Você está na página 1de 229

Table of Contents

Folha de Rosto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
O EREMITA DA FLORESTA EYTON
Ellis Peters
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: The Hermit of Eyton Forest # 14
Tradução de Carla Mendonça Tradução portuguesa de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
The Hermit of Eyton Forest © Ellis Peters 1987

Editor: Lyon de Castro


PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA. LDA.
Apartado 8

2726-901 MEM MARTINS


PORTUGAL

secretariado@europa-america.pt
Edição nº: 160709/7505 Outubro de 2000
Execução técnica: Gráfica Europam Lda.
Mira-Sintra — Mem Martins
1

Foi no décimo oitavo dia de Outubro daquele ano de 1142 que


Richard Ludel, vassalo hereditário da mansão de Eaton, morreu de
uma fraqueza debilitante, fraqueza essa causada por feridas
recebidas na batalha de Lincoln quando ao serviço do Rei Stephen.
As notícias foram levadas em seu devido tempo a Hugh Beringar
no castelo de Shrewsbury, já que Eyton era uma das muitas
mansões do condado que fora expropriada a William FitzAlan,
depois daquele nobre poderoso ter tomado partido do lado errado
na luta pelo trono, mantendo Shrewsbury para a Imperatriz Maud e
fugindo quando Stephen sitiou e capturou a cidade. As suas vastas
possessões, confiscadas pela coroa, tinham sido entregues aos
cuidados do xerife como suserano, mas os seus vassalos de longa
data mantiveram-se imperturbáveis já que estava decidido que estes
tinham sabiamente aceito o julgamento de batalha e jurado
vassalagem ao rei. De fato, Ludel fizera mais do que declarar a sua
lealdade, ele demonstrara-a na batalha em Lincoln e agora parecia
pagar um preço elevado pela sua fidelidade, pois não tinha mais do
que trinta e cinco anos de idade ao morrer.
Hugh recebeu as notícias com um pesar moderado, o qual era
natural para alguém que mal conhecera o homem e para o qual os
seus deveres seriam, provavelmente, pouco complicados. Existia
apenas um herdeiro e nenhum segundo filho para entravar a
questão da herança e certamente nenhuma necessidade de
interferir com a sucessão pacífica. Os Ludels eram homens leais de
Stephen, mesmo que fosse difícil que o novo sucessor viesse a
pegar em armas pelo seu rei durante os anos mais próximos tendo,
recordou-se Hugh, cerca de dez anos de idade. O rapaz estava na
escola na abadia, fora aí colocado pelo seu pai após a morte de sua
mãe; muito possivelmente, segundo diziam os rumores, mais para o
tirar das mãos de uma avó dominadora do que simplesmente para
assegurar que ele aprendesse a escrever.
Parecia, então, que a abadia, senão mesmo o castelo, tinha uma
responsabilidade pouco invejável no caso, pois alguém teria de dizer
ao jovem Richard que o seu pai estava morto. Os ritos funerários
não recairiam sobre a abadia, já que Eaton, sendo uma paróquia,
tinha o seu próprio padre e a sua própria igreja, mas a custódia do
herdeiro era um caso de alguma importância. “E quanto a mim”,
pensou Hugh. “é melhor certificar-me de quão competente é o tutor
que Ludel encarregou de administrar o legado do rapaz, enquanto
este ainda não atingir a idade para ser ele próprio a administrá-lo”.
— Ainda não levaste esta notícia ao senhor abade? — perguntou
ao lacaio que trouxera a mensagem.
— Não, meu senhor, vim primeiro ter consigo.
— E tens ordens da senhora para falares com o herdeiro?
— Não, meu senhor, e preferiria deixar isso para aqueles que
diariamente tratam dele.
— Bem, podes lá ficar — concordou Hugh. — Eu próprio irei e
falarei com o Abade Radulfus. Ele saberá o que fazer. Quanto à
sucessão, a Dama Dionísia não precisa de se preocupar, o título do
rapaz está suficientemente seguro.
Em tempos conflituosos, com primos rivalizando amargamente
pelo trono e senhores oportunistas mudando de partido consoante
as fortunas oscilantes desta guerra inconstante, Hugh sentia-se
satisfeitíssimo por ser o guardião de um condado que apenas
mudara de mãos uma vez. E a partir daí preparou-se teimosamente
para manter o título do Rei Stephen longe de desafios e a onda de
conflitos à distância, quer a ameaça chegasse das forças da
imperatriz, dos imprevisíveis cantrips, dos selvagens Galeses de
Powys a oeste, ou da ambição calculista do conde de Chester no
Norte. Já havia alguns anos que Hugh equilibrara o seu
relacionamento com todos estes vizinhos perigosos com relativo
sucesso, e teria sido loucura considerar entregar Eaton a outro
vassalo, quaisquer que fossem as possíveis desvantagens de
permitir a sucessão intacta para uma criança. Porquê perturbar uma
família que permanecera submissa e leal e perseguir alguém
firmemente à espera de acontecimentos, enquanto o seu suserano
fugia para França? Rumores recentes diziam que William FitzAlan
regressara a Inglaterra e que se unira à imperatriz em Oxford, e que
a sua presença, mesmo àquela distância, podia agitar as antigas
lealdades entre os seus vassalos anteriores, mas isso era um risco
a considerar quando surgisse. Entregar Eaton a outro vassalo podia
despertar desnecessariamente da sua sonolência cautelosa a velha
aliança. Não. O filho de Ludel havia de ter os seus direitos, mas
seria bom averiguar o tutor e certificar-se que este era de confiança,
tanto para se manter leal às políticas do seu antigo senhor como
para tomar conta dos interesses e das terras do mesmo.
Depois da névoa matinal se ter erguido e ter nascido uma bela
manhã, Hugh cavalgou calmamente através da cidade,
vagarosamente pela colina acima até a Grande Cruz, abruptamente
pela colina abaixo, novamente pelo sinuoso Wyle até o portão virado
para Sudeste, atravessando a ponte de pedra em direção ao
Foregate onde o campanário da igreja da abadia se elevava, sólido,
contra um céu azul pálido. O Severn corria rápida mas
tranquilamente sob os arcos da ponte, ainda moderado no seu nível
de Verão, com as suas duas pequenas ilhas verdejantes bordejadas
por uma estreita orla de castanho desbotado, a qual seria
novamente coberta quando as primeiras chuvas pesadas
trouxessem as tempestades de Gales. Para a esquerda, onde a
estrada principal se abria perante ele, os aglomerados de arbustos e
árvores erguendo-se das margens do rio mal tocavam a poeirenta
berma da estrada, antes de se iniciar a sucessão de pequenas
casas e pátios do Foregate. Para a direita, o açude estendia-se
entre montes relvados, um tênue florescer de névoa esbatendo a
sua superfície prateada, e para lá deste, erguia-se o muro do
enclave da abadia, bem como o arco da casa do portão.
Hugh desmontou quando o moço de estrebaria saiu para segurar
nas suas rédeas. Era aqui tão conhecido como qualquer outro que
usasse o hábito Beneditino e pertencesse ao interior destas
paredes.
— Se deseja ver o Irmão Cadfael, meu senhor — disse o moço de
estrebaria prestavelmente — ele partiu para Saint Giles para lhes
reabastecer o armário de medicamentos. Mas já partiu há perto de
uma hora, logo a seguir ao capítulo. Estará brevemente de volta, se
pretender esperar por ele.
— O meu assunto é primeiro com o senhor abade — disse Hugh,
reconhecendo sem protesto a suposição de que cada visita sua era,
inevitavelmente, na busca de um amigo chegado. — Apesar de que
Cadfael irá certamente ouvir as mesmas palavras, se é que já não
as ouviu! Os ventos parecem sempre levar-lhe as notícias primeiro,
antes destas nos começarem a preocupar a todos.
— Os seus deveres levam-no mais além, mais do que algum de
nós alguma vez terá a oportunidade — disse o moço de fretes bem-
humorado. — A propósito disso, como é que as pobres almas
afligidas de Saint Giles chegam alguma vez a saber o que se passa
no resto do mundo? Pois ele raramente regressa sem alguma
novidade, que causa espanto em toda a gente desta parte do
Foregate. O Padre Abade está lá em baixo no seu próprio jardim.
Esteve enclausurado com o sacristão durante uma hora ou mais por
causa de umas contas, mas eu vi o Irmão Benedict deixá-lo há uns
minutos — estendeu uma mão acastanhada para acariciar
respeitosamente o pescoço do cavalo, porque o cavalo grande e
anguloso de Hugh, tão intratável quanto forte, sentia pouco mais do
que desprezo por todas as coisas humanas à exceção do seu dono,
e até este era visto como um semelhante, que deveria ser
respeitado mas mantido no seu lugar. — Ainda não há notícias de
Oxford?
Até mesmo dentro do claustro eles não podiam escolher, mas
mantinham um ouvido atento às notícias do cerco. O sucesso do
cerco podia bem deixar a imperatriz como uma prisioneira e forçar
um fim finalmente a esta dissensão que despedaçara a terra.
— Não desde que o rei conseguiu atravessar o vau com os seus
exércitos e entrou na cidade. Em breve, poderemos saber algo, se
alguém que conseguiu sair da cidade a tempo passar por estes
lados. Mas certamente que a guarnição se certificou de que as
despensas do castelo estariam bem cheias. Duvido que isto ainda
se arraste por muitas semanas.
O cerco é um estrangulamento lento e o Rei Stephen nunca fora
conhecido pela sua paciência e tenacidade, e podia começar a
achar entediante sentar-se à espera que os seus inimigos
começassem a passar fome, partindo em busca de ação mais
revigorante noutro lado. Já acontecera anteriormente e poderia
acontecer de novo.
Hugh encolheu os ombros ao pensar nos defeitos do seu
suserano e desceu o grande pátio na direção do alojamento do
abade para distrair o Padre Radulfus das suas queridas, embora
esvaídas, rosas.
O Irmão Cadfael regressara do hospital de Saint Giles e estava
ocupado na sua oficina, a separar os feijões que serviriam de
semente para o ano seguinte, quando Hugh voltou do alojamento do
abade e entrou no herbário. Reconhecendo o passo ligeiro e leve no
cascalho. Cadfael cumprimentou-o sem virar a cabeça.
— O Irmão Porteiro disseme que estarias aqui. Negócios com o
Pai Abade, diz ele. O que se passa? Nada de novo vindo de
Oxford?
— Não — disse Hugh, sentando-se confortavelmente no banco
que se encontrava encostado à parede de madeira, mais perto de
casa. — Estas notícias não vêm de mais longe do que Eaton.
Richard Ludel morreu. A viúva titulada enviou um criado com as
notícias esta manhã. Têm o rapaz aqui na escola.
Então Cadfael virou-se, com um dos pires de barro, repleto de
sementes secas da vinha, na sua mão.
— Pois temos. Então o antepassado dele partiu? Ouvimos dizer
que ele estava a enfraquecer. O rapaz não tinha mais de cinco anos
quando foi enviado para aqui e, muito raramente, vinham buscá-lo
para ir a casa. Eu acho que o pai pensava que ele estaria melhor
aqui, com alguns companheiros da sua idade, em vez de estar perto
da cama de um homem moribundo.
— E sob o domínio de uma avó de temperamento forte, segundo
ouvi dizer. Eu não conheço a senhora — disse Hugh
pensativamente —, só de reputação. Conhecia o homem, apesar de
não ter voltado a saber nada dele desde que trouxemos os nossos
feridos de Lincoln. Um bom combatente e uma alma decente, mas
severo e não muito falador. Como é o rapaz?
— Perspicaz, aventureiro... Um verdadeiro diabinho, para dizer a
verdade, e tão frequentemente metido em confusões como fora
delas. Inteligente com a escrita, mas prefere estar no recreio. Paul
terá a tarefa de lhe dizer que o pai está morto e que ele próprio é o
senhor de um feudo. Pode perturbar mais o Paul do que o rapaz.
Ele mal conhece o pai. Suponho que não há dúvida quanto à sua
posse?
— Nenhuma! Sou todo a favor de deixar tudo como está e Ludel
mereceu a sua imunidade. Também é uma boa propriedade, terra
fértil e muito dela já preparada para o arado. Bons pastos, prados
bem irrigados e bosques e, ao que parece, tem sido bem tratada
pelo que tem agora um valor superior ao que tinha há dez anos.
Mas eu tenho de conhecer o tutor e certificar-me de que ele trata
bem o rapaz .
— John de Longwood — disse Cadfael prontamente. — É um
bom homem e um bom marido. Conhecemo-lo bem, já tivemos
negócios com ele e sempre o achamos razoável e justo. Aquela
terra encontra-se entre as propriedades da abadia de Eyton-by-
Severn num dos lados, e Aston-under-Wrekin do outro lado; e John
concedeu sempre livre passagem ao nosso guarda florestal entre os
dois bosques, quando era necessário, para lhe poupar tempo e
trabalho. É dessa forma que trazemos lenha da nossa parte da
floresta Wrekin. Satisfaz-nos a ambos. E nessa zona da floresta
Eyton que a de Ludel penetra na nossa e seria loucura abandoná-la.
Há dois anos que Ludel deixou tudo nas mãos de John. Não vais
encontrar problemas aí.
— O abade disseme — disse Hugh, anuindo satisfeito com esta
boa vizinhança — que Ludel lhe entregou o rapaz como pupilo, há
quatro anos, caso ele não vivesse o suficiente para ver o filho atingir
a idade adulta. Parece que tomou todas as provisões necessárias
para o futuro, como se visse a sua própria morte a avançar na sua
direção — e acrescentou, de certo modo severo — A maioria de nós
não tem uma visão tão clara, senão existiriam neste momento
centenas de pessoas em Oxford a apressarem-se para comprar
Missas para as suas almas. Por esta altura, o rei deveria ocupar a
cidade. Cairia nas suas mãos, assim que estivesse sobre o vau.
Mas o castelo pode aguentar-se até o final do ano, em caso de
emergência, e temos de encarar a realidade, é só uma questão de
os fazer morrer à fome. E, se até agora, Robert de Gloucester na
Normandia ainda não teve notícias de tudo isto, então os seus
espiões são menos capazes do que aquilo que eu os tinha em
conta. Se ele sabe como a sua irmã é pressionada, regressará a
casa num ápice. Sei de casos em que os sitiantes se transformaram
em sitiados, poderá muito bem voltar a acontecer.
— Ele vai demorar algum tempo a regressar — salientou Cadfael,
confortavelmente. — E para todos os efeitos, não regressa mais
bem fornecido do que quando se foi embora.
O meio-irmão da imperatriz, o qual também era o seu melhor
soldado, fora enviado para o ultramar, embora muito contra a sua
vontade, para pedir ajuda para a senhora do seu menos do que
amado marido, mas constava que o Conde Geoffrey de Anjou
estava muito mais interessado nas suas ambições para a
Normandia do que na esposa que permanecera na Inglaterra, e fora
suficientemente astuto ao persuadir o Conde Robert a ajudá-lo a
abater castelo após castelo no ducado, em vez de se apressar a
colocar-se ao lado da esposa para a ajudar a obter a coroa de
Inglaterra. Tão cedo quanto Junho, Robert navegara de Wareham,
lutando contra o seu próprio bom senso, mas com a urgente
solicitação da sua irmã e com a insistência de Geoffrey, se é que
este queria realmente considerar algum embaixador vindo da parte
dela. E eis que Setembro terminava, Wareham de novo nas mãos
do Rei Stephen e Robert, ainda retido, no ingrato serviço de
Geoffrey na Normandia. Não, para ele não seria nada fácil nem
rápido regressar para salvar a irmã. A garra de ferro do cerco
apertava-se perseverantemente à volta do castelo de Oxford e pela
primeira vez, Stephen não mostrava sinais de abandonar o seu
objetivo. Nunca anteriormente estivera tão próximo de tornar a sua
prima e rival sua prisioneira, e forçá-la a aceitar a sua soberania.
— Ele percebe — considerou Cadfael, fechando a tampa de um
pote de pedra sobre as sementes que acabara de selecionar — o
quão perto se encontra de a conseguir ter, por fim, sob o seu poder?
Como te sentirias, Hugh, se estivesses no seu lugar e pudesses
realmente deitar-lhe a mão?
— Deus me livre! — exclamou Hugh fervorosamente, e fez um
esgar ao pensar nisso. — Pois eu não saberia o que lhe fazer! E o
pior é que nem o Stephen sabe, se alguma vez chegar a esse
ponto. Podia tê-la mantido bem fechada em Arundel no dia que ela
desembarcou, se tivesse tido juízo. E o que é que ele fez?
Forneceu-lhe uma escolta e enviou-a para Bristol, para se juntar ao
irmão! Mas se a rainha alguma vez tiver a senhora em seu poder,
isso será outra história. Se ele é um grande combatente, ela é o seu
melhor general e sabe como manter a vantagem.
Hugh levantou-se, espreguiçando-se, e uma brisa vinda da porta
aberta desalinhou o seu cabelo preto e macio, fazendo também
sussurrar os molhos de ervas secas, que balançavam pendurados
das vigas do teto.
— Bem, não há forma de acabar com o cerco, teremos de esperar
para ver. Soube que te deram finalmente um rapaz para te ajudar no
jardim das ervas, é verdade? Reparei que a tua sebe levou um
segundo corte, isso foi trabalho dele?
— Foi — Cadfael saiu com ele, e avançaram ao longo do caminho
de cascalho por entre os canteiros de ervas, as quais já se
encontravam um pouco secas nesta fase final da estação. Era nítido
que a sebe que cercava a caixa de um dos lados fora aparada dos
rebentos dispersos, que tinham crescido tardiamente no Verão. — O
Irmão Winfrid... deve estar ocupado no pequeno pedaço de terra
onde limpamos os feijoeiros, escavando nos terrenos cobertos pela
enchente. Um rapaz grande e magro, todo ele cotovelos e joelhos.
Terminou há pouco o seu noviciado. Solícito, mas lento. Mas serve.
Acho que mo enviaram porque ele revelou ser trapalhão com as
mãos, quer com a caneta quer com o pincel, mas uma pá é mais à
medida dele. Terá de servir! No exterior do jardim de ervas murado,
as pequenas extensões de terra cultivada estendiam-se, e à direita,
para lá duma ligeira subida, os campos cultivados de ervilhas
estendiam-se até o Meole Brook, que constituía a fronteira posterior
do enclave da abadia. E aí se encontrava o Irmão Winfrid em plena
ação enérgica, um jovem alto, solto e articulado, cujo cabelo hirsuto
cercava a sua tonsura, de hábito arregaçado até os joelhos
musculosos e dois grandes pés metidos em tamancos de madeira,
escavando com a pá tanto o emaranhado fibroso dos feijoeiros
como as folhas de relva. Lançou-lhes um olhar alegre quando
passaram e voltou ao seu trabalho sem quebrar o ritmo. Hugh teve
um vislumbre rápido de uma face curtida pelo tempo, com uns olhos
azuis, redondos e sinceros.
— Sim, acho que ele deverá servir muito bem — disse ele,
impressionado e divertido —, quer com uma pá ou com um
machado de batalha. Bem falta me faziam uma dúzia destes no
castelo, se quisessem oferecer os seus serviços.
— Ele não te serviria para nada — disse Cadfael firmemente. —
Tal como a maioria dos homens grandes, é a alma mais gentil que
respira. Deitaria fora a sua espada para poder levantar o homem
que tivesse morto. Os pequenos e estridentes terriers é que
mostram os dentes.

Emergiram na faixa dos canteiros de flores, para lá do jardim da


cozinha, onde as roseiras tinham crescido com pés altos e finos, e
começavam a perder as suas folhas. Contornando o rebordo do
canteiro, desembocaram no grande pátio, a esta hora da manhã
quase deserto, excetuando um ou dois viajantes a entrarem e a
saírem da casa dos hóspedes, e alguma movimentação perto dos
estábulos. Assim que contornaram a sebe alta para entrarem no
pátio, uma pequena figura lançou-se através do portão da granja,
onde os celeiros e os sótãos de armazenamento alinhavam os três
lados de um pátio compacto, e começou a correr por entre os
corredores do pátio em direção ao claustro, surgindo um minuto
depois na outra extremidade de uma alameda, com olhos baixos e
compenetrados, e as suas mãos rechonchudas e infantis,
devotamente colocadas no cinto, a imagem da inocência. Cadfael
deteve-se, colocando uma mão no braço de Hugh, de modo a evitar
confrontar-se com o rapaz demasiado frontalmente.
A criança alcançou a esquina da enfermaria, contornou-a e
desapareceu. Houve uma sensação distinta de que ao desaparecer
da vista de qualquer observador que estivesse eventualmente no
grande pátio, desatara novamente a correr, porque subitamente
surgiu um calcanhar nu, o qual desapareceu logo de seguida. Hugh
sorriu de soslaio. Cadfael apercebeu-se do olhar do amigo e nada
disse.
— Deixa-me arriscar! — disse Hugh, cintilando. — Apanhaste as
tuas maçãs ontem e elas ainda não estão dispostas nos tabuleiros
do sótão. Felizmente não foi o Prior Robert que o viu a atirar-se a
elas, e com o peito do seu decote inchado como uma dama distinta!
— Oh, existem uns quantos de nós que têm um entendimento
silencioso. Ele deve ter levado as maiores, mas só quatro. Rouba
com moderação. Em parte por obrigação, e em parte porque o gozo
da ação consiste em tentar a providência uma e outra vez.
A sobrancelha preta de Hugh ergueu-se assinalando uma
interrogação divertida.
— Porquê quatro?
— Porque nós só temos quatro rapazes na escola, e se ele roubar
rouba para todos. Existem vários noviços não muito mais velhos,
mas quanto a esses ele não tem obrigações. Devem ser eles
próprios a roubar ou a passarem sem elas. E sabes — perguntou
Cadfael com complacência — quem é aquele jovem membro?
— Não sei, mas estás prestes a surpreender-me.
— Duvido que esteja. Aquele é Senhor Richard Ludel, o novo
senhor de Eaton. Apesar de, obviamente — disse Cadfael,
contemplando preocupadamente a inocência ensombrada —, ele
ainda não o saber.
Richard estava sentado de pernas cruzadas na margem
verdejante por cima do açude, mordiscando pensativamente os
últimos fragmentos brancos que rodeavam o caroço da sua maçã,
quando um dos noviços veio à sua procura.
— O Irmão Paul chama por ti — anunciou o mensageiro. com a
austera e complacente cara de uma pessoa consciente da sua
própria virtude, e que entrega uma convocação provavelmente
ominosa a outro. — Ele está no gabinete. É melhor que te apresses.
— Eu? — perguntou Richard, de olhos redondos, desviando o
olhar do gozo que estava a sentir com a maçã roubada. Ninguém
tinha um motivo muito grande para recear o Irmão Paul, o senhor
dos noviços e das crianças, o qual era o mais gentil e paciente dos
homens mas, se possível, mesmo uma reprovação vinda da sua
parte era para ser evitada.
— Para que é que ele me quer?
— Tu deves sabê-lo — disse o noviço, com uma suave intenção
maliciosa. — Seria pouco provável que ele mo dissesse. Vai e
descobre por ti próprio, se realmente não fazes ideia.
Richard lançou o caroço roído para o açude e ergueu-se
lentamente da relva.
— No gabinete, dizes tu?
A utilização de um local tão privado e cerimonial representava
algo de grave e, apesar de ele não ter consciência de nenhum
delito, senão alguns inteiramente desculpáveis que lhe podiam ser
atribuídos durante as últimas semanas, competia-lhe manter-se
atento. Partiu lenta e pensativamente, arrastando os seus pés
descalços na frescura da relva, fazendo deliberadamente pequenos
buracos ao longo das pedras do pátio, e apresentou-se
adequadamente no pequeno e escuro gabinete, onde os visitantes
do mundo exterior poderiam ocasionalmente falar em privado com
os seus filhos enclausurados.
O Irmão Paul estava de pé de costas para a única janela,
tornando a pequena sala ainda mais escura do que o necessário. O
anel de cabelo liso e cortado rente que lhe rodeava a tonsura era
ainda preto e forte aos cinquenta; e normalmente, quando se
sentava ou ficava de pé, tinha tendência a inclinar-se, devido ao fato
de passar tantos anos a lidar com criaturas com metade do seu
tamanho e desejando tranquilizá-las em vez de as atemorizar com a
sua estatura e porte. Um homem gentil, erudito e indulgente, mas
um bom professor apesar de tudo e alguém que conseguia manter
os seus pupilos na ordem sem ter de os aterrorizar. O mais velho
dos indivíduos destinados à vida conventual que ainda permanecia
no convento, e que fora oferecido a Deus quando tinha cinco anos e
que agora se aproximava dos quinze e do seu noviciado, contava
histórias terríveis do antecessor do Irmão Paul, o qual governara
com a chibata e possuía um olhar que podia gelar o sangue.
Richard fez a sua pequena vênia obrigatória e manteve-se direito
perante o seu mestre, erguendo para a luz um semblante
impenetrável, iluminado por dois olhos azuis esverdeados e de uma
inocência radiante. Uma criança ativa e magra, pequena para a sua
idade, mas ágil e flexível como um gato, com uma espessa crista de
caracóis de cabelo castanho claro e uma faixa de sardas douradas,
que se estendiam pelas maçãs do rosto e pela cana do seu nariz
limpo e direito. Permaneceu de pé com as pernas firmemente
separadas, os dedos grandes dos pés enrolando-se no soalho e
olhou fixamente para a cara do Irmão Paul. obediente e
inocentemente. Paul estava familiarizado com aquele olhar, que não
pestanejava.
— Richard — disse ele com suavidade —, vem sentar-te ao meu
lado. Tenho algo para te dizer.
Aquilo só por si foi o suficiente para acabar com o seu
constrangimento infantil, somente para o substituir com outro mais
grave, pois o tom era tão atencioso e indulgente, que profetizava a
necessidade de conforto. Porém, o que a súbita e flamejante
expressão de franzir o nariz de Richard expressou foi simples
confusão. Permitiu-se ser arrastado para o banco e sentar-se aí
dentro do círculo do braço do Irmão Paul, os pés descalços mal
tocando o chão, e aí se manteve quieto. Podia estar preparado para
ser repreendido, mas passava-se aqui algo para o qual ele não
estava preparado, e não fazia ideia de como o confrontar.
— Tu sabes que o teu pai combateu em Lincoln pelo rei e que foi
ferido? E que desde então tem estado muito debilitado.
Confiante numa juventude robusta, bem alimentado e bem
tratado, Richard dificilmente sabia o que pudesse significar estar
debilitado, exceto que era algo que acontecia aos velhos.
— Sim, Irmão Paul! — disse, apesar de tudo, numa fina voz
obsequiosa, visto que era isso que esperavam.
— A tua avó enviou um criado ao xerife suserano esta manhã. Ele
trouxe uma triste mensagem, Richard. O teu pai fez a sua última
confissão e recebeu o seu Salvador. Ele está morto, meu filho. Tu és
o herdeiro dele, e deves mostrar-te merecedor do seu nome. Na
vida e na morte — disse o Irmão Paul —, ele está na mão de Deus.
Tal como estamos todos nós.
O olhar de espanto contemplativo não se alterara. Os dedos dos
pés de Richard embateram fortemente contra o chão e as suas
mãos agarraram com força a extremidade do banco, sobre o qual
estava empoleirado.
— O meu pai está morto? — repetiu, cuidadosamente.
— Sim, Richard. Mais cedo ou mais tarde, toca-nos a todos.
Todos os filhos devem um dia ficar no lugar dos seus pais e assumir
as responsabilidades deles.
— Então serei eu agora o suserano de Eaton?
O Irmão Paul não cometeu o erro de tomar isto por uma simples
expressão de autocongratulação acerca de uma conquista pessoal,
considerando-o em vez disso como uma aceitação inteligente
daquilo que ele acabara de dizer. O herdeiro deve receber o fardo e
o privilégio que o seu antepassado lhe concedeu.
— Sim, tu és o suserano de Eaton, ou serás assim que tiveres a
idade devida. Tens de estudar para obteres sabedoria e
administrares as tuas terras e os teus servos justamente. O teu pai
haveria de esperar isso de ti.
Lutando ainda com os aspectos práticos da sua nova situação,
Richard sondou no passado da sua memória uma visão clara dum
pai, que agora o desafiava a ser merecedor. Nas suas raras e mais
recentes visitas a casa, no Natal e na Páscoa, fora recebido à
chegada e à partida num quarto de doentes, o qual cheirava a ervas
e a velhice prematura, e era-lhe permitido beijar uma cara cinzenta,
austera e a escutar uma voz profunda, indiferente devido à
fraqueza, chamando-lhe filho e exortando-o a estudar e a ser
virtuoso. Porém, pouco mais havia e até mesmo a cara se
obscurecera na sua memória. Percorreu com espanto as
recordações que possuía. Nunca tinham sido suficientemente
próximos para algo mais íntimo.
— Tu amavas o teu pai e fizeste o teu melhor para lhe agradar,
não é verdade, Richard? — incitou, gentilmente, o Irmão Paul. —
Deves ainda fazer o que lhe agradava. E deves rezar pela sua alma,
o que será também para ti um conforto.
— Terei agora de ir para casa? — perguntou Richard, cuja mente
estava mais necessitada de informação do que de conforto.
— Para o funeral do teu pai, certamente. Mas não para lá ficar,
não por enquanto. Era o desejo do teu pai que tu aprendesses a ler
e a escrever, e a ser devidamente versado nos números. E tu ainda
és jovem, o teu tutor tomará conta do teu feudo até tu atingires a
maioridade.
— A minha avó — disse Richard, de modo explicativo — não vê
qualquer sentido no fato de eu aprender as letras. Ficou zangada
quando o meu pai me mandou para aqui. Diz que um clérigo letrado
é mais do que aquilo que qualquer feudo precisa, e os livros não são
uma profissão adequada para um nobre.
— Certamente, ela concordará com os desejos do teu pai. Além
disso, trata-se de um dever sagrado, agora que ele está morto.
Richard fez sobressair, desconfiadamente, o lábio.
— Mas a minha avó tem outros planos para mim. Ela quer casar-
me com a filha do nosso vizinho, porque a Hiltrude não tem irmãos e
será a herdeira tanto de Leighton como de Wroxeter. A avó agora
vai querer isso mais do que nunca — disse Richard simplesmente,
olhando ingenuamente para cima, para a cara ligeiramente
sobressaltada do Irmão Paul.
Levou alguns momentos a assimilar estas notícias e a relacioná-
las com a entrada do rapaz na escola da abadia, quando este ainda
mal tinha cinco anos de idade. Os feudos de Leighton e Wroxeter
ficavam um de cada lado de Eaton, e podiam bem ser uma
perspectiva tentadora, mas Richard Ludel simplesmente não
concordara com os planos ambiciosos que a sua mãe tinha para o
neto, já que tomara medidas para colocar o rapaz fora do alcance
da senhora, e um ano mais tarde nomeara o abade Radulfus
guardião de Richard, para o caso de ele próprio ter de renunciar ao
cargo demasiado cedo. “O Pai Abade sabia muito bem o que estava
para acontecer”, pensou o Irmão Paul, “pois ele certamente não
aprovaria tal abuso do seu pupilo, o qual ainda se encontrava
praticamente na infância.”
Muito cautelosamente, e enfrentando o olhar imperturbável do
rapaz, disse com uma expressão séria, — O teu pai nada disse de
quais seriam os planos que tinha para ti, quando fosses
completamente crescido. Tais assuntos têm de esperar pela altura
adequada e essa ainda não chegou. Não precisas preocupar a tua
cabeça com tais assuntos, ainda durante alguns anos. Estás a cargo
do Pai Abade e ele saberá o que é melhor para ti — e acrescentou
cuidadosamente, dando lugar à natural curiosidade humana: —
Conheces esta criança, a tal filha do teu vizinho?
— Ela não é uma criança — declarou Richard desdenhosamente.
— É bastante velha. Foi prometida em casamento em tempos, mas
o noivo dela morreu. A minha avó ficou satisfeita, porque depois de
esperar alguns anos por ele, a Hiltrude não teria muitos
pretendentes, nem mesmo sendo bonita, portanto seria deixada
para mim.
O sangue do irmão Paul gelou com as insinuações. Bastante
velha provavelmente significaria não mais do que alguns anos
depois dos vinte, mas até isso era uma diferença inaceitável. Claro
que tais casamentos eram comuns, onde existissem hipóteses de
serem obtidas terras e propriedades, mas não podiam certamente
ser encorajados. Havia muito que o Abade Radulfus sentia remorsos
ao aceitar crianças entregues pelos seus pais ao claustro, e
resolvera não admitir mais rapazes até que estes tivessem idade
suficiente para escolherem por eles próprios. Não seria certamente
mais favorável à entrega de uma criança à disciplina quase
sepulcral do matrimônio.
— Bem, podes tirar tais assuntos da tua cabeça — disse ele
decididamente. — A tua única preocupação, agora e durante alguns
anos, deve ser com as tuas lições e com os passatempos
adequados à tua idade. Agora podes voltar para junto dos teus
colegas, se desejares, ou ficar aqui sossegadamente durante um
tempo, como preferires.
Richard deslizou prontamente para fora do amplexo do braço
protetor e colocou-se firmemente de pé, frente ao banco, disposto a
enfrentar imediatamente o mundo e os seus curiosos companheiros
e não via qualquer razão para evitar o encontro, mesmo que por um
momento. Ainda tinha de compreender o que lhe acontecera.
Conseguia compreender o fato, mas as implicações eram mais
lentas a alcançarem a sua inteligência até lhe chegarem ao coração.
— Se houver mais alguma coisa que tu desejes perguntar —
disse o Irmão Paul, observando-o ansiosamente —, ou se sentires a
necessidade de conforto ou aconselhamento, vem novamente ter
comigo e iremos falar com o Pai Abade. Ele é mais sábio do que eu
e mais capaz de te ajudar a atravessar esta fase.
Até podia ser, mas um rapaz que se encontrava na escola
dificilmente se submeteria voluntariamente a uma entrevista com
uma personagem tão aterradora. A face solene de Richard
transformara-se na expressão de alguém que tentava avançar
através de caminhos pouco familiares e espinhosos. Fez a sua
vênia de despedida e saiu rapidamente. O Irmão Paul manteve-se a
observá-lo da janela até o perder de vista e não tendo visto nenhuns
sinais de angústia iminente, dirigiu-se ao gabinete do Abade para
lhe relatar o que é que a Dama Dionísia Ludel planejava para o seu
neto.
Radulfus ouviu-o com uma atenção alerta e um franzir de testa
pensativo. Unir Eaton com ambos os seus feudos vizinhos era uma
ambição compreensível. A propriedade resultante seria um grande
poder no condado e, sem dúvida, a formidável senhora considerava-
se mais do que capaz de o governar sobre as vontades da noiva, do
pai da noiva e do noivo criança. A ganância da terra era uma
poderosíssima força condutora e as crianças eram possessões
dispensáveis em troca de um lucro tão desejado.
— Mas nós preocupamo-nos desnecessariamente — disse
Radulfus, tirando resolutamente a questão dos seus ombros. — O
rapaz está ao meu cuidado e aqui vai ficar. Quaisquer que sejam as
suas intenções, ela não será capaz de lhe tocar. Podemos esquecer
o assunto. Ela não constitui uma ameaça para Richard nem para
nós.

Por muito sábio que fosse, esta foi uma das ocasiões em que o
Pai Abade Radulfus verificaria que as suas previsões estavam
totalmente erradas.
2

Estavam todos na casa do capítulo, na vigésima manhã de


Outubro, quando o tutor do feudo de Eaton se apresentou com uma
mensagem da sua senhora e pedindo uma audiência. John de
Longwood era um homem de cinquenta anos, corpulento e barbudo,
com um crânio que começava a ficar calvo e movimentos metódicos
e deliberados. Fez uma vênia respeitosa ao abade e entregou a sua
incumbência abruptamente e de maneira prática, como alguém
desempenhando um dever, mas sem se comprometer a aprovação
ou desaprovação.
— Meu senhor, a Dama Dionísia Ludel envia-me com as suas
devotas saudações e pede-lhe que lhe envieis de volta, e sob o meu
cargo, o seu neto Richard, de modo a que este possa tomar o seu
lugar por direito como suserano do feudo de Eaton na sala do seu
pai.
O abade Radulfus recostou-se no seu cadeirão e considerou o
mensageiro com uma cara impassível.
— Certamente que Richard irá assistir ao funeral do seu pai. Para
quando será?
— Amanhã, meu senhor, antes da Missa Solene. Mas essa não é
a intenção da minha senhora. Ela quer que o jovem suserano deixe
os seus estudos e venha ocupar o seu lugar formal como suserano
de Eaton. Devo dizer que a Dama Dionísia sente ser a pessoa
adequada para se encarregar dele agora que ele vai receber a sua
herança, como assegura que vai receber, sem demora ou
impedimento. Tenho ordens para levá-lo de volta comigo.
— Temo, senhor tutor — disse o abade com deliberação —, que
possa não ser capaz de levar a cabo as suas ordens. Richard Ludel
entregou-me os cuidados do seu filho, no caso de ele morrer antes
do rapaz alcançar a maioridade. Era seu desejo que o seu filho
fosse devidamente educado, para melhor administrar o seu
patrimônio, quando o viesse a herdar. Eu pretendo cumprir o que
empreendi. Richard permanece ao meu cuidado até atingir a idade
para assumir o controle dos seus próprios negócios. Até essa data,
estou certo, tu o servirás como serviste o pai dele e manterás as
terras dele em boas mãos.
— Muito certamente o farei, meu senhor — disse John de
Longwood, com mais veemência do que aquela que demonstrara ao
entregar a mensagem da sua senhora. — O meu suserano Richard
deixou-me tudo desde Lincoln e nunca teve motivo para considerar
isso um erro, nem o seu filho virá a ser um perdedor através de
mim. Nisso pode confiar.
— E eu confio. Portanto podemos continuar aqui descansados e
tomar tão bem conta da educação de Richard como do seu bem-
estar, como tomarás conta das propriedades dele.
— E que resposta deverei eu levar à Dama Dionísia? —
perguntou John, sem qualquer decepção aparente ou relutância.
— Diz à tua Senhora que eu a saúdo reverentemente em Cristo, e
que Richard irá amanhã como é devido e devidamente escoltado —
disse o abade com uma ênfase ligeiramente repreensiva —, mas
que eu tenho o encargo sagrado do seu pai para manter a sua tutela
até ele ser um homem, e serei fiel aos desejos do seu pai.
— E como tal o direi, meu senhor — disse John com um olhar
direto, e fazendo uma profunda reverência, saiu com desenvoltura
da casa do capítulo.
O Irmão Cadfael e o Irmão Edmund, o enfermeiro, entraram no
grande pátio mesmo a tempo de verem o mensageiro de Eaton
montar o seu entroncado garrano galês na casa do portão e sair
cavalgando sem pressa em direção ao Foregate.
— Ali vai um homem que, a não ser que eu esteja muito
enganado — observou o Irmão Cadfael de modo solene —, nem por
sombras está seriamente desagradado por levar de volta um não
redondo. Nem sequer com medo de o entregar. Uma pessoa pode
pensar que ele vai saborear o momento.
— Ele não está dependente da boa vontade da senhora — disse
o Irmão Edmund. — Somente o xerife como suserano pode
ameaçar o seu título de posse, até o rapaz ser o seu próprio dono, e
John sabe o seu valor. E ela também o sabe, para todos os efeitos,
tendo uma cabeça astuta e uma devida apreciação do que é uma
boa administração. Pelo bem da paz, ele fará o que ela lhe ordenar,
e não tem de apreciar a tarefa, apenas manter a boca fechada.
E John de Longwood era um homem de poucas palavras nas
melhores alturas e não seria, provavelmente, para ele sofrimento
algum conter a sua dissensão e conservar uma expressão
impassível.
— Mas isto não será o fim da história — avisou Cadfael. — Se ela
tem um olho ganancioso em Wroxeter e Leighton, não irá desistir
tão facilmente e o rapaz é o único meio que ela tem para as obter.
Ainda iremos ouvir mais da Dama Dionísia Ludel.
O Abade Radulfus levara a sério o aviso. O jovem Richard foi
acompanhado até Eaton pelo Irmão Paul, o Irmão Anselm e o Irmão
Cadfael, uma escolta suficientemente robusta para afastar até uma
tentativa de rapto, o que era improvável ao extremo. Era muito mais
provável que a senhora tentasse usar sobre o rapaz as amáveis
persuasões de afeto e os laços de sangue, com lágrimas e lisonjas,
e colocá-lo num beco sem saída no campo inimigo, enchendo-o de
saudades de casa. Se ela tivesse tais ideias, refletiu Cadfael,
estudando igualmente a expressão de Richard, estaria a subestimar
a inocente astúcia da criança. O rapaz era bem capaz de avaliar os
seus próprios interesses e tirar partido das vantagens que tinha. Ele
era suficientemente feliz na escola, tinha colegas da sua própria
idade e não abandonaria de ânimo leve uma vida conhecida e
agradável por uma ainda estranha, destituída de irmãos e
ameaçada com uma noiva já velha a seus olhos. Sem dúvida, ele
valorizava e ansiava pela sua herança, mas era sua e estava
segura, quer ele ficasse na escola ou voltasse para casa, embora
ainda não lhe fosse permitido governá-la como ele desejasse. Não,
seria preciso mais do que lágrimas demasiado maternais e abraços
para assegurar a aliança de Richard, especialmente lágrimas e
abraços de uma fonte nunca antes conhecida por ser demasiado
amável.
Era uma viagem de onze quilômetros ou mais da abadia até o
feudo de Eaton, e pela honra e dignidade do mosteiro de Saint Peter
e de Saint Paul, ao comparecer numa ocasião tão solene, foram
enviados à frente a cavalo. A Dama Dionísia enviara um lacaio com
um robusto pônei galês para o seu neto, talvez como um primeiro
passo numa campanha para o alistar como seu aliado, e o presente
fora recebido com um prazer ávido, mas por sua vez não haveria
necessariamente de ser retribuído da mesma maneira. Um presente
é um presente e as crianças são suficientemente astutas e têm uma
percepção suficiente apurada dos motivos dos mais velhos para
receberem o que lhes é oferecido sem ser solicitado sem a mínima
intenção de retribuírem do modo que é esperado. Richard montou o
seu novo pônei orgulhosa e alegremente e, na delicada manhã de
orvalho de Outono, ao sentir o prazer de estar liberto da escola
durante o dia, quase se esqueceu da razão sombria do seu passeio.
O lacaio, um rapaz de pernas compridas de dezesseis anos,
galopava alegremente a seu lado e conduzia o pônei enquanto
chapinhavam atravessando o vau em Wroxeter, onde séculos atrás
os Romanos tinha atravessado o Severn. Nada restava agora da
sua curta estada, apenas uma parede lúgubre e partida de cor
castanha-avermelhada, erguendo-se contra os campos verdes, e
um monte de pedras espalhadas havia muito saqueadas pelos
aldeãos para as suas próprias construções. No local do que alguns
diziam ter sido uma cidade e uma fortaleza, existia agora um feudo
florescente, abençoado com terra fértil e produtiva, e uma igreja
próspera que mantinha quatro cônegos.
Cadfael observou-os com algum interesse enquanto passavam,
pois este era um dos dois feudos que a Dama Dionísia esperava
poder consolidar à propriedade de Ludel casando Richard com a
moça Hiltrude Astley. Uma propriedade tão encantadora era
certamente tentadora. Toda esta extensão de terra no lado norte do
rio estendia-se perante eles em ricos prados de água e campos
ondulantes, erguendo-se aqui e ali numa graciosa colina com
aglomerados de árvores formando estrelas, e derretendo-se
simplesmente no primeiro dourado da sua folhagem de Outono. A
terra erguia-se na linha do horizonte em direção ao cume arborizado
do Wrekin, uma grande cobertura palpitante de bosque que se
estendia pela colina abaixo em direção ao Severn e lançava uma
grande trança da sua escura crina através da terra de Ludel,
avançando para o interior dos bosques da abadia de Eyton por
Severn. Havia apenas um quilômetro e meio entre a herdade de
Eyton, perto do rio, e o feudo de Richard Ludel em Eaton. Os
próprios nomes provinham da mesma raiz, apesar do tempo os ter
separado um do outro e a paixão normanda pela ordem e
formulação ter fixado e retificado as diferenças.
Enquanto se aproximavam, a sua visão da ampla floresta
espinhosa alterava-se e esfumava-se. Quando, por fim, alcançaram
o feudo viram-no da sua extremidade e a colina crescera tornando-
se uma montanha abrupta, com algumas faces de pedra a pique
despontando da negra cabeleira de árvores, perto do cume. A aldeia
repousava serenamente nos prados no limiar do sopé, o feudo
dentro da sua longa paliçada erguendo-se sobre uma cripta, com a
pequena igreja perto dela. Fora originariamente uma capela
dependente da igreja da vizinha Leighton, a qual ficava alguns
quilômetros a jusante.
Desmontaram já dentro da paliçada e o Irmão Paul pegou
firmemente na mão de Richard, assim que os pés do rapaz tocaram
no chão, e a Dama Dionísia aproximou-se deslizando pelos
degraus, saindo do vestíbulo para os receber e avançando com
autoridade sobre o neto, parando para o beijar. De certo modo
cauteloso, Richard levantou a cara e submeteu-se ao cumprimento,
mas manteve a mão firmemente apertada na de Paul. Com um
poder a pedir a sua custódia ele sabia onde se encontrava, com o
outro ele não tinha tanta certeza.
Cadfael observou com interesse a senhora e apesar de conhecer
a sua reputação, nunca estivera na sua presença. Dionísia era alta e
ereta, certamente com não mais do que cinquenta anos e uma
saúde vigorosa. Além disso, era uma mulher elegante, embora de
um tipo um pouco assustador, com feições severas e claras, e olhos
cinzentos e frios. No entanto, esta frieza lançou um aviso
incendiado, enquanto se aproximava da escolta de Richard e
registrava o poder do inimigo. A criadagem saíra atrás dela e o
padre da paróquia estava ao seu lado. Não haveria compromissos
nesse momento. Talvez mais tarde, quando Richard Ludel estivesse
devidamente sepultado e ela pudesse abrir a casa numa
hospitalidade fúnebre, ela desse o primeiro passo. O herdeiro
dificilmente podia manter-se afastado da companhia da sua avó,
neste dia em especial.
Os rituais solenes a Richard Ludel seguiram o seu curso devido.
O irmão Cadfael fez uma boa utilização do seu tempo pesquisando
a casa do falecido, desde John de Longwood até o pastor mais
jovem. Tudo indicava que o local prosperara sob a administração de
John, e os seus homens estavam satisfeitos com a sua parte. Hugh
teria bons motivos para deixar as coisas como estavam. Alguns
vizinhos estavam presentes, entre eles Fulke Astley, o qual
mantinha um olhar alerta no que poderia ganhar se o casamento
pretendido alguma vez tivesse lugar. Cadfael o vira uma ou duas
vezes em Shrewsbury, um homem bruto e egocêntrico nos seus
quarenta, ficando gordo, com movimentos pesados; não era
certamente um adversário à altura daquela mulher inquieta, ativa e
temperamental, a qual permanecia com uma expressão horrenda
sobre o ataúde do seu filho. Ela mantinha Richard a seu lado, com
uma mão mais possessiva do que protetora pousada no seu ombro.
Os olhos do rapaz tinham-se dilatado de tal forma que pareciam
engolir metade da sua cara, tão solenes como a campa que fora
aberta para o seu pai, a qual estava agora prestes a ser fechada. A
morte distante era uma coisa, a sua presença real outra coisa bem
diferente. Até esse momento, Richard não compreendera totalmente
como esta privação e separação eram finais.
A mão da avó não lhe largou o ombro, enquanto o cortejo fúnebre
regressava ao feudo e os alimentos preparados especialmente para
o funeral os esperavam no vestíbulo. Os dedos longos, magros e
envelhecidos agarravam firmemente o tecido do melhor casaco do
rapaz e ela conduziu-o por entre hóspedes e vizinhos, com correção
mas apresentando-o como homem da casa e como figura que
preside nas exéquias do pai. Essa atitude não causou qualquer mal.
Richard estava completamente ciente da sua posição, e era bem
capaz de se ressentir de qualquer infração dos seus privilégios. O
Irmão Paul observava-o com alguma ansiedade e sussurrou a
Cadfael que seria melhor tirar dali o rapaz antes que todos os
hóspedes partissem, senão talvez nem o conseguissem tirar dali por
falta de testemunhas. Enquanto o padre, bem como alguns dos
outros, que não pertenciam à casa, ainda estivessem presentes, ele
não poderia ser retido pela força.
Cadfael estivera a observar os hóspedes, que lhe eram pouco
conhecidos. Encontravam-se lá dois monges de hábito cinzento da
casa de Savigniac de Buildwas, a qual se encontrava a alguns
quilômetros de distância a jusante, e para a qual Ludel fora, na
altura, um patrono generoso e junto a eles, embora modestamente
retirado para um canto, encontrava-se uma personagem de mais
difícil identificação. Envergava um hábito monástico preto, o qual
estava gasto e bastante puído na bainha, mas uma cabeça de
cabelo escuro e não tonsurado via-se através do seu capuz e um
cintilar de luz refletiu-se sob dois ou três objetos metálicos que
pendiam sob o seu ombro, os quais se assemelhavam a medalhas
de mais do que uma peregrinação. Talvez uma religião itinerante,
prestes a instalar um claustro. Havia já uns quarenta anos que
Savigny ficava em Buildwas, fundada por Roger de Clinton, bispo de
Lichfield. Certamente que estes três observadores distantes seriam
excelentes testemunhas. Perante hóspedes tão veneráveis, não se
poderia tentar qualquer tipo de violência.
De modo cortês, o Irmão Paul aproximou-se de Dionísia
preparando-se para se desculpar, pois teria de partir levando
consigo o seu protegido, mas a senhora antecipou-se, os seus olhos
com um brilho de aço e uma voz enganadoramente doce.
— Irmão, imploro-lhe que me deixe ficar com o Richard esta noite.
Ele teve um dia cansativo e começa agora a ficar cansado. Não
deve partir antes do dia de amanhã — mas ela não disse que o
enviaria de manhã e a mão dela manteve-se firme sob o seu ombro.
Falara suficientemente alto, de modo a ser ouvida por todos, uma
matrona solícita preocupada com o seu jovem.
— Senhora — respondeu o Irmão Paul. tirando o melhor partido
de uma situação de desvantagem —, infelizmente, estava prestes a
informá-la que temos de partir. Não tenho qualquer autoridade para
deixar o Richard ficar consigo e somos esperados para o serviço de
Vésperas. Peço-lhe que nos perdoe.
O sorriso da senhora era mel, mas os seus olhos eram
penetrantes e frios como facas. Fez mais uma tentativa, talvez mais
para mostrar àqueles que escutavam o que se passava do que com
alguma esperança de alcançar alguma coisa nesse instante, pois
ela sabia que a ocasião a tornava impotente.
— Certamente, o Abade Radulfus compreenderia o meu desejo
de ficar com a criança durante mais um dia. O meu próprio sangue,
o único que me resta e eu tenho-o visto tão pouco durante estes
últimos anos. Deixa-me inconsolável, se o afasta de mim tão cedo.
— Senhora — disse o Irmão Paul, firmemente mas pouco à
vontade —, lamento resistir ao seu desejo, mas não tenho escolha.
Fiz um voto de obediência ao meu abade, em como trazia Richard
de volta comigo, antes do anoitecer. Vem, Richard, temos de ir
andando.
Durante um instante, ela manteve a mão sobre o ombro de
Richard apertando-o ligeiramente, tentada a agir mesmo
publicamente, mas reconsiderou. Esta não era a altura para ficar
mal vista, mas para conquistar simpatias. Abriu a mão e Richard
avançou, com um ar de dúvida, para longe do seu alcance e para
perto de Paul.
— Diga ao senhor abade — disse Dionísia, os seus olhos
punhais, mas a voz ainda jovial e doce — que eu procurarei ter um
encontro com ele, muito em breve.
— Direi, senhora — replicou o Irmão Paul.
Ela cumpriu a sua palavra. No dia seguinte, cavalgou até o
enclave da abadia, bem escoltada, montando corajosamente e da
forma mais impressionante, para pedir uma audiência ao abade.
Esteve fechada com ele durante quase uma hora, mas quando saiu
assemelhava-se a um fogo frio de ressentimento e raiva, e lançou-
se através do grande pátio como um vento forte e súbito,
espalhando noviços inofensivos como se estes fossem folhas
levadas pelo vento, e afastou-se novamente de regresso a casa,
num trote lento no qual o seu calmo e pequeno cavalo espanhol não
sentia qualquer prazer, com os seus lacaios arrastando-se mudos e
receosos, bem na retaguarda.
— Ali vai uma senhora que está habituada a levar a dela avante
— observou o Irmão Anselm —, mas desta vez, creio eu, deu de
caras com um rival à sua medida.
— Contudo, ainda não ficaremos por aqui — disse o Irmão
Cadfael secamente, observando o pó a assentar depois da sua
partida.
— Não duvido da sua vontade — concordou Anselm —, mas o
que pode ela fazer?
— Isso — respondeu Cadfael, com um certo interesse —, sem
dúvida, que o saberemos no seu devido tempo.
Só tiveram de esperar dois dias. O representante de leis da Dama
Dionísia anunciou-se cerimoniosamente no capítulo, requerendo
uma audiência. Um eclesiástico ancião, magro mas vivo de porte e
irascível de traços, entrou apressadamente na sala do capítulo com
um monte de pergaminhos debaixo do braço, e dirigiu-se à
assembleia com uma dignidade fria e repreensiva, mais com pena
do que com raiva. Estava espantado, por um clérigo e letrado de tão
conhecida integridade e benevolência como o era o abade negar os
laços de sangue e recusar entregar Richard Ludel à custódia e
cuidados dedicados da sua única parente próxima, privada agora de
todos os homens da sua família, e ansiosa por ajudar, guiar e
aconselhar o seu neto quanto à sua nova propriedade. Um grande
mal estava a ser cometido tanto para a avó como para a criança, ao
se negar a necessidade natural destes e ao se frustrar o seu mútuo
afeto. E, contudo, uma vez mais o eclesiástico apresentou o pedido
solene de que o mal fosse retificado e que Richard Ludel fosse
novamente enviado e regressasse com ele para o seu feudo de
Eaton.
O Abade Radulfus mantinha-se sentado com uma expressão
paciente e impassível e escutava, cortesmente, o final deste
discurso estudado.
— Agradeço-lhe o seu recado — disse, então, suavemente —, foi
bem entregue. Não posso, no entanto, alterar a resposta que dei à
sua senhora. Richard Ludel, o qual está morto, entregou o seu filho
aos meus cuidados, através de carta devidamente escrita e
testemunhada. Aceitei esse encargo e agora não posso renunciar a
ele. Era o desejo do pai que o filho fosse aqui educado, até atingir a
maioridade e assumir o controle sobre a sua própria vida e
assuntos. Isso eu prometi, e tal cumprirei. A morte do pai só torna a
minha obrigação mais sagrada e obrigatória. Diga isso à sua
senhora.
— Meu Senhor — disse o sacristão, que não esperava outra
resposta e já preparado para o próximo passo na sua incumbência
—, noutras circunstâncias, tal documento legal pode não servir
como único argumento válido num tribunal. Os juízes do rei não
prestariam menos atenção ao argumento de uma matrona de
posição, viúva e agora despojada do seu filho e totalmente capaz de
satisfazer a todas as necessidades do seu neto, para além da
natural necessidade que tem do conforto da sua presença. A minha
senhora deseja informá-lo de que, se não desistir do rapaz,
pretende recorrer à lei para o recuperar.
— Então só posso aprovar as suas intenções — disse o abade,
serenamente. — Uma decisão judicial na corte do rei deve ser
satisfatória para ambos, visto que nos retira o fardo da escolha.
Diga-lhe isso, e diga que eu espero a audiência com a devida
submissão. Mas até que tal julgamento seja realizado, devo manter
a minha própria jura. Fico satisfeito — concluiu com um sorriso seco
e reservado, — que estejamos assim de acordo.
Não havia mais nada que o eclesiástico pudesse fazer para além
de aceitar esta inesperada resposta como lhe era apresentada e
fazer uma vênia enquanto se retirava, tão graciosamente quanto
podia. Um ligeiro sussurrar e agitação de curiosidade e espanto
perpassara através dos assentos da casa do capítulo, mas o Abade
Radulfus suprimiu-o com um olhar e foi só quando os irmãos
surgiram no grande pátio e se dispersaram para o seu trabalho, que
os comentários e especulação rebentaram abertamente.
— Terá ele sido prudente ao encorajá-la? — espantou-se o Irmão
Edmund, atravessando na direção da enfermaria com Cadfael a seu
lado. — E se ela realmente nos levar a tribunal? Um juiz pode muito
bem tomar o partido de uma senhora solitária, que quer o seu neto
em casa.
— Tem calma — disse Cadfael, placidamente. — Não passa de
uma ameaça oca. Ela, como qualquer outro, sabe bem que a lei é
lenta e dispendiosa nas melhores alturas e esta não é uma das
melhores, com o rei afastado e ocupado com assuntos mais
urgentes, e metade do seu reino privada de qualquer tipo de justiça.
Não, ela esperava conseguir que o senhor abade repensasse e
cedesse terreno com receio de uma longa humilhação. Enganou-se
no homem. Ele sabe que ela não tem qualquer intenção de se dirigir
à lei. É muito mais provável que faça justiça pelas suas próprias
mãos e tente raptar o rapaz. Seria preciso uma lei lenta ou uma
ação rápida para o recuperar assim que ele estivesse em seu poder,
e a força está mais longe do alcance do abade do que do alcance
dela.
— É de se esperar — disse o Irmão Edmund, espantado com a
sugestão — que ela ainda não tenha usado todas as suas formas de
persuasão, se é que o seu último recurso é a violência.
Ninguém poderia determinar com exatidão como é que o jovem
Richard tomara conhecimento de cada revés da contenda sobre o
seu futuro. Não poderia ter ouvido nada do que se passara na sala
do capítulo, nem onde os noviços se apresentam nas reuniões
diárias, e nenhum dos irmãos poderia mexericar acerca do assunto
com a criança, que se encontrava no centro do conflito. Contudo,
era óbvio que Richard sabia de tudo o que se passava e tirava um
prazer perverso disso. As discórdias tornavam a vida mais
interessante e, aqui dentro do enclave, sentia-se bastante seguro de
qualquer perigo real, ao mesmo tempo que apreciava o fato de ser
disputado.
— Ele observa as chegadas e partidas de Eaton — disse o Irmão
Paul confiando a sua calma ansiedade a Cadfael na paz do jardim
das ervas — e é suficientemente astuto para perceber a que se
referem. E compreendeu demasiado bem o que se passou no
funeral do pai. Eu desejava que ele fosse menos perspicaz, para
seu próprio bem.
— Tal como devia manter o seu espírito atento – respondeu
Cadfael amigavelmente. — São os inocentes conscientes que
evitam as armadilhas. E a senhora há dez dias que não dá um
passo. Talvez se tenha resignado e desistido da luta — mas ele não
estava de forma alguma convencido disso. A Dama Dionísia não
estava habituada a ser contrariada.
— Talvez — concordou Paul esperançoso -. pois eu ouvi dizer que
ela recebeu um certo venerável peregrino e renovou o antigo
eremitério no seu bosque para a sua utilização. Requer as suas
preces diárias pela a alma do filho. Eilmund contou-nos isso quando
nos trouxe a nossa ração de carne de veado. Nós vimos o homem,
Cadfael, no funeral. Estava com os dois irmãos de Buildwas. Esteve
uma semana alojado com eles, e eles fizeram um relatório muito
devoto a seu respeito.
Cadfael endireitou-se com um grunhido do seu canteiro de
hortelã, o qual, agora em finais de Outubro, se encontrava espigado
e com poucas folhas.
— O tipo que usava a concha de romeiro rendilhada? E a
medalha de Saint James? Sim, lembro-me de ter reparado nele.
Então ele está a instalar-se entre nós, não é verdade? E escolhe
uma cela e um pequeno quadrado de jardim nos bosques, em vez
de um hábito cinzento em Buildwas! Eu próprio nunca me senti
atraído pela vida solitária, mas já conheci aqueles que conseguem
pensar e rezar melhor dessa forma. Já lá vai muito tempo desde que
aquela cela foi ocupada.
Ele conhecia o lugar, apesar de raramente passar por lá, tendo o
couteiro da abadia uma saúde excelente e pouca necessidade de
medicamentos de ervas. O eremitério, abandonado havia muitos
anos, encontrava-se num pequeno vale de encostas densamente
arborizadas, uma cabana construída de pedra com um quadrado de
terreno, agora cercado e cultivado, e que outrora fora demasiado
crescido e selvagem. Aí, nesse local, o anel de floresta abraçava
tanto o terreno de Eaton como o bosque de Eyton, e o eremitério
ocupava um lugar onde a extremidade da propriedade Ludel
sobressaía de entre o território vizinho, perto da pequena e
apreciada mata de árvores de reduzidas dimensões.
— Vai ficar bastante sossegado por lá — disse Cadfael —, se
pretender ficar. Por que nome poderemos conhecê-lo?
— Eles chamam-lhe Cuthred. Um vizinho santo é algo excelente
para se ter e parece que já estão a começar a levar-lhe os seus
problemas para que ele os possa resolver. Pode ser — aventurou-se
otimista o Irmão Paul — que tenha sido ele a domesticar a senhora.
Deve ter uma forte influência sobre ela. ou ela nunca lhe teria
pedido para ficar, e nestes últimos dez dias, não houve qualquer tipo
de movimentação por parte dela. Bem podemos estar todos em
dívida para com ele.
E, de fato, à medida que os suaves dias de Outubro deslizavam
tranquilamente uns atrás dos outros, em amanheceres escuros e
dias luminosos mas velados, e crepúsculos verdes, úmidos e
magicamente tranquilos, parecia que não iria haver mais luta pelo
jovem Richard, que a Dama Dionísia pensara melhor acerca da
ameaça de julgamento e resignara-se à submissão. Até enviou,
através do padre da sua paróquia, uma oferenda em dinheiro para
pagar Missas na capela principal pela alma do filho, um gesto que
só poderia ser interpretado, como um passo na direção da
reconciliação. Pelo menos, o Irmão Francis, o novo guardião do altar
de Santa Maria, assim o considerava.
— O Padre Andrew disseme — informou ele depois do visitante
ter partido — que desde que os irmãos Savigniac de Buildwas
trouxeram este Cuthred para a sua casa, a senhora tem uma grande
consideração pelos seus conselhos e governa-se por estes, bem
como pelos seus exemplos. O homem já ganhou uma grande fama
por santidade. Dizem que ele fez votos rígidos, à velha maneira e
que agora nunca deixa a sua cela nem o seu jardim. Mas nunca
recusa ajuda ou orações a qualquer um que peça. O Padre Andrew
tem por ele muita consideração.
— A via anacoreta não é o nosso caminho — disse o Irmão
Francis com grande seriedade —, mas não é nada de prejudicial ter
um homem assim tão santo vivendo tão perto num feudo vizinho. Só
pode constituir uma bênção.
Assim pensava toda a zona rural, pois a possessão de um tão
devoto eremita trazia grande lustre ao feudo de Eaton e a única
crítica que alguma vez chegou aos ouvidos de Cadfael a respeito de
Cuthred era que ele era demasiado modesto, e que a princípio
implorara e mais tarde proibira que soassem no exterior os
demasiados pródigos elogios a seu respeito. Não importava que
prodígio menor ele fazia: evitara através das suas preces uma
doença infecciosa no gado depois de uma das manadas de Dionísia
ter adoecido; enviara o seu rapaz para avisar acerca de uma
tempestade que se aproximava a qual através do favor das suas
intercessões se dissipou sem dano; qualquer que fosse o ato de
graça, ele não permitiria que nenhum do mérito lhe fosse atribuído,
e tornava-se duro e terrivelmente zangado se a tentativa fosse feita,
ameaçando a ira de Deus sobre quem desobedecesse à sua
proibição. No espaço de um mês após a sua chegada, a sua
disciplina valia mais no feudo de Eaton do que valia a disciplina quer
de Dionísia quer do Padre Andrew, e a sua fama proibida de ser
divulgada abertamente espalhou-se através de sussurros de
vizinhos, como um segredo premiado para ser exultado em privado,
mas escondido do mundo.
3

Eilmund, o couteiro de Eyton, vinha por vezes à capela da abadia


para informar acerca do trabalho executado ou sobre quaisquer
dificuldades com que se deparara, e alguma ajuda extra de que
pudesse necessitar. Não era frequente ter algo mais do que um
pequeno progresso para apresentar, mas na segunda semana de
Novembro, surgiu uma manhã com uma expressão de confusão
estampada no rosto, o qual estava simultaneamente mal-humorado.
Parecia que uma estranha praga se instalara no seu bosque.
Eilmund era um homem atarracado, moreno e peludo com mais
de quarenta anos, com um corpo muito poderoso e suficientemente
perspicaz de cabeça. Permaneceu firmemente no meio da sala do
capítulo, apoiado solidamente sob as suas pernas robustas, como
um lutador confrontando o seu adversário, e proferiu em poucas
palavras aquilo que tinha para dizer.
— Meu senhor abade, passam-se coisas na propriedade a meu
cargo que eu não consigo abarcar. Há uma semana atrás, naquela
grande tempestade que tivemos, o riacho que corre entre a nossa
pequena mata de árvores e a floresta aberta arrastou consigo
alguns arbustos soltos e formou um dique que transbordou e
modificou o seu curso, inundando a minha plantação mais recente.
E mal eu acabara de o limpar, descobri que a água da inundação
escavara parte do banco do meu fosso, um pequeno carreiro a
montante, e que a queda da terra atravessara o fosso. Quando o
descobri, os veados já tinham entrado na pequena mata. Comeram
todos os rebentos da pequena porção de terreno que semeamos há
dois anos. Duvido que algumas das árvores morram, e ficará tudo
suspenso durante mais uns dois anos, pelo menos, até que elas
atinjam o seu crescimento. Estraga o meu planejamento — queixou-
se Eilmund, ultrajado pela ruína do seu ciclo de seleção —, para
além das perdas atuais.
Cadfael conhecia o local, o orgulho de Eilmund, a parte cultivada
da floresta de Eyton. Uma pequena mata tão limpa e bem drenada
como nenhuma outra no condado, onde o corte regular da madeira
de seis ou sete anos deixava entrar a luz em cada plantação, de
modo a que a riqueza da cobertura do solo e as flores selvagens era
sempre rica e variada. Algumas árvores, como os freixos,
rebentavam novamente na base do tronco principal, mesmo por
baixo do corte. Outras, como o olmo ou a faia preta, nasciam
debaixo do solo rodeando o toro. Alguns dos troncos dos quais
Eilmund cuidava, os quais tinham sido diversas vezes semeados,
tinham evoluído até criarem as suas próprias matas, formando
clareiras com uns dois bons passos de diâmetro. Nenhum desastre
natural grave perturbara anteriormente o seu orgulho nas suas
habilidades. Não admirava que estivesse tão profundamente
entristecido. E a perda para a abadia também era séria, pois a
madeira de pequena mata servia para combustível, carvão, cabos
de ferramentas, carpintaria e todas as formas de utilização rendiam
bons proventos.
— Mas isso não é tudo — continuou Eilmund severamente —,
porque ontem, quando fiz as minhas rondas do outro lado da
vegetação rasteira, onde o fosso está seco mas suficientemente
fundo e a rampa íngreme como deveria estar, vi que as ovelhas de
Eaton tinham fugido do seu campo através da paliçada solta,
mesmo onde o solo de Eaton toca o nosso, e as ovelhas, como
sabe, meu senhor, não ligam nada a uma rampa que mantenha
afastados os veados, e não há nada de que elas mais gostem para
pastar do que as raízes mais novas de freixo. Devastaram a maior
parte da nova plantação, antes que eu conseguisse tirá-las de lá. E
nem eu nem o John de Longwood sabemos dizer como é que elas
passaram através de um buraco tão estreito, mas sabe que se a
ovelha mãe mete uma ideia na cabeça, não há como detê-la e as
outras a seguirão. Parece que a minha floresta está amaldiçoada.
— Parece-me mais — sugeriu o Prior Robert, olhando
severamente sob o seu longo nariz — que tem havido aí pura
negligência humana, ou da sua parte ou da parte dos seus vizinhos.
— Padre Prior — respondeu Eilmund com a aspereza de quem
conhece o seu valor, e sabe que este é reconhecido pelo único
superior que necessita de satisfazer —, em todos os meus anos ao
serviço da abadia, nunca houve até hoje nenhuma queixa do meu
trabalho. Faço minha ronda diariamente e também frequentemente
à noite, mas não posso controlar a chuva nem impedi-la de cair.
Nem posso estar em todo o lado ao mesmo tempo. Nunca antes
conheci tal inundação de infortúnios num espaço de tempo tão
curto. Nem posso culpar o John de Longwood, que tem sido sempre
um vizinho tão bom, como o melhor que se possa desejar.
— Isso é verdade — disse o Abade Radulfus com autoridade. —
Temos motivos para estarmos agradecidos pela sua boa vontade e
não para agora começarmos a duvidar dela. Nem sequer questiono
a tua habilidade e devoção. Anteriormente, nunca houve
necessidade disso, e não vejo nenhuma agora. As contrariedades
são-nos enviadas de modo que as possamos ultrapassar, e ninguém
pode pensar em escapar de tais provações para sempre. Pode-se
suportar a perda. Faça o que puder. Mestre Eilmund, e se sentir
necessidade de outro ajudante, terá um.
Eilmund. que sempre cumprira sozinho as suas tarefas e que se
orgulhava da sua autossuficiência, agradeceu aquela oferta com um
certo ressentimento, mas recusou momentaneamente a oferta e
prometeu dar-lhes notícias se surgisse algo mais que mudasse o
seu pensar. E assim partiu tão rapidamente como chegara,
regressando à sua cabana na floresta, a qual considerava como sua
filha, e à sua queixa contra o destino, visto que não conseguia
realmente encontrar um agente humano para culpabilizar.
Por alguns meios misteriosos, o jovem Richard ficou a saber do
invulgar propósito da visita de Eilmund, bem como tudo o que tinha
a ver com a sua avó e com todas aquelas pessoas que tinham o seu
trabalho e que viviam à volta do feudo de Eaton, as quais
constituíam para ele um interesse absorvente. Por muito sábio e
atento que o seu guardião abade pudesse ser, por muito
competente que o seu tutor pudesse ser, o tomar conta da sua
propriedade dizia-lhe respeito só a ele. Se existisse velhacaria à
solta perto de Eaton, ele ansiava por saber a razão e era-lhe mais
fácil do que ao Abade Radulfus atribuí-la a simples brincadeira,
apesar de ser compreensivelmente considerado que esta se devia à
perversidade ou malícia da humanidade, já que tantas vezes se
encontrava como acusado de má administração um agente
totalmente inocente.
Se as ovelhas tinham encontrado o caminho para a pequena mata
de freixos de Eyton, não através de algum ato obscuro de Deus,
mas porque alguém lhes abrira o caminho e as incitara em direção
ao seu banquete desejado, então Richard queria saber quem e por
quê. Elas eram, no fim de contas, as suas ovelhas.
De acordo com isso, manteve-se atento todas as manhãs a novas
entradas e saídas à hora do capítulo, e ficou curioso quando
observou, dois dias depois da visita de Eilmund, a chegada ao
portão de um homem jovem, o qual só vira uma vez anteriormente e
o qual pedira muito civilizadamente permissão para aparecer na sala
do capítulo com uma mensagem do seu senhor. Cuthred. Chegou
cedo e teve de esperar, o que ele fez serenamente. Aquilo foi bom
para Richard, pois ele não se poderia manter ocioso na escola, mas
quando o capítulo terminasse, estaria livre e poderia fazer uma
emboscada ao visitante e satisfazer a sua curiosidade.
Cada eremita merecedor do seu sal, tendo feito votos de
perseverança que lhe ordenavam que permanecesse daí em diante
dentro da sua própria cela e do seu jardim fechado, e tendo dons de
previsão e um dever sagrado de os usar para o bem dos seus
vizinhos, deve ter um rapaz residente para tratar das suas
incumbências e entregar as suas advertências e reprovações.
Parecia que o rapaz de Cuthred, o qual quando chegara já se
encontrava ao seu serviço, acompanhara-o nas suas recentes
divagações de peregrinação, procurando um local de retiro
designado para ele por Deus. Entrou na sala do capítulo da abadia
com recatada confiança e permaneceu de pé para ser examinado
por todos os irmãos curiosos, nada transtornado por tal assalto de
olhos vivos e inquisidores.
Do assento retirado que era da sua preferência, Cadfael estudou
o mensageiro com interesse. Não poderia ter imaginado um
servente mais improvável para um santo anacoreta e popular (no
velho sentido celta, que não tinha em conta a canonização), embora
na altura não conseguisse dizer onde residia a incongruência. Um
jovem rapaz com cerca de vinte anos vestindo uma túnica áspera e
calções de tecido castanho, remendados e desvanecidos, não
havendo nada aí de excepcional. Era constituído das mesmas linhas
leves e secas que Hugh Beringar, mas tinha um palmo de altura a
mais e era magro, moreno e gracioso como um corço de cor fulva,
controlando os seus longos membros com a mesma beleza angular
e animal. Até mesmo a sua quietude composta sustentava
implicações de movimentos súbitos e ferozes, como uma criatura
selvagem imóvel numa emboscada. O seu correr devia ser rápido e
silencioso, o seu saltar longo e alto como o de uma lebre. E a sua
cara tinha uma compostura semelhante e um ar de consciência
ligeiramente ominosa, encimado por um cabelo ondulante e espesso
da cor acobreada das faias. Uma cara longa e oval, testa alta, com
um longo nariz direito dilatado nas narinas, de novo como uma coisa
selvagem sensível a todas as essências que a brisa lhe trazia, uma
boca flexível e ligeiramente torta, que quase sorria mesmo em
repouso como que num divertimento secreto e ligeiramente
perturbador, e grandes olhos âmbar que se inclinavam para cima
nos cantos exteriores, debaixo de sobrancelhas oblíquas e
acobreadas. Tapava o brilho flamejante daqueles olhos, mas não os
escurecia ou escondia debaixo de pálpebras arqueadas e pestanas
acobreadas longas e fartas, como as de uma mulher.
O que faria um velho santo com alguém tão enervantemente
efeminado ao seu serviço?
Porém, o rapaz, tendo esperado um longo momento para ser
completamente inspecionado, levantou as suas pálpebras e mostrou
ao Abade Radulfus uma cara de inocência cândida e infantil,
fazendo-lhe uma vênia muito delicada e respeitosa. Não falaria até
lhe ser dirigida a palavra, mas esperava ser interrogado.
— Vens do eremitério de Eyton? — perguntou o abade
suavemente, estudando atentamente a cara jovem, calma e quase
sorridente.
— Sim, meu senhor. O santo Cuthred envia-lhe uma mensagem
através da minha pessoa — a sua voz era clara e calma,
projetando-se sonoramente, de modo que parecia o tocar de um
sino sob a abóbada.
— Qual é o teu nome? — interrogou Radulfus.
— Hyacinth, meu senhor.
— Conheci um bispo com esse nome — disse o abade e sorriu
brevemente, pois a criatura insinuante e morena perante ele não
tinha certamente nada de bispo. — Foste assim chamado por sua
causa?
— Não, meu senhor. Nunca ouvi falar dele. Foi-me dito em
tempos que existia um jovem com esse nome numa velha história e
dois deuses caíram sobre ele, e o vencido matou-o. Contaram-me
que nasceram flores do seu sangue. Foi um padre que me contou —
disse o rapaz inocentemente, e subitamente fez um rápido sorriso
de esguelha, olhando à sua volta para a sala do capítulo, consciente
do ligeiro movimento de inquietação que despertara nestes peitos
de claustro, embora o abade permanecesse imperturbável.
“Nessa velha história”, pensou Cadfael estudando-o com prazer e
interesse, “tu, meu rapaz, encaixas muito melhor do que no âmbito
dos bispos e tu bem o sabes. Ou sabem-no os eremitas, no que a
isso se refere. Agora, onde é que ele te foi desencantar e como é
que ele te domesticou?”
— Posso dizer a minha mensagem? — perguntou o rapaz
ingenuamente, de grandes olhos de um dourado claro, fixos sobre o
abade.
— Sabe de cor? — inquiriu Radulfus, sorrindo.
— Devo, meu senhor. Não pode ter uma palavra fora do lugar.
— Um mensageiro muito fiel! Sim, podes falar.
— Devo ser a voz do meu senhor, e não a minha própria — disse
o rapaz como introdução, e em seguida afundou a sua voz diversos
tons abaixo da sua leveza de sino habitual numa surpreendente
peça de mímica que fez com que Cadfael olhasse para ele mais
perspicaz e cautelosamente do que nunca.
— Ouvi dizer com grande angústia — disse gravemente o eremita
por procuração —, tanto do lacaio de Eaton como do couteiro de
Eyton, dos infortúnios que de repente perturbaram os bosques.
Rezei e meditei e receio grandemente que estes sejam avisos do
pior que está por vir, a não ser que algum balanço falso ou
desagradável discórdia entre o bem e o mal possa ser emendado.
Não tenho conhecimento de qualquer ofensa que paire sobre nós, a
não ser a negação do direito da Dama Dionísia Ludel à proximidade
do seu neto. O desejo do pai deve ser respeitado, mas o desgosto
da viúva pelo seu jovem parente não pode ser esquecido e ela está
despojada e sozinha. Suplico-lhe, meu senhor abade, pelo amor de
Deus, considere que faça o que fizer é bem feito, pois sinto a
sombra do mal a pesar sobre todos nós.
Tudo isto o surpreendente jovem disse numa voz sombria e
pesada, que não era a sua e sem dúvida que o truque era
impressionante, e fez com que alguns dos irmãos mais
supersticiosos se movessem, bocejassem e murmurassem com
respeitosa preocupação. E tendo terminado o seu recital, o
mensageiro ergueu novamente os seus olhos âmbar e sorriu, como
se o propósito da sua missão não o preocupasse de todo. O Abade
Radulfus sentou-se em silêncio durante um longo momento,
observando de perto o rapaz, que também olhava para ele.
serenamente e sem pestanejar, satisfeito por ter concluído o seu
recado.
— As próprias palavras do teu senhor?
— Todas, meu senhor, como mas ensinaram.
— E ele não te instruiu para argumentares mais sobre o assunto,
em seu nome? Não queres acrescentar nada?
Os olhos abriram mais de espanto.
— Eu, meu senhor? Como poderia eu? Eu só trato das suas
incumbências.
— Não é nada de estranho um anacoreta dar abrigo e serviço a
um simplório. É um ato de caridade. Este é obviamente um desses
— disse, desdenhosamente, o Prior Robert ao ouvido do abade. A
sua voz estava baixa, mas não suficientemente baixa para escapar
a umas orelhas tão atentas e quase tão pontiagudas como as de
uma raposa, pois o rapaz Hyacinth parecia brilhar e lançava um
sorriso de lado. Cadfael, que captara, igualmente, a aragem deste
comentário duvidou se o abade concordaria com isso. Parecia-lhe a
ele que havia uma inteligência muito astuta por detrás da cara
morena do fauno, mesmo que lhe valesse a pena fazer de parvo
com isso.
— Bem — disse Radulfus —, podes voltar para o teu mestre.
Hyacinth, e levar-lhe os meus agradecimentos pela sua
preocupação e cuidado e pelas suas rezas, as quais eu espero que
ele continue pelo bem de todos nós. Diz que eu considerei e
considero todos os aspectos da queixa da Dama Dionísia contra
mim, e que fiz e que continuarei a fazer aquilo que acho ser o
adequado. E quanto aos infortúnios que lhe dão tanta ansiedade,
nós meros mortais não os podemos controlar ou comandar, apesar
da fé os poder ultrapassar. Aquilo que não podemos alterar,
devemos suportar. É tudo.
Sem mais palavras, o rapaz fez-lhe uma profunda e graciosa
vênia, virou-se e saiu sem pressas da sala do capítulo, magro, de
andar leve e movendo-se com a elegância quase insolente.
No grande pátio, quase vazio a esta hora quando todos os irmãos
estavam na capela, o visitante não mostrou pressa de voltar para o
seu senhor e demorou-se observando curiosamente o que o
rodeava, do alojamento do abade no seu pequeno roseiral até os
pátios dos hóspedes e à enfermaria, e assim rodeou o círculo de
edifícios, que iam desde a casa do portão até a longa expansão do
lado sul do claustro. Richard, que estava havia alguns minutos
deitado à sua espera, emergiu confiantemente da passagem
arqueada de sul e avançou na direção do estranho.
Visto que a intenção era, obviamente, a de o fazer parar, Hyacinth
deteve-se obsequiosamente, olhando para baixo com interesse para
a cara solene e sardenta que o estudava tão ardentemente.
— Bom dia, jovem senhor! — cumprimentou civilizadamente.
— E o que podes querer comigo?
— Sei quem és — disse Richard. — És o servo que o eremita
trouxe. Ouvi-te dizer que vieste com uma mensagem dele. Era sobre
mim?
— Seria mais fácil responder — respondeu Hyacinth
razoavelmente — se soubesse quem é e por que meu senhor se
preocupa com peixe pequeno.
— Eu não sou peixe pequeno — disse Richard com dignidade. —
Sou Richard Ludel, o suserano de Eaton e o eremitério do teu
senhor fica nas minhas terras. E tu sabes muito bem quem eu sou,
pois tu estavas entre os lacaios no funeral do meu pai. E se
trouxeste alguma mensagem que me diga respeito, acho que tenho
o direito de saber do que se trata. É apenas justo — e Richard
espetou o seu pequeno queixo quadrado e mantendo-se plantado
sob os pés descalços e afastados, desafiou essa justiça sem
pestanejar os seus olhos azuis esverdeados.
Durante um longo momento, Hyacinth retribuiu o olhar fixo, vivo e
especulativo.
— Isso é verdade, e eu estou de acordo contigo, Richard. Agora,
onde é que podemos falar os dois à vontade? — perguntou depois,
num tom enérgico e terra-a-terra, falando de homem para homem e
sem qualquer sinal de zombaria.
O centro do grande pátio era, talvez, demasiado evidente para
longas confidências e Richard estava suficientemente arrebatado
com o inconfundível estranho secular, achando-o uma novidade
agradável entre estes ambientes monásticos, e pretendia ficar a
saber tudo sobre ele agora que tinha essa oportunidade. Além
disso, muito em breve o capítulo estaria a terminar e não valia a
pena estar a chamar a atenção do Prior Robert em tais
circunstâncias, ou cortejar a interferência intrometida do Irmão
Jerome. Com uma confiança apressada, pegou em Hyacinth pela
mão e rebocou-o pelo pátio até o postigo retirado, que conduzia
através do enclave até o moinho. Aí no relvado situado perto do
açude, teriam privacidade, ficando o muro nas suas costas, a relva
espessa e flexível debaixo deles e sobre eles, o sol do meio-dia
ainda aquecendo-os através do véu diáfano de névoa.
— Pronto! — disse Richard, dirigindo-se ao cerne da questão. —
Preciso de ter um amigo que diga a verdade, e existem tantas
pessoas a ordenar a minha vida por mim e eu não posso concordar
com isso, e como é que eu posso tratar de mim e estar preparado
para eles, se não houver ninguém para me avisar do que é que lhes
vai na cabeça? Se estiveres do meu lado, eu saberei como lidar.
Concordas?
Hyacinth encostou-se confortavelmente contra o muro da abadia,
estendendo as suas pernas fortes e bem delineadas, e semicerrou
os olhos, iluminados pelo sol.
— Digo-te uma coisa, Richard, de modo a que possas lidar melhor
com o que se passa, e para que eu te possa ser mais prestável se
souber o porquê da questão. Agora, eu sei o fim desta história até
este ponto, e tu sabes o princípio. Que tal se juntarmos as pontas,
para vermos o que sai?
Richard bateu palmas.
— De acordo! Então diz-me, primeiro, qual era a mensagem que
trouxeste hoje de Cuthred!
Palavra por palavra como a entregara no capítulo, mas sem a
mímica, Hyacinth contou-lhe.
— Eu sabia! — exclamou a criança, dando um murro com o
pequeno pulso na relva espessa. — Eu sabia que tinha de ser algo
a meu respeito. Então, a minha avó intrujou ou persuadiu até o seu
homem sagrado para que este argumentasse a favor da sua causa,
em vez de ser ela própria a fazê-lo. Ouvi falar acerca das coisas que
têm acontecido na pequena mata, mas tais coisas acontecem de
vez em quando, quem as pode prevenir? Precisas de avisar o teu
senhor para não se deixar persuadir demasiado, mesmo que ela se
tenha tornado a sua patrona. Conta-lhe a história toda, pois ela não
o fará.
— Assim o farei — concordou Hyacinth cordialmente —, quando
eu próprio a souber.
— Ninguém te contou porque é que ela me quer em casa? Nem
uma palavra do teu senhor?
— Moço, eu só trato das incumbências dele, ele não me faz
confidências.
E parecia que o imperturbável servente não tinha pressa
nenhuma em regressar da sua missão, pois recostou-se mais
confortavelmente contra o musgo do muro e cruzou os seus
tornozelos magros. Richard aproximou-se e Hyacinth afastou-se de
boa vontade para o deixar acomodar o seu jovem corpo a seu lado.
— Ela quer casar-me — explicou Richard — para deitar as mãos
aos feudos que se encontram de ambos os lados das minhas terras.
E, ainda por cima, nem é com uma noiva adequada. A Hiltrude é
velha, pelo menos vinte e dois anos...
— Uma idade venerável — concordou Hyacinth, gravemente.
— Mas mesmo que ela fosse nova e bonita, eu não a queria. Não
quero nenhuma mulher. Não gosto de mulheres. Não vejo qualquer
necessidade para elas.
— Então estás no lugar certo para as evitares — sugeriu Hyacinth
de modo prestável, e sob as suas longas pestanas acobreadas, os
seus olhos âmbar relampejaram de riso. — Torna-te um noviço,
renuncia ao mundo e estarás aqui a salvo.
— Não, isso também não é fácil. Escuta, eu conto-te tudo acerca
disso — e a história da ameaça do seu casamento e os planos da
sua avó para aumentar o seu pequeno palatino saíram tropeçando
loquazmente da sua língua. — Então fique alerta por mim e contas-
me tudo acerca do que eu devo saber? Preciso de alguém que seja
honesto comigo e que não me esconda tudo, como se eu ainda
fosse uma criança.
— Está bem! — prometeu Hyacinth, sorrindo com satisfação. —
Serei seu vassalo no campo de Eaton e servirei de olhos e ouvidos.
— E darás a conhecer a minha posição a Cuthred? Eu não
gostaria que ele pensasse mal do Padre Abade, ele só faz o que o
meu pai queria para mim. E não disseste teu nome. Tenho de saber
teu nome.
— Meu nome é Hyacinth. Contaram que existiu um bispo com
esse nome, mas eu não sou um desses. Os teus segredos estão
mais seguros com um pecador do que com um santo, e eu estou
mais perto do que o confessionário, nunca me receies.
Tinham-se tornado de certa forma tão familiarizados um com o
outro que só o estômago de Richard, relembrando-lhe que era altura
do jantar, fez finalmente com que eles se separassem. Richard
trotou ao lado do seu novo amigo ao longo do caminho que limitava
a parede do enclave até o Foregate e aí separou-se dele.
observando a sua figura ligeira enquanto esta se afastava
balançando-se pela estrada principal, antes de se ter virado
dirigindo-se a dançar jovialmente, de regresso ao postigo na parede
do enclave.
Hyacinth fez os primeiros quilômetros da sua viagem de regresso
numa passada larga, rápida e elástica, nem tanto pelo sentido de
pressa ou de dever mas pelo puro prazer na facilidade do seu
próprio andamento, e no poder e precisão do seu corpo. Atravessou
o rio na ponte de Attingham, avançando com alguma dificuldade
pelos prados de água do seu afluente, o Tern, e virou para sul de
Wroxeter em direção a Eyton. Quando chegou às orlas da terra
arborizada abrandou para uma passada indolente, relutante em
chegar quando o caminho era tão agradável. Teria de atravessar
terras da abadia para alcançar o eremitério que ficava no estreito
nicho de terra de Ludel, penetrando nos bosques vizinhos.
Assobiando alegremente, prosseguiu ao longo do caminho que
bordejava o riacho, bem perto da extremidade norte da pequena
mata de Eilmund. A margem que se erguia mais além, protegendo
os bosques cultivados, era alta e íngreme, mas bem tratada e bem
coberta com relva e nem nunca ruíra nem o riacho era tão largo ou
rápido que tivesse escavado o declive seco. Porém, dessa vez
fizera-o, pois via-se o solo nu numa cicatriz íngreme e escura, muito
antes de se chegar ao local. Observou-o enquanto se aproximava,
mordendo o lábio de modo pensativo e depois, repentinamente,
encolheu os ombros e riu.
— Quanto mais dano, melhor! — disse ele, meio em voz alta, e
passou para onde a margem fora profundamente escavada.
Ainda estava afastado alguns metros quando ouviu um grito
abafado que parecia vir de dentro da terra, e depois sons de luta e
um uivo de dor e uma rajada de pragas abafadas. Espantado mas
reagindo rapidamente, desatou a correr e trepou abruptamente a
extremidade do fosso, o qual nesse momento pouco mais era do
que uma plácida corrente enlameada, mas que subia visivelmente.
Do outro lado da água, existira uma queda fresca e um velho
salgueiro solitário, as suas raízes parcialmente despojadas pela
primeira deslocação, curvara-se e caíra através do riacho. Os seus
ramos erguiam-se e sussurravam com o estrebuchar de alguém
que, meio dentro meio fora de água, parecia estar preso por
alfinetes. Um braço procurou agarrar-se às folhas, erguendo-se para
tentar mover o tronco, e o esforço provocou um prolongado gemido.
Através das folhas malhadas, Hyacinth viu a cara de Eilmund, suja e
contorcida.
— Fique quieto! — gritou ele. — Vou descer!
E assim desceu, com a água chegando-lhe às coxas,
serpenteando debaixo dos primeiros ramos de modo a conseguir
colocar as suas costas sob eles e a tentar erguê-los o suficiente, de
modo a que o couteiro aprisionado se conseguisse libertar. Eilmund,
gemendo e respirando com dificuldade, cerrou firmemente os
punhos contra o solo que se encontrava atrás de si e impeliu-se com
força, soltando-se parcialmente do ramo que o prendia pelas
pernas. O esforço custou-lhe um grito de dor meio sufocado.
— Está ferido! — Hyacinth pegou nele por debaixo dos braços,
com ambas as mãos, arqueando as suas flexíveis costas fortemente
debaixo do ramo mais grosso, e a árvore balançou pesadamente. —
Agora! Erga-se!
Eilmund tentou novamente, Hyacinth arrastando-se com ele. com
um novo resvalamento de terra rolando sob eles, mas o salgueiro
moveu-se e caiu com um esguicho. O couteiro permaneceu na terra
crua, arfando, os seus pés lavados pela beira do riacho. Hyacinth,
lamacento e estriado de verde, ajoelhou-se a seu lado.
— Preciso de ir à procura de ajuda, não consigo levá-lo daqui
sozinho. E o senhor vai ficar alguns dias sem conseguir andar pelo
seu próprio pé. Pode descansar assim, até eu ir buscar os homens
de John de Longwood aos campos? Vamos precisar de mais do que
um caniço ou taipal para o transportar. Está pior do que aquilo que
eu consigo ver? — mas aquilo que ele conseguia ver era suficiente
e a sua cara morena estava abalada e aterrada sob as manchas de
lama.
— A minha perna está quebrada — Eilmund deixou os seus
grandes ombros afundarem-se cautelosamente na terra suave e
respirou profundamente. — Muita sorte tive por tu teres tomado este
caminho, eu estava bem preso e o riacho está a subir novamente.
Eu estava a tentar subir a margem. Rapaz — disse ele e riu
lugubremente, com um som semelhante a um gemido —, tens mais
força nesses teus ombros, do que aquela que alguém poderia
imaginar só de olhar para ti.
— Pode esperar um pouco assim? — Hyacinth olhou
ansiosamente para o declive que se encontrava sob eles, mas
apenas pequenos torrões se moviam e deslizavam inofensivamente,
e a orla de relva, ervas e raízes não compactadas do topo pareciam
suficientemente seguras. — Eu vou a correr. Não me demorarei.
E começou a correr, rapidamente e direito aos campos de Eaton e
acenou aos primeiros homens de Eaton que avistou. Estes vieram
apressadamente, com um tapume retirado do curral das ovelhas e
entre eles, com algum cuidado e com algumas pragas suprimidas e
compreensíveis por parte da vítima, levantaram e colocaram
Eilmund em cima do tapume e transportaram-no durante quase
oitocentos metros até a sua cabana na floresta. Atento ao fato do
homem ter uma filha em casa, Hyacinth encarregou-se de entrar
primeiro para a avisar, para a sossegar e dar-lhe tempo para
preparar a cama do homem ferido.
A cabana ficava num terreno desbravado e aberto na floresta,
com um bonito jardim, e quando Hyacinth a alcançou a porta estava
completamente aberta e dentro da casa uma moça cantava
suavemente para si própria, enquanto trabalhava. Estranhamente, e
tendo corrido mais depressa para poder chegar até ela antes dos
outros, Hyacinth parecia quase relutante em bater à porta ou entrar
sem bater, e enquanto hesitava na soleira da porta, o cantar dela
cessou e ela saiu para ver de quem eram os passos ligeiros que
tinham agitado as pequenas pedras do caminho.
Era pequena mas robusta, e muito garbosa, com um olhar azul e
direto, a coloração fresca de uma rosa selvagem e um cabelo de um
tom castanho-claro como o grão de carvalho polido, suavemente
entrançado. Ela olhou-o com uma curiosidade e uma simpatia
cândidas, a qual silenciou pela primeira vez a sempre pronta língua
de Hyacinth. Teria de ser ela a falar primeiro, apesar de toda a
urgência da sua incumbência.
— Está à procura do meu pai? Ele está fora na pequena mata, vai
encontrá-lo onde a margem desce — e os olhos azuis apressaram-
se com interesse e aprovação, gostando do que viam. — Tu és o
rapaz que veio com o velho eremita da senhora, não és? Vi-te a
trabalhar no jardim dele.
Hyacinth assentiu e lembrou-se com um baque do coração o que
tinha para lhe dizer.
— Sou, senhora, e o meu nome é Hyacinth. O seu pai vem agora
a caminho de casa e tenho pena de o dizer, depois de um infortúnio
que, receio, o fará ficar em casa durante algum tempo. Vim à frente
para lho dizer antes que eles o tragam. Oh, não se enerve, ele está
vivo e com saúde, e em breve ficará bom de novo, dê-lhe tempo.
Mas a perna dele está quebrada. Houve outro deslize, caiu-lhe uma
árvore em cima no fosso. No entanto, ficará bom, sem dúvida.
O alarme súbito e a palidez da cara dela não antecederam
nenhum grito. Aceitou o que ele disse e sacudindo-se abruptamente,
afastou-se imediatamente para começar a abrir as portas interiores
e exteriores de modo a permitir a entrada ao tapume e ao seu fardo,
e preparou a cama, sobre a qual o iriam deitar, e em seguida,
colocou uma panela de água no fogo. E, enquanto andava de um
lado para o outro, falava com Hyacinth por cima do seu ombro,
muito prática e calmamente.
— Não é a primeira vez que ele aparece com ferimentos, mas
nunca com uma perna quebrada. Caiu uma árvore, dizes tu? Aquele
velho salgueiro! Eu sabia que ele estava tombado, mas nunca
pensei que pudesse cair. Foste tu que o encontraste? E foste buscar
ajuda? — os olhos azuis olharam para ele e sorriram.
— Alguns dos homens de Eaton estavam por perto, a limpar um
fosso de drenagem. Vão trazê-lo — estes estavam então a
aproximar-se da porta, avançando o mais depressa que
conseguiam. Ela dirigiu-se para o exterior para os receber com
Hyacinth a seu lado. Parecia que ele tinha algo mais a dizer, algo de
diferente e que agora perdera a sua oportunidade, pois pairava
silenciosamente mas mantinha-se perto da azáfama de atividade,
enquanto Eilmund era transportado para dentro da casa e deitado
sob a cama, e lhe descalçavam as botas molhadas bem como as
calças e coturnos, muito cautelosamente, mas ainda assim com um
coro de gemidos e de imprecações. A sua perna esquerda estava
disforme por baixo do joelho, mas não tão grosseiramente que o
osso tivesse rasgado a carne.
— Fiquei uma hora ali deitado no riacho — deixou ele escapar,
enquanto cerrava os seus dentes de dor enquanto eles o tratavam
—, e se não tivesse sido este jovem rapaz eu ainda lá estaria, pois
não conseguia mudar o peso e não havia ninguém por perto por
quem chamar. Juro por Deus que há mais músculo no moço do que
vocês acreditariam. Vocês deviam tê-lo visto a tirar aquela árvore de
cima de mim.
Muito estranhamente, as magras e suaves faces de Hyacinth
ruborizaram-se sob o seu brilho dourado escuro. Certamente que
não era uma cara habituada a corar, mas ainda não perdera essa
capacidade.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si? Fá-lo-ia de
bom grado! Você vai precisar de uma mão experiente para colocar
esse osso no lugar. Aí não o posso ajudar, mas faça uso de mim se
necessitar de algum recado. Esse é o meu ofício, isso eu posso
fazer — disse, com um ar constrangido.
A moça, que se encontrava junto à porta, virou-se por um
instante, os seus olhos azuis e grandes brilhando na sua cara.
— Ora essa, pois podes, se tiveres a gentileza de acrescentar
algo à nossa dívida. Poderias ir à abadia e pedir ao Irmão Cadfael
para vir até aqui?
— Certo! — disse Hyacinth. tão cordialmente, como se ela lhe
tivesse dado um presente. Mas assim que ela se virou para ele, ele
hesitou e agarrou-a pela manga durante um instante e sussurrou-lhe
urgentemente ao ouvido, — Tenho de falar contigo sozinho, mais
tarde, quando ele estiver tratado e a descansar.
E antes que ela pudesse dizer sim ou não, embora os seus olhos
não o estivessem a recusar, já ele se afastara entre as árvores, no
longo caminho de regresso a Shrewsbury.
4

A meio da tarde, Hugh foi à procura do Irmão Cadfael com as


primeiras notícias, que tinham finalmente saído de Oxford desde
que o cerco começara.
— Robert de Gloucester está de volta a Inglaterra — disse ele. —
Soube-o através de um armeiro que pensou em sair da cidade a
tempo. Uns quantos tiveram sorte e foram avisados. Ele diz que
Robert desembarcou em Wareham apesar da guarnição do rei, que
trouxe consigo todos os seus navios ilesos e tomou a cidade. O
castelo não, por enquanto ainda não, mas já se instalou para o
cerco. Conseguiu muito pouco de Geoffrey, talvez um punhado de
cavaleiros, não mais.
— Se ele está seguro em terra e segura a cidade — disse
Cadfael, objetivamente —, o que é que ele quer do castelo? Pensei
que ele iria a toda a velocidade para Oxford para salvar a irmã da
ratoeira.
— Ele preferiria atrair Stephen, de modo a que este fosse ter com
ele e assim afastá-lo-ia do seu próprio cerco. O meu homem diz que
o castelo de Wareham não está lá muito bem guarnecido e eles
chegaram a um acordo de tréguas, e enviaram mensageiros ao rei
para os substituir numa data fixada (um sabe-tudo, mas
verdadeiramente bem informado, apesar de não saber qual o dia
previsto para a substituição), ou se ele lhes falhar, se entregarão.
Isso convém a Robert. Ele sabe que só muito raramente pode surgir
algo que atraia Stephen, mas creio que desta vez ele se aguenta.
Quando é que poderá voltar a ter uma oportunidade como esta? Até
mesmo ele não poderá desperdiçar semelhante oportunidade.
— Não há fim para as loucuras que qualquer homem pode
cometer — disse Cadfael tolerantemente. — Para lhe dar o que lhe
é devido, a maioria das suas idiotices são generosas, o que é mais
do que pode ser dito acerca da senhora. Mas eu poderia desejar
que este cerco em Oxford, fosse o fim disso. Se ele se apoderar do
castelo, da imperatriz e de tudo o mais, ela ficará suficientemente
segura com ele, e ele poderá ficar mais em perigo. Que mais há de
novo a sul?
— Há uma história que fala de um cavalo encontrado a vaguear
não muito longe da cidade, nos bosques perto da estrada para
Wallingford. Isto já foi há algum tempo atrás pela altura em que
todas as estradas para Oxford estavam fechadas e a cidade estava
em fogo. Um cavalo arrastando uma sela manchada de sangue, e
alforjes completamente abertos e esvaziados. Um lacaio que fugira
da cidade antes do cerco se fechar reconheceu o cavalo e a
couraça como pertencendo a um Renaud Bourchier, um cavaleiro ao
serviço da imperatriz e, também, um dos seus íntimos. O meu
homem diz que é sabido que ela o enviava para fora da guarnição
para tentar romper através das linhas do rei para transportar por ela
uma mensagem até Wallingford.
Cadfael parou de mover a enxada que estava a arrastar devagar
entre os seus canteiros de ervas, e prestou atenção ao que o amigo
dizia.
— Para Brian FitzCount, queres tu dizer?
O suserano de Wallingford era o apoiante bem como companheiro
mais fiel da imperatriz, igualando-se apenas ao conde seu irmão, e
mantivera o seu castelo por ela, como o posto avançado mais
oriental e exposto do seu território, de campanha após campanha e
boa e má sorte, mantendo-se indiscutivelmente leal.
— Então porque é que ele não está com ela em Oxford? Ele
raramente a deixa sozinha, ou pelo menos é o que dizem.
— O rei deslocou-se muito mais depressa do que qualquer um
poderia pensar. E, agora, está afastado dela. Além disso, ela precisa
dele em Wallingford, pois se esse se perder, ela fica apenas com
uma herdade isolada a oeste e sem saída na direção de Londres.
Ela bem o poderia ter mandado chamar no último momento,
considerando a situação tão desesperada em que se encontra
agora. E os rumores dizem que ao que parece Bourchier levava com
ele um tesouro, com mais joias do que moedas. Pode muito bem ser
isso, pois ele precisa de pagar aos seus homens. Por muito leais ao
amor que eles possam ser. têm de viver e de comer e ele já se
empobreceu ao serviço da imperatriz.
— Tem-se falado este Outono — disse Cadfael, enrugando a testa
pensativamente — que o Bispo Henry de Winchester tem estado
ocupado, tentando atrair Brian para o lado do rei. O Bispo Henry tem
dinheiro suficiente para comprar quem quer que seja que esteja à
venda, mas duvido que ele consiga fazer uma oferta suficientemente
alta para demover FitzCount. Todo este tempo o homem tem-se
mostrado incorruptível. Ela não tinha necessidade de tentar superar
as ofertas dos seus inimigos pelo Brian.
— Nenhuma. Mas ela bem podia ter pensado, quando a hoste do
rei se fechou à sua volta, enviar-lhe uma prova da estima que tem
por ele enquanto o caminho ainda estava desimpedido ou podia,
pelo menos, ser atravessado por um único homem corajoso. Em tal
altura, até lhe podia ter parecido a última hipótese para que tal prova
passasse entre eles.
Cadfael pensou nisso e reconheceu a sua veracidade. O Rei
Stephen nunca seria uma ameaça para a vida da sua prima por
muito amarga que a rivalidade tivesse sido, mas assim que ela fosse
feita prisioneira ele seria forçado a mantê-la sob uma forte proteção
para salvaguardar a coroa. Nem seria provável que ela alguma vez
renunciasse à sua reivindicação, nem mesmo na prisão, e talvez
concordasse com termos que a soltassem com facilidade. Amigos e
aliados talvez assim se apartassem, e diga-se a verdade, talvez
nunca mais se voltassem a ver.
— E um único homem corajoso assim o tentou — refletiu Cadfael
sombriamente. — E o seu cavalo foi encontrado a vaguear, a sua
couraça colocada de lado, os seus alforjes vazios e sangue na sela
e manta. Então onde está Renaud Bourchier? Assassinado pelo que
transportava, e enterrado em alguma parte nos bosques ou atirado
para o rio?
— Que mais pode um homem pensar? Eles ainda não
encontraram o corpo dele. Em redor de Oxford, os homens têm
outras coisas para fazer este Outono para além de esquadrinhar os
bosques à procura de um homem morto. Existem já suficientes
homens mortos para enterrar após a pilhagem e o incêndio da
cidade de Oxford — disse Hugh com uma amargura seca, quase
resignado com as mortes fortuitas desta guerra civil caprichosa.
— Quantos dentro do castelo saberiam da sua incumbência?
Dificilmente ela alardearia a sua intenção, mas certamente alguém
foi informado acerca disso.
— Assim parece e fez muito mau uso do que sabia — Hugh
sacudiu-se, levantando dos seus ombros os males distantes que
estavam fora do seu mandato judicial. — Graças a Deus que não
sou o xerife de Oxfordshire! Os nossos problemas aqui são
suficientemente moderados, uma pequena família que briga, o que
conduz de vez em quando a uns quantos golpes, alguns roubos, os
furtos habituais da estação. Oh, e é claro, o bruxedo que parece ter
caído no nosso bosque de Eyton — Cadfael contara-lhe aquilo que
o abade talvez pensasse não ser suficientemente importante para
dizer; que Dionísia tinha de alguma maneira persuadido o seu
eremita a envolver-se na sua disputa e aquele bom homem levara,
certamente, muito a sério a sua personificação como uma avó
lamentosa, cruelmente privada pela sociedade do seu único neto. —
E ele receia que o pior esteja por vir, não receia? Quais serão as
próximas notícias a chegarem de Eyton?
Acontecia que as novas notícias de Eyton estavam nesse
momento a dirigirem-se na sua direção, pois rodeando nesse
momento o canteiro estava um noviço que fora despachado à
pressa pelo Prior Robert, da casa do portão. Vinha a correr, as saias
do seu hábito ondulando, e parou, apenas com o fôlego suficiente
para conseguir dizer a sua mensagem sem esperar que lha
perguntassem.
— Irmão Cadfael, requerem a tua presença imediatamente. O
servo do eremita voltou para dizer que necessitam de ti no terreno
desbravado de Eilmund, e o Padre Abade diz para levares um
cavalo e ires depressa, e que tragas notícias acerca da saúde do
couteiro. Houve outra derrocada de terra e uma árvore caiu sobre
ele. Tem a perna quebrada.
Ofereceram a Hyacinth descanso e uma boa refeição pelo seu
incômodo, mas ele não podia ficar. Enquanto conseguiu aguentar a
passada, manteve-se agarrado ao estribo de cabedal do cavalo de
Cadfael e correu com ele, e mesmo quando foi forçado a abrandar e
a deixar Cadfael cavalgar o mais rapidamente possível, o jovem
trotou persistente e continuamente atrás dele, mais inclinado a voltar
para a cabana do bosque, ao que parecia, do que para a cela do
seu senhor. Fora um bom amigo para Eilmund, refletiu Cadfael, mas
podia estar a arranjar lenha para se queimar, quando regressasse
por fim ao seu dever. Apesar de que Cadfael não conseguia
visualizar aquela criatura selvagem e imprevista, por muito que o
tentasse, a submeter-se submissamente a reprovação e muito
menos a castigo.
Era perto da hora do serviço de Vésperas quando Cadfael
desmontou dentro da baixa paliçada do jardim de Eilmund e a moça
escancarou a porta e saiu, ansiosa por o conhecer.
— Irmão, eu não esperava que viesse tão cedo. O rapaz de
Cuthred deve ter corrido como o vento durante todo o caminho! E
depois de se ter ensopado no riacho para libertar o meu pai! Hoje,
temos bons motivos para estarmos satisfeitos com ele e com o seu
senhor, pois podia não ter passado ninguém por lá durante horas.
— Como está ele? — perguntou Cadfael, soltando as tiras da sua
bolsa de viajante e dirigindo-se para a casa.
— A perna está quebrada abaixo do joelho. Fiz com que ele
ficasse quieto e apertei-lhe a perna o melhor que pude, mas precisa
da sua mão para o fixar. E como ficou meio deitado no riacho
durante bastante tempo, antes de o jovem rapaz o encontrar, receio
que se tenha constipado.
Eilmund permanecia bem coberto e, agora, sombriamente
resignado com a sua incapacidade. Submeteu-se estoicamente ao
tratamento de Cadfael, rangendo os dentes e não proferindo outro
som, enquanto lhe endireitavam a perna e as extremidades de osso
fraturadas eram novamente colocadas no lugar.
— Tu podias ter ficado bem pior — disse Cadfael aliviado. — Uma
fratura limpa e poucos danos na carne, apesar de ser uma pena
eles terem-te deslocado.
— Podia ter-me afogado de outra maneira — grunhiu Eilmund —,
o riacho estava a encher. E é melhor dizeres ao senhor abade que
envie homens até lá para tirarem a árvore, antes que tenhamos de
novo um lago.
— Direi, direi! Agora segura-te bem! Não quero deixar-te com uma
perna mais curta do que a outra — pegando-lhe simultaneamente
no calcanhar e no peito do pé, endireitou a perna quebrada
firmemente de modo a que esta igualasse a outra. — Agora, Annet,
põe as tuas mãos onde estão as minhas e segura desta maneira.
Ela não perdera o seu tempo enquanto esperava; recolhera restos
direitos de madeira da oficina de Eilmund e já preparara lã de ovelha
para acolchoar e enrolar linho para fazer ataduras. Os dois
concluíram o trabalho na perfeição e Eilmund permanecia deitado
de costas sobre a sua manta de lã, e soltou um grande suspiro. A
sua cara, sempre fustigada pelo tempo, tinha todavia um rubor
sobre as suas bochechas. Cadfael não se sentia muito à vontade
com isso.
— Agora se puderes descansar e dormir, tanto melhor. Deixa o
senhor abade, e a árvore e tudo o mais que precisa ser tratado
comigo, eu asseguro que será tudo tratado. Farei uma mistura de
ervas que te aliviará a dor e te ajudará a dormir — misturou-a e
administrou-a a Eilmund, embora este negasse a sua necessidade,
contudo bebeu-a sem mais protestos.
— Ele agora irá dormir — disse Cadfael à moça, enquanto se
retiravam para o quarto exterior. — Mas certifica-te de que ele se
mantém quente e coberto durante a noite, pois pode ter uma febre
ligeira se pegar friagem. Vou conseguir licença para ir e vir por um
ou dois dias, até achar que está tudo bem. Se ele te der trabalho,
aguenta, pois significa que ele não está muito mal.
Ela riu ligeiramente, imperturbável.
— Oh, para mim, ele é manso como uma pomba. Rosna, mas
nunca morde. Eu sei como lidar com ele.
Começava já a surgir o crepúsculo quando ela abriu a porta da
casa. O céu estava ligeiramente dourado devido ao crepúsculo
úmido e misterioso, o qual gotejava luz entre os escuros ramos das
árvores que rodeavam o jardim. E no relvado perto do portão,
Hyacinth sentava-se imóvel, aguardando com a paciência
intemporal da árvore contra a qual as suas costas direitas e flexíveis
se apoiavam. Mesmo assim a sua quietude sugeria a de um animal
selvagem numa emboscada. “Ou talvez”, pensou Cadfael mudando
de ideias, “um animal selvagem a ser caçado, confinado ao silêncio
e à imobilidade de forma a tornar-se invisível aos olhos do caçador”.
Assim que viu a porta aberta, colocou-se imediatamente de pé
num único movimento flexível, apesar de não ter entrado na
paliçada.
Apesar do crepúsculo, Cadfael viu o olhar trocado, que se
manteve preso entre o jovem e a moça. A cara de Hyacinth estava
sem vida e muda como bronze, mas uma cintilação de luz
enfraquecida captou o brilho âmbar dos seus olhos, feroz e secreto
como o dos gatos, e uma súbita aceleração e a escuridão das suas
profundezas refletiu-se no rubor e no brilho do semblante
surpreendido de Annet. Não era grande surpresa. A moça era bonita
e o rapaz sem dúvida atraente, e ainda mais porque fora de serviço
inestimável para o seu pai. E era natural e humano que aquela
circunstância tornasse tanto o pai como a filha queridos para ele,
não menos do que ele para eles. Nada é mais agradável e
gratificante do que a sensação de se ter conferido benefícios. Nem
mesmo a gratificação de os receber.
— Vou-me agora embora — disse Cadfael para o ar indiferente e
montou suavemente o seu cavalo para não quebrar o feitiço que
ainda os prendia. Quando se viu sob o abrigo das árvores, olhou
para trás e viu-os de pé como os deixara, e ouviu a voz do rapaz
clara e solene no silêncio do crepúsculo, dizendo: “Eu preciso de te
falar!”.
Annet não disse nada, mas fechou suavemente a porta da casa
atrás de si e aproximou-se para se encontrar com ele no portão. E
Cadfael cavalgou de volta através dos bosques, ligeiramente
consciente de que estava a sorrir, apesar de não ter certeza, depois
de refletir mais sobriamente, de que houvesse alguma coisa por que
sorrir num encontro tão invulgar. Pois que poderia existir ali de
comum, para aqueles dois se encontrarem e se fixarem por mais do
que um momento: a filha do couteiro da abadia, um bom partido
para qualquer rapaz, vivo e prometedor deste lado do condado e um
estranho, pobre e sem raízes, dependente do patronato de caridade,
sem terra, sem arte ou engenho e sem parentes?
Dirigiu-se para tratar e selar o seu cavalo antes de ir em busca do
Abade Radulfus, para lhe contar como se encontravam as coisas na
floresta de Eyton. Sentia-se por ali um agitar tardio, pois novos
hóspedes tinham chegado e tanto estes como as suas montadas
estavam a ser acomodados e tratados. Nos últimos tempos, havia
pouco movimento no condado; o movimento de Verão, quando
tantos mercadores e negociantes se encontravam em constante
movimento, diminuíra no sossego do Outono. Mais tarde, quando a
festa de Natal se aproximasse, os átrios dos hóspedes estariam
novamente repletos de viajantes a apressarem-se para casa e
parentes a visitarem parentes, mas nesta fase do ano, não havia
tempo para reparar em quem chegava e sentir a natural curiosidade
humana, que é sentida por aqueles que juraram estabilidade em
relação àqueles que fluem com as marés e as estações.
E surgindo dos estábulos e atravessando o pátio com passadas
longas e amplas, com o andamento de um homem confiante e
colérico, encontrava-se alguém inquestionavelmente importante no
seu próprio domínio, ricamente vestido, elegantemente calçado e
envergando uma espada e um punhal. Apressava-se, passando por
Cadfael no portão, um homem grande, forte e impulsivo, a sua cara
subitamente iluminada quando passou balançando pela tocha
situada no portão, a qual de seguida se escureceu igualmente de
modo súbito. Uma cara maciça, carnuda e contudo dura, musculosa
como os braços dos lutadores, bonita de uma forma brutal, a cara
de um homem não raivoso nesse momento, mas sempre pronto
para se enfurecer. Fizera a barba, o que tornava o suave poder das
suas feições ainda mais assustador, e os olhos que olhavam
imperiosamente em frente pareciam desproporcionadamente
pequenos, apesar de na realidade não o serem, já que se
encontravam quase escondidos pela carne que os rodeava. Pelo
seu olhar, um homem que não se devia irritar. Devia ter cinquenta
anos de idade, uns anos a mais ou a menos, mas o tempo não
suavizara certamente o que se devia ter assemelhado a granito
desde o início.
O seu cavalo estava no pátio do estábulo no exterior de uma
estrebaria aberta, despido e fumegando ligeiramente como se a
manta tivesse acabado de ser removida, e um lacaio estava a
esfregá-lo assobiando-lhe suavemente, enquanto trabalhava. Era
este um sujeito magro mas de ar resistente, cujos cabelos
começavam a ficar cinzentos, que se vestia com um tecido
desvanecido e de manufatura caseira de um castanho monótono e
um casaco de couro gasto. Deixou o seu olhar deslizar por Cadfael
e fez-lhe uma saudação silenciosa, tão acostumado a ser cauteloso
com todos os homens estava, que até mesmo um irmão beneditino
deveria ser evitado em vez de bem recebido.
Cadfael deu-lhe alegremente as boas noites e desmontou.
— Veio de longe? Aquele com quem me cruzei no portão era o
seu senhor?
— Era — disse o homem sem olhar para cima e não disse mais
palavras.
— Um estranho para mim. De onde vens? Os hóspedes são
escassos nesta época do ano.
— De Bosiet, é um feudo do lado mais afastado de Northampton.
alguns quilômetros a sudeste da cidade. Ele é Bosiet, Drogo Bosiet.
É o proprietário daquilo e retém um grande pedaço do condado
vizinho.
— Está muito longe de casa — disse Cadfael interessadamente.
— Para onde se dirige? Vemos muito poucos viajantes de
Northamptonshire por estas partes.
O lacaio endireitou-se, olhando mais atenta e inquisidoramente o
seu interlocutor, e os seus modos relaxaram um pouco, ao achar
Cadfael amável e inofensivo. Porém, apesar disso, não se tornou
nem menos sombrio nem mais volúvel.
— Anda a caçar — disse ele com um sorriso de lado.
— Mas não veados — arriscou-se Cadfael a dizer, retomando a
inspeção e apanhado pela perversidade do sorriso. – Nem, atrevo-
me a dizê-lo, as bestas da coutada.
— Atreve-se e di-lo bem. É atrás de um homem que ele anda.
— Um fugitivo? — Cadfael achou difícil de acreditar. — Tão longe
de casa? Um vilão fugitivo tem um tão grande valor tanto em tempo
como em despesas?
— Este vale. É valioso e qualificado, mas isso não é o cerne da
questão — confidenciou o lacaio, descartando a sua desconfiança e
reticência. — Ele tem contas a ajustar com ele. Obtivemos um
relatório a seu respeito, o qual indicava que se dirigia em direção a
oeste e a norte, e ele já passou a pente fino todas as aldeias e
cidades ao longo deste caminho, arrastando-me por uma estrada,
enquanto o seu filho com outro lacaio vai por outra e não pararemos
antes de chegarmos à fronteira galesa. Eu? Se pusesse os olhos no
tipo de quem ele anda atrás, ficaria cego. Não lhe entregaria de
volta um cão que lhe tivesse fugido, quanto mais um homem — a
sua voz seca reunira saliva e paixão enquanto falava e, pela
primeira vez virou-se completamente, de modo que a luz do archote
recaiu na sua cara. Uma das suas faces estava marcada com uma
contusão negra, o canto da sua boca rasgado e inchado, com o
aspecto de uma infecção prestes a surgir.
— A marca dele?— perguntou Cadfael, observando a ferida.
— O selo dele, certamente, é feito com o selo de um anel. Eu não
fui suficientemente rápido a agarrar o estribo, quando ele montou,
ontem de manhã.
— Posso tratar-te disso — disse Cadfael —, se esperares
enquanto vou dar notícias ao meu abade acerca de outro assunto. É
melhor me deixar te tratar, pois pode ficar complicado. E se
pensares — continuou calmamente —, estás suficientemente longe
do país dele e suficientemente perto da fronteira para correr, se
quiser fazer.
— Irmão — respondeu o lacaio com a gargalhada breve e
sombria —, tenho uma mulher e filhos em Bosiet, estou algemado.
Mas o Brand era jovem e solteiro, e os pés dele são mais leves que
os meus. E é melhor que eu coloque esta besta no estábulo e vá
esperar o meu suserano, ou ele tratará de me abrir o outro lado da
cara.
— Então quando ele estiver deitado e a ressonar — disse-lhe
Cadfael, recordando-se subitamente dos seus próprios deveres —,
vai até a escadaria do vestíbulo, de modo a que eu possa limpar-te
essa ferida.
O Abade Radulfus ouviu com preocupação, mas também com
alívio o relatório de Cadfael. Prometeu enviar com a primeira luz do
dia ajudantes suficientes para retirarem o salgueiro, limparem o
riacho e escorarem a zona superior da margem, e anuiu com uma
expressão séria ao saber que a longa espera de Eilmund na água
pudesse eventualmente complicar a sua recuperação, apesar da
fratura em si ser simples e limpa.
— Eu gostaria — disse Cadfael — de o visitar novamente amanhã
e de me certificar que ele fica na cama, pois pode surgir um foco de
febre e você conhece-o, Padre, será preciso mais do que as
repreensões da filha para o manter domesticado. Se receber ordens
suas, poderá prestar atenção. Tirarei as suas medidas para lhe fazer
as muletas, mas não as deixarei perto dele até ter certeza de que
ele está apto para se levantar.
— Tens a minha licença para ires e vires, como achares
necessário — disse Radulfus —, e durante o tempo que ele precisar
dos teus cuidados. É melhor manter aquele cavalo para tua
utilização. As viagens serão demasiado lentas a pé e nós
precisamos de ti durante parte do dia, sendo o Irmão Winfrid novo
na disciplina.
Cadfael sorriu, lembrando-se.
— O jovem Hyacinth não fez nenhuma viagem lenta. Durante o
dia de hoje, percorreu quatro vezes os mesmos quilômetros, para
trás e para a frente com a incumbência do seu senhor, e outra vez
de lá para aqui pelo Eilmund. Só espero que o eremita não tenha
levado a mal o fato do rapaz ter estado fora durante tanto tempo.
Cadfael deu por si a pensar que o lacaio de Bosiet podia estar
demasiado assustado com o seu senhor para se aventurar a sair à
noite, até mesmo quando este estivesse a dormir. Porém, ele
acabou por aparecer, deslizando furtivamente para o exterior assim
que os irmãos saíram das Completas. Cadfael conduziu-o pelos
jardins até a oficina no herbário e aí acendeu uma lanterna para
examinar a ferida lacerada, que estragava a cara do homem.
Durante a noite o pequeno braseiro estava tapado com relva, mas
não se encontrava extinto, e evidentemente, o Irmão Winfrid fora
suficientemente cauteloso para o manter aceso, em caso de
necessidade. Ele aprendia com esforço e perseverança e,
estranhamente, a delicadeza de toque que lhe faltara com a pena ou
o pincel mostrava sinais de desenvolvimento agora que tinha de
lidar com ervas e medicamentos. Cadfael destapou o braseiro e
soprou-o até este se erguer, colocando de seguida água a aquecer.
— O teu senhor está profundamente adormecido, não está? Não
é provável que acorde? Se bem que se acordasse, não precisaria
de ti a esta hora. Mas eu serei tão rápido quanto conseguir.
O lacaio sentou-se docilmente, deixando-se levar pelas mãos que
lhe prestavam assistência e virando, obedientemente, a cara para a
luz da lanterna. A ferida da face começava a desvanecer-se nas
extremidades, passando de preto a amarelo, mas o rasgão no canto
da sua boca ainda vertia sangue e pus. Cadfael lavou com água as
exsudações encrostadas e limpou o golpe com uma mistura de água
de betônica e sanícula.
— O teu senhor utiliza livremente os punhos — comentou ele
pesarosamente. — Vejo aqui dois cortes.
— Raramente para ao primeiro — disse o lacaio severamente. —
Só faz o mesmo que os da sua condição. Existem alguns piores do
que ele, e Deus ajude todos aqueles que os servem. O filho é do
mesmo estilo. Que mais poderíamos esperar, quando ele vive assim
desde que nasceu? Dentro de um ou dois dias, virá juntar-se a nós,
e se até lá ainda não tiver deitado as mãos a Brand, que Deus o
impeça!, a caça continuará.
— Bem, pelo menos, se ficares um dia ou dois talvez consiga
curar-te este golpe. Qual é o teu nome, amigo?
— Warin. O teu eu sei-o, Irmão, através do Irmão Hospitalário.
Isso é fresco e suave.
— Pensaria — disse Cadfael — que o teu suserano teria ido
primeiro ao xerife, se tivesse uma verdadeira queixa contra esse seu
fugitivo. Apesar de que os membros da corporação da cidade
manteriam de bom grado as suas bocas fechadas, mesmo que
soubessem alguma coisa, pois uma cidade fica a ganhar ao aceitar
um bom artífice. Mas os oficiais do rei são obrigados, de livre
vontade ou não, a ajudar um homem a recuperar a sua própria
propriedade.
— Nós chegamos aqui muito tarde, como tu viste, para podermos
fazer muito até o dia de amanhã. Ele sabe, demasiado bem, que
Shrewsbury é uma cidade de foral régio e pode enganá-lo se a sua
presa, o rapaz, chegou até aqui. Ele pretende ir ter com o xerife.
Mas já que está aqui alojado, e que considera que a igreja tal e qual
como a lei tem a obrigação de o ajudar, ele pediu para apresentar o
seu caso amanhã no capítulo e depois disso, partirá para a cidade
para procurar o xerife. Não há pedra que ele não levante para
descobrir o esconderijo de Brand.
Cadfael estava a pensar, apesar de não o ter dito que talvez ainda
houvesse tempo suficiente para enviar uma mensagem a Hugh, de
modo que fosse muito difícil encontrá-lo.
— O que é que — perguntou ele — fez o homem para tornar o teu
mestre tão vingativo?
— Ora, ele estava sempre a arranjar problemas, sendo um rapaz
que se defenderia bem como defenderia os outros, e isso é por si só
um crime suficiente para Drogo. Não sei exatamente o que se
passou naquele dia, mas o que quer que tenha sido, vi o criado de
Bosiet, o qual adotou o estilo do seu mestre transportado para o
feudo numa padiola e ficou de cama durante dias. Aparentemente,
algo se passara entre eles e Brand deitara-o por terra, pois quando
demos por isso Brand não estava em parte alguma e eles estavam a
persegui-lo ao longo de todas as estradas de Northampton. Mas
nunca o conseguiram alcançar e aqui estamos nós ainda no seu
encalço. Se Drogo alguma vez lhe puser as mãos em cima, irá
esfolá-lo, mas não o deixará deficiente, ele é demasiado valioso
para se desperdiçar. Mas arrancará cada pedaço do seu rancor da
pele do rapaz e depois, espremerá até o final da sua vida cada
tostão de lucro das suas habilidades, certificando-se que este nunca
terá hipótese de fugir novamente.
— Então o melhor é ele fazer o melhor que puder agora —
concordou Cadfael de modo estranho. — Se os desejos de boa
sorte o podem ajudar, ele tem-nos. Agora mantém-te quieto por um
momento... pronto! E podes levar este unguento contigo e usá-lo tão
frequentemente quanto desejares. Ajuda a sarar a ferida e a baixar
o inchaço.
Warin virou o pequeno jarro curiosamente na mão e tocou na face
com um dedo.
— O que é que tem dentro, para realizar tal cura?
— Ervas de São João e malmequeres pequenos, ambos bons
para feridas. E amanhã, se houver oportunidade, deixa-me ver-te de
novo, para saber como estás. E mantém-te longe do alcance dele!
— disse Cadfael calorosamente, virando-se para cobrir de novo o
seu braseiro com turfa fresca, de modo a que este ardesse
calmamente, sem chama e em segurança até de manhã.
Na manhã seguinte, Drogo Bousiet apareceu à hora devida no
capítulo, grande, vistoso e autoritário, numa assembleia onde um
homem mais sábio se teria apercebido de que a autoridade se
encontrava nas mãos do abade e que o controle deste era absoluto,
por mais calma que fosse a sua voz e austera a sua expressão.
“Ainda melhor”, pensou Cadfael observando-o com atenção e com
alguma ansiedade, do seu assento afastado, “Radulfus saberá
avaliar o homem e não deixará passar nada cedo demais”.
— Meu senhor abade — começou Drogo, batendo com os pés
nas lajes do chão. como um touro antes de atacar —, encontro-me
aqui em busca de um malfeitor, que atacou e feriu o meu criado e
fugiu das minhas terras. É sabido que se dirigiu para Northampton,
sendo que o meu feudo, ao qual ele está ligado, se situa a alguns
quilômetros a sudeste da cidade, e eu tenho o pressentimento que
ele irá tentar chegar à fronteira galesa. Tentamos apanhá-lo durante
o caminho, e a partir de Warwick eu tomei pela estrada de
Shrewsbury enquanto o meu filho foi por Stafford, e me encontrará
aqui vindo daquele local. Tudo o que venho perguntar é se algum
estranho com a idade dele passou ultimamente por estas bandas.
— Presumo — disse o abade após uma longa e pensativa pausa,
e observando atentamente a cara poderosa e a atitude arrogante do
seu visitante — que este homem seja o seu servo.
— Exato.
— E você sabe — continuou Radulfus suavemente — que já que
deixou de o reclamar há quatro dias, será necessário recorrer aos
tribunais para recuperar a sua posse legalmente?
— Meu senhor — disse Drogo com um desprezo impaciente -.
poderei bem fazê-lo se o conseguir encontrar. O homem é meu e
pretendo apanhá-lo. Tem sido a causa de muitos problemas para
mim, mas tem habilitações que me são valiosas e não pretendo ser
privado do que é meu. A lei me dará meus direitos nas terras onde a
ofensa surgiu — e assim, sem dúvida, a lei que imperava no seu
próprio condado servi-lo-ia, certamente, com um simples acenar da
sua cabeça.
— Se nos disser como é o seu fugitivo — disse o abade
sensatamente —, o Irmão Denis poderá dizer-lhe de uma vez se
tivemos alguém assim como nosso hóspede nos nossos átrios.
— Dá pelo nome de Brand. vinte anos de idade, cabelo escuro
avermelhado, esguio mas forte, sem barba...
— Não — disse sem hesitação o Irmão Denis, o hospitalário —,
não tive nenhum jovem com uma descrição semelhante aqui
alojado, e nem há cinco ou seis semanas. Se ele tivesse encontrado
serviço ao longo do caminho com algum comerciante ou mercador
transportando bens, como aqueles que trazem três ou quatro
criados, então poderia ter passado por estas bandas. Mas um
homem jovem e sozinho, não, nenhum.
— Quanto a isso — disse o abade com autoridade, evitando
resposta de qualquer outro, apesar de mais ninguém além do Prior
Robert se aventurar a falar antes dele —, faria melhor em levar a
sua pergunta ao xerife no castelo, pois é mais provável que os
oficiais dele saibam de alguns recém-chegados que tenham entrado
na cidade do que nós aqui dentro do enclave. A perseguição de
criminosos e ofensores, como a que descreve, é a função deles e
são minuciosos e cuidadosos com ela. Os membros da corporação
da cidade são igualmente cautelosos e avaros dos seus direitos e
têm boas razões para manterem os olhos abertos e prestarem
atenção a estes. Recomendo-lhe que recorra a estes.
— Assim o pretendo, meu senhor. Mas terá em conta o que eu
pedi e se alguém aqui se lembrar de alguma coisa acerca desse
propósito, informem-me.
— Esta casa fará o que for da sua incumbência neste assunto e
conscientemente — disse o abade com uma ênfase fria e observou-
o com uma cara inescrutável enquanto Drogo Bousiet, apresentando
o mais breve dos acenos em tom de despedida, se virou sob os
seus calcanhares e saiu apressadamente da casa do capítulo. Nem
Radulfus achou necessário tecer qualquer comentário ou emitir
alguma conclusão quando o peticionário desapareceu, como não viu
necessidade de fornecer instruções adicionais para além daquelas
que fornecera, através do tom das suas respostas. E, quando
passado algum tempo, saíram da casa do capítulo, tanto Drogo
como o seu lacaio tinham já montado e cavalgado, sem dúvida,
sobre a ponte e em direção à cidade para procurarem por Hugh
Beringar no castelo.
O Irmão Cadfael tencionara fazer uma rápida visita ao herbário e
à sua oficina, para ver se tudo estava em ordem e colocar o Irmão
Winfrid a trabalhar no que era mais seguro e mais satisfatório para
as suas atenções não supervisionadas, e depois partiria de imediato
para a cabana de Eilmund, mas os acontecimentos impediram-no.
Pois, nesse dia, houvera uma morte entre os irmãos velhos que se
encontravam na enfermaria, e o Irmão Edmund necessitando de um
companheiro para fazer com ele uma vigília, depois do homem
velho e cansado ter pronunciado as poucas e quase inaudíveis
palavras da sua última confissão e recebera a extrema-unção,
voltou-se primeiro e confidencialmente para o seu amigo e
associado mais próximo, entre os doentes. Tinham realizado juntos
e muitas vezes o mesmo serviço em quarenta anos de uma vocação
imposta desde a nascença no caso de Edmund, apesar de mais
tarde abraçada de livre vontade, mas escolhida após meia vida no
mundo exterior por Cadfael. Estavam nos polos opostos do oblatus
e das conversas, e compreendiam-se tão bem, que comunicavam
por poucas palavras.
A morte do velho homem foi indolor e ligeira, e toda a substância
da sua outrora mente astuta e vigorosa já partira; mas apesar disso
foi lenta. A desvanecida chama da vela não bruxuleava, apenas
diminuía na quietude perfeita segundo após segundo, tão
misteriosamente que acabaram por perder o momento em que a
última faísca se retirou, e só se aperceberam que ele falecera
quando as marcas da idade começaram a esmorecer-se
suavemente da sua cara.
— Assim se vão todos os homens bons! — disse Edmund
fervorosamente. — Nunca vi uma morte tão abençoada! Será que
Deus me tratará tão gentilmente quando a minha hora chegar?
Trataram juntos do homem morto e juntos saíram para o grande
pátio para arranjarem forma de o seu corpo ser transportado para a
capela mortuária. E depois, surgiu uma pequena questão
relacionada com o estudante mais novo do Irmão Paul, o qual meio
apressado falhou um degrau das escadas e rolou meio patamar,
ensanguentando os joelhos no cascalho do pátio e teve de ser
levantado, lavado e ligado, e despachado para o seu jogo, com uma
maçã como recompensa pela sua bravura ao negar corajosamente
que estava magoado. Só depois pôde Cadfael regressar ao estábulo
e selar o cavalo que lhe estava destinado, e por essa altura era
quase hora do serviço das Vésperas.
Conduzia o seu cavalo através do pátio em direção à casa do
portão quando Drogo Bosiet surgiu a cavalo sob a arcada, o
vestuário elegante um pouco gasto e poeirento de um dia de
frustração e esforço, a sua cara enegrecida e o lacaio Warin uns
quantos metros atrás dele, cautelosamente atento, alerta para
obedecer ao seu mínimo gesto, mas ao mesmo tempo desejoso de
se manter longe da sua vista e da sua mente. Claramente, a caça
não produzira nenhuma presa e os caçadores voltavam ao anoitecer
de mãos vazias. Nessa noite, Warin teria de se manter longe do
alcance daquele braço poderoso.
Cadfael avançou através do portão, tranquilizado e satisfeito, e
apressou-se na direção do seu paciente em Eyton.
5

Richard estivera toda a tarde fora com os outros rapazes nos


jardins principais da abadia, ao lado do rio, onde as últimas peras
estavam a acabar ser colhidas. Era permitido às crianças ajudar e
dentro do razoável prová-las, embora o fruto ainda tivesse de
amadurecer depois de ser reunido. Todavia, estas, as últimas,
tinham ficado durante tanto tempo na árvore que já eram
comestíveis. Fora um dia bem passado, com sol, liberdade e uns
quantos chapinhares no rio onde existia pouca profundidade e
Richard sentia-se relutante em ter de ir ao Serviço de Vésperas
quando este terminasse, e depois do jantar ter de se deitar. Vadiou
no final do grupo, contornando o seu caminho ao longo da ribeira e
subindo a rampa verde e arborizada arbustos do Foregate. Na
calma do final da tarde, nuvens de mosquitos ainda pairavam
dançando sobre a água e peixes saltavam, atirando-se sobre estas
preguiçosamente. Debaixo da ponte, a corrente parecia quase
imóvel, apesar de ele saber que era rápida e profunda. Em tempos,
existira aí uma azenha, alimentada pelo fluxo de água.
Edwin, de nove anos de idade, o seu leal aliado, vadiava com ele
mas um pouco ansiosamente, deitando um olhar de lado por cima
do ombro para ver se a distância entre eles e a cauda da procissão
aumentava. Fora elogiado pelo seu estoicismo após a sua queda e
pretendia não perder a quente sensação de virtude que o acidente
lhe deixara, atrasando-se para o serviço de Vésperas. Todavia,
também não podia desertar o seu amigo do peito. Parou,
esfregando um joelho ligado que ainda lhe doía um pouco.
— Richard, vem, não podemos vadiar. Olha, eles já estão perto da
estrada principal.
— Podemos facilmente apanhá-los — disse Richard, chapinhando
os pés na água pouco profunda. — Mas tu continua, se quiseres.
— Não, sem ti não. Mas eu não consigo correr tão depressa como
tu, o meu joelho está rígido. Por favor vem, vamos chegar
atrasados.
— Não chegarei atrasado, consigo chegar lá muito antes do sino
tocar, mas esqueci-me que tu não podes correr tão depressa como
de costume. Vai andando, ultrapasso-te antes de chegares à casa
do portão. Só quero ver a quem pertence aquele barco, que vai a
descer na direção da ponte.
Edwin hesitou, pesando a sua própria e virtuosa paz de espírito
contra a deserção, e pela primeira vez decidiu seguir os seus
próprios desejos. O último hábito negro do final do grupo estava
nesse exato momento a subir para a estrada, para desaparecer de
vista. Ninguém olhara para trás para chamar aqueles mais
indolentes ou para ralhar, pois eles eram deixados com as suas
próprias consciências. Edwin virou-se e correu atrás dos seus
companheiros tão depressa quanto podia, com o seu joelho
endurecido. Do topo da encosta, olhou para trás, mas Richard
estava enfiado até os tornozelos na pequena enseada, atirando
habilmente pedras ao longo da superfície da água, provocando uma
linha prateada de salpicos. Edwin decidiu-se pela virtude e
abandonou-o.
Nunca passara pela mente de Richard manter-se ocioso, mas o
seu jogo seduziu-o à medida que cada lançamento melhorava em
relação ao anterior, e começou a procurar seixos mais lisos e
achatados debaixo do declive, desejoso de conseguir alcançar a
margem oposta. E depois um dos rapazes da cidade, que estivera a
nadar sob a cobertura verde de relva que trepava pelo muro da
cidade, aceitou o desafio e começou a retribuir o chuveiro de pedras
dançantes, chapinhando nu no baixio. Tão absorvido estava Richard
na competição que se esqueceu completamente do serviço de
Vésperas, e somente o leve e distante repicar do sino o despertou,
chamando-o para o seu dever. Então deixou cair a sua pedra,
abandonou o campo ao seu rival, e avançou apressadamente para a
margem, agarrando nos sapatos e correndo como um veado na
direção de Foregate e da abadia. No entanto, partira demasiado
tarde. No momento em que chegou sem fôlego à casa do portão, e
deslizou cuidadosamente através do postigo para evitar que dessem
por ele, ouviu o canto do primeiro salmo vindo do interior da igreja.
Bem, não era assim um pecado tão grande perder um serviço
religioso, mas ele não queria acrescentar isso aos seus pecados
nesta altura, quando estava tão preocupado com graves questões
familiares, fora do claustro. Por sorte, os filhos dos criados e os
criados residentes estavam igualmente habituados a participar no
serviço de Vésperas, o que aumentava convenientemente o número
de rapazes da escola, não se conseguindo dar pela falta de um
pequeno ocioso, e se ele conseguisse escapulir-se para o meio do
grupo quando este saísse no final da igreja, poder-se-ia pensar que
ele estivera entre eles durante todo o tempo. Era o melhor
estratagema que conseguia arranjar. Assim, deslizou para dentro do
claustro e instalou-se na primeira sala da biblioteca do lado sul,
enrolando-se a um canto, de onde podia ver a porta sul da igreja,
através da qual sairiam irmãos, hóspedes e rapazes quando o
serviço religioso terminasse. E assim que os padres e os monges do
coro passassem, não seria difícil penetrar no seu interior e colocar-
se entre os outros rapazes sem ser visto.
E aí vinham eles, por fim. o Abade Radulfus, o Prior Robert e
todos os irmãos, passando com decoro e saindo para a noite a
caminho do seu jantar; e depois a multidão menos disciplinada dos
jovens da abadia. Richard deslizava ao longo da parede que o
escondia, preparado para se escapar e misturar-se com eles
enquanto passavam, quando uma voz familiar e censora se fez ouvir
do outro lado da parede, na própria arcada através da qual as
crianças deviam passar.
— Silêncio aí! Não quero ouvir tão cedo nenhuma conversa
depois da adoração divina! Foi assim que foram ensinados a deixar
o lugar sagrado? Coloquem-se em fila, dois a dois e comportem-se
com a devida reverência.
Richard ficou petrificado, as suas costas pressionadas contra a
pedra fria da parede e recuou sub-repticiamente para o canto mais
escuro da sala da biblioteca. O que teria acontecido ao Irmão
Jerome para deixar a procissão dos monges do coro passar sem
ele, ficando à espera nesse local para intimidar e ralhar com as
inofensivas crianças? Pois ele permanecia imóvel, apressando-as
em pequenas filas e Richard foi forçado a agachar-se para se
esconder, deixando as suas esperanças goradas desvanecerem-se
no ar noturno do grande pátio e ficando assim encurralado. Pois de
todos os irmãos, Jerome era aquele perante quem ele teria menos
vontade de rastejar ignominiosamente para ser acusado e
repreendido. E agora os rapazes tinham-se afastado, uns quantos
hóspedes da abadia emergindo calmamente da igreja, e Jerome
permanecia esperando no mesmo local, pois Richard conseguia ver
a sua sombra nas lajes do chão.
E, repentinamente, parecia que ele estivera à espera de um dos
hóspedes, pois a sombra foi interceptada e transformou-se numa
sombra maior. Richard vira esta segunda sombra passar, um
homem grande, musculoso, caminhando em largas passadas, com
uma cara sólida e de um castanho avermelhado como uma parede
de arenito, vestindo o traje rico da nobreza intermédia, ainda não
pertencendo à nobreza ou mesmo aos principais vassalos, mas
ainda assim alguém que merecia ser reconhecido.
— Tenho estado à espera, senhor — disse o Irmão Jerome
presunçosamente, mas com certo respeito —, para lhe dar uma
palavra. Tenho estado a pensar sobre o que nos disse no capítulo,
esta manhã. Quer sentar-se comigo em privado durante uns
momentos?
Pareceu a Richard que o seu jovem coração se virava ao
contrário dentro do seu peito, pois ali estava ele agachado no banco
de pedra ao pé de um dos escaparates do Irmão Anselm na sala de
biblioteca, mesmo ao lado deles, e sentia-se apavorado pois eles
poderiam entrar e apanhá-lo ali. Porém, devido aos seus próprios
motivos parecia que o Irmão Jerome preferia manter-se mais
retirado, como se não quisesse que alguém ainda dentro da igreja,
talvez o sacristão, observasse este encontro enquanto saía, pois
puxou o seu companheiro para o interior da terceira sala de
biblioteca e sentou-se aí com ele. Richard podia ter contornado o
canto e deslizado para fora do claustro agora que o caminho estava
livre, mas não o fez. Pura curiosidade humana manteve-o mudo e
quieto onde se encontrava, quase sustendo a respiração, um
pequeno ser com orelhas muito grandes.
— Este malfeitor de quem falou — começou Jerome —, aquele
que assaltou o seu criado e fugiu de si, como é que disse que ele se
chamava?
— O nome dele é Brand. Porquê, tem alguma notícia sobre ele?
— Não, certamente nenhuma com esse nome. Creio piamente —
disse Jerome virtuosamente — que é o dever de qualquer homem
ajudá-lo a reclamar o seu servo, se o puder fazer. Ainda mais é
dever da igreja, a qual deveria sempre apoiar a justiça e a lei, e
condenar o criminoso e transgressor dessa mesma lei. Disse-nos
que este rapaz é novo, com cerca de vinte anos? Sem barba, com
cabelo ruivo escuro?
— Sim, é tudo isso. Conhece tal pessoa? — exigiu Drogo
agressivamente .
— Pode não ser o mesmo homem, mas existe um homem novo
que corresponde a essa descrição, apenas um, do qual eu tenho
conhecimento que veio para estas partes ultimamente. Vale a pena
perguntar. Veio para aqui com um peregrino, um homem santo que
se instalou num eremitério apenas a alguns quilômetros daqui, no
feudo de Eaton. Serve o eremita e se ele é realmente o seu servo,
deve-se ter imposto àquela boa alma, que com a bondade do seu
coração lhe deu trabalho e abrigo. Se assim é, então o correto será
abrir-lhe os olhos para o tipo de servidor que está a albergar. E se
não for ele o homem, não há mal nenhum nisso. Mas tenho,
certamente, algumas dúvidas acerca dele, da única vez que ele veio
até aqui com uma mensagem. Tem um tipo de insolência que não
combina com o serviço de um santo.
Richard agachou-se imóvel, abraçando os joelhos, as suas
orelhas espetadas para captar cada palavra proferida.
— Onde é que se pode encontrar esse eremitério? — exclamou
Drogo, com a fome da caçada na sua voz. — E como é que o rapaz
se chama?
— Usa o nome Hyacinth. O nome do eremita é Cuthred, qualquer
um em Wroxeter ou em Eaton pode dizer-lhe onde ele mora — e
Jerome lançou-se de livre vontade na descrição das instruções
exatas quanto à estrada, o que o ocupou tão ativamente que se
tivessem existido pequenos sons vindos da sala vizinha, ele
provavelmente não os teria ouvido, mas os pequenos pés descalços
de Richard não emitiram qualquer som nas lajes, enquanto
deslizava apressadamente pela arcada e fugia pelo pátio abaixo na
direção dos estábulos, ainda carregando os seus sapatos. As
pequenas e duras solas dos seus pés penetravam entre os seixos e
o cascalho do pátio do estábulo, indiferente ao fato de ser ou não
ouvido, agora que se sentia seguro fora da sala de biblioteca
estreita e escura, a qual ecoava com o som de uma voz hipócrita e
de outra feroz, uma conspirando a captura e ruína de Hyacinth, que
era jovem e vivo e seu amigo. Mas eles não o apanhariam, não se
Richard pudesse evitar. Independentemente de quão detalhadas as
indicações do Irmão Jerome, aquele homem que queria o seu servo
de volta e certamente não lhe faria bem se alguma vez o
apanhasse, teria ainda de descobrir o caminho por entre o bosque
quando o alcançasse; mas Richard conhecia cada atalho e podia
cavalgar rapidamente através do caminho mais curto, se ao menos
conseguisse selar o seu pônei e sair calmamente pela casa do
portão sem ninguém o ver, antes do inimigo enviar um moço de
estrebaria selar o seu próprio cavalo. Pois dificilmente seria ele
próprio a fazê-lo, se tivesse um criado que o fizesse por ele. A ideia
do bosque à luz crepuscular não amedrontava Richard e o seu
coração batia excitadamente com a aventura.
A sorte ou as mercês do céu favoreceram-no, pois era a hora em
que todos estavam a jantar e até mesmo o porteiro da casa do
portão encontrava-se recolhido tomando a sua refeição, e deixara o
portão sem vigia enquanto comia. Se ouvisse o som de cascos e
viesse até o exterior para ver quem poderia ser o cavaleiro, sairia
demasiado tarde para ver Richard subir para a sela e partir a um
trote regular ao longo do Foregate, em direção a Saint Giles. Até se
esquecera de que estava com fome e nem se preocupava em ir sem
jantar. Para além disso, era um dos favoritos do Irmão Petrus, o
cozinheiro do abade, e talvez mais tarde conseguisse convencê-lo a
dar-lhe qualquer coisa. Quanto ao que aconteceria quando a sua
ausência fosse descoberta, o que certamente aconteceria à hora de
deitar mesmo que passasse despercebido ao jantar, não havia
qualquer necessidade de pensar nisso agora. O que interessava era
encontrar Hyacinth e avisá-lo, se é que ele era de fato este Brand,
de que era melhor fugir para se esconder tão depressa quanto
pudesse, pois o caçador estava atrás dele e apanhara-lhe o seu
rastro. Depois disso, deixar que o que estivesse para acontecer
acontecesse!
Virou num caminho amplo para a floresta para além de Wroxeter,
caminho esse que Eilmund desimpedira para dar passagem à
madeira da pequena mata de árvores e aos postes aparados.
Conduzia diretamente à cabana da floresta, mas era também o
caminho mais rápido para um atalho que continuava até o
eremitério, o primeiro lugar óbvio onde procurar pelo lacaio de
Cuthred. Aqui, a floresta era basicamente constituída por carvalhos
antigos, e a cobertura do chão constituída pelas camadas profundas
das folhas de muitos Outonos faziam com que cavalgar fosse um
ato silencioso. Richard refreara a velocidade entre as velhas árvores
e o pônei pisava com um prazer delicado o húmus almofadado. No
entanto, se não fosse o silêncio, o rapaz nunca teria ouvido as
vozes, pois estas eram baixas e absorventes, e manifestamente
uma era masculina e a outra feminina, apesar das suas palavras
serem demasiado suaves para se conseguirem distinguir, pois
falavam apenas uma para a outra. Então ele viu-os, num dos lados
do caminho perto do amplo tronco de um carvalho, muito quietos.
Não se estavam a tocar, apesar de só terem olhos um para o outro,
e o que quer que tivessem para dizer era sério e de grande
importância. O grito que Richard lançou ao avistá-los assustou-os e
eles afastaram-se como pássaros a esvoaçar.
— Hyacinth! Hyacinth!
Em vez de desmontar, rolou e caiu do seu pônei, correndo para
eles enquanto estes se aproximavam.
— Hyacinth, tens de te esconder, tu tens de fugir rapidamente!
Eles estão atrás de ti, se tu és o Brand, és o Brand? Chegou um
homem à tua procura, diz que anda à caça de um servo fugitivo
chamado Brand.
Hyacinth, alerta e a tremer, agarrou-o pelos ombros e caiu de
joelhos para o olhar olhos nos olhos.
— Que tipo de homem? Um criado? Ou o próprio homem? E
quando foi isto?
— Depois do serviço de Vésperas. Eu ouvi-os a falar, o Irmão
Jerome disse-lhe que chegara a esta terra um homem jovem que
pode ser aquele de que ele anda à procura. E disse-lhe onde te
encontrar e ele vai procurar-te ainda esta noite ao ermitério. Um
homem horrível, grande e fanfarrão. Corri o mais depressa que pude
para ir buscar o meu pônei, enquanto eles ainda estavam a falar e
saí antes dele. Mas tu não deves voltar para Cuthred, deves fugir
rapidamente e esconder-te.
Hyacinth abraçou o rapaz, num abraço rápido e tumultuoso.
— És o amigo mais verdadeiro e galante que qualquer homem
poderia desejar ter, e nunca receies por mim, porque agora que
estou avisado o que me pode prejudicar? Esse é o próprio homem,
sem dúvida! Drogo Bosiet tem suficiente estima por mim para
desperdiçar tempo, homens e dinheiro para me perseguir e, no fim,
não receberá nada pelo seu incômodo.
— Então tu és o Brand? Foste o seu servo feudal?
— Ainda gosto mais de ti — disse Hyacinth — por veres a minha
condição de servo feudal como passado. Sim, o nome que me
deram há muito tempo foi Brand, eu escolhi Hyacinth para mim
próprio. Tu e eu continuaremos a usar esse nome. E agora tu e eu,
meu amigo, temos de partir pois o que tu deves fazer agora é
regressar rapidamente para a abadia, antes que a luz se apague e
antes que deem pela tua falta. Vem, eu acompanho-te até o limite
do bosque.
— Não! — disse Richard, ultrajado. — Eu irei sozinho, não tenho
medo. Tu deves desaparecer, agora, de uma vez por todas!
A moça pousara a mão sob o ombro de Hyacinth. Richard viu, no
crepúsculo envolvente, os seus olhos brilhantes e alertas, mais com
determinação do que com alarme.
— Ele desaparecerá, Richard! Sei de um lugar onde ficará salvo.
— Tu devias tentar ir para Gales — disse Richard ansiosamente,
e de certa forma ciumento, pois este era o seu amigo e ele o seu
salvador e quase se ressentia por Hyacinth dever uma parte da sua
salvação a outra pessoa e, ainda por cima, a uma mulher.
Hyacinth e Annet olharam brevemente um para o outro, sorrindo e
os seus sorrisos iluminaram os bosques.
— Não, isso não — disse Hyacinth gentilmente. — Se o que devo
fazer é fugir, não o farei para longe. Mas tu não deves recear por
mim, eu ficarei suficientemente seguro. Agora monta, meu senhor, e
vai-te embora, regressa para onde ficarás seguro ou eu não darei
um passo.
Isso fez com que ele se movesse relativamente depressa. Olhou
uma vez para trás para lhes acenar, e viu-os de pé como os deixara
olhando para ele. Olhou para trás uma segunda vez, para o local
onde tinham estado o qual já se encontrava meio escondido entre
as árvores, mas eles já tinham desaparecido e a floresta estava
silenciosa e tranquila. Richard lembrou-se dos problemas que o
aguardavam, e tomou a estrada em direção a casa, cavalgando num
trote ansioso.
Drogo Bosiet cavalgava através do crepúsculo matinal pelos
caminhos que o Irmão Jerome lhe indicara ordenando
autoritariamente aos aldeãos em Wroxeter que lhe confirmassem se
ele estava a seguir o melhor caminho em direção à cela do eremita
Cuthred. Parecia que o homem santo estava ligado a um tipo de
reverência comum aos velhos eremitas celtas, pois mais do que um
dos interrogados falara dele chamando-lhe Santo Cuthred.
Drogo penetrou na floresta perto do local onde terras Eaton, como
o pastor que encontrara no campo o informara, passavam junto aos
limites de Eyton e uma cavalgada rápida levou-o, quase após um
quilômetro e meio de floresta, até uma pequena clareira rodeada por
um denso bosque. A casa de pedra no seu centro estava
solidamente construída, mas era pequena e tinha um teto baixo,
mostrando sinais de reparação recente, após ter sido negligenciada
durante anos. Um pequeno jardim quadrangular rodeava-a, vedado
por uma paliçada baixa, e parte do solo do seu interior fora limpo e
cultivado. Drogo desmontou na orla da clareira e avançou até a
vedação, conduzindo o seu cavalo pela rédea. O silêncio da tarde
era profundo, como se não existisse um ser vivo no raio de um
quilômetro e meio do local.
Todavia, a porta da cabana estava aberta e lá de dentro surgia um
clarão de luz. Drogo amarrou o cavalo e caminhou a passos largos
através do jardim, avançando até a porta e ainda sem ouvir nenhum
som. entrou. O quarto para onde entrou era pequeno e escuro,
contendo pouco mais do que uma cama com colchão de palha,
encostada à parede, uma pequena mesa e um banco. A luz
bruxuleava no seu interior num segundo quarto, e pela entrada
aberta, pois não existia qualquer outra porta, ele viu que este era
uma capela. A lamparina encontrava-se sob um altar de pedra,
perante uma pequena cruz de prata, colocada num relicário de
madeira esculpido e, no altar, perante a cruz pendia um esbelto e
elegante breviário numa fita dourada. Dois candelabros de prata,
certamente presentes da patrona do eremita, flanqueavam a cruz,
um de cada lado.
Perante este altar, encontrava-se ajoelhado e imóvel um homem,
um homem alto num hábito negro e grosseiro, com o capuz subido
cobrindo-lhe a cabeça. Contra a pequena luz, a figura negra era
impressionante, as suas grandes costas eretas direitas como uma
lança, a cabeça não curvada mas erguida, a verdadeira imagem de
santidade. Até Drogo se manteve calado por um momento, mas não
mais que isso. As suas próprias necessidades e desejos eram
supremos, as rezas de um eremita podiam e iriam render-se a ele.
O entardecer avançava rapidamente para a noite e ele não tinha
tempo a perder.
— És tu o Cuthred? — perguntou firmemente. — Na abadia,
contaram-me como te podia encontrar.
A figura digna não se moveu, a não ser que tivesse aberto as
mãos, as quais permaneciam invisíveis.
— Sim, eu sou Cuthred. O que queres de mim? Entra e fala
livremente — respondeu a figura, numa voz contida e não alarmada.
— Tu tens um rapaz que te faz recados. Onde está ele? Quero
vê-lo. Podes muito bem ter sido enganado e estar a manter um
velhaco, sem o saberes.
E, ao ouvir isto, a figura encapuçada virou-se. A sua cabeça
erguendo-se para encarar o estranho, e a luz da lamparina do altar
mostrou uns olhos profundos, uma barba farta, um nariz longo,
direito e aristocrático, e uma cabeleira negra sob o capuz, e Drogo
Bosiet e o eremita da floresta de Eyton olharam um para o outro,
fixa e demoradamente.
O Irmão Cadfael estava sentado na cama de Eilmund a cear pão,
queijo e maçãs, já que, como Richard, perdera o jantar, e muito
satisfeito com o seu paciente pouco feliz, quando Annet entrou
depois de ter alimentado as galinhas e as ter recolhido no galinheiro,
e ter mugido a única vaca que mantinha para uso deles. Ela perdera
demasiado tempo com isso, disse-lhe o seu enfadado pai. Qualquer
vestígio de febre o deixara, a sua cor estava boa e ele não se sentia
muito desconfortável, mas estava mal-humorado devido à sua
própria incapacidade, e impaciente por sair e tratar novamente dos
seus assuntos, desconfiando dos devidos cuidados a ter com a sua
floresta por parte dos substitutos solícitos mas ignorantes que o
abade lhe enviara. A brusquidão do seu temperamento era
testemunho da sua saúde. E a perna quebrada estava direita e não
sentia muitas dores. Cadfael estava satisfeito.
Annet entrou com ar reservado e riu dos resmungos do pai, sem
sinais de medo.
— Deixei-te na melhor das companhias, e sabia que havias de
ficar bem sem mim durante uma hora, como eu ficaria bem sem ti
durante uma hora, tal é o velho urso em que te transformaste!
Porque haveria de me apressar a regressar, num entardecer tão
agradável? Tu sabes que o Irmão Cadfael tem tratado bem de ti,
não me roubes um pouco de ar.
Contudo, pelo seu olhar, ela apreciara algo mais poderoso do que
uma mera lufada de ar. Havia uma vivacidade brilhante e
tremeluzente à volta dela, como se tivesse bebido um vinho forte.
Cadfael reparou que o seu cabelo castanho, sempre tão macio,
estava atado mas umas quantas madeixas tinham-se soltado sobre
os seus ombros, como se ela tivesse feito o seu caminho por entre
ramos baixos que lhe puxaram as tranças, e as suas faces estavam
rosadas e alegres, combinando com o brilho dos seus olhos.
Trouxera agarradas aos sapatos algumas das folhas caídas. Na
verdade, a vacaria ficava mesmo no interior do círculo de árvores na
extremidade da clareira, mas aí não existiam carvalhos adultos.
— Bem, agora que estás de volta, e como não o queria deixar
sozinho sem um ouvinte a quem se queixar — disse Cadfael —, é
melhor eu regressar antes que escureça completamente. Faz com
que ele não se levante ainda durante alguns dias, moça, e eu o
deixo usar as muletas, assim que ele se portar como deve ser. Pelo
menos, não sofreu por ter ficado tanto tempo dentro de água, isso é
já por si uma bênção.
— Graças ao rapaz de Cuthred, o Hyacinth — relembrou Annet.
Lançou um olhar rápido ao pai e ficou satisfeita, quando ele
respondeu cordialmente, — E isso é a maior das verdades! Naquele
dia, foi tão bom para mim como se fosse meu filho, e não me
esquecerei disso.
E seria impressão sua ou as faces de Annet ruborizaram-se num
rosa mais profundo? Tão bom como um filho para um homem que
não tinha um filho para ser o seu braço direito, mas apenas esta
filha esperta, confiante, discreta e carinhosa?
— Mantêm a tua cabeça em descanso — avisou Cadfael,
erguendo-se — e, em breve, estarás tão saudável como antes. Vale
a pena esperar por isso. E não te assustes com a pequena mata,
pois aqui a Annet dirá que eles fizeram um bom trabalho ao limpar o
riacho e desbastaram o excedente da margem. Vai se aguentar —
prendeu a bolsa ao cinto e virou-se para a porta.
— Acompanho-o até o portão — disse Annet e saiu com ele,
penetrando no crepúsculo profundo da clareira, onde o seu cavalo
mordiscava placidamente a erva.
— Moça — disse Cadfael, colocando um pé no estribo — ,
desabrochaste como uma rosa esta noite.
Ela estava nesse momento a separar as madeixas soltas e
entrelaçando-as. Virou-se e sorriu para ele.
— Mas parece que passei por um arbusto de espinhos —
respondeu ela.
Cadfael inclinou-se sob a sela e tirou-lhe, delicadamente, uma
folha seca de carvalho do cabelo. Ela olhou para cima para o ver a
girar gentilmente o talo entre os dedos e sorriu maravilhada. Foi
assim que ele a deixou, agitada, preparada e certamente decidida a
partir destemidamente, através de todas as moitas espinhosas que
pudessem encontrar-se no seu caminho, como obstáculos entre ela
e aquilo que ela queria. Ainda nem sequer estava preparada para
confiar no seu pai, mas não se preocupava nada que Cadfael
pudesse adivinhar o que estava para acontecer, nem ela temia um
final inesperado. O que não significava que os outros não se
preocupassem com ela.
Cadfael cavalgou sem pressas, através do bosque escuro. A lua
estava já bem alta e brilhava, nos locais onde penetrava através da
espessura das árvores. As Completas já deviam ter terminado havia
muito e os irmãos estariam a preparar-se para dormir. Os rapazes já
deviam estar deitados havia muito tempo. Estava calmo e fresco na
floresta, a qual tinha um odor mentolado, e estava agradável para se
cavalgar sozinho e calmamente, e ter tempo para pensar em
inúmeras coisas que não podiam ser pensadas no alvoroço do dia,
por vezes nem durante o santo ofício ou na tranquilidade das
orações onde estas pertenciam por direito. Aqui, sob este céu
noturno ainda tenuamente iluminado, existia mais espaço para elas.
Cadfael cavalgava com um profundo contentamento de espirito
através da zona mais densa do bosque, vislumbrando sob a
claridade tênue de luz os campos abertos que surgiam perante ele.
Foi o movimento sussurrante à sua esquerda, por entre as
árvores, que o despertou do seu devaneio. Entre as trevas, algo
vagamente pálido movia-se a seu lado, e ele ouviu o ligeiro tinir do
freio e rédea de um cavalo. Um cavalo, sem cavaleiro, vagueando
perdido, mas selado e com rédeas, pois os pequenos sons
metálicos soavam claramente. Não saíra sem cavaleiro quando
partira do seu estábulo. Nos interstícios do luar que se projetavam
entre os ramos, a forma pálida brilhava de modo indefinível,
aproximando-se cada vez mais do caminho. Cadfael já vira aquele
ruão ligeiro, naquela mesma tarde, no grande pátio da abadia.
Desmontou apressadamente e chamou-o, avançando para
agarrar a rédea solta e passar-lhe a mão sobre a sua testa malhada.
A sela ainda estava no lugar, mas as tiras que seguravam um
pequeno rolo por trás da sela tinham sido cortadas. E onde estava o
cavaleiro? E porque, de fato, partira de novo depois de ter
regressado de mãos vazias de um dia de caça? Ter-lhe-ia alguém
fornecido uma pista para o atiçar novamente atrás da sua presa, até
mesmo de noite?
Cadfael deixou os arbustos e voltou ao caminho, onde tinha
primeiro vislumbrado a forma pálida a mexer-se. Aqui nada parecia
ter sido perturbado, o emaranhado de ramos não revelava nenhuma
passagem de rompante. Esforçou-se um pouco para emergir
novamente no caminho e aí, debaixo dos arbustos na relva alta, de
tal modo escondido que quase passara por ele sem o ver, encontrou
o que receava encontrar.
Drogo Bosiet estava estendido de cara para baixo, afundado na
madura erva outonal e, apesar da cor escura do seu vestuário,
Cadfael conseguia distinguir a mancha ainda mais escura que era o
seu sangue, esvaindo-se debaixo da sua omoplata esquerda, onde
o punhal que o matara fora cravado e retirado.
6

Numa hora tão tardia havia poucas hipóteses de conseguir ajuda


imediata, quer na abadia quer no castelo, e não podia fazer nada
quanto a este cenário assustador, aqui na floresta. Tudo o que
Cadfael podia fazer assim sozinho era ajoelhar-se ao lado do corpo
caído, tentando sentir uma batida cardíaca ou uma pulsação e
escutar algum tênue sinal de respiração. Apesar da carne de Drogo
estar ainda quente e flexível ao toque, não respirava e o coração no
seu grande peito, o qual fora certamente perfurado pela punhalada
dada por detrás, estava parado como uma pedra. Não devia estar
morto havia muito tempo, mas a erupção do sangue que jorrara com
a lâmina parara de fluir e começava a secar nos rebordos,
transformando-se numa crosta escura. “Há mais de uma hora”,
pensou Cadfael, considerando esse período de tempo através dos
sinais que este apresentava, “no máximo talvez duas horas. E o seu
rolo de sela cortado e roubado. Aqui nos nossos bosques! Ou teria
algum assassino da cidade ouvido dizer que Eilmund se encontrava
em casa acamado e aventurara-se a tentar aqui a sua sorte, com
um viajante ocasional que passasse sozinho?”
A demora já não podia prejudicar Drogo e a luz do dia podia, pelo
menos, mostrar algum indício que conduzisse ao seu assassino.
Melhor deixá-lo assim e avisar o castelo, onde havia sempre um
guarda acordado e deixar uma mensagem para Hugh, para que esta
fosse entregue assim que houvesse luz. A meia-noite, os irmãos
levantar-se-iam para as Matinas, e as mesmas notícias horrendas
podiam e deviam ser entregues então ao Abade Radulfus. O homem
morto era hóspede da abadia e o seu filho era esperado dentro de
alguns dias, devendo ser conduzido à abadia para ser adequada e
respeitosamente tratado.
Não, não havia mais nada que pudesse ser feito por Drogo Bosiet,
mas pelo menos podia levar de volta o cavalo para o seu estábulo.
Cadfael montou, juntou as rédeas soltas na sua mão esquerda e o
cavalo seguiu-o docilmente. Não havia pressa. Tinha ainda algum
tempo até a meia-noite. Não havia necessidade de poupar tempo,
pois mesmo que chegasse à sua cama antes das Matinas, ser-lhe-ia
impossível conciliar o sono. Melhor seria tratar dos cavalos e depois
esperar pelo rebate do sino.
O Abade Radulfus chegou cedo à igreja para as Matinas para
encontrar Cadfael esperando por ele na arcada sul, enquanto a
atravessava vindo da sua cela. O sino no dormitório começava a
tocar. São precisos apenas alguns momentos para dizer
abruptamente que um homem está morto, e que se encontra assim
através de um ato humano, não de ato divino.
Radulfus nunca foi conhecido por desperdiçar palavras e não o
faria agora com as notícias de que um hóspede da sua casa
chegara a um fim inesperado na própria floresta da abadia. Aceitou
a afronta vulgar e o mal grosseiro num silêncio sombrio, e o direito e
dever de retribuição, tão incumbente sobre a igreja como sobre a
autoridade secular, aceitou-os com um profundo aceno de
consentimento da sua cabeça, e um esgar que lhe apertava os
lábios cheios e firmes. No meio do silêncio, enquanto ele pensava,
começaram a ouvir os suaves passos dos irmãos descendo as
escadas da noite.
— E deixaste recado para o Hugh Beringar? — perguntou o
abade.
— Em sua casa e no castelo.
— Então, nenhum homem pode fazer mais até que nasça a
primeira luz. Ele deve ser trazido até aqui, pois aqui virá o seu filho.
Mas tu serás necessário, pois podes conduzir-nos diretamente até
onde ele se encontra. Agora vai, eu libero-te do serviço religioso, vai
e descansa, e de madrugada cavalga para te juntares ao xerife. Diz-
lhe que enviarei em seguida um grupo para trazer o corpo para
casa.
Na primeira luz hesitante de uma manhã fria, encontravam-se
sobre o corpo de Drogo Bosiet Hugh Beringar e Cadfael. um
sargento da guarnição de Hugh e dois homens de armas, todos
silenciosos, todos de olhos fixos na grande mancha de sangue seco
que ensopava as costas do rico casaco de montar. A relva estava
tão pesada e achatada com orvalho como se tivesse chovido e a
umidade reunira-se em grandes pérolas sob a lã da roupa do
homem morto, constelando os arbustos num tesouro de teias de
aranha.
— Como arrancou o punhal da ferida — disse Hugh —, o mais
provável é que o tenha levado com ele. Mas iremos procurá-lo para
o caso de ele o ter deitado fora. E tu dizes que as faixas do rolo da
sela foram cortadas? Após tê-lo morto, ele precisava de faca para
isso. Mais rápido e mais fácil cortá-las para que esta se soltasse no
escuro, do que desabotoá-la, e quem quer que ele fosse não se
queria demorar. Estranho, contudo, que o homem a cavalo fosse
vítima de tal ataque. Ao mínimo som, ele teria apenas de esporear o
seu cavalo e afastar-se.
— Mas eu acho — disse Cadfael, estudando o modo como o
corpo estava deitado — que ele ia a pé, conduzindo o seu cavalo.
Era estranho nestas paragens, e o caminho aqui é muito estreito e
as árvores encontram-se muito juntas, e estava escuro ou
começava a escurecer. Vê as folhas que se pegaram às solas das
suas botas. Ele nem teve tempo para se virar, um único golpe foi
suficiente. Onde ele esteve eu não o sei, mas regressava ao seu
alojamento no nosso salão de hóspedes, quando foi atingido. Sem
luta e com pouco barulho. O cavalo não se assustou muito, vagueou
apenas alguns metros.
— O que sugere um salteador e ladrão experiente — disse Hugh.
— Mas acreditas nisso? Na minha jurisdição e tão perto da cidade?
— Não. Mas algum patife dissimulado, ou até um ladrão astuto de
fora da cidade, talvez arriscasse uma emboscada sabendo que
Eilmund se encontra em casa acamado. Mas isto é apenas um
palpite — disse Cadfael, sacudindo a cabeça. — De vez em quando
até um larápio pode sentir-se tentado ao assassinato, se encontrar
um homem endinheirado, sozinho e à noite. Mas estar a adivinhar
de pouco serve.
O grupo enviado pelo Abade Radulfus para transportar Drogo de
regresso à abadia dirigia-se já ao longo do caminho com uma
padiola. Cadfael ajoelhou-se na relva, ensopando o seu hábito de
orvalho e virou, cuidadosamente, o corpo rígido de cara para cima.
A pesada musculatura das faces tornara-se flácida, os olhos, tão
desproporcionadamente pequenos para o semblante maciço,
estavam semiabertos. Parecia mais velho e menos arrogantemente
brutal na morte, um homem como os outros, quase comovente. A
mão que permanecera escondida debaixo do corpo usava um
pesado anel de prata.
— Algo que o ladrão deixou escapar — disse Hugh, olhando para
baixo com uma expressão de pesar estampada na cara, por tanto
poder agora ser impotente.
— Outro sinal de pressa, senão ele teria saqueado cada artigo de
vestuário. É prova suficiente de que o corpo não foi tocado. Ele
repousa tal qual como caiu de frente para Shrewsbury. É como
disse, ele ia para casa.
— Está para chegar um filho, disseste tu? Vem — disse Hugh —,
podemos deixá-lo agora para os teus homens e os meus
companheiros irão passar os bosques a pente fino, para o caso de
haver algum sinal ou indício que possa ser encontrado, embora eu
duvide. Tu e eu vamos regressar à abadia e ver o que o abade
descobriu no capítulo, pois alguém deve ter-lhe certamente dado
alguma ideia nova, para que ele voltasse a sair novamente.
O sol erguia-se sob o horizonte, mas oculto e pálido, enquanto
eles montavam e regressavam ao longo do caminho estreito. Os
arbustos drapejados de teias pelas aranhas captaram as primeiras
cintilações que perfuraram a névoa e flamejaram com o fulgor de
diamantes. Quando emergiram no espaço aberto dos campos, os
cavalos vagueavam placidamente por entre um mar brumoso tingido
de lilás.
— O que sabes deste homem Bosiet — perguntou Hugh — além
do que ele disse, ou me zanguei com ele sem pensar?
— Acho que pouco mais. É suserano de vários feudos em
Northamptonshire, e há algum tempo um dos seus servos feudais,
por uma razão não muito boa, espancou o seu lacaio deixando-o de
cama durante alguns dias e depois, muito sabiamente, fugiu antes
que eles pudessem deitar-lhe a mão. Desde então, Bosiet e os seus
homens têm andado à caça dele. Calculo que devem ter
desperdiçado algum tempo a procurar no resto do condado, antes
de saberem através de alguma fonte que ele se dirigira para
Northampton e parecia estar a dirigir-se para norte e oeste. E entre
eles, seguiram-no até aqui. fazendo cavalgadas em ambas as
direções, partindo de cada paragem. Deve ter-lhes custado mais do
que o seu valor, apesar de dizerem que ele é valioso, mas é atrás
da sua pele que eles andam em primeiro lugar e parece que
estabeleceram para aquela um preço superior ao da sua arte,
qualquer que essa seja. Havia ali um ódio muito forte — disse
Cadfael com emoção. — Ele levou-o com ele para o capítulo. O Pai
Abade não ficou muito convencido com a ideia de o ajudar com o
tipo de vingança que ele estava prestes a fazer.
— E empurrou-o para mim — disse Hugh, sorrindo ligeiramente.
— Bem, pequena culpa é a dele. Eu acreditei na tua palavra e
mantive-me fora do seu caminho tanto quanto me foi possível. De
qualquer das formas eu não lhe podia fornecer nenhuma ajuda. O
que mais sabes acerca dele?
— Que tem com ele um lacaio chamado Warin, aquele que o
acompanha, apesar de não o ter feito desta vez, ao que parece.
Talvez ele tenha mandado o homem fazer outro recado e, assim que
recebeu a notícia, não tenha querido esperar, partindo sozinho. Ele
é (era) um homem que gostava de usar livremente os punhos nos
seus criados, por qualquer coisa ou por coisa alguma. Pelo menos,
abriu a cara de Warin e, de acordo com o lacaio, isso não era nada
raro. Quanto ao filho, de acordo com Warin, é muito parecido com o
pai e deve, como o pai, ser evitado. E chegará a Stafford a qualquer
momento.
— Para descobrir que terá de colocar num caixão o corpo do pai e
que terá de o levar para casa para o enterrar — disse Hugh
pesarosamente.
— Para descobrir que agora é o suserano de Bosiet — disse
Cadfael. — Esse é o reverso da moeda. Quem sabe para que lado é
que a moeda ficará virada?
— Tornaste-te muito cínico, velho amigo — observou Hugh,
sorrindo de esguelha.
— Estou a pensar — concordou Cadfael — nos motivos pelos
quais os homens cometem assassinato. A cobiça é um deles, e
pode ser encontrada num filho, que espera impacientemente pela
sua herança. Ódio é outro e um criado mal tratado pode utilizá-lo de
livre vontade, se lhe for dada essa oportunidade. Mas existem, sem
dúvida, outras razões e mais estranhas, como um simples gosto por
roubos e uma disposição para se certificar de que a vítima nunca
falará. Uma pena, Hugh, uma grande pena que haja tanta pressa na
morte, quando esta se destina a alcançar todos os homens em seu
devido tempo.
Quando eles emergiram na estrada em Wroxeter, o Sol já estava
bem alto e a névoa desaparecia, apesar dos campos ainda nadarem
num vapor dum tom de pérola. A partir dali, viajaram a uma boa
velocidade ao longo da estrada para Shrewsbury e atravessaram da
casa do portão, após o fim da Missa Solene, quando os irmãos
estavam a dispersar-se para o seu trabalho até a hora da refeição
do meio-dia.
— O senhor abade tem estado a perguntar por ti — disse o
porteiro, saindo da sua casa ao vê-los. — Está no seu gabinete
juntamente o prior e pede que te juntes a eles.
Deixaram os seus cavalos com os moços de estrebaria e
dirigiram-se, de imediato, ao gabinete do abade. No seu gabinete
apainelado, Radulfus olhou por cima da sua secretária, e o Prior
Robert, muito direito e austero sentado num banco ao lado da
janela, olhou-os sob o seu nariz com uma vincada expressão de
desaprovação e retratação. As complexidades da lei, do assassinato
e da caça ao homem não tinham nada que se intrometer no domínio
monástico, e ele deplorava a necessidade de reconhecer a sua
existência, bem como quais os processos necessários para lidar
com eles, quando estes forçavam uma brecha na parede. Perto do
seu cotovelo e mantendo-se na sombra, encontrava-se o Irmão
Jerome, os seus estreitos ombros arqueados, os lábios finos
firmemente apertados, as sua mãos pálidas recolhidas nas mangas,
a imagem da virtude assediada, que ostenta a cruz com humildade.
Havia sempre um forte elemento de complacência na humildade de
Jerome, mas desta vez existia também uma qualidade ligeiramente
defensiva, como se a sua retidão tivesse sido de certo modo,
mesmo que apenas por implicação, questionada.
— Ah, já regressaste! — disse Radulfus. — Não trouxeste de
volta o corpo do nosso hóspede tão rapidamente?
— Não, Pai, ainda não, eles virão atrás de nós, mas a pé levará
mais tempo. E tal e qual como o Irmão Cadfael lhe comunicou de
noite. O homem foi apunhalado pelas costas, provavelmente
enquanto conduzia o seu cavalo, sendo o caminho ali estreito e
demasiado desenvolvido. Saberá já que o rolo da sela dele foi
cortado e roubado. Pelo o que o Irmão Cadfael viu do corpo quando
o encontrou, o ato deve ter sido cometido perto da hora das
Completas, talvez um pouco antes. Não há nada que nos revele por
quem. Pelo adiantado da hora, deveria voltar ao salão de hóspedes.
Pela forma como estava caído sobre a face, calculamos que o corpo
não foi tocado, ou seu anel teria sido retirado. Mas quanto ao lugar
para aquelas bandas onde ele poderia ter estado, não há como
saber.
— Acho — disse o abade — que temos qualquer coisa para dizer
a esse respeito. Aqui o Irmão Jerome dirá o que contou a mim e ao
Prior Robert.
Normalmente. Jerome estava sempre pronto para ouvir a sua
própria voz, quer em sermão, homilia ou reprovação, mas desta vez
era notável como ele estava a reunir as suas palavras com mais
cuidado do que o habitual.
— O homem era um hóspede e um cidadão correto — começou
— e contou-nos no capítulo que estava a perseguir um ofensor da
lei, que cometera uma agressão contra a pessoa do seu criado e
que lhe causara um lastimoso mal e, depois, fugira do seu suserano.
Depois lembrei-me que havia realmente um recém-chegado a estas
paragens, que podia muito bem ser o homem que ele buscava, e
pensei no dever de todos nós de ajudarmos a causa da justiça e da
lei. Portanto, falei ao suserano de Bosiet. Contei-lhe que o jovem
que serve o eremita Cuthred, e que veio aqui com ele apenas há
algumas semanas atrás, corresponde à descrição que ele deu do
seu servo feudal fugitivo, Brand, apesar de ele se autointitular
Hyacinth. Tem a idade certa e a sua cor, tal qual como o seu senhor
o descreveu. E ninguém daqui sabe nada acerca dele. Achei apenas
correto dizer-lhe a verdade. Se o jovem provar não ser Brand, não
lhe acontecerá nenhum mal.
— E tu contaste-lhe, creio eu — disse o abade com voz neutra —,
como alcançar a casa do eremita, onde ele poderia encontrar este
jovem rapaz?
— Contei-lhe, Pai, como era o meu dever.
— E ele partiu imediatamente a cavalo até aquele lugar.
— Sim, Pai. Ele enviara o seu lacaio num recado à cidade, e foi,
assim, obrigado a selar o seu próprio cavalo, mas não quis esperar,
visto que a maior parte do dia já tinha passado.
— Falei com o lacaio Warin assim que soubemos da morte do seu
senhor — disse o abade, olhando para cima para Hugh. — Foi
enviado a Shrewsbury para investigar se havia algum artesão que
realizasse trabalhos delicados em cabedal, pois parecia que esta
era também a arte do jovem rapaz e Bosiet pensou que ele poderia
ter tentado arranjar trabalho dentro do município, entre aqueles que
pudessem servir-se das suas habilidades. Não se pode atribuir
culpas ao lacaio, pois quando voltou, já o seu senhor partira havia
muito. O seu recado, ao que parece, não podia esperar até de
manhã — a sua voz soava moderada e delicada, sem qualquer tom
de aprovação ou de desaprovação. — Isso resolve, penso eu, a
questão das suas andanças.
— E onde devo segui-lo — disse Hugh esclarecido. — Devo
agradecer-lhe, Pai, por me ter indicado o próximo passo da estrada.
Se ele de fato falou com Cuthred, pelo menos poderemos saber o
que se passou, e se obteve a resposta que pretendia, apesar de ele
ter regressado sozinho. Tivesse ele trazido um servo feudal cativo
com ele, dificilmente o deixaria de mãos livres e com um punhal
entre elas. Com a tua permissão, Pai, manterei o Irmão Cadfael
comigo como testemunha, em vez de levar homens de armas para
um eremitério.
— Faz isso — disse o abade de boa vontade. — Este infeliz
homem era um hóspede da nossa casa e nós devemos-lhe cada
esforço que possa conduzir à captura do seu assassino. E todos os
direitos adequados e serviços que ainda possam ser prestados ao
seu cadáver. Robert, asseguras-te que o corpo seja recebido
reverentemente quando chegar? E tu, Irmão Jerome, podes assistir.
O teu zelo de lhe prestares auxílio não deve ser frustrado. Ficarás
uma noite de vigília com ele, rezando pela sua alma.
“Então estarão dois homens deitados lado a lado na capela
mortuária hoje à noite”, pensou Cadfael enquanto saíam juntos da
pequena sala, ‘o velho homem que encerrou uma vida longa tão
gentilmente quanto uma flor velha espalha as suas pétalas, e o
senhor das terras tomado abruptamente na sua malícia e ódio, sem
aviso, e sem tempo para fazer paz com o homem ou com Deus. A
alma de Drogo Bosiet necessitará de todas as rezas que puder
receber.”
— E já te apercebeste — perguntou Hugh subitamente, enquanto
cavalgavam para fora do Foregate pela segunda vez, — que o
Irmão Jerome, no seu zelo pela justiça, poderá ter ajudado Bosiet na
sua morte?
Se já se apercebera, Cadfael não estava ainda preparado para
receber a ideia.
— Estava de regresso — disse cautelosamente —, e vinha de
mãos vazias. Parece que estava desapontado. O rapaz não é o seu
servo perdido.
— Podia igualmente argumentar que ele o é e que viu a sua
destruição a aproximar-se, a tempo de desaparecer. E depois? Ele
já está nos bosques há tempo suficiente para saber como sair deles.
E se foi ele a mão que segurou o punhal?
Não havia como negar que isso era uma possibilidade. Quem
poderia ter uma melhor razão para espetar uma faca nas costas de
Drogo Bosiet, do que o moço que ele pretendia arrastar de volta
para o seu próprio feudo, para esfolar em primeiro lugar e depois
explorar durante uma vida inteira?
— É o que dirão — concordou Cadfael sombriamente. — A não
ser que encontremos Cuthred e o seu rapaz sentados pacificamente
em casa, a tratarem da sua própria vida e sem se intrometerem na
vida de mais ninguém. De pouco adianta tentar adivinhar até
sabermos o que aconteceu por lá.
Aproximaram-se da língua de terra de Eaton, seguindo o mesmo
caminho que Drogo usara, e viram a pequena clareira abrindo-se
perante eles entre o denso arvoredo, quase subitamente, como ele
a vira, mas desta vez em plena luz do dia. enquanto ele viera no
início da noite. A luz solar filtrava-se através dos ramos e
transformava o cinzento sombrio da cabana de pedra num dourado
entorpecedor. As baixas estacas da vedação que limitavam o jardim
estavam separadas umas das outras, um simples limite esboçado,
sem barreira para besta ou para homem, e a porta da cabana
estava escancarada, de modo que eles espreitaram para dentro do
quarto, onde a constante lamparina no altar de pedra parecia
pequena e escura como uma única chama, quase se extinguindo na
claridade que saía da janela sem persianas. A cela do Santo
Cuthred, ao que parecia, estava completamente aberta para todos
os que chegassem.
Uma parte do jardim era ainda selvagem, apesar da relva e das
ervas terem sido aparadas, e aí se encontrava o próprio eremita
trabalhando com pá e enxada, levantando os pedaços de terra
cobertos de palha e revolvendo o solo enquanto o limpava.
Observaram-no a fazê-lo enquanto se aproximavam, mostrando ser
pouco experiente mas obstinado e paciente, e claramente nada
habituado a lidar com tais ferramentas ou a inclinar-se para tais
labutas, que deviam ter recaído sobre Hyacinth. Que, por sinal, não
se encontrava em parte alguma.
Um homem alto, o eremita, de pernas compridas, corpo alongado,
magro e direito, o seu hábito negro, grosseiro, chegando-lhe aos
joelhos e o capuz arremessado sobre os seus ombros. Viu-os
chegar e endireitou-se dos seus trabalhos com a enxada ainda nas
mãos, e mostrou-lhes uma cara forte e magra, com uma pele de tom
de azeitona e um olhar profundo, emoldurado num espesso arbusto
de cabelo escuro e barba. Olhou de um para o outro e recebeu a
reverência de Hugh com uma profunda inclinação da cabeça, sem
baixar os olhos.
— Se a tua incumbência é para Cuthred, o eremita — disse ele
numa voz profunda e ressonante, e com autoridade —, entra e sê
bem vindo. Sou eu — e para Cadfael, após ter estudado a sua cara
durante um momento —, acho que te vi em Eaton, quando o
suserano Richard foi enterrado. Tu és um irmão de Shrewsbury.
— Sou — disse Cadfael.— Estava entre a escolta do rapaz. E
este é Hugh Beringar, xerife deste condado.
— O senhor xerife honra-me — disse Cuthred. — Querem entrar
na minha cela? — e dizendo isto, soltou a parte inferior do hábito do
seu cinto de corda desfiado, caindo-lhe este até os pés, e conduziu-
os para o interior da casa. O espesso emaranhado do seu cabelo
roçou a pedra da soleira da porta quando ele entrou. Era um palmo
mais alto do que qualquer um dos seus visitantes.
Na escura sala de estar, existia uma janela estreita que deixava
entrar a luz da tarde e uma brisa ligeira, a qual trouxe para o interior
o odor da erva cortada e de folhas de Outono úmidas. Através da
abertura para a capela no interior, viram tudo o que Drogo vira, a
laje de pedra do altar com a sua arca esculpida, a cruz de prata e os
candelabros e o breviário aberto repousando perante a pequena
chama da lamparina. O eremita seguiu o olhar de Hugh para o livro
aberto e, entrando, fechou-o reverentemente, colocando-o com
carinho num alinhamento preciso com a extremidade da frente do
relicário. O delicado ornamento dourado e a delicada estampagem
da fita de cabedal brilhavam na pequena luz da lamparina.
— E como é que posso ser de alguma utilidade ao senhor xerife?
— perguntou Cuthred, a sua cara ainda virada na direção do altar.
— Preciso de lhe fazer algumas perguntas — disse Hugh com
deliberação —, com respeito a um homem assassinado.
Aquilo fez com que a alta cabeça se virasse depressa, olhando o
xerife com uma expressão de espanto e surpresa.
— Assassinado? Aqui e agora? Não sei de nada. Diga
abertamente o que quer dizer, meu senhor.
— Ontem à noite, um certo Drogo Bosiet, hóspede da abadia, saiu
para vir visitá-lo incitado por um dos irmãos. Veio aqui em busca de
um servo feudal fugitivo, um homem jovem com perto de vinte anos,
e a sua intenção era inspecionar o seu rapaz, Hyacinth, já que este
é um estranho e tem a idade e o tipo certo, e ver se ele é ou não o
artesão que fugiu de Bosiet. Chegou a vir até aqui? Pela altura, em
que chegou até esta distância já devia ser noite.
— Sim, um homem assim veio até aqui — disse Cuthred
subitamente —, apesar de eu não lhe ter perguntado o nome. Mas o
que é que isto tem a ver com assassinato? Disse que se tratava de
um homem assassinado.
— Este mesmo Drogo Bosiet, no seu caminho de regresso em
direção à cidade e à abadia, foi esfaqueado pelas costas e deixado
num dos lados do caminho, a um quilômetro e meio ou mais daqui.
A noite passada, na mais completa escuridão, o Irmão Cadfael
encontrou-o morto, com o seu cavalo vagueando à solta.
Os olhos profundos do eremita, flamejantes de vermelho nas suas
órbitas cavas, lançavam-se de uma cara para a outra numa
interrogação incrédula.
— Difícil de acreditar que pudessem existir aqui assassinos e
homens sem amo, nesta terra bem cultivada e bem administrada;
dentro da sua jurisdição, meu senhor, e tão perto da cidade. Poderá
isto ser o que parece ou haverá algo de pior por trás? O homem foi
roubado?
— Foi. Do seu rolo de sela, o que quer que este possa ter contido.
Mas não lhe roubaram o anel, nem a toga. O que foi feito, foi-o à
pressa.
— Homens sem senhor ter-lhe-iam arrancado as roupas e deixá-
lo-iam nu — disse Cuthred com firmeza. — Não creio que esta
floresta seja um abrigo para bandidos. Isto é um assunto muito
diferente.
— Quando ele veio ter contigo — disse Hugh — o que é que ele
tinha para dizer? E o que é que se seguiu?
— Ele chegou quando eu estava a dizer o Serviço de Vésperas,
aqui na capela. Entrou e disse que viera para ver o rapaz que faz os
meus recados, e que eu podia vir a descobrir que fora enganado ao
receber um vilão a meu cargo. Pois ele estava à procura de um
servo fugitivo e tinham-lhe dito que havia um aqui da mesma idade,
recém-chegado e um estranho para todos. Que podia bem ser o seu
homem. Disse-me de onde tinha vindo e em que direção ele tinha
motivos para acreditar que o seu fugitivo tinha fugido. Estas coisas e
a altura em que o servo fugira encaixavam demasiado bem para a
minha paz de espírito, com a altura e o lugar onde eu primeiro
encontrei e me compadeci de Hyacinth. Mas não foi experimentado
— disse Cuthred simplesmente. — O rapaz não estava aqui. Uma
hora antes, eu enviara-o num recado a Eaton. Ele não voltou. Ainda
nem sequer voltou hoje. Agora duvido que ele alguma vez volte.
— Acredita — disse Hugh — que ele é este Brand?
— Não posso julgar. Mas vi que bem podia ser. E quando, ontem
à noite, ele não voltou, então senti que era. Não faz parte do meu
dever entregar qualquer homem à retribuição, isso é assunto de
Deus. Fiquei satisfeito por não poder dizer sim ou não, e contente
que ele não estivesse aqui para ser visto.
— Mas se ele desconfiasse ou tivesse um pressentimento acerca
de quem o procurava e se mantivesse fora do caminho — disse
Cadfael — ele já teria regressado. O homem que o caçava fora-se
embora de mãos a abanar e se mais alguém o ameaçasse ele podia
voltar a fazer o mesmo, desde que tu não o traísses. Onde estaria
ele tão seguro como aqui, com um eremita santo? Mas ainda assim,
ele não voltou.
— Mas agora dizem-me — disse Cuthred gravemente — que o
suserano dele está morto, se é que este homem era de fato o seu
senhor. Morto e assassinado! Digamos que o meu criado Hyacinth
teve um pressentimento acerca da vinda de Bosiet e fez mais do
que se ausentar. Digamos que ele achou melhor fazer uma
emboscada e terminar a busca de uma vez por todas! Não, acho
agora que não vou voltar a ver mais alguma vez o Hyacinth. Gales
não fica longe e até mesmo um recém-chegado sem amo pode
arranjar serviço por lá, apesar de ser em condições difíceis. Não, ele
não vai voltar. Ele nunca regressará.
Foi um momento estranho para a mente de Cadfael começar a
vaguear, como se algum canto da sua consciência tivesse registado
diversos momentos de que só agora se apercebia, pois deu por si a
pensar subitamente em Annet, surgindo na casa do seu pai,
radiante, excitada e misteriosa, com uma folha de carvalho entre o
cabelo despenteado. Um pouco corada e respirando como se
tivesse estado a correr. E já passando da hora das Completas,
numa altura em que Drogo de Bosiet jazia morto a mais de um
quilômetro e meio de distância, no caminho para Shrewsbury. É
verdade que Annet saíra por dever para fechar as galinhas e a vaca
durante a noite, mas demorara muito tempo para isso. e regressara
com a cor viva e os olhos triunfantes de uma moça regressando do
seu amante. E não tinha ela encontrado uma ocasião para dizer
uma palavra amável por Hyacinth, e tirado prazer ao ouvir o seu pai
a elogiá-lo?
— Como é que encontrou este jovem rapaz em primeiro lugar? —
estava Hugh a perguntar. — E porque é que o aceitou para o seu
serviço?
— Eu regressava de Santo Edmundsbury, pelo caminho dos
cânones Agostinianos em Cambridge, e fiquei duas noites alojado
num convento de Cluny, em Northampton. Ele estava entre os
pedintes ao portão. Apesar de ser apto e jovem, era igualmente
maltrapilho e desleixado como se fosse selvagem. Contou-me que o
seu pai fora despojado e estava morto, não tinha mais nenhum
parente, estava sem trabalho. Por compaixão, eu o vesti e acolhi
como meu criado. Caso contrário, ter-se-ia afundado a roubar e na
bandidagem de maneira a poder viver. E ele tem sido rápido e
obediente, e achei que ele me estava grato e, talvez, até estivesse.
Mas agora pode ser tudo em vão.
— E quando foi isto, quando é que o encontraste?
— Nos últimos dias de Setembro. Não tenho certeza quanto ao
dia exato.
A altura e o local encaixavam demasiado bem.
— Vejo que tenho uma caça ao homem entre as mãos — disse
Hugh de modo estranho — e É melhor regressar para Shrewsbury e
soltar de uma vez por todas os cães. Pois quer o moço seja o
assassino ou não, não tenho agora qualquer escolha senão
encontrá-lo e prendê-lo.
7

Sempre fora opinião do Irmão Jerome, a qual expressava


frequente e em voz alta, que o Irmão Paul exercia uma autoridade
muito inativa sobre os jovens que estavam sob a sua
responsabilidade, tanto os noviços como as crianças. Era a forma
de Paul supervisionar os seus dias tão moderadamente quanto
possível, excetuando quando os ensinava, se bem que estivesse
pronto a aparecer se algum deles precisasse dele ou o chamasse.
Todavia, tais assuntos rotineiros como as suas purificações
religiosas, os seus comportamentos disciplinados às refeições, o
seu retiro à noite e o despertar de manhã eram deixados às suas
próprias consciências e aos hábitos sadios de limpeza e
pontualidade, que lhes tinham sido ensinados. O Irmão Jerome
estava convencido de que não se podia confiar a nenhum rapaz
com menos de dezesseis anos o cumprimento de uma única regra,
e até mesmo aqueles que tivessem atingido essa idade madura
tinham ainda em si mais de diabo do que de anjo. Ele teria
observado, perseguido e corrigido cada um dos seus movimentos,
fosse ele o mestre dos rapazes, e utilizaria muito mais os castigos
do que Paul alguma vez poderia contemplar. Era um prazer para ele
poder dizer, com verdade, que sempre profetizara que tal
administração negligente só traria desastres.
Três rapazes da escola e nove noviços, numa média de idades
entre os nove e os dezessete anos, são jovens bastante ativos para
satisfazer um olhar casual ao café da manhã, a não ser que alguém
tenha motivo para contá-los e descubra que falta um do lado direito.
Provavelmente, Jerome os terá contado em todas as ocasiões, certo
de que mais cedo ou mais tarde algum faltaria. O Irmão Paul não os
contou. E a sua presença foi necessária no capítulo e depois disso
nesse mesmo dia, para negócios específicos relativos às suas
obrigações; ele confiara a educação matinal ao mais responsável
dos noviços, outra política que Jerome lamentava ser ruinosa para a
disciplina. Na igreja, a criança ocupava lugares tão insignificantes,
que um a mais ou a menos nunca seria notado. Assim, foi só
depois, durante a tarde, quando Paul reuniu o seu rebanho para
regressar à sala de aula e separou a classe de noviços dos jovens
rapazes, que a ausência de Richard foi finalmente notada.
Até mesmo nessa altura, Paul não se sentiu alarmado ou
perturbado. A criança estava simplesmente a vadiar em alguma
parte, esquecido do tempo e haveria de aparecer repentinamente a
qualquer momento. No entanto, o tempo escoava-se e Richard não
regressava. Interrogados, os três rapazes restantes arrastaram os
seus pés pouco à vontade, movendo-se um pouco mais para junto
uns dos outros para sentirem a confiança da proximidade, abanaram
as cabeças sem pronunciar palavra e evitaram olhar para o Irmão
Paul nos olhos. O mais novo, em particular, parecia menos do que
feliz, mas nada disseram, o que ainda convenceu mais Paul de que
Richard estava deliberadamente a faltar às aulas, que eles sabiam
disso e desaprovavam, mas não soltariam uma palavra para o trair.
Conteve-se de os ameaçar com penalidades medonhas, pois tal
silêncio refratário, teria apenas confirmado a negra desaprovação de
Jerome quanto a tal atitude.
Jerome encorajava os mexericos. Paul tinha uma simpatia
dissimulada pela solidariedade pecadora, que convidaria
penalidades a recaírem sobre a sua própria cabeça, em vez de
atraiçoar um companheiro. Somente relatou firmemente que, mais
tarde, Richard deveria ser chamado para prestar contas pelo seu
comportamento, pagar a penalidade da sua tolice e continuar com a
lição. Todavia, estava consciente da falta de atenção e da
intranquilidade dos seus pupilos, e dos olhares culpados de soslaio
que lançavam uns aos outros sobre as suas cartas. Quando foram
dispensados, ele sentiu que, de alguma forma, o mais novo estava à
beira de revelar o que quer que fosse que ele soubesse, e a
angústia da criança indicou-lhe que havia algo mais por detrás desta
falta do que o simples capricho de faltar a uma aula.
Paul chamou de novo a criança enquanto se iam embora, meio
grato, meio receoso.
— Edwin, vem aqui!
Compreensivelmente, os outros dois fugiram certos agora de que
o céu estava prestes a desabar sobre eles e, com pressa de evitar o
primeiro choque, o que quer que se seguisse mais tarde. Edwin
estacou, virou-se e lentamente arrastou-se de novo através da sala,
os seus olhos baixos olhando os pequenos pés que arrastava,
relutantemente, ao longo das tábuas do chão. Ficou perante o Irmão
Paul e estremeceu. Um joelho estava ainda ligado e a ligadura
deslizara e estava torta. Sem pensar, Paul desenrolou-a e voltou a
colocá-la no seu devido lugar.
— Edwin, o que é que tu sabes acerca do Richard? Onde é que
ele está?
— Eu não sei. — ofegou a criança com absoluta convicção. E
desatou a chorar. Paul aproximou-o para perto dele e deixou-o
enterrar o seu nariz num ombro, há muito habituado a este tipo de
sofrimento.
— Conta-me! Quando é que o viste pela última vez? Quando é
que ele partiu?
Edwin soluçou inarticuladamente nas dobras de lã áspera, até que
Paul o afastou e olhou para a sua cara manchada e aflita.
— Vá! Conta-me tudo o que sabes.
E tudo saiu em torrente, entre fungadelas apressadas e soluços.
— Foi ontem, depois do serviço de Vésperas. Eu vi-o. Ele levou o
seu pônei e saiu ao longo do Foregate. Pensei que ele regressasse,
mas ele não voltou e nós ficamos assustados. Nós não queríamos
que ele fosse apanhado, ele ficaria metido em confusão... Não
quisemos contar, pensamos que ele voltasse e ninguém precisava
de saber...
— Estás a dizer-me — exigiu Paul, consternado e pela primeira
vez soando aterrado — que ele não dormiu aqui, na sua cama, a
noite passada? Que ele já está ausente desde ontem e nem uma
palavra foi dita?
Um novo dilúvio de lágrimas desesperadas distorceram a cara
redonda e corada de Edwin, e a sua cabeça, que acenava
violentamente, admitiu a acusação.
— E todos vocês sabiam disto? Vocês os três? Nunca pensaram
que ele pode estar ferido em alguma parte, ou em perigo? Ficaria
ele toda a noite fora de livre vontade? Oh, criança, porque é que não
me contaste? Todo o tempo que perdemos!
Porém, o rapaz já estava suficientemente assustado, não havia
nada a fazer com ele, senão silenciá-lo, tranquilizá-lo e confortá-lo,
onde a tranquilidade e o conforto eram muito difíceis de encontrar.
— Agora diz-me, tu viste-o partir montado. Depois do serviço de
Vésperas? Ele não disse o que pretendia fazer?
Tristemente, Edwin reuniu o pouco senso que ainda lhe restava e
contou tudo.
— Chegou muito atrasado ao serviço de Vésperas. Nós
estávamos no Gaye ao pé do rio, ele não queria entrar e quando foi
a correr atrás de nós já era demasiado tarde. Acho que ele estava à
espera de se esgueirar entre nós quando saíssemos da igreja, mas
o Irmão Jerome estava a conversar com... com aquele homem, o
que...
Recomeçou novamente a chorar, lembrando-se do que não devia
ter visto mas que de fato tinha, os portadores da liteira a
aproximarem-se da casa do portão, o corpo volumoso imóvel, o
poderoso rosto coberto.
— Esperei à porta da escola — sussurrou a voz chorosa — e vi o
Richard descer a correr em direção aos estábulos, depois voltou
com o seu pônei e conduziu-o pelo portão fora numa grande pressa
e cavalgou para longe. E isso é tudo o que sei. Pensei que ele
estivesse de volta cedo — lamentou-se ele desesperadamente. —
Não queríamos que ele se metesse em problemas...
Se tivessem evitado ter feito aquilo, ter-lhe-iam certamente dado
tempo e espaço mais que suficiente para ele se meter em
confusões, mais profundas do que qualquer deslealdade dos seus
poderia ter provocado. O Irmão Paul abanou a cabeça
resignadamente e deu umas palmadinhas ligeiras no seu penitente,
para o acalmar.
— Portaste-te muito mal e tolamente, e se estiveres em desgraça,
não é mais do que aquilo que mereces. Mas responde a tudo com
verdade e encontraremos o Richard são e salvo. Agora vai de uma
vez, procura os outros dois e, os três, esperem aqui até serem
chamados.
E Paul partiu numa corrida nervosa, para levar as más notícias
primeiro ao Prior Robert e depois ao abade, para em seguida ir
confirmar se o pônei que a Dama Dionísia enviara como isco para o
seu neto desaparecera realmente da sua baia. E havia por ali
grande clamor e correria, e viraram-se o pátio da granja, os celeiros
e corredores dos hóspedes de pernas para o ar para o caso do
culpado não ter no fim de contas abandonado o enclave, ou por
outros motivos ter regressado furtivamente, de modo a tentar
esconder o fato de o ter deixado. Os desditosos colegiais,
verbalmente punidos pelo Prior Robert e ameaçados com castigos
maiores quando alguém tivesse o tempo para os administrar,
agachavam-se a tremer e, reduzidos a lágrimas pela enormidade do
que lhes parecia terem sido boas intenções, e tendo sobrevivido à
primeira tempestade de recriminações, acalmaram-se estoicamente
para suportar o resto, banidos e sem jantar. Nem mesmo o Irmão
Paul teve tempo para lhes oferecer mais palavras de tranquilidade,
pois estava demasiado ocupado a procurá-lo entre os complexos
recantos da azenha e nos becos mais próximos do Foregate.
A este frenesi de alarme e atividade, chegou Cadfael ao início da
noite, depois de se ter despedido de Hugh no portão. Nesta mesma
noite, haveria lá fora batedores a perscrutarem os bosques, partindo
de Eyton em direção a oeste, e procurando o fugitivo, que podia ser
ou não Brand. mas que devia a todo o custo ser capturado. Hugh
não era mais aficionado de caças ao homem do que o era Cadfael,
e muitos servos maltratados tinham sido obrigados a fugir e a
transgredir a lei, mas assassinato era assassinato e a lei não
conseguia digerir isso. Culpado ou inocente, o jovem Hyacinth teria
de ser encontrado. Cadfael desmontou na casa do portão com a sua
cabeça repleta de imagens de um jovem desaparecido, para ser
recebido pelo espetáculo de irmãos agitados a correrem para trás e
para a frente, entre todos os edifícios monásticos, na busca de um
segundo jovem. Enquanto perscrutava admirado esta visão, o Irmão
Paul veio ter com ele sem fôlego e esperançoso.
— Cadfael, tu estiveste na floresta. Tu não viste sinal do jovem
Richard. pois não? Começo a pensar que ele deve ter corrido para
casa...
— O último lugar onde seria de esperar que ele fosse — disse
Cadfael sensatamente —, enquanto ainda está cauteloso em
relação às intenções da avó. Por quê? Estás a dizer-me que
perdeste o diabinho?
— Ele desapareceu, desapareceu ontem à noite e nós só o
soubemos há uma hora atrás — Paul verteu a história numa cascata
de culpa, remorso e ansiedade. — Eu sou o culpado! Eu faltei no
meu dever, fui demasiado complacente, confiei demasiado neles...
Mas porque haveria ele de fugir? Ele era suficientemente feliz. Ele
nunca mostrou sinais...
— Inquestionavelmente que teria as suas razões — disse Cadfael
coçando pensativamente o seu nariz moreno e áspero. — Mas de
volta para a senhora? Duvido! Não, se ele partiu com tanta pressa
foi algo de novo e urgente que o fez partir apressadamente, ontem à
noite depois do serviço de Vésperas, dizes tu?
— Edwin contou-me que Richard vadiou demoradamente ao
longo do rio e chegou muito tarde ao serviço de Vésperas e deve ter
estado à espreita, para se esgueirar por entre o resto dos rapazes
quando eles saíram. Mas não deve tê-lo conseguido, porque Jerome
ficou ali na arcada esperando para falar com Bosiet. que assistira
entre os hóspedes. Mas quando Edwin olhou para trás, viu Richard
sair a correr em direção aos estábulos e depois pelo portão fora,
apressadamente.
— De fato! — disse Cadfael, esclarecido. — E então onde estava
Jerome e Bosiet, que o rapaz conseguiu sair sem ser detectado? —
mas não esperou por uma resposta. – Não, não tentes adivinhar.
Nós já sabemos tudo acerca do que conversaram, entre eles. Uma
pequena questão privada. Jerome não queria audiência, mas parece
que teve uma. Paul, tenho de te deixar entregue à tua caça durante
um pouco mais e cavalgar atrás de Hugh Beringar. Ele já está
encarregue de uma busca por um rapaz desaparecido, bem a pode
fazer por dois e arrasar os esconderijos de uma vez por todas.
Hugh, que se recolhera sob o arco do portão da cidade, puxou
subitamente as rédeas do seu cavalo ao ouvir a notícia e virou-se
para olhar meditativamente para Cadfael.
— Então pensas que foi assim que as coisas aconteceram! —
disse ele e assobiou. — Porque haveria ele de se preocupar com
um rapaz que mal vira e com quem nunca tinha falado? Ou tens tu
algum motivo para pensar que os dois tiveram as suas cabeças
juntas?
— Não, nenhum de que eu tenha conhecimento. Nada senão o
tempo em que tudo sucedeu, mas isso liga-os um ao outro. Não há
muitas dúvidas acerca do que Richard ouviu e nenhuma que o tenha
enviado apressadamente nalgum recado urgente. E antes que
Bosiet consiga chegar ao ermitério, Hyacinth desaparece.
— E Richard também! — as sobrancelhas escuras de Hugh
aproximaram-se, franzindo-se devido às implicações. — Estás
dizendo que ao encontrar um encontrarei ambos?
— Não, quanto a isso tenho sérias dúvidas. O rapaz certamente
tencionava estar de volta na cama antes da hora de dormir, e é tudo
inocência. Ele não é nenhum estúpido, e não tem motivo nenhum
para querer deixar-nos. Mas mais uma razão para agora estarmos
ansiosos por ele. Ele estaria certamente conosco, se algo não o
tivesse impedido. Se o seu pônei o atirou para em alguma parte e
ele está magoado ou perdido, ou se... Estão a pensar se ele não
terá fugido para casa para Eaton, mas isso é completamente
impossível. Ele nunca o faria.
Hugh agarrou a sugestão não mencionada que o próprio Cadfael
mal tivera tempo para contemplar.
— Não, mas ele podia ser levado para lá! E por Deus, pois podia!
Se alguém do pessoal de Dionísia o encontrasse sozinho nos
bosques, eles saberiam como agradar à sua senhora. Oh, eu sei
que a criadagem é gente de Richard e não dela. mas deve haver um
ou dois entre eles que haveriam de aproveitar a oportunidade de
oferecer favores, se a situação se proporcionasse. Cadfael, velho
amigo — disse Hugh cordialmente — volta para a tua oficina e deixa
Eaton comigo. Assim que os meus homens começarem a caça por
ambos, eu próprio irei a Eaton e verei o que é que a senhora tem a
dizer. Se ela me impedir de virar do avesso o seu feudo pelo rapaz,
saberei que ela tem o outro escondido em alguma parte no local e
eu posso dar a volta. Se Richard estiver lá, tiro-o de lá amanhã e o
deixo de novo nos braços do Irmão Paul — prometeu Hugh
esperançosamente. — Mesmo que custe ao pobre diabinho um
açoite — refletiu ele com um sorriso simpático —, ele pode achar
isso preferível a ser obrigado a casar, segundo as condições da avó.
Pelo menos, o ferrão não dura assim tanto tempo.
O que era uma blasfêmia bastante perversa contra o casamento,
pensou Cadfael e disse-o, vindo de alguém que tinha um tão
excelente motivo para se considerar abençoado com a sua mulher e
orgulhoso do seu filho. Hugh conduzira o seu cavalo em direção ao
monte íngreme do Wyle, mas inclinou-se para trás e olhou
sorridente sobre o ombro.
— Vem agora a minha casa e queixa-te à Aline. Faz-lhe
companhia enquanto eu vou até o castelo para iniciar a caçada.
E a possibilidade de ficar sentado durante uma hora ou perto
disso na companhia de Aline e brincar com o seu afilhado Giles, o
qual se aproximava dos três anos de vida, era tentadora, mas
Cadfael abanou a cabeça relutante mas resignadamente.
— Não, é melhor eu regressar. Estaremos todos ocupados a
procurar nos nossos próprios esconderijos e a interrogar ao longo
do Foregate até que escureça. Não há certezas onde ele estará,
não nos atrevemos a deixar escapar um único recanto. Mas que
Deus acompanhe a tua busca, Hugh, pois provavelmente será mais
frutuosa do que a nossa.
Voltou à abadia atravessando a ponte e conduzindo o seu cavalo
com rédea solta, subitamente consciente de que já fora
suficientemente longe por um dia, e pensou com alguma ansiedade
na quietude e na paz de alma do santo ofício, e no vasto santuário
da igreja. A busca completa da floresta deveria ser deixada para
Hugh e os seus oficiais. Não valia a pena sequer perder tempo a
pensar onde é que o rapaz poderia passar a próxima noite, embora
uma oração suplementar por ele não fosse demais. “E amanhã”,
pensou Cadfael, “irei visitar o Eilmund e levar-lhe as suas muletas e
manterei os meus olhos abertos pelo caminho. Dois moços
desaparecidos que agora temos de procurar.” Encontrar um,
encontrar ambos? Não. Isso seria esperar demasiado, mas se ele
encontrasse um, podia já estar a dar um grande passo em frente
para encontrar o outro.
Havia um recém-chegado de pé no fim das escadas, que
conduziam à porta do salão dos hóspedes, o qual observava com
um interesse reservado o alvoroço da busca que continuava, a qual
perdera o seu lado mais frenético e se reduzira sombriamente a
uma inspeção completa de todos os cantos do enclave, para além
dos grupos que estavam nesse momento a interrogar ao longo do
Foregate. A atividade obsessiva que o rodeava só tornava a sua
quietude composta ainda mais surpreendente, embora a sua
aparência fosse suficientemente vulgar. A sua figura era compacta e
garbosa, o seu porte modesto, e as suas botas, embora velhas,
estavam bem estimadas, calças escuras simples e curtas abaixo do
joelho eram o equipamento de equitação comum a todas as
condições sociais que viajavam pelas estradas. Ele podia bem ser o
vassalo de um barão tratando de assuntos do seu suserano, um
mercador próspero ou um nobre menor tratando dos seus negócios.
Cadfael reparou nele assim que desmontou. O porteiro saiu da casa
de guarda para se deixar cair, súbita e pesadamente, no banco de
pedra no exterior da casa com um suspiro cansado, enchendo as
suas faces de ar com um desespero moderado.
— Então nenhum sinal do rapaz? — perguntou Cadfael, apesar
de não estar à espera de nenhum.
— Não, nem é provável que haja, pelo menos aqui, visto que ele
saiu com o pônei. Mas dizem para nos certificarmos primeiro aqui
em casa. Até estão a pensar em drenar o açude. Loucura! O que
estaria ele a fazer junto ao açude quando ele saiu a trote ao longo
do Foregate, isso nós sabemos. Além disso, nunca se afogaria, ele
nada como um peixe. Não, ele está bem para lá do nosso alcance,
qualquer que seja a confusão em que se meteu. Mas eles precisam
de revirar toda a palha dos sótãos e remexer o lixo do estábulo. É
melhor te apressar e manter um olho atento na oficina, senão eles a
viram de pernas para o ar.
Cadfael observava a calma figura escura, perto do salão de
hóspedes.
— Quem é o recém-chegado?
— Um tal de Rafe de Coventry. Falcoeiro do conde de Warwick.
Tem assuntos para tratar com Gwynedd para treinar jovens aves, foi
o que contou o Irmão Denis. Não chegou há mais de um quarto de
hora.
— Primeiro tomei-o pelo filho de Bosiet — disse Cadfael —, mas
vejo que ele é muito velho, mais da geração do pai.
— Também eu o tomei como sendo o filho dele. Tenho estado
muito atento à sua chegada, pois alguém tem de lhe dizer o que o
espera, e eu preferia que fosse o Prior Robert a dizer, e não eu.
— Gosto de ver um homem — disse Cadfael apreciativamente, os
seus olhos ainda pousados sobre o estranho — que consegue ficar
imóvel no meio do tumulto de outras pessoas sem fazer perguntas.
Ah, bom, é melhor eu tirar a sela deste companheiro e colocá-lo na
sua baia. Ele já teve um bom dia de exercício com todo este ir e vir.
E eu também.
“E amanhã”, pensou ele conduzindo o cavalo a um passo lento
através do grande pátio na direção do estábulo, “devo partir
novamente. Posso estar um pouco desnorteado, mas pelo menos
vamos tentá-lo”.
Passou perto do local onde Rafe de Coventry se encontrava,
passivamente interessado no bulício, pelo qual ele não pedia
explicação, e pensando os seus próprios pensamentos. Ao ouvir o
som de cascos a avançarem lentamente pelo pavimento de pedras,
virou a cabeça e. encontrando por acaso os olhos de Cadfael,
sorriu-lhe ligeiramente e acenou-lhe como forma de cumprimento.
Uma cara forte mas introvertida, com uma testa ampla e maçãs do
rosto altas, com uma barba castanha bem aparada, e olhos
castanhos fixos e vivos, com rugas nos cantos como se ele vivesse
principalmente ao ar livre, e estivesse acostumado a olhar através
de grandes distâncias.
— Vais em direção aos estábulos, Irmão? Sê então o meu guia.
Nada tenho contra os teus moços de estrebaria, mas gosto de ver o
meu animal ser bem tratado.
— Também eu — disse Cadfael calorosamente, verificando se o
estranho se encontrava a seu lado. — É o hábito de toda uma vida.
Se o aprenderes enquanto jovem, nunca te esquecerás.
Igualaram facilmente as passadas, sendo ambos da mesma
estatura. No pátio do estábulo, um lacaio da abadia estava a
esfregar um cavalo castanho e alto, com uma mancha branca na
testa, e assobiava-lhe gentilmente enquanto trabalhava.
— Teu? — perguntou Cadfael, observando o animal
apreciativamente.
— Meu — respondeu Rafe de Coventry rapidamente, e ele próprio
retirou o pano das mãos do moço de estrebaria. — Os meus
agradecimentos, meu amigo! Eu próprio tratarei dele agora. Onde é
que o poderei colocar? — e inspecionou a baia que o moço lhe
indicou, com um longo olhar apreciador e um aceno de satisfação.
— Vejo que tens aqui um bom estábulo, Irmão. Não te ofendas por
querer ser eu a tratar do meu próprio cavalo. Os viajantes não são
sempre tão experientes e, como tu disseste, é hábito.
— Viajas sozinho? — perguntou Cadfael, ocupado a tirar a sela
mas também olhando atentamente o seu companheiro. O cinto que
rodeava a cintura de Rafe estava preparado para transportar espada
e punhal. Sem dúvida que tinha largado ambos no salão dos
hóspedes, bem como a sua capa e equipamento. Um falcoeiro não
se encaixa muito bem numa categoria de viajante. Um mercador
traria com ele, pelo menos, um servo apto para proteção, ou
provavelmente mais. Um soldado seria autossuficiente, como este
homem escolhera ser, e transportaria os meios para se proteger a si
próprio.
— Viajo rapidamente — disse Rafe simplesmente. — Muitos
atrapalham. Se um homem depender só de si próprio, não há
ninguém que o deixe ficar mal.
— Vieste de longe?
— De Warwick — um homem de poucas palavras e pouco
curioso, este falcoeiro do conde. Ou aquele silêncio esconderia
algo? Em relação às buscas pelo rapaz desaparecido, não mostrava
disposição para responder a perguntas, mas tinha um certo
interesse pelos estábulos e pelos cavalos que estes albergavam.
Mesmo depois de estar satisfeito com o bem-estar do seu próprio
animal, ainda olhou à sua volta com um penetrante olhar experiente.
Passou pelas mulas e pelos cavalos de trabalho, mas estacou na
baia do ruano que pertencera a Drogo Bosiet. Isso era
compreensível num apreciador de cavalos, pois o ruano era um
animal admirável e, obviamente, um espécime de excelente
qualidade.
— A tua casa pode sustentar tal linhagem? — passou uma mão
aprovadora sobre as costas brilhantes e acariciou-o entre as orelhas
alertas. — Ou será que este companheiro pertence a um hóspede?
— Pertencia — disse Cadfael, poupando ele próprio palavras.
— Pertencia? Como é isso? — Rafe virara-se para o olhar e na
sua cara não reveladora, os seus olhos estavam atentos e
intencionais.
— O seu proprietário está morto. Está na nossa capela mortuária
neste momento — o velho irmão seguira para o seu descanso
eterno no cemitério nessa mesma manhã, e Drogo tinha agora toda
a capela para si próprio.
— Que tipo de homem era ele? E como é que morreu? — muitas
perguntas lhe surgiam na sua cabeça, espantado que estava e do
modo abrupto como fora retirado do seu afastamento e indiferença.
— Nós o encontramos morto na floresta, a alguns quilômetros
daqui, com uma faca espetada nas costas. Foi assaltado.
Cadfael nunca teve bem certeza por que ficou tão reticente e por
que não disse, por exemplo, o nome do morto. E se o seu
companheiro tivesse insistido, como seria natural, ele teria
respondido livremente, mas então o inquérito terminou. Rafe
encolheu os ombros face aos perigos implícitos de se cavalgar
sozinho através dos bosques dos condados fronteiriços e fechou a
porta baixa da baia, onde se encontrava o seu cavalo satisfeito.
— Terei isso em conta. Vai bem armado, digo eu, ou mantém-te
nas estradas principais.
Sacudiu o pó das mãos e virou-se em direção ao portal do pátio.
— Bem, vou-me preparar-me para o jantar.
E partiu com um andar decidido, mas não imediatamente na
direção do salão dos hóspedes. Em vez disso, atravessou o pátio
até a arcada do claustro e entrou por aí. Cadfael encontrou algo de
tão significativo naquele avançar a direito em direção à igreja, que o
seguiu, francamente curioso e oficialmente prestável e encontrando
Rafe de Coventry hesitantemente parado junto ao altar e olhando à
sua volta para a multiplicidade de oratórios contidos nos transeptos,
dirigiu-o com simplicidade para aquele que ele procurava.
— Por aqui. O arco é baixo, mas tu és da minha estatura, não há
necessidade de baixares a cabeça.
Rafe não se esforçou por disfarçar ou negar o seu propósito, ou
por rejeitar a companhia de Cadfael. Dirigiu-lhe um olhar calmo e
considerativo, acenou os seus agradecimentos e seguiu-o. E. entre
o frio de pedra e na luz da capela que começava a escurecer,
atravessou a sala de imediato até o ataúde onde o corpo de Drogo
Bosiet repousava reverentemente coberto, com velas a arder à
cabeceira e aos pés, e ergueu o pano que se encontrava sob a sua
cara morta.
Estudou, muito rapidamente, os traços imóveis e pálidos, e cobriu-
os novamente, e os movimentos das suas mãos enquanto voltavam
a colocar o pano tinham perdido a sua urgência e tensão. Até teve
tempo para um simples estremecimento humano causado pela
presença da morte.
— Tu por acaso não o conheces? — perguntou Cadfael.
— Não, nunca vi antes. Que a sua alma descanse em paz! — e
Rafe endireitou-se depois de se ter inclinado sobre o ataúde e soltou
um suspiro aliviado. Qualquer que fosse o seu interesse no corpo,
este desaparecera.
— Um homem de propriedades, pelo nome de Drogo Bosiet, de
Northamptonshire. Estamos à espera do seu filho a qualquer
momento.
— Verdade? Que chegada tão desanimadora será para ele —
mas as palavras que agora utilizava eram apenas superficiais e as
respostas pouco o preocupavam. — Têm muitos hóspedes nesta
altura do ano? Da minha própria idade e condição, talvez? Eu
apreciaria um jogo de xadrez à noite, se conseguisse encontrar um
companheiro.
Se perdera o interesse em Drogo Bosiet, parecia ainda estar
interessado em saber algo acerca de outros que pudessem ter
chegado à abadia como viajantes. Alguém da sua idade e condição!
— O Irmão Denis poderia arranjar-te um parceiro — disse
Cadfael, deliberadamente obtuso. — Não, esta é uma altura
tranquila. Encontrarás o salão meio vazio — estavam a aproximar-
se dos degraus do salão dos hóspedes, lado a lado e avançando
calmamente, e a luz do final da tarde, obscurecedora e serena,
começava a escurecer para uma tonalidade noturna de um
acinzentado de pomba.
— Este homem que foi atacado na floresta — disse Rafe de
Coventry. — Seu xerife lançará certamente os cães atrás do
foragido, sobretudo tão perto da cidade. Suspeita-se de algum
homem?
— Sim — disse Cadfael -. apesar de não haver certezas. Um
recém-chegado a estas partes, que desapareceu do serviço do seu
senhor desde o ataque — E acrescentou, sondando inocentemente
sem mostrar que o estava a sondar — Um jovem, talvez vinte anos
de idade...
Não da idade de Rafe nem da sua condição, não! E sem interesse
para este, pois acenou simplesmente à informação, e através da
indiferença da sua cara, prontamente a descartou.
— Bem, Deus abençoe a sua caçada! — disse, dispensando
Hyacinth como culpado ou inocente, tão irrelevantemente como o
que quer que ele tivesse metido naquela sua cabeça fechada e
encouraçada.
Ao fundo das escadas do salão de hóspedes, virou-se para
dentro, “certamente para examinar”, pensou Cadfael, “todos os
homens de meia-idade, que viriam jantar ao salão. Procurando por
alguém em particular? Cujo nome, já que ele não perguntara por
nomes, seria inútil, por ser falso? Um, pelo menos, que não era
Drogo Bosiet de Northamptonshire!”
8

Hugh chegou ao feudo de Eaton de manhã cedo, com seis


homens a cavalo atrás de si e mais uma dúzia espalhando-se atrás
dele, entre o rio e a estrada, para se estenderem sobre toda a
extensão de campo e floresta, desde Wroxeter até Eyton e para
além desta região. Na busca de um assassino fugitivo, talvez
tivessem de dirigir a caça em direção a oeste, mas Richard devia
estar certamente em alguma parte aqui nesta região, se de fato
partira para avisar Hyacinth da vingança que recaía sobre ele. O
grupo de Hugh seguira a estrada direta desde a Abadia Foregate
até Wroxeter, uma faixa aberta e rápida, e por isso o caminho mais
direto para a floresta, para a cela de Cuthred, onde Richard teria
esperado encontrar Hyacinth. Pelas contas do jovem Edwin,
antecedia apenas em alguns minutos Bosiet e teria apressado,
tomando o caminho mais curto e rápido, mas nunca chegara ao
eremitério.
— O rapaz Richard? — perguntou o eremita, espantado. —
Ontem, não me perguntou nada a seu respeito, só acerca do
homem. Não, Richard não apareceu. Lembro-me bem do jovem
lorde. Deus permita que nenhum mal lhe tenha acontecido! Eu não
sabia que ele estava perdido.
— E tu não voltaste a saber nada dele desde aí? Ele já
desapareceu há duas noites.
— Não, não o vi. As minhas portas estão sempre abertas, até de
noite — disse Cuthred — e estou sempre aqui, se algum homem
precisar de mim. Tivesse a criança estado em algum perigo ou
angústia e ao meu alcance, e certamente teria vindo aqui a correr.
Mas eu não o vi.
Era a mais pura das verdades que ambas as portas ficavam bem
abertas e a escassa mobília, tanto da sala de estar como da capela,
surgiam claramente à vista.
— Se souber alguma coisa — disse Hugh — manda chamar-me
ou a alguém da abadia, ou se vires os meus homens a revistarem
estes bosques à tua volta, como verás, entrega-lhes a mensagem.
— Assim farei — disse Cuthred gravemente, e permaneceu no
portal aberto do seu pequeno jardim, observando-os enquanto
cavalgavam em direção a Eaton.
John de Longwood avançou a passos largos vindo de um dos
grandes celeiros que ladeavam a paliçada, assim que ouviu o
entorpecedor ecoar de muitos cascos na terra batida do pátio. Os
seus braços nus e a sua cabeça careca eram de um castanho
brilhante da cor da madeira de carvalho, pois ele passava a maior
parte do seu tempo ao ar livre mantendo-se ativo em todas as
estações, e não havia trabalho na herdade que ele não pudesse
executar. Olhou fixamente para os homens de Hugh, os quais
cavalgavam decididamente pelo portão, mais com admiração e
curiosidade do que com preocupação, e avançou prontamente ao
seu encontro.
— Bem, meu senhor, o que o faz estar a pé tão cedo? — Já se
apercebera do significado desta pequena força militar. Sem cães,
sem falcões, mas transportando aço à cintura e. sendo dois deles
arqueiros, com arcos aos ombros. Este era outro tipo de caça. —
Nós não tivemos problemas por aqui. Qual é a novidade de
Shrewsbury?
— Estamos à procura de dois faltosos — disse Hugh
bruscamente.
— Não me digas que não ouviste dizer que encontramos um
homem assassinado entre esta propriedade e a cidade, há duas
noites atrás. E o rapaz do eremita fugiu, e suspeito ser ele o servo
fugitivo do homem, com boa razão para se juntar a ele e fugir pela
segunda vez. É essa a pedra no nosso sapato.
— Oh, sim. nós ouvimos falar dele — disse John prontamente —,
mas creio que ele esteja a uns bons quilômetros daqui por uma
altura destas. Não tivemos qualquer sinal dele desde o final daquela
tarde, quando esteve aqui para levar alguns bolos de mel que a
nossa Dama tinha para Cuthred. Ela também não estava muito
satisfeita com ele, ouvi-a a ralhar-lhe. E, certamente, ele era um
velhaco descarado. Mas com o avanço que ele levava acho que não
o vão voltar a ver. Apesar de eu nunca o ter visto armado — disse
John com uma expressão de reflexão e franziu a testa com a dúvida
resultante. — Há, pelo menos, uma hipótese que outro qualquer
tenha acabado com o seu senhor. A ameaça de o arrastar de volta
para a condição de servo feudal seria suficiente para fazer com que
o rapaz desse à sola. quanto mais depressa melhor. Seria difícil
num país desconhecido ao seu suserano mandar persegui-lo. Não é
preciso, certamente, matá-lo. Um estímulo demasiado pequeno para
ficar e arriscar-se.
— O rapaz ainda não foi condenado nem acusado — respondeu
Hugh —, nem o pode ser, até ser apanhado. Mas também só pode
ser ilibado nessa altura. E, de qualquer das formas, eu quero-o. Mas
estamos igualmente atrás de outro fugitivo, John. O neto da tua
senhora, Richard, saiu dos limites da abadia nessa mesma noite e
não voltou.
— O jovem lorde! — ecoou John de boca aberta, atingido com
surpresa e consternação. — Desaparecido há duas noites e só
agora é que temos notícia disso? Deus nos ajude, ela vai
endoidecer! O que é que aconteceu? Quem é que levou o rapaz?
— Ninguém o levou. Ele selou e montou o seu pônei e lá foi ele,
sozinho, de sua livre vontade. E o que aconteceu desde então,
ninguém sabe. E visto que um daqueles que procuro pode ser um
assassino, não deixarei para trás um celeiro sem ser revistado, bem
como tenho ordens para todos os homens para se manterem
atentos e procurarem também por Richard. É certo que tu és um
bom criado, John, nem mesmo tu podes saber que rato se infiltrou
em cada vacaria, curral de ovelhas e armazém no feudo de Eaton. E
é isso que eu pretendo saber, aqui e em toda a parte, entre este
local e Shrewsbury. Entra e diz à Dama Dionísia que peço para falar
com ela.
John abanou a cabeça desamparadamente e afastou-se. Hugh
desmontou do cavalo e avançou até as escadas que conduziam até
a porta do vestíbulo sob a baixa galeria esperando ver como é que
Dionísia se mostraria, quando emergisse da ampla entrada superior.
Se ela realmente ainda não tinha ouvido nada acerca do
desaparecimento do rapaz até este momento, quando o seu lacaio
lho contasse, certamente que ele poderia esperar pela sua fúria,
alimentada tanto por desânimo genuíno como por pesar. Se ela já o
soubesse, então teria tempo para se preparar de modo a
representar a sua ira, mas mesmo assim poderia deixar escapar
algo que a traísse. Quanto a John, a sua honestidade estava
patente. Se ela tinha escondido o rapaz em alguma parte, John não
tinha conhecimento de tal. Ele não era um instrumento que ela
tivesse usado para tal fim, pois ele estava obstinadamente
determinado a ser o criado de Richard, não o dela.
Ela surgiu das sombras da entrada, as suas saias azuis
ondulando, os seus olhos arrogantes flamejando.
— O que é isto que ouço, meu senhor? Certamente que não pode
ser verdade! O Richard desaparecido?
— É verdade, senhora — disse Hugh, observando-a
intencionalmente e imperturbável com o fato de ter de olhar para
cima para o fazer, como o teria feito se ela se lançasse disparada
pelas escadas abaixo até o seu nível, pois ela era mais alta do que
ele. — Desde a noite anterior à última que ele desapareceu da
escola da abadia.
Ela ergueu as suas mãos fechadas com um grito de indignação.
— E só agora é que me contam! Duas noites desaparecido! É
esse o cuidado com que tratam as crianças a seu cargo? E são
estas as pessoas que me negam o cargo do meu próprio sangue!
Eu responsabilizo o abade por qualquer angústia ou mal que possa
acontecer ao meu neto. A culpa pesa sobre a sua cabeça. E o que é
que está a fazer, meu senhor, para recuperar a criança? Diz-me que
está perdido há dois dias, e tarde e a más horas é que me vem dar
conhecimento...
O silêncio momentâneo surgiu apenas porque ela parara para
recuperar o fôlego, permanecendo com olhos faiscantes no topo das
escadas, alta e com os cabelos a embranquecerem uniforme e
formidavelmente, a sua longa cara patrícia inundada por sangue
enraivecido. Hugh aproveitou-se implacavelmente da vantagem
desta calmaria enquanto a mesma durava, pois não haveria de
durar muito tempo.
— O Richard esteve aqui? — exigiu ele abruptamente, desafiando
a sua exibição de perda e privação.
Ela recobrou fôlego, permanecendo de boca aberta.
— Aqui? Não, ele não veio aqui. Estaria eu assim tão perturbada
se ele tivesse vindo?
— Enviaria, sem dúvida, recado ao abade — disse Hugh sem
malícia — se ele tivesse vindo a correr para casa? Eles não estão
menos ansiosos por causa dele na abadia. E ele partiu sozinho, de
sua própria livre vontade. Onde haveríamos de procurar por ele em
primeiro lugar, senão aqui? Mas diz-me que ele não está aqui, que
não esteve aqui. E o pônei dele não voltou a vaguear de volta para
casa, para o seu próprio estábulo?
— Ele não voltou, ou eu teria sido avisada de imediato. Se ele
tivesse voltado para casa sem cavaleiro — disse ela, as suas
narinas chamejando —, eu teria tido todos os homens que me
pertencem a vasculhar os bosques à procura do Richard.
— Os meus homens estão ocupados neste preciso momento a
fazer exatamente o mesmo — disse Hugh. — Mas por favor, envie
toda a gente de Richard para aumentar o número, e seja bem-vinda.
Quantos mais, melhor. Pois parece que não ainda não encontramos
nada — disse ele, ainda estudando pensativamente a cara dela — e
afinal de contas ele não está aqui.
— Não — ela exclamou —, ele não está aqui! Não, ele não esteve
aqui! Apesar de que se ele partiu de livre vontade, como diz. talvez
pretendesse voltar para mim, para casa. E o que quer que seja que
lhe tenha acontecido pelo caminho, eu atribuo a culpa a Radulfus.
Ele não serve para ter a seu cargo uma criança nobre, se não
souber tomar melhor conta dela.
— Eu direi isso — disse Hugh serviçalmente, e continuou com
mansidão aborrecida — O meu presente dever é então continuar
com a busca, tanto por Richard como pelo ladrão que matou um
hóspede da abadia na floresta de Eyton. Não precisa de recear,
senhora, pois a minha busca será minuciosa. Visto que não posso
esperar que a senhora faça rondas diárias de cada canto do feudo
do seu neto, sem dúvida que ficará satisfeita por me conceder livre
acesso a todo o lado, para fazer esse serviço por si. Deve desejar
dar o exemplo aos seus inquilinos e vizinhos.
Ela deitou-lhe um longo olhar hostil e do mesmo modo repentino
girou para John de Longwood, que permanecia impassível e neutro
a seu lado. Na tempestade dos seus movimentos, a sua longa saia
chicoteava como a cauda de um gato zangado.
— Abre as portas a estes oficiais. Todas as minhas portas! Deixa
que eles se satisfaçam com o fato de eu não albergar um assassino,
nem esconder o meu próprio sangue neste local. Deixa que todos os
nossos vassalos saibam que é por minha vontade que eles se
submetam à busca tão livremente quanto eu. Meu senhor xerife —
disse ela, olhando para baixo com imensa dignidade sobre Hugh —,
entrai e procurai onde quer que desejais.
Ele agradeceu-lhe com um civismo imperturbável, como se ela
tivesse visto o reflexo nos olhos dele. o qual era quase um sorriso
aberto, mas ela desprezou-o sem o reconhecer, virando-lhe as
costas direitas, e retirou-se com uma passada rápida e furiosa em
direção ao vestíbulo, deixando-o para uma busca que ele sabia já
que seria infrutífera. Mas não havia certezas, e se ela tinha
calculado que tal convite impetuoso e de rompante seria tomado
como uma prova e eles partiriam satisfeitos, até mesmo
envergonhados, estava muito enganada. Hugh começou a sondar
cada canto do salão de Dionísia e do solar, cozinhas e armazéns,
examinou cada tonel, carro de mão e barril na galeria subterrânea,
cada vacaria, celeiro e estábulo que ladeavam a paliçada, a oficina
do ferreiro, cada palheiro e despensa, e dirigiu-se para o exterior em
direção aos campos e ao curral das ovelhas e depois para as
cabanas de cada rendeiro, couteiro e servo da terra de Richard. Mas
não o encontraram.
O Irmão Cadfael viajou para o terreno desbravado de Eilmund a
meio da tarde, com as novas muletas que o Irmão Simon fizera à
medida do couteiro, suportes bons e sólidos para suportar um peso
maciço. A fratura parecia estar a solidificar bem. a perna estava
direita e não estava mais curta. Eilmund não estava habituado a
manter-se deitado e inativo, e tinha ciúmes de outras mãos que
estivessem a cuidar dos seus bosques. Logo que ele conseguisse
deitar a mão a estes apoios, Annet teria dificuldade em mantê-lo
fechado. Cadfael tinha em mente que o desamparo do pai de Annet
lhe proporcionara uma liberdade rara para seguir os seus próprios
passatempos femininos, sem dúvida suficientemente inocentes, mas
o que Eilmund pensaria deles quando os descobrisse era outra
questão.
Aproximando-se da aldeia de Wroxeter, Cadfael encontrou-se
com Hugh, que cavalgava de regresso à cidade após um longo dia
na sela. Nos terrenos e nos bosques, os seus oficiais ainda
passavam metodicamente a pente fino cada arvoredo e cada
promontório, mas Hugh tinha de voltar para o castelo sozinho, para
reunir quaisquer relatórios que tivessem sido entregues e considerar
a melhor maneira de cobrir o terreno restante e quão longe deveria
a busca ser estendida, se não tivesse já dado os seus frutos.
— Não — disse Hugh, respondendo à questão não colocada,
assim que se encontraram ao alcance da voz um do outro —, ela
não o tem. Pelos sinais que mostrou, ela nem sequer sabia que o
tinhas perdido até eu lho dizer, embora eu saiba que não é um
truque muito difícil para qualquer mulher fazer tal espetáculo de
admiração. Mas nós separamos cada espiga dos seus celeiros e o
que nos escapou deve ser demasiado pequeno para alguma vez ser
descoberto. Não havia nenhum pônei preto no estábulo. Todas as
almas contam a mesma história, desde John de Longwood até o
ajudante do ferreiro. Richard não está lá. Nem em nenhuma cabana
ou curral nesta aldeia. O padre revirou a sua casa para nós e
acompanhou-nos na ronda do feudo, e ele é um homem honesto.
Cadfael anuiu face à sombria confirmação das suas próprias
dúvidas.
— Tive um pressentimento que talvez pudesse haver mais do que
isso. Suponho que valha a pena tentar em Wroxeter. Não que eu
esteja a ver o Fulke Astley como um provável vilão, ele é demasiado
gordo e cauteloso.
— Acabo de chegar de lá — disse Hugh. — Três dos meus
homens ainda estão a investigar os últimos recantos, mas fico
satisfeito que ele também não esteja por lá. Não deixaremos nada
escapar, feudo, cabana, terreno desbravado, tudo. Tudo o que lhes
surja de semelhante, nenhum deles se poderá queixar. Apesar de
Astley ter ficado eriçado por nos ter deixado entrar. Uma questão de
dignidade senhorial, pois não havia lá nada para ser encontrado.
— O pônei — disse Cadfael pensativamente, mordendo um lábio
— deve estar fechado em alguma parte.
— A não ser — respondeu Hugh sombriamente — que o outro
fugitivo o tenha montado para sair do condado e tenha deixado o
rapaz de tal forma que ele não possa ser testemunha, até mesmo
quando o encontrarmos.
Olharam fixamente um para o outro, admitindo calados que era
uma possibilidade negra e amarga, mas uma que não podia de todo
ser banida.
— A criança fugiu para se encontrar com ele, se foi realmente o
que fez — continuou Hugh tenazmente —, sem dizer uma palavra a
ninguém. E se realmente se foi encontrar com um velhaco e
assassino em toda a sua inocência? O cavalo de patas curtas é um
pequeno animal robusto, grande para Richard, o rapaz eremita um
peso-pluma e Richard a única testemunha. Eu não digo que assim o
seja. Eu digo, sim, que tais coisas já aconteceram e podem voltar a
acontecer.
— É verdade, não discordo disso — admitiu Cadfael. Havia algo
no seu tom que fez com que Hugh dissesse com toda certeza: —
Mas tu não acreditas nisso — era algo sobre o qual o próprio
Cadfael tinha tido menos certezas até aquele momento. — Sentes
os teus polegares a latejarem? Sei que não devo ignorar o
presságio se tu o fizeres — disse Hugh com um sorriso meio
relutante.
— Não, Hugh — Cadfael abanou a cabeça. — Não sei de nada
que te seja desconhecido, nem sou o advogado de ninguém neste
caso, à exceção de Richard. Eu mal troquei uma palavra com este
rapaz Hyacinth, nunca o vi senão duas vezes, quando levou a
mensagem de Cuthred ao capítulo e quando ele me veio buscar
para ir ter com o couteiro. Tudo o que posso fazer é manter os meus
olhos abertos entre este local e a casa de Eilmund. E podes ter
certeza de que o farei e talvez até faça desvios ao longo do
caminho. Se eu tiver alguma coisa para contar, podes ter certeza de
que a ouvirás antes de qualquer outro. Sejam más ou boas, mas
que Deus e a Santa Winifred nos forneçam boas notícias!
Com aquela promessa separaram-se, Hugh a cavalo na direção
do castelo para receber quaisquer que fossem as notícias que o
vigia a esta hora da tarde pudesse, eventualmente, ter para ele;
Cadfael dirigindo-se através da aldeia na direção da orla dos
bosques. Não tinha pressa. Tinha muito em que pensar. Estranho
como o próprio ato de admitir que o pior poderia acontecer tivesse
fortalecido tão instantaneamente a sua convicção de que não tinha
acontecido e não haveria de acontecer. Ainda mais estranho fora
que quando declarara com sinceridade que não sabia nada de
Hyacinth e que mal falara com ele, se achasse logo de seguida tão
fortemente persuadido de que muito em breve essa falta iria ser
corrigida e ele aprenderia, senão tudo, pelo menos tudo aquilo que
precisava de saber.
Eilmund recuperara a sua cor saudável, recebeu ansiosamente a
companhia e não se conseguiu impedi-lo de experimentar de
imediato as suas muletas. Quatro ou cinco dias engaiolado dentro
de casa era um teste doloroso ao seu temperamento, mas o alívio
de ser capaz de saltar vigorosamente para o jardim e descobrir que
aprendia rapidamente a arte da utilização das suas novas pernas
trouxe-lhe imediatamente outro estado de espírito. Quando se
satisfez com a sua competência, sentou-se de boa vontade, às
ordens de Annet, para partilhar um jantar com Cadfael.
— Apesar de ser obrigado a regressar — disse Cadfael —, agora
sei que estás a passar bem. O osso parece estar a solidificar como
uma rocha e não precisarás de mim aqui a afligir-te todos os dias. E
falando de visitantes inconvenientes, tiveste aqui hoje o Hugh
Beringar ou os seus homens, a revistar os bosques. Já deves ter
ouvido que eles andam à caça do rapaz de Cuthred, Hyacinth, por
suspeita de ter morto o seu suserano? E também desapareceu o
jovem Richard.
— Ouvimos falar de ambos só ontem à noite — respondeu
Eilmund. — Sim, eles estiveram aqui esta manhã, uma longa fila de
homens da guarnição a percorrerem o caminho ao longo de cada
terreno da floresta entre a estrada e o rio. Eles até espreitaram para
dentro da meu curral e da casa do feno. Will Warden murmurou que
era uma loucura desnecessária, mas que tinha as suas ordens. Para
quê perder tempo, diz ele, incomodando um bom companheiro que
todos nós sabemos ser honesto, mas a minha pele não vale nada se
deixar de fora uma única cabana ou deixar os meus batedores
passarem por um arbusto solitário, com o olhar da sua senhoria
sobre todos nós. Sabes se já encontraram a criança?
— Não, ainda não. Ele não está em Eaton, isso é certo. Se serve
de algum conforto, Eilmund, a Dama Dionísia teve de abrir as suas
portas à busca também. Nobres e simples, são todos iguais.
Annet esperou por eles em silêncio, trazendo queijo e pão para a
mesa. Os seus passos eram tão leves como sempre, a sua
expressão calma, e somente a menção de Richard fez a sua cara
nublar-se numa simpatia ansiosa. Não havia maneira de saber o
que se passaria por detrás da sua cara composta, mas Cadfael
arriscou os seus próprios palpites. Retirou-se em boa altura, apesar
das insistências hospitaleiras de Eilmund.
— Tenho estado a perder muitos serviços nestes últimos dias, é
melhor eu regressar ao meu dever e, pelo menos, parecer
apresentável para as Completas hoje à noite. Virei aqui visitar-te
depois de amanhã. Toma cuidado contigo. E, Annet, não o deixes
ficar de pé durante muito tempo. Se ele te der problemas, tira-lhe as
muletas.
Ela riu e disse que o faria, mas a sua cabeça, pensou Cadfael,
estava apenas meio atenta ao que ele dissera e ela não fizera
qualquer movimento para apoiar o protesto do pai com a sua partida
tão rápida. Nem sequer saiu com ele para o acompanhar até o
portão desta vez, mas apenas até a porta e aí ficou, observando-o a
montar, e acenou quando ele olhou para trás antes de começar a
cavalgar com dificuldade pelo estreito caminho entre as árvores. Só
quando ele desaparecera, é que ela se virou e voltou para a cabana.
Cadfael não foi muito longe. A uns quantos metros no interior dos
bosques, havia uma clareira verde rodeada por uma moita densa e
aí ele desmontou e amarrou o seu cavalo, percorrendo de volta e
muito silenciosamente o seu caminho, até encontrar um local de
onde pudesse ver a porta da casa, sem ele próprio ser visto. A luz
diminuía suavemente para um verde suave de crepúsculo e o
silêncio era profundo, apenas o último cantar dos pássaros
quebrava o silêncio da floresta.
Passados alguns minutos, Annet foi novamente até a porta e
manteve-se durante um momento, encolhida e quieta, a sua cara
com uma expressão de alerta, olhando em redor para a clareira e
escutando atentamente. Então, satisfeita, saiu apressadamente do
jardim vedado e contornou-o para as traseiras da cabana. Cadfael
seguiu-a com o olhar sob a cobertura das árvores. As suas galinhas
estavam já seguramente fechadas para a noite, a vaca estava no
curral; destas tarefas noturnas habituais. Annet regressara havia
uma boa hora atrás, enquanto o seu pai experimentava as suas
muletas na relva da clareira. Parecia que havia mais uma tarefa que
ela tinha de fazer antes do cair da noite e antes da porta estar
fechada e trancada. E ela dirigia-se a esta numa corrida ligeira e
jovial, as suas mãos abertas para afastar os arbustos de ambos os
lados enquanto se aproximava da orla da clareira, o seu cabelo
castanho claro soltando-se livremente do seu rolo e dançando sobre
os seus ombros, a sua cabeça inclinada para trás como se ela
olhasse para cima para as árvores, as quais escureciam sobre a sua
cabeça e, silenciosamente e de modo úmido, caía a ocasional folha
murcha, as lágrimas do ano envelhecido.
Não ia para longe. Poucos passos dentro dos bosques, ela parou,
equilibrando-se ainda com a mesma atitude jovial de fuga, debaixo
dos ramos do primeiro dos carvalhos idosos, ainda cheio de
folhagem mas já acastanhado. Cadfael, colocado não muito atrás
dela sob o abrigo das árvores, viu-a lançar para trás a sua cabeça e
enviar, na direção do topo da árvore, um alto e melodioso assobio.
Em alguma parte de cima, um suave vislumbre de folhas respondeu,
caindo por entre os ramos como uma bolota poderia cair e, num
momento, o tremer descendente de movimento alcançou o chão sob
a forma de um homem jovem, súbito e silencioso como um gato,
que balançou através das suas mãos do ramo mais baixo e caiu
levemente de pé ao lado de Annet. Assim que ele tocou o chão,
encontravam-se nos braços um do outro.
Então ele não se enganara. Os dois, mal tinham olhado um para o
outro, tinham caído de amores, tão abençoados que foram com a
boa oferta dos seus serviços ao pai dela. Com Eilmund deitado
desamparado na casa, ela podia sair livremente para tratar do seu
assunto secreto de esconder e alimentar um fugitivo, mas o que
haveriam eles de fazer agora que o couteiro estava prestes a andar
a pé e por ali, por muito limitado que o seu alcance fosse? Seria
justo presentear o seu pai com um problema tal em lealdades, e a
ele, um oficial envolvido com a lei, se bem que só lei florestal? Mas
ali permaneciam eles unidos, tão candidamente como crianças, com
uma sugestão de permanência acerca do seu abraço, que
certamente levaria mais tempo do que pai ou lorde ou lei ou rei para
os desembaraçar. Com a sua longa crina de cabelo solto, e os seus
pés descalços, e a elegância clássica de Hyacinth de forma e
movimento, e a sua beldade feroz e inquietante, eles podiam ter
sido duas criaturas oriundas da antiga floresta, fauno e ninfa saídos
de uma fábula profana mas adorável. Nem mesmo a reunião do
crepúsculo poderia escurecer o seu brilho.
“Bem”, pensou Cadfael rendendo-se à visão, “se é com isto que
teremos de lidar, a partir daqui teremos de continuar, pois não há
como regressar”. E saiu detrás dos arbustos sussurrando, e
caminhou na direção deles sem se esconder.
Eles ouviram-no e saltaram instantaneamente com as suas
cabeças inclinadas, face contra face, como veados pressentindo
perigo. Viram-no e Annet esticou os braços e escondeu Hyacinth
atrás dela contra o tronco da árvore, a sua cara branca e afiada
como uma espada, e tão decididamente Hyacinth riu, puxou o seu
corpo para o lado e colocou-se à sua frente.
— Como se eu precisasse de uma prova! — disse Cadfael, para
lhes transmitir qualquer segurança que a sua voz pudesse carregar
e parou sem se aproximar muito, apesar de eles saberem já que
não valia a pena correr. — Eu não sou a lei. Se não fizeste mal
nenhum não tens nada a recear da minha parte.
— É preciso um homem mais corajoso do que eu — disse a voz
clara de Hyacinth suavemente — para afirmar que não fiz nada de
mal — até mesmo na luz que diminuía, o seu sorriso súbito e
imperturbável brilhou perceptivelmente por um momento. — Mas
não cometi nenhum assassinato, se é isso que quer dizer, Irmão
Cadfael, não é?
— Sim — ele olhou de uma cara excitada e cautelosa para a outra
e viu que eles estavam a respirar um pouco mais facilmente, e a
cada momento menos tensos para fugirem ou atacarem. — Sorte a
tua por eles não terem trazido cães esta manhã. Hugh nunca gosta
de caçar um homem com cães. Desculpa, rapaz, se a minha visita
hoje à noite te impediu de ficares mais tempo do que precisavas no
teu ninho lá em cima. Espero que passes as tuas noites com mais
conforto.
Com isso, ambos sorriram, ainda de certo modo cautelosamente e
com olhos alerta e selvagens, mas nada disseram.
— E onde é que te escondeste durante a busca do sargento, que
eles nunca suspeitaram sequer de ti?
Annet decidiu-se, com a mesma resolução prática com a qual
fazia tudo. Estremeceu e abanou-se, a cobertura brilhante do seu
cabelo ondulando numa onda pálida à volta da sua cabeça.
Respirou profundamente e riu.
— Se tem de saber, ele esteve debaixo das mantas da cama do
pai, enquanto Will Warden se sentava no banco oposto bebendo
cerveja conosco e os seus homens espreitavam por entre as minhas
galinhas e espetavam forquilhas através do feno no celeiro lá fora.
Pensou, creio eu — disse ela aproximando-se de Cadfael e
arrastando Hyacinth atrás dela pela mão -. que o pai ignora o que eu
estou a fazer. Pensou isso de mim, mesmo que só um bocadinho?
Não precisa, ele sabe de tudo, sabe de tudo desde o início ou, pelo
menos, desde que esta caça ao homem começou. E agora que nos
descobriu, não seria melhor irmos todos para dentro de casa e
vermos o que conseguem as nossas cabeças arranjar para o futuro
para nos tirar a todos desta confusão?
— Eles não voltarão — disse Eilmund confortavelmente,
presidindo a reunião em sua casa, a partir do trono da sua cama, a
mesma cama debaixo da qual Hyacinth se agachara em segurança
na presença dos caçadores. Mas se voltarem, saberemos disso a
tempo. Nunca se utiliza duas vezes o mesmo esconderijo.
— E nunca nem por uma única vez quaisquer escrúpulos por
poderes estar a esconder um assassino? — perguntou Cadfael, com
esperança de parecer convincente.
— Não há necessidade de nenhum! Desde o início disto, que não
tinha necessidade disso. E também o saberás. Falo de prova reais,
Cadfael, não de uma simples questão de fé, apesar da fé não ser
uma mera questão, se falarmos sobre isso. Estiveste aqui ontem à
noite, foi no teu caminho de regresso que descobriste o homem
morto, e morto há não mais do que uma hora quando tu o
encontraste. Dizes sim a isso?
— Mais do que de boa vontade, se te ajudar a provar.
— E tu deixaste-me quando a Annet regressava do trabalho que a
mantém ocupada à noite. Lembras-te que eu disse que ela se
demorara mais do que suficiente de volta dele e. de fato, fizera-o
bem mais de uma hora. Por bons motivos, ela encontrara-se com
este jovem e o que quer que seja que eles estiveram a fazer, não se
apressaram com isso, o que não te surpreenderá por aí além,
atrevo-me a dizê-lo. Em resumo, este dois estiveram juntos nos
bosques a relativamente poucos metros daqui, desde a altura em
que ela nos deixou até regressar perto de duas horas mais tarde. E
aí o jovem Richard encontrou-os e ela trouxe consigo este rapaz, e
dez minutos depois de tu teres partido, ela trouxe-o até mim.
Nenhum assassino, pois durante todo esse tempo, ele esteve com
ela ou comigo ou ambos, e nesta casa dormiu naquela noite. Nunca
esteve perto do homem que foi morto, e podemos jurar isso.
— Então porque é que tu não... — começou Cadfael e tão
repentinamente se arrependeu da pergunta desnecessária, e
levantou uma mão para afastar a resposta óbvia. — Não, não digas
nada! Vejo muito bem por quê. As minhas faculdades mentais estão
entorpecidas esta noite. Se te apresentasses para contar a Hugh
Beringar que ele anda atrás de um homem que pode provar ser
inocente, é verdade que podias afastar esse perigo dele. Mas se um
Bosiet está morto, há outro prestes a chegar a qualquer momento, já
pode ter chegado neste preciso momento, tanto quanto eu sei. Tão
mau quanto o seu antepassado, assim o diz o lacaio, e ele tem bons
motivos para o saber, já que carrega as marcas disso. Não, eu
percebo como é que tu te envolveste.
Hyacinth sentou-se nos juncos do chão aos pés de Annet,
abraçando os seus joelhos levantados. Ele falou sem paixão ou
ênfase, mas com uma finalidade tranquila e uma absoluta resolução.
— Não vou voltar para lá.
— Não, não mais o farás! — exclamou Eilmund calorosamente. —
Tu compreenderás, Cadfael, que quando acolhi o rapaz não fazia
sequer ideia de que tinha havido um assassinato. Era um servo
feudal fugitivo que eu escolhi abrigar, um com bons motivos para
fugir, e um que me tratou da melhor das maneiras que qualquer
homem poderia ter tratado outro. Gostei muito dele e não o enviaria
de volta por motivo nenhum, para ser maltratado. E depois, quando
o alerta de assassinato surgiu, não tive razão para sentir de modo
diferente, pois eu sabia que ele não tinha tomado parte nele. Foi
contra os meus princípios não ser capaz de sair e de o dizer ao
xerife, ao abade e a todos, mas vês que era impossível. E o fim
disso é: aqui estamos com o rapaz nas nossas mãos e como é que
nos vamos assegurar da segurança dele?
9

Era tido como certo por todos eles, ao que parecia, que Cadfael
se encontrava do lado deles e entregara-se de coração à
conspiração. Como poderia ser de outra forma? Aqui estava a prova
absoluta de que o rapaz não era nenhum assassino, prova que
podia ser colocada nas mãos de Hugh Beringar com confiança na
sua justiça, sem qualquer dúvida disso. Todavia, isso não poderia
ser feito sem expor Hyacinth ao mesmo perigo do qual ele tinha
fugido outrora, e mal podia ter esperança de conseguir escapar uma
segunda vez. Hugh era obrigado pela lei como outro homem
qualquer, e até mesmo a sua capacidade para olhar para outro lado
e fazer ouvidos de mercador não ajudaria Hyacinth se alguma vez
Bosiet tivesse notícias de onde ele estava e de quem o estava a
abrigar.
— Entre nós — disse Cadfael, apesar de um pouco duvidoso —
talvez consigamos tirar-te do condado e colocar-te em direção a
Gales, livre de perseguição...
— Não — disse Hyacinth firmemente. — Não fugirei. Vou me
esconder o quanto possível, mas não vou continuar a fugir. Era o
que eu pretendia ter feito quando me meti neste caminho, mas
mudei de ideia.
— Por quê? — exigiu Cadfael simplesmente.
— Por duas boas razões. Primeiro, porque Richard está perdido e
ele salvou-me a pele, trazendo-me a notícia de que me procuravam
e eu sou seu devedor até saber que ele está salvo, e de regresso
aonde deve estar. E segundo, porque eu quero a minha liberdade
aqui na Inglaterra, aqui em Shrewsbury, e pretendo arranjar trabalho
na cidade quando puder, com segurança, ganhar a vida e arranjar
mulher — olhou para cima para Eilmund com um brilho vivo e
desafiador nos seus olhos âmbar e sorriu. — Se a Annet me aceitar!
— É melhor pedires a minha opinião a esse respeito — disse
Eilmund, mas com tão bom humor que era óbvio que a ideia não lhe
era totalmente nova, nem seria necessariamente mal recebida.
— Eu o farei quando chegar a altura, mas não te ofereceria nem a
ti nem a ela o que sou e o que tenho agora. Por isso. deixa isso
esperar, mas não te esqueças — avisou o fauno, brilhando. — Mas
eu tenho de encontrar Richard, vou encontrá-lo! Isso está primeiro!
— O que podes fazer — perguntou Eilmund prático — mais do
que Hugh Beringar e todos os seus homens estão a fazer? E tu
próprio um homem caçado, com os cães no teu rastro! Mantém-te
quieto como um rapaz razoável e esconde a tua cabeça até a caça
de Bosiet lhe começar a custar mais do que o ódio que tem por ti,
como acontecerá por fim. Tem agora feudos em casa em que
pensar.
Porém, se Hyacinth era, através de padrões comuns, um rapaz
inteligente, era uma questão de conjectura. Sentou-se muito quieto,
naquele modo tenso e sugestivo que ele tinha, o qual prometia ação
iminente, o suave brilho do fogo de Annet brilhando nas suas faces
subtilmente lívidas e na sua testa, transformando o bronze em
dourado. E Annet, a seu lado no banco almofadado, junto à parede,
possuía algo de semelhante. A cara dela estava calma, mas os seus
olhos eram de um tom de safira vivo. Deixava que eles falassem
dela na sua presença e não sentia necessidade de acrescentar uma
palavra em seu favor, nem tão-pouco tocou o esbelto ombro de
Hyacinth para confirmar a sua posse. Quem quer que fosse que
tivesse dúvidas em relação às reivindicações de Annet sobre o
futuro, Annet não tinha nenhuma.
— Richard deixou-te assim que te entregou o aviso? — perguntou
Cadfael.
— Deixou. Hyacinth quis ir com ele até a orla do bosque — disse
Annet -. mas ele não aceitou isso. Não se moveria, a não ser que
Hyacinth se escondesse imediatamente, por isso prometemos. E ele
voltou a partir pelo mesmo caminho. E nós voltamos para aqui para
o pé do pai, como ele lhe contou, e não vimos mais ninguém ao
longo do caminho. Richard não teria ido para nenhum lugar perto de
Eaton, ou eu teria pensado que a avó dele teria ficado com ele. Mas
ele estava inclinado a voltar para a sua cama.
— Foi o que todos nós pensamos — admitiu Cadfael —, menos
Hugh Beringar. Mas ele foi lá hoje cedo e virou o local de pernas
para o ar, e o rapaz não está lá. Acho que John de Longwood e
metade da casa teriam dito se o tivessem visto por lá. A Dama
Dionísia é uma senhora formidável, mas Richard é o suserano de
Eaton, é a ele que eles têm de obedecer de futuro, não a ela. Se
eles não se tivessem atrevido a falar perante ela, tê-lo-iam feito
facilmente nas suas costas. Não, ele não está lá. Já passava havia
muito da hora do serviço das Vésperas. Mesmo que regressasse
agora, Cadfael chegaria demasiado tarde para as Completas, mas
mesmo assim fixou-se teimosamente em rever toda esta nova
situação na sua cabeça, procurando pela melhor solução a seguir,
onde parecia não restar mais nada para fazer do que esperar, e
continuar a evitar a caçada. Sentia-se satisfeito por Hyacinth não ser
nenhum assassino, pelo menos isso era um benefício, mas como
mantê-lo fora do alcance de Bosiet era outra questão.
— Por amor de Deus, rapaz — disse ele suspirando —, o que foi
que tu fizeste ao teu suserano, lá em Northamptonshire, para seres
tão amargamente odiado? Agrediste de fato o seu lacaio?
— Agredi — reconheceu Hyacinth com satisfação, e uma faísca
vermelha reminiscente ateou-se nos seus olhos. — Foi depois do
final da colheita e havia uma moça a recolher as espigas nos pobres
restos de um dos campos da propriedade. Não havia uma moça a
salvo se ele a apanhasse sozinha. Foi só por acaso que eu estava
perto. Ele tinha um bastão e desferiu-o sobre a minha cabeça
girando-o, quando eu o ataquei. Fiquei com umas quantas
contusões, mas deitei-o ao chão sobre as pedras debaixo duma
pequena porção de terra por semear, retirando-lhe as suas
faculdades mentais. Portanto, não havia nada que eu pudesse fazer
senão fugir. Não tinha nada para deixar, nem terra... Drogo
penhorara o meu pai dois anos antes, quando ele estava a morrer e
eu tinha tudo para fazer, os nossos campos e o trabalho da colheita
de Bosiet, e acabamos por ficar endividados. Estava atrás de nós
havia já algum tempo, dizia que eu estava sempre a incitar os seus
servos feudais contra ele... Bem, se o estava, era pelos seus
direitos. Existem leis para defender e escapar a salvo até mesmo
para os servos, mas eles significam pouco nos feudos de Bosiet. Ele
ter-me-ia morto por ter atacado o lacaio, teria mandado que eu fosse
enforcado, se eu não fosse tão lucrativo para ele. Era a
oportunidade pela qual esperava.
— De que modo eras tu lucrativo para ele? — perguntou Cadfael.
— Eu tinha jeito para trabalho de curtumes, cintos, couraças,
bolsas e esse gênero de trabalho. Quando ele me retirou as terras,
ofereceu-se para me deixar a pequena quinta, se eu me
comprometesse a entregar-lhe todo o meu trabalho para o meu
sustento. Eu não tive escolha, era ainda seu servo. Mas comecei a
fazer estampagem e a dourar. Uma vez, quis obter um favor do
conde e mandou-me fazer uma capa para um livro para lhe dar
como presente. E depois o Prior dos cânones Agostinhos em
Huntingdon viu-o e encomendou uma oferta para o grande códice
que lhes pertencia, e o subprior de Cluny em Northampton quis o
seu melhor missal reencadernado e, assim, continuou. E eles
pagavam bem, mas eu não ficava com nada. Drogo saiu-se bem às
minhas custas. Essa é a outra razão pela qual ele me queria de
volta vivo. E também o quererá o seu filho Aymer.
— Se tiveres um dom como esse nas pontas dos teus dedos —
disse Eilmund aprovador —, podes seguir para onde quiseres,
assim que estiveres livre destes Bosiets. O nosso abade pode muito
bem arranjar-te trabalho e qualquer mercador da cidade ficará
satisfeito por te ter a trabalhar para si.
— Onde e como é que tu conheceste o Cuthred? — perguntou
Cadfael, curiosamente.
— Foi no priorado de Cluniac em Northampton. Eu dormi lá uma
noite, mas não me atrevi a entrar no enclave, estavam lá um ou dois
que me conheciam. Arranjei comida sentando-me com pedintes no
portão e quando me preparava para partir antes da madrugada.
Cuthred também se encontrava de partida, tendo passado a noite no
salão dos hóspedes — um súbito sorriso sombrio repuxou os cantos
dos lábios eloquentes de Hyacinth. Manteve os seus espantosos
olhos ocultos sob as suas pestanas arqueadas e douradas. —
Propôs que viajássemos juntos. Por caridade, certamente. Ou para
que eu não tivesse de roubar para comer, e afundar-me ainda mais
do que anteriormente numa situação pior.
Igualmente de modo súbito, olhou para cima, desvendando todo o
brilho dos seus olhos, fixando-os total e solenemente na cara de
Eilmund. O sorriso desaparecera.
— Está na altura de saberes o pior a meu respeito, não quero
mentiras entre nós. Cheguei aqui sem dever nada ao mundo e
pronto para qualquer dano, e poderia ser um rufião e um
vagabundo, e tenho sido um ladrão por necessidade. Antes que me
acolhas por mais uma hora, deves saber que motivos tens para
pensar melhor acerca disso. A Annet — disse ele, a sua voz
baixando e suavizando-se ao dizer o seu nome — já sabe aquilo
que também tu tens de saber. Tens esse direito. Contei-lhe a
verdade na noite em que o Irmão Cadfael esteve aqui para te
colocar no lugar o osso deslocado.
Cadfael lembrava-se da figura estática sentada pacientemente no
exterior da cabana, o sussurro urgente: “Tenho de falar contigo!”. E
Annet a sair para a escuridão e fechando a porta atrás de si.
— Fui eu — disse Hyacinth com uma deliberação de aço — que
obstruí o riacho com arbustos, de modo que as tuas jovens árvores
ficassem inundadas. Fui eu que escavei por baixo da ladeira e fiz a
ponte sobre o fosso, de modo que o veado entrasse na pequena
mata. Fui eu que mudei uma das paliçadas da cerca de Eaton, para
deixar sair as ovelhas em direção aos rebentos de freixo. Recebi as
minhas ordens da Dama Dionísia para ser um tormento constante
para a abadia, até eles lhe darem de volta o seu neto. Foi por isso
que ela instalou o Cuthred no seu eremitério, para me colocar lá
como seu criado. E, na altura, eu não sabia nada acerca de nenhum
de vocês e nem queria saber, e não ia discutir com o que me
proporcionava uma vida confortável e um refúgio seguro até eu
poder fazer melhor. Foi o meu ato, o que ainda aumenta mais a
pena, que poderia ter provocado o pior e a árvore caiu sobre ti e
pregou-te no riacho, por eu ter feito isso tu ficaste a coxear e
aprisionado aqui, apesar daquela escorregadela ter sido
espontânea, eu não lhe voltei a tocar. Portanto, agora sabes —
disse Hyacinth —, e se achares necessário arrancar-me a pele por
causa disso, eu não levantarei uma mão para o impedir e se me
expulsares depois disso, eu irei — ergueu uma mão na direção da
mão de Annet e acrescentou simplesmente —, mas não para longe!
Houve uma longa pausa enquanto os dois ficaram sentados
olhando-o fixamente, intensa e silenciosamente e Annet observava-
os não menos apreensivamente, todos eles retendo o seu próprio
julgamento. Ninguém se insurgira contra ele, ninguém interrompera
esta confissão meio desafiadora. A verdade de Hyacinth foi usada
como um punhal e a sua humildade rasou muito de perto a
arrogância. Se ele estava envergonhado, não o mostrava na sua
cara. Contudo, podia não ter sido fácil despir-se assim com a
consideração e generosidade que o pai e a filha lhe tinham
mostrado. Se ele não tivesse falado, obviamente Annet não teria
dito uma palavra. E ele não tinha suplicado, nem tentara nenhuma
atenuante. Estava preparado para receber o que era devido sem
queixas. Era de se duvidar se algum confessor, por muito eloquente
ou terrível, conseguisse alguma vez fazer com que esta criatura
orgulhosa se penitenciasse mais do que isto.
Eilmund estremeceu, colocando os seus largos ombros mais
descontraidamente contra a parede e exalou um grande e
tempestuoso fôlego.
— Bem, se fizeste com que a árvore caísse sobre mim, também a
içaste de cima de mim. E se pensas que eu entregaria de volta um
servo fugitivo à escravatura, por ele me ter pregado algumas
partidas, não estás bem familiarizado com o meu tipo simples. Acho
que o susto que te preguei naquele dia foi todo o castigo de que tu
precisavas. E desde aí não me fizeste mais mal nenhum, pois de
tudo o que eu ouvi dizer tem havido sossego nos bosques desde
esse dia. Duvido que a senhora esteja satisfeita com o que obteve.
Mostra a tua sensatez e fica onde estás.
— Eu afirmei — disse Annet, sorrindo com confiança — que não
retaliarias. Eu nunca disse uma palavra, eu sabia que ele haveria de
falar por si. E o Irmão Cadfael sabe agora que Hyacinth não é
nenhum assassino, bem como o pior a seu respeito. Não há aqui
ninguém que o vá trair.
Não, nem um! Mas Cadfael manteve-se sentado de certo modo
ansiosamente, pensando no melhor que se poderia fazer agora.
Certamente que a traição seria impossível, mas a caça continuaria e
podia bem voltar a revirar todos estes bosques e entretanto, Hugh
na sua natural concentração motivada por esta busca, podia estar a
perder toda a possibilidade de encontrar o verdadeiro assassino. Até
mesmo Drogo Bosiet tinha direito à sua justiça, contudo ele infringia
os direitos de outros. Ocultando de Hugh a garantia e a prova da
inocência de Hyacinth, podia estar a atrasar a nova avaliação que
colocaria em movimento a perseguição do culpado.
— Confias em mim e deixas-me contar ao Hugh Beringar o que
me contaste? Permite-me ausentar-me — insistiu Cadfael
apressadamente, vendo as caras deles endurecidas de
consternação —, para lidar com ele privadamente...
— Não! — Annet colocou a sua mão possessivamente sob o
ombro de Hyacinth, ardendo como um fogo agitado. — Não, não
pode entregar! Confiamos em ti, não pode nos abandonar.
— Não, não, não é isso! Eu conheço bem o Hugh, ele não
entregaria de boa vontade um servo feudal para ser mal tratado, ele
é a favor da justiça até mesmo antes da lei. Deixa-me contar-lhe
apenas que o Hyacinth está inocente, e mostrar-lhe a prova. Não
preciso de dizer nada acerca de como é que o sei ou onde é que ele
está, o Hugh acreditará em mim. Então ele poderá suspender a sua
busca e deixar-te em paz, até ser seguro tu apareceres e falares
abertamente.
— Não! — gritou Hyacinth. de pé num movimento selvagem e
ligeiro, os seus olhos duas chamas amarelas de alarme e rejeição.
— Nem uma palavra dirigida a ele, nem uma palavra! Se
soubéssemos que iria vê-lo, nunca teríamos contado. Ele é o xerife,
ele deve tomar o lado de Bosiet, ele tem feudos, ele tem servos
seus. acha que ele alguma vez se colocaria do meu lado contra o
meu suserano legal? Eu seria arrastado de volta até os pés de
Aymer e enterrado vivo na sua prisão.
Cadfael virou-se para Eilmund em busca de ajuda.
— -Juro-te que consigo levantar esta suspeita do rapaz, falando
com o Hugh. Ele acreditará na minha palavra e se afastará da caça,
retirará seus homens ou os enviará para outro lado qualquer. Ainda
tem o Richard para encontrar; Eilmund, tu conheces o Hugh
Beringar para não duvidar da sua justiça.
Mas não. Eilmund não o conhecia, não como Cadfael o conhecia.
O couteiro abanava a cabeça duvidosamente. Um xerife é um xerife,
comprometido com a lei e a lei é rígida e com contrapeso, ao todo
contra o camponês e o servo e o homem sem terra.
— Ele é um homem decente, justo, suficientemente seguro —
disse Eilmund —, mas eu não me atrevo a arriscar a vida deste
rapaz com nenhum oficial do rei. Não, deixa-nos ficar como
estamos, Cadfael. Não digas nada a nenhum homem, não até o
Bosiet chegar e partir.
Estavam todos unidos contra ele. Fez o seu melhor,
argumentando calmamente como seria bom saber que a caça não
continuaria contra Hyacinth, que a sua inocência, uma vez
comunicada em privado a Hugh, libertaria as forças da lei para
procurar noutro lugar o assassino de Drogo, e também permitir-lhes
aumentar a sua busca por Richard mais exaustivamente, e com
mais recursos, através das florestas onde a criança tinha
desaparecido. Porém, eles também tinham os seus argumentos e
estes tinham fundamentos.
— Se dissesse ao xerife, mesmo que em segredo — disse Annet
—, e se ele acreditasse em si, ainda teria de lidar com o Bosiet. O
homem do seu pai dirá que é certo e sabido que o fugitivo está em
alguma parte por aqui escondido, seja assassino ou não. Utilizará
cães, se o xerife retirar os seus homens. Não, não diga nada a
ninguém, ainda não. Espere até eles desistirem e irem para casa.
Então avançaremos. Prometa! Prometa-nos silêncio até lá!
Não havia nada a fazer acerca disso. Ele prometeu. Eles tinham
confiado nele e contra a sua proibição absoluta, ele não poderia
escapar. Suspirou e prometeu.
Era muito tarde quando por fim se levantou, dada a sua palavra,
para iniciar a cavalgada noturna de regresso à abadia. Também
fizera uma promessa a Hugh, nunca imaginando quão difícil seria
mantê-la. Dissera que se tivesse alguma coisa para contar, Hugh o
saberia antes de qualquer outro. Um arranjo de palavras subtil,
embora sincero, através do qual uma mente tortuosa poderia
encontrar várias fugas; mas o que ele dissera fora tão óbvio para
Hugh como para Cadfael. E agora ele nada podia fazer. Ainda não,
não até Aymer Bosiet se tornar impaciente, até contar os custos da
sua vingança e achasse melhor ir para casa gozar, em vez disso, a
sua nova herança.
Na entrada, virou-se para perguntar a Hyacinth uma última
questão, um pensamento repentino.
— E o Cuthred? Com vocês os dois a viverem tão perto... ele
participou em todos os estragos que fizeste na floresta de Eilmund?
Hyacinth olhou fixa e gravemente para ele, com uma surpresa
moderada, os seus olhos âmbar abertos e cândidos.
— Como poderia ele? — disse simplesmente. — Ele nunca sai do
seu próprio recinto.
Aymer Bosiet entrou a cavalo no grande pátio da abadia, por volta
do meio-dia do dia seguinte, com um jovem lacaio atrás de si. O
Irmão Denis, o hospitalário, tinha ordens para o trazer à presença do
Abade Radulfus assim que chegasse, pois o abade estava pouco
disposto a delegar em qualquer outro a tarefa de lhe dar as notícias
da morte do seu pai. Isto foi conseguido com uma delicadeza para a
qual, ao que parecia, não havia necessidade. O filho despojado
sentou-se silenciosamente revolvendo as notícias e todas as suas
implicações a longo prazo, e, tendo aparentemente digerido e
chegado a termo com elas. Expressou o seu pesar filial muito
convenientemente, mas com a sua mente ainda empenhada em
questões laterais; uma mente astutamente calculista, por detrás de
uma cara menos poderosa e brutal que a do seu pai, mas
mostrando pouca evidência de sofrimento. Franziu a testa acerca do
acontecimento, pois envolvia deveres problemáticos, tais como
comissionar um caixão, carroça e ajuda extra para a viagem de
regresso a casa, e fazendo a melhor utilização possível do seu
tempo aqui. Radulfus já mandara Martin Bellecote, o carpinteiro-
mestre da cidade, fazer um caixão de interior simples para o corpo,
o qual ainda não estava coberto, visto que sem dúvida, Aymer
haveria de querer olhar para a cara do seu pai por uma última vez e
despedir-se dele.
— Ele não encontrou o nosso servo fugitivo? — perguntou,
categoricamente e com intenção astuta, o filho despojado depois de
dar voltas ao assunto na sua mente.
— Não — disse Radulfus. e se estava chocado conteve-se para
reprimir o choque. — Foi sugerido que o jovem rapaz estaria na
vizinhança, mas sem qualquer certeza que o jovem em questão
fosse realmente o que era perseguido. E eu agora acredito que
ninguém sabe para onde ele foi.
— O assassino do meu pai está a ser perseguido?
— Muito arduamente, com todos os homens do xerife.
— O meu servo também, creio eu. Quer seja quer não — disse
Aymer severamente —, os dois acabam por ser o mesmo. A lei tem
o dever de fazer tudo o que puder para recuperar minha propriedade
e me entregar. O velhaco só dá chatices, mas é valioso. Por
nenhum preço, eu estaria disposto a libertá-lo — cuspiu as palavras
com um estalar de dentes grandes e fortes. Era igualmente alto e
com uma estrutura óssea semelhante à do seu pai, mas possuía
menos carne e apesar da sua cara ser mais magra, tinha os
mesmos olhos frívolos de uma cor indeterminada e opaca, que
aparentavam uma superfície sem profundidade. Talvez uns trinta
anos de idade e agradavelmente consciente do seu novo estatuto. A
satisfação da propriedade já começara a vibrar debaixo da pesada
tonalidade da sua voz. Já falava na “minha propriedade”. Esse era
um aspecto da sua dor que certamente não lhe escapara.
— Vou querer falar com o xerife acerca deste rapaz que se diz
chamar Hyacinth. Se ele fugiu, isso não faz com que seja ainda
mais provável que seja ele, de fato, o Brand? E que ele teve a ver
com a morte do meu pai? Existe já uma grande dívida contra ele. Eu
não tenciono deixar tal dívida passar sem ser paga.
— Isso é uma questão para a lei secular, não para mim — disse
Radulfus com um civismo frio. — Não existem provas de quem
matou o suserano Drogo, a questão encontra-se em aberto. Mas o
homem está a ser procurado. Se quiser me acompanhar, levo-o até
a capela onde o seu pai repousa.
Aymer permaneceu ao lado do caixão aberto com o seu interior
drapeado e a luz das velas altas, que ardiam à cabeça e aos pés de
Drogo, não mostravam grandes alterações na cara do seu filho. Ele
olhou para baixo com as sobrancelhas franzidas, mas era o franzir
de pensamentos atarefados, em vez de pesar ou raiva perante tal
morte.
— Sinto amargamente — disse o abade — que um hóspede na
nossa casa chegue a um fim tão maléfico. Mandamos rezar missas
pela sua alma, mas outras emendas estão fora do meu âmbito.
Espero que ainda possamos ver juntos a justiça a ser feita.
— Certamente! — concordou Aymer, mas tão ausente, que era
óbvio que a sua cabeça estava a pensar noutras coisas. — Não
tenho outra opção senão levá-lo para casa para o funeral. Mas não
posso ir ainda. Esta busca não pode ser abandonada tão depressa.
Tenho de ir até a cidade esta tarde e ver esse carpinteiro-mestre,
mandá-lo fazer um caixão exterior, forrá-lo com chumbo e selá-lo.
Uma pena, bem podia ser enterrado aqui, mas os homens da nossa
casa estão todos enterrados em Bosiet. A minha mãe não ficaria
satisfeita de outro modo.
Disse-o com uma nota de humilhação nas suas meditações, mas
devido à necessidade de transportar para casa um cadáver, ele
podia ficar por aqui durante mais alguns dias, para continuar a sua
caça ao servo fugitivo. Mesmo como as coisas estavam, ele
pretendia aproveitar o máximo do seu tempo e Radulfus não podia
deixar de sentir que ele se queria vingar mais do servo, do que do
assassino do seu pai.
Por acaso, Cadfael atravessava o pátio quando o recém-chegado
voltou a montar o cavalo ao princípio da tarde. Era o seu primeiro
vislumbre do filho de Drogo e Cadfael parou e colocou-se de lado
para o estudar com interesse. A sua identidade nunca esteve em
questão, pois a semelhança estava lá, apesar de existir algo de
temperado neste rapaz mais novo. Os olhos curiosamente
superficiais, tão vilmente diminuídos pela falta de sombra e de forma
que as órbitas covas fornecem, tinham a mesma absoluta
malevolência, e a forma como tratava o seu cavalo enquanto
montava era de longe mais delicada do que os seus modos em
relação ao seu lacaio. A mão que segurava o seu estribo foi
afastada para o lado pelo cabo do seu chicote assim que se sentou
na sela e Warin recuou do golpe tão subitamente, que o cavalo,
assustando-se, recuou sob o pavimento de pedras, atirando a sua
cabeça e resfolegando. O cavaleiro agitou o chicote sobre os
ombros do lacaio tão prontamente e com tão pouca raiva ou
desprezo aparente, que era óbvio que este era o pagamento comum
dos seus procedimentos aos seus subalternos. Levou consigo
apenas o jovem lacaio para a cidade, ele próprio montando o cavalo
do seu pai, o qual estava descansado e ansioso por exercício. Sem
dúvida, Warin estava demasiado satisfeito por ser deixado para trás,
ficando em paz durante umas quantas horas.
Cadfael alcançou o lacaio e acompanhou a sua passada
mantendo-se a seu lado, enquanto este regressava aos estábulos.
Warin olhou à sua volta, mostrando-lhe uma nódoa negra que se
desvanecia rapidamente, mas que se mantinha amarela como
pergaminho velho, e uma boca que ainda se alongava pela marca
da cicatriz num dos cantos.
— Não te vi durante estes dois dias — disse Cadfael, observando
os vestígios da violência antiga e alerta face a novos vestígios. —
Vem comigo até o jardim das ervas e deixa-me revestir novamente
esse corte. Por certo, ficará longe uma hora ou duas, suponho, e tu
poderás respirar facilmente. E te faria bem outro tratamento, apesar
de eu ver que este está agora limpo.
Warin hesitou apenas por um momento.
— Eles levaram os dois cavalos que estavam repousados e
deixaram-me os outros para que eu tratasse deles. Mas podem
esperar um pouco — e manteve-se de livre vontade ao lado de
Cadfael. A sua magra estatura um pouco murcha antes do tempo,
parecendo expandir-se na ausência do seu suserano. Na agradável
frescura aromática da oficina, debaixo das ervas que ondulavam
ligeiramente por cima da sua cabeça, sentou-se aliviado e satisfeito
por deixar a sua ferida ser lavada e untada, não mostrando pressa
nenhuma em voltar para os seus cavalos, até mesmo quando
Cadfael já tratara dele.
— Ele ainda está mais ansioso do que o velho estava por
perseguir o Brand — disse ele, abanando uma cabeça impotente
mas solidária com a sorte do seu antigo vizinho. — Dividido de duas
maneiras, entre querer enforcá-lo e querer matá-lo de trabalhar por
ganância, e não é o fato do Brand ter morto ou não o velho
suserano que irá determinar onde param as modas, pois não houve
ali também grande perda de amor. Não havia muito amor em todo
aquele lar para ser ganho ou perdido, e sim indivíduos que se
odeiam uns aos outros, todos eles.
— Existem mais? — perguntou Cadfael interessado. — Drogo
deixou uma viúva?
— Uma pobre senhora pálida, toda a sua essência esgotada —
respondeu Warin -. mas melhor nascida do que os Bosiet e com
uma família poderosa, por isso, têm de a usar melhor do que usam
todos os outros. E Aymer tem um irmão mais novo. Não tão vistoso,
nem tão violento, mas mais perspicaz e mais capaz de desvios e
rodeios. Estes são todos eles, mas já chega.
— Nenhum deles é casado?
— O Aymer já teve uma mulher, mas ela era uma coisinha doente
e morreu jovem. Existe uma herdeira não muito longe de Bosiet, por
quem ambos agora anseiam, apesar de na verdade ansiarem as
suas terras. E se Aymer é o herdeiro, Roger é o que mais agradável
se mostra. Não que dure muito, quando ele consegue levar a dele
avante.
Parecia uma pobre perspectiva para a moça qualquer dos dois
que levasse a melhor na competição, mas também mostrava uma
razão possível para que Aymer não vadiasse por aqui durante
demasiado tempo, ou poderia perder as suas vantagens em casa.
Cadfael sentiu-se encorajado. A ausência de uma honra recém-
herdada até podia ser perigosa se houvesse um irmão mais novo,
mais esperto e traiçoeiro deixado para trás, para fazer um uso
premeditado das suas oportunidades. Aymer teria isso em mente,
até mesmo quando concedesse de má vontade em desistir da sua
perseguição vingativa a Hyacinth. Cadfael ainda não conseguia
pensar no rapaz como Brand, o nome que ele escolhera para si
próprio encaixava muito melhor.
— Às vezes penso — disse Warin, recordando-se
inesperadamente da mesma pessoa — para onde Brand terá
realmente ido? Sorte a dele que nós lhe demos alguma distância,
não que o meu senhor o pretendesse!, pois a princípio eles
pensaram que um homem com a perícia que ele possuía nas pontas
dos dedos se dirigiria certamente para Londres, e nós
desperdiçamos uma semana ou mais a revistar todas as estradas
para sul. Já ultrapassáramos o Tamisa, quando um dos seus
homens veio atrás de nós, dizendo que Brand fora visto em
Northampton. Se ele tinha partido em direção a norte, Drogo achava
que ele iria continuar, e provavelmente virar para oeste à medida
que prosseguia e dirigir-se para Gales. Será que ele chegou lá?
Nem mesmo Aymer o perseguira para além da fronteira.
— E tu não voltaste a avistá-lo ao longo do percurso? —
perguntou Cadfael.
— Não, nem um rastro, mas nós estamos longe de terras onde
alguém o pudesse conhecer e nem toda a gente se quer meter em
tal assunto. E certamente ele terá adotado outro nome — Warin
levantou-se, refrescado mas relutante por ter de voltar para os seus
deveres. — Espero que possa arranjar um bom lugar.
Independentemente daquilo que os Bosiet dizem, ele era um rapaz
decente.

O Irmão Winfrid varria as folhas caídas sob as árvores do pomar,


pois o Outono úmido fizera com que elas caíssem antes de terem
adquirido a sua viva coloração sazonal, numa chuva verde suave
que apodrecia lentamente na relva. Cadfael deu por si sozinho e
sem ocupação depois de Warin o ter deixado. Mais uma razão para
se sentar calmamente e pensar — e também uma oração ou duas
não seriam demais, pelo rapaz que desaparecera à pressa no seu
pônei preto na sua autodesignada, louca e generosa missão, pois o
temerário e jovem rapaz pelo qual ele partira para salvar mesmo
que à forca do maligno fidalgote separou-se sem tempo para
penitência ou absolvição, e amargamente necessitado de uma graça
divina.
O sino para o serviço de Vésperas despertou-o das suas
meditações e Cadfael dirigiu-se de boa vontade para o atender,
através dos jardins e ao longo do pátio para o claustro e a porta sul
da igreja, para chegar cedo ao seu lugar. Nos últimos dias, perdera
muitos serviços e estava necessitado da segurança da irmandade.
Havia sempre algumas das pessoas do Foregate nos serviços de
Vésperas, as velhas e devotas mulheres que habitavam algumas
das casas gratuitas da abadia, velhos casais reformados e
contentes por preencher o seu tempo de lazer e encontrar os seus
amigos na igreja, e frequentemente hóspedes da casa que
regressavam das atividades do dia. Cadfael ouviu-os agitarem-se
por detrás do altar da paróquia, nos vastos espaços da nave.
Reparou que Rafe de Conventry viera até o claustro e escolhera um
lugar do qual podia olhar por dentro, para além do altar da paróquia
e na direção do coro. Ao ajoelhar-se para rezar, ainda mantinha
aquela compostura calma que o rodeava, um homem seguro e em
paz com o seu próprio corpo e envergando o seu inescrutável rosto
mais como um escudo do que como uma máscara. Então ainda não
se deslocara para contactar com aqueles seus fornecedores em
Gales. Ele era o único adorador do salão dos hóspedes. Aymer
Bosiet ainda devia estar na cidade ocupado com os assuntos do
funeral, ou então a bater os esconderijos no campo e na floresta, em
alguma parte atrás do seu fugitivo.
Os irmãos entraram e sentaram-se nos seus lugares, os noviços e
os rapazes de escola seguindo-os. Existia ali uma recordação
amarga, pois em número eram menos um. Não havia como
esquecer Richard. Até ele ser recuperado não haveria tranquilidade
de espírito, nem leveza de coração para nenhuma daquelas
crianças.
No final do serviço de Vésperas, Cadfael deixou-se ficar no seu
lugar, deixando a procissão de irmãos e noviços sair em fila do
claustro, sem ele. O ofício tinha a sua beleza e consolação, mas a
solidão que se seguia era igualmente saudável no seu silêncio.
Depois dos ecos da música se terem desvanecido, estar neste local
sozinho a essa hora da noite era um bálsamo especial, quer fosse
por causa da suave luz cor de pomba ou pela sensação de
amplificação que parecia aumentar a alma para habitar e preencher
os últimos arcos da abóbada, quando uma única gota de água se
torna um oceano, no qual ela cai. Não havia melhor altura para uma
oração profunda e Cadfael sentiu a necessidade disso. Em especial,
pelo rapaz, igualmente solitário em alguma parte, talvez assustado.
Foi a Saint Winifred que Cadfael dirigiu a sua súplica, um galês
invocando uma santa galesa e da qual ele se sentia muito próximo,
e por quem tinha uma afeição quase familiar. Ela própria, pouco
mais do que uma criança no seu martírio, não deixaria que nenhum
mal ocorresse a outra criança ameaçada.
O Irmão Rhun, o qual ela curara, aparava cuidadosamente as
velas perfumadas que fizera para o seu santuário quando Cadfael
se aproximou, mas este virou a sua jovem cabeça loura na direção
do suplicante, lançou-lhe um rápido olhar com os seus olhos azul-
marinho os quais pareciam irradiar a sua própria luz inata, sorriu e
afastou-se. Não para se demorar e completar o seu trabalho quando
as orações terminassem, não para se esconder nas sombras e
observar, mas para longe da percepção dos outros, em pés ágeis e
silenciosos que outrora coxeavam doridos, deixando assim toda a
abóbada expectante preparada para receber o apelo nas suas mãos
entrelaçadas e canalizá-la para o alto.
Cadfael ergueu-se, confortado, sem saber nem perguntar por quê.
No exterior, a luz desvanecia-se rapidamente e no interior, a
lanterna do altar e as velas perfumadas de Saint Winifred criavam
pequenas ilhas de pura radiância na grande obscuridade
envolvente, como uma capa quente contra o frio do mundo exterior.
A graça divina que acabara de tocar Cadfael tinha um alcance
suficientemente grande para encontrar Richard onde quer que ele
estivesse, entregá-lo se ele fosse um prisioneiro, consolá-lo se ele
estivesse assustado, curá-lo se ele estivesse ferido. Cadfael saiu do
coro, contornou o altar e dirigiu-se à nave, sensibilizado por ter feito
o que era mais necessário e satisfeito por esperar paciente e
passivamente até a graça se manifestar.
Parecia que Rafe de Coventry também tivera orações solenes e
pessoais para oferecer, pois nesse momento erguia-se na vazia e
silenciosa nave, enquanto Cadfael a atravessava. Reconheceu o
homem que encontrara no pátio do estábulo com um sorriso
sombrio mas amigável, o qual surgiu brevemente e desapareceu
dos seus lábios, mas que se demorou amavelmente no seu olhar.
— Boa tarde, Irmão! — semelhantes em altura e no cumprimento
da passada, acompanharam-se facilmente um ao outro, enquanto
se viravam para a arcada sul.
— Espero ser desculpado — disse Rafe — por vir à igreja de
botas, esporas e empoeirado da cavalgada, mas cheguei tarde e
não tive tempo para me tornar apresentável.
— Será sempre bem-vindo, venha de que maneira vier — disse
Cadfael. — Nem toda a gente que se alberga conosco aparece na
igreja. Tive poucas oportunidades de vê-los nestes dois dias, tenho
estado fora para assuntos pessoais. Fez negócios de sucesso por
estas bandas?
— Melhores, pelo menos, do que um dos seus hóspedes — disse
Rafe, lançando um olhar de lado para a estreita porta que conduzia
à capela mortuária. — Mas não, eu não diria que encontrei aquilo de
que precisava. Ainda não!
— O filho dele está aqui — comentou Cadfael, seguindo o olhar.
— Chegou esta manhã.
— Eu o vi — disse Rafe. — Ele voltou da cidade mesmo antes do
serviço de Vésperas. Pelo olhar e pelo som da sua voz, também não
se deu lá muito bem, com o que quer que seja que ande a tratar.
Suponho que ande atrás de um homem?
— Anda. Do jovem rapaz sobre o qual eu lhe contei — respondeu
Cadfael secamente, e estudou o seu companheiro de lado,
enquanto atravessavam o altar iluminado.
— Sim, lembro-me. Então ele voltou de mãos vazias, sem
nenhum pobre diabo amarrado ao seu estribo de cabedal — mas
Rafe permanecia tolerantemente indiferente face a jovens rapazes e
certamente face ao clã Bosiet. Os seus pensamentos estavam em
alguma parte noutro lugar. Na caixa das esmolas junto a um dos
lados do altar, parou por impulso e enfiou uma mão na bolsa presa à
sua cintura, retirando uma mão cheia de moedas. Uma delas
escorregou por entre os seus dedos, mas não parou imediatamente
para a apanhar e deitou três das suas companheiras para dentro da
caixa, antes de se virar para procurar pela moeda perdida. Por essa
altura, já Cadfael a apanhara do chão lajeado e mantinha-a na sua
palma aberta.
Se não estivessem num local onde as velas do altar lançavam
uma luz clara, ele não teria encontrado nada de estranho. Uma
moeda de prata como outras moedas de prata, a moeda universal.
Contudo, não como qualquer outra que ele tivesse visto
anteriormente nas caixas de esmolas. Era luminosa e imaculada,
mas mediocremente cunhada e leve. Desajeitadamente formada em
redor da pequena cruz de um dos lados o nome do cunhador
parecia ser Sigebert, um forjador de que Cadfael não se lembrava
de ter ouvido falar nos condados centrais de Inglaterra. E, quando
ele a virou, a cabeça que surgia em relevo não era o perfil familiar
de Stephen, nem o do falecido Rei Henry, mas inconfundivelmente o
de uma mulher de touca e com coroa. Dificilmente necessitaria do
seu nome escrito numa das extremidades: “Matilda Dom. Ang.”, o
nome formal e título da imperatriz. Parecia que a sua cunhagem era
de peso deficiente.
Olhou para cima deparando com Rafe a observá-lo fixamente com
um pequeno sorriso, mais irônico do que divertido. Houve um
momento de silêncio, enquanto se observavam um ao outro.
Depois:
— Sim — disse Rafe —, tem razão. Seria notado depois de eu
partir. Mas tem valor, até mesmo aqui. Os seus pedintes não a
rejeitarão porque foi cunhada em Oxford.
— E não há muito tempo — disse Cadfael.
— Não há muito tempo.
— O meu maior pecado — continuou Cadfael pesarosamente — é
a curiosidade — estendeu a moeda, e Rafe pegou nela com uma
expressão grave, e deliberadamente deitou-a na caixa das esmolas
junto das suas companheiras. — Mas eu não sou nenhum
mentiroso. Nem sequer uso a aliança de qualquer homem honesto
contra ele. É uma pena que tenham de existir facções, e homens
decentes a lutarem uns com os outros e todos eles convencidos de
que têm esse direito. Por mim, podes ir e vir livremente.
— E a tua curiosidade não se estende — murmurou Rafe
suavemente, o sorriso sombrio perceptível na sua voz — quanto ao
que um homem assim está a fazer aqui. tão longe da batalha? Vem,
eu tenho certeza que adivinhaste o que eu sou. Talvez penses que
senti que seria mais inteligente sair de Oxford antes que fosse tarde
demais?
— Não — disse Cadfael categoricamente —, isso nunca me
passou, nem nunca passará pela minha cabeça. Não acerca de ti! E
porque haveria um homem tão discreto quanto a isso aventurar-se
para norte em direção ao país do rei?
— Não. decerto isso demonstra muito pouca sabedoria —
concordou Rafe. — O que calcularias então?
— Só consigo lembrar-me de uma possibilidade — disse Cadfael
grave e calmamente. — Ouvimos falar por aqui de um homem que
não fugiu de Oxford de livre vontade enquanto ainda havia tempo,
mas que foi enviado. Para tratar de assuntos da sua senhora, e que
transportava algo que valia bem a pena roubar. E que ele não
conseguiu chegar longe, pois o seu cavalo foi encontrado a vaguear,
manchado de sangue, e tudo o que ele transportava desaparecera,
e o próprio homem também desaparecera da face da terra — Rafe
estava a observá-lo atentamente, a sua cara impenetrável como
sempre, o mesmo sorriso sombrio, mas imperturbável. — Tal
homem seria muito semelhante a ti — disse Cadfael, — podia muito
bem ter vindo tão longe até o norte de Oxford, em busca do
assassino de Renaud Bourchier.
Os olhos de ambos mantiveram-se fixos um no outro, aceitando
mutuamente, até mesmo aprovando, aquilo que viam.
— Não — respondeu, lentamente e com determinação.
Rafe de Conventry estremeceu e suspirou, quebrando o feitiço do
breve mas profundo silêncio que se seguiu.
— Peço desculpa, Irmão, mas não, não me interpretaste bem.
Não estou à procura do assassino de Bourchier. Era uma boa ideia,
quase desejo que fosse verdade. Mas não é.
E, dizendo isto, dirigiu-se para a porta sul, na direção do
crepúsculo que começava a surgir sob o claustro, e o Irmão Cadfael
seguiu em silêncio, não perguntando nem sugerindo nada mais.
Sabia reconhecer a verdade quando a ouvia.
10

Foi por volta da mesma hora em que Cadfael e Rafe de Coventry


emergiam da igreja depois do serviço de Vésperas que Hyacinth
saiu furtivamente da cabana de Eilmund, e fez o seu percurso
através da mais profunda cobertura em direção ao rio. Passara todo
o dia enclausurado entre paredes, pois os homens da guarnição
tinham estado novamente a vasculhar a floresta e, apesar da sua
passagem ter sido rápida e superficial, pois o seu objetivo era levar
a busca mais para o interior do campo e apesar de eles conhecerem
Eilmund e não terem qualquer motivo para investigarem a sua
herdade uma segunda vez, era ainda possível que enquanto
passavam o visitassem, para lhe perguntar casualmente se alguma
coisa lhe despertara a atenção. Hyacinth não aceitava de boa
vontade ficar fechado dentro de portas, nem sequer para se
esconder. À noite, começou a irritar-se com a sua prisão, mas por
essa altura já os caçadores regressavam, abandonando a caça até
a manhã seguinte, e ele estava livre para caçar um pouco por conta
própria.
Pois apesar de toda a prudência e medo que sentia por si próprio
e os quais admitia com a sua infalível e temível honestidade, não
podia deixar de pensar em Richard, que viera a correr para o avisar,
tão galante e irrefletidamente. Se não fosse por isso, o rapaz nunca
se teria colocado a si próprio em perigo, mas por que existiria perigo
para ele nos seus próprios bosques, entre a sua própria gente?
Numa Inglaterra conturbada, existiam sem dúvida homens sem lei
que viviam como selvagens, mas este condado passara quase
incólume durante mais de quatro anos de guerra e parecia gozar de
uma paz e ordem inigualáveis mais a sul, e a cidade encontrava-se
apenas a pouco mais de onze quilômetros de distância, sendo o seu
xerife jovem e ativo, e ainda mais tanto quanto um xerife pode ser,
popular com o seu povo. E quanto mais Hyacinth pensava nisso,
mais claro lhe parecia que a única ameaça para Richard de que ele
alguma vez ouvira falar era a ameaça da Dama Dionísia de o casar
com os dois feudos que ela cobiçava. Por isso, ela persistira de
todas as maneiras de que se podia lembrar. Hyacinth fora outrora
um dos seus instrumentos e não poderia esquecer-se disso. Ela tem
de ser a força por detrás do desaparecimento do rapaz.
Verdade, o xerife fora a Eaton, procurara em cada canto e não
encontrara nenhum vestígio, nem ninguém num lar dedicado ao
rapaz, capaz de lançar sequer a mais pequena das suspeitas acerca
da inocência indignada de Dionísia. Ela não possuía outra
propriedade onde pudesse esconder quer o rapaz quer o pônei. E
apesar de Fulke Astley poder estar disposto a conspirar, achando
que assim teria uma boa hipótese de afiançar Eaton, como ela teria
de deitar as mãos à herança da sua filha, apesar disso Wroxeter
fora revirado meticulosamente e sem qualquer sucesso.
Hoje a caça continuara e, de acordo com tudo o que Annet reunira
dos batedores que regressavam, continuaria igualmente de modo
implacável na manhã seguinte, mas ainda não alcançara Leighton,
três quilômetros a jusante. E apesar de Astley e da sua família
preferirem viver em Wroxeter, o feudo mais remoto de Leighton
também fazia parte das suas propriedades.
Era o único ponto de partida que Hyacinth conseguia encontrar e
valia a pena tentar. Se Richard tivesse sido apanhado nos bosques
por algum dos homens de Astley, ou por aqueles de Eaton que
estavam dispostos a servir do lado de Dionísia, talvez tivessem
pensado que seria melhor removê-lo para tão longe quanto
Leighton, em vez de tentarem escondê-lo mais perto de casa. Além
disso, se ela ainda pretendia obrigar o rapaz a casar, existiam
formas de se arrancarem as respostas certas até das crianças mais
teimosas, mais através de malícia do que através de terror, mas ela
precisava de um padre, e Hyacinth estivera na aldeia de Eaton o
tempo suficiente para saber que o Padre Andrew era um homem
honesto e não seria um bom instrumento para tal propósito. O padre
em Leighton, não tão bem familiarizado com os pormenores do
caso, poderia ser mais prestável.
Pelo menos, era algo que podia ser testado. Não valia a pena
Eilmund aconselhá-lo amável e sensatamente a ficar onde estava e
não se arriscar a ser capturado; pois até Eilmund compreendia e
aprovava aquilo a que chamava loucura. Annet não tentara dissuadir
Hyacinth, só lhe fornecera um casaco preto e muito usado de
Eilmund, com um capuz negro que lhe encobria a cara e que lhe
ficava demasiado largo, mas o qual era excelente para se deslocar
invisivelmente na noite.
Entre a floresta e os meandros do rio, a jusante da azenha, dos
locais de pesca e das escassas cabanas que os serviam, os vastos
prados de água estendiam-se, a luz ainda aí permanecendo, e uma
tênue névoa erguia-se do solo ocultando o verde, e serpenteava
sinuosamente tal uma serpente prateada ao longo do rio. Todavia,
ao longo da margem norte, a floresta continuava, a meio caminho
para Leighton e para lá desse ponto, o terreno elevava-se na
direção dos últimos sopés baixos do Wrekin e ele teria de utilizar a
pouca cobertura que sobrava. Porém, aqui onde as árvores e o
prado se encontravam, ele podia deslocar-se rapidamente
mantendo-se dentro da orla dos bosques, mas beneficiando da luz
dos campos abertos, e a quietude, silêncio e o cuidado necessário
dos seus próprios movimentos assegurariam que ele fosse alertado
para a presença de qualquer outra criatura que se movimentasse na
noite.
Já cobrira mais de um quilômetro quando os primeiros pequenos
sons o alcançaram, e ele estacou, permanecendo de ouvidos alerta,
escutando atentamente. Uma única nota metálica, em alguma parte
atrás dele, e arreios que se agitavam ligeiramente. Depois um suave
agitar de arbustos enquanto algo passava, e depois inconfundível,
embora discretamente e ainda a alguma distância, uma voz abafada
sussurrou rapidamente algo que se assemelhava a uma pergunta e,
como surgira, rapidamente se calou. Não uma pessoa no
crepúsculo, mas duas, ou então nem valeria a pena falar? E a
cavalo e mantendo-se à beira do bosque como ele, quando teria
sido de longe mais fácil avançar pelos prados. Cavaleiros da noite,
com tão pouca vontade como ele de serem avistados e dirigindo-se
na mesma direção. Hyacinth esticou as suas orelhas para captar o
som dos cascos, o qual soava surdo e abafado pelas folhas,
tentando determinar a trajetória que eles seguiam através das
árvores. Perto da orla, devido à pouca luz que restava, mas mais
preocupados com o secretismo do que com a rapidez.
Cautelosamente, Hyacinth retirou-se mais para o interior da
floresta e aí permaneceu encoberto e sem se mover, deixando-os
passar. Havia ainda luz suficiente para os transformar em pouco
mais do que contornos sombrios quando eles passaram numa fila
única, primeiro um cavalo alto que surgia como uma palidez
andante, provavelmente de um cinzento claro, transportando no seu
dorso um homem careca e de barba, grande e grosseiro, cujas
dobras do seu capuz caíam em pregas sob os seus ombros.
Hyacinth conhecia a forma e o porte, já vira este mesmo homem
montar e cavalgar como um saco, mas rigidamente sentado na sela,
no funeral de Richard Ludel. O que fazia aqui Fulke Astley durante a
noite, percorrendo o caminho entre os seus próprios feudos de
modo tão furtivo, não através das estradas mas por entre a floresta?
Pois para onde mais poderia ele estar a dirigir-se?
E a figura que o seguia, num atarracado e robusto cavalo de
pernas curtas, era certamente uma mulher e não podia ser outra
senão a sua própria filha, aquela Hiltrude desconhecida que parecia
tão velha e desagradável ao jovem Richard.
Afinal de contas, a missão deles não era assim tão misteriosa. Era
óbvio que eles queriam que o casamento fosse realizado o mais
depressa possível, se tivessem o Richard nas suas mãos. Tinham
esperado durante estes dias até que tanto Eaton como Wroxeter
tivessem sido revistados, mas com a caça a espalhar-se mais
amplamente, não esperariam mais. Qualquer que fosse o risco que
pudessem correr, assim que o casamento fosse uma realidade, eles
poderiam aguentar qualquer dificuldade que se seguisse. Podiam
até dar-se ao luxo de libertar Richard para que este regressasse
para a abadia, pois nada nem ninguém, a não ser a autoridade da
igreja, o poderia libertar de uma esposa.
E assim sendo, o que poderia ser feito para o impedir? Não havia
tempo nem para correr até a casa de Eilmund e fazer com que
Annet levasse uma mensagem ao castelo ou à abadia, ou
diretamente à cidade, e Hyacinth ainda se sentia naturalmente
relutante em atirar ao ar esta hipótese de se manter livre. Mas não
chegava, não havia tempo para isso. Se ele regressasse, quando o
salvamento chegasse, já Richard estaria casado. Talvez ainda
houvesse tempo para descobrir onde é que eles o tinham escondido
e conseguisse levá-lo rapidamente para longe, mesmo debaixo dos
seus narizes. Estes dois não tinham qualquer pressa e a Dama
Dionísia ainda tinha de fazer a curta viagem desde Eaton sem ser
detectada. E o padre, onde teriam eles encontrado um padre
disposto a isso? Nada podia ser feito até um padre lá estar.
Hyacinth abandonou a espessa cobertura das árvores e fez o seu
caminho mais para o interior da floresta, já não tão interessado no
secretismo, mas na velocidade. Com a lentidão que estes cavaleiros
seguiam, ele podia ultrapassá-los no caminho e, neste local, até se
poderia aventurar até a estrada principal se fosse necessário,
arriscando-se a encontrar outros ainda nas suas buscas legais. No
entanto, existia um caminho demasiado próximo da estrada para os
Astleys o preferirem, caminho esse que se fundia na própria
estrada, ao atravessar o cume do planalto. Hyacinth alcançou-o e
correu, veloz e silencioso, sobre o espesso tapete de folhas, as
quais, demasiado úmidas e moles, não faziam qualquer ruído sob os
seus pés.
Assim que se encontrou em campo aberto e mergulhando pela
colina abaixo em direção à aldeia, a qual ainda se encontrava a um
quilômetro e meio de distância, ele voltou a retirar-se para os
campos que mergulhavam no rio e correu abrigando-se sob as
árvores espalhadas, certo agora de que estava à frente de Astley.
Chapinhou pelo pequeno ribeiro que descia do sopé do Wrekin e
que alcançava aqui o Severn, e continuou ao longo da margem do
rio. Uma zona isolada de bosque descia quase até a água e deste
abrigo improvisado, conseguiu ver pela primeira vez a paliçada
baixa do feudo, e os telhados no seu interior, pontiagudos e claros
contra o brilho da água e a palidez do céu.
Constituía um bom sinal o fato de as árvores se aproximarem
tanto da paliçada no lado mais próximo da margem do rio. Hyacinth
lançou-se, correndo de árvore para árvore, e alcançando um
carvalho que estendia os ramos ao longo da barreira, trepou
agilmente para o cimo da paliçada para perscrutar cautelosamente o
interior da cerca. Estava a olhar para a longa fachada traseira da
casa, ao longo dos telhados do celeiro, da vacaria e do estábulo que
limitavam a cerca interior. Seguramente que do lado oposto se
encontrava a galeria inferior, com o seu vestíbulo, quartos e cozinha
sob o piso habitacional e os degraus que conduziam à porta. Deste
lado, não existia qualquer entrada à exceção daquela que dava para
a galeria, bem como uma pequena janela, e essa estava fechada.
Debaixo dela, fora construída uma pequena ala para o exterior, de
forma a aumentar a galeria. O telhado coberto com telhas de
madeira era íngreme e os beirais relativamente baixos. Hyacinth
observou-o pensativamente e debateu-se sobre quão firmes seriam.
Alcançá-las seria fácil, encontrar uma forma de entrar através
delas podia constituir um problema maior. Porém, a fachada traseira
da casa era a única que se encontrava abrigada de qualquer tipo de
observação. Toda a abominável atividade entre Astleys e Ludels
estaria centrada perto da única entrada para o interior da habitação,
do outro lado.
Balançou-se para baixo de modo a ficar pendurado pelas mãos
dentro da paliçada e deixou-se cair num canto sombrio entre o
celeiro e o estábulo. Pelo menos, o deparar com aquela jornada
noturna aliviou-o de um receio. Richard estava certamente aqui,
estava vivo, bem e saudável como o queriam, bem alimentado,
devidamente tratado, possivelmente até mimado mais do que o
habitual na esperança de o bajularem até conseguirem o seu
consentimento espontâneo. De fato, saciado com tudo o que
poderia desejar e que eles lhe forneciam, à exceção da sua
liberdade. E esse era o seu maior alívio. Agora teria de o libertar!
No pátio que começava a escurecer, não se encontrava ninguém.
Hyacinth deslizou suavemente para fora do seu abrigo e contornou
a paliçada emboscando-se entre as sombras, até ter contornado o
canto do lado oriental da casa. Aqui existiam janelas que não
estavam fechadas, com uma luz desmaiada brilhando através delas.
Ele refugiou-se na entrada que conduzia à galeria e esticou as
orelhas para escutar vozes vindas de cima, e pensou ter captado
murmúrios mudos, como se o objetivo fosse manter tudo acerca das
atividades desta noite secreto. Na esquina, onde a escadaria
íngreme que dava para a porta do salão ascendia, havia uma tocha
fixada, sabia-o através da luz bruxuleante que se derramava perante
ele na terra batida através de vislumbres esporádicos. Criados
movimentavam-se por ali, com passos leves e falando em voz baixa.
E o som abafado de cascos dirigindo-se para o pátio. “Chegou a
noiva e o pai dela”, pensou Hyacinth, e considerou por um momento
passageiro como é que a moça se sentiria acerca do acordo, e se
ela não se sentiria tão prejudicada e usada como Richard, e até
mais impotente.
Recuou com alguma pressa ao ouvir as bestas agitarem-se nas
suas estrebarias, pois os lacaios estavam a conduzir os cavalos
para os estábulos que se encontravam do outro lado do pátio,
enquanto ele se mantinha à escuta atrás da árvore. A ala da galeria
que sobressaía fornecia uma cobertura naquele canto.
Ele contornou-o e encostou-se no escuro ângulo que as paredes
por trás da obstrução formavam, ao ouvir um único criado a conduzir
ambas as montadas.
Não se podia mover até o homem se ir embora, e o tempo
perseguia-o como um cão de um pastor persegue um lobo. Porém,
o criado tinha pressa e não perdeu tempo com as suas tarefas,
talvez desejando a sua cama, pois começava a ficar tarde. Hyacinth
ouviu a porta do estábulo bater e os passos rápidos correndo para lá
da esquina da casa. Só então, quando pôde recuar e voltar a dar
uma vista de olhos a esta face quase cega do feudo, é que Hyacinth
observou o que perdera anteriormente. Através da junção das
persianas, via-se uma fina faixa de luz. Ainda mais perceptível,
numa das tábuas perto desta junção existia um pequeno círculo de
luz, onde um nó da madeira caíra e deixara um buraco. Porque
haveria este quarto das traseiras de estar fechado e iluminado, a
não ser que tivesse um hóspede que tivesse de ser mantido
escondido e em segurança? Hyacinth duvidava que o espaço entre
os pinázios de pedra fosse suficientemente largo para deixar passar
um homem, mas talvez fosse suficientemente largo para um rapaz
de dez anos de idade, que até era bem pequeno para a sua idade.
Com aquele alpendre colocado por debaixo da janela, eles não
queriam que ele fugisse, nem haveriam de querer qualquer pessoa
curiosa lá dentro.
Podia, pelo menos, tentar. Hyacinth saltou para se agarrar aos
beirais pendentes e içou-se para cima das telhas, permanecendo ali
deitado contra a parede de pedra, escutando, apesar de não ter feito
qualquer ruído e ninguém se ter movido para observar ou investigar.
Ergueu-se cautelosamente para cima da rampa do telhado, na
direção da janela fechada. As madeiras eram pesadas e sólidas, e
estavam de alguma forma presas no interior do quarto, pois quando
pousou uma mão debaixo do centro onde elas se uniam e tentou
arrancá-las, elas mantiveram-se fixas como ferro, e ele não tinha
ferramentas para tentar forçá-las a separarem-se e duvidou se
conseguiria fazê-lo mesmo que tivesse um arsenal de utensílios. As
dobradiças eram fortes e mantiveram-se imóveis. Nem o cimo nem
o fundo das janelas se rendia à força, nem se moveram um
milímetro. Deviam existir parafusos de ferro, aparafusados por
dentro e trancados com firmeza. E o tempo escasseava. Richard era
voluntarioso, obstinado e engenhoso. Se tivesse sido possível para
ele fugir da sua prisão, ele tê-lo-ia feito havia muito tempo.
Hyacinth encostou a orelha à fenda delgada, mas não conseguia
ouvir nada a mover-se lá dentro. Devia certificar-se se estava a
perder tempo, o qual lhe era tão precioso e que se escoava tão
depressa. Com o risco de poder ser detectado, bateu com os nós
dos dedos contra a janela e colocando os seus lábios no pequeno
círculo iluminado, emitiu um estridente assobio através do buraco.
Desta vez, ouviu ofegar em alguma parte no quarto, depois um
arrastar rápido, como se alguém se tivesse esticado depois de ter
estado defensivamente enroscado num canto, colocado os pés no
chão e dado um par de passos surpreendidos pelo quarto, somente
para parar novamente em dúvida e alarme.
— Richard, és tu? — chamou suavemente Hyacinth através do
buraco, e batendo na madeira.
Passos leves aproximaram-se apressadamente e um pequeno
corpo pressionou-se no interior das janelas.
— Quem é? — sussurrou a voz de Richard urgentemente, perto
da brecha de luz. — Quem é que está aí?
— Hyacinth! Richard, estás sozinho? Não consigo entrar aí. Está
tudo bem contigo?
— Não! — suspirou uma voz numa queixa indignada, provando
através do seu espírito e raiva que, de fato, estava de boa saúde e
em excelente forma. — Eles não me deixam sair, mas continuam a
chatear-me para me obrigarem a fazer o que querem e para que eu
concorde em casar. Vão trazê-la hoje à noite, eles querem fazer
com que eu...
— Eu sei — rosnou Hyacinth —, mas eu não consigo tirar-te
daqui. E não há tempo de avisar o xerife. Amanhã podia, mas vi-os
virem para aqui esta noite.
— Eles só me deixam sair quando eu fizer o que eles querem —
Richard assobiou agressivamente pela brecha. — Quase que disse
que sim. Continuam a insistir e não sei o que fazer. Tenho medo que
eles peguem em mim e me escondam em alguma parte se eu
recusar, porque eles sabem que todas as casas estão a ser
revistadas — a voz estava a perder o seu tom agressivo e arrojado
e aproximava-se da angústia. É difícil para um rapaz de dez anos
aguentar por muito tempo os adultos implacáveis que ostentam a
mão superior. — A minha avó prometeu que eu haveria de ter o que
quer que fosse que eu gostasse, que eu quisesse, se eu dissesse
as palavras que ela quer que eu diga. Mas eu não quero uma
esposa...
— Richard... Richard... — Hyacinth repetia persistentemente este
lamento e. por um momento, deixou de o ouvir. — Escuta. Richard!
Eles têm de trazer um padre para te casar, certamente não o padre
Andrew, pois teria escrúpulos, mas alguém. Fala com ele, conta-lhe
que é contra a tua vontade, diz-lhe... Richard, já ouviste dizer quem
é que vai ser? — um novo e arrebatador pensamento penetrara a
sua mente. — Quem é que te vai casar?
— Eu ouvi-os — sussurrou Richard, de novo calmo — a dizerem
que não podiam confiar no padre Andrew. A minha avó vai trazer o
eremita com ela para o fazer.
— Cuthred? Tens certeza? — Hyacinth quase se esquecera de
manter a voz baixa em sua estupefação.
— Sim, o Cuthred. Sim, tenho certeza. Eu ouvi-a dizer isso.
— Richard. então escuta! — Hyacinth aproximou-se, colocando os
seus lábios junto à fenda. — Se tu recusares, eles te levarão para
longe para outro lado qualquer. É melhor fazeres o que eles querem.
Não, confia em mim, faz o que te digo, é a única maneira de nós os
podermos derrotar. Acredita em mim, não tens nada a recear, não
serás sobrecarregado com uma mulher, estás a salvo como num
santuário. Faz simplesmente como te digo, sê submisso e
obediente, e deixa-os pensar que te domesticaram e eles talvez te
deixem levar o teu pônei e cavalgar de novo para a abadia, pois eles
já terão o que querem e pensarão que não pode ser desfeito, mas
pode! Oh, nunca te atormentes, eles não vão querer nada mais de ti,
durante anos! Confia em mim e faz isso! Fazes? Depressa, antes
que eles venham! Fazes, Richard?
— Sin. — mas não conseguiu deixar de protestar no minuto
seguinte —, mas como pode isso ser? Porque é que dizes que é
seguro? — Richard hesitou, espantado e em tom dubitativo.
Hyacinth aproximou-se para mais perto e murmurou a resposta.
Soube pelo súbito ataque de riso, exuberante e breve, que Richard
ouvira e percebera. E mesmo a tempo, pois ouviu vindo do outro
lado do quarto o som agudo de uma porta a ser destrancada e
escancarada, e a voz da Dama Dionísia, mel e fel, meio bajuladora
e meio ameaçadora, dizendo firmemente e muito alto.
— A tua noiva chegou, Richard. Aqui está a Hiltrude. E tu vais ser
cortês com ela, não vais, e agradar-nos a todos?
Richard devia ter-se afastado para longe da janela assim que
sentiu a mão na maçaneta, pois a sua pequena e cautelosa voz
disse, pouco audivelmente e a alguma distância: — Sim, avó! — de
má vontade, obsequioso, relutantemente obediente, uma vontade
apenas meio quebrada, mas essa metade serviria!
A voz dela soou, grata mas ainda cautelosa.
— Assim é que é, meu lindo menino! — e foi a última coisa que
Hyacinth ouviu enquanto se esgueirava cuidadosamente pela rampa
do telhado e caía no chão.
Continuou no seu caminho em direção a casa. sem pressa,
satisfeito com o seu trabalho noturno. Não tinha agora nenhuma
urgência, podia dar-se ao luxo de ir devagar, apenas atento para
que ele próprio não fosse caçado. Pois o rapaz estava vivo, bem
alimentado, bem tratado e de boa disposição. Nenhum mal lhe
acontecera, nenhum haveria de acontecer, contudo ele preocupava-
se em vir a ser prisioneiro. E no final, seria ele a rir-se dos seus
captores. Hyacinth fez o seu caminho jovialmente através da noite
suave e iria, aromatizada com a névoa que se levantava dos prados
de água e o profundo e úmido bolor das folhas dos bosques. A lua
erguia-se, mas tão velada que fornecia apenas uma luz cinzenta e
sombria. Pela meia-noite, estaria de volta e em segurança ao seu
santuário na floresta de Eyton. E de manhã, através de alguma
forma que Annet inventaria para a ocasião, Hugh Beringar saberia
exatamente onde procurar o menino perdido do Irmão Paul.

Quando tudo terminou e ele já tinha feito o que eles pretendiam,


apesar da sua má vontade, Richard esperara um pouco de gratidão,
talvez até que o deixassem sair deste pequeno quarto, o qual era a
sua prisão, por muito confortável que pudesse ser. Ele não era
assim tão tolo a ponto de pensar que eles o libertariam para ele
fazer o que bem lhe apetecesse. Teria de continuar a manter esta
fachada submissa durante mais algum tempo e suprimir a alegria
interior que sentia por se ter rido deles em segredo, antes de eles se
atreverem a apresentá-lo perante o mundo, embora não pudesse
adivinhar que tipo de história teriam para contar acerca do seu
desaparecimento e reaparição: ele não podia adivinhar, mas eles
haveriam de a saber de cor e salteado. Certamente que diriam que
ele consentira de sua própria vontade com a cerimônia que acabara
momentos antes, e segundo a informação que possuíam seria então
tarde demais para ele mudar de ideias, visto que o que estava feito
não podia ser desfeito. Apenas Richard sabia, de fato, que nada fora
feito que necessitasse de ser anulado. Ele tinha absoluta fé em
Hyacinth. O que quer que Hyacinth lhe dissera era tranquilizador.
Todavia, ele achara que eles lhe haveriam de dever
agradecimentos e indulgência pela sua complacência. Mantivera
uma cara mal-humorada mas submissa, porque teria sido uma
traição demasiado óbvia deixar sequer um relampejo de riso revelar-
se, mas ele repetira todas as palavras que eles lhe ditaram, até se
predispusera a pegar na mão de Hiltrude quando lhe disseram para
o fazer, apesar de não a ter olhado nem uma vez até que o som da
sua voz suave e entorpecedora, repetindo os votos tão resignada
como ele, o levara a considerar por um momento se ela não estaria
a ser forçada, como ele. Essa possibilidade nunca lhe ocorrera até
então, e ele ergueu os olhos, olhando furtivamente para a cara dela.
Afinal de contas, ela não era assim tão velha e não muito alta, e
parecia mais uma vítima do que uma ameaça. Até nem seria
completamente comum, se não parecesse ser tão submissa e mal-
humorada. O seu repentino impulso de simpatia por ela foi
transtornado por um resíduo de ressentimento igualmente repentino,
por ela parecer tão deprimida por casar com ele, já que ele tinha
boas razões para casar com ela.
Porém, depois de toda a sua complacência, nem uma palavra de
agradecimento, e em vez disso a sua avó estudava-o ominosamente
e ao longe, e ele sentia-se assustado pois no olhar da sua avó ainda
permanecia uma certa suspeita.
— Fizeste bem em cumprir, finalmente, o teu dever e de te teres
comportado adequadamente em relação àqueles que sabem o que
é melhor para ti. Vê se guardas isso em mente, senhor! Agora dá as
boas noites à tua esposa. Amanhã ficarás a conhecê-la melhor —
admoestou-o ela sombriamente.
E ele fez como lhe foi dito para fazer e tinham-no deixado ali,
ainda trancado e sozinho, apesar de terem enviado o criado com o
jantar que eles estavam certamente a apreciar no salão. Sentou-se
meditando sob a sua cama, pensando em tudo o que acontecera
nessa noite e em tudo o que poderia acontecer no dia seguinte.
Quanto a Hiltrude, esqueceu-a assim que ela desapareceu da sua
vista. Ele sabia algo acerca destes assuntos. Por ter apenas dez
anos de idade, por alguma razão, não o obrigariam a viver com a
esposa, não até ele ser mais crescido. Enquanto ela permanecesse
debaixo do mesmo telhado, esperava-se que se fosse educado,
talvez até atencioso com ela, mas depois ela haveria de voltar com
o pai para a sua própria casa, até se achar que ele teria a idade
necessária para partilhar a cama e o lar com ela. Agora que
começava a pensar seriamente no assunto, parecia a Richard que
não existiam privilégios nenhuns inerentes ao fato de estar casado,
a sua avó continuaria a tratá-lo como antes como uma criança sem
importância, a dar-lhe ordens, ralhando com ele, esbofeteando-o se
ele a aborrecesse, até bater-lhe se ele a desafiasse. Em resumo,
convinha ao suserano de Eaton recuperar a sua liberdade através
de quaisquer meios que surgissem e fugir do seu domínio. Agora ele
já não devia ser muito importante para ela, pois servira o seu
objetivo e o que contava era a. terra legada. Se ela pensava que
assegurara isso, em breve poderia estar disposta a deixar partir o
seu instrumento.
Richard enrolou-se nas suas mantas e adormeceu. Se eles
estavam a falar sobre ele no salão e a debater o que haveriam de
fazer com ele, isso não complicava os seus sonhos. Ele era
demasiado jovem e demasiadamente cheio de uma esperança
inocente para levar os seus problemas para a cama.
A sua porta ainda estava trancada na manhã seguinte, e o servo
que lhe trouxe o pequeno almoço não lhe deu hipótese de se poder
esgueirar, apesar de ele não ter certamente qualquer intenção de o
tentar, já que sabia que não conseguiria chegar muito longe e o seu
papel agora era continuar a ser dócil e evitar qualquer tipo de
suspeitas. Quando a sua avó destrancou a porta e entrou, foi mais o
velho hábito familiar, e não malícia, que fez com que ele se
levantasse à sua entrada, como fora ensinado, e erguesse a cara
para receber o seu beijo. E o beijo não foi mais frio do que sempre o
fora e. por um momento, ele sentiu a inevitável generosidade do
sangue quente que os aquecia aos dois, algo que ele nunca
questionara apesar de ela muito raramente o ter expressado.
O contato fez com que ele estremecesse e trouxe-lhe uma súbita
e surpreendente ferroada de lágrimas aos olhos, tão
inevitavelmente, como o surgimento de recuo obstinado para dentro
da sua mente. A ela não lhe causou qualquer distúrbio. Olhou para
ele, da sua ereta e formidável altura com um olhar de, certo modo,
suave.
— Bem, senhor, como é que se sente esta manhã? Vai portar-se
como um rapaz bom e obediente e fazer os possíveis para me
agradar? Se assim é, vai ver que nos iremos dar muito bem juntos.
Você principiou, agora continue como começou. E envergonhe-se
por me ter desafiado e contrariado durante tanto tempo.
Richard baixou as suas longas pestanas e olhou para baixo para
os seus pés.
— Sim, avó — e depois, num ensaio submisso — Posso sair
hoje? Não gosto de estar aqui fechado, é como se fosse de noite a
toda a hora.
— Veremos — respondeu ela, mas para Richard o tom significava
claramente “Não!”. Ela não argumentaria nem negociaria, apenas
lhe despejaria a lei em cima. — Ainda não, ainda não o mereceste.
Primeiro prova que aprendeste onde é que reside o teu dever, e
então terás a tua liberdade de novo. Não estás doente devido a isso,
tens tudo o que precisas aqui, fica satisfeito até teres ganho mais e
melhor.
— Mas eu já o provei! — disparou ele. — Fiz o que queria, devia
fazer aquilo que eu quero. É injusto fechar-me aqui, injusto e
indelicado. Eu nem sequer sei o que fez com o meu pônei.
— O teu pônei está a salvo no estábulo — disse Dionísia
agressivamente — e bem tratado, como tu estás. E é melhor
tomares mais atenção aos modos que tens comigo, senhor, ou terás
motivos para te arrependeres. Ensinaram-te naquela escola da
abadia a ser insolente com os mais velhos, mas é uma lição que
bem podes esquecer tão depressa quanto puderes, para teu próprio
bem.
— Eu não estou a ser insolente — suplicou ele. recaindo na
rabugice. — Eu só quero estar à luz do dia, quero sair. não sentar-
me aqui sem poder ver as árvores e a relva. É miserável estar aqui
dentro, sem nenhuma companhia...
— Tu irás ter companhia — prometeu ela, prendendo-se a uma
queixa para a qual ela podia fornecer uma resposta complacente. —
Enviarei a tua noiva para te fazer companhia. Quero que fiques
agora a conhecê-la melhor, pois depois do dia de hoje. ela
regressará a Wroxeter com o seu pai e tu, Richard — disse ela em
tom de aviso, lançando-lhe um olhar ameaçador —, vais regressar
comigo para o teu próprio feudo, para ocupares o teu devido lugar. E
eu esperarei que tu te comportes devidamente por lá, e que não
fiques a desejar aquela escola, agora que estás casado e és um
homem de sustância. Eaton pertence-te e é lá que deves ficar, e
espero que sustentes isso, se alguém, quem quer que seja. o
colocar em dúvida. Compreendes-me, senhor?
Ele compreendia-a muito bem. Ele iria ser bajulado, intimidado,
tiranizado para declarar, até mesmo ao Irmão Paul e ao Pai Abade,
se fosse necessário, que fugira para casa da sua avó de sua livre
vontade e que, de sua livre vontade, se submetera ao casamento
que tinham planeado para ele. Abraçou o seu conhecimento secreto
com alegria no coração, enquanto dizia submissamente: — Sim ,
senhora!
— Ótimo! E agora vou ordenar que te enviem a Hiltrude e
verificarei que tu te portas bem com ela. Vais ter de te habituar a ela,
e ela a ti, por isso bem podem começar agora — e cedeu ao ponto
de o deixar beijá-la novamente quando saiu, embora este se
assemelhasse tanto a um estalo como a um beijo. Ela saiu entre o
remoinho empoeirado das suas longas saias verdes e Richard ouviu
a fechadura a trancar-se novamente, atrás dela.
E tudo o que ele ficara a saber daquilo tudo, à exceção do fato de
o seu pônei se encontrar no estábulo? Se ele ao menos pudesse
chegar até ele. poderia tentar a sua fuga. Nesse momento, entrou
Hiltrude, como a sua avó o avisara, e todo o ressentimento e
antipatia que sentia pela moça, apesar de injusto, ferveu dentro dele
numa raiva infantil.
Ela ainda lhe parecia pertencer, pelo menos, à geração da mãe, a
qual ele mal recordava, mas não era completamente vulgar, tinha
uma cara grande, com uma pele pálida e clara, olhos castanhos e
circunspectos, e embora o seu cabelo fosse liso e de uma
tonalidade castanha de rato, ela possuía uma grande quantidade
dele, entrançado numa espessa trança que lhe caía até a cintura.
Ela não era desagradável, parecendo antes amargamente resignada
e miserável. Manteve-se durante um momento com as costas
viradas para a porta, olhando fixa e pensativamente para o rapaz
carrancudamente enroscado na sua cama.
— Então eles enviaram-te para seres o meu cão de guarda —
disse Richard, desagradavelmente.
Hiltrude atravessou o quarto e sentou-se no parapeito da janela
fechada, e olhou para ele sem qualquer boa vontade.
— Eu sei que não gostas de mim — disse ela, não tristemente
mas com um vigor bastante inesperado. — Tens pouco motivo para
gostar, e por esse motivo, eu não gosto de ti. Mas ao que parece
estamos os dois unidos e agora não há nada a fazer. Porquê,
porque é que tu cedeste? Eu só disse que sim, por fim, porque
estava certa que tu estarias suficientemente seguro lá na abadia, e
eles nunca chegariam a isto. E, depois, tiveste de cair nas mãos
deles como um estúpido e cederes. E aqui estamos ambos, e que
Deus nos ajude! — Ela cedeu ao ouvir a nota de desespero da sua
própria voz e terminou com uma simpatia cansada — A culpa não é
tua, és apenas uma criança, o que podias fazer? E não é que eu
não goste de ti, nem sequer te conheço, é só que não te queria, não
te quero, como tu não me queres a mim.
Por essa altura, Richard olhava fixamente para ela, com a boca e
os olhos escancarados, completamente mudo devido ao espanto de
a ver como era e não um símbolo de embaraço, uma carga pesada
colocada à volta do seu pescoço, mas uma pessoa real com muito
para dizer por si própria e nada parva, sem sombra de dúvida.
Lentamente, ele desenroscou as suas pernas magras e colocou os
pés no chão, para sentir uma substância sólida debaixo dele.
— Tu nunca quiseste casar comigo? — repetiu lentamente numa
fina voz chocada.
— Um bebê como tu? — replicou ela, indiferente por o ofender. –
Não, nunca quis.
— Então porque é que concordaste sequer em fazê-lo? — Ele
estava demasiado indignado com a capitulação dela, para se
ofender com a reflexão sobre a sua pequena idade. — Se tu
tivesses dito que não e continuasses a dizê-lo, estaríamos ambos
salvos.
— Porque é muito difícil dizer não a um homem como o meu pai,
o qual começara a dizer-me que eu estava a ficar demasiado velha
para ter outro pretendente, e que se eu não te aceitasse seria
obrigada a entrar numa irmandade e a permanecer uma donzela até
morrer. E eu queria isso ainda menos. E pensei que o abade te
mantivesse bem seguro e nunca nada haveria de acontecer. E
agora aqui estamos nós, e o que é que vamos fazer acerca disto?
Sentindo-se surpreendido por sentir uma curiosidade quase
simpática por esta mulher, a qual mudara de pele perante os seus
olhos e emergira tão vívida e real como ele, Richard perguntou
timidamente: — O que é que tu queres? Se pudesses fazer as
coisas à tua maneira, o que gostarias de fazer?
— Eu gostaria — disse Hiltrude, os seus olhos castanhos
ardendo, repentinamente, de raiva e perda — de um jovem homem
chamado Evrard, que mantém o feudo do meu pai a funcionar e é o
seu criado em Wroxeter e que também gosta de mim, quer aches
isso possível ou não. Mas ele é o filho mais novo e não tem terras, e
onde não há terra para juntar à sua o meu pai não tem interesse
nenhum. Há um tio que pode bem deixar o seu feudo a Evrard, visto
gostar dele e não ter filhos, mas é agora que o meu pai quer a terra
e não terra que ainda é uma incerteza — o fogo extinguiu-se e ela
virou a cabeça para o lado. — Porque é que eu te conto isto? Tu
não podes compreender, e não é culpa tua. Não há nada que tu
possas fazer para o melhorar.
Richard começava a pensar que talvez pudesse haver alguma
coisa muito pertinente que ele podia fazer por ela, se ela por seu
turno fizesse alguma coisa por ele.
— O que estão eles agora a fazer, o teu pai e a minha avó? Ela
disse que tu irias regressar para Wroxeter amanhã. O que estão
eles a planejar? E o Pai Abade andou à minha procura, desde que
eu me fui embora? — perguntou cautelosamente.
— Tu não sabes? Não só o abade, mas o xerife e todos os seus
homens estão à tua procura. Eles revistaram Eaton e Wroxeter e
estão a revirar cada arbusto da floresta. O meu pai receava que eles
chegassem até aqui hoje, mas a tua avó achou que não. Estavam a
considerar se haveriam de te levar de volta para Eaton durante a
noite, visto que já foi revistado anteriormente, mas a Dama Dionísia
estava certa de que os oficiais tinham ainda vários dias de buscas
antes de alcançarem Leighton e de qualquer modo, disse ela, se for
estabelecida uma vigilância adequada, haverá muito tempo para te
fazer transpor o rio com uma escolta e enviar-te para baixo para te
abrigares em Buildwas. Melhor ainda, disse ela, do que te deslocar
de novo para Shrewsbury.
— Onde estão eles agora? — perguntou Richard
intencionalmente. — A minha avó?
— Ela voltou para Eaton para que tudo por lá esteja como
habitual. O eremita voltou à cela dele durante a noite. Não seria bom
se alguém soubesse que ele esteve fora.
— E o teu pai?
— Ele está fora e entre os seus rendeiros, mas não está longe.
Levou o escriturário com ele. Atrevo-me a dizer que deve haver
algumas dívidas não pagas que ele quer recolher — os movimentos
do pai eram-lhe indiferentes, mas ela sentia alguma curiosidade
quanto ao que se estava a passar na cabeça desta criança, a qual
afinara a sua voz com um propósito tão cheio de esperança e um
iluminar do seu olhar desconsolado. — Por quê? O que há aí para
ti? Ou para mim! — acrescentou ela, amargamente.
— Pode haver — disse Richard, principiando a resplandecer —
alguma coisa que eu possa fazer por ti, algo positivo, se fizeres em
troca uma coisa por mim. Se eles estão ambos fora de casa, ajuda-
me a fugir enquanto estão fora. Ela disseme que o meu pônei está
no estábulo. Se eu pudesse chegar até ele e fugir, podias trancar
novamente a porta, e ninguém saberia que eu tinha desaparecido
até que caísse a noite.
Ela abanou a cabeça decididamente.
— E quem ficaria com as culpas? Eu não colocaria as culpas num
dos criados e não tenho grande vontade de ser eu a culpada. Os
problemas que já tive são suficientes para mim, agradeço-te! –
Mas... acrescentou cautelosamente, vendo que a esperança que se
ateara não estava de modo algum extinta — Mas eu estaria disposta
a pensar em algumas formas, se eu achasse que resolveria alguma
coisa para mim, mas como é que poderia? Por uma justa libertação,
eu aventuraria alguma coisa que o Padre dissesse ou fizesse. Mas
do que é que serve, quando estamos unidos como estamos e sem
saída?
Richard saltou da cama e como uma seta atravessou o quarto
para se instalar confiadamente ao lado dela no amplo parapeito.
— Se eu te contar um segredo, juras mantê-lo até eu estar longe
e seguro, e ajudas-me a sair daqui? Prometo-te, prometo-te que vai
valer a pena — segredou ansioso, perto do seu ouvido.
— Estás a sonhar — disse ela tolerantemente, virando-se para
olhar para ele de mais perto e vendo o brilho do seu segredo não
obscurecido pela sua própria descrença. — Não há como escapar
ao casamento a não ser que tu sejas um príncipe e tenha as graças
do papa e quem é que se preocupa com pessoas menores, como
nós? Certo, não somos de um estrato muito baixo nem o seremos
durante anos, mas se pensas que a tua velha senhora e o meu pai
alguma vez o deixariam chegar à anulação, desperdiças as tuas
esperanças. Eles conseguiram o que queriam, nunca se separarão
dos seus ganhos.
— Não, não é nada disso — insistiu ele —, nós não precisamos
nem do papa nem da lei. Tens de acreditar em mim. Pelo menos,
promete não contar e quando ouvires o que é, estarás disposta a
ajudar-me também.
— Muito bem — disse ela, para lhe fazer a vontade, começando
agora a ficar meio convencida de que ele sabia alguma coisa que
ela desconhecia, mas ainda duvidando se os poderia ou conseguiria
salvar. — Muito bem, eu prometo. Que segredo precioso é esse?
Alegremente, ele avançou os seus lábios até os encostar à orelha
dela, a sua face realçada com o toque de um caracol de cabelo que
se enrolara aí livremente, e sussurrou o seu segredo, como se as
próprias tábuas que se encontravam nas suas costas tivessem
ouvidos. E após um incrédulo instante de quietude e silêncio, ela
começou por rir muito suavemente, até estremecer com as suas
próprias gargalhadas e atirando os seus braços a Richard, abraçou-
o brevemente apertando-o contra o coração.
— Por isso, irás em liberdade, custe-me o que custar! Tu
mereces!
11

Uma vez convencida, foi ela que fez os planos. Ela conhecia a
casa e os criados, e enquanto não houvesse quaisquer dúvidas
acerca da sua subserviência, ela tinha entrada em todo o lado e
podia dar ordens aos lacaios e às criadas como lhe apetecesse.
— Será melhor esperar até depois de eles terem trazido o teu
jantar e de terem levado, de novo, o prato. Levará então muito mais
tempo antes que alguém regresse. Existe um portão nas traseiras
atrás da paliçada, que sai do estábulo para o exterior na direção do
cercado para os cavalos. Eu podia dizer ao Jehan para colocar o teu
pônei aqui fora para pastar, ele tem estado fechado há demasiado
tempo para poder estar a gostar disso. Existem ali alguns arbustos
por trás do estábulo, perto do postigo. Esconderei aí tua sela e
arreios, antes do meio-dia. Consigo tirar-te daqui pela galeria,
enquanto estão todos ocupados no salão e nas cozinhas.
— Mas então o teu pai estará em casa — protestou Richard
duvidosamente.
— Depois de jantar, o meu pai estará a ressonar. Se ele vier até
aqui para te espreitar, será antes de se sentar à mesa para se
assegurar que estás seguro na tua gaiola. Melhor para mim
também, eu tive de passar aqui a minha manhã contigo
galantemente, e quem irá pensar que eu mudei de ideia depois
disso? Até poderá ser engraçado — disse Hiltrude, tornando-se
mais animada ao contemplar a sua própria velhacaria benevolente
— quando eles te forem levar o jantar e encontrarem a janela ainda
fechada e trancada, e o pássaro fugido.
— Mas então toda a gente será perseguida, amaldiçoada e
culpabilizada — disse Richard — porque alguém deve ter tirado o
ferrolho.
— Então todos o negaremos e quem quer que pareça ser mais
suspeito, eu o protegerei dizendo que ele nunca saiu da minha vista
e nunca tocou na porta desde que o teu jantar entrou. Se chegar ao
pior — disse Hiltrude, com uma resolução pouco comum —, direi
que me devo ter esquecido de fechar o ferrolho depois de te ter
deixado pela última vez. O que é que ele pode fazer? Ele vai
continuar a pensar que continuas aprisionado ao casamento, para
onde quer que fujas. Melhor ainda — gritou ela, batendo as mãos —
serei eu a trazer-te o jantar, esperarei contigo e trarei para fora o
prato, portanto mais ninguém pode ser culpado por ter deixado a
porta destrancada. Uma esposa deve começar imediatamente a
servir o seu marido, dará bom aspecto.
— Não tens medo do teu pai? — aventurou-se Richard a dizer, de
olhos abertos com respeito e até admiração, mas relutante em
deixá-la suportar uma parte tão perigosa.
— Tenho, tinha! Agora aconteça o que acontecer, valerá a pena o
sofrimento. Tenho de ir, Richard, enquanto não há ninguém no
estábulo. Espera e confia em mim, e mantém o teu coração alegre.
Alegraste o meu!
Ela já estava junto à porta quando Richard, seguindo
pensativamente a sua passagem leve e flutuante, e tão diferente da
criatura submissa e amarga cuja mão fria ele segurara durante a
noite, lhe disse impulsivamente: — Hiltrude, acho que afinal posso
fazer coisas piores do que casar contigo — e acrescentou, com uma
pressa pouco decente —, mas por enquanto ainda não!
Ela fez tudo o que lhe prometera. Trouxe-lhe o jantar, sentou-se
com ele e manteve uma conversa inconstante e desajeitada
enquanto ele o comia, o tipo de conversa que se podia esperar de
um estranho ou de uma criança, e uma que lhe fora forçada e
relutantemente aceito, por isso, por muito ressentido que ele
pudesse estar, não havia qualquer objetivo em continuar a manter
disparidades com ele. Não tanto por maldade, mas porque tinha
fome e estava ocupado a comer, Richard respondeu com grunhidos,
em vez de palavras. Tivesse estado alguém a ouvir, teria certamente
achado que a troca de palavras era deprimentemente apropriada.
Hiltrude transportou o prato de volta para a cozinha e voltou,
assim que se certificou de que toda a gente na casa estava
ocupada. A estreita escada de madeira que descia para a galeria
era convenientemente encoberta desde a passagem que conduzia à
cozinha, e eles não tiveram qualquer problema em se escapulirem
apressadamente por ela abaixo, emergindo debaixo do chão através
da longa entrada onde Hyacinth se abrigara e, a partir daí, era
apenas uma corrida perigosa ao longo do campo aberto até o
postigo na cerca, meio escondido pelo tamanho do estábulo. Ela
deixara os arreios escondidos atrás dos arbustos, a sela, as rédeas
e tudo o resto, e o pônei veio ter com ele alegremente. Perto da
parede traseira do estábulo, ele selou o pônei tremendo com a
pressa e conduziu-o para fora do cercado dos cavalos na direção do
rio, onde a cintura de árvores oferecia proteção, antes de se atrever
a apertar a cilha e a montar. Agora, se tudo corresse bem, teria até
o cair da noite, antes que pudessem dar pela sua falta.
Hiltrude voltou a subir as escadas da galeria e ocupou-se em
passar a tarde irrepreensivelmente entre as mulheres da casa, à
vista de todos e ocupada com os afazeres adequados à senhora do
feudo. Ela colocara o ferrolho na porta de Richard, já que seria óbvio
que se esta tivesse sido deixada inadvertidamente aberta e o
prisioneiro tivesse tirado vantagem do fato, até mesmo um rapaz de
dez anos teria o bom senso de fazer correr novamente o ferrolho e
preservar as aparências. Quando a fuga fosse descoberta, ela
poderia muito bem protestar que não se lembrava de se ter
esquecido de o fechar apesar de, por fim, admitir que o deveria ter
feito. Por essa altura, se tudo corresse bem, Richard estaria de volta
ao enclave da abadia, e começaria a pensar com algum atraso em
como se apresentaria como uma vítima inocente, enterrando as
recordações do culpado ocioso que saíra sem permissão e causara
todo este tumulto e ansiedade. Bem, isso eram assuntos de
Richard. Ela cumprira a sua parte.
Foi uma pena que a meio da tarde o servo que recolhera o pônei
de Richard no interior do cercado dos cavalos tivesse de ir buscar
outro dos animais para pastar no exterior, já que reparara que o
animal coxeava ligeiramente. Mal pôde deixar de notar que o pônei
desaparecera. Pensando na primeira e óbvia, se não demasiado
provável possibilidade, ele encontrava-se no meio do pátio a gritar
que tinham estado ladrões no cercado dos cavalos, antes de lhe ter
ocorrido regressar e procurar no estábulo por uma sela e arreios.
Isso deu uma outra luz ao desaparecimento. E além disso, por que
levar o animal menos valioso à vista? E por que se arriscar a roubá-
lo em plena luz do dia? As noites escuras eram mais favoráveis.
Assim, chegou ao salão anunciando ruidosamente e sem fôlego
que o pônei do jovem noivo desaparecera, selado e tudo, e que era
melhor que o seu suserano fosse ver se o rapaz ainda estava
seguro sob fechadura e chave. Apressadamente, o próprio Fulke
dirigiu-se à sua procura, dificilmente acreditando nas novidades, e
encontrou a porta firmemente trancada como anteriormente, mas o
interior do quarto vazio. Soltou um berro de raiva que fez Hiltrude
estremecer sobre o bastidor do seu bordado, mas manteve os olhos
baixos sobre o seu trabalho e prosseguiu com recato afetado,
cosendo até a tempestade ter estourado na entrada e aumentado
até encher o salão.
— Qual de vocês é que foi? Quem foi o último a servi-lo? Qual
dos tolos entre vós, pois todos vós sois tolos, é que deixou a porta
aberta? Ou será que um de vocês o soltou deliberadamente, apesar
das minhas ordens? Ajustarei contas com o traidor miserável, quem
quer que ele seja. Falem! Quem é que levou o jantar ao diabrete
escorregadio?
Os homens afastaram-se do seu alcance imediato, balbuciando
todos a sua própria inocência. As criadas tremeram e olharam de
lado umas para as outras, mas hesitaram em dizer uma palavra
contra a sua senhora. Hiltrude, mantendo a sua coragem com
ambas as mãos e aumentando em firmeza agora que era posta à
prova, colocou o seu trabalho de lado e disse corajosamente, ainda
não soando defensiva: — Mas, Pai, tu sabes que eu própria o fiz. Tu
viste-me no fim trazer o prato quando ele terminou. Seguramente
que tranquei novamente a porta, tenho certeza que a tranquei. Mais
ninguém esteve lá dentro com ele, desde então, a não ser que o
senhor o tenha visitado. Quem mais o faria, a não ser que tivesse
sido enviado? E eu não enviei ninguém.
— Tem assim tanta certeza, senhora? — rugiu Fulke. — A seguir,
vai dizer que o rapaz não fugiu de todo, mas que está lá sentado
onde deveria estar. Se foi a última a lá entrar, então é a culpada por
o ter deixado fugir e ter dado corda aos sapatos. Deve ter deixado a
porta destrancada, senão como teria ele fugido? Como é que
pudeste ter sido tão tola?
— Eu não a deixei destrancada — repetiu ela, mas agora com
menos certeza. — Nem sequer sei se me esqueci — concedeu ela
defensivamente —, apesar de achar que não o fiz, mas se o fiz, isso
tem agora alguma importância? Ele não pode alterar o que está
feito, nem o pode mais ninguém. Não vejo por que tanta agitação.
— Tu não vês, tu não vês, tu não vês nada para além da ponta do
teu nariz, senhora! E ele a ir a correr de volta para o seu abade, com
as histórias que ele pode contar?
— Mas ele teria de regressar para a luz do dia mais cedo ou mais
tarde — disse ela humildemente. — Não o podia manter fechado
para sempre.
— De fato teria, todos sabemos isso, mas ainda não, não até
termos a sua marca, não, não a sua marca pois ele sabe assinar o
seu nome, o que é ainda melhor!, nos acordos de casamento e fazê-
lo ver que bem pode encaixar a sua história na nossa e aceitar o
que está feito. Mais uns dias e tudo podia ter sido feito à nossa
maneira, da maneira adequada. Mas eu não o vou deixar escapar
sem o perseguir — jurou Fulke vingativamente e virou-se para rugir
para os seus criados petrificados — Selem o meu cavalo e
despachem-se com isso! Eu vou atrás dele. Ele vai diretamente para
a abadia e, certamente, ficará bem afastado de Eaton. Ainda vou
trazê-lo pelas orelhas!
Em plena luz do dia, Richard não se atreveu a tomar a estrada,
mesmo dando uma grande volta à aldeia. Por aí. poderia ter
aumentado a velocidade, mas podia atrair facilmente a atenção dos
vassalos ou de rendeiros, que serviriam os propósitos de Astley
pelos seus próprios motivos, e o arrastariam de volta para o seu
cativeiro.
Além disso, a estrada o levaria perto demais de Eaton. Manteve-
se perto da cintura do bosque que se estendia em direção a oeste
aproximadamente meio quilômetro acima do rio, estreitando-se ao
longo do curso do rio até não ser mais do que um cinto de carvalhos
solitários e espaçados que ladeavam a água. Para lá destes, prados
de água esmeralda enchiam uma grande curva do Severn, aberta e
sem árvores. Aí manteve-se suficientemente longe no interior, de
forma a ter a proteção dos poucos arbustos que cresciam ao longo
dos promontórios de terra por cultivar dos campos de Leighton. Rio
acima, para onde ele se dirigia, o vale alargava-se num grande
planalto verde de prados inundados, apenas com algumas árvores
isoladas nos pontos mais altos, mas a margem norte por onde ele
viajava erguia-se mais um quilômetro para o interior do baixo cume
da floresta de Eyton, onde ele se podia esconder sob a sua densa
cobertura, durante mais de metade do percurso até Wroxeter.
Significaria ter de ir mais devagar, mas não era a perseguição que
ele temia então, era o ser reconhecido e interceptado pelo caminho.
Teria de evitar Wroxeter a todo o custo, e o único caminho que ele
conhecia era atravessar a vau e naquele lugar o Severn, perto da
aldeia e longe das vistas do feudo, para alcançar a estrada do lado
sul e depois cavalgar a toda a pressa em direção à cidade.
Apressou-se mais rapidamente na floresta, onde a sua
familiaridade com a terra o fizera apanhar um atalho por entre
caminhos e pagou por isso com uma queda, quando o seu pônei
pisou na abertura de uma toca de texugo, mas caiu com leveza
suficiente na espessa almofada de folhas e escapou apenas com
algumas contusões e o pônei, assustado e enervado mas dócil,
voltou prontamente assim que o susto inicial passou. Depois disso,
lembrou-se que a pressa não era necessariamente outra palavra
para velocidade e tomou mais cuidado até chegar aos caminhos
mais abertos. Richard não tinha pensado muito na fuga, mas partira
decidido em regressar à abadia e ficar por lá em paz, quaisquer que
fossem as repreensões e os castigos que o aguardassem, assim
que toda a ansiedade da sua ausência fosse esquecida. Sabia o
suficiente acerca das pessoas crescidas, por muito diferentes que
pudessem parecer sob todos os outros aspectos, para compreender
que todas elas partilhavam o mesmo instinto quando uma criança a
seu cargo era recuperada do perigo; abraçavam-na primeiro e, em
seguida, davam-lhe uma pancada na cabeça com os nós dos dedos.
Se, de fato, a pancada não surgisse primeiro! Ele não se importaria
com isso. Agora que fora violentamente arrastado da sala de aula, e
afastado do Irmão Paul, dos seus companheiros e até mesmo da
cara temerosa do Pai Abade, tudo o que queria era regressar para
eles, de sentir a segurança das paredes da abadia e até mesmo o
horário seguro do dia monástico, enrolado à sua volta como uma
capa quente. Ele podia, se tivesse pensado nisso, ter cavalgado até
a azenha perto do rio em Eyton ou até a cabana do couteiro ou a
qualquer outra habitação destes terrenos pertencentes à abadia, e
seria recebido num abrigo seguro, mas essa possibilidade nunca lhe
passou pela cabeça. Dirigiu-se para a abadia como um pássaro
para o seu ninho. Nesse momento, não possuía outro lar apesar de
ser suserano de Eaton.
Uma vez fora da floresta, havia um caminho bom e aberto quase
até o vau, que ficava do lado sul da aldeia de Wroxeter. Durante
esses dois quilômetros, continuou rapidamente, mas não tão
depressa que a atenção sobre si, pois aqui existiam pessoas que
poderia encontrar ocasionalmente, as quais regressavam dos seus
afazeres diários nos campos ou percorriam o caminho entre aldeias.
Não viu nenhuma que conhecesse e respondeu a essas saudações
casuais rapidamente, sem se demorar.
A cintura de árvores do lado mais próximo do vau avistou-se, os
poucos salgueiros mergulhando na água, e surgiu o topo da torre da
igreja entrevista por entre os ramos, vendo-se apenas um dos
cantos do telhado. O resto da aldeia e do domínio ficavam mais
afastados. Richard aproximou-se cautelosamente do abrigo das
árvores e desmontou, sob essa cobertura, para espreitar para a
baixa extensão da água que rodeava uma pequena ilhota e o
caminho que descia da aldeia até o vau. Ouviu as vozes antes de
ter uma visão clara e deteve-se para escutar atentamente,
esperando que os passantes se dirigissem à aldeia e deixassem o
seu caminho desimpedido. Duas mulheres, conversando e rindo,
acompanhadas por uma luz que se refletia na margem da água e
depois a voz de um homem, igualmente ocioso e à vontade,
provocando e arreliando as moças. Richard atreveu-se a aproximar-
se, até os conseguir ver claramente e deteve-se com um suspiro de
exasperação e desânimo.
As mulheres tinham estado a lavar roupa e tinham-na estendido
nos ramos baixos para secar, e como o dia não estava frio e se
juntara a elas um companheiro jovem e atraente, elas não
mostravam pressa de deixar a margem. Richard não conhecia as
mulheres, mas quanto ao homem conhecia-o bem demais, apesar
de não saber o seu nome. Este pavão jovem, grande, ruivo e
robusto era o capataz de Astley na quinta da propriedade, e um dos
dois que encontrara e reconhecera Richard nos bosques quando
este trotava apressadamente para a abadia, e tinham-se
aproveitado da hora e da solidão para fazer um favor ao seu
suserano. Aqueles mesmos braços musculosos, que agora faziam
cócegas a uma das lavadeiras que soltava risadinhas, tinham
ignominiosamente puxado Richard para fora da sela, e tinham-no
segurado enquanto ele pontapeava furioso um ombro forte que
podia ser feito de carvalho se se considerasse todo o efeito que os
seus punhos tinham produzido sobre ele, até o outro herético lhe ter
enchido a boca com o seu próprio capuz e lhe ter atado os braços
com as suas próprias rédeas. Nessa mesma noite, quando passava
da meia-noite, estava completamente escuro, e todas as pessoas
honestas metidas nas suas camas, este mesmo par de confiança
enviara-o para longe, para o feudo mais distante por motivos de
custódia. Richard lembrava-se amargamente destas indignidades. E
agora aqui estava este mesmo sujeito a meter-se de novo à sua
frente, pois ele não podia sair a cavalo da cobertura e dirigir-se para
o vau sem passar perto deles, ser reconhecido e quase certamente
recapturado.
Não havia nada a fazer senão recuar para uma cobertura mais
profunda e esperar que todos se afastassem, regressando à aldeia
e ao feudo. Sem esperança de contornar Wroxeter através de um
caminho mais amplo e continuar na margem do rio, ele estava já
demasiado perto da extremidade da aldeia e todos os caminhos se
encontravam à vista. E estava a perder tempo e, sem pensar no
porquê, sentiu que o tempo era vital. Perdeu ali uma hora, roendo os
nós dos dedos numa frustração desesperada e esperando pelo
primeiro movimento. Mesmo quando decidiram recolher a roupa e
dirigirem-se para casa, as mulheres não mostraram muita pressa
nisso, mas deslocaram-se vagueando pelo caminho acima,
gracejando e rindo, com o homem jovem que caminhava com
passadas largas entre elas. Só quando as suas vozes se
transformaram em silêncio e mais nenhuma alma se agitava pelo
vau, é que Richard se aventurou a sair da cobertura e a esporear o
seu pônei, chapinhando nos bancos de areia.
A princípio, o vau era suave, arenoso e pouco fundo, depois o
caminho atravessava a ponta da linha sem molhar os pés,
mergulhando novamente para dentro da longa passagem que
conduzia ao lado oposto, um arquipélago amplo de pequenos
baixios arenosos, que ondulavam e reluziam com o movimento
suave e circular da água. A meio da passagem, Richard puxou as
rédeas durante um momento para olhar para trás, pois a larga e
inocente extensão de prados verdes oprimia-o com uma sensação
de nudez e de apreensão. Aqui podia ser visto a um quilômetro de
distância ou mais, uma pequena figura escura montada a cavalo,
indefesa e vulnerável, contra uma paisagem toda umidade, luz
perlífera e cores pálidas.
E ali, galopando a toda a brida em direção ao vau no mesmo
caminho pelo qual ele viera, ainda distante e pequeno, mas
cavalgando intencionalmente atrás dele, aproximava-se um único
cavaleiro num grande cavalo de um tom cinzento claro, Fulke Astley,
numa perseguição determinada ao genro fugitivo.
Richard disparou através dos bancos de areia numa agitação de
espuma e galopou numa pressa desesperada através dos prados
molhados, enveredando para oeste para o troço que o haveria de
levar durante mais de quatro quilômetros até Saint Giles, e à última
corrida direta até o portão da abadia. Faltava mais de um quilômetro
antes que pudesse encontrar proteção no terreno acidentado e nos
pequenos bosques, mas até mesmo aí, não podia esperar afastar
de si a perseguição agora que fora avistado, como certamente o
deveria ter sido. E o seu pônei não era par para aquela besta às
manchas, que o perseguia, mas a velocidade era a sua única
esperança. Ainda tinha um avanço considerável, embora tivesse
perdido grande parte dele ao esperar para atravessar o vau. Cravou
os calcanhares nos flancos do pônei, cerrou os dentes com força e
dirigiu-se para Shrewsbury, como se lobos estivessem no seu
encalce.
O terreno elevou-se, dobrado em colinas baixas, salpicadas com
árvores e pequenos renques de arbustos, escondendo a presa e o
caçador um do outro, mas a distância entre eles devia estar a
diminuir e no bocado em que o percurso era nivelado e nu. Richard
deitou um olhar inquieto sobre o ombro, vislumbrando novamente o
seu inimigo, agora mais perto do que anteriormente, e pagou pela
sua momentânea desconcentração com outra queda, só que desta
vez agarrou as rédeas e evitou o pior do embate, bem como o
esforço de apanhar novamente o seu pônei. Enlameado,
ligeiramente ferido e furioso consigo mesmo, ergueu-se novamente
sobre a sela e galopou selvaticamente, sentindo o olhar fixo de
Astley como um punhal nas suas costas. Felizmente, o pônei era
robusto e de criação galesa, e estivera durante alguns dias a
necessitar de fazer exercício, e o peso que carregava era leve. mas
mesmo assim o seu galopar era duro e Richard sabia-o e receava-o,
mas não podia abrandar. Quando avistou a vedação de Saint Giles
e o troço que se alargava numa estrada, conseguiu ouvir os cascos
embatendo em alguma parte por atrás dele. Se não fosse por isso,
ele podia ter-se ali refugiado, já que a leprosaria era dirigida e
servida pela abadia, e o Irmão Oswin não o teria entregue a
ninguém a não ser com ordens do abade. Todavia, naquela altura, já
não tinha tempo para parar ou para se desviar.
Richard baixou-se e galopou ao longo do Foregate, esperando a
cada momento ver a sombra maciça de Fulke Astley surgir a seu
lado e uma mão grande a esticar-se para lhe agarrar as rédeas.
Virou a esquina do muro da abadia e galopando ao longo do
caminho que se dirigia diretamente à casa do portão, dispersou os
artífices e couteiros que terminavam o seu dia de trabalho e se
dirigiam a casa, e as crianças e cães que brincavam na estrada
principal.
A distância era pouco menor do que seis metros, quando Richard
se lançou despreocupadamente para dentro da casa do portão.
Nessa noite, no serviço de Vésperas, Cadfael. sentado no seu
lugar no coro, reparou que alguns dos adoradores provinham do
salão de hóspedes. Rafe de Coventry estava presente, taciturno e
moderado como sempre, e até Aymer Bosiet, depois das atividades
do seu dia em perseguição da sua propriedade fugitiva, tinha uma
aparência sombria e taciturna, possivelmente para rezar por uma
pista fidedigna do céu. Pelo seu olhar, tinha assuntos de peso na
mente, visto que franzia a testa sobre todos eles durante o serviço
de Vésperas, como um homem tentando decidir-se. Talvez a
necessidade de permanecer em boas relações com a poderosa
família da sua mãe o estivesse a instigar a apressar-se de imediato
para casa com o corpo de Drogo e a mostrar alguns sinais de
devoção familiar. Talvez a ideia de um irmão mais novo e mais
subtil, que se encontrava no local e absolutamente capaz de fazer o
mal pelas suas próprias mãos, também pudesse estar a argumentar
a favor do abandono de uma busca infrutífera com a contrapartida
de uma certa herança.
Quaisquer que fossem as suas preocupações, tornou-se mais
uma testemunha da cena que confrontou irmãos e hóspedes
quando o ofício terminou e eles emergiram pela porta sul e
passaram ao longo da ala oeste do claustro na direção do pátio,
para se dispersarem para as diversas preparações para jantar. O
Abade Radulfus estava justamente a descer para o pátio com o
Prior Robert, seguidos por todo o cortejo dos irmãos, quando a
quietude da noite foi quebrada pelo bater apressado de cascos ao
longo da terra batida da estrada no exterior da casa do portão,
transformando-se subitamente num ruído metálico nas pedras do
interior, enquanto um robusto pônei preto se deslocava com ruído
passando pela casa do portão sem parar, escorregando e batendo
com as patas nas pedras, e seguido de perto por um cavalo
cinzento e alto. O cavaleiro que montava o cavalo cinzento era um
homem grande, carnudo, de barba, de cara vermelha devido à raiva
e à pressa ou a ambas, o qual se inclinava para a frente para
agarrar as rédeas do rapaz que montava o pônei. Os dois tinham
penetrado cerca de vinte metros dentro do pátio, quando a sua mão
esticada agarrou a rédea, arrastando ambas as montadas, e
fazendo-as deslizar e bufar até se deterem, cobertas de espuma e
tremendo. Ele conseguira segurar o pônei, mas não o rapaz, o qual
soltando um grito de alarme largou as rédeas e, caindo em vez de
desmontar, voou como um pássaro até os pés do abade, onde
tropeçou e caiu estatelado de cara para baixo, e agitando os seus
braços desesperadamente em redor dos tornozelos do abade,
lançou um apelo imperceptível para as saias do hábito negro e
segurou-se firmemente, esperando ser arrancado à força e certo de
que ninguém o poderia impedir, se a tentativa fosse feita, à exceção
desta rocha ereta e estável à qual ele se agarrava.
O sossego que fora tão rudemente destroçado reinstalara-se
acompanhado por alguma surpresa no grande pátio. Radulfus
ergueu o seu olhar fixo e austero da pequena figura que lhe
abraçava os tornozelos para o robusto e confiante homem que
deixara os cavalos, que tremiam e suavam lado a lado, e avançava
alguns passos para o cumprimentar, nada envergonhado perante a
autoridade monástica.
— Meu senhor, isto é de certo modo descortês. Não estamos
acostumados a tais visitas súbitas — disse Radulfus.
— Meu senhor abade, pesa-me ser forçado a perturbá-lo. Se a
nossa entrada foi sem modos, peço o seu perdão. Por Richard mais
do que por mim — disse Fulke com desafio consciente e confiante.
— A sua tolice é a causa. Espero poupá-lo a este tolo motim ao
levá-lo e acompanhá-lo em segurança de regresso a casa. Para
onde vou levá-lo agora e certificar-me que ele não o incomodará de
novo.
Parecia estar muito seguro de si próprio, apesar de não ter
avançado outro passo ou esticado uma mão para agarrar o rapaz
pelo colarinho. Olhou o abade, olhos nos olhos, sem pestanejar. Por
trás das costas do Prior Robert, os irmãos abriram fileiras para se
aproximarem do centro do pátio e se reunirem num semicírculo
discreto, espreitando com admiração o rapaz agachado, o qual
começara a pronunciar com dificuldade protestos abafados e
súplicas ainda incoerentes, já que não erguia a cabeça ou relaxava
a força frenética dos seus braços. Seguindo os Irmãos,
aproximaram-se os hóspedes, não menos interessados num
espetáculo tão invulgar. Cadfael, deslocando-se metodicamente
para uma posição da qual tinha uma visão mais clara, captou o
distante mas atento olhar de Rafe de Conventry e viu a passagem
fugidia de um sorriso varrer os lábios barbados do falcoeiro.
Em vez de responder a Astley, o abade olhou novamente para
baixo, com a cara franzida, para o rapaz a seus pés e disse
rispidamente: — Para de fazer barulho, criança, e larga-me. Não
corres perigo nenhum. Levanta-te!
Richard afrouxou a força dos seus braços relutantemente, e
ergueu uma cara manchada com lama e o verde das folhas das
suas quedas, com o suor da sua pressa e medo e umas quantas
lágrimas frenéticas de alívio, de um terror que via agora não ser
nada razoável.
— Pai, não o deixes levar-me! Eu não quero regressar, eu quero
ficar aqui, eu quero ficar com o Irmão Paul, eu quero aprender. Não
me mandes embora! Eu nunca quis ficar longe, nunca! Eu
regressava a casa quando eles me apanharam. Eu regressava a
casa, de verdade, regressava!
— Parece — disse o abade secamente — que há aqui alguma
disputa quanto ao fato de onde é a tua casa, visto que o senhor
Fulke está a oferecer-te um salvo conduto até lá, enquanto que tu és
da opinião de que já chegaste. Qualquer justificação que tenhas
para dar acerca do que se passou pode esperar por outra ocasião.
Onde tu pertences, parece que não pode. Levanta-te, Richard,
imediatamente, e coloca-te de pé, como deverias estar — e
estendeu uma mão magra e musculada, segurando em Richard pelo
antebraço e puxando-o vivamente para cima.
Pela primeira vez, Richard olhou à sua volta, desconfortavelmente
consciente dos muitos olhos sobre si e um pouco humilhado por ter
apresentado tal figura tão desgrenhada e suja perante todos os
irmãos reunidos, e ainda mais a vergonha humilhante que sentia
quanto aos endurecidos rastros de lágrimas nas suas bochechas.
Endireitou as costas e esfregou apressadamente com uma manga a
sua cara suja. Procurou rapidamente o Irmão Paul entre o círculo de
hábitos e, encontrando-o, ficou um pouco reconfortado. O Irmão
Paul, que fora avisado para não correr para o seu carneiro
tresmalhado, colocou a confiança no Abade Radulfus e manteve a
sua boca fechada.
— Ouvimos, senhor — disse o abade —, qual é a preferência de
Richard. Sem dúvida que sabe que o pai dele o colocou aqui ao
meu cuidado e desejava que ele aqui permanecesse e estudasse
até atingir a maioridade. Eu tenho uma reivindicação para a custódia
deste rapaz através de escritura, devidamente testemunhada, e foi
do meu cargo que ele fugiu há alguns dias atrás. Eu não ouvi até a
data quais os motivos que podem existir na sua reivindicação sobre
ele.
— Richard muda de ideias todos os dias — respondeu Fulke.
confiantemente alto —, pois, ainda ontem à noite, foi de livre
vontade numa direção bem diferente. Nem acho que tal criança
possa escolher a seu bel-prazer, quando os seus anciões são
melhores juízes sobre o que é melhor para ele. E quanto à minha
reivindicação sobre o cargo dele, você saberá. Richard é meu
genro, com o conhecimento e consentimento total da avó. Ontem à
noite, casou-se com minha filha.
O calafrio de consternação que passou pelo círculo de
observadores atingidos pelo espanto desvaneceu-se numa calma
absoluta. O Abade Radulfus não revelou exteriormente o abalo, mas
Cadfael viu as linhas da sua cara magra endurecerem e sabia que a
seta o atingira. Tal consumação fora havia muito conspirada por
Dionísia e este vizinho egocêntrico pouco mais era do que o seu
instrumento em toda a questão. O que ele anunciara podia muito
bem ser verdade, se eles tivessem tido o rapaz nas mãos deles
durante todo este tempo em que ele estivera desaparecido. E
Richard, que endurecera e esticara a sua cabeça para cima, de
boca aberta para gritar que era falso, encontrou o olhar severo e fixo
do abade sobre ele e ficou completamente confundido. Tinha medo
de mentir face àquele semblante judicial, de fato admirava-o tanto
quanto o receava, e não desejava mentir e, confrontado com esta
declaração óbvia, deu por si perdido por saber o que era a verdade.
Pois tinham-no casado com Hiltrude e uma simples negação não
era suficiente. Uma descarga final de medo atravessou-o roubando-
lhe o fôlego; e se o próprio Hyacinth estivesse enganado e os votos
que ele repetira mansamente o tivessem unido para toda a vida?
— Isto é verdade, Richard? — perguntou Radulfus.
A sua voz era equilibrada e baixa, mas dentro das circunstâncias
parecia terrível a Richard. Ele engoliu palavras que não iriam servir
e Fulke, impaciente, respondeu por ele: — É verdade e ele não a
pode negar, duvida da minha palavra, meu senhor?
— Silêncio! — disse o abade peremptória, mas ainda
calmamente.
— Exijo a resposta de Richard. Fala, rapaz! Este casamento teve
lugar de fato?
— Sim, Pai — faltou-lhe a voz —, mas não é...
— Onde? Com que outras testemunhas?
— Em Leighton, Pai, ontem à noite, isso é verdade, mas mesmo
assim eu não estou...
Interrompeu-se novamente e submeteu-se com um soluço,
frustrado e aumentando a sua indignação.
— E tu disseste as palavras do sacramento livremente, de tua
própria vontade? Não foste forçado? Espancado? Ameaçado?
— Não, Pai, não fui espancado, mas tive medo. Eles insistiram
tanto comigo...
— Ele foi chamado à razão e ficou convencido — acrescentou
Fulke resumidamente. — Agora volta atrás com o que prometeu
ontem. Disse a sua parte sem que uma mão tivesse sido colocada
sobre ele. De sua própria vontade!
— E o teu padre empreendeu este casamento de bom grado?
Certo que o consentimento de ambos fora dado livremente? Um
bom homem, de reputação honesta?
— Um homem de santidade reconhecida, meu senhor abade —
disse Fulke triunfantemente. — O povo do campo chama-lhe um
santo. O santo eremita Cuthred!
— Mas, Pai — gritou Richard com a coragem do desespero,
determinado a conseguir por fim, a simples e única verdade —, eu
fiz o que fiz para que eles me libertassem, e pudesse regressar para
si. Disse os votos, mas só porque sabia que eles não me podiam
ligar. Eu não estou casado! Não foi um casamento, porque...
Tanto o abade como Fulke rebentaram num discurso atropelando,
determinadamente, a sua explosão e ordenando-lhe silêncio, mas o
sangue de Richard estava quente. Se tivesse de rebentar aqui
perante toda a gente, então assim seria. Cerrou os punhos e gritou
suficientemente alto para captar um eco de pedra das paredes do
claustro: — ... porque Cuthred não é padre!
12

Sob o murmúrio e movimento geral de surpresa, dúvida e ultraje


que passara como uma súbita rajada de vento através de toda a
assembleia, desde o resmungo indignado do Prior Robert aos
inquisitivos e meio joviais sussurros e movimentações entre os
noviços, o que era mais óbvio para Cadfael era que Fulke Astley
permanecia completamente atordoado. Se fizesse a mínima ideia do
que o esperava, teria sustado o fôlego. Ficou balançando os braços
numa impotência curiosa, como se algo do seu próprio ser tivesse
fugido do seu controle e o tivesse deixado coxo e mudo. Quando
recuperou o ar suficiente para falar, tudo o que disse foi o que se
esperava dele, mas sem a confiança da convicção, e bastante
violentamente empurrando a própria sugestão para longe de si, em
pânico.
— Meu senhor abade, isto é loucura! O rapaz está a mentir. Ele
dirá qualquer coisa para levar a dele avante. É claro que o Pai
Cuthred é um padre! Os irmãos de Savigny de Buildwas trouxeram-
no até nós, pergunte-lhes, eles não têm dúvidas. Nunca houve
nenhuma pergunta. Isto é maldade, caluniar de tal modo um homem
santo.
— Tal calúnia seria de fato maldade — concordou Radulfus,
fixando os seus olhos profundos e sobrancelhas descidas sobre
Richard. — Pensa bem, senhor, antes de o repetires. Se isto é uma
artimanha para levares a melhor e permaneceres aqui conosco,
pensa agora melhor acerca disso e confessa-o. Não serás castigado
por isso. Quanto ao resto, parece que foste maltratado, raptado e
intimidado e isso será perdoado. Eu lembrarei o Senhor Fulke
dessas circunstâncias. Mas se não me disseres a verdade agora,
Richard, então incorres em punição.
— Eu disse a verdade — disse Richard resoluto, fazendo
sobressair o seu respeitável queixo e encontrando os olhos
aterradores sem pestanejar. — Estou a contar a verdade, juro! Fiz o
que eles me exigiram, porque sabia então que o eremita não era
padre e um casamento feito por ele não seria um casamento.
— Como é que sabias? — gritou Fulke furiosamente, agitando-se
na sua confusão. — Quem é que te disse? Meu senhor, tudo isto é
um ardil infantil e um ardil rancoroso. Ele está a mentir!
— Então? Tu podes responder àquelas perguntas — disse
Radulfus, nunca tirando os seus olhos dos olhos de Richard. —
Como é que soubeste? Quem é que te disse?
No entanto, estas eram as mesmas questões que Richard não
podia responder, sem trair Hyacinth e trazer a caçada ao seu rasto
com renovado vigor.
— Pai, direi, mas não aqui, só a si. Por favor, acredite em mim, eu
não estou a mentir — respondeu com uma cortesia vacilante.
— Acredito em ti — disse o abade, libertando-o abruptamente do
escrutínio que o tinha feito tremer. — Acredito que estejas a dizer o
que te disseram e que tu acreditas ser a verdade, mas isto é uma
questão mais séria do que tu possas compreender e deve ser
esclarecida. Um homem contra quem tal acusação foi feita tem o
direito de falar por si próprio e provar a sua boa fé. Eu próprio irei
amanhã cedo perguntar ao eremita se ele é ou não um padre e
quem o ordenou, e onde e quando. Estas coisas podem ser
provadas e devem sê-lo. Certamente, também terás um interesse
igual, meu senhor, em descobrir de uma vez por todas se isto foi de
fato um casamento. Apesar de eu ter de te avisar — acrescentou ele
firmemente — que mesmo que seja pode ser anulado, visto que não
pode ser consumado.
— Faça a tentativa — replicou Astley, de certo modo recuperando
a sua compostura — e será contestado até o fim. Mas reconheço
que a verdade deve saber-se. Não podemos ter tais dúvidas a
arrastar-se.
— Então me encontra no eremitério, logo depois da hora de
Prima? É justo que ambos ouçamos o que Cuthred tem a dizer. Eu
tenho certeza — disse ele sinceramente, tendo visto o efeito na
reação explosiva de Richard — que você acreditou implicitamente
que o homem era um padre, com todos os direitos de casar e de
enterrar. Isso não está em disputa. Richard tem motivos para
acreditar no contrário. Vamos testar isso.
Não havia nada naquilo a que Astley pudesse objetar nem,
pensou Cadfael, tinha ele qualquer desejo de evitar a questão. Ele
ficara, certamente, profundamente chocado com a sugestão de
fraude e queria a dúvida removida, mas fez mais uma tentativa para
tentar recuperar o controle sobre o rapaz. Avançou uma mão e
colocou-a sobre o ombro de Richard.
— Eu irei a essa reunião — disse ele — e verei esta criança
iludida ter provas do contrário. Mas, durante esta noite, mantenho
que ele continua a ser meu filho e deverá ir comigo.
A mão fechou-se sobre o braço de Richard e o rapaz moveu-se e
desviou-se. O Irmão Paul não conseguiu conter-se mais e
apressando-se para fora das filas expectantes, afastou a criança
para o seu lado.
— O Richard fica aqui — disse Radulfus convictamente. — O seu
pai confiou-o a mim e eu não estabeleço um limite na sua estada
conosco. Mas de quem esta criança é genro e marido, devemos e
vamos examinar essa questão.
Fulke estava, novamente, a ficar roxo com a raiva reprimida.
Estivera tão perto de capturar o diabrete e agora era contrariado e
toda a estrutura dos seus planos territoriais e de Dionísia tinha sido
colocada em risco. Não desistiria assim tão facilmente.
— Assume muitas responsabilidades, senhor abade — começou
ele —, ao negar os direitos ao seu familiar, você que não tem laços
de sangue com ele. E eu penso que não está a fazê-lo sem desejos
sobre as terras e os bens dele, ao mantê-lo aqui. Não quer casar o
rapaz, mas em vez disso quer ensiná-lo aqui, até ele não ter
conhecimento de outro mundo e entrar mansamente no noviciado e
a casa para sua própria herança...
Fora tão intencional nas acusações e todos os que o rodeavam
foram tão apanhados de surpresa com o seu atrevimento, que ainda
ninguém se apercebera de quem acabara de chegar à casa do
portão. Todos os olhos estavam postos em Astley e todas as bocas
abertas em assombro, e Hugh amarrara o seu cavalo no portão e
entrara a pé, sem fazer barulho. Dera dez passos para dentro do
pátio, quando o seu olhar caiu primeiro sobre o cavalo cinzento e o
pônei preto, cobertos pela espuma seca da sua corrida apressada e
agora seguros por um moço de estrebaria, que permanecia de boca
aberta a olhar para o grupo emoldurado na passagem do claustro.
Hugh seguiu o olhar fixo e fascinado do homem e olhou de relance o
mesmo espetáculo arrebatador, o abade e Fulke Astley cara a cara
em óbvia confrontação, e o Irmão Paul com um braço
protetoramente colocado sobre os ombros de um rapaz pequeno,
nervoso, sujo e desgrenhado que erguia para a luz da noite a cara
de olhos abertos, meio assustado, meio desafiador, de Richard
Ludel.
Radulfus, de pé, desdenhosamente silencioso sob o abuso, foi o
primeiro a reparar na nova aparição em cena. Olhando facilmente
por cima da cabeça do seu adversário, com a sua altura bem o
podia fazer, disse distintamente: — Sem dúvida, o senhor xerife
prestará a atenção devida às tuas acusações. Tal como também
deverá estar interessado em saber como é que Richard apareceu
em Leighton, sob os teus cuidados, ontem à noite. Deves remeter as
tuas queixas para ele — Fulke rodou sobre um calcanhar tão
precipitadamente que perdeu o equilíbrio; e já Hugh se precipitava,
rapidamente, pelo pátio fora para se juntar a eles, uma sobrancelha
ardilosa inclinada na direção do seu cabelo escuro e o olhar, vivo e
arguto, fixado sobre Fulke.
— Bem, bem, meu senhor! — disse Hugh, amigavelmente. —
Vejo que se apressou a descobrir e a devolver o malandreco que eu
não consegui encontrar no seu feudo de Leighton. Eis-me aqui,
acabado de chegar desse domínio, para informar o senhor abade
como guardião de Richard do meu fracasso e, aqui, venho a
descobrir que tem andado a fazer o meu trabalho, enquanto eu ando
à caça do ganso selvagem. Acho isso muito simpático da sua parte.
Terei isso em consideração quando tiver de considerar a pequena
questão de rapto e de aprisionamento forçado. Parece que o
pássaro dos bosques que sussurrou ao meu ouvido que Richard
estava em Leighton contou-me simplesmente a verdade, pois eu
não encontrei qualquer rasto dele quando o tentei aí encontrar e
ninguém que admitisse que ele alguma vez lá tivesse estado. Você
apenas deve ter saído da casa durante meia hora e por outro
caminho quando eu a alcancei vindo da estrada — o seu olhar
observador vagueou sobre a figura tensa e cara preocupada de
Richard, e repousou por fim no abade. — Acha que ele se encontra
em boa forma e sem qualquer dano, meu senhor? Não lhe
aconteceu nenhum mal?
— Nenhum ao seu corpo, certamente — disse Radulfus. — Mas
há outra questão por resolver. Parece que um qualquer tipo de
casamento teve lugar ontem à noite em Leighton, entre Richard e a
filha do senhor Fulke. Com isso Richard concorda, mas diz que não
foi um casamento verdadeiro, visto que o eremita Cuthred que o
celebrou não é um padre.
— Diz-me uma coisa dessas? — Hugh fechou os lábios num
assobio sem som e girou sobre Fulke, que permanecia mudo, mas
alerta, demasiado consciente da necessidade de se manter
cuidadoso e de pensar antes de falar. — E o que tem a dizer acerca
disso, meu senhor?
— Eu digo que é uma acusação absurda que nunca fará sentido.
Ele veio ter conosco com a boa vontade dos irmãos de Buildwas.
Nunca ouvi nenhum mal a seu respeito e nem agora acredito nisso.
Lidamos com ele de boa fé.
— Disso tenho eu certeza que é a verdade — disse o abade
razoavelmente. — Se existe alguma coisa nesta acusação, aqueles
que desejaram este casamento nada sabiam acerca disso.
— Mas Richard, creio eu, não o desejou — disse Hugh com um
sorriso, de certo modo, temível. — Isto não pode ficar assim, temos
de apurar a verdade.
— Portanto estamos todos de acordo — disse Radulfus, — e o
senhor Fulke concordou em encontrar-se comigo, amanhã depois
da hora prima, no eremitério e ouvir o que o homem tem para dizer.
Estava prestes a mandar chamá-lo, meu senhor xerife, e contar-lhe
toda esta situação e pedir-lhe para me acompanhar amanhã. Esta
cena — disse ele, lançando um olhar autoritário em redor, para o
seu rebanho que se mantinha demasiado atento — não precisa de
ser prolongada, creio eu. Se jantar comigo, Hugh, irá saber tudo o
que aconteceu. Robert, faz com que os irmãos prossigam. Lamento
que a nossa noite tenha sido tão rudemente interrompida. E, Paul...
— olhou para baixo para Richard, que tinha um punho firmemente
fechado numa dobra do hábito de Paul, pronto para se agarrar com
força, tivesse a sua posse sido ameaçada. — Leva-o daqui, Paul.
Limpa-o, alimenta-o e volte com ele depois do jantar. Ele tem muito
para contar ainda. Vão todos, não há aqui mais nada para ver.
Os irmãos se afastaram obedientemente para o lado e
deslocaram-se um tanto descoordenadamente para prosseguirem
com a ordem da noite que fora interrompida, embora ainda fosse
haver sussurros furtivos até mesmo no refeitório do mosteiro, e uma
grande quantidade de conversas entusiasmadas depois disso na
hora de lazer antes das Colações. O Irmão Paul conduziu dali para
fora o seu cordeiro recuperado, para ser lavado e tornado
apresentável perante o abade e o xerife, depois do jantar. Aymer
Bosiet, que vira com uma certa satisfação malévola a crise e
confusão de outra pessoa como um alívio da sua própria,
distanciou-se taciturnamente e atravessou o pátio até o salão dos
hóspedes. Cadfael moveu-se, subitamente, para olhar para trás e
não encontrou a pessoa que procurava. Rafe de Coventry não se
encontrava em lado nenhum e agora que Cadfael refletia sobre isso,
ele devia ter saído silenciosamente algum tempo antes de toda a
cena ter terminado. Porque ele não tinha interesse nenhum nela e
era bem capaz de se distanciar de um espetáculo que mantinha a
maioria dos homens encantados? Ou porque ele encontrara algo
nela que lhe interessara profunda e urgentemente?
Fulke Astley manteve-se hesitante, olhos nos olhos com Hugh e
incerto se lhe seria melhor tentar dar explicações e justificações, ou
retirar-se se lhe fosse permitido retirar-se num silêncio digno ou,
pelo menos, com o menor número possível de palavras e sem
concessões.
— Amanhã então, meu senhor — disse ele rapidamente -. estarei
no ermitério de Cuthred, como prometi.
— Ótimo! E será melhor — disse Hugh — informar a patrona do
eremita, de modo a que esta saiba o que irá ser debatido contra ele.
Ela própria pode desejar estar presente. E por agora, meu senhor,
não preciso mais de si. E para o caso de vir a precisar de si no
futuro, sei onde encontrá-lo. Pode ter bons motivos para se sentir
satisfeito pela fuga de Richard. Dano desfeito é melhor esquecido. É
claro que desde que de futuro não haja mais mal em premeditação.
Com aquilo, Fulke fez o melhor que pôde. Com uma curta
reverência ao abade, virou-se para reclamar o seu cavalo, montou e
cavalgou pela casa do portão a um passo deliberado e imponente.
O Irmão Cadfael, chamado para se juntar ao colóquio nos
alojamentos do abade, depois do jantar, desviou-se do seu caminho
com um impulso súbito e dirigiu-se para o pátio do estábulo. O pônei
preto de Richard estava satisfeito e confortável na sua baia após a
corrida vigorosa, já tratado e, tendo bebido, alimentava-se agora
placidamente. Porém, o grande cavalo castanho com a mancha
branca na testa desaparecera do local, com sela, arreios e tudo.
Qualquer que tenha sido o motivo para a sua silenciosa partida,
Rafe de Coventry seguira para alguma incumbência local.
Richard estava sentado num banco baixo aos joelhos do abade,
lavado, escovado e devidamente grato por estar em casa, e contou
a sua história ou a parte que achou necessário contar. Tinha uma
audiência interessada. Estavam presentes, para além do abade,
Hugh Beringar, o Irmão Cadfael que aceitara o pedido de Hugh e o
Irmão Paul, ainda relutante em deixar o prodígio recuperado longe
da sua vista. Richard tolerara, chegando mesmo a apreciar, o ser
abanado, o levar estalos, o ser esfregado e ter percorrido todo o
processo caótico que produzira este rapaz de escola, impecável e
brilhante, para a inspeção do abade. Existiam hiatos na sua história
e ele sabia que haveriam de ser questionados, mas Radulfus era de
família nobre e compreenderia que um nobre não pode trair aqueles
que o ajudaram, ou mesmo certos subalternos que através da
instigação dos seus mestres lhe tinham feito mal.
— Reconhecerias os dois que te capturaram e levaram para
Wroxeter? — perguntou Hugh.
Richard considerou a tentadora perspectiva de vingança sobre o
jovem tipo que o amarrara, que se rira da sua luta e que obstruíra a
sua passagem pelo vau, mas rejeitou-a relutantemente como
desmerecedora da sua nobreza.
— Não posso ter certeza. Estava escurecendo.
Não o pressionaram. Em vez disso, o abade perguntou: — Tiveste
ajuda para escapar de Leighton? Não conseguirias ter fugido por ti
próprio, ou então o farias mais cedo.
Responder a isso constituía um problema. Certamente que se ele
dissesse a verdade, aqui entre amigos, não causaria mal a Hiltrude,
mas se isso chegasse aos ouvidos do pai dela, haveria problema.
Era melhor manter a história como ela deve ter contado, que a porta
foi deixada inadvertidamente destrancada e ele conseguiu encontrar
a saída. Cadfael observou o súbito rubor que cobriu as faces bem
esfregadas do rapaz, enquanto ele contava esta parte das suas
aventuras, com notável brevidade e modéstia. Se tivesse sido
verdade, ele mostrar-se-ia exultante com esse fato.
— Ele devia ter sabido que peixe escorregadio apanhara — disse
Hugh, sorrindo. — Mas tu ainda não nos contaste porque é que
saíste da abadia em primeiro lugar, nem quem é que te contou que
aquele eremita não é o padre que diz ser.
Isto era a sua cruz e Richard estivera a pensar nisso com uma dor
e esforço pouco habituais, enquanto se submetia à homilia afetuosa
do Irmão Paul sobre obediência e ordem, e as consequências
maléficas que seriam esperadas por se transgredirem as suas
regras. Olhou, cautelosamente, para cima para a cara do abade,
lançou um olhar de soslaio e pouco à vontade para Hugh, cujas
reações como a autoridade secular eram menos previsíveis, e disse
seriamente: — Pai, disse que lhe contaria, mas não disse que
haveria de contar a mais alguém. Existe alguém que pode ser
prejudicado se eu contar o que sei a seu respeito e sei que ele não
o merece. Não posso colocá-lo em perigo.
— Eu não desejaria que tu quebrasses uma promessa feita a
qualquer homem — disse Radulfus gravemente. — Amanhã, eu
próprio ouvirei a tua confissão e me dirás então, e descansa que
fizeste bem, e a tua confissão é sagrada. Agora o melhor é ires para
a cama, pois calculo que precises. Leva-o, Paul!
Richard fez as suas reverências cerimoniais, satisfeito por ter
conseguido escapar-se tão facilmente, mas enquanto passava por
onde Hugh estava sentado, hesitou e parou, ainda com algo em
mente.
— Meu senhor, disse que toda a gente de Leighton disse que eu
nunca lá tinha estado, é claro que tinham medo de dizer outra coisa.
Mas a Hiltrude disse isso?
Hugh era capaz de fazer ligações, talvez mais rapidamente do
que a maioria dos homens, mas se fez esta instantaneamente, não
deu sinais disso.
— Essa é a filha de Astley? Eu nunca falei com ela, ela não
estava em casa — respondeu, com uma gravidade respeitosa e um
semblante vazio.
Não estava lá! Por isso ela não teria de mentir. Ela devia ter-se
esgueirado discretamente assim que o seu pai saíra. Richard
despediu-se, aliviado e agradecido, e partiu para a sua cama com
um coração iluminado.
— É claro que ela o deixou sair — disse Hugh, assim que a porta
se fechou atrás do rapaz. — Ela não era menos vítima do que ele.
Agora começo a ver um padrão. Richard é agarrado quando
regressa de cavalo através da floresta de Eyton, e o que é que se
encontra na floresta de Eyton e ao longo daquele caminho, senão a
cabana de Eilmund e o eremitério? E para o eremitério, sabemos
que ele não foi. E quem haveria de chegar hoje, por volta do meio-
dia, a Shrewsbury e enviar-me apressadamente para Leighton, que
de outra maneira eu não teria alcançado antes de amanhã, senão a
moça de Eilmund? E onde ela soube estas notícias, nunca o disse
abertamente, mas um aldeão de passagem disse que tinha visto por
lá um rapaz que bem podia ser o Richard. E Richard, mais honesto,
não dirá porque se dirigiu até lá sozinho, nem quem lhe disse que o
eremita não é um padre verdadeiro. Pai, parece-me que alguém,
não vamos tão longe quanto dar-lhe um nome!, tem muitos bons
amigos entre os nossos conhecidos. Espero que também sejam
bons juízes! Bem, amanhã, de qualquer modo, não haverá caçada.
Richard está seguro em casa consigo. E para dizer a verdade,
duvido que a outra caça alguma vez saia da sua cobertura. Amanhã,
o nosso assunto matinal está delineado para nós. Primeiro vamos
ver isso resolvido.
Assim que a hora prima terminara, eles montaram e partiram, o
Abade Radulfus, Hugh Beringar e o Irmão Cadfael que em qualquer
caso ia a caminho da cabana de Eilmund, nesse dia, para ver como
é que o couteiro estava a progredir. Não era de modo nenhum a
primeira vez que ele ajustava as suas visitas legítimas para se
acomodarem à sua curiosidade justificada. Que pudesse contar com
Hugh para auxiliar os seus planos era uma vantagem acrescida, e
uma testemunha adicional com um olhar atento às ínfimas
mudanças, através das quais o semblante humano se trai, podia ser
inestimável nesse encontro.
A manhã estava liberta da névoa dos últimos dias e um vento
constante e seco levantara-se, o qual estava a encrespar as folhas
caídas nas áleas da floresta, colorindo com uma tonalidade dourada
aquelas que ainda pendiam nas árvores. A primeira geada tornaria
as coroas da floresta brilhantes com as suas cores ruivas,
castanhas e chamejantes. Mais uma semana ou duas, pensou
Cadfael, e não deixará de existir abrigo para Hyacinth nas árvores,
quando visitantes inconvenientes vierem à cabana, pois até os
carvalhos estarão meio despidos. Mas dentro de mais uns dias, se
Deus quisesse, Aymer teria abandonado a sua vingança, cortaria as
suas despesas e apressar-se-ia para assegurar os seus ganhos em
casa. O corpo do seu pai estava seguro no caixão e, apesar de só
ter dois lacaios com ele, ainda existia o cavalo de Drogo, que
serviria como segunda montaria para um novo dono apressado, e
ele não teria dificuldade em contratar carregadores de liteiras em
cada fase da sua viagem. Tinha já passado a pente fino toda a
região sem sucesso e mostrava sinais distintos de se encontrar
dividido entre dois locais desejados, dos quais certamente o mais
proveitoso venceria por fim. A liberdade de Hyacinth podia estar
mais próxima do que ele julgava. E ele já se servira dela e merecia-
a bem, pois quem mais poderia ter dito a Richard que o eremita não
era aquilo que dizia ser? Hyacinth viajara com ele, conhecera-o bem
antes de ele ter posto pé em Buildwas. Hyacinth podia muito bem
saber coisas acerca do seu mestre reverendo que não eram
conhecidas de mais ninguém.
O denso bosque escondia-lhes o eremitério, só o vendo quando já
estavam muito próximos. A súbita separação das árvores perante
eles surgia sempre como uma surpresa, como se num instante se
retirasse o véu à pequena clareira verde, com as paliçadas baixas
que constituíam uma mera vedação simbólica em volta do jardim e a
atarracada cela de pedra cinzenta, remendada com um cinzento
pálido e mais recente das suas reparações. A porta da casa estava
aberta, como Cuthred dissera que sempre estaria, para todos que
chegassem. Não havia ninguém a trabalhar no jardim meio limpo,
nem nenhum som lhes chegava do interior da cela, enquanto
desmontavam na passagem sem portão e amarravam os seus
cavalos. Cuthred devia estar no interior e, pelo silêncio, talvez nas
suas orações.
— Vai primeiro, Pai — disse Hugh. — Isto está mais dentro do teu
mandado judicial do que do meu.
O abade inclinou a cabeça para passar pela entrada de pedra e
permaneceu imóvel durante um momento no interior, até os seus
olhos se acostumarem à obscuridade. A única janela estreita
deixava entrar a esta hora uma luz pálida, devido às árvores
pendentes, e as formas dentro do quarto nu começaram
gradualmente a ganhar substância, o estreito colchão de palha
contra a parede, a pequena mesa e banco, as poucas vasilhas,
prato, chávena e tigela de cerâmica. A abertura sem porta para o
interior da capela revelava a pedra do altar através do pequeno
brilho da lanterna colocada sobre ela, mas deixava toda a parte
inferior na obscuridade. A lanterna ardera quase até o fim e pouco
mais era mais do que uma faísca.
— Cuthred! — chamou Radulfus na direção do silêncio. — Estás
aí dentro? O abade de Shrewsbury saúda-te em nome e na graça
de Deus!
Não houve resposta, apenas o pequeno eco que rebateu na
pedra. Hugh passou e avançou através da passagem da capela e aí
parou abruptamente, inspirando ar com um silvo.
Cuthred estava de fato no interior, mas não nas suas preces.
Estava deitado ao comprido de costas debaixo do altar, a sua
cabeça e ombros apoiados contra a pedra, como se tivesse caído
ou tivesse sido empurrado para trás, embora tivesse estado virado
para a entrada. O hábito caía-lhe em dobras negras à sua volta,
revelando pés e tornozelos sinuosos, e o peito do hábito estava
manchado e enegrecido com uma longa mancha, onde ele sangrara
da facada que o matara. A sua cara, entre o corte negro de cabelo e
barba emaranhados, estava contorcida num trejeito que podia ter
sido de agonia ou de raiva, os lábios arrepanhados e afastados dos
dentes fortes, os olhos luzindo semiabertos. Os seus braços
estavam completamente abertos e ao lado da sua mão direita, como
que liberto no momento da queda, um longo punhal repousava
caído no chão de pedra.
Padre ou não, Cuthred nunca iria testemunhar em sua própria
defesa. Não havia necessidade de se questionarem ou de o tocarem
para verem que ele estava morto havia algumas horas, e que fora
violentamente morto.
— Cristo nos ajude! — disse o abade num sussurro severo e
permaneceu petrificado olhando o corpo. — Deus tenha misericórdia
de um homem assassinado! Quem pode ter feito uma coisa destas?
Hugh estava de joelhos ao lado do homem morto, tocando-lhe a
carne já fria e que se assemelhava a cera ao tato. Não havia agora
nada que pudesse ser exigido ao eremita Cuthred e nada para ser
feito por ele neste mundo, faltando-lhe apenas o equilíbrio final da
justiça.
— Foi, pelo menos, morto há algumas horas. Um segundo
homem abatido dentro do meu condado e ainda sem encontrar
vingança para o primeiro! Por amor de Deus, o que é que anda à
solta nestes bosques, que provoca tal efeito diabólico?
— Pode isto ter, possivelmente, alguma coisa — considerou o
abade pesadamente — a ver com o que o rapaz nos disse? Terá
alguém agido primeiro para o impossibilitar de responder em sua
própria defesa? Para enterrar a prova com o homem? Tem havido
um conluio tão resoluto acerca deste casamento, tudo por ganância
de terra, mas certamente não seria levado tão longe quanto a
assassinato?
— Se isto é assassinato — disse o Irmão Cadfael, mais para si
próprio do que para qualquer outro, mas em voz alta. Ele
permanecera quieto e silencioso na entrada durante todo esse
tempo, olhando à sua volta atentamente para o quarto que ele
recordava bem de uma única visita, um quarto tão escassamente
mobilado, que cada detalhe era memorável. A capela era mais
ampla do que a sala de estar da cela, havia aqui o espaço para
movimento livre, até mesmo para uma luta. Apenas a parede
oriental estava construída debaixo da sua pequena janela
quadrangular, com a grande pedra elaborada do altar e por cima
dessa, o pequeno relicário esculpido, sobre o qual estava a cruz de
prata, e de ambos os lados um candelabro de prata suportando uma
vela alta e apagada. Na pedra perante o relicário, a lanterna e
impecavelmente disposta em frente dela... mas não havia nada
disposto em frente dela. Estranho o homem ter sido atirado para o
chão desordenadamente e sem consideração, mas o altar
permanecer tão ornamentado e imperturbado. E apenas uma coisa
faltava da imagem que Cadfael transportava na sua mente. O
breviário com o laço de cabedal adequado para um príncipe,
manufaturado com arabescos intrincados e folhas e ornamento
dourado, desaparecera.
Hugh ergueu-se e afastou-se para observar o quarto como
Cadfael o estava a fazer. Tinham-no visto juntos e, como tal, as suas
memórias deveriam assemelhar-se. Lançou um olhar penetrante a
Cadfael.
— Vês motivo para duvidar?
— Vejo que ele estava armado — Hugh olhava para baixo para o
longo punhal que permanecia tão perto da mão entreaberta de
Cuthred. Ele não lhe tocara. Recuou e não tocou em nada, agora
que sabia que a carne que se encontrava perante ele estava fria. —
Perdeu-o quando caiu. Aquele punhal é dele. Foi usado. Tem
sangue, não o seu sangue. O que quer que tenha aqui acontecido,
não foi uma facada furtiva pelas costas.
Isso era certo. A ferida estava localizada sobre o coração, a
endurecida mancha de sangue chegara meio do peito. O punhal que
matara este homem fora retirado e deixara sair o seu fluxo vivo. A
outra arma caída no chão estava manchada apenas na ponta com o
equivalente a uma gota de sangue, e mal derramara essa gota
sobre a pedra onde jazia.
— Estás a dizer — perguntou o abade, libertando-se da sua
quietude horrorizada — que isto foi uma luta? Mas como poderia um
santo eremita ter uma espada ou um punhal consigo? Mesmo para
sua própria defesa contra ladrões e vagabundos, tal homem não
recorreria a armas, colocaria a sua fé em Deus.
— E se foi um ladrão — disse Cadfael —, era um ladrão muito
estranho. Estão aqui cruz e candelabros de prata e não foram
levados, nem mesmo retirados do seu lugar, durante a luta. A não
ser que tenham sido colocados no mesmo lugar logo a seguir.
— Isso é verdade — confirmou o abade, e abanou a cabeça sobre
tão inexplicável mistério. — O objetivo não era roubar. Mas para
quê, então? Porque haveria qualquer homem de atacar um religioso
solitário, sem posses por opção e cujos únicos valores são as
mobílias deste altar? Vivia em paz entre nós e era-nos útil, para
todos os efeitos receptivo e acessível a todos os que viessem com
as suas necessidades e problemas. Porque desejaria alguém fazer-
lhe mal? Pode esta ser a mesma mão que matou o suserano de
Bosiet, Hugh? Ou devemos nós recear termos dois assassinos entre
nós?
— Há ainda o seu rapaz — disse Hugh, enrugando a testa com a
ideia, mas incapaz de a pôr de lado. — Ainda não o encontramos e
comecei a pensar que ele partira em direção a oeste e conseguira
livrar-se, indo para Gales. Mas ainda é possível que ele tenha
permanecido por aqui perto. Alguém que acredite nele pode estar a
abrigá-lo. Temos motivos para assim pensar. Se ele é de fato o
servo que fugiu de Bosiet, teve algum motivo para se ver livre do
seu mestre. E imaginem que Cuthred, que o rejeitou ao saber que
fora enganado, encontrou o seu esconderijo, sim, então ele também
pode ter motivos para matar Cuthred. Sendo que todos são uma
mera questão para conjectura. A qual não pode ainda ser rejeitada.
“Não”, pensou Cadfael, “não até Aymer Bosiet ter feito o seu
caminho de regresso a Northamptonshire, e Hyacinth poder sair do
seu esconderijo e falar por si, bem como Eilmund, Annet e Richard
possam falar por ele. Pois entre eles os três, eu tenho certeza que
pode ser provado exatamente onde Hyacinth esteve em todas as
alturas, e ele não esteve aqui. Não, nós não precisamos de nos
preocupar com Hyacinth. Mas eu desejava”, pensou
pesarosamente, “eu desejava que eles me tivessem deixado
confidenciar a Hugh há muito tempo”.
O Sol erguia-se agora mais alto no céu e o ângulo, que
atravessava as árvores, derramava mais luz sobre o corpo retorcido
e lastimável. As saias do seu hábito negro puído estavam recolhidas
para um dos lados, como se um grande punho as tivesse arrastado,
e aí o tecido de lã estava coagulado com uma mancha escura
pegajosa. Cadfael ajoelhou-se e afastou as dobras e elas
separaram-se com uma tênue e sussurrante relutância.
— Ele limpou aqui o punhal — disse Cadfael — antes de o cravar
novamente.
— Duas vezes — acrescentou Hugh, pois havia uma segunda
mancha, mas pouco perceptível. Um homem metódico limpando fria
e eficientemente as suas ferramentas depois de ter terminado o seu
trabalho! — E vê aqui, esta caixa no altar! — Ele rodeara
cuidadosamente o corpo para observar de perto a caixa de madeira
esculpida e passar um dedo ao longo da extremidade da tampa, por
cima da fechadura. A falha não era maior do que a unha de um
dedo, mas mostrava onde a ponta de um punhal fora espetada para
abrir a caixa. Tocou na fechadura e levantou a tampa, a qual cedeu
prontamente. A fechadura estava solta e partida e a caixa vazia.
Apenas o tênue odor aromático da madeira se agitava no ar. Não
havia sequer um pouco de pó no seu interior, a caixa fora bem
construída.
— Afinal de contas, parece que algo foi levado — disse Cadfael.
Não mencionou o breviário, apesar de não duvidar que Hugh
reparara na sua falta tão rapidamente quanto ele.
— Mas não a prata. O que poderia um eremita ter de grande valor
para além a prataria da Dama Dionísia? Ele veio a pé para
Buildwas, transportando apenas uma bolsa de viajante, como outro
qualquer peregrino, apesar de se certificar que o seu rapaz também
lhe carregava um embrulho. Agora penso — disse Hugh — se este
cofre foi igualmente presente da senhora ou se ele o trouxe com
ele?
Estavam tão atentos ao que estavam a observar, que não
prestaram atenção ao que se passava lá fora, e não ouviram
nenhum som que os avisasse. E com o choque do que tinham
descoberto, quase tinham esquecido que pelo menos mais uma
testemunha era esperada neste encontro. Mas foi a voz de uma
mulher, não a de Fulke, que repentinamente falou da entrada por
trás deles, alta e confiantemente, e com um tom de desaprovação
arrogante.
— Não é preciso admirar-se, meu senhor. Seria simples e cívico
perguntar-me.
Os três deram meia volta, espantados e alarmados, para se
depararem com a Dama Dionísia, alta, ereta e desafiante, entre
eles, e a clara luz do dia, da qual ela saíra, deixara-a quase cega,
ao entrar nesta relativa obscuridade. Eles encontravam-se entre ela
e o corpo e não havia nada que a pudesse surpreender ou alarmar,
a não ser o simples fato de Hugh permanecer com a sua mão
colocada sobre a caixa aberta e a cruz ter sido descida. Isto ela viu-
o claramente, embora a luz moribunda da lamparina não iluminasse
mais nada assim tão bem. E ela estava enfurecida.
— Meu senhor, o que é isto? O que está a fazer com estas coisas
sagradas? E onde está Cuthred? Atreveu-se a bisbilhotar na
ausência dele?
O abade mexeu-se para se colocar mais solidamente entre ela e o
homem morto, e avançou para a persuadir a sair da capela.
— Madame, saberá tudo, mas suplico-lhe que venha até o outro
quarto, sente-se e espere um momento até nós colocarmos tudo em
ordem por aqui. Não há aqui nenhuma irreverência, prometo-lhe.
A luz exterior escureceu devido ao tamanho de Astley, que
espreitava sob o ombro dela, bloqueando a retirada que o abade
tentava apressar. Ela permaneceu no mesmo local, imperiosa e
indignada.
— Onde está Cuthred? Ele sabe que está aqui? Como é que ele
deixou a sua cela? Ele nunca o faz... — a mentira terminou nos seus
lábios com uma aguda inspiração. Para além do hábito do abade,
ela vira algo pálido sobressaindo do amontoado de saias escuras,
um pé que perdera a sua sandália. A visão dela era mais clara
agora. Evitou a mão do abade e lançou-se para a frente, passando
por ele. Todas as perguntas dela foram respondidas através de um
olhar devastador. Cuthred estava de fato ali e, pelo menos, nesta
ocasião não deixara a sua cela.
A compostura demorada e patrícia da sua cara tornou-se um
cinzento de cera e pareceu desintegrar-se, as suas linhas vincadas
descaindo. Articulou um grande lamento, mais de terror do que de
desgosto, e quase saltou, quase caiu para trás, nos braços de Fulke
Astley.
13

Ela nem desmaiou nem chorou. Não era mulher para fazer
qualquer das coisas levianamente. Mas sentou-se durante um
grande bocado e muito direita sob a cama de Cuthred na outra sala,
rígida, pálida e olhando em frente, diretamente através da parede de
pedra que se encontrava à sua frente e para aquilo que existia para
lá dela. Era duvidoso se ela ouvira algumas das palavras
cuidadosamente medidas do abade, ou as nervosas fanfarronadas
de Astley. oferecendo alternadamente galanterias de conforto, as
quais ela não valorizava nem precisava, e simultaneamente
recordando-lhe fervorosamente que este crime deixava todas as
questões por responder e, de um modo nada lógico, provava que o
eremita fora de fato um padre e que o casamento que ele celebrara
era ainda um casamento. Pelo menos, ela não prestou atenção a
nenhum deles. Ela tinha passado para lá de qualquer tipo de
considerações. Todos os seus antigos planos se tinham tornado
irrelevantes. Tinha olhado de perto para a morte súbita,
inconfessada, sem absolvição e não queria fazer parte dela. Cadfael
viu isso nos seus olhos quando saía da capela, tendo feito o que
podia para deitar o corpo de Cuthred, direito e decentemente, agora
que lera tudo o que este tinha para lhe dizer. Através daquela morte
ela estava a confrontar a sua própria e não tinha intenção de se
encontrar com todos os seus pecados. Ou ainda durante muitos
anos, mas fora avisada de que se ela estava disposta a esperar, a
morte podia não estar.
Finalmente perguntou, numa voz perfeitamente normal, talvez
mais moderada do que aquela que normalmente usava com a sua
casa ou os seus inquilinos, mas sem se mexer ou retirar os seus
olhos do seu grande inimigo: — Onde está o senhor xerife?
— Partiu para arranjar um grupo para levar daqui o eremita —
disse o abade. — Para Eaton, se assim o desejar, para ser lá
tratado, visto que era a patrona dele. Ou, para lhe poupar
recordações dolorosas, para a abadia. Será lá devidamente
recebido.
— Seria uma bondade — respondeu ela lentamente — se o
levasse. Já não sei o que pensar. Fulke contou-me o que o meu
neto diz. O eremita já não pode responder por ele próprio, nem eu
por ele. Acredito, sem qualquer dúvida, que ele era um padre.
— Disso, madame — disse Radulfus —, eu nunca duvidei. O foco
do olhar fixo de Dionísia diminuíra e um pouco de cor voltara à sua
cara cor de cera. Já estava no seu caminho de regresso, e em breve
agitar-se-ia, recompor-se-ia e virar-se-ia para olhar para o
verdadeiro mundo em seu redor, em vez das distâncias desertas do
dia do julgamento. E encararia o que tivesse de encarar com a
mesma coragem feroz e obstinação com a qual conduzira no
passado as suas batalhas.
— Pai — disse ela, virando-se na direção dele com abrupta
resolução —, se eu for esta noite à abadia, você ouvirá a minha
confissão? Dormirei melhor quando tiver expiado os meus pecados.
— Sim, ouvirei — disse o abade.
Ela estava então pronta para ser levada para casa e Fulke estava
demasiado ansioso por escoltá-la. Sem dúvida ele, que tinha muito
pouco para dizer aqui entre esta companhia, seria suficientemente
volúvel em privado com ela. Não possuía a inteligência dela, nem de
longe uma imaginação tão fértil. Se a morte de Cuthred espalhara
alguma sombra sobre ele, era somente a humilhação de não ser
capaz de apresentar prova do casamento da sua filha, e nem por
sombras pensou numa mão ossuda pousada no seu ombro. “Assim
de qualquer modo”, pensou o Irmão Cadfael observando-o a segurar
o braço de Dionísia conduzindo-a até onde o seu pequeno cavalo
espanhol estava amarrado, apressando-se para a distanciar e livrar
da presença assustadora do abade.
No último momento, com as rédeas reunidas na mão, ela virou-se
repentinamente para trás. A sua cara recuperara todo o seu orgulho
e força, e era ela mesma novamente.
— Só agora me lembrei — disse ela — que o senhor xerife estava
a falar acerca da caixa que estava no altar. Era de Cuthred. Ele
trouxe-a consigo.
Quando o abade, os carregadores da liteira e Hugh já se
encontravam a percorrer o seu lento e sombrio caminho de regresso
à abadia, Cadfael olhou uma última vez em redor da capela deserta
mais atentamente, porque estava sozinho e sem distrações. Não
havia uma única mancha de sangue nas lajes do chão onde o corpo
estivera caído, apenas uma gota ou duas deixadas pela ponta do
próprio punhal de Cuthred. Ele ferira certamente o seu adversário,
apesar da ferida poder não ser muito profunda, Cadfael avistou uma
unha do altar até a entrada e seguiu-a com uma vela acesa na mão.
Não encontrou mais nada na capela e, no quarto exterior, o chão era
de terra batida e tais rastros desvanecidos eram difíceis de
encontrar depois de passarem algumas horas. Porém, na ombreira
da porta, encontrou três gotas caídas, agora secas mas visíveis, e
na nova e imaculada madeira, com a qual a ombreira esquerda da
entrada fora reparada, existia uma mancha obscurecida de sangue
ao nível do seu próprio ombro, por onde uma manga rasgada e
ensanguentada certamente passara.
Não era, então, um homem muito mais alto do que ele próprio e o
punhal de Cuthred ferira-o no ombro ou na parte superior do braço
do lado esquerdo, como uma tentativa de golpe direita ao coração.
Cadfael pretendia ir a cavalo até a cabana de Eilmund, mas
seguindo um impulso mudou de ideias, pois parecia-lhe que, afinal
de contas, não se podia dar ao luxo de perder o que quer que se
seguisse quando o corpo de Cuthred fosse trazido para o pátio na
abadia, para consternação de muitos, alívio talvez de alguns e
possível perigo de um em particular. Em vez de seguir pelos atalhos
no interior da floresta, montou e voltou cavalgando apressadamente
em direção a Shrewsbury, para se unir ao cortejo fúnebre.
Assim que entraram no Foregate, arranjaram uma estranha
audiência, um grupo de rapazes e cães curiosos que seguiram ao
lado deles ao longo de toda a estrada, e até mesmo os respeitáveis
cidadãos os seguiram a uma distância mais discreta, cautelosos
com o abade e o xerife, mas ávidos de informações e criando
rumores, tão depressa como as moscas se criam nas pilhas de
estrume de Verão. Até mesmo quando o cortejo virou em direção ao
portão, o bom povo do mercado, da ferraria e da taberna reuniu-se
no exterior para espreitar curiosamente para dentro e continuaram
as suas especulações com prazer.
E ali no grande pátio, enquanto transportavam um ataúde vindo
do mundo exterior, outro funeral reunia-se preparando-se para partir.
O caixão selado de Drogo Bosiet encontrava-se em cima de uma
carroça baixa e leve, contratada na cidade com o seu condutor para
este primeiro dia de viagem, o qual seria feito numa boa estrada.
Warin ficou a segurar dois dos cavalos selados, enquanto o lacaio
mais novo estava ocupado a ajustar um saco de sela completo de
modo a equilibrar devidamente o peso antes de o carregar. Ao ver
toda esta atividade, Cadfael respirou profundamente em sinal de
gratidão, sensível ao fato de que, pelo menos, um dos perigos
estava a ser removido mais depressa do que ele se atrevera a
esperar. Aymer decidira-se finalmente. Iria regressar a casa para se
assegurar da sua herança.
Os participantes de um funeral não podiam parar o que estavam a
fazer para olhar fixamente para os participantes de outro. E Aymer,
saindo do salão de hóspedes com o Irmão Denis a seu lado, para
desejar ao comboio de partida boa viagem, parou no cimo das
escadas apreciando a cena com uma expressão surpresa e astuta,
os seus olhos demorando-se mais sobre a forma e face coberta.
Desceu a escadaria a passos largos atravessando o pátio com
determinação até onde Hugh acabava de desmontar.
— O que se passa, senhor? Outra morte? A caçada pegou por fim
a minha presa? Alas morta? — Mal sabia se havia de se sentir
satisfeito ou lamentar ser este o cadáver do seu servo fugido. O
dinheiro e os favores que a habilidade de Hyacinth rendiam eram
valiosos, mas a vingança seria igualmente um ganho satisfatório, e
assim esta surgia, agora que se desesperara por não ganhar
nenhuma delas e se decidira a voltar a casa.
O abade Radulfus também tinha desmontado e olhava para os
dois grupos, com uma cara pouco comunicativa, pois estes
mostravam a curiosa e perturbadora sugestão da imagem de um
espelho, reunida aquando da chegada e partida dos mortos. Os
criados da abadia, que tinham vindo para segurar nas rédeas do
abade e do xerife, ficavam-se pelas extremidades da assembleia,
relutantes em se deslocarem.
— Não — disse Hugh —, este não é seu homem. Se é que o
rapaz que nós temos caçado é seu. Dele não vimos sinal. Então
volta para casa?
— Já desperdicei tempo e esforço suficientes e não desperdiçarei
mais, apesar de guardar rancor por deixá-lo partir em liberdade.
Sim, estamos de partida. Precisam de mim em casa, há trabalho a
minha espera. Quem é este que trouxeram de volta?
— O eremita que se instalou não há muito tempo na floresta de
Eyton. O seu pai foi visitá-lo — disse Hugh -. pensando que o criado
que ele mantinha pudesse ser o fulano de que andavam à procura,
mas o jovem já dera à sola, por isso nunca foi posto à prova.
— Lembro-me disso, pois o senhor abade contou-me. Então é
este o homem! Eu não voltei lá. Para quê se o rapaz que ele
guardava tinha desaparecido? — Olhou curiosamente para baixo,
para a figura amortalhada. Os carregadores tinham pousado o seu
fardo, aguardando ordens para onde levar o morto. Aymer inclinou-
se e destapou a cara de Cuthred. Eles tinham-lhe puxado para trás
a madeixa selvagem de cabelo das suas têmporas e escovado a
sua barba cerrada, e toda a luz do meio-dia incidiu sobre o
semblante magro, os olhos profundos, as suaves pestanas um
pouco feridas e agora azuladas, o longo nariz direito e patrício e os
lábios cheios, por entre a escura barba. O brilho dos olhos
semiabertos estava agora velado, o rugido nos lábios arrepanhados
cuidadosamente suavizado, de modo a restabelecer a sua severa
graciosidade. Aymer inclinou-se mais de perto, surpreendido e
descrente.
— Mas eu conheço este homem! Não, isso será dizer muito, ele
nunca me disse o seu nome. Mas eu já o vi e falei com ele. Um
eremita, ele? Nunca vi sinais disso anteriormente! Ele usava o
cabelo aparado à maneira normanda e tinha uma barba curta e
aparada, não este arbusto mal cuidado, e estava bem vestido com
bom equipamento de montar, botas e tudo. Não este hábito pesado
e sandálias. E usava espada e punhal à cintura — disse Aymer
positivamente – e, também, como se estivesse acostumado ao uso
deles.
Até ter olhado novamente para cima, ele não estava totalmente
consciente do significado daquilo que dissera, mas a expressão
atenta de Hugh e a questão imediata tornou óbvio que ele tocara em
algo mais vital do que aquilo que ele sabia.
— Tem certeza? — disse Hugh.
— Certeza, meu senhor! Foi apenas uma noite de alojamento,
mas joguei dados com ele ao jantar e vi o meu pai jogar um jogo de
xadrez contra ele. Tenho certeza!
— Onde foi isso? E quando?
— Em Thame, quando andávamos à procura de Brand, perto de
Londres. Ficamos alojados durante a noite com os monges brancos
na nova abadia que eles têm lá. Este homem já lá estava quando
nós chegamos pela noitinha e dirigiu-se para sul no dia seguinte.
Não posso dizer exatamente o dia, mas foi em finais de Setembro.
— Então se o reconhece — perguntou Hugh —, modificada como
está a sua aparência, tê-lo-ia o seu pai reconhecido assim, só de o
olhar?
— Certamente que sim, meu senhor. Os seus olhos eram mais
observadores dos que os meus. Ele sentou-se à frente um tabuleiro
de xadrez com o homem, olhos nos olhos. Haveria de o reconhecer.
“E assim aconteceu”, pensou Cadfael, “quando foi à caça do
servo na cela na floresta e deparou com o eremita Cuthred, que há
coisa de um mês ou mais, não era eremita. E não vivera o tempo
suficiente para regressar à abadia e revelar a qualquer homem o
que sabia. E se ele conhecesse algum grande mal que este ser
transformado fizera? Podia ainda dar a conhecer a outros ouvidos a
palavra casual que haveria de significar mais para eles do que
alguma vez significara para ele, e trazer até a casa na floresta de
Eyton alguém à procura de mais do que um servo feudal fugitivo, e
pior certamente, do que um padre espúrio. Porém, ele não tinha
vivido para ir mais além na sua viagem de retorno do que uma moita
escondida na floresta e suficientemente longe do eremitério para
remover as suspeitas de um santo local, com a reputação de nunca
deixar a sua cela”.
A evidência das circunstâncias não era uma prova positiva,
contudo a Cadfael não restavam dúvidas. Ali perante eles, o corpo
enfiado no caixão e o novo cadáver, descansando por momentos
lado a lado, antes do Prior Robert ter dirigido os carregadores para a
capela mortuária e Aymer Bosiet ter, novamente, coberto a cara de
Cuthred e se ter virado mais uma vez para as suas preparações
para a partida. A sua mente estava noutras coisas, para quê distraí-
lo e detê-lo agora? Mas Cadfael lembrou-se subitamente de fazer
uma pergunta curiosa.
— Que tipo de cavalo montava ele, quando passou a noite em
Thame?
Aymer, que estava a apertar as tiras dos seus alforjes, virou-se
com uma surpresa indiferente, abriu a boca para responder e deu
por si perdido, enrugando a testa pensativamente sobre as suas
memórias daquela noite.
— Ele chegou lá antes de nós. Estavam dois cavalos nos
estábulos do priorado quando nós chegamos. E ele partiu antes de
nós na manhã seguinte. Mas agora que perguntais, quando
montamos, lembro-me que os dois animais que víramos na noite
anterior estavam ainda nos seus estábulos. Isso é estranho! O que
estaria a fazer um homem tão bem provido, cavaleiro pelo seu
aspecto e pelo das suas armas, o que estaria ele a fazer sem um
cavalo?
— Ah, bom, ele pode tê-lo colocado num estábulo noutro lado
qualquer — disse Cadfael, abandonando o quebra-cabeças como se
fosse trivial.
No entanto, não era trivial, era a chave para abrir uma porta muito
estranha na sua mente. Ali perante tantos olhos, jazia o assassino e
o assassinado, lado a lado, justiça já feita.
Mas quem, então assassinara o assassino?
Tinham-se ido todos embora, Aymer no elegante e leve cavalo
ruão do seu pai, Warin com o cavalo que Aymer usara à chegada
conduzido por uma rédea e o jovem criado com o carreteiro e a
carreta. Após as etapas dos primeiros dias, Aymer podia
provavelmente partir a toda a velocidade deixando os criados
trazerem o caixão atrás com o seu passo mais lento e, muito
provavelmente, enviando outros criados para trás ao longo do
caminho para os substituir, assim que chegasse a casa. Na capela
mortuária, Cadfael vira o corpo de Cuthred deitado de modo
decente, cabelo e barba aparados, talvez não tão rente como
quando o cavaleiro em Thame os usara, mas o suficiente para
exibição, na fixa e austera tranquilidade da morte; uma face
suficientemente apropriada para um religioso dignificado. Injusto que
um assassino parecesse tão nobre na morte, como qualquer um dos
paladinos da imperatriz.
Hugh estava enclausurado com o abade e até a data não fora dita
uma palavra a Cadfael do que ele concluía do testemunho de
Aymer, mas através das mesmas questões que ele colocara, era
óbvio que fizera as mesmas ligações que Cadfael e não podia ter
deixado de chegar à mesma conclusão. Falaria primeiro disso com
Radulfus. “O meu papel agora”, pensou Cadfael, “é tirar Hyacinth do
seu esconderijo e deixar que o libertem de todas as suspeitas de
mal. Lembrando, no entanto, o furto ocasional para encher a barriga
enquanto vivia selvagem e uma mentira ou duas, de modo a
conservar-se vivo. E Hugh não lhe guardará rancor quanto a esses.
E isso deveria resolver o assunto da ordenação de Cuthred de uma
vez por todas, se é que ainda existia alguma questão pendente em
relação a isso. Uma súbita conversão pode tornar um soldado um
eremita, sim. mas é preciso muito mais do que isso para fazer um
padre”.
Ele esperou por Hugh na sua oficina no jardim das ervas, onde
Hugh certamente viria à sua procura assim que deixasse o abade. O
seu interior estava calmo, aromático e era caseiro, e Cadfael
estivera demasiado ausente ultimamente. Teria de começar a
pensar, dentro em breve, em encher os seus armazéns com as
necessidades vulgares de Inverno, antes que as tosses e as
constipações começassem e as velhas articulações começassem a
ranger e a gemer. Podia-se confiar no Irmão Winfrid para tomar
conta de modo excelente de todo o trabalho no jardim, no escavar e
retirar das ervas e na plantação, mas aqui dentro ainda tinha muito
para aprender. “Mais uma viagem”, pensou Cadfael, “para ver como
é que está Eilmund e deixar Hyacinth saber que pode e deve
aparecer e falar por si próprio, e então ficarei satisfeito por me fixar
a trabalhar aqui em casa”.
Hugh entrou por entre os jardins e sentou-se ao lado do amigo
com um breve sorriso preocupado e manteve-se silencioso durante
alguns momentos.
— O que eu não compreendo — disse então — é por quê. O que
quer que ele fosse, o que quer que ele tivesse feito anteriormente,
aqui ele parece ter vivido inocentemente. O que pode ter acontecido
de tão perigoso para o fazer querer calar a boca de Bosiet? Pode
ser suspeito modificar a sua própria roupa, a sua aparência e o seu
modo de vida, mas não é um crime. O que havia ali, mais do que
isso, para justificar assassinato? O que há de tão criminoso, à
exceção do assassinato em si?
— Ah! — disse Cadfael com um suspiro de alívio. – Sim, calculei
que visses tudo como eu o vi. Mas não, eu não acho que tenha sido
assassinato o que ele tinha de esconder no anonimato de um hábito
eremita e numa cela de floresta. Esse foi o meu primeiro
pensamento. Mas não é assim tão simples.
— Como tantas vezes — comentou Hugh com um súbito sorriso
de lado —, acho que sabes alguma coisa que eu não sei. E o que foi
aquilo sobre seu cavalo, lá no Thame? O que tem o cavalo dele a
ver com isto?
— Não é o cavalo dele, mas o fato de ele não ter nenhum. O que
esta a fazer um soldado ou um cavaleiro viajando a pé? Um
peregrino pode fazê-lo, sem nunca ser visto. Mas quanto a saber
alguma coisa, eu ter-te-ia dito há muito tempo atrás se me tivessem
deixado, sim, Hugh, eu sei. Eu sei onde está Hyacinth. Contra a
minha vontade, prometi não dizer nada até Aymer Bosiet ter
desistido da perseguição e ter regressado a casa. Como ele agora o
fez, e agora o rapaz pode apresentar-se e defender-se e, como
confia em mim, é bem capaz de o fazer.
— Então é isso — disse Hugh. olhando o seu amigo sem grande
surpresa. — Bem, quem o pode acusar de ser cauteloso, o que
sabe ele a meu respeito? E tanto quanto eu sabia, ele bem poderia
ter sido o assassino de Bosiet, nem tínhamos conhecimento de
outro com tão bom motivo. Agora ele não precisa de dizer uma
palavra sobre isso, a dívida foi reconhecida e paga. E quanto à sua
liberdade, ele não precisa de recear nada da minha parte quanto a
esse assunto. Tenho mais que fazer de que servir de moço de
recados a Northamptonshire. Fá-lo aparecer quando quiseres, ele
pode ainda deitar alguma luz sobre algumas coisas que ainda não
sabemos.

Então Cadfael refletiu melhor pensando quão pouco Hyacinth


disserade suas relações com seu mestre de alguns meses.
Suficientemente cândido entre amigos, acerca da sua própria
vagabundagem e do mal que fizera na pequena mata de Eilmund,
contivera-se escrupulosamente de lançar quaisquer suspeitas contra
Cuthred, mas agora que Cuthred estava morto e se sabia ser um
assassino, Hyacinth podia estar disposto a estender a sua
franqueza, apesar de certamente não ter conhecido nenhum mal do
seu companheiro viajante, e certamente nada acerca de
assassinato.
— Onde está ele'? — perguntou Hugh. — Calculo que não muito
longe, se foi ele que disse ao jovem Richard que este podia
seguramente passar pela cerimônia de casamento. Quem poderia
conhecer melhor Cuthred como um impostor?
— Não mais longe — disse Cadfael — do que a cabana de
Eilmund e aí recebido da mesma forma por pai e filha. E eu vou
agora até lá para ver como está o Eilmund a passar. Trago o rapaz
de volta comigo?
— Melhor do que isso — disse Hugh com sinceridade. — Irei
contigo. É melhor não o arrastar à força do esconderijo até eu
cancelar a caçada através de ordem oficial e tornar conhecido que
ele não tem nada por que responder e é livre de andar na cidade e
de procurar trabalho como outro homem qualquer.
No estábulo do pátio, quando foi selar o cavalo, Cadfael
encontrou o cavalo castanho com a testa branca de pé como uma
estátua brilhante, sob as mãos afetuosas do seu mestre, contente e
confiante, após o seu leve exercício e a ser esfregado até ficar com
um brilho ondulante de cobre. Rafe de Coventry virou-se para ver
quem chegava e revelou o seu sorriso calmo e reservado com o
qual Cadfael já se familiarizara.
— Prestes a partir outra vez, Irmão? Este deve ser o dia mais
cansativo que já teve.
— Para todos nós — disse Cadfael, pousando a sua sela —, mas
podemos esperar que o pior já tenha passado. E o senhor?
Prosperou na sua tarefa?
— Bom, agradeço-lhe! Muito bem! Amanhã de manhã, depois da
hora prima — disse ele, virando-se para encarar de frente Cadfael e
a sua voz como sempre medida e composta —, estarei de partida.
Já o disse ao Irmão Denis.
Cadfael continuou em silêncio com as suas preparações durante
um minuto ou dois. Os silêncios eram aceitáveis nas conversações
com Rafe de Coventry.
— Se viajar para longe no primeiro dia — disse então
simplesmente —, acho que pode precisar dos meus serviços antes
de partir. Ele feriu-o — disse ele brevemente, como se isso fosse
uma explicação adequada. E quando Rafe de Coventry demorou a
responder — Uma parte da minha função é tratar de feridas e
doenças. Não há marca de concessão na minha arte, mas existe
uma decente reticência.
— Eu já sangrei anteriormente — disse Rafe, mas sorriu, um
pouco mais abertamente do que o normal.
— Como preferir. Mas eu estou aqui. Se precisar de mim, venha
ter comigo. Não é sábio negligenciar uma ferida, nem tentar ir
demasiado longe na sela — testou a cilha e reuniu as rédeas para
montar. O cavalo deslizou e moveu-se de forma brincalhona,
ansioso por ação.
— Terei isso em consideração — disse Rafe —, e agradeço-lhe.
Não me irá impedir de partir — acrescentou num tom de aviso
amável, mas solene.
— Será que eu tentei? — perguntou Cadfael e saltando para a
sela, dirigiu-se em direção ao pátio.
— Eu nunca disse toda a verdade — disse Hyacinth, sentado ao
lado da lareira na cabana de Eilmund, com a luz da fogueira como
um lustro de cobre sob a sua face, boca e sobrancelhas —, nem
mesmo à Annet. Quanto a mim mesmo, sim, ela sabe o pior que eu
poderia contar. Mas não sobre Cuthred. Eu sabia que ele era um
velhaco e um vagabundo, mas também eu o era e não sabia nada
mais acerca dele do que isso, por isso mantive a minha boca
fechada. Um velhaco escondido não trai o outro. Mas agora dizem-
me que ele era um assassino. E que está morto!
— E longe de mais qualquer mal — disse Hugh razoavelmente —,
pelo menos neste mundo. Preciso de saber tudo o que me possas
dizer. Onde é que o conheceste?
— Em Northampton, no priorado de Cluniac, como disse a Annet
e a Eilmund, embora não exatamente como eu o contei. Ele não era
então um peregrino de hábito, envergava roupas escuras e boas,
com capa e capuz, e andava armado, apesar de manter a sua
espada fora das vistas. Foi quase por acaso que acabamos por falar
ou, pelo menos, foi o que eu pensei. Mas presumo que ele tenha
adivinhado que eu estava a fugir de alguma coisa, e não fez
segredo que também estava e sugeriu que talvez estivéssemos
mais seguros e passássemos despercebidos se estivéssemos
juntos, íamos ambos em direção a norte e oeste. A ideia de se fazer
passar por peregrino foi dele, ele tinha a cara e o porte para isso.
Bem, vocês viram-no e sabem. Roubei o hábito dele da loja do
priorado. A concha de pentéola foi fácil. A medalha de Saint James
era dele, até podia ser sua por direito, quem sabe? Na altura em
que chegamos a Buildwas, ele já memorizara o seu papel e o seu
cabelo e barba estavam bastante compridos. E surgiu muito
habilmente à senhora em Eaton, para os seus próprios propósitos.
Oh, ela não sabia nada de mal acerca dele, acerca daquilo que ele
estava disposto a ganhar para se manter perto dela. Ele disse que
era padre e ela acreditou nisso. Eu sabia que ele não era nada
disso, ele me disse quando estávamos sozinhos. Até se riu acerca
disso. Mas tinha o dom da palavra e podia passar por padre. Ela
ofereceu-lhe o eremitério, tão perto e oportuno nos bosques da
abadia, para fazer toda velhacaria que pudesse, apesar do abade.
Disse que essa era a minha parte e que ele não sabia de nada, mas
menti por ele. Ele nunca me denunciaria, nem eu o faria.
— Ele abandonou-te — disse Hugh — assim que soube que a
caça era por tua causa. Tu não precisas de ter escrúpulos para falar
por ele.
— Bem, eu estou vivo e ele, morto — replicou Hyacinth. — Não
há necessidade de eu lhe guardar algum rancor agora. Sabe o que
passou com o Richard? Só falei com ele uma vez, mas ele pensou
que eu era um homem tão sincero, que nem quereria ouvir falar mal
de mim, nem que eu fosse deitado por terra e arrastado de volta
para a condição de servo feudal. Aquilo fez com que eu recuperasse
o respeito por mim próprio. Só mais tarde é que fiquei a saber que
ele fora apanhado daquela forma no seu caminho de regresso, mas
fui forçado a fugir ou a esconder-me, e preferi esconder-me até
poder escapar para o encontrar. Se não tivesse sido pela bondade
de Eilmund para comigo, e depois de eu ter sido um espinho para
ele também, os seus homens ter-me-iam apanhado uma dúzia de
vezes. Mas agora sabe que eu nunca toquei com uma mão em
Bosiet. E Eilmund e Annet podem dizer-lhe que nem um passo
sequer dei daqui desde que voltei de Leighton. O que pode ter
acontecido a Cuthred, não o sei mais do que o senhor.
— Menos, atrevo-me a dizer — disse Hugh suavemente e olhou,
sorrindo, através do fogo para Cadfael. – Bem, no fim de contas
podes considerar-te um tipo com sorte. A partir de amanhã, não
estarás em perigo nas mãos de ninguém do meu povo, podes partir
em direção à cidade e procurar um mestre. E qual dos teus nomes
escolhes para manteres para a tua nova vida? É melhor teres só um
para que possamos saber com quem temos de lidar.
— Aquele que agradar à Annet — disse Hyacinth —, ela é que me
vai chamar por ele, a partir deste momento e para toda a vida.
— Eu posso ter algo a dizer a esse respeito disso — grunhiu
Eilmund do seu canto do outro lado da lareira. — Tem cuidado com
a tua impudência ou te farei suar a meu bel-prazer — mas soava
notavelmente complacente acerca disso, como se eles já tivessem
chegado a uma compreensão para a qual o seu grunhido
repreensivo era, meramente, um áspero contraponto.
— Foi Hyacinth que me agradou primeiro — disse Annet. Ela
mantivera-se até esse momento fora do círculo, como uma filha
obediente, atenta a todos os pormenores, mas sem desejar nem
precisar de se pronunciar nos assuntos dos homens. Não por
modéstia ou submissão, pensou Cadfael, mas porque já tinha o que
queria e tinha certeza de que ninguém, nem xerife nem pai nem
suserano, tinha sequer o poder ou a vontade de o arrancar dela. —
Tu ficas Hyacinth — disse ela serenamente —, e deixa partir o
Brand.
Ela era esperta, não fazia sentido voltar atrás, nem sequer olhar
para trás. Brand fora um servo feudal e sem terra em
Northamptonshire, Hyacinth seria um artífice livre em Shrewsbury.
— Dentro de um ano e um dia — disse Hyacinth —, e desde o
momento em que encontrar um mestre para ficar comigo, voltarei
para perguntar pela tua boa vontade, Meste Eilmund. Não antes!
— E eu acho que a mereceste — disse Eilmund — e a terás.
Viajaram para casa juntos no crepúsculo que se adensava, como
tinham feito tantas vezes desde que se conheciam com uma
contenção prudente, espírito contra espírito, e chegaram a um
impasse gratificante no final do encontro, quase amigos. A noite
estava calma e temperada, a manhã seria de novo nublada. os
campos luxuriantes do vale de um mar azul-translúcido. A floresta
cheirava a Outono, a terra madura e úmida, a fungos que irrompiam,
e à rica e doce putrefação das folhas.
— Agi contra a minha vocação — disse Cadfael, ao mesmo tempo
alegre e entristecido pela estação do ano e pela hora. — Eu sei.
Empreendi pela vida monástica, mas agora não tenho certeza de a
conseguir suportar sem ti, sem estas excursões furtivas fora das
muralhas. Pois é o que elas são. Verdade, eu sou enviado em
trabalhos legítimos por aqui, mas também roubo, tiro mais do que
me é devido por direito. Pior, Hugh, não me arrependo! Achas que
há espaço, dentro das fronteiras da graça, para um homem que
colocou a sua mão no aro e que de vez em quando abandona o seu
sulco para voltar atrás por entre as ovelhas e os cordeiros?
— Eu acho que as ovelhas e os cordeiros assim o podem achar
— respondeu Hugh, sorrindo gravemente. — Ele tem as suas
orações. Até as ovelhas negras e as cinzentas, como algumas que
tu argumentaste contra Deus, e eu no teu tempo.
— Existem umas quantas todas negras — disse Cadfael. —
Talvez sarapintadas, como este animal grande e esguio que tu
escolheste montar. A maior parte de nós tem uns quantos cavalos
sarapintados. E talvez faça um julgamento mais tolerante do resto
das criaturas de Deus. Mas eu já pequei, e principalmente ao
apreciar o meu pecado. Penitencio-me esperando com submissão
dentro das muralhas durante o inverno, a não ser que seja enviado
para algo, e então corro com minha missão e volto rapidamente.
— Até o próximo vagabundo se atravessar no teu caminho. E
quando começa esta penitência?
— Assim que esta questão estiver devidamente terminada.
— Essas são expressões vocais oraculares! — disse Hugh. rindo-
se. — E quando será isso?
— Amanhã — disse Cadfael. — Se Deus quiser, amanhã.
14

Fez o seu caminho através do pátio até os estábulos, conduzindo


o seu cavalo e com a maior parte de uma hora passada antes das
Completas, Cadfael viu a Dama Dionísia surgindo dos alojamentos
do abade e caminhando com um passo sóbrio e cabeça coberta
com decoro, na direção do salão dos hóspedes. As suas costas
estavam eretas como sempre, o seu andar era igualmente firme e
orgulhoso, mas de certo modo mais lento do que o habitual nela e a
sua cabeça coberta estava baixa com os olhos postos no chão, em
vez de desafiadoramente fixos na distância. Nem uma única palavra
acerca da sua confissão seria dita, mas Cadfael duvidava que ela
tivesse deixado algo por contar. Não era o tipo de pessoa que fazia
as coisas pela metade. Não haveria mais tentativas para retirar
Richard do encargo do abade. Dionísia sofrera uma contrariedade
demasiado profunda para voltar a arriscar-se novamente, até que o
tempo a fizesse esquecer uma morte súbita sem confissão a vir ao
seu encontro.
Parecia que ela iria passar a noite na abadia, talvez para que no
dia seguinte pudesse fazer as pazes do seu modo arbitrário com um
neto, que por esta altura estava profundamente adormecido na sua
cama e abençoadamente ainda descomprometido, e de regresso ao
lugar onde preferia estar. Os rapazes dormiriam bem esta noite,
absolvidos dos seus pecados, e com o membro perdido entre eles.
Motivo para um agradecimento devoto. E quanto ao homem que se
encontrava na capela mortuária, ostentando um nome que
dificilmente seria o seu, não lançava qualquer sombra no mundo das
crianças.
Cadfael conduziu o seu cavalo na direção do estábulo, cujo portão
estava iluminado por duas tochas, tirou-lhe a sela e esfregou-o. Não
se ouvia ali qualquer som, a não ser um pequeno suspiro da brisa
que aumentara com a noite, e o ocasional e leve bater dos cascos,
quando os cavalos se mexiam nas suas baias. Acalmou o seu
animal, pendurou o arreio e voltou-se para sair.
Alguém, maciço e parado, permanecia de pé junto ao portão.
— Boa noite, Irmão! — disse Rafe de Coventry.
— És tu? — disse Cadfael. — E estavas à minha procura?
Desculpa por te ter mantido acordado até tarde, e tu com uma
viagem para fazer de manhã.
— Vi-te a descer o pátio. Fizeste uma oferta — disse a voz calma.
— Se ainda está em aberto, gostaria de a aproveitar. Descobri que
não é fácil ligar um ferimento apenas com uma mão.
— Vem! — disse Cadfael. — Vamos para a minha cabana no
jardim, lá temos mais privacidade.
O crepúsculo era profundo, mas ainda não estava escuro. As
rosas tardias no jardim elevavam-se indistintamente com os seus
espinhos em pedúnculos demasiado crescidos, com metade das
suas folhas caídas, fantasmas flutuando fantasmagoricamente na
obscuridade. Sob a proteção dos muros do jardim de ervas, altos e
abrigados, o calor prolongava-se.
— Espera — disse Cadfael — até eu arranjar luz.
Levou poucos minutos a conseguir uma faísca, que conseguiu
soprar gentilmente até se transformar numa chama, e ateou-a no
pavio da sua lamparina. Rafe esperou, sem emitir qualquer
murmúrio ou fazer qualquer movimento, até a luz começar a arder
fixamente, e depois entrou na cabana, olhando à sua volta com
interesse para o conjunto de jarros e frascos, escalas e almofarizes,
e os molhos de ervas que sussurravam sob a sua cabeça, agitadas
pela corrente de ar da entrada. Despiu o casaco silenciosamente e
baixou a camisa desde o ombro, até conseguir retirar o braço da
manga. Cadfael aproximou a lamparina e colocou-a onde a luz
iluminaria melhor a ligadura manchada e amassada, que cobria a
ferida. Rafe sentou-se paciente e atento no banco que se
encontrava encostado à parede, olhando fixamente a face
desgastada pelo tempo que se inclinava sobre ele.
— Irmão — disse ele deliberadamente —, acho que te devo um
nome.
— Eu tenho um nome para ti — disse Cadfael. — Rafe é
suficiente.
— Para ti, talvez. Não para mim. Onde recebo ajuda, dada
generosamente, aí pago com a verdade. O meu nome é Rafe de
Genville...
— Agora, mantém-te quieto — disse Cadfael. — Isto é tiro e
queda, e vai doer.
A ligadura suja saiu com um puxão, mas se o magoou. Genville
mostrou-se tão indiferente à dor como se sentira com a dor que
tivera anteriormente. O corte era longo, descendo do ombro em
direção ao braço, mas não era profundo. Todavia, a carne estava
tão separada que os bordos abriam-se numa fenda e apenas uma
mão não fora capaz de os juntar.
— Fica quieto! Podemos melhorar isto, senão ficarás com uma
cicatriz feia. Mas vais precisar de ajuda, quando estiver novamente
ligada.
— Assim que estiver longe daqui arranjarei ajuda, e quem é que
vai saber como é que eu arranjei o golpe? Não há muito mais que tu
não saibas, mas ainda existe algo que te possa contar. O meu nome
é Rafe de Genville. sou um vassalo, e Deus o sabe!, um amigo de
Brian FitzCount e um súbdito da senhora do meu suserano, a
imperatriz. Não sofrerei grandes males por prestar serviço a ambos,
enquanto tiver a minha vida. Bem, ele não derramará mais sangue
nem do lado dos elementos da comitiva do rei, nem no estrangeiro
ao serviço de Geoffrey de Anjou, o que acho era a sua intenção,
quando a altura lhe parecesse adequada.
Cadfael dobrou uma nova ligadura perto do longo corte.
— Põe a tua mão direita aqui, e segura com firmeza, isto fechará
a ferida rapidamente. Não vais sangrar mais, ou pouco mais que
isto, e deverá sarar ligado. Mas evita usar este braço quando
estiveres na estrada.
— Assim o farei — a ligadura enrolava-se firmemente sobre o
ombro e à volta do braço, lisa e limpa. — Tens uma mão experiente,
Irmão. Se eu pudesse, levar-te-ia comigo como um prêmio de
guerra.
— Receio que tenham necessidade de todos os cirurgiões e
médicos que conseguirem arranjar em Oxford — reconheceu
Cadfael, pesarosamente.
— Ah, lá não, não desta vez. Não vai haver invasão em Oxford
até o conde trazer o seu exército. Mas duvido que isso venha a
acontecer. Não, primeiro vou voltar para Brian em Wallingford, para
lhe dar o que lhe pertence.
Cadfael manteve a ligadura por cima do cotovelo e segurou a
manga da camisa cuidadosamente, enquanto Rafe voltava a enfiar o
braço dentro dela. Estava feito. Cadfael sentou-se a seu lado,
encarando-o, olhos nos olhos. O silêncio que caiu sobre eles era
como a noite, moderado, tranquilo, ligeiramente melancólico.
— Foi uma luta justa — disse Rafe, depois de uma longa pausa,
olhando para e através dos olhos de Cadfael, e vendo novamente a
capela de pedra vazia na floresta. — Pousei a minha espada, vendo
que ele não tinha nenhuma. No entanto, ele ainda tinha o seu
punhal.
— E tinha-o utilizado — disse Cadfael — no homem que em
Thame o vira como ele realmente era e poderia ter colocado a sua
vocação em questão. Tal como o filho fez, depois de Cuthred estar
morto, e sem saber que estava a olhar para o assassino do pai.
— Ah, então foi isso! Já tinha pensado em algo do gênero.
— E encontraste aquilo que procuravas?
— Vim por ele — disse Rafe gravemente. — Mas, sim,
compreendo-te. Sim, encontrei o que procurava no relicário do altar.
Nem todas as moedas. As gemas estavam dentro de um pequeno
compasso e transportam-se facilmente. As joias que ela tanto
estimava. E estimava ainda mais o homem para o qual ela as
enviara.
— Eles disseram que havia também uma carta.
— Existe uma carta. Eu tenho-a. Tu viste o breviário?
— Vi. O livro de um príncipe.
— De uma imperatriz. Tem uma dobra secreta na capa, onde uma
folha pequena e fina pode ser escondida. Quando estiveram
separados, o breviário andou para trás e para a frente entre eles
através de um mensageiro de confiança. Sabe Deus o que ela lhe
pode ter escrito agora, na maré baixa da sua vida, separada dele
por uns quantos quilômetros que podem igualmente ter a largura do
mundo, e com o exército do rei a deitar-lhe a mão, bem como aos
poucos que lhe restam, para os estrangular. E no extremo do
desespero, quem respeita a sabedoria, quem é que não dá com a
língua nos dentes? Não tentei sabê-lo. Ele a terá e vai lê-la para
consolação do coração a quem era destinado. Um outro leu-a e
pode ter feito uso dela — disse Rafe severamente —, mas esse
agora não conta.
A sua voz reunia uma grande onda de paixão que ainda assim
não rompia o seu controle férreo, apesar de ter feito o seu
disciplinado corpo tremer como uma seta em voo, vibrando com a
força do seu amor devoto e ódio implacável. Ele nunca abriria a
carta que transportava, com o seu selo violado como testemunho de
uma traição fria e repugnante, e o que esta continha era um assunto
tão sagrado como a confissão entre a mulher que a escrevera e o
homem para quem fora escrita. Até este terreno sagrado Cuthred
trespassara, mas Cuthred estava morto. Não parecia a Cadfael que
a penalidade fosse demasiado grande para o mal cometido.
— Diz-me, Irmão — perguntou Rafe de Genville, a onda de paixão
baixando para a sua calma habitual —, isto foi pecado?
— O que precisas de mim? — respondeu Cadfael.— Pede ao teu
confessor quando chegares em segurança a Wallingford. Tudo o
que eu sei é que houve tempos em que eu teria feito o mesmo que
tu fizeste.
Se o segredo de Genville se manteria inviolado era uma questão
que nunca seria colocada, sendo a resposta já claramente
compreendida entre eles.
— Foi melhor agora do que pela manhã — disse Rafe,
levantando-se. — A organização das tuas horas amanhã não
precisa de ser quebrada, e eu posso partir cedo e deixar o meu local
limpo, polido e preparado para outro hóspede e viajar mais ligeiro,
porque não vou sem uma testemunha justa. Despeço-me aqui. Deus
esteja contigo, Irmão!
— E que te acompanhe — respondeu Cadfael.
Saiu, avançando em direção à escuridão que se adensava, o seu
passo firme sob o caminho de cascalho, e silencioso quando
avançou pela relva. Agudamente e à distância, ouvindo-se sobre o
som leve da sua partida, o sino tocou para as Completas.
Cadfael desceu até os estábulos antes da hora prima numa
manhã seca e solarenga, mas fria, um bom dia para andar a cavalo.
O cavalo brilhante e castanho com a testa branca desaparecera do
seu estábulo. O local parecia vazio e calmo, excetuando os alegres
chilreios de conversa e riso vindos da última baia, para onde
Richard, acompanhado por Edwin, descera de manhã cedo para
tratar e cuidar do seu pônei, por o ter transportado tão
corajosamente; alegremente devolvido à graça e à companhia do
seu companheiro, faziam um ruído alegre como uma ninhada de
jovens andorinhas, até terem ouvido Cadfael aproximar-se, caindo
então num silêncio afetado e decente, até terem certeza que não
era nem o irmão Jerome nem o Prior Robert. Como modo de
desculpa, favoreceram-no com amplos e abundantes sorrisos, e
regressaram ao estábulo do pônei para o acariciar e admirar.
Cadfael não podia deixar de pensar se a Dama Dionísia teria já
visitado o neto, e se teria ido tão longe quanto se esperava que uma
matriarca fosse de forma a restabelecer as suas relações.
Certamente que não se iria humilhar. Algo do tipo de sermão
autojustificativo, tipo “Richard, estive falando do teu futuro com o
abade e consenti em deixar-te ao seu cuidado, por agora. Fui
defraudada por Cuthred, ele não era um padre como dizia ser. Esse
episódio está acabado, é melhor todos nós o esquecermos”. E
terminaria, certamente, com algo do estilo: “-Se eu te deixar ficar
aqui, senhor, certifica-te que eu receba bons relatórios a teu
respeito. Sê obediente para com os teus mestres e presta atenção
aos livros...” E ao deixá-lo, um beijo talvez um pouco mais amável
do que o habitual, ou pelo menos um pouco mais cautelosamente
respeitoso, pensando em tudo o que ele poderia contar acerca dela,
se o quisesse fazer. Porém, o Richard triunfante e liberto de todas
as ansiedades que sentia por ele e por todos aqueles que eram
importantes para ele não guardava rancor contra ninguém no
mundo.
Por essa altura, Rafe de Genville, vassalo e amigo de Brian
FitzCount e servidor leal da Imperatriz Maud, já devia estar bem
longe de Shrewsbury, no seu longo caminho para sul. A sua estada
foi rapidamente esquecida, já que fora um homem tão tranquilo,
moderado e despercebido, cuja presença fora pouco notada mesmo
quando permanecera na abadia.
— Ele partiu — disse Cadfael. — Não te atirei com o fardo da
escolha, apesar de achar que sei o que tu terias feito. Mas fi-lo por
ti. Ele foi-se embora e eu deixei-o ir.
Estavam sentados juntos, como tantas vezes o tinham feito no fim
de uma crise, circunspectos mas descontraídos, no banco que se
encostava contra a muralha norte do herbário, onde o calor do meio-
dia se prolongava e o vento ligeiro era afastado. Dentro de uma
semana ou duas, estaria demasiado frio e batido pelo vento para se
poder estar por ali. Aquele Outono prolongado e temperado não
poderia durar muito mais. e aqueles que conheciam o tempo
começavam a cheirar o ar e a predizer a primeira geada intensa e a
abundante neve que iria surgir em Dezembro.
— Não me esqueci — disse Hugh — que este é o amanhã em
que tu me prometeste um final adequado. Portanto, ele
desapareceu! E tu deixaste-o ir! Não me estou a referir a Bosiet.
Estavas desejoso que ele desistisse da vingança e que partisse,
possivelmente desejando mais que ele partisse do que
permanecesse. Continua, eu estou a ouvir.
Ele sempre fora um bom ouvinte, nada dado a exclamações ou a
perguntas desnecessárias, e podia sentar-se contemplando
meditativamente o jardim desordenado num silêncio receptivo sem
nunca importunar o seu companheiro com um olhar, e nunca perder
uma palavra, nem precisar de muitas delas para compreender.
— Estou a precisar de me confessar, se tu fores o meu padre —
disse Cadfael.
— E manter as tuas confidências igualmente sagradas, eu sei! A
minha resposta é sim. No entanto, até agora, nunca achei que
necessitasses de uma absolvição da minha parte. Quem é este que
se foi embora?
— O seu nome — respondeu Cadfael — é Rafe de Genville.
apesar de aqui se chamar Rafe de Coventry, um falcoeiro do conde
de Warwick.
— Aquele homem mais velho e tranquilo do cavalo castanho?
Acho que só o vi uma vez — disse Hugh. — Foi um hóspede da
abadia que não me fez nenhuma pergunta e fiquei-lhe agradecido
por isso, tendo as minhas mãos cheias dos assuntos dos Bosiets. E
o que fez Rafe de Coventry, para que tu ou eu hesitássemos em
deixá-lo partir?
— Ele matou o Cuthred. Numa luta justa. Depôs a sua espada
porque Cuthred não tinha nenhuma. Punhal contra punhal, lutaram e
ele matou-o — Hugh não dissera uma palavra, apenas virara por um
momento a cabeça na direção do seu amigo, estudado com
penetrante atenção a expressão de Cadfael, e esperou. — Por uma
boa razão — disse Cadfael. — Tu não deves ter esquecido a história
que nós ouvimos do mensageiro da imperatriz, enviado de Oxford,
assim que o Rei Stephen fechou o seu cerco de ferro à volta do
castelo. Enviado à frente com dinheiro, joias e uma carta para Brian
FitzCount, e que desapareceu em Wallingford. E depois
encontraram o seu cavalo perdido, vagueando nos bosques ao
longo da estrada, com os arreios manchados de sangue e os
alforjes vazios. O corpo nunca foi encontrado. O Tamisa corre lá
perto. Há espaço nos bosques para uma sepultura. Portanto, foi
roubado ao lorde de Wallingford o tesouro da imperatriz. Já há muito
tempo que empobreceu, voluntariamente, por ela, e a sua guarnição
tem de comer. E a carta que lhe era destinada foi roubada
juntamente com tudo o resto. E Rafe de Genville é vassalo, um
amigo devoto de Brian FitzCount e um súbdito leal da imperatriz e
não teve intenção de deixar passar esse crime por vingar. Que
vestígios é que encontrou ao longo do caminho para o trazer até
estas partes, eu não o perguntei e ele não mo disse, mas que o
trouxeram até aqui, trouxeram. No dia em que chegou, encontrei-me
com ele nos estábulos e, por acaso, veio a propósito termos Drogo
Bosiet jazendo morto na capela mortuária. Lembro-me de não ter
pronunciado o seu nome. mas talvez se o tivesse feito ele tivesse
agido da mesma, já que os nomes podem ser alterados. Foi
imediatamente olhar para este homem morto, mas bastou-lhe um
olhar para perder todo o interesse por ele. Andava à procura de
alguém, de um hóspede daqui, um estranho, um viajante, mas não
era Bosiet. Por um rapaz na casa dos vinte, como Hyacinth, não
mostrou qualquer interesse. Procurava um homem com
aproximadamente a sua idade e condição. Ele deve ter certamente
ouvido falar do homem santo da Dama Dionísia, mas rejeitou-o por
ser padre e peregrino, com votos acima de qualquer suspeita. Até
ter ouvido, como todos nós ouvimos, o jovem Richard gritar que o
eremita não era um padre, mas um charlatão. Procurei Rafe depois
disso, e ele e o seu cavalo tinham desaparecido. Era de um
impostor e de um charlatão que ele andava à procura. E encontrou-
o, Hugh, naquela noite no eremitério. Encontrou-o, lutou, matou-o. E
levou com ele tudo o que Cuthred tinha roubado, as joias e moedas
da caixa no altar e o breviário que pertencia à imperatriz e que era
usado para transportar cartas entre ela e FitzCount, quando
estavam separados. Lembra-te que o punhal de Cuthred estava
ensanguentado. Eu tratei da ferida de Rafe de Genville, recebi suas
confidências, como agora te entreguei as minhas, e desejei-lhe boa
viagem para Wallingford.
Cadfael recostou-se com um profundo e agradecido suspiro,
encostando a sua cabeça contra as pedras ásperas da parede e
houve um longo, mas tranquilo silêncio entre eles. Hugh mexeu-se
por fim e perguntou: — Como é que ficaste a saber o que ele
andava a tramar? Deve ter havido algo mais do que esse primeiro
encontro, para te atrair para os seus segredos. Ele pouco disse e
caçava sozinho. O que mais aconteceu para te fazer suspeitar dele?
— Estávamos juntos quando ele deitou algumas moedas na
nossa caixa de esmolas. Uma delas caiu nas lajes e eu apanhei-a
do chão. Um tostão de prata da imperatriz, cunhado recentemente
em Oxford. Não fez segredo disso. Perguntou se não me espantava
por um vassalo da imperatriz se encontrar tão longe da batalha. E
eu fiz uma tentativa e disse-lhe que decerto estaria em busca do
homem que roubara e assassinara Renaud Bourchier, na estrada
para Wallingford.
— E ele concordou? — perguntou Hugh.
— Não. Disse que não, que não era isso. Era uma boa ideia,
disse, quase desejava que fosse verdade, mas não o era. E falou a
verdade. Cada palavra que ele me disse era verdade e eu sabia-o.
Não, Cuthred não era um assassino, não então, nunca o fora até
Drogo Bosiet se ter dirigido à sua cela para saber informações de
um servo fugitivo e se ter deparado com o homem que vira, com
quem conversara, com quem jogara xadrez em Thame algumas
semanas antes, num disfarce muito diferente. Um homem que
usava armas e se mostrava cavaleiro, mas percorria as estradas a
pé, pois não tinha cavalo que lhe pertencesse no estábulo em
Thame, nenhum que viesse consigo, nenhum que partisse consigo.
E isto fora no início de Outubro. Aymer disse-nos isto tudo, depois
do seu pai ter sido silenciado.
— Começo — disse Hugh lentamente — a desvendar a tua
adivinha — estreitou os olhos olhando para a distância, através dos
ramos quase nus das árvores, que se mostravam acima da muralha
sul do jardim.— Desde quando é que fazes perguntas sem um
objetivo? Devia ter adivinhado quando perguntaste pelo cavalo. Um
cavaleiro sem cavalo em Thamen e um cavalo sem um cavaleiro
vagueando pelos bosques através da estrada de Wallingford fazem
sentido, quando somamos dois mais dois. Não! — disse ele,
chocado e ultrajado em tom de protesto, olhando espantado para a
imagem que acabara de criar. — Onde é que me fizeste chegar?
Isto é verdade ou eu atirei para o ar? O próprio Bourchier?
O primeiro tremor do frio da noite agitou com um vento ainda mais
frio as ervas recolhidas e Hugh estremeceu com elas, numa
convulsão de desgosto incrédulo.
— O que poderia valer uma traição tão monstruosa? Isso foi mais
sujo do que assassinato.
— Assim pensou Rafe de Genville. E assim vingou-se, de acordo
com essa teoria. E assim desapareceu e eu desejei-lhe boa viagem
quando ele partia.
— Também eu o teria feito. Também eu! — exclamou Hugh e
olhou através do jardim com os lábios enrugados num desdém
cansado, contemplando a enormidade da desonra escolhida e
deliberada. — Não há nada. não pode haver nada que valha a pena
ser comprado por tal preço.
— Renaud Bourchier pensou de outra maneira, tendo outros
valores. Primeiro, ganhou a sua vida e liberdade — disse Cadfael.
contando pelos dedos e abanando a cabeça sobre cada ponto. —
Ao enviá-lo para Oxford antes do anel de ferro se ter fechado, ela
libertou-o para partir para pastos mais seguros. Não que eu acredite
que ele tivesse sequer a simples desculpa de ser um covarde. Muito
friamente, calculo, ele preferiu retirar-se do risco de morte ou de
captura, que se aproximavam cada vez mais dos exércitos da
imperatriz em Oxford. Friamente e de modo prático, ele cortou todos
os seus laços de fidelidade e retirou-se para a obscuridade para
esperar por outra oportunidade. Segundo, com o roubo do tesouro
que ela lhe confiara, possuía agora meios amplos para viver, para
onde quer que fosse. E terceiro, e pior de tudo, ele tinha uma arma
poderosa, que poderia ser utilizada para lhe assegurar novo serviço
de soldados, terras e favores, uma nova e proveitosa carreira para
substituir a que ele tinha descartado. A carta que a imperatriz
escrevera a Brian FitzCount.
— No breviário que desapareceu — disse Hugh. — Eu não sabia
como avaliar isso, apesar do livro ter valor por si só.
— Tinha um valor ainda maior, devido ao que se encontrava
dentro dele. Rafe contou-me. Uma fina folha de velino pode ser
dobrada dentro da capa. Pensa simplesmente, Hugh, na situação
dela quando a escreveu. A cidade perdida, apenas restando o
castelo e os exércitos do rei cercando-a. E Brian, que fora a sua
mão direita, o seu escudo e espada, secundado apenas pelo seu
irmão dela, separado dela por aqueles poucos quilômetros que bem
poderiam ser um oceano. Sabe Deus se as intrigas são verdadeiras
— disse Cadfael —, que declaram que aqueles dois são amantes,
mas certamente é verdade que eles se amam! E agora numa
situação destas, em risco de morrer à fome, fracasso,
aprisionamento, perda, mesmo morte, talvez até sem se poderem
encontrar de novo, não lhe pode ela ter gritado a última verdade,
sem lhe esconder, coisas que não podiam ser ditas, coisas que mais
ninguém sobre a terra poderia alguma vez saber? Tal carta pode ser
de um valor imenso para um homem sem escrúpulos, que tivesse
uma nova carreira para principiar e necessitasse do favor de
príncipes. Ela tem um marido anos mais novo do que ela, que não
lhe tem grande amor nem ela por ele, que não lhe dispensou um
homem para a auxiliar este Verão. Supondo que algum dia seria
conveniente a Geoffrey repudiar a sua mulher mais velha e fazer um
segundo casamento mais rentável? As mãos de alguém como
Bourchier, a sua carta escrita pela sua mão podia fornecer-lhe o
pretexto e para príncipes, os meios podem sempre ser encontrados.
O informador pode ficar, de modo a ganhar posição ou até
comando, em terras da Normandia. Geoffrey tem castelos
recentemente conquistados por lá, para dar àqueles que provaram
ser-lhe úteis. Eu não digo que o conde de Anjou seja tal homem,
mas digo que um. traidor tão calculador como Bourchier
reconheceria isso como uma possibilidade e guardaria a carta para
ser usada, assim que uma ocasião se oferecesse. Que
conhecimento, que suspeita trouxe Rafe de Genville para duvidar
daquela morte na estrada de Wallingford, não sei, nem lho
perguntei. Certo é que uma vez que a chama foi acesa nada o teria
impedido de perseguir e de extorquir a devida penalidade, não de
um suposto assassino, aí ele contou-me a verdade, mas do ladrão e
do traidor, o próprio Renaud Bourchier.
O vento começava a levantar-se, o céu limpava-se dos
fragmentos espalhados das nuvens que ainda restavam e que
deslizavam, rapidamente, antecedendo o vento. Pela primeira vez, o
Outono prolongado prenunciava a chegada do Inverno.
— Eu teria feito o que Rafe fez — disse Hugh finalmente, e
levantou-se abruptamente para afastar os restos de repugnância.
— Quando peguei em armas, também eu o faria. Está a ficar frio
— disse Cadfael, erguendo-se também. — Vamos entrar?
O final de Novembro deveria, em breve, arrancar com o frio e os
ventos fortes o resto das folhas que tremiam. O eremitério deserto
nos bosques de Eyton forneceria uma cobertura de Inverno para os
pequenos animais da floresta, e o jardim, tornando-se de novo
selvagem, protegeria os ouriços-caixeiros que dormiam nas suas
tocas o sono de Inverno. Seria duvidoso que a Dama Dionísia
instalasse outro eremita naquela cela. Os animais selvagens ocupá-
la-iam na sua inocência.
— Bem — disse Cadfael, conduzindo Hugh para dentro da sua
oficina —, está tudo acabado. Tarde, mas por fim, o que quer que
ela lhe tenha tenha escrito, a carta que lhe enviou vai ao seu
encontro, para confortar o coração para o qual era destinada. E eu
estou satisfeito! Quaisquer que sejam os bens ou os males da
afeição deles, entre o perigo e o desespero, o amor tem o direito de
falar de si, e todos os outros devem ser cegos e surdos. À exceção
de Deus, que consegue ler tanto as linhas como as entrelinhas, e o
qual no final, em questões de paixão como em questões de justiça,
terá a última palavra.
Fonte: Silvio B.

Você também pode gostar