu há alguns dias atrás. Eu não ouvi até a
data quais os motivos que podem existir na sua reivindicação sobre
ele.
— Richard muda de ideias todos os dias — respondeu Fulke.
confiantemente alto —, pois, ainda ontem à noite, foi de livre
vontade numa direção bem diferente. Nem acho que tal criança
possa escolher a seu bel-prazer, quando os seus anciões são
melhores juízes sobre o que é melhor para ele. E quanto à minha
reivindicação sobre o cargo dele, você saberá. Richard é meu
genro, com o conhecimento e consentimento total da avó. Ontem à
noite, casou-se com minha filha.
O calafrio de consternação que passou pelo círculo de
observadores atingidos pelo espanto desvaneceu-se numa calma
absoluta. O Abade Radulfus não revelou exteriormente o abalo, mas
Cadfael viu as linhas da sua cara magra endurecerem e sabia que a
seta o atingira. Tal consumação fora havia muito conspirada por
Dionísia e este vizinho egocêntrico pouco mais era do que o seu
instrumento em toda a questão. O que ele anunciara podia muito
bem ser verdade, se eles tivessem tido o rapaz nas mãos deles
durante todo este tempo em que ele estivera desaparecido. E
Richard, que endurecera e esticara a sua cabeça para cima, de
boca aberta para gritar que era falso, encontrou o olhar severo e fixo
do abade sobre ele e ficou completamente confundido. Tinha medo
de mentir face àquele semblante judicial, de fato admirava-o tanto
quanto o receava, e não desejava mentir e, confrontado com esta
declaração óbvia, deu por si perdido por saber o que era a verdade.
Pois tinham-no casado com Hiltrude e uma simples negação não
era suficiente. Uma descarga final de medo atravessou-o roubando-
lhe o fôlego; e se o próprio Hyacinth estivesse enganado e os votos
que ele repetira mansamente o tivessem unido para toda a vida?
— Isto é verdade, Richard? — perguntou Radulfus.
A sua voz era equilibrada e baixa, mas dentro das circunstâncias
parecia terrível a Richard. Ele engoliu palavras que não iriam servir
e Fulke, impaciente, respondeu por ele: — É verdade e ele não a
pode negar, duvida da minha palavra, meu senhor?
— Silêncio! — disse o abade peremptória, mas ainda
calmamente.
— Exijo a resposta de Richard. Fala, rapaz! Este casamento teve
lugar de fato?
— Sim, Pai — faltou-lhe a voz —, mas não é...
— Onde? Com que outras testemunhas?
— Em Leighton, Pai, ontem à noite, isso é verdade, mas mesmo
assim eu não estou...
Interrompeu-se novamente e submeteu-se com um soluço,
frustrado e aumentando a sua indignação.
— E tu disseste as palavras do sacramento livremente, de tua
própria vontade? Não foste forçado? Espancado? Ameaçado?
— Não, Pai, não fui espancado, mas tive medo. Eles insistiram
tanto comigo...
— Ele foi chamado à razão e ficou convencido — acrescentou
Fulke resumidamente. — Agora volta atrás com o que prometeu
ontem. Disse a sua parte sem que uma mão tivesse sido colocada
sobre ele. De sua própria vontade!
— E o teu padre empreendeu este casamento de bom grado?
Certo que o consentimento de ambos fora dado livremente? Um
bom homem, de reputação honesta?
— Um homem de santidade reconhecida, meu senhor abade —
disse Fulke triunfantemente. — O povo do campo chama-lhe um
santo. O santo eremita Cuthred!
— Mas, Pai — gritou Richard com a coragem do desespero,
determinado a conseguir por fim, a simples e única verdade —, eu
fiz o que fiz para que eles me libertassem, e pudesse regressar para
si. Disse os votos, mas só porque sabia que eles não me podiam
ligar. Eu não estou casado! Não foi um casamento, porque...
Tanto o abade como Fulke rebentaram num discurso atropelando,
determinadamente, a sua explosão e ordenando-lhe silêncio, mas o
sangue de Richard estava quente. Se tivesse de rebentar aqui
perante toda a gente, então assim seria. Cerrou os punhos e gritou
suficientemente alto para captar um eco de pedra das paredes do
claustro: — ... porque Cuthred não é padre!
12
Ela nem desmaiou nem chorou. Não era mulher para fazer
qualquer das coisas levianamente. Mas sentou-se durante um
grande bocado e muito direita sob a cama de Cuthred na outra sala,
rígida, pálida e olhando em frente, diretamente através da parede de
pedra que se encontrava à sua frente e para aquilo que existia para
lá dela. Era duvidoso se ela ouvira algumas das palavras
cuidadosamente medidas do abade, ou as nervosas fanfarronadas
de Astley. oferecendo alternadamente galanterias de conforto, as
quais ela não valorizava nem precisava, e simultaneamente
recordando-lhe fervorosamente que este crime deixava todas as
questões por responder e, de um modo nada lógico, provava que o
eremita fora de fato um padre e que o casamento que ele celebrara
era ainda um casamento. Pelo menos, ela não prestou atenção a
nenhum deles. Ela tinha passado para lá de qualquer tipo de
considerações. Todos os seus antigos planos se tinham tornado
irrelevantes. Tinha olhado de perto para a morte súbita,
inconfessada, sem absolvição e não queria fazer parte dela. Cadfael
viu isso nos seus olhos quando saía da capela, tendo feito o que
podia para deitar o corpo de Cuthred, direito e decentemente, agora
que lera tudo o que este tinha para lhe dizer. Através daquela morte
ela estava a confrontar a sua própria e não tinha intenção de se
encontrar com todos os seus pecados. Ou ainda durante muitos
anos, mas fora avisada de que se ela estava disposta a esperar, a
morte podia não estar.
Finalmente perguntou, numa voz perfeitamente normal, talvez
mais moderada do que aquela que normalmente usava com a sua
casa ou os seus inquilinos, mas sem se mexer ou retirar os seus
olhos do seu grande inimigo: — Onde está o senhor xerife?
— Partiu para arranjar um grupo para levar daqui o eremita —
disse o abade. — Para Eaton, se assim o desejar, para ser lá
tratado, visto que era a patrona dele. Ou, para lhe poupar
recordações dolorosas, para a abadia. Será lá devidamente
recebido.
— Seria uma bondade — respondeu ela lentamente — se o
levasse. Já não sei o que pensar. Fulke contou-me o que o meu
neto diz. O eremita já não pode responder por ele próprio, nem eu
por ele. Acredito, sem qualquer dúvida, que ele era um padre.
— Disso, madame — disse Radulfus —, eu nunca duvidei. O foco
do olhar fixo de Dionísia diminuíra e um pouco de cor voltara à sua
cara cor de cera. Já estava no seu caminho de regresso, e em breve
agitar-se-ia, recompor-se-ia e virar-se-ia para olhar para o
verdadeiro mundo em seu redor, em vez das distâncias desertas do
dia do julgamento. E encararia o que tivesse de encarar com a
mesma coragem feroz e obstinação com a qual conduzira no
passado as suas batalhas.
— Pai — disse ela, virando-se na direção dele com abrupta
resolução —, se eu for esta noite à abadia, você ouvirá a minha
confissão? Dormirei melhor quando tiver expiado os meus pecados.
— Sim, ouvirei — disse o abade.
Ela estava então pronta para ser levada para casa e Fulke estava
demasiado ansioso por escoltá-la. Sem dúvida ele, que tinha muito
pouco para dizer aqui entre esta companhia, seria suficientemente
volúvel em privado com ela. Não possuía a inteligência dela, nem de
longe uma imaginação tão fértil. Se a morte de Cuthred espalhara
alguma sombra sobre ele, era somente a humilhação de não ser
capaz de apresentar prova do casamento da sua filha, e nem por
sombras pensou numa mão ossuda pousada no seu ombro. “Assim
de qualquer modo”, pensou o Irmão Cadfael observando-o a segurar
o braço de Dionísia conduzindo-a até onde o seu pequeno cavalo
espanhol estava amarrado, apressando-se para a distanciar e livrar
da presença assustadora do abade.
No último momento, com as rédeas reunidas na mão, ela virou-se
repentinamente para trás. A sua cara recuperara todo o seu orgulho
e força, e era ela mesma novamente.
— Só agora me lembrei — disse ela — que o senhor xerife estava
a falar acerca da caixa que estava no altar. Era de Cuthred. Ele
trouxe-a consigo.
Quando o abade, os carregadores da liteira e Hugh já se
encontravam a percorrer o seu lento e sombrio caminho de regresso
à abadia, Cadfael olhou uma última vez em redor da capela deserta
mais atentamente, porque estava sozinho e sem distrações. Não
havia uma única mancha de sangue nas lajes do chão onde o corpo
estivera caído, apenas uma gota ou duas deixadas pela ponta do
próprio punhal de Cuthred. Ele ferira certamente o seu adversário,
apesar da ferida poder não ser muito profunda, Cadfael avistou uma
unha do altar até a entrada e seguiu-a com uma vela acesa na mão.
Não encontrou mais nada na capela e, no quarto exterior, o chão era
de terra batida e tais rastros desvanecidos eram difíceis de
encontrar depois de passarem algumas horas. Porém, na ombreira
da porta, encontrou três gotas caídas, agora secas mas visíveis, e
na nova e imaculada madeira, com a qual a ombreira esquerda da
entrada fora reparada, existia uma mancha obscurecida de sangue
ao nível do seu próprio ombro, por onde uma manga rasgada e
ensanguentada certamente passara.
Não era, então, um homem muito mais alto do que ele próprio e o
punhal de Cuthred ferira-o no ombro ou na parte superior do braço
do lado esquerdo, como uma tentativa de golpe direita ao coração.
Cadfael pretendia ir a cavalo até a cabana de Eilmund, mas
seguindo um impulso mudou de ideias, pois parecia-lhe que, afinal
de contas, não se podia dar ao luxo de perder o que quer que se
seguisse quando o corpo de Cuthred fosse trazido para o pátio na
abadia, para consternação de muitos, alívio talvez de alguns e
possível perigo de um em particular. Em vez de seguir pelos atalhos
no interior da floresta, montou e voltou cavalgando apressadamente
em direção a Shrewsbury, para se unir ao cortejo fúnebre.
Assim que entraram no Foregate, arranjaram uma estranha
audiência, um grupo de rapazes e cães curiosos que seguiram ao
lado deles ao longo de toda a estrada, e até mesmo os respeitáveis
cidadãos os seguiram a uma distância mais discreta, cautelosos
com o abade e o xerife, mas ávidos de informações e criando
rumores, tão depressa como as moscas se criam nas pilhas de
estrume de Verão. Até mesmo quando o cortejo virou em direção ao
portão, o bom povo do mercado, da ferraria e da taberna reuniu-se
no exterior para espreitar curiosamente para dentro e continuaram
as suas especulações com prazer.
E ali no grande pátio, enquanto transportavam um ataúde vindo
do mundo exterior, outro funeral reunia-se preparando-se para partir.
O caixão selado de Drogo Bosiet encontrava-se em cima de uma
carroça baixa e leve, contratada na cidade com o seu condutor para
este primeiro dia de viagem, o qual seria feito numa boa estrada.
Warin ficou a segurar dois dos cavalos selados, enquanto o lacaio
mais novo estava ocupado a ajustar um saco de sela completo de
modo a equilibrar devidamente o peso antes de o carregar. Ao ver
toda esta atividade, Cadfael respirou profundamente em sinal de
gratidão, sensível ao fato de que, pelo menos, um dos perigos
estava a ser removido mais depressa do que ele se atrevera a
esperar. Aymer decidira-se finalmente. Iria regressar a casa para se
assegurar da sua herança.
Os participantes de um funeral não podiam parar o que estavam a
fazer para olhar fixamente para os participantes de outro. E Aymer,
saindo do salão de hóspedes com o Irmão Denis a seu lado, para
desejar ao comboio de partida boa viagem, parou no cimo das
escadas apreciando a cena com uma expressão surpresa e astuta,
os seus olhos demorando-se mais sobre a forma e face coberta.
Desceu a escadaria a passos largos atravessando o pátio com
determinação até onde Hugh acabava de desmontar.
— O que se passa, senhor? Outra morte? A caçada pegou por fim
a minha presa? Alas morta? — Mal sabia se havia de se sentir
satisfeito ou lamentar ser este o cadáver do seu servo fugido. O
dinheiro e os favores que a habilidade de Hyacinth rendiam eram
valiosos, mas a vingança seria igualmente um ganho satisfatório, e
assim esta surgia, agora que se desesperara por não ganhar
nenhuma delas e se decidira a voltar a casa.
O abade Radulfus também tinha desmontado e olhava para os
dois grupos, com uma cara pouco comunicativa, pois estes
mostravam a curiosa e perturbadora sugestão da imagem de um
espelho, reunida aquando da chegada e partida dos mortos. Os
criados da abadia, que tinham vindo para segurar nas rédeas do
abade e do xerife, ficavam-se pelas extremidades da assembleia,
relutantes em se deslocarem.
— Não — disse Hugh —, este não é seu homem. Se é que o
rapaz que nós temos caçado é seu. Dele não vimos sinal. Então
volta para casa?
— Já desperdicei tempo e esforço suficientes e não desperdiçarei
mais, apesar de guardar rancor por deixá-lo partir em liberdade.
Sim, estamos de partida. Precisam de mim em casa, há trabalho a
minha espera. Quem é este que trouxeram de volta?
— O eremita que se instalou não há muito tempo na floresta de
Eyton. O seu pai foi visitá-lo — disse Hugh -. pensando que o criado
que ele mantinha pudesse ser o fulano de que andavam à procura,
mas o jovem já dera à sola, por isso nunca foi posto à prova.
— Lembro-me disso, pois o senhor abade contou-me. Então é
este o homem! Eu não voltei lá. Para quê se o rapaz que ele
guardava tinha desaparecido? — Olhou curiosamente para baixo,
para a figura amortalhada. Os carregadores tinham pousado o seu
fardo, aguardando ordens para onde levar o morto. Aymer inclinou-
se e destapou a cara de Cuthred. Eles tinham-lhe puxado para trás
a madeixa selvagem de cabelo das suas têmporas e escovado a
sua barba cerrada, e toda a luz do meio-dia incidiu sobre o
semblante magro, os olhos profundos, as suaves pestanas um
pouco feridas e agora azuladas, o longo nariz direito e patrício e os
lábios cheios, por entre a escura barba. O brilho dos olhos
semiabertos estava agora velado, o rugido nos lábios arrepanhados
cuidadosamente suavizado, de modo a restabelecer a sua severa
graciosidade. Aymer inclinou-se mais de perto, surpreendido e
descrente.
— Mas eu conheço este homem! Não, isso será dizer muito, ele
nunca me disse o seu nome. Mas eu já o vi e falei com ele. Um
eremita, ele? Nunca vi sinais disso anteriormente! Ele usava o
cabelo aparado à maneira normanda e tinha uma barba curta e
aparada, não este arbusto mal cuidado, e estava bem vestido com
bom equipamento de montar, botas e tudo. Não este hábito pesado
e sandálias. E usava espada e punhal à cintura — disse Aymer
positivamente – e, também, como se estivesse acostumado ao uso
deles.
Até ter olhado novamente para cima, ele não estava totalmente
consciente do significado daquilo que dissera, mas a expressão
atenta de Hugh e a questão imediata tornou óbvio que ele tocara em
algo mais vital do que aquilo que ele sabia.
— Tem certeza? — disse Hugh.
— Certeza, meu senhor! Foi apenas uma noite de alojamento,
mas joguei dados com ele ao jantar e vi o meu pai jogar um jogo de
xadrez contra ele. Tenho certeza!
— Onde foi isso? E quando?
— Em Thame, quando andávamos à procura de Brand, perto de
Londres. Ficamos alojados durante a noite com os monges brancos
na nova abadia que eles têm lá. Este homem já lá estava quando
nós chegamos pela noitinha e dirigiu-se para sul no dia seguinte.
Não posso dizer exatamente o dia, mas foi em finais de Setembro.
— Então se o reconhece — perguntou Hugh —, modificada como
está a sua aparência, tê-lo-ia o seu pai reconhecido assim, só de o
olhar?
— Certamente que sim, meu senhor. Os seus olhos eram mais
observadores dos que os meus. Ele sentou-se à frente um tabuleiro
de xadrez com o homem, olhos nos olhos. Haveria de o reconhecer.
“E assim aconteceu”, pensou Cadfael, “quando foi à caça do
servo na cela na floresta e deparou com o eremita Cuthred, que há
coisa de um mês ou mais, não era eremita. E não vivera o tempo
suficiente para regressar à abadia e revelar a qualquer homem o
que sabia. E se ele conhecesse algum grande mal que este ser
transformado fizera? Podia ainda dar a conhecer a outros ouvidos a
palavra casual que haveria de significar mais para eles do que
alguma vez significara para ele, e trazer até a casa na floresta de
Eyton alguém à procura de mais do que um servo feudal fugitivo, e
pior certamente, do que um padre espúrio. Porém, ele não tinha
vivido para ir mais além na sua viagem de retorno do que uma moita
escondida na floresta e suficientemente longe do eremitério para
remover as suspeitas de um santo local, com a reputação de nunca
deixar a sua cela”.
A evidência das circunstâncias não era uma prova positiva,
contudo a Cadfael não restavam dúvidas. Ali perante eles, o corpo
enfiado no caixão e o novo cadáver, descansando por momentos
lado a lado, antes do Prior Robert ter dirigido os carregadores para a
capela mortuária e Aymer Bosiet ter, novamente, coberto a cara de
Cuthred e se ter virado mais uma vez para as suas preparações
para a partida. A sua mente estava noutras coisas, para quê distraí-
lo e detê-lo agora? Mas Cadfael lembrou-se subitamente de fazer
uma pergunta curiosa.
— Que tipo de cavalo montava ele, quando passou a noite em
Thame?
Aymer, que estava a apertar as tiras dos seus alforjes, virou-se
com uma surpresa indiferente, abriu a boca para responder e deu
por si perdido, enrugando a testa pensativamente sobre as suas
memórias daquela noite.
— Ele chegou lá antes de nós. Estavam dois cavalos nos
estábulos do priorado quando nós chegamos. E ele partiu antes de
nós na manhã seguinte. Mas agora que perguntais, quando
montamos, lembro-me que os dois animais que víramos na noite
anterior estavam ainda nos seus estábulos. Isso é estranho! O que
estaria a fazer um homem tão bem provido, cavaleiro pelo seu
aspecto e pelo das suas armas, o que estaria ele a fazer sem um
cavalo?
— Ah, bom, ele pode tê-lo colocado num estábulo noutro lado
qualquer — disse Cadfael, abandonando o quebra-cabeças como se
fosse trivial.
No entanto, não era trivial, era a chave para abrir uma porta muito
estranha na sua mente. Ali perante tantos olhos, jazia o assassino e
o assassinado, lado a lado, justiça já feita.
Mas quem, então assassinara o assassino?
Tinham-se ido todos embora, Aymer no elegante e leve cavalo
ruão do seu pai, Warin com o cavalo que Aymer usara à chegada
conduzido por uma rédea e o jovem criado com o carreteiro e a
carreta. Após as etapas dos primeiros dias, Aymer podia
provavelmente partir a toda a velocidade deixando os criados
trazerem o caixão atrás com o seu passo mais lento e, muito
provavelmente, enviando outros criados para trás ao longo do
caminho para os substituir, assim que chegasse a casa. Na capela
mortuária, Cadfael vira o corpo de Cuthred deitado de modo
decente, cabelo e barba aparados, talvez não tão rente como
quando o cavaleiro em Thame os usara, mas o suficiente para
exibição, na fixa e austera tranquilidade da morte; uma face
suficientemente apropriada para um religioso dignificado. Injusto que
um assassino parecesse tão nobre na morte, como qualquer um dos
paladinos da imperatriz.
Hugh estava enclausurado com o abade e até a data não fora dita
uma palavra a Cadfael do que ele concluía do testemunho de
Aymer, mas através das mesmas questões que ele colocara, era
óbvio que fizera as mesmas ligações que Cadfael e não podia ter
deixado de chegar à mesma conclusão. Falaria primeiro disso com
Radulfus. “O meu papel agora”, pensou Cadfael, “é tirar Hyacinth do
seu esconderijo e deixar que o libertem de todas as suspeitas de
mal. Lembrando, no entanto, o furto ocasional para encher a barriga
enquanto vivia selvagem e uma mentira ou duas, de modo a
conservar-se vivo. E Hugh não lhe guardará rancor quanto a esses.
E isso deveria resolver o assunto da ordenação de Cuthred de uma
vez por todas, se é que ainda existia alguma questão pendente em
relação a isso. Uma súbita conversão pode tornar um soldado um
eremita, sim. mas é preciso muito mais do que isso para fazer um
padre”.
Ele esperou por Hugh na sua oficina no jardim das ervas, onde
Hugh certamente viria à sua procura assim que deixasse o abade. O
seu interior estava calmo, aromático e era caseiro, e Cadfael
estivera demasiado ausente ultimamente. Teria de começar a
pensar, dentro em breve, em encher os seus armazéns com as
necessidades vulgares de Inverno, antes que as tosses e as
constipações começassem e as velhas articulações começassem a
ranger e a gemer. Podia-se confiar no Irmão Winfrid para tomar
conta de modo excelente de todo o trabalho no jardim, no escavar e
retirar das ervas e na plantação, mas aqui dentro ainda tinha muito
para aprender. “Mais uma viagem”, pensou Cadfael, “para ver como
é que está Eilmund e deixar Hyacinth saber que pode e deve
aparecer e falar por si próprio, e então ficarei satisfeito por me fixar
a trabalhar aqui em casa”.
Hugh entrou por entre os jardins e sentou-se ao lado do amigo
com um breve sorriso preocupado e manteve-se silencioso durante
alguns momentos.
— O que eu não compreendo — disse então — é por quê. O que
quer que ele fosse, o que quer que ele tivesse feito anteriormente,
aqui ele parece ter vivido inocentemente. O que pode ter acontecido
de tão perigoso para o fazer querer calar a boca de Bosiet? Pode
ser suspeito modificar a sua própria roupa, a sua aparência e o seu
modo de vida, mas não é um crime. O que havia ali, mais do que
isso, para justificar assassinato? O que há de tão criminoso, à
exceção do assassinato em si?
— Ah! — disse Cadfael com um suspiro de alívio. – Sim, calculei
que visses tudo como eu o vi. Mas não, eu não acho que tenha sido
assassinato o que ele tinha de esconder no anonimato de um hábito
eremita e numa cela de floresta. Esse foi o meu primeiro
pensamento. Mas não é assim tão simples.
— Como tantas vezes — comentou Hugh com um súbito sorriso
de lado —, acho que sabes alguma coisa que eu não sei. E o que foi
aquilo sobre seu cavalo, lá no Thame? O que tem o cavalo dele a
ver com isto?
— Não é o cavalo dele, mas o fato de ele não ter nenhum. O que
esta a fazer um soldado ou um cavaleiro viajando a pé? Um
peregrino pode fazê-lo, sem nunca ser visto. Mas quanto a saber
alguma coisa, eu ter-te-ia dito há muito tempo atrás se me tivessem
deixado, sim, Hugh, eu sei. Eu sei onde está Hyacinth. Contra a
minha vontade, prometi não dizer nada até Aymer Bosiet ter
desistido da perseguição e ter regressado a casa. Como ele agora o
fez, e agora o rapaz pode apresentar-se e defender-se e, como
confia em mim, é bem capaz de o fazer.
— Então é isso — disse Hugh. olhando o seu amigo sem grande
surpresa. — Bem, quem o pode acusar de ser cauteloso, o que
sabe ele a meu respeito? E tanto quanto eu sabia, ele bem poderia
ter sido o assassino de Bosiet, nem tínhamos conhecimento de
outro com tão bom motivo. Agora ele não precisa de dizer uma
palavra sobre isso, a dívida foi reconhecida e paga. E quanto à sua
liberdade, ele não precisa de recear nada da minha parte quanto a
esse assunto. Tenho mais que fazer de que servir de moço de
recados a Northamptonshire. Fá-lo aparecer quando quiseres, ele
pode ainda deitar alguma luz sobre algumas coisas que ainda não
sabemos.