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A CONFISSÃO DO IRMÃO HALUIN

ELLIS PETERS

CRÔNICAS DO IRMÃO CADFAEL


Depois de um Outono ameno, o mês de Dezembro do
ano da graça de 1142 traz consigo um cobertor de neve,
silencioso e sufocante.
Como resultado, a hospedaria da abadia beneditina de
São Pedro e São Paulo fica danificada, e os irmãos têm de
reparar o telhado antes que o perigo se agrave.
O gelo traiçoeiro quase é fatal para o irmão Haluin. Ele
escorrega do telhado e dá uma queda terrível sofrendo
ferimentos tão graves que, à beira da morte, faz a sua
confissão ao abade e ao irmão Cadfael. Desta confissão
emerge uma espantosa história de pecados que quer Deus
quer os homens terão dificuldade em perdoar.
Mas Haluin não morre. Quando recupera, parte numa
viagem de expiação, com Cadfael como seu único
companheiro. Uma viagem difícil que conduz a algumas
descobertas chocantes.
E a um assassinato...
Mais uma vez, caberá ao Irmão Cadfael (o frade
detetive) e aos seus dotes de observação e dedução
desvendar o enigma.
CRÔNICAS DO IRMÃO CADFAEL

ELLIS PETERS
A CONFISSÃO DO IRMÃO HALUIN

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: The Confession of Brother Haluin

Tradução de Isabel Seqeira


Tradução portuguesa de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A. © EllisPeters, 1988

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Edição nº: 160711/7561 - Janeiro de 2001

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra - Mem Marins


Depósito legal nº: 160096/01
CAPÍTULO 1

O rigor do Inverno chegou cedo, nesse ano de 1142. Depois de


um Outono prolongado de dias amenos, úmidos e melancólicos,
Dezembro surgiu com céus de chumbo e dias breves, escuros, que
se vergavam sobre as cumeeiras e ali ficavam como mãos
opressoras sobre o coração. Ao meio dia, mal havia luz suficiente no
scriptorum do mosteiro para formar letras, e as cores não podiam
ser utilizadas com segurança, uma vez que o crepúsculo implacável
e inoportuno lhes tirava toda a luminosidade.
O sábio do tempo tinha previsto fortes nevões e estes chegaram a
meio do mês, não com ventos e tempestades, mas numa queda
silenciosa, ofuscante, que continuou durante vários dias e várias
noites, nivelando todas as ondulações, cobrindo todas as cores do
mundo de branco, enterrando os borregos nas colinas e os casebres
nos vales, sufocando todos os sons, trepando todos os muros,
transformando os telhados em cordilheiras de montanhas brancas
intransitáveis, e o ar entre a terra e o céu num redemoinho opaco,
rodopiante, de flocos do tamanho de lírios. Quando a neve parou
finalmente de cair, e as pesadas grinaldas de nuvens se levantaram,
Foregate estava meio soterrado, transformado praticamente num
único piso branco, pelo que mal havia sombras exceto nos locais em
que os edifícios altos do mosteiro se elevavam acima da brancura
imaculada e a misteriosa luz reflectida fazia dia mesmo da noite,
quando apenas uma semana antes a escuridão ameaçadora tinha
transformado o dia em noite.
Essas neves de Dezembro que cobriram a maior parte do
ocidente fizeram mais do que arruinar a vida dos camponeses, levar
a fome às aldeias isoladas, enterrar alguns pastores com os seus
rebanhos e obrigar todos a uma imobilidade forçada; elas alteraram
os destinos da guerra, zombaram das preocupações dos príncipes e
fizeram a história sair do seu curso no novo ano de 1143.
Elas também provocaram um estranho ciclo de acontecimentos
no mosteiro de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.
Nos cinco anos em que o Rei Stephen e a sua prima, a Imperatriz
Maud, lutaram pelo trono de Inglaterra, a sorte tinha oscilado muitas
vezes entre eles como um pêndulo, apresentando alternadamente a
taça da vitória a cada um de uma forma errática, retirando-a outra
vez sem que a mesma tivesse sido provada e oferecendo-a, com
um gesto tentador, ao rival. Agora, sob o disfarce branco do Inverno,
ela decidiu tornar a situação novamente confusa e salvar a
imperatriz das mãos do rei como se por milagre, no preciso
momento em que o punho deste parecia fechar-se com firmeza
sobre a sua prisioneira, pondo triunfantemente termo à guerra.
Estavam de volta ao início da luta de cinco anos, e era preciso fazer
tudo de novo. Mas isso foi em Oxford, longe das neves
intransitáveis, e demoraria algum tempo até que as notícias
chegassem a Shrewsbury.
O que estava a acontecer no mosteiro de São Pedro e São Paulo
não era, em comparação, mais do que um pequeno aborrecimento
ou, pelo menos, assim parecia a princípio. Um emissário do bispo,
alojado num dos aposentos superiores da hospedaria, e já irritado e
pouco satisfeito com o fato de ser obrigado a ficar ali detido até as
estradas serem novamente transitáveis, foi desagradavelmente
acordado durante a noite pela queda súbita de uma torrente de água
gelada em cima da cabeça e certificou-se de que todos os que se
encontravam ao alcance da sua poderosa voz o ouvissem sem
demora. O Irmão Denis, o hospitaleiro, apressou-se a apaziguá-lo e
a mudá-lo para uma cama seca noutro local mas, ao fim de uma
hora, tornou-se claro que, embora a primeira chuva torrencial
tivesse abrandado em pouco tempo, continuava a cair um pingo
ininterrupto ao qual, quase de imediato se juntaram mais alguns,
formando um círculo com vários metros de diâmetro. O enorme
peso da neve no telhado sul da hospedaria tinha aberto caminho
através do chumbo e filtrava-se por entre as telhas de lousa tendo
talvez obrigado algumas delas a ceder. Bolsas de neve tinham
sentido o calor relativo no interior e, com a malícia muda das coisas
inanimadas, tinham decidido batizar o emissário do bispo. E a
infiltração estava a tornar-se rapidamente pior.
Nessa manhã, houve uma reunião urgente do cabido (colegiado)
para discutir o que devia e podia ser feito. Com um tempo daqueles,
deveria certamente, se possível, ser evitado qualquer trabalho
arriscado e desagradável no telhado, mas, por outro lado, se as
reparações fossem adiadas até ao degelo, eles teriam uma
inundação e os danos, nessa altura ainda limitados, poderiam
agravar-se bastante.
Havia vários irmãos que tinham trabalhado na construção de
adições ao enclave, celeiro, estábulo e despensa, e o Irmão
Conradin, que ainda estava na casa dos 50 e era robusto como um
touro, tinha sido um dos primeiros oblatos infantis e trabalhara, na
sua juventude, sob os monges de Seez, trazidos pelo conde
fundador para supervisionar a construção do seu mosteiro. No que
dizia respeito à estrutura, os conselhos do Irmão Conradin tinham
grande peso e ele, depois de ter observado a extensão da infiltração
na hospedaria, afirmou com firmeza que não podiam esperar, caso
contrário talvez tivessem que substituir metade da vertente sul do
telhado. Eles tinham madeira, tinham ardósia, tinham chumbo.
Aquela vertente sul ficava por cima do canal de escoamento de
águas desviado da calha de água do moinho, atualmente
congelado, mas não seria muito difícil erguer um andaime. É
verdade que seria muito frio trabalhar lá em cima, deslocando
primeiro a montanha de neve, para aliviar o peso deformador, e
substituindo depois as telhas partidas ou deformadas e reparando o
chumbo. Mas se trabalhassem durante períodos curtos e lhes fosse
permitido ter uma fogueira na sala de aquecimento durante todo o
dia enquanto o trabalho durasse, a reparação poderia ser efetuada.
O Abade Radulfus escutou, acenou a enorme cabeça para
manifestar a sua rápida compreensão e decisão habituais e disse: -
Muito bem, mãos à obra.
Assim que o longo nevão cessou e os céus clarearam, os rijos
habitantes de Foregate saíram de casa, bem agasalhados e
armados de pás, vassouras e ancinhos de cabos compridos, e
começaram a desimpedir o caminho até à estrada e, em conjunto,
cavaram uma passagem até à ponte e à cidade onde sem dúvida
que os robustos burgueses no interior das muralhas enfrentavam o
mesmo inimigo sazonal. O gelo ainda persistia e, dia após dia,
desgastava misteriosamente as orlas superficiais de cada montão
de neve, aliviando a carga de um modo incrivelmente lento. Quando
algumas das estradas principais ficaram novamente transitáveis e
alguns viajantes, irresponsáveis ou não tendo qualquer outra opção,
começaram a percorrê-las laboriosamente, o Irmão Conradin já
tinha o andaime montado e as escadas seguras à vertente do
telhado, tendo todos eles, à vez, ocupado o seu lugar no frio
intenso, deslocando cuidadosamente a grande quantidade de neve
para chegarem ao chumbo fraturado e às telhas de lousa partidas.
Ao longo do canal de escoamento congelado formou-se uma
moraina de colinas de neve rugosas e desordenadas, e um irmão
incauto que não tinha ouvido o grito de aviso vindo de cima, ou não
lhe prestara atenção, ficou, durante algum tempo, soterrado por uma
pequena avalanche, e teve que ser desenterrado rapidamente e
levado para a sala de aquecimento para descongelar.
Nessa altura, o caminho entre a cidade e Foregate já estava
aberto e, embora com dificuldade e lentidão, já era possível levar
notícias a Winchester e até mesmo a Shrewsbury a tempo de as
mesmas chegarem à guarnição do castelo e ao xerife do condado
alguns dias antes do Natal.
Hugh Beringar desceu apressadamente da cidade para as
partilhar com o Abade Radulfus. Num país debilitado por cinco anos
de uma incerta guerra civil, competia ao estado e à igreja trabalhar
juntos, e quando o xerife e o abade pensavam de forma idêntica,
eles conseguiam garantir uma existência relativamente calma e
ordenada para o seu povo e defender-se dos piores excessos dos
tempos. Hugh era partidário do Rei Stephen e geria o condado em
seu nome com bastante lealdade, mas sentia uma boa vontade
ainda maior para com o povo que ali vivia. Ele alegrar-se-ia com um
triunfo do seu rei e, durante aquele Outono e Inverno, certamente
que estivera à espera que o mesmo se desse, mas a sua principal
preocupação era entregar ao seu senhor um condado relativamente
próspero, feliz e intato quando a última batalha terminasse.
Assim que deixou os aposentos do abade, foi à procura do Irmão
Cadfael e encontrou o amigo a mexer uma panela que borbulhava
em cima do fogareiro, na sua oficina junto do herbário. As
inevitáveis tosses e constipações de Inverno, bem como as mãos e
os calcanhares com frieiras, mantinham-no ocupado a reabastecer o
armário dos medicamentos da enfermaria e, graças ao
indispensável fogareiro, era mais agradável trabalhar na sua oficina
de carpintaria do que nos recantos do scriptorium. Hugh apareceu
subitamente ao lado dele com uma rajada de ar frio e uma onda do
que era, para ele, uma excitação perceptível, embora os seus sinais
exteriores pudessem ter passado despercebidos a quem não o
conhecesse tão bem como Cadfael. Só a exasperação decidida dos
seus movimentos e a brusquidão do seu cumprimento fizeram com
que Cadfael deixasse de mexer a panela e olhasse atentamente
para o rosto do jovem xerife, para o brilho penetrante dos seus olhos
pretos e para o pequeno latejo da sua face.
- Está tudo destruído! - disse Hugh. - Tem que ser tudo feito de
novo! - Fosse o que fosse que ele quisesse dizer, e Cadfael não se
deu ao trabalho de perguntar pois seguramente que seria informado
em breve, era difícil dizer se a exasperação e a frustração não eram
excedidas por um alívio divertido patente na voz e no rosto de Hugh.
Ele precipitou-se para o banco que estava encostado à parede de
madeira e deixou pender as mãos entre os joelhos, num resto de
resignação impotente.
- Chegou um mensageiro do sul esta manhã - disse ele, erguendo
os olhos para o rosto atento do amigo. - Ela desapareceu! Escapou
da armadilha e fugiu para Wallingford, para junto do irmão. O rei
perdeu o seu troféu. Mesmo quando a tinha na mão, deixou-a
escapar por entre os dedos. Pergunto a mim próprio, pergunto a
mim próprio - disse Hugh, abrindo muito os olhos quando um novo
pensamento lhe veio à mente. - Se, afinal, ele não olhou para o lado
e a deixou fugir! Seria o tipo de coisa que ele faria. Deus bem sabe
que ele a queria muito, mas pode ter-se assustado quando começou
a pensar no que faria com ela quando a tivesse. Essa é uma
pergunta que eu gostaria de lhe fazer, mas nunca farei! - concluiu
ele com um sorriso oblíquo.
- Estás a querer dizer - perguntou Cadfael, cautelosamente,
olhando para ele através do fogareiro - que, afinal, a imperatriz fugiu
de Oxford? Cercada pelo exército do rei e já sem víveres no castelo,
segundo as últimas notícias que tivemos? E como é que ela
conseguiu fazê-lo? A seguir vais-me dizer que lhe nasceram asas e
que voou para Wallingford por cima das linhas do rei! Mesmo que
conseguisse sair do castelo sem ser vista, ela não ia conseguir
atravessar as valas do cerco a pé.
- Ah, mas fê-lo, Cadfael! Ela fez as duas coisas! Saiu do castelo
sem ser vista e atravessou pelo menos uma parte das linhas de
Stephen. Tanto quanto eles conseguem imaginar, ela deve ter sido
descida por uma corda lançada da parte de trás da torre em direção
ao rio, ela juntamente com dois ou três dos seus homens. Não
podem ter sido mais. Eles cobriram-se todos de branco para serem
invisíveis na neve. Na verdade, parece que estava a nevar nessa
altura, e assim conseguiram esconder-se melhor. Atravessaram o rio
por cima do gelo e percorreram a pé as cerca de seis milhas até
Abingdon, pois foi ali que arranjaram cavalos que os levaram até
Wallingford. Verdade seja dita, Cadfael, ela é uma mulher rara.
Segundo consta, é impossível viver com ela quando as coisas lhe
correm de feição, mas eu compreendo como é possível um homem
segui-la quando a vida lhe corre mal.
- Então ela está outra vez com FitzCount - disse Cadfael deitando
o ar fora, espantado. Há cerca de um mês parecia certo que a
imperatriz e o seu aliado mais fiel e dedicado estavam
irremediavelmente separados e que talvez nunca mais se voltassem
a encontrar neste mundo.
Desde Setembro que a dama estivera sob um cerco apertado no
castelo de Oxford, com os exércitos do rei à sua volta e a cidade
nas mãos dele, e ele limitara-se a ficar à espera que a desgastada
guarnição no interior do castelo morresse à fome. E agora, numa
ousada tentativa, numa noite de neve ela libertara-se das correntes
que a prendiam e ficara livre para recuperar as forças e voltar a lutar
em igualdade de circunstâncias. Certamente que nunca houvera um
rei com tanto jeito como Stephen para transformar uma vitória em
derrota. Mas esta era uma qualidade que ambos partilhavam, talvez
lhes estivesse no sangue, pois também a imperatriz, quando
estivera gloriosamente instalada em Westminster, a poucos dias da
coroação, se tinha comportado de uma forma tão arrogante e dura
para com os obstinados burgueses da sua capital, que eles se
tinham erguido em fúria e a tinham expulsado. Parecia que, assim
que qualquer deles se aproximava da coroa, a fortuna assustava-se
com a perspectiva de estar ao serviço de qualquer deles e roubava
apressadamente o troféu.
- Então, afinal de contas - disse Cadfael mais placidamente,
levantando a panela borbulhante e colocando-a na grelha ao lado do
fogareiro, deixando-a a ferver lentamente em paz? pelo menos
Stephen livrou-se do seu problema. Ele já não precisa de se
preocupar com o que há-de fazer com ela.
- É verdade - concordou Hugh ironicamente -, ele nunca teria tido
coragem para a acorrentar, como ela lhe fez quando ele foi seu
prisioneiro depois de Lincoln, e ela demonstrou que, para a segurar,
será necessário algo mais do que muros de pedra. Eu imagino que,
durante todos estes meses, ele tenha andado a fugir a esta questão,
não vendo para além do momento em que a obrigaria a render-se.
Ele libertou-se de todos os problemas que teriam apenas começado
no dia em que a fez prisioneira. Seria melhor, talvez, que ele
conseguisse destruir as esperanças dela de modo a forçá-la a voltar
para a Normandia. Mas nós já conhecemos muito bem a dama -
reconheceu ele num tom pesaroso. - Ela nunca desiste.
- E como é que o Rei Stephen reagiu à sua perda? - perguntou
Cadfael, com curiosidade.
- Como eu já esperava que fizesse - disse Hugh, com um afeto
resignado. - Assim que a dama saiu de lá, o Castelo de Oxford
rendeu-se a ele. Sem ela, ele perdera o interesse no resto dos ratos
esfomeados no seu interior. A maior parte dos homens gostaria de
vingar a sua raiva na guarnição. Uma vez, como muito bem te deves
lembrar, ele deixou-se convencer a exercer essa vingança aqui em
Shrewsbury, algo que, Deus sabe, é contra a sua natureza. Nunca
mais! O mais provável é que tenha sido a recordação de
Shrewsbury que manteve Oxford seguro. Ele deixou-os marchar
para o exterior intatos, com a condição de que dispersassem para
as suas casas. Deixou o castelo com uma boa guarnição e bem
fornecido, e partiu para Winchester com o seu irmão bispo, para
celebrar o Natal. E mandou chamar todos os seus xerifes do centro
do país para o passarem lá com ele. Há muito tempo que não vem
para estas bandas; sem dúvida que está ansioso por nos voltar a
ver e por se certificar de que todas as suas defesas estão seguras.
- Agora? - perguntou Cadfael, surpreendido. - Para Winchester?
Nunca farão a viagem a tempo.
- Faremos, sim. Temos quatro dias e, de acordo com o emissário,
o degelo está bastante avançado mais a sul, e as estradas estão
desimpedidas. Eu parto amanhã.
- E vais deixar a Aline e o teu filho a celebrar o Natal sem ti! E o
Giles acabou de fazer três anos! - O filho de Hugh tinha nascido no
Natal, tendo feito a sua entrada no mundo no mais severo dos
Invernos, no meio de geada, neve e vendavais. Cadfael era o
padrinho e o seu mais dedicado admirador.
- Ah, Stephen não nos vai reter durante muito tempo - disse Hugh
num tom confiante. - Ele precisa que estejamos onde nos colocou,
para tomarmos conta dos impostos dos seus condados. Se tudo
correr bem, estarei de volta a casa antes do fim do ano. Mas a Aline
ficaria muito satisfeita se a fosses visitar algumas vezes enquanto
eu estiver ausente. O Abade certamente que te dará autorização
para te ausentares de vez em quando, e aquele vosso rapaz alto -
Winfrid, não é? - está a ficar suficientemente habilidoso com salvas
e medicamentos para poder ficar sozinho durante uma hora ou
duas.
- Terei muito gosto em tomar conta do teu rebanho - disse Cadfael
entusiasticamente - enquanto te pavoneias pela corte. Mas, mesmo
assim, eles vão ter saudades tuas. Que reviravolta esta! Ao fim de
cinco anos, nenhum dos lados ganhou alguma coisa. E, com a
chegada do novo ano, sem dúvida que irá começar tudo de novo.
Todo aquele esforço e desperdício, e nada mudou.
- Oh, sim, houve uma coisa que mudou, segundo consta - disse
Hugh com uma pequena gargalhada. - Há um novo contendor em
cena, Cadfael. Geoffrey só conseguiu enviar pouco mais do que
meia dúzia de cavaleiros para ajudar a mulher, mas enviou-lhe algo
de que, ao que parece, se pode separar mais facilmente. É isso ou,
como pode muito bem ser verdade, ele avaliou Stephen
suficientemente bem para saber quanto pode arriscar com
segurança. Ele enviou o filho, que estava ao cuidado do seu tio
Robert, para ver se os ingleses o apoiariam a ele e não à sua mãe.
Henrique Plantageneta, com nove anos... ou terão dito dez? Não
mais do que isso! Robert levou-o para Wallingford, para junto dela.
Neste momento, eu imagino que o rapaz deve ter sido levado para
Bristol ou Gloucester, para um lugar seguro. Mas que faria Stephen
com ele, se lhe deitasse a mão? O mais provável seria metê-lo num
barco à sua própria custa e enviá-lo, bem guardado, de volta a
França.
- O que me estás a dizer? - Os olhos de Cadfael estavam muito
abertos de espanto e curiosidade. - Com que então há uma estrela
nova no horizonte, é isso? E a começar muito jovem! Parece que
uma pessoa, pelo menos, tem garantido um Natal abençoado, tendo
obtido a liberdade e com o filho de novo nos seus braços. A
chegada deste dar-lhe-á ânimo, sem qualquer sombra de dúvida.
Mas duvido que ele faça muito mais pela causa dela.
- Ainda não! - disse Hugh com uma cautela profética.
- Vamos esperar para ver como é o temperamento dele. Com a
coragem da mãe e a perspicácia do pai, daqui a alguns anos ele
poderá causar bastantes problemas ao rei. É melhor utilizarmos
melhor o tempo que temos e certificarmo-nos de que o rapaz
regressa a Anjou e fica por lá e, sobretudo, que leva a sua mãe com
ele. Quem me dera - disse Hugh num tom veemente, com um
suspiro - que o filho de Stephen prometesse mais, pois não teríamos
receio do talento que o rebento da imperatriz pudesse manifestar. -
Ele afastou quaisquer dúvidas com uma sacudidela impaciente dos
ombros magros. - Bem, vou-me embora, preparar-me para a
viagem. Partimos ao nascer do Sol.
Cadfael levantou a panela que estava a arrefecer, colocou-a no
chão de terra e acompanhou o amigo através do silêncio murado do
herbário, onde todos os seus pequenos canteiros alinhados
dormiam, quentes, sob uma camada espessa de neve, enquanto a
geada caía. Assim que chegaram ao trilho que seguia ao longo dos
lagos gelados, conseguiram ver, à distância, para além da superfície
vidrada e dos jardins do lado norte, o longo declive do telhado da
hospedaria sobre o canal de escoamento, a jaula escura de madeira
de andaimes e escadas, e as duas figuras agasalhadas a trabalhar
nas telhas descobertas.
- Vejo que também estão com problemas - disse Hugh.
- Quem é que consegue escapar-lhes, no Inverno? Foi o peso da
neve que deslocou as telhas, partiu algumas e encontrou forma de
encharcar o capelão do bispo na sua cama. Se esperássemos até
ao degelo, teríamos uma inundação, e danos muito maiores para
reparar.
- E o vosso mestre construtor acha que consegue consertar as
coisas, quer haja geada quer não. - Hugh tinha reconhecido a figura
musculosa a meio da escada comprida, transportando um balde
cheio de telhas que poucos dos seus jovens trabalhadores
conseguiriam carregar. - Um trabalho duro lá em cima - disse Hugh,
olhando para a plataforma mais elevada do andaime, com uma
grande pilha de telhas em cima, e para as duas figuras diminutas
que se moviam com uma enorme cautela em cima do telhado
exposto.
- Nós fazêmo-lo por períodos curtos e, quando descemos, há uma
lareira na sala de aquecimento. Embora nós, os mais velhos,
estejamos dispensados dos trabalhos, a maior parte, com exceção
dos doentes e enfermos, faz o seu turno. É justo, mas duvido que
isso agrade a Conradin. Irrita-o ter jovens temerários lá em cima; ele
preferia trabalhar apenas com aqueles que conhece bem, embora
eu deva dizer que os vigia com muita atenção. Se vê alguém
empalidecer por estar a uma altura tão grande, depressa o coloca
de novo em terra firme. Nem todos podemos ter cabeça para
alturas.
- Já estiveste lá em cima? - perguntou Hugh, curioso.
- Fiz o meu turno ontem, enquanto ainda havia luz do dia. Os dias
curtos não ajudam nada mas, dentro de uma semana, o trabalho
deve estar terminado.
Hugh semicerrou os olhos quando os raios de sol ofuscantes se
refletiram, por breves instantes, na brancura cristalina.
- Quem são aqueles dois que estão lá em cima agora? Aquele é o
Irmão Urien? O moreno? Quem é o outro?
- É o Irmão Haluin. - A figura magra e ativa estava praticamente
escondida pela saliência do andaime, mas Cadfael tinha visto os
dois subir as escadas há cerca de uma hora.
- O quê, o melhor iluminador do Anselmo? Como é que permitem
que um artista seja tão maltratado? Com este frio, fica com as mãos
estragadas. Depois de ter andado a agarrar em telhas, é pouco
provável que consiga pegar num pincel fino durante uma ou duas
semanas.
- O Anselmo quis dispensá-lo - admitiu Cadfael -, mas o Haluin
nem quis ouvir falar nisso. Ninguém lhe levaria a mal essa mercê,
sabendo como o seu trabalho é valioso mas, se houver uma camisa
de cilício disponível em algum lugar, o Haluin pede-a e usa-a.
Aquele rapaz é um eterno penitente, só Deus sabe por que pecados
imaginados, pois eu nunca o vi infringir uma única regra desde que
entrou como noviço, e uma vez que ele não tinha mais de dezoito
anos quando fez os primeiros votos, duvido que tenha tido tempo
para fazer muito mal ao mundo até essa altura. Mas alguns, por
natureza, nascem para fazerem penitência. Talvez assim aligeirem o
fardo para alguns de nós que aceitam confortavelmente o fato de
que somos humanos e não anjos. Se o que transbordar da
penitência e da devoção do Haluin fizer desaparecer alguns dos
meus defeitos, que isso reverta a seu favor. E eu não me vou
queixar.
Estava demasiado frio para ficarem muito tempo na neve espessa
a observar as atividades cautelosas que decorriam no telhado da
hospedaria. Prosseguiram o seu caminho através dos jardins,
rodeando os lagos congelados onde o Irmão Simeon tinha feito
alguns buracos com um machado para deixar entrar ar para os
peixes lá em baixo, e atravessando, por uma estreita ponte de
tábuas coberta por uma fina e traiçoeira camada de gelo, o canal de
água do moinho que alimentava os lagos. Mais perto agora, os
espigões dos andaimes projetavam-se da parede sul da hospedaria
por cima do canal de escoamento das águas, e os que estavam a
trabalhar no telhado estavam fora do campo de visão.
- Ele esteve comigo no meio das ervas quando era noviço, há
muito tempo - disse Cadfael enquanto atravessavam os canteiros
cobertos de neve do jardim superior e emergiam no enorme pátio. -
O Haluin, quero eu dizer. Foi pouco depois de ter terminado o meu
noviciado. Já tinha mais de quarenta anos quando entrei, e ele
acabara de fazer os dezoito. Mandaram-no para junto de mim
porque ele era letrado e sabia muito latim e, ao fim de três ou quatro
anos, eu ainda estava a aprender. Ele vem de uma família com
terras e, se não tivesse escolhido o hábito, teria herdado um bom
feudo. Foi um primo dele que ficou com ele. O rapaz tinha sido
colocado na casa de um nobre, conforme é hábito fazer-se, e era
escrivão da propriedade do seu senhor feudal mas, como todos os
homens que estão aqui dentro sabem, não se pode questionar a
vocação. Ela vem quando quer, e não é possível dizer-lhe não.
- Teria sido mais simples colocar o rapaz logo no scriptorium, se
ele já sabia tanto - disse Hugh, prático. - Eu já vi algum do seu
trabalho, seria um desperdício pô-lo a fazer qualquer outro trabalho.
- Ah, mas a consciência dele obrigou-o a passar por todas as
etapas da aprendizagem comum antes de assentar. Tive-o comigo
três anos no meio das ervas, depois cumpriu mais dois anos no
hospital de Saint Giles entre os doentes e aleijados, outros dois nos
jardins de Gaye e a ajudar a tomar conta dos cordeiros em
Rhydycroesau, antes de começar a fazer o que achámos que fazia
melhor. Ainda agora, como viste, não admite quaisquer privilégios só
porque tem uma mão delicada com os pincéis e as penas. Se os
outros têm que se arrastar arriscadamente sobre um telhado cheio
de neve, ele também tem que o fazer. Esse é um bom defeito -
admitiu Cadfael -, mas ele leva-o a extremos, e a Ordem não gosta
de extremos.
Atravessaram o pátio em direção à portaria, onde o cavalo de
Hugh estava amarrado, o cavalo alto, cinzento e magro que era
sempre a sua montada preferida e poderia transportar duas ou três
vezes o peso leve do seu dono.
- Não vai nevar mais esta noite - disse Cadfael, observando o céu
velado e cheirando a brisa suave e lânguida -, nem nos próximos
dias, suponho. Também não vai haver uma geada forte. Desejo-te
uma viagem tolerável para sul.
- Partimos ao nascer do Sol. E estaremos de volta, se Deus
quiser, no Ano Novo. - Hugh pegou nas rédeas e subiu para o selim
alto. - Espero que o degelo aguarde até o vosso telhado ser
novamente impermeável! E não te esqueças de que Aline vai estar à
tua espera.
Saiu pelo portão, com um eco agudo dos cascos a ressoar das
pedras, e uma única faísca cintilante que brilhou e desapareceu
antes de a ferradura deixar o solo gelado. Cadfael deu meia volta e
dirigiu-se à enfermaria para verificar o armário de medicamentos do
Irmão Edmund. Mais uma hora e começaria a escurecer, nestes dias
mais curtos do ano. O Irmão Urien e o Irmão Haluin seriam o último
par a trabalhar no telhado nesse dia.
Nunca ninguém soube exatamente como é que aconteceu. O
Irmão Urien, que obedecera à ordem de descer do Irmão Conradin
assim que foi chamado, deu o que achava que era a justificação
mais provável, mas até mesmo ele admitiu que não podia haver
certezas. Conradin, habituado a ser obedecido e concluindo
sensatamente que ninguém, na posse das suas faculdades mentais
ia querer ficar ao frio agreste um único momento mais do que o
necessário, tinha simplesmente gritado a sua ordem e voltado as
costas para tirar as últimas telhas partidas do dia do caminho dos
trabalhadores que iam descer. O Irmão Urien dirigiu-se, agradecido,
às tábuas do andaime e desceu cuidadosamente as compridas
escadas até ao chão, satisfeito por ter parado de trabalhar. Ele era
forte e trabalhador e não tinha quaisquer conhecimentos especiais a
não ser uma grande experiência prática, e o que fazia ficava bem
feito, mas não via qualquer necessidade de fazer mais do que lhe
era pedido. Recuou alguns metros para olhar o que já tinha sido
feito e viu que o Irmão Haluin, em vez de descer a curta escada que
estava encostada à vertente do telhado do seu lado, subia mais
alguns degraus e se inclinava para limpar mais um bocado de neve
e aumentar a extensão das telhas não cobertas. Parecia que tivera
motivo para desconfiar que os estragos eram maiores naquele lado
e quisera varrer a neve que ali havia para retirar o seu peso e evitar
danos maiores.
O monte de neve arredondado deslocou-se, deslizou em grandes
dobras sobre si próprio e caiu, em parte sobre a extremidade das
tábuas e da pilha de telhas que ali estavam à espera, e em parte
sobre a beira do telhado e seguidamente a pique para o chão lá em
baixo. Não houvera intenção de provocar uma avalanche daquelas,
mas a massa congelada desprendeu-se das telhas íngremes e caiu
num bloco sólido, estilhaçando-se ao bater nos andaimes. Haluin
tinha-se inclinado demasiado. A escada deslizou com a neve que a
tinha ajudado a manter-se estável, e ele caiu antes dela, mais do
que juntamente com ela, bateu de passagem na extremidade das
tábuas e estatelou-se sem um grito no canal congelado lá em baixo.
A escada e a neve caíram em cima das tábuas e fizeram-nas ir
pelos ares atrás dele, numa enorme chuva de pesadas telhas de
orlas aguçadas que lhe cortaram a carne.
O Irmão Conradin, atarefado quase por baixo dos andaimes, tinha
saltado para o lado mesmo a tempo, salpicado e meio-cego por um
momento pela queda de neve soprada pelo vento. O Irmão Urien,
recuando, suspendeu o ato de gritar ao seu companheiro para que
parasse de trabalhar, pois já estava bastante escuro e soltou, em
vez disso, um grito de aviso demasiado tardio para o salvar e deu
um salto em frente, tendo ficado meio soterrado pela orla da queda.
Sacudindo a neve, chegaram os dois ao mesmo tempo ao pé do
Irmão Haluin.
Foi o Irmão Urien que foi apressadamente e num silêncio
pesaroso à procura de Cadfael, enquanto Conradin corria na outra
direção, para o pátio, e mandava o primeiro irmão que encontrou
chamar o Irmão Edmund, o enfermeiro. Cadfael estava na sua
oficina, a colocar turfa no fogareiro para o apagar por essa noite,
quando Urien irrompeu pela porta dentro, um homem moreno e
triste portador de más notícias.
- Irmão, vem depressa! O Irmão Haluin caiu do telhado! Cadfael,
não menos parco em palavras, deu meia volta, assentou o último
bocado de turfa e tirou um cobertor de lã da prateleira.
- Está morto? - A queda devia ser de, pelo menos, treze metros,
com obstáculos de madeira no caminho e gelo firme em baixo, mas
se ele, por acaso, tivesse caído na neve espessa tornada ainda
mais espessa pela limpeza do telhado, então, talvez tivesse sorte.
- Ele ainda respira. Mas durante quanto tempo? Conradin foi
buscar mais ajuda; o Edmund já sabe.
- Vamos! - disse Cadfael, saindo para o exterior e correndo para a
pequena ponte por cima do canal. Depois, mudou de ideia e correu
ao longo do caminho estreito entre os lagos do mosteiro e saltou por
cima do canal situado na extremidade, para poder chegar mais
depressa ao local onde Haluin estava. Vindo do pátio, o brilho de
dois archotes avançou em direção a eles, com o Irmão Edmund com
alguns ajudantes e uma maca atrás do Irmão Conradin.
O Irmão Haluin, enterrado até aos joelhos debaixo das pesadas
telhas, com sangue a manchar o gelo debaixo da sua cabeça,
estava imóvel no meio do tumulto que provocara.

CAPíTULO 2

Quaisquer que fossem os riscos de o mover, deixá-lo onde estava


por mais um momento do que era necessário seria consentir e
ajudar a morte que já estava a tentar agarrá-lo. Numa pressa muda
e determinada, retiraram as tábuas caídas e desenterraram, com as
mãos, as telhas aguçadas que esmagavam e lhe dilaceravam os
pés e os tornozelos, transformando-os numa polpa de sangue e
ossos. Ele estava muito longe deles e não sentiu nada do que lhe
fizeram quando o levantaram da cama gelada do canal de
escoamento o suficiente para colocarem as cordas debaixo dele e o
erguerem para cima da maca. Num cortejo pesaroso, transportaram-
no ao longo dos jardins escuros até à enfermaria, onde o Irmão
Edmund lhe tinha preparado uma cama numa pequena cela
separada dos velhos e enfermos que passavam ali o resto dos seus
dias.
- Ele pode não sobreviver - disse Edmund olhando para o rosto
pálido e ausente.
Cadfael era da mesma opinião. O mesmo se passava com todos
eles. Mas ele ainda respirava, mesmo que fosse apenas um gemido
rouco que denunciava lesões na cabeça que talvez não pudessem
ser reparadas; e eles começaram a trabalhar nele como em alguém
que podia e iria viver, mesmo tendo praticamente a certeza virtual
de que isso não iria acontecer. Com um cuidado infinito, despiram-
lhe as roupas geladas e rodearam-no de cobertores embrulhados
em pedras aquecidas, enquanto Cadfael o examinava suavemente à
procura de ossos partidos e lhe ligava o braço esquerdo que rangia
quando lhe mexia e, mesmo assim, não houve o menor sinal de vida
no seu rosto imóvel. Ele apalpou cuidadosamente a cabeça de
Haluin antes de limpar e fazer o curativo à ferida que sangrava, mas
não conseguia determinar se o crânio estava fraturado. A respiração
azeda, ressonante, indicava que estava, mas ele não podia ter
certeza. Quanto aos pés e tornozelos desfeitos, Cadfael trabalhou
neles durante muito tempo depois de terem coberto o Irmão Haluin
com cobertores aquecidos para ele não morrer de frio, e o seu corpo
foi colocado ao comprido e protegido de todas as formas possíveis
do choque e da dor do movimento, para o caso de recuperar os
sentidos. O que ninguém acreditava que fosse acontecer, a não ser
que tivesse um vestígio secreto, obstinado, de fé, que os levou a
esforçarem-se por alimentar até mesmo a centelha cada vez mais
fraca.
- Ele nunca mais vai voltar a andar - disse o Irmão Edmundo,
estremecendo ao ver os pés desfeitos que Cadfael lavava
cuidadosamente.
- Sem ajuda, nunca - acrescentou Cadfael num tom sombrio. -
Nunca em cima destes. - Mas, apesar disso, ele continuou
pacientemente a tentar juntar, o melhor que conseguia, os restos
destroçados.
O Irmão Haluin tinha tido pés compridos, estreitos e elegantes,
em harmonia com o seu corpo magro. Os cortes profundos e cruéis
provocados pelas telhas tinham penetrado, nalguns locais, até ao
osso, lascando-o por vezes. Demorou algum tempo a retirar os
fragmentos ensanguentados e a ligar cada um dos pés, restituindo-
lhes, pelo menos, a forma humana e a envolvê-los num berço de
feltro, bem almofadado, de modo a que se mantivessem imóveis e a
que, quando sarassem, fossem o mais parecidos possível com o
que tinham sido outrora. Se, obviamente, houvesse cura possível.
E, durante todo esse tempo, o Irmão Haluin ressonava
dolorosamente, sem dar conta de tudo que lhe estava a ser feito,
profundamente mergulhado sob as luzes e as sombras do mundo,
até a sua respiração se tornar gradualmente num mero murmúrio
que não era mais do que uma folha solitária a estremecer numa
brisa que era quase imperceptível, e eles pensaram que ele tinha
morrido. Mas, por mais tenuamente que tremesse, a folha
continuava a mover-se.
- Se ele voltar a si, até mesmo por um momento, chamem-me
imediatamente - disse o Abade Radulfus, após o que os deixou na
sua vigília.
O Irmão Edmund tinha ido dormir um pouco. Cadfael partilhou a
vigília noturna com o Irmão Rhun, o mais recente e o mais jovem
dos monges do coro. Um de cada lado da cama, vigiaram
continuamente o sono ininterrupto para além do sono de um corpo
ungido, abençoado e preparado para a morte.
Tinham-se passado muitos anos desde que Haluin tinha saído da
alçada de Cadfael e passado a fazer trabalho manual em Gaye.
Cadfael voltou a examinar atentamente os traços de cujos
pormenores anteriores quase se esquecera, e viu que eles eram ao
mesmo tempo diferentes e enternecedoramente familiares. Não
sendo um homem grande, o Irmão Haluin era de altura um pouco
acima da média, com ossos compridos, finos e elegantes, e hoje em
dia tinha mais músculo e carne do que quando entrara no mosteiro,
um rapaz que não tinha crescido totalmente e a entrar na idade
adulta. Atualmente, com trinta e cinco ou trinta e seis anos, ele mal
completara dezoito na altura e tinha a suavidade e o viço da
mocidade. O seu rosto era de um oval comprido, com as maçãs do
rosto e o queixo fortes e bem definidos, as sobrancelhas finas,
arqueadas, quase pretas, uns tons mais escuros que a juba de
cabelo castanho que tinha sacrificado à tonsura. O rosto deitado na
almofada, virado para ele, estava branco como a cal, as covas das
faces e as órbitas fundas dos olhos eram azuis como sombras na
neve e, enquanto o observava, o mesmo azul-lívido estava a formar-
se à volta dos seus lábios contraídos. Durante a madrugada, hora a
que a vida atinge o seu estado mais frágil, ele morreria ou
melhoraria.
No outro lado da cama, o Irmão Rhun estava ajoelhado, atento,
não mais intimidado pela morte de outra pessoa do que ficaria um
dia com a sua própria morte. Mesmo na obscuridade deste pequeno
quarto de pedra, a beleza radiosa de Rhun, com o rosto macio da
juventude, a coroa de cabelo louro e olhos verdes-azulados difundia
um brilho suave. Só alguém com a certeza virginal de Rhun seria
capaz de se sentar serenamente junto de um leito de morte com
tanta bondade e afeto ardentes e, ao mesmo tempo, sem qualquer
vestígio de piedade. Cadfael tinha conhecido outros seres que
chegaram ao mosteiro com algo semelhante a essa fé encantada,
mas que depois a viram gradualmente ameaçada, apagada e
corroída com a erosão dos anos, devido ao simples fardo de serem
humanos. Isso nunca aconteceria ao Irmão Rhun. Santa Winifred,
que lhe tinha concedido a perfeição física que lhe faltava, não
permitiria que esse dom fosse desfigurado por qualquer mutilação
do seu espírito.
A noite passou lentamente, sem qualquer alteração perceptível na
imobilidade impiedosa do Irmão Haluin. Foi perto do raiar da aurora
que Rhun disse finalmente, em voz baixa: - Olha, ele está a mexer-
se!
Um ligeiro estremecimento perpassou-lhe o rosto lívido, as
sobrancelhas escuras uniram-se, as pálpebras contraíram-se com a
primeira consciência distante da dor, e os lábios alongaram-se num
breve esgar de tensão e alarme. Eles esperaram durante o que lhes
pareceu muito tempo, sem poderem fazer mais nada a não ser
limpar a testa molhada e o fio de saliva que escorria do canto da
boca distorcida.
Com a primeira luz pouco perceptível antes do nascer do Sol,
refletida na neve, o Irmão Haluin abriu os olhos pretos como ônix
nas órbitas azuis e moveu os lábios para emitir um fio de voz tão
fino que Rhun teve que baixar o seu ouvido jovem e apurado para o
interpretar.
- Confissão... - disse o murmúrio vindo do limiar entre a vida e a
morte e, durante algum tempo, foi tudo o que se ouviu.
- Vai chamar o Pai Abade - disse Cadfael.
Rhun saiu rápida e silenciosamente. Haluin foi recuperando os
sentidos e, com a crescente claridade e a focagem mais nítida dos
seus olhos, soube onde estava e quem estava sentado a seu lado, e
apelou, com um objetivo, para a vida e para a inteligência que lhe
restavam. Cadfael viu a aceleração da dor na brancura tensa da
boca e do queixo e tentou deitar umas gotas do preparado de
papoulas entre os lábios do seu doente, mas Haluin manteve-os
bem cerrados e virou a cabeça para o lado. Não queria nada que
entorpecesse ou dificultasse os seus sentidos, ainda não, não antes
de ter deitado para fora o que tinha para dizer.
- O Pai Abade já vem - disse Cadfael, próximo da almofada. -
Espera, para falares só uma vez.
O Abade Radulfus já estava à porta, inclinado sob o lintel baixo.
Sentou-se no banco que Rhun tinha vagado e inclinou-se sobre o
homem ferido. Rhun tinha ficado lá fora, pronto para fazer algum
recado se fosse necessário, e tinha fechado a porta. Cadfael
levantou-se para também se retirar e, subitamente, faíscas de
ansiedade amarelas fulgiram nos olhos ocos de Haluin, e uma breve
convulsão percorreu-lhe o corpo provocando um gemido de dor,
como se quisesse levantar uma mão para impedir que Cadfael se
fosse embora, mas não conseguiu fazê-lo. O abade inclinou-se para
se aproximar mais dele, de modo a que ele não só o ouvisse, como
também o pudesse ver.
- Eu estou aqui, meu filho. Estou pronto a ouvir-te. O que te
perturba?
Haluin inspirou e reteve o ar para poder ter voz para falar.
- Eu tenho pecados... - disse ele - que nunca contei a ninguém. -
As palavras vieram devagar e com grande dificuldade, mas muito
claramente. - Um contra Cadfael... Há muito tempo... nunca
confessei.
O abade levantou os olhos para Cadfael, que estava no outro lado
da cama.
- Fica! Ele quer que fiques. - E para Haluin, tocando-lhe na mão
mole que estava demasiado fraca para ser erguida: - Fala como
puderes, nós ouviremos. Poupa as palavras, nós podemos ler nas
entrelinhas.
- Os meus votos - disse a voz fina, muito distante. - Impuros... não
por devoção... Desespero!
- Muitos entraram pelas razões erradas - disse o abade - e
ficaram pelas razões certas. Certamente que durante os quatro anos
da minha abadia não encontrei qualquer falta no teu verdadeiro
serviço. A esse respeito não tens nada a temer. Deus pode ter tido
as suas próprias razões para te ter trazido para o mosteiro.
- Eu servi De Clary em Hales - disse a voz fina. - Ou melhor, a sua
dama... nessa altura ele estava na Terra Santa. A filha dele... -
houve um longo silêncio enquanto ele, paciente e esforçadamente,
renovava a sua persistência em contar mais e pior. - Eu amava-a... e
era amado. Mas a mãe... as minhas pretensões não foram bem
aceitas. O que nos foi proibido, nós tomámo-lo...
Outro silêncio, desta vez mais longo. Os olhos azuis, encovados,
baixaram-se por um momento sobre os olhos ardentes.
- Deitámo-nos juntos - disse ele, claramente. - Esse pecado eu
confessei, mas nunca disse o nome dela. A dama expulsou-me.
Desesperado, vim para aqui... pelo menos já não faria mais mal.
Mas o pior ainda estava para vir!
O abade fechou a mão com firmeza sobre a mão insensível ao
lado de Haluin, para o segurar melhor, pois o rosto em cima da
almofada tinha-se afundado numa máscara de gesso e um longo
arrepio atravessou-lhe o corpo despedaçado e deixou-o tenso e frio
ao toque.
- Descansa! - disse Radulfus, perto do ouvido do sofredor. - Tem
calma! Deus ouve, mesmo quando não se diz nada.
Pareceu a Cadfael, que o observava, que a mão de Haluin
reagira, ainda que muito debilmente. Ele trouxe a bebida de vinho e
ervas com que umedecera a boca do doente enquanto este estivera
sem sentidos. Deitou algumas gotas entre os lábios entreabertos e,
pela primeira vez, a oferta foi aceita, e a garganta magra fez um
esforço para engolir. A sua altura ainda não tinha chegado. O que
quer que ele tivesse mais a desabafar, ainda havia tempo para isso.
Deram-lhe pequenos goles de vinho e observaram os seus traços
adquirir coerência, embora o seu rosto estivesse pálido e frágil.
Desta vez, quando voltou para junto deles, fê-lo muito tenuemente e
com os olhos ainda fechados.
- Pai? - perguntou a voz remota num tom receoso.
- Estou aqui. Não te vou deixar.
- A mãe dela veio... só então eu soube que Bertrade esperava um
filho! A dama estava aterrorizada com medo da ira do seu senhor
quando ele voltasse para casa. Nessa altura, eu servia ao pé do
Irmão Cadfael, eu tinha aprendido... conhecia as ervas... roubei e
dei-lhe... hissope, flor-de-lis... Cadfael conhece melhor uso para
elas!
Sim, muitíssimo melhor! Mas o que poderia ajudar um peito muito
congestionado e uma terrível tosse, em pequenas doses, ou
combater a icterícia que tornavam um homem amarelo, também
podia pôr termo a uma gravidez, numa utilização obscena, odiosa
para a igreja e até mesmo perigosa para a mulher que deveria,
supostamente, ajudar. Por medo de um pai irado, medo da vergonha
aos olhos do mundo, medo das perspectivas de casamento
arruinadas e das hostilidades familiares inflamadas. Teria a mãe da
moça suplicado ou tê-la-ia ele convencido? Anos de remorso e
autopunição não tinham exorcizado o horror que ainda lhe apertava
a carne e contorcia o rosto.
- Elas morreram - disse ele, num tom duro e cheio de dor. - O meu
amor e a criança, as duas. A mãe dela enviou-me a mensagem:
“mortas e enterradas”. Uma febre, foi o que disseram. Mortas por
uma febre... nada mais a recear. O meu pecado, o meu mais terrível
pecado... Deus sabe que eu me arrependo!
- Onde existe verdadeira penitência - disse o Abade Radulfus -,
Deus certamente o sabe. Bem, este desgosto já foi contado. Já
terminaste ou há mais para contar?
- Já terminei - disse o Irmão Haluin. - Exceto para pedir perdão.
Peço perdão a Deus... e a Cadfael, por ter abusado da sua
confiança e da sua arte. E à dama de Hales, pelo grande sofrimento
que lhe causei. - Agora que tinha desabafado, ele tinha um controle
melhor sobre a sua voz e palavras, a tensão incapacitante
desaparecera-lhe da língua, e a sua fala, embora fosse fraca, era
lúcida e resignada. - Quero morrer purificado e perdoado - disse ele.
- O Irmão Cadfael falará por si próprio - disse o abade. - Em nome
de Deus, falarei eu, pois ele me concede essa graça.
- Eu perdoo - disse Cadfael, escolhendo as palavras com mais
cuidado do que o habitual - qualquer ofensa que tenha sido
cometida contra o meu ofício sob uma grande pressão mental. E
quanto ao fato de os meios e os conhecimentos ali estarem para te
tentar e eu não me encontrar lá para te dissuadir, eu considero-me
tão culpado como tu. Desejo-te paz.
O que o Abade Radulfus teve a dizer em nome de Deus demorou
mais tempo. Se o tivessem ouvido, pensou Cadfael, alguns irmãos
teriam ficado admirados e manifestariam incredulidade ao
descobrirem que a formidável austeridade do abade podia também
conter uma enorme ternura comedida. Uma consciência aliviada e
uma morte limpa eram o que Haluin desejava. Era demasiado tarde
para exigir penitência a um moribundo, e o conforto num leito de
morte não pode ter preço, só pode ser dado livremente.
- Um coração despedaçado e arrependido - disse Radulfus - é o
único sacrifício que te é exigido, e não serás desprezado. - E deu-
lhe a absolvição total e a bênção solene, e saiu do quarto do doente,
fazendo sinal a Cadfael para que fosse com ele. No rosto de Haluin,
a tranquilidade da gratidão tinha sido novamente substituída pela
indiferença da exaustão, e o fogo morreu nos seus olhos apagados
e semicerrados entre o desmaio e o sono.
No quarto exterior, Rhun estava pacientemente à espera, um
pouco afastado para evitar escutar, mesmo involuntariamente,
qualquer palavra da confissão.
- Vai sentar-te ao pé dele - disse o abade. - Agora ele vai
conseguir dormir, não terá maus sonhos. Se houver alguma
alteração no seu estado, vai chamar o Irmão Edmund. E se o Irmão
Cadfael for necessário, manda chamá-lo aos meus aposentos.
Na sala apainelada dos aposentos do abade, eles sentaram-se
juntos, as únicas duas pessoas que alguma vez teriam
conhecimento do crime de que Haluin se culpava a si próprio, ou
que teriam o direito de conversar em privado sobre a sua confissão.
- Eu só estou aqui há quatro anos - disse Radulfus diretamente - e
não sei nada sobre as circunstâncias em que Haluin veio para aqui.
Parece que uma das suas primeiras tarefas aqui foi ajudar-te com
as ervas, e foi aí que adquiriu o conhecimento que tão mal utilizou.
É certo que a bebida que preparou podia matar? Ou a morte poderia
ter sido realmente causada pela febre?
- Se a mãe da moça lha deu, ela não se pode ter enganado -
disse Cadfael com tristeza. - Sim, eu sei que o hissope pode matar.
Foi uma tolice mantê-lo entre as minhas provisões, há outras ervas
que podiam tomar o seu lugar. Mas, em pequenas doses, tanto a
erva como as raízes, secas e feitas em pó, são excelentes para a
diarreia e são úteis, juntamente com marroio-branco, contra
problemas de peito, embora a espécie com flores azuis seja mais
suave e melhor para isso. Eu sei que as mulheres o utilizam para
tentar abortar, em grandes doses que são purgas violentas. Não
admira que, por vezes, a pobre da moça morra.
- E isso aconteceu certamente durante o seu noviciado, pois, se a
criança era dele, conforme supõe, ele não podia estar aqui há muito
tempo. Não passava certamente de um rapaz.
- Mal teria dezoito anos, e a moça certamente que não tinha mais
do que isso. Existe uma atenuante, que é o fato - disse Cadfael com
firmeza - de eles viverem na mesma casa, vendo-se todos os dias e
sendo de linhagem semelhante, pois ele é oriundo de uma boa
família, e de estarem tão abertos ao amor como a maioria das
crianças. De fato - disse Cadfael, entusiasmando-se -, pergunto a
mim próprio por que é que as suas pretensões foram simplesmente
rejeitadas. Ele era filho único, teria herdado um bom feudo se não
tivesse feito votos. E recordo-me de que ele era um jovem muito
simpático, letrado e dotado. Muitos cavaleiros teriam gostado muito
de o ter como genro.
- Talvez o pai da moça já tivesse outros planos para ela - disse
Radulfus. - Ele pode tê-la prometido a outra pessoa quando ela
ainda era criança. E a mãe, se tinha tanto medo do marido, não se
arriscaria a consentir num casamento na sua ausência.
- Mas não havia necessidade de ela ter rejeitado o rapaz. Se lhe
tivesse dado esperança, certamente que ele teria esperado e não
tinha tentado obrigá-la, antecipando o casamento. Embora eu talvez
esteja a ser injusto para com ele - compadeceu-se Cadfael. - Não foi
a maquinação, suponho, que o levou à cama da moça, mas sim um
afeto demasiado impulsivo. Haluin nunca seria capaz de ser
calculista.
- Bem, para melhor ou pior - disse Radulfus com um suspiro
cansado -, aconteceu e não pode ser desfeito. Ele não foi o primeiro
e não será o último jovem a cometer esse erro, nem ela foi a
primeira nem a última criança a sofrer as consequências. Pelo
menos, ela manteve o seu bom nome. É fácil compreender o motivo
por que ele receava fazer confidências, mesmo sob o segredo da
confissão. Mas tudo aconteceu há muito tempo, dezoito anos, a
idade que ele tinha nessa altura. Vamos, pelo menos, garantir-lhe
um final tranquilo.
Era opinião geral que um final tranquilo era o melhor que se
poderia esperar para o Irmão Haluin, e que as orações por ele não
deveriam pressupor qualquer outro desfecho, sobretudo porque,
após o seu breve regresso à consciência, recaíra numa
inconsciência ainda mais profunda e, durante sete dias, enquanto a
festa da Natividade decorreu, permaneceu inconsciente às idas e
vindas dos irmãos à volta da sua cama, não comeu nada, não emitiu
qualquer som a não ser o da sua respiração, que mal era
perceptível. No entanto, essa respiração, embora tênue, era regular
e, muitas vezes, quando lhe eram colocadas nos lábios gotas de
vinho, estas eram aceitas, e a garganta movia-se por si própria,
engolindo docilmente, embora nem a testa larga e fria nem os olhos
fechados revelassem, através do mínimo estremecimento ou
contração, ter consciência do que o seu corpo fazia.
- É como se o seu corpo aqui estivesse - disse o Irmão Edmund,
reflectindo sobriamente - e o espírito tivesse ido para outro local
enquanto a casa é novamente mobiliada e limpa, à espera de ser
outra vez habitada.
Uma analogia bíblica apropriada, pensou Cadfael, pois
certamente que Haluin tinha expulsado os demônios que o
habitavam, e a casa que eles tinham vagado poderia muito bem
ficar vazia durante algum tempo, sobretudo se, afinal, esse
inesperado e improvável ato de cura viesse a ocorrer. Porque por
mais que esta prolongada ausência se parecesse com a morte, o
Irmão Haluin não iria morrer. Então, é melhor vigiá-lo bem, pensou
Cadfael, levando a parábola ao seu final adequado, e certificar-nos
de que sete demônios piores do que o primeiro não conseguem pôr
um pé na porta enquanto ele estiver ausente. E as orações por
Haluin prosseguiram com perseverante fervor durante as
festividades do Natal e da abertura solene no Ano Novo.
Nessa altura, o degelo estava a começar e, mesmo assim, era um
degelo lento, desgastando lentamente, todos os dias, pouco a
pouco, as vastas quantidades de neve do enorme nevão. O trabalho
no telhado terminou sem mais percalços, os andaimes foram
retirados e a hospedaria ficou de novo à prova do tempo inclemente.
Tudo o que restava da grande comoção era esta testemunha imóvel
e silenciosa na sua cama isolada na enfermaria, recusando-se a
viver ou a morrer.
Depois, na noite da Epifania, o Irmão Haluin abriu os olhos,
inspirou longa e lentamente como qualquer outro homem a acordar
com a maior tranquilidade e percorreu a cela estreita com um olhar
de espanto, até pousar os olhos no Irmão Cadfael, calado e atento
no banco ao seu lado.
- Tenho sede - disse Haluin num tom confiante, como uma
criança, e deixou-se ficar passivamente sobre o braço de Cadfael
para beber.
Eles estavam mais ou menos à espera que mergulhasse
novamente na inconsciência, mas ele permaneceu lânguido mas
consciente durante todo esse dia e, à noite, o seu sono era um sono
natural, pouco profundo mas tranquilo. Depois disso, virou o rosto
para a vida e não voltou a olhar por cima do ombro. Uma vez
erguido da semelhança da morte, regressou ao território da dor, e a
marca desta estava na sua testa franzida e nos lábios cerrados, mas
suportou-a sem um queixume. O braço partido tinha-se soldado
enquanto estivera deitado sem ter a noção dos seus ferimentos e
provocava-lhe apenas as dores irritantes dos ferimentos em vias de
sarar, e pareceu, tanto a Cadfael como a Edmund, depois de o
vigiarem atentamente durante um ou dois dias, que o que quer que
tivesse ficado fora do lugar no interior da sua cabeça tinha sarado
ao mesmo tempo que as feridas exteriores, tratado pela imobilidade
e pelo repouso. Ele recordava-se do telhado gelado, recordava-se
da sua queda e, uma vez, quando se encontrava a sós com Cadfael,
mostrou que se lembrava muito claramente da sua confissão,
porque, depois de ter pensado em silêncio durante muito tempo,
disse: - Portei-me muito mal para contigo, há muito tempo, agora tu
tomas conta de mim e tratas-me, e eu não reparei o meu erro.
- Não pedi que o fizesses - disse Cadfael serenamente e começou
a desembrulhar os envoltórios de um pé estropiado, para renovar as
ataduras que substituía constantemente dia e noite.
- Mas eu preciso de pagar o que devo. De outro modo, como é
que hei-de ficar limpo?
- Tu fizeste uma confissão total - disse Cadfael, sensatamente -,
recebeste a absolvição do próprio abade, não deves pedir mais.
- Mas eu não fiz qualquer penitência. A absolvição obtida tão
facilmente faz com que ainda seja devedor - disse Haluin,
pesadamente.
Cadfael tinha deixado nu o pé esquerdo, o mais desfigurado dos
dois. Os cortes e as feridas superficiais tinham sarado, mas o que
acontecera ao labirinto de pequenos ossos no seu interior nunca
poderia ser reparado, eles tinham-se fundido numa massa informe,
retorcida e cheia de cicatrizes, descolorida em tons vermelho-
escuros e roxos. No entanto, a pele rasgada tinha-se juntado e
coberto tudo.
- Se tens quaisquer dívidas - disse Cadfael, bruscamente -, elas
prometem ser pagas em dor até ao dia da tua morte. Vês isto?
Nunca mais vais conseguir colocá-lo com firmeza no chão. Duvido
que consigas voltar a andar.
- Sim - disse Haluin, olhando para o céu invernoso através da
fenda estreita da janela. - Sim, eu vou andar. Eu vou andar. Se Deus
permitir, eu hei-de andar pelos meus próprios pés, embora talvez
tenha de pedir muletas emprestadas para os ajudar a carregar
comigo. E se o Pai Abade me der autorização, quando tiver
aprendido a utilizar os adereços que me restam, irei eu próprio a
Hales pedir perdão a Adelais de Clary e passar uma noite de vigília
junto do túmulo de Bertrade.
Interiormente, Cadfael duvidou que quer os mortos quer os vivos
se sentissem grandemente reconfortados com a expiação de Haluin,
ou se, ao fim de dezoito anos, ainda se recordavam dele. Mas se
aquela piedosa intenção desse ao rapaz coragem e determinação
para viver, trabalhar e ser de novo produtivo, por que haveria ele de
o desencorajar? Por isso, a única coisa que disse foi: - Bem,
primeiro vamos reparar tudo o que pode ser reparado e fazer-te
recuperar algum do sangue perdido, pois, assim como estás, não
vais ter autorização para ir a lado nenhum. - E olhando para o pé
direito que, pelo menos, tinha alguma semelhança com um pé
humano e cujo tornozelo estava perceptível e intato, acrescentou
pensativamente: - Talvez façamos uma espécie de botas de feltro
grossas para ti, bem acolchoadas por dentro. Talvez venhas a
conseguir pôr um pé no chão, embora precises das muletas. Ainda
não... ainda não, demorará semanas, mais provavelmente meses.
Mas vamos tirar-te as medidas, e veremos o que conseguimos
arranjar entre nós.
Ao refletir sobre o assunto, Cadfael pensou que seria sensato
avisar o Abade Radulfus sobre a expiação que o Irmão Haluin tinha
em mente, e fê-lo depois do cabido (colegiado), na privacidade da
sala de abade.
- Depois de ter tirado o peso do coração - disse simplesmente
Cadfael -, se a sua sorte tivesse sido morrer, ele teria morrido
satisfeito. Mas ele vai viver. A sua mente está clara, a sua força de
vontade é forte e o corpo, embora esteja fraco, é bastante
resistente, e agora que vê uma vida à sua frente, não se contenta
em livrar-se dos seus pecados através de uma absolvição sem
penitência. Se ele fosse uma pessoa mais frívola e se fosse possível
convencê-lo a esquecer esta decisão quando ficasse bom, pela
minha parte eu não o censuraria, ficaria até satisfeito. Mas a
penitência sem expiação nunca será suficiente para Haluin. Eu vou
detê-lo o mais tempo que puder, mas pode acreditar que voltaremos
a ouvir falar nesta expiação assim que ele se sentir capaz de a levar
a cabo.
- Não posso recusar um desejo tão apropriado - disse o abade,
sensatamente -, mas posso proibi-lo até ele se encontrar
suficientemente bem para o realizar. Se lhe vai trazer paz de
espírito, não tenho o direito de o impedir. Poderá significar uma
forma de consolo tardio para a dama cuja filha teve uma morte tão
terrível. Eu não conheço - disse Radulfus, reflectindo
ponderadamente sobre a peregrinação proposta - o feudo de Hales,
embora já tenha ouvido o nome de De Clary. Sabes onde fica?
- Perto da orla leste do condado, Pai, deve ficar a cerca de vinte
cinco milhas de Shrewsbury.
- E esse senhor que estava ausente na Terra Santa, se a sua
dama tinha tanto medo dele, não lhe deve ter dito nada sobre a
verdadeira causa da morte da filha. Já se passaram muitos anos
mas, se ele ainda for vivo, esta visita não deve ser efetuada. Seria
muito mau para o Irmão Haluin salvar a sua própria alma causando
maiores problemas à dama de Hales, fazendo-a correr perigo.
Quaisquer que tivessem sido os seus erros, ela já pagou por eles.
- Tanto quanto eu saiba - admitiu Cadfael -, podem ter morrido
ambos há muito tempo. Eu vi o local uma vez, no regresso de
Lichfield, numa incumbência do Abade Heribert, mas não sei nada
sobre a casa de De Clary.
- Hugh Beringar há-de saber - disse o abade num tom confiante. -
Ele sabe tudo sobre toda a nobreza do condado. Quando regressar
de Winchester podemos perguntar-lhe. Não há pressa. Mesmo que
Haluin tenha que fazer a sua expiação, neste momento, não está
em condições de a fazer. Ainda não se levantou da cama.

CAPíTULO 3

Hugh e o seu acompanhante chegaram a casa quatro dias depois


da Epifania. Nessa altura, já grande parte da neve tinha
desaparecido, o tempo estava cinzento, os dias pequenos e
sombrios, com as noites suspensas à beira da geada, pelo que o
degelo prosseguiu gradualmente e não houve inundações. Depois
de uma queda de neve tão grande, um degelo rápido faria com que
uma enorme massa de água descesse o rio, escoando-se de todos
os cursos de água, e o Severn teria alimentado o Meole Brooke e
inundado a parte mais baixa dos campos, mesmo que o enclave em
si escapasse à inundação. Este ano, eles tinham sido poupados e
Hugh, descalçando as botas e tirando o capote já em sua casa,
situada ao lado da igreja de Santa Maria, com a mulher a trazer-lhe
os sapatos forrados de pele e o filho agarrado ao cinturão a pedir
que admirasse devidamente o seu novo cavaleiro de madeira
pintada, pôde relatar uma viagem fácil para a época do ano, e uma
recepção satisfatória da corte à sua administração.
- Embora eu duvide que estas tréguas de Natal durem muito -
disse ele a Cadfael mais tarde, depois de ter dado todas as notícias
de Winchester ao abade. - Ele engoliu o fracasso de Oxford com
bastante galhardia mas, mesmo assim, está desejoso de vingança
e, seja ou não Inverno, não vai ficar parado durante muito tempo.
Ele quer Wareham de volta, mas este está bem fornecido e com
uma guarnição até às ameias, e o Stephen nunca teve paciência
para um cerco. Ele gostaria de ter um forte mais a oeste, para levar
a guerra para o país do Robert. Não há forma de saber o que é que
vai tentar primeiro. Mas ele não me quer a mim nem aos meus
homens lá no sul, está demasiado desconfiado do conde de Chester
para me manter longe do meu condado durante muito tempo.
Graças a Deus, porque eu sou da mesma opinião - disse Hugh,
jovialmente.
- E como tens passado? Fiquei bastante aborrecido quando soube
que o vosso melhor iluminista deu uma queda que quase o matou.
O Pai Abade contou-me. É verdade que ele está a recuperar bem?
- Melhor do que qualquer de nós estava à espera - disse Cadfael
-, e até mesmo ele próprio, porque certamente que desejou limpar a
alma em preparação para a morte. Mas já está fora de perigo e
dentro de alguns dias vai-se levantar da cama. Mas os seus pés
ficaram estropiados para toda a vida, as telhas cortaram-nos aos
bocados. O Irmão Luke está a fazer umas muletas à sua medida.
Hugh - disse Cadfael diretamente -, o que é que sabes sobre os De
Clarys, que são senhores do feudo de Hales? Houve um deles que
foi cruzado há quase vinte anos. Eu nunca o conheci, foi depois do
meu tempo no oriente. Ele ainda é vivo?
- Bertrand de Clary - disse Hugh, prontamente, olhando, com
curiosidade, para o amigo. - O que há com ele? Já morreu há anos,
julgo que dez ou mais. O filho tem agora o título. Não tenho
quaisquer relações com eles. Hales é o único feudo que detêm
neste condado, o caput e a maior parte das suas terras ficam em
Staffordshire. Porquê, por que é que te lembraste de De Clary?
- Porque o Haluin o fez. Esteve ao serviço dele antes de tomar o
hábito. Parece achar que tem ainda uma dívida nessa direção. Esta
dívida veio-lhe à mente quando fez o que supôs ser a sua confissão
à beira da morte. Algo em que ele pensa que errou, e ainda tem isso
na consciência.
Isso era tudo o que ele podia dizer, até mesmo a Hugh, uma vez
que o confessionário era sagrado e, se nada mais fosse dito, Hugh
não faria mais perguntas, embora pudesse especular sobre o que
não tinha sido dito.
- Está decidido a fazer a viagem para esclarecer tudo, quando
estiver suficientemente bem. Eu estava a pensar... Se a viúva de
Bertrand também já não pertencer ao mundo dos vivos, o Haluin
deve sabê-lo imediatamente e esquecer o assunto.
Hugh estava a olhar para o amigo com enorme interesse e um
sorriso tolerante.
- E tu queres que ele não tenha nada com que se preocupar, de
ordem física ou mental, a não ser ficar bom o mais depressa
possível. Não te posso ajudar, Cadfael. A viúva ainda está viva. Ela
está lá, em Hales, pagou os impostos na última festa de São Miguel.
O filho casou-se com uma mulher de Staffordshire e tem um filho
para lhe suceder e, segundo consta, a mãe dele não é o tipo de
pessoa que partilhe a casa de outra mulher sem interferir. Hales é a
sua casa preferida, ela vive lá por decisão própria e deixa o filho
governar a casa dele enquanto ela governa a sua. Sem dúvida que
essa situação agrada a ambas. Eu nem sequer estaria tão bem
informado - disse ele, como explicação - se nós não tivéssemos
percorrido algumas milhas do caminho de Winchester na companhia
de um grupo de homens de De Clary que dispersavam do cerco de
Oxford. Não cheguei a vê-lo a ele, ainda estava na corte quando
partimos. Ele já deve estar a caminho de casa, a não ser que
Stephen o detenha lá, para o lance seguinte que tem em mente.
Cadfael recebeu a notícia filosoficamente, mas sem prazer. Então,
ela ainda era viva, a mulher que tinha tentado ajudar a filha a fazer
um aborto, e a única coisa que fizera fora ajudá-la a morrer. Não era
a primeira nem seria a última a ter uma morte assim. Mas como
seria o desespero e a sensação de culpa da mãe na altura, e que
recordações amargas ainda devia ter por baixo das cinzas de
dezoito anos? Certamente que era melhor deixar que elas
continuassem enterradas. Mas a consciência de Haluin, que se
torturava a si própria, e a sua alma faminta de salvação também
tinham os seus direitos. E, afinal de contas, na altura, ele tinha
apenas dezoito anos! A mulher que lhe tinha proibido aspirar ao
afeto da filha devia ter o dobro da sua idade. Ela devia, pensou
Cadfael quase com indignação, ter tido a sabedoria para ver o que
começava a acontecer entre os dois e tomado medidas para os
separar a tempo.
- Alguma vez pensaste, Hugh, que talvez fosse melhor deixar as
coisas como estão - perguntou Cadfael, num tom triste -, em vez de
permitir que algo pior se desencadeie? Ah, bem! Ele ainda nem
sequer experimentou as muletas. Quem sabe que mudanças as
próximas semanas trarão.
Levantaram o Irmão Haluin da cama em meados de Janeiro,
encontraram um canto para ele perto da lareira da enfermaria, uma
vez que não conseguia mover-se livremente como os outros para
combater o frio, e trataram-lhe o corpo, dolorido por ter estado
deitado durante tanto tempo, com óleos e massagens para pôr os
tendões a funcionar outra vez. Para que pudesse ocupar as mãos e
a mente, levaram-lhe as suas tintas e uma pequena secretária para
trabalhar, e deram-lhe uma página simples para adornar, até os
dedos recuperarem a sua destreza e firmeza. Os pés destroçados
tinham sarado e tinham-se fundido, deformados, e não havia ainda
qualquer possibilidade de tentar pôr-se de pé em cima deles, mas
Cadfael deixou-o experimentar as muletas que o Irmão Luke tinha
feito para ele, com apoio de ambos os lados, para se habituar ao
seu peso e equilíbrio, bem como aos apoios moldados e
almofadados debaixo das axilas. Se nenhum dos pés conseguisse
voltar a apoiá-lo, as muletas também não teriam qualquer utilidade,
mas tanto Cadfael como Edmund eram da opinião de que havia
esperança de que, com o tempo, o pé direito voltasse a ser utilizado
e, com algum engenho no fabrico do calçado do inválido, até mesmo
o esquerdo poderia eventualmente dar alguma ajuda.
Foi com esse objetivo que Cadfael, no final do mês, foi visitar o
jovem Philip Corviser, filho do prefeito, e refletiram os dois sobre o
problema, tendo produzido um par de botas tão diferentes uma da
outra como eram os pés para os quais tinham sido concebidas, mas
adaptadas o mais possível de modo a proporcionarem um bom
apoio. Eram de feltro espesso com sola de couro, subidas bem
acima dos tornozelos e bem apertadas com tiras de couro para
proteger a carne danificada e fazer pleno uso das tíbias, que
estavam intactas. Philip ficou satisfeito com o seu trabalho, mas
mostrou-se cauteloso quanto aos elogios antes de as botas terem
sido experimentadas e provarem que não provocavam qualquer dor
e que eram quentes no tempo invernoso.
O Irmão Haluin aceitou com gratidão e humildade tudo o que foi
feito por si e continuou esforçadamente a revigorar os olhos e a mão
com os seus vermelhos, azuis e o ouro delicadamente aplicado.
Mas, assim que tinha algumas horas de lazer, erguia-se
precariamente do seu banco do canto com os ombros apoiados nas
muletas, de modo a poder estender os braços para se apoiar na
parede ou no banco se perdesse o equilíbrio. Os tendões
demoraram algum tempo a recuperar a sua firmeza nas pernas
debilitadas mas, no início de Fevereiro, conseguia pôr o pé com
firmeza no chão e até mesmo manter-se de pé por alguns instantes
sem qualquer outro apoio e, a partir dessa altura, começou a usar
afincadamente as muletas e a manejá-las perfeitamente. Passou a
ser de novo visto, cumpridor e pontual, na sua poltrona no capítulo e
no coro, em todos os ofícios divinos. No final de Fevereiro, até já
conseguia colocar o dedo paralisado da bota esquerda no chão,
para o ajudar a manter-se com firmeza e segurança nas muletas,
embora nunca mais fosse possível a esse pé suportar o peso do seu
corpo, por mais leve que este fosse.
Ele teve sorte numa coisa, no fato de o Inverno, depois daquela
primeira queda de neve ter derretido e desaparecido, não ter sido
rigoroso. Houve algumas geadas, mas nenhuma delas durou muito
e, depois de Janeiro, os borrifos de neve foram esporádicos e
ligeiros e não permaneceram muito tempo no solo. Quando
conseguiu equilibrar-se e se habituou ao seu novo andar, conseguiu
exercitar a sua técnica não só no interior como no exterior, e tornou-
se perito, apenas temendo as pedras do pátio quando estas
estavam cobertas de gelo.
No início de Março, com os dias a crescer e os primeiros sinais
cautelosos e relutantes de Primavera no ar, o Irmão Haluin pôs-se
de pé no cabido, depois de tratados todos os assuntos urgentes do
dia e, humilde mas resolutamente, fez um pedido que apenas o
Abade Radulfus e o Irmão Cadfael compreenderam totalmente.
- Pai - disse ele, com os olhos escuros firmemente fixos no rosto
do abade -, vós sabeis que, durante a minha doença, manifestei o
desejo de fazer uma determinada peregrinação se, pela graça de
Deus, me restabelecesse. Foi-me manifestada uma enorme
misericórdia e, se me der autorização, desejo agora registrar o meu
voto no céu. Peço a sua autorização e as orações dos meus irmãos
para cumprir o que prometi e regressar em paz.
Radulfus olhou para o suplicante em silêncio durante muito tempo
sem que o seu rosto revelasse aprovação nem censura, embora a
fixidez do seu olhar fizesse com que o sangue subisse às faces
encovadas de Haluin.
- Vem falar comigo depois do cabido - disse então o abade - e eu
escutarei o que pretendes e ajuizarei se já estás em condições de o
levar a cabo.
Na sala do abade, Haluin repetiu o seu pedido com toda a
franqueza, dirigindo-se a homens perante os quais o seu espírito
estava desarmado e que o compreendiam. Cadfael sabia por que
motivo ele tinha sido chamado a estar presente. Duas razões eram,
de fato, claras: ele era a única outra testemunha da confissão de
Haluin e podia, por conseguinte, participar na deliberação; e podia
pronunciar-se sobre a aptidão física de Haluin para empreender
uma viagem daquelas. Ainda não tinha adivinhado uma terceira
razão, mas não se sentia totalmente tranquilo enquanto escutava.
- Eu não devo nem quero impedir-te - disse o abade - de fazeres
aquilo que é necessário para a saúde da tua alma. Mas penso que
este pedido é demasiado prematuro. Não podes ter recuperado já
as tuas forças. E, independentemente de estas últimas semanas
terem sido boas, ainda não estamos na Primavera. Podemos ainda
ter mau tempo. Pensa em como estiveste próximo da morte tão
recentemente e evita enfrentar grandes provações antes de estares
suficientemente forte para as suportares.
- Pai - disse Haluin com veemência -, é precisamente porque
estive próximo da morte que não devo demorar mais. E se a morte
tentar agarrar-me de novo antes de eu conseguir expiar o meu
pecado? Eu vi como ela pode deitar a mão a uma pessoa num
instante, num pestanejar de olhos. Eu tive o meu aviso. Tenho de
lhe prestar atenção. Se eu morrer enquanto estiver a fazer a
penitência que me compete, considerarei a morte adequada. Mas se
morresse sem ter feito qualquer reparação, recairia sobre mim um
opróbrio interminável. Pai - disse ele, ardendo como um fogo
remexido -, eu amava-a verdadeiramente, amava-a como se
fôssemos casados, tê-la-ia amado toda a vida. E destruí-a. Ocultei
os meus pecados durante demasiado tempo, agora que os
confessei desejo completar a expiação.
- E já pensaste nas milhas que tens de percorrer para ir e voltar?
De qualquer modo, vais a cavalo?
Haluin abanou vigorosamente a cabeça.
- Pai, eu já jurei e vou repetir o juramento no altar, ir a pé até ao
local em que ela está enterrada, e voltar a pé... com estes pés que
me fizeram descer à terra e me obrigaram a enfrentar a verdade dos
meus pecados inconfessados. Eu consigo ir, eu sei que os aleijados
inocentes conseguem andar. Por que é que eu, que tenho tantas
culpas, não hei-de passar pelas mesmas provações? Eu consigo
suportá-las. O Irmão Cadfael sabe isso!
O Irmão Cadfael não ficou muito satisfeito por ter sido chamado
para testemunhar e estava pouco interessado em dizer algo que
contribuísse para a realização deste empreendimento obsessivo,
mas também não conseguia ver uma genuína paz de espírito para
este ser atormentado até a expiação ter terminado.
- Eu sei que ele tem a força de vontade e a coragem - disse ele. -
Se ele está suficientemente forte, é outra questão. E se tem o direito
de forçar o seu corpo até à morte para purificar a alma é algo sobre
o qual não vou emitir uma opinião.
Radulfus refletiu durante alguns minutos num silêncio sombrio,
olhando para o peticionário com uma fixidez que o teria feito mexer-
se desconfortavelmente na cadeira e baixar o olhar se tivesse
havido algo de falso ou fingido no seu objetivo. Mas os olhos
grandes, sérios, de Haluin sustentaram vigorosamente o olhar.
- Bem, eu reconheço o teu desejo de expiação, por mais tardio
que ele seja - disse finalmente o abade. - E compreendo também
que a demora não foi para teu bem. Vai, então, faz a tentativa. Mas
não permitirei que vás sozinho. Tem que haver alguém contigo para
o caso de fraquejares e, se isso acontecer, tens que lhe permitir que
tome as medidas que ele considerar necessárias para a tua
segurança. Se suportares bem a viagem, ele não fará nada que
impeça o teu sacrifício mas, se ficares pelo caminho, então, ele é
meu representante, e deves obedecer-lhe como me obedeces.
- Pai - disse Haluin num protesto ansioso -, o meu pecado é meu
e só meu, a minha confissão está selada e é sagrada. Como é que
posso permitir que outro homem se aproxime tanto, sem eu próprio
quebrar o selo? Seria uma violação fazer com que ele interrogasse
e questionasse esta minha expiação.
- Terás um companheiro que não te interrogará nem questionará -
disse o abade - uma vez que ele já sabe, porque tu próprio lhe
contaste. O Irmão Cadfael irá contigo. A sua companhia e as suas
orações só podem trazer-te consolação e benefícios. As tuas
confidências e a memória da dama não estarão em perigo, e ele
está bem habilitado a tomar conta de ti ao longo do caminho. - E,
voltando-se para Cadfael, disse: - Aceitas esta incumbência? Penso
que ele não está suficientemente bem para ir sozinho.
Não havia muita possibilidade de escolha, pensou Cadfael, mas a
ordem também não lhe desagradava muito. Existia ainda, em algum
lugar no fundo dele, um pouco do vagus que tinha vagueado pelo
mundo, do País de Gales a Jerusalém e de volta à Normandia
durante quarenta anos, antes de se entregar à estabilidade no
interior do mosteiro, e uma expedição aprovada, até mesmo
ordenada pela autoridade, seria recebida como sendo abençoada, e
não evitada como uma tentação.
- Se assim o deseja, Pai - disse ele. - Fá-lo-ei.
- Esta viagem vai demorar vários dias. Suponho que o Irmão
Winfrid será suficientemente competente para ministrar o que for
necessário, com Edmund a orientá-lo?
- Durante alguns dias - concordou Cadfael - eles aguentar-se-ão
bastante bem. Enchi o armário da enfermaria ontem, e na oficina há
uma boa quantidade de todos os medicamentos que são geralmente
necessários no Inverno. Se alguma coisa inesperada acontecer, o
Irmão Oswin pode vir de Saint Giles para ajudar durante algum
tempo.
- Ótimo! Por conseguinte, filho Haluin, podes preparar-te para a
viagem e partir quando estiveres pronto, amanhã, se quiseres. Mas
se as forças te falharem, deves submeter-te ao Irmão Cadfael e
cumprir as suas ordens tão fielmente como sempre cumpriste as
minhas dentro destas paredes.
- Pai - disse Haluin fervorosamente -, fá-lo-ei.
No altar da Santa Winifred, o Irmão Haluin registrou o seu voto
solene nessa mesma noite depois das Vésperas, de modo a não ter
outra saída, com o rosto pálido e uma veemência que indicaram a
Cadfael que estava presente a pedido do próprio Haluin, que, no
fundo do seu coração, este implaaquivel penitente conhecia e temia
o esforço e a dor que estava a impor a si próprio e abraçava-os com
uma paixão e resolução que Cadfael preferiria que tivesse sido
dedicada a um empreendimento mais prático e frutuoso. Pois, quem
iria beneficiar com esta viagem, mesmo que ela decorresse com
êxito, senão o próprio penitente, que recuperaria, pelo menos
parcialmente, o respeito por si próprio? Certamente que não seria a
pobre moça que não cometera nenhum pecado maior do que
arriscar-se demasiado por amor e que há muito que estava
certamente em estado de graça. Nem a mãe, que há muito devia ter
esquecido esse sonho mau e que, ao fim de muitos anos, tinha de
se confrontar novamente com ele. E Cadfael não pensava que a
principal função de um homem neste mundo fosse salvar a sua
própria alma.
Há outras almas doentes, tal como corpos doentes, a precisarem
de ser empurradas na direção da saúde.
Mas as necessidades de Haluin não eram as suas necessidades.
Os amargos anos durante os quais Haluin se culpara
silenciosamente a si próprio certamente que exigiam um remédio.
- Sobre estas relíquias sagradas - disse o Irmão Haluin, com a
palma da mão sobre a tapeçaria que cobria o reliaquirio -, eu
registro o meu voto de penitência: que não descansarei até ter ido a
pé ao túmulo onde jaz Bertrade de Clary e aí ter passado uma noite
em oração pela sua alma e ter regressado de novo a pé até aqui, ao
meu local de serviço. E, se falhar, que eu viva rejeitado e morra sem
ser perdoado.
Puseram-se a caminho depois das Matinas, na quarta manhã de
Março. Saíram pelo portão e seguiram na direção de Saint Giles e
ao longo da estrada para leste. O dia estava nublado e calmo, o ar
era fresco mas não muito frio. Cadfael viu mentalmente o caminho à
sua frente e achou que não era demasiado intimidatório. Iriam deixar
as colinas ocidentais atrás de si e, a cada milha em direção a leste,
os campos à sua volta iriam dando tranquilamente lugar a planícies
verdes. A estrada estava seca, pois não chovera recentemente, e a
cobertura de nuvens por cima deles era alta e pálida e não
constituía qualquer ameaça; de ambos os lados do caminho havia
uma orla larga de erva como só se via nas estradas do rei, o que
tornava fácil a caminhada até mesmo para um aleijado. A primeira
ou a segunda milha poderia decorrer sem dor mas, depois disso, o
esforço constante começaria a fazer-se sentir. Ele teria que ser o
juiz de quando mandar parar, pois Haluin provavelmente cerraria os
dentes e prosseguiria até cair. El algum lugar sob Wrekin
encontrariam um refúgio hospitaleiro para a noite, pois entre os
habitantes das cabanas havia rendeiros do mosteiro e qualquer
deles lhes daria, de bom grado, um lugar junto da lareira para
descansarem a meio do dia. Eles levavam comida na sacola que
Cadfael transportava.
Num estado de espírito promissor e enérgico da manhã, com a
energia e a impaciência de Haluin no auge, avançaram rapidamente
e descansaram muito agradavelmente ao meio-dia com o padre da
paróquia de Attingham. Mas de tarde, o passo abrandou um pouco e
o esforço começou a afetar os ombros de Haluin, doloridos devido
ao peso constante e à tensão repetida interminavelmente, e o frio, à
medida que a noite se aproximava, entorpecia-lhe as mãos
agarradas às muletas, apesar de elas estarem embrulhadas num
tecido de lã. Cadfael decidiu parar assim que a luz começou a
desvanecer no crepúsculo sem vento de Março, cinzento e sem
distâncias, e virou para a aldeia de Uppington para pedir uma cama
na casa senhorial onde pudessem passar a noite.
Haluin tinha estado compreensivelmente silencioso ao longo da
estrada, necessitando de todo o fôlego e toda a sua determinação
para o esforço da caminhada. À noite, depois de comer e de se pôr
à vontade, ficou a olhar para Cadfael em silêncio durante algum
tempo.
- Irmão - disse ele finalmente -, fico muito grato por teres vindo
comigo nesta viagem. Só contigo é que eu conseguiria falar
abertamente desta dor antiga, e, antes de voltarmos a ver
Shrewsbury, posso precisar muito de falar nisso. O pior de mim já tu
conheces, e nunca direi uma palavra a desculpar-me. Mas em
dezoito anos, nunca, até agora, disse o nome dela em voz alta, e
pronunciá-lo agora é como ter comida depois de se estar a morrer
de fome.
- Fala ou fica calado, como quiseres - disse Cadfael -, e eu
escutarei ou serei surdo, de acordo com os teus desejos. Mas esta
noite tens de descansar, pois já percorremos um bom terço do
caminho e amanhã, aviso-te desde já, terás dores que nem
imaginas, por teres feito um esforço tão grande durante tanto tempo.
- Estou cansado - admitiu Haluin, com um sorriso repentino e
singularmente comovente, tão breve quanto doce. - Pensas, então,
que não conseguiremos chegar a Hales amanhã?
- Nem penses nisso! Não, iremos até ao cônego Augustiniano de
Wombridge e passaremos lá outra noite. E será muito bom teres ido
tão longe em tão pouco tempo, por isso não te queixes por
demorares mais um dia.
- Como achares melhor - disse Haluin num tom submisso,
deitando-se para dormir com a simplicidade confiante de uma
criança satisfeita e protegida pelas suas orações.
O dia seguinte foi menos generoso, pois houve uma chuva fina
esporádica que por vezes picava, e um vento mais frio vindo de
nordeste, do qual a massa comprida, verde e alcantilada do Wrekin
não lhes forneceu qualquer abrigo à medida que a estrada o
contornava para norte. Mas chegaram à paróquia antes do
crepúsculo, embora, nessa altura, os lábios de Haluin estivessem
bem cerrados numa expressão de determinação, e a pele estivesse
muito esticada e lívida por cima das maçãs do rosto devido à
exaustão, e Cadfael ficou satisfeito quando conseguiu levá-lo para
junto do calor e começou a trabalhar, com mãos oleadas, nos
tendões dos seus braços e ombros, bem como nas coxas que
tinham carregado tão corajosamente com ele durante todo o dia.
E no terceiro dia, no início da tarde, eles chegaram ao feudo de
Hales.
A casa senhorial ficava situada um pouco afastada da aldeia e da
igreja, e era feita de madeira sobre uma galeria subterrânea de
pedra, em campos planos, bem drenados, com suaves colinas de
bosques ao fundo. No interior da sua cerca de madeira, o estábulo,
o celeiro e a casa do forno estendiam-se, bem cuidados e limpos, ao
longo da paliçada. O Irmão Haluin deixou-se ficar junto do portão
aberto e olhou para o local onde servira com um rosto fixo e imóvel;
só os seus olhos estavam vivos e cheios de dor.
- Durante quatro anos - disse ele - mantive os anais do feudo
aqui. Bertrand de Clary era o suserano do meu pai, fui enviado para
aqui ainda não tinha catorze anos, para ser pajem da sua dama.
Acreditas que eu nunca vi o homem, ele já estava na Terra Santa
antes de eu vir para aqui. Esta é apenas uma das suas casas
senhoriais, a única nesta zona, mas o filho dele já estava instalado
na sua própria casa e governava a senhoria a partir de Staffordshire.
Ele sempre gostou mais de Hales, e deixou o filho com a sua
senhoria e instalou-se aqui, e foi para aqui que eu vim. Teria sido
melhor para ela se eu nunca tivesse entrado nesta casa. Muito
melhor para Bertrade!
- É demasiado tarde - disse Cadfael, suavemente - para reparar o
que foi mal feito nessa altura. O dia de hoje é para fazer o que
juraste fazer agora e não é demasiado tarde para isso. Talvez te
sintas mais à vontade com ela se eu esperar aqui fora.
- Não - disse Haluin. - Vem comigo! Preciso do teu testemunho,
eu sei que este será justo.
Um jovem com cabelo de estopa saiu do estábulo com uma
forquilha na mão a fumegar suavemente no ar frio. Ao ver dois
hábitos beneditinos pretos ao portão, virou-se e dirigiu-se tranquila e
amavelmente a eles.
- Se querem uma cama e uma refeição, Irmãos, entrem, o vosso
hábito é sempre bem-vindo aqui. Podem dormir no sótão, e dar-vos-
ão de comer na cozinha, se não se importam de ir até lá.
- Recordo-me - disse Haluin, com os olhos ainda fixos num
passado distante - que a tua senhora sempre foi hospitaleira para
com os viajantes. Mas esta noite não vou precisar de uma cama.
Tenho uma mensagem para a dama Adelais de Clary, se ela me
conceder audiência. Tudo o que peço são alguns minutos do seu
tempo.
O rapaz encolheu os ombros, olhando para eles com olhos
cinzentos saxônicos indecifráveis e fez-lhes sinal para que se
dirigissem aos degraus de pedra que conduziam à porta da casa.
- Entre e pergunte pela sua aia, Gerta, ela irá ver se a senhora
vos recebe. - E ele ficou a observá-los enquanto atravessavam o
pátio, antes de voltar para o seu trabalho com os cavalos.
Quando passaram a enorme porta, um criado estava a subir as
escadas da cozinha para o salão. Ele perguntou-lhes o que queriam
e, quando lhe disseram, mandou um criado da cozinha dizer à aia
da dama, a qual apareceu eventualmente à porta da casa para ver
quem eram os hóspedes monásticos. Era uma mulher com cerca de
quarenta anos, muito ativa e bem arranjada, vestida com
simplicidade e com um rosto pouco atraente, pois estava marcado
pela varíola. Mas não havia qualquer dúvida de que exercia as suas
funções com grande segurança. Ela olhou-os com um ar arrogante e
escutou o pedido de Haluin, feito com humildade, sem um sorriso de
compreensão, sem pressa de abrir a porta de que claramente se
sentia guardiã privilegiada.
- Vêm da abadia de Shrewsbury? E numa incumbência do abade,
suponho?
- Numa incumbência que o abade aprovou - disse Haluin.
- Não é a mesma coisa - disse Gerta, secamente. - Por que outros
motivos a não ser assuntos da abadia seria um monge de
Shrewsbury enviado até aqui? Se esta é uma questão pessoal, a
minha senhora deve ser informada de quem deseja falar com ela.
- Diga-lhe - disse Haluin pacientemente, encostando-se às
muletas e baixando os olhos do rosto pouco hospitaleiro da mulher -
que o Irmão Haluin, um monge beneditino da abadia de Shrewsbury,
suplica humildemente a sua excelência que o receba.
O nome não significou nada para ela. Era óbvio que não estivera
ao serviço de Adelais de Clary ou, certamente, que não fora sua
confidente, nem sequer suficientemente íntima para adivinhar as
suas preocupações, dezoito anos antes. Alguma outra mulher,
talvez de idade mais próxima da sua dama, tinha cumprido essa
função íntima na altura. Criadas íntimas em quem as suas senhoras
confiavam e que, por sua vez, lhes eram fielmente leais, eram
portadoras de uma grande quantidade de segredos, muitas vezes
até à morte. Deverá haver algures, pensou Cadfael, observando-a
em silêncio, uma mulher que teria ficado tensa e aberto muito os
olhos ao ouvir aquele nome, mesmo que não tivesse reconhecido de
imediato o rosto mudado e desgastado pelo tempo.
- Vou perguntar - disse a mulher, ainda com um toque de
condescendência, após o que se afastou atravessando o salão até
chegar a uma porta com uma cortina de couro no outro extremo.
Decorreram alguns minutos até ela reaparecer, correndo as cortinas,
e, sem se dar ao trabalho de se aproximar deles, chamou da
ombreira da porta: - A minha senhora diz que podem vir.
A sala em que entraram era pequena e escura, pois as portadas
das janelas estavam fechadas como protecção contra o tempo, e as
tapeçarias que cobriam as paredes eram antigas e de cores
escuras. Não havia lareira, mas numa soleira de pedra colocada
perto do canto mais abrigado havia uma braseira de carvão, e entre
esta e a única janela que deixava entrar a luz estava uma mulher
sentada num banco almofadado, junto de um pequeno bastidor. À
luz proveniente da janela, ela era uma figura alta, ereta, de roupas
escuras, e, na penumbra, o brilho do fogareiro colocava laivos de
cobre no seu rosto. Ela deixara a agulha enfiada no tecido esticado.
As suas mãos agarravam com força os braços elevados da
cadeirinha, e os seus olhos estavam fixos na porta que o Irmão
Haluin atravessou dolorosamente com as muletas, com o pé útil,
dolorido da utilização, a fazê-lo franzir a testa a cada passo, e o
dedo grande bloqueado do seu pé esquerdo mal tocando o chão, a
dar uma pequena ajuda ao seu equilíbrio. O fato de se inclinar
constantemente sobre as muletas tinha-lhe curvado os ombros e
dobrado as suas costas direitas. Tendo ouvido o seu nome,
seguramente que ela tinha esperado ver alguém mais próximo do
jovem atraente e cheio de vida que expulsara de sua casa há todos
aqueles anos. O que iria ela pensar deste homem destroçado?
Ele mal tinha entrado na sala quando ela se pôs abruptamente de
pé, rígida como uma lança. Por cima das suas cabeças ela dirigiu-se
primeiro à aia, que tinha entrado atrás deles.
- Deixa-nos! - disse Adelais de Clary. E para Haluin, enquanto a
cortina de couro que separava a sala do salão balançava: - O que é
isto? O que é que te fizeram?

CAPÍTULO 4

Ela devia, calculou Cadfael, habituando-se ao jogo de luz e


sombra no interior da sala, ter cerca de dez anos mais do que ele,
mas parecia mais nova. O cabelo escuro que estava enroscado em
pesadas tranças de ambos os lados da cabeça não tinha
praticamente cabelos brancos, e os ossos finos e altivos do seu
rosto tinham mantido a sua imorredoura elegância, embora a pele
que os cobria estivesse agora um pouco enrugada e sem vida, e o
seu corpo tinha-se tornado anguloso e magro à medida que a seiva
da juventude tinha secado. As suas mãos, embora ainda fossem
elegantes, denunciavam-na com nós dos dedos inchados e veias
marcadas com rugas, e havia uma flacidez na pele pálida da
garganta e do pulso onde outrora houvera o brilho arredondado da
juventude. Mas, apesar de tudo isso, no rosto oval, nos lábios
longos e resolutos e nos olhos grandes, nas suas órbitas fundas,
Cadfael viu as cinzas de uma grande beleza. Não, cinzas não,
brasas, ainda a arder e pelo menos tão quentes como o carvão que
ardia no centro do fogareiro.
- Aproxima-te! - disse ela. E quando Haluin se colocou de pé à
sua frente com a luz a incidir no rosto, uma luz pálida e fria da
janela, corada pelo lume: - És mesmo tu! - disse ela. - Estava na
dúvida. O que é que te aconteceu?
A voz dela era baixa, cheia e autoritária, mas a sugestão inicial de
desânimo e preocupação tinha desaparecido. Olhou para ele sem
compaixão nem frieza, mas sim com uma espécie de indiferença
desinteressada, uma curiosidade pouco profunda.
- A culpa é toda minha - disse Haluin. - Não vos preocupeis!
Tenho aquilo que mereço. Dei uma grande queda mas, pela graça
de Deus, estou vivo, quando nesta altura julgava que estaria morto.
E tal como aliviei a minha alma perante Deus e ao meu confessor
pelos pecados antigos, venho pedir-vos o vosso perdão.
- Isso era necessário? - disse ela, espantada. - Ao fim de tantos
anos, e vindo de tão longe?
- Sim, era necessário. Preciso muito de vos ouvir dizer que me
perdoais o mal que fiz e o sofrimento que vos causei. Não poderei
ter descanso até a página estar limpa de todas as manchas.
- E tu contaste tudo o que aconteceu antigamente - disse Adelais
com algum azedume -, tudo o que era secreto e vergonhoso? Ao teu
confessor! E a quantos mais? A este bom irmão que te acompanha?
A todos os membros do cabido? Será que não podias suportar
continuar a ser um pecador inconfesso em vez de denunciar o nome
da minha filha ao mundo, e com ela há tanto tempo na sepultura?
Eu teria preferido ir em pecado para o purgatório!
- Eu também! - exclamou Haluin, confrangido. - Mas não, isso não
aconteceu. O Irmão Cadfael faz-me companhia porque é o único
que sabe, com exceção do Abade Radulfus, que ouviu a minha
confissão. Pela nossa boca, ninguém irá saber. O Irmão Cadfael
também foi grandemente lesado pelo que fiz, ele tinha o direito de
conceder ou recusar o seu perdão. Foi do seu estoque e depois de
ter colhido os seus ensinamentos que eu roubei os medicamentos
que vos dei.
Ela lançou um olhar longo e firme a Cadfael e o seu rosto, que
agora se via claramente, estava concentrado e imóvel.
- Bem - disse ela, recorrendo novamente à indiferença -, já se
passou há muito tempo. Quem se iria recordar agora? E eu ainda
não estou à beira da morte. O que sei eu! Eu própria irei precisar de
um padre um dia, nessa altura poderia responder-te melhor. Bem,
para pôr termo ao assunto... Tens o que pedes! Eu perdoo-te. Não
vou fazer-te sofrer mais do que já sofres. Regressa em paz ao teu
mosteiro. Eu perdoo-te, tal como espero ser perdoada.
As palavras foram ditas sem paixão; a breve explosão de ira já
desaparecera. Absolvê-lo não representou qualquer esforço, ela
pareceu fazê-lo sem qualquer emoção, e com tão pouco sentimento
como daria comida a um pedinte. Era possível pedir
adequadamente esmola a damas da nobreza, e dar era uma forma
de generosidade, o cumprimento de um rito de senhoria. Mas o que
ela deu com ligeireza foi para Haluin uma bênção de alívio. A tensão
desapareceu dos seus ombros inclinados e das mãos rigidamente
fechadas. Ele inclinou a cabeça com humildade perante ela e
murmurou os seus agradecimentos numa voz baixa e vacilante,
como um homem momentaneamente ofuscado.
- Minha senhora, a vossa misericórdia tira um peso de cima de
mim, e estou-vos grato de todo o coração.
- Volta para a vida que escolheste e para as tarefas que
assumiste - disse ela, voltando a sentar-se, embora não tivesse
ainda pegado na agulha. - Não penses mais no que aconteceu há
muito tempo. Dizes que a vida te foi poupada. Utiliza-a o melhor que
puderes, e eu farei o mesmo com respeito à minha.
Era uma forma de o mandar retirar-se, e Haluin aceitou-a como
tal. Fez uma grande vênia, deu cuidadosamente meia volta sobre as
muletas, e Cadfael estendeu a mão para o manter firme nesse
movimento. Ela nem sequer os mandara sentar, possivelmente
demasiado abalada com uma visita tão repentina e surpreendente,
mas, quando eles estavam a chegar à porta, disse subitamente: -
Fiquem, se quiserem, para descansar e comer na minha casa. Os
meus criados dar-vos-ão tudo o que necessitarem.
- Agradeço-vos - disse Haluin -, mas a autorização para nos
ausentarmos exige que regressemos assim que a minha
peregrinação aqui estiver terminada.
- Que Deus apresse o vosso regresso a casa, então - disse
Adelais de Clary, e, com uma mão firme, pegou novamente na
agulha.
A igreja ficava a uma curta distância da casa senhorial, no local
em que os dois trilhos se cruzavam, e o amontoado dos lotes das
casas estava próximo do muro do cemitério.
- O túmulo está no interior - disse Haluin, quando passaram o
portão. - Nunca foi aberto enquanto eu aqui estive, mas o pai de
Bertrand está enterrado aqui, e certamente que deve ter sido aberto
para Bertrade. Ela morreu aqui. Desculpa, Cadfael, ter recusado a
hospitalidade também para ti, não pensei a tempo. Não precisarei
de uma cama esta noite.
- Não disseste nada disso à dama - observou Cadfael.
- Não. Nem sei bem porquê. Quando voltei a vê-la, o meu coração
sentiu-se apreensivo ao pensar que talvez tenha feito mal em
recordar-lhe essa dor antiga, que o mero fato de me ver
representava para ela um insulto. No entanto, perdoou-me. Isso faz-
me sentir melhor, e certamente que não parece ter-lhe feito mal.
Mas podias ter dormido bem esta noite. Não há necessidade de
ficarmos os dois de vigília.
- Eu estou melhor equipado para passar uma noite de joelhos do
que tu - disse Cadfael. - E não tenho a certeza de que a recepção ali
teria sido muito calorosa. Ela queria que nos fôssemos embora.
Não, está tudo muito bem assim. O mais provável é que ela pense
que já estamos a caminho de casa, fora da sua terra e da sua vida.
Haluin fez uma pausa por um segundo com a mão no pesado anel
de ferro da porta da igreja, com o rosto na sombra. A porta abriu-se,
com um rangido, e ele agarrou nas muletas para descer os dois
degraus largos, pouco altos, que iam dar à nave. No interior da
igreja estava escuro e frio. Cadfael esperou um momento nos
degraus até os seus olhos se terem habituado à alteração da luz,
mas Haluin percorreu imediatamente a nave em direção ao altar.
Nada tinha mudado muito em dezoito anos e nada tinha sido
esquecido. Até mesmo as orlas das lajes do chão lhe eram
familiares. Ele virou na direção da parede da direita, com as muletas
a ecoarem pela igreja, e Cadfael, quando o seguiu, encontrou-o de
pé ao lado da tampa de um túmulo encaixado entre dois pilares. A
imagem esculpida ali deitada tinha uma cota de malha grosseira,
uma perna cruzada sobre a outra e uma mão sobre o cabo de uma
espada. Outro cruzado, certamente o pai de Bertrand, que, por sua
vez, o seguira até à Terra Santa. Este, calculou Cadfael, podia bem
ter estado com o exército de Roberto da Normandia no meu tempo,
na tomada de Jerusalém. Era óbvio que os homens De Clary se
orgulhavam da sua guerra no Oriente.
Um homem apareceu vindo da sacristia e, ao ver os dois
inconfundíveis hábitos beneditinos, virou-se para se dirigir
amavelmente a eles. Um homem de meia idade, com uma batina
preta desbotada, avançou para eles com uma expressão
ligeiramente inquiridora e um sorriso de boas-vindas. Haluin ouviu
os seus passos suaves e deu meia volta, satisfeito por
cumprimentar um vizinho de que se recordava, mas recuou
imediatamente ao ver um desconhecido.
- Bom dia, Irmãos! Deus esteja convosco! - disse o padre de
Hales. - Para viajantes com o vosso hábito, a minha casa está
sempre aberta, o mesmo acontecendo com esta casa de Deus.
Vieram de longe?
- De Shrewsbury - disse Haluin, recuperando da surpresa.
- Perdoe-me, padre, se fiquei surpreendido. Estava à espera de
ver o padre Wulfnoth. Foi, de fato, uma tolice da minha parte, pois
há muitos anos que não vinha aqui, e ele estava a ficar com a
cabeça branca quando o conheci, mas, para mim, na minha
juventude, parecia que ele estaria aqui para sempre. Agora, mal me
atrevo a perguntar!
- O padre Wulfnoth partiu para o seu eterno descanso - disse o
padre. - Deve fazer agora sete anos. Eu vim para aqui há dez anos,
depois de ele ter ficado de cama com uma apoplexia e tomei conta
dele durante três anos até ele morrer. Na altura, eu era padre há
pouco tempo, aprendi muito com Wulfnoth, a sua mente era clara e
viva, ainda que o corpo lhe falhasse. - O seu amável rosto redondo
manifestava curiosidade e compreensão.
- Então conhece esta igreja e esta casa senhorial? Nasceu em
Hales?
- Não, não. Mas durante alguns anos servi a dama Adelais na
casa senhorial. Antes de tomar o hábito em Shrewsbury conheci
bem a igreja e a aldeia. Agora - disse Haluin, ansiosamente, vendo
como estava a ser observado atentamente e sentindo necessidade
de justificar o seu regresso - preciso muito de dar graças por ter
escapado vivo de um acidente que poderia ter provocado a minha
morte e tive a ideia de me libertar, enquanto tenho essa
possibilidade, do peso de todas as dívidas que tenho na
consciência. Das quais há uma que me traz a este túmulo. Havia
uma dama da família De Clary que eu venerava e que morreu
prematuramente. Gostaria de passar a noite aqui, no local onde ela
foi enterrada, a rezar por ela. Foi muito antes do seu tempo, faz
agora dezoito anos. Não se importa que eu passe a noite aqui
dentro?
- Quanto a isso, pode estar à-vontade - disse o padre,
cordialmente. - Eu posso acender-lhe um fogaréu, isso ajudá-lo-á
um pouco a proteger-se do frio. Mas certamente, Irmão, que está
enganado. É verdade que o que diz coloca tudo isso antes do meu
tempo, mas o padre Wulfnoth contou-me muita coisa a respeito da
igreja e da casa senhorial; ele passou toda a vida ao serviço dos
senhores de Hales. Foram eles que o ajudaram nos seus estudos e
o colocaram aqui como padre. Não foi ninguém sepultado neste
túmulo desde que o velho senhor morreu, este que está esculpido
aqui na pedra. E isso foi há mais de trinta anos, é o seu neto que
agora governa. Uma dama da família, diz-me? E morreu jovem?
- Uma parente - disse Haluin em voz baixa, abalado, baixando os
olhos para a pedra que há trinta anos não era levantada. - Ela
morreu aqui em Hales, eu pensava que devia ter sido enterrada
aqui. - Ele não ia dizer o nome dela, nem contar mais do que o
necessário sobre si próprio e sobre o que o movia, nem mesmo a
este homem generoso. Cadfael manteve-se afastado deles, a
observar, e ficou calado.
- E foi há dezoito anos apenas? Então, pode ter a certeza, Irmão,
de que ela não está aqui. Se conheceu o padre Wulfnoth, sabe que
pode confiar no que ele me disse. E eu sei que ele esteve lúcido até
ao dia em que morreu.
- Eu acredito - disse Haluin, tremendo com o frio da decepção. -
Ele não estaria enganado. Então... então, ela não está aqui!
- Mas esta não é a casa principal da senhora De Clary - fez notar
o padre num tom suave. - Pois essa é Elford, em Staffordshire. O
senhor atual, Audemar, levou o pai para lá para ser sepultado, a
família tem um jazigo grande lá. Se houve alguns parentes próximos
que morreram nestes últimos anos, é lá que eles estão. Sem dúvida
que a dama de que fala também foi levada para lá para ser
sepultada junto dos seus familiares.
Haluin agarrou-se ansiosamente à esperança.
- Sim... sim, pode muito bem ser, deve ter sido. Então, eu hei-de
encontrá-la.
- Não duvido - disse o padre. - Mas é muito longe para ir a pé. -
Ele tinha pressentido uma urgência que muito provavelmente não
daria ouvidos à razão, mas fez o possível por moderá-la. - Se
pretende ir agora, aconselho-o a ir a cavalo, ou a esperar pelos dias
maiores e por melhor tempo. Pelo menos, venha a minha casa
comer e passar a noite.
Mas Haluin não o faria, o Irmão Cadfael viu isso claramente. Não
enquanto houvesse ainda uma hora ou mais de luz do dia nas
janelas, e ele ainda tivesse forças para caminhar mais uma milha.
Declinou o convite com um agradecimento ligeiramente culpado e
despediu-se do bom homem que ficou a observá-los, intrigado, até
terem subido os degraus até ao pórtico e fecharem a porta atrás
deles.
- Não! - disse Cadfael com firmeza assim que saíram do cemitério
e enquanto percorriam o trilho no meio das casas da aldeia para
chegarem à estrada. - Tu não podes fazer isso!
- Não só posso, como tenho de o fazer! - respondeu o Irmão
Haluin com igual determinação. - Por que é que não o hei-de fazer?
- Porque, em primeiro lugar, não sabes qual é a distância até
Elford. A mesma que percorremos para vir até aqui, mais metade. E
tu sabes perfeitamente o esforço que já fizeste. E, em segundo
lugar, porque tiveste autorização para fazer esta viagem na
suposição de que a mesma terminaria aqui, e que nós dois
regressaríamos a partir daqui. E é isso que devemos fazer. Não, não
abanes a cabeça, tu sabes muito bem que o Pai Abade nunca
previu mais do que isso, e nunca te teria dado autorização para
mais. Devemos voltar para trás agora.
- Como é que posso fazer isso? - A voz de Haluin era
implacavelmente razoável, até mesmo tranquila. Para ele, o seu
caminho era perfeitamente claro, e ele foi paciente na sua
discordância. - Se voltar para trás, serei condenado. Ainda não fiz o
que jurei fazer, eu regressaria condenado por mim próprio e um ser
desprezível. O Pai Abade não gostaria que isso acontecesse,
embora nem ele nem eu estivéssemos a contar com uma penitência
tão longa. Ele deu-me autorização para levar a cabo o que jurei
fazer. Se ele estivesse aqui para eu lhe perguntar, dir-me-ia que
continuasse. Eu disse que não descansaria até ir a pé ao túmulo
onde Bertrade está sepultada e ter passado ali uma noite em oração
e vigília, e eu não fiz isso.
- A culpa não foi tua - disse Cadfael, energicamente.
- Isso desculpa-me? É justo que eu duplique o caminho. Se não o
fizer, digo-te, viverei condenado e morrerei sem ser perdoado. Jurei
sobre as relíquias de Santa Winifred, que tem sido tão boa para
todos nós. Como é que posso voltar para trás? Prefiro morrer na
estrada, a tentar ao menos cumprir fielmente a minha promessa, a
abandonar a minha fé e honra e voltar para trás coberto de
vergonha.
E quem estava a falar, interrogou-se Cadfael, o monge cumpridor
ou o filho de uma boa casa normanda, oriundo de uma linha pelo
menos tão antiga como a do rei Guilherme quando este tomou a
coroa de Inglaterra, e sem a irregularidade da ilegitimidade. Sem
dúvida que o orgulho é um pecado indigno de um irmão beneditino,
um pecado que não é tão facilmente abandonado como os
privilégios e o título de nobreza.
Haluin também tinha compreendido a fugaz implicação da
arrogância e corou ao reconhecê-la, mas não recuou. Parou
subitamente, oscilando sobre as muletas e levantou
apressadamente uma mão para pegar no pulso de Cadfael.
- Não ralhes comigo! Bem, eu sei que podes fazê-lo, e o teu rosto
mostra-me que o mereço, mas não me condenes. Não posso fazer
outra coisa. Oh, Cadfael, eu conheço bem todos os argumentos que
podes usar, com toda a justeza, contra mim, eu próprio já pensei
neles, continuo a pensar neles, mas continuo a sentir-me obrigado.
Obrigado pelos votos que não quero nem ousarei quebrar. Se o meu
abade me considerar rebelde e desobediente, se o meu abade me
expulsar, eu teria de suportar isso. Mas voltar atrás no que jurei a
Bertrade, isso não suportarei.
O sangue que lhe subiu às faces pálidas ficava-lhe bem, tirando-
lhe o ar emaciado provocado pela doença, retirando-lhe mesmo
alguns anos. Ele estava imóvel, direito, esticando as costas
inclinadas para cima no meio das muletas. Nenhuma persuasão iria
demovê-lo. Era melhor aceitar a situação.
- Mas tu, Cadfael - disse ele apertando o pulso que segurava -,
não fizeste qualquer juramento, não és obrigado a cumpri-lo. Não há
necessidade de ires mais longe, fizeste tudo o que se esperava de
ti. Volta para trás agora e fala por mim ao abade.
- Meu filho - disse Cadfael entre a compaixão e a exasperação -,
eu estou tão preso como tu, e tu devias saber isso. As minhas
ordens são para te acompanhar, para o caso de fraquejares, e tomar
conta de ti, se o fizeres. Tu tens um assunto teu a tratar, eu cumpro
as ordens do abade. Se não puder levar-te comigo, não posso voltar
para trás.
- Mas o teu trabalho - protestou Haluin, desanimado mas resoluto.
- O meu pode esperar, mas eles vão sentir a tua falta. Como é que
eles podem passar tanto tempo sem ti?
- O melhor que conseguirem. Ninguém é imprescindível - disse
Cadfael com firmeza. - E ainda bem, uma vez que a vida de todos
nós tem um fim. Não, não digas mais nada. Tu já tomaste uma
decisão, eu também. Para onde fores, eu vou. E uma vez que temos
apenas uma hora de luz, e imagino que não queiras dormir aqui em
Hales, é melhor avançarmos tranquilamente e procurarmos abrigo
no caminho.
Adelais de Clary levantou-se de manhã e foi à missa, como era
seu hábito regular. Era meticulosa nas suas práticas religiosas e na
dádiva de esmolas, mantendo um hábito antigo da casa do seu
marido. E se a sua caridade parecia por vezes um pouco fria e
distante, pelo menos era constante e fiável. O padre da paróquia ia
ter com ela sempre que tinha um caso especial que precisava de
ajuda.
Depois do serviço religioso, ele acompanhou-a até ao portão,
zeloso no cumprimento dos seus deveres.
- Ontem tive a visita de dois monges beneditinos - disse ele,
enquanto ela se cobria bem com a capa, para se proteger do vento
fresco de Março. - Dois irmãos de Shrewsbury.
- Teve? - disse Adelais. - Que queriam eles de si?
- Um deles era aleijado e andava de muletas. Disse que estivera
outrora ao seu serviço, antes de tomar o hábito. Lembrava-se do
padre Wulfnoth. Eu pensava que eles tinham vindo fazer-vos uma
visita de cortesia. Não o fizeram?
Ela não respondeu a essa pergunta, limitando-se a comentar
distraidamente, olhando para a distância como se não estivesse
totalmente concentrada no que estava a dizer.
- Recordo-me de haver tido uma vez um escrivão que entrou para
o mosteiro de Shrewsbury. Que veio ele fazer aqui à igreja?
- Ele disse que a morte o tinha poupado e que queria pagar todas
as suas dívidas, para estar melhor preparado. Encontrei-os ao lado
do túmulo do pai do vosso senhor. Eles estavam convencidos de
que uma mulher da vossa casa tinha sido sepultada ali há dezoito
anos. O aleijado tinha a intenção de passar a noite de vigília a rezar
por ela.
- Um erro estranho - disse Adelais com o mesmo desinteresse
tolerante. - Sem dúvida que o desenganou?
- Disse-lhe que esse não era o caso. Eu não estava aqui, claro,
mas sabia pelo padre Wulfnoth que há muitos anos que o túmulo
não era aberto e que o que o jovem irmão supunha não podia ser
verdade. Disse-lhe que todos os membros da vossa casa estão
agora sepultados em Elford, que é a casa senhorial principal.
- Essa seria uma viagem longa e difícil, para um homem coxo, a
pé - disse Adelais com compaixão fácil. - Espero que ele não
tencione prosseguir a viagem até tão longe.
- Eu penso, minha senhora, que ele o fará. Porque eles
recusaram-se a descansar, a comer comigo e a passar a noite aqui,
e voltaram a partir imediatamente. Sim, tenho a certeza de que eles
viraram para leste quando chegaram à estrada. Uma viagem longa e
difícil, de fato, mas ele queria fazê-la.
A relação dele com a sua benfeitora era confortável e fácil, e não
hesitou em perguntar diretamente: - Eles vão encontrar a dama que
procuram em Elford?
- É possível - disse Adelais, caminhando calma e serenamente ao
lado dele. - Dezoito anos é muito tempo, e eu posso ler a mente
dele. Na altura, eu era mais nova, tinha mais pessoas em casa.
Eram primos, alguns deixados sem fortuna. O meu senhor tratava
todos os seus familiares como um pai. Na sua ausência e como sua
regente, eu fazia a mesma coisa.
Tinham chegado ao portão do cemitério e ficaram ali parados. A
manhã era suave e verde, mas muito calma, e a cobertura de
nuvens pairava, pesada e baixa, acima deles.
- Se não chover - disse o padre - ainda vai haver mais neve. - E
ele prosseguiu inconsequentemente: - Dezoito anos! É possível que
esse monge, durante o tempo em que esteve convosco, se tivesse
sentido atraído por uma dessas jovens primas, como acontece com
os jovens, e que a morte prematura dela lhe tivesse causado uma
dor maior do que ele ousou dizer-vos.
- É possível que sim - disse Adelais num tom distante,
aconchegando mais a capa para se proteger de lanças infinitamente
finas de chuva com saraiva que pairavam no ar calmo e lhe picavam
o rosto. - Bom dia, padre!
- Eu vou rezar - disse o padre - para que a peregrinação ao
túmulo dela traga consolação e benefício para ele vivo, bem como
para a dama morta.
- Faça isso, padre - disse Adelais, sem voltar a cabeça. - E não
deixe de acrescentar uma oração por mim e por todas as mulheres
da minha casa, para que o tempo seja generoso para conosco
quando o nosso dia chegar.
Cadfael estava acordado no palheiro de um guarda-florestal na
floresta real de Chenet, a escutar a respiração pausada do seu
companheiro, demasiado constante e demasiado tensa para
significar que ele dormia. Era a segunda noite desde que tinham
partido de Hales. Tinham passado a primeira na casa de um
pequeno rendeiro solitário e da sua mulher, a cerca de uma milha do
povoado de Hamlet, e o dia entre as duas noites tinha sido longo;
este segundo abrigo na orla da floresta chegou com muita
amabilidade e gratidão. Tinham-se deitado no palheiro porque
Haluin, cuja insistência os fizera continuar a andar até tão tarde na
noite, estava próximo da exaustão. O sono, reparou Cadfael,
sobreveio-lhe rápida e tranquilamente, uma bênção reparadora para
uma alma tão perturbada e torturada quando desperta. Há muitas
formas de Deus aliviar o fardo. Haluin acordava todas as manhãs
revigorado e decidido.
Ainda não era dia, faltava talvez uma hora para o amanhecer. Não
se ouvia qualquer movimento, qualquer sussurro do feno oriundo do
canto de Haluin, mas Cadfael sabia que ele já estava acordado, e a
imobilidade era boa, pois significava que, independentemente do
lugar para onde a mente desperta pudesse ter vagueado, ele
continuava a sentir a languidez do bem-estar do corpo.
- Cadfael? - disse uma voz baixa, longínqua, saída da escuridão. -
Estás acordado?
- Estou - respondeu ele também em voz baixa.
- Tu nunca me perguntaste nada. Sobre o que eu fiz. Sobre ela...
- Não há necessidade - disse Cadfael. - O que quiseres contar-me
será ouvido sem quaisquer perguntas.
- Até agora - disse Haluin - nunca tive liberdade para falar dela. E
agora só a ti, sabes. - Fez-se silêncio. Ele pronunciava as palavras
lenta e esforçadamente, como fazem os tímidos e solitários. Após
algum tempo, prosseguiu em voz baixa: - Ela não era bela como a
mãe. Não tinha aquela radiosidade sombria, mas sim algo mais
bondoso. Não havia nada de sombrio ou secreto nela, tudo era
franco e iluminado pelo sol, como uma flor. Ela não tinha medo de
nada... não nessa altura. Confiava em toda a gente. Nunca tinha
sido traída... não até essa altura. Só o foi uma vez e morreu por
causa disso.
Outro silêncio mais longo e desta vez o feno moveu-se um pouco,
como um suspiro. Depois ele perguntou, quase com timidez: -
Cadfael, tu passaste metade da tua vida no mundo... alguma vez
amaste uma mulher?
- Sim - respondeu Cadfael -, amei.
- Então, sabes o que se passou conosco. Porque nós amámo-
nos, eu e ela. Dói, sobretudo - disse o Irmão Haluin, olhando para
trás com uma dor resignada e pensativa - quando se é jovem. Não
existe um lugar onde nos possamos esconder da dor, não há
escudo que nos possa proteger. Vê-la todos os dias... e, sabes, ela
sentia o mesmo que eu...
Mesmo que, durante todos aqueles anos, ele tivesse tentado
esquecer e tivesse concentrado as mãos, a mente e o espírito no
serviço a que voluntariamente se propusera, com extrema
dedicação, não esquecera nada, estava tudo dentro dele, prestes a
despertar a cada instante, como um fogo dormente quando se abre
uma porta. Agora, pelo menos, ele podia escapar para o ar livre,
para o mundo dos outros homens, onde poderia tocar o sofrimento
de outros homens e receber e dar compaixão. Não era necessário
que Cadfael falasse, bastava o simples reconhecimento da
camaradagem e a garantia de um ouvido atento.
Haluin adormeceu com uma última palavra nos lábios, murmurada
de uma forma quase inaudível depois de silêncios cada vez mais
longos. Podia ter sido o nome dela, Bertrade, ou podia ter sido
“sepultada”. Não importava! O que importava era que ele a tinha
pronunciado ao adormecer, e agora, após todo o enorme esforço
despendido ao longo do caminho, dormiria novamente, talvez até
muito depois de o nascer do dia. Ainda bem! Mais um dia passado
nesta peregrinação poderia atormentar o seu espírito impaciente,
mas sem dúvida que seria benéfico para o seu corpo duramente
castigado.
Cadfael levantou-se muito silenciosamente e deixou o seu
companheiro a dormir profundamente, praticamente prisioneiro no
palheiro, uma vez que iria precisar de ajuda para se pôr de pé e
descer a escada. Com o alçapão aberto, seria possível ouvi-lo
quando se mexesse, mas, pelo aspecto do seu corpo descontraído
e do rosto magro liberto de tensões, ele iria seguramente dormir
durante algum tempo.
Cadfael saiu para a manhã límpida e clara, cheirou o ar calmo da
floresta ainda meio adormecida, redolente com os odores
remanescentes do Inverno. Da pequena cabana do guarda-florestal
no meio das árvores, era possível ver o trilho cinzento desimpedido
em relances irregulares entre os troncos velhos, pois a vegetação
era suficientemente cerrada para manter o terreno livre de
vegetação rasteira. Um carrinho de mão rodava ao longo da
estrada, carregado de aparas dos galhos caídos no Outono, e o voo
chilreante dos pássaros incomodados acompanhavam-no num
bruxuleio de ramos adejantes e folhas a pairar. O guarda-florestal já
estava ocupado com as suas tarefas matinais, a vaca seguia-o, com
o seu passo pesado, para ser mungida, e o cão andava às voltas
em redor dos seus calcanhares. Um dia seco, um céu nublado mas
com nuvens altas, uma boa luz. Um belo dia para a estrada. Ao cair
da noite, eles poderiam estar em Chenet, e a casa senhorial, situada
nas terras do rei, recebê-los-ia. No dia seguinte seguiriam para
Lichfield, e aí, por mais veementemente que Haluin insistisse para
que percorressem as poucas milhas que faltavam para Elford,
Cadfael estava decidido que fariam uma paragem para terem uma
longa noite de descanso. Depois de uma boa noite de sono em
Lichfield, Haluin estaria em melhores condições de suportar a vigília
da noite seguinte em memória de Bertrade, que jurara fazer, e de
enfrentar o início da viagem de regresso, durante a qual, Deus seja
louvado, não haveria necessidade de se apressarem, e não haveria
motivo para ele se impelir a si próprio para os limites da resistência.
Os sons chegavam abafados e suaves ao longo da terra batida do
trilho, mas Cadfael sentiu a vibração dos cascos e não o seu
impacte. Cavalos oriundos de oeste, dois cavalos, pois a sua
andadura estremecia em contraponto, aproximando-se a um trote
veloz, frescos de uma noite de descanso e prontos para o dia.
Viajantes que talvez se dirigissem a Lichfield, depois de terem
passado a noite na casa senhorial de Stretton, dois quilômetros
atrás. Cadfael ficou a vê-los passar.
Eram dois homens com arreios pardos, casacos de couro, à
vontade na sela, e a forma como se sentavam e lidavam com as
suas montadas era tão semelhante que ou tinham aprendido juntos
a montar na infância, ou um tinha ensinado o outro. E, de fato, um
deles tinha o dobro do volume do outro e era claramente uma
geração mais velho e, embora estivessem demasiado longe e
fossem vistos demasiado de relance para ser possível distinguir-lhes
os traços, toda a sua forma indicava que estavam ligados por laços
de família. Dois palafreneiros privilegiados de uma casa nobre, cada
um deles com um assento de mulher atrás de si. Mulheres envoltas
em capas de viagem quentes são todas muito parecidas, mas, no
entanto, Cadfael ficou a olhar atentamente para a primeira e
manteve os seus olhos fixos nela até os cavalos e os seus
cavaleiros terem desaparecido ao longo da estrada, e o suave
tamborilar dos cascos se ter desvanecido na distância.
Ela ainda se encontrava no interior das suas pálpebras quando
ele voltou para o palheiro, procurando, apreensivo, na sua memória,
insistindo, ao mesmo tempo que considerava essa possibilidade um
disparate, que já a tinha visto antes e, além disso, que sabia muito
bem onde, se o quisesse admitir.
Mas, quer fosse verdade ou não, e o que quer que isso augurava
se o fosse, ele não podia fazer nada a esse respeito. Atirou o
pensamento para o fundo da mente e entrou no palheiro, para
aguardar o momento em que Haluin acordasse e precisasse dele.
Atravessaram arvoredos até chegarem a uma expansão de
campos planos, ainda um pouco esbranquiçados e cinzentos no ar
frio, mas férteis e bem cultivados, uma pequena ilha rica num
condado que ainda se encontrava bastante negligenciado depois da
dura pacificação a que fora sujeito cinquenta anos antes. Perante
eles estavam as curvas elegantes do rio Tame, o telhado íngreme
de um moinho e, para além da água, o agrupamento das casas de
Elford.
Eles tinham passado uma noite descansada na generosa e
amável hospitalidade dos clérigos de Lichfield, tinham recebido
instruções completas a respeito da melhor estrada para Elford e, à
primeira luz do amanhecer, tinham iniciado as últimas quatro milhas
desta viagem de penitência. E aqui, à sua frente, estava o objetivo
da peregrinação de Haluin, quase ao seu alcance, com apenas uma
expansão de campos tranquilos e uma ponte de madeira entre ele e
a absolvição. Um local afortunado, próspero quando muitos estavam
empobrecidos, possuindo, não um, mas dois moinhos à beira da
água, pois eles podiam vislumbrar um segundo moinho rio acima,
com um amplo prado e um solo rico onde se viam campos aráveis.
Um local que podia bem prometer bênção e paz de espírito depois
do esforço e da dor.
Seguiram em frente ao longo do trilho estreito, e os telhados de
Elford erguiam-se agora perante eles, rodeados de árvores e
arbustos ainda sem folhas e escuros nesta vista distante, ainda não
tão adiantados no florescimento que mostrassem o primeiro leve e
esquivo fumo de verde. Atravessaram a ponte cujas tábuas
irregulares obrigaram Haluin a ter muito cuidado com onde colocava
as muletas, e chegaram ao trilho que passava por entre as casas.
Uma aldeia limpa, com as donas de casa e os agricultores alegres e
confiantemente ocupados com as suas tarefas diárias, atentos à
presença de estranhos, mas amáveis e hospitaleiros para com o
hábito beneditino. Eles trocaram saudações ao longo do caminho, e
Haluin, alegre e aliviado por ter terminado a sua viagem com êxito,
começou a corar e a ficar animado de satisfação por lhe ter sido
oferecido este augúrio espontâneo de aceitação e libertação.
Tinham visto a torre baixa da igreja antes de atravessar a ponte,
pelo que não houve necessidade de perguntar como poderiam lá
chegar. A igreja tinha sido construída após a chegada dos
normandos, e era um edifício robusto de pedra cinzenta, com um
cemitério espaçoso muito bem cercado de modo a servir de
santuário em caso de necessidade e cheio de belas árvores antigas.
Passaram sob o pórtico de arco redondo e entraram na escuridão
fresca e ressoante de todas as igrejas construídas de pedra,
cheirando vagamente a pó, velas de cera e com um forte e
tranquilizador odor a lar, o local escolhido para viver.
Haluin tinha parado no silêncio ladrilhado da nave para se
orientar. Aqui não havia uma capela da Virgem para alojar um
túmulo do patrono entre os altares, os senhores de Elford deviam
estar de lado, encaixados nas pedras das paredes que tinham
erguido. A luz vermelha da lamparina do altar mostrou-lhes onde
estava o túmulo: uma laje grande preenchia um nicho na parede da
direita. Um De Clary morto, talvez o primeiro que tinha vindo para
Inglaterra com o rei Guilherme e sido mais tarde recompensado,
aparecia como uma figura adormecida em relevo na pedra. Haluin
tinha avançado em direção a ele mas, após o primeiro passo, parou
e deu um passo atrás, pois havia uma mulher de joelhos ao lado do
túmulo.
Eles viram-na apenas como uma figura vaga pois, nesta luz
obscura, a capa que ela usava era cinzenta-escura como a pedra e
eles souberam que era uma mulher e não um homem porque o
capuz da capa estava puxado para trás, descobrindo uma touca de
linho branco e, sobre esta, um véu de gaze. Estavam prestes a
retirar-se para o pátio para a deixar terminar as orações em paz,
mas ela tinha ouvido o barulho das muletas no chão de ladrilhos e
voltou a cabeça para eles. Num único movimento gracioso e
abrupto, ela pôs-se de pé e, quando se dirigiu a eles, penetrou na
luz oriunda de uma janela e mostrou-lhes o rosto altivo, maduro e
belo de Adelais de Clary.

CAPÍTULO 5

- Vocês? - disse ela, fitando-os e voltando o olhar espantado de


um rosto para o outro, parecendo procurar alguma lógica nesta
visita inesperada. A sua voz era neutra, não os recebendo
cordialmente, nem os repelindo. - Não pensei que fosse voltar a vê-
los tão cedo. Há mais alguma coisa que me queiras perguntar,
Haluin, e foi por isso que me seguiste até aqui? Só tens de
perguntar. Eu já disse que te perdoo.
- Minha senhora - disse Haluin, abalado e a tremer com a
aparição da sua antiga patroa neste local inesperado -, nós não vos
seguimos. Na realidade, nunca pensei que vos ia encontrar aqui.
Estou-vos grato pela vossa clemência, e por nada no mundo voltaria
a incomodar-vos. Eu vim aqui apenas para cumprir uma promessa.
Tinha pensado passar uma noite em oração em Hales, julgando,
minha senhora, que a vossa filha estava lá sepultada. Mas
soubemos pelo padre que esse não é caso. Ela está aqui em Elford,
no túmulo dos seus avós. Por isso, continuei até aqui. E a única
coisa que vos peço é a vossa autorização para fazer a minha vigília
aqui esta noite, em cumprimento do que jurei. Seguidamente, ir-nos-
emos embora e nunca mais vos incomodaremos.
- Eu não vou negar - disse ela, num tom mais suave - que ficarei
satisfeita quando te fores embora. Não existe qualquer má vontade!
Mas gostaria muito de ligar e esconder a ferida que voltaste a abrir,
até ela sarar. O teu rosto é uma doença que a faz abrir e sangrar de
novo. Achas que eu teria montado o cavalo e vindo até aqui tão
depressa se não me tivesses feito recordar essa dor antiga?
- Eu penso, minha senhora - disse Haluin numa voz baixa e
trémula -, que, tal como eu espero fazê-lo, ireis descobrir que, com
esta expiação, a ferida ficou limpa de todos os rancores. Rezo para
que, desta vez, a vossa ferida sare suave e totalmente.
- E para ti? - disse ela, secamente, afastando-se um pouco dele
com um movimento de mão que proibia qualquer resposta.
- Doce e totalmente! Pedes muito a Deus, e ainda mais a mim. -
Na luz oblíqua oriunda da janela, o rosto dela era veemente e triste.
- Tu aprendeste a falar como um monge - disse ela.
- Bem, passou-se muito tempo! A tua voz costumava ser mais
ligeira, tal como o teu andar. Uma coisa pelo menos eu admito, a tua
vinda aqui tem um preço muito elevado. Desta vez, não me negues
a graça de te oferecer descanso e uma refeição. Tenho uma casa
aqui, dentro dos limites do domínio do meu filho. Se tens que
castigar a tua carne sobre estas pedras toda a noite, pelo menos,
entra e descansa até às Vésperas.
- Então, posso ter a minha noite de oração? - perguntou Haluin,
ansioso.
- Por que não? Não acabaste de me ver a suplicar a Deus pela
mesma causa? - disse ela. - Vejo-te destroçado. Não quero que te
sintas rejeitado. Sim, faz a tua vigília de penitência, mas vem comer
a minha casa primeiro. Enviarei os meus palafreneiros para vos vir
buscar - disse ela - quando tiveres terminado as tuas devoções aqui.
Ela estava quase junto da porta, não prestando atenção aos
agradecimentos hesitantes de Haluin e não lhe dando qualquer
oportunidade de recusar a sua hospitalidade, quando parou
subitamente e deu meia volta, virando-se para eles.
- Mas não digas uma única palavra - disse ela ansiosamente - a
ninguém sobre o teu objetivo aqui. O nome e a reputação da minha
filha estão bastante seguros sob a pedra, deixa-os ficar sossegados.
Não quero que ninguém seja obrigado a recordar, como eu fui.
Deixa que isto fique apenas entre nós e este bom irmão que te faz
companhia.
- Minha senhora - disse Haluin, devotamente -, não será dita uma
só palavra a ninguém, com exceção de nós três, nem agora nem em
qualquer outra altura, nem aqui nem em qualquer outro lugar.
- Fico descansada - disse ela, e, um momento depois tinha saído,
fechando a porta suavemente atrás de si.
Haluin não conseguia ajoelhar-se sem algo firme à sua frente a
que se agarrar e sem o braço de Cadfael à sua volta para o ajudar a
baixar-se, partilhando o peso com o único pé útil do seu
companheiro. Lado a lado, disseram as suas orações ao altar e
Cadfael ficou a ver Haluin ajoelhar-se, seguindo com preocupação
as linhas de cansaço do rosto do homem mais novo. Ele tinha
sobrevivido a árdua viagem a pé, mas não sem um elevado custo. A
noite de joelhos sobre as pedras seria fria, dolorosa e longa, mas
Haluin insistiria no último extremo de autopunição. E, depois disso, o
longo caminho de regresso. Seria bom que a dama conseguisse
persuadi-lo a ficar, pelo menos, uma segunda noite, por mais não
fosse como um gesto de concessão e amabilidade para com ela,
agora que se tinham, de certo modo, reconciliado com o passado
comum que os atormentava. Pois era certamente possível que fosse
verdade que a visita súbita de Haluin tivesse motivado a sua própria
peregrinação, levando-a a dirigir-se apressadamente para ali, a fim
de se confrontar com o papel que ela própria desempenhara
naquela velha tragédia. Passando a um trote rápido pela cabana do
guarda-florestal perto de Chenet, com apenas uma criada e dois
palafreneiros no seu séquito e despertando uma faísca fugidia na
memória de Cadfael. Podia bem ser verdade. Ou será que essa
semente podia dar fruto tão cedo? A implicação da pressa estava lá.
Cadfael viu de novo os dois cavalos com carga dupla a passar no
início da manhã, avançando firmemente e com uma finalidade. Com
pressa de pagar uma dívida de afeto e remorso meio esquecida? Ou
de chegar antes de outra pessoa, para estar pronta e armada para a
receber? Ela queria que eles ficassem satisfeitos e se fossem
embora, mas isso era bastante natural. Eles tinham invadido a sua
paz e tinham colocado um espelho antigo e manchado à frente do
seu belo rosto.
- Ajuda-me a levantar! - disse Haluin, erguendo os braços como
uma criança, para ser erguido; e essa foi a primeira vez que ele
pediu ajuda, antes, ela tinha-lhe sido sempre oferecida e ele
aceitara-a com humildade e resignação, mais do que de gratidão. -
Tu não disseste uma única palavra - disse ele, subitamente
admirado, quando se viravam na direção da porta da igreja.
- Eu não tinha nada para dizer - disse Cadfael. - Mas ouvi muitas
palavras. E até mesmo os silêncios entre elas eram significativos.
O palafreneiro de Adelais de Clary estava à espera deles no pátio,
tal como ela prometera, indolentemente inclinado e com um ombro
apoiado na ombreira da porta, como se estivesse à espera há já
algum tempo, mas com uma paciência imovível. A sua aparição
confirmou tudo o que o Irmão Cadfael discorrera mentalmente a
partir dos poucos relances que tivera dos cavaleiros por entre as
árvores. Este era o mais novo dos dois, um homem musculoso com
talvez trinta anos, encorpado, de pescoço taurino,
inconfundivelmente de molde normando. Talvez a terceira ou quarta
geração de um progenitor que tinha vindo para Inglaterra como
homem de armas do primeiro De Clary. O forte tronco original ainda
prevalecia, embora o casamento com mulheres inglesas tivesse
transformado o cabelo louro num castanho-claro e moderando um
pouco os ossos grosseiros do seu rosto. Ainda usava o cabelo
cortado numa boina rente, ao modo dos normandos, e o queixo forte
bem barbeado, e ainda tinha os olhos vivos, claros e impenetráveis
do norte. Quando eles se aproximaram, endireitou-se num salto,
mais à vontade em movimento do que em repouso.
- A minha senhora enviou-me para vos mostrar o caminho.
A sua voz era inexpressiva e seca e, sem esperar por resposta,
saiu do cemitério à frente deles, num passo que Haluin teve
dificuldade em acompanhar. O palafreneiro olhou para trás e
esperou e, depois disso, diminuiu a velocidade, embora fosse óbvio
que andar devagar o irritava. Não disse nada por iniciativa própria e
respondeu a perguntas ou a simples conversa de circunstância com
cordialidade, mas com poucas palavras. Sim, Elford era uma bela
propriedade, com uma boa terra e um bom senhor. A gestão
competente que Audemar fazia do seu domínio foi reconhecida com
indiferença; o compromisso de fidelidade deste jovem era com
Adelais e não com o seu filho. Sim, o seu pai também estava ao
serviço dela, tal como o pai dele estivera antes dele. Embora
pudesse sentir alguma curiosidade a respeito destes hóspedes
monásticos, não a manifestou. Os olhos cinzento-claros ocultavam
todos os pensamentos, ou talvez sugerissem a total ausência de
pensamento.
Ele conduziu-os através de um caminho arrelvado até ao portão
do recinto da casa senhorial, que era murado e espaçoso. A casa de
Audemar de Clary situava-se mesmo ao centro, com o piso
habitável bem elevado acima de uma cripta de pedra e, a julgar
pelas janelas pequenas no topo, havia pelo menos mais dois
aposentos por cima do solar. E o pátio amplo, em redor do qual
havia outros quartos habitáveis, bem como as habituais e
necessárias cavalariças, a armaria, casa do forno e a casa da
fermentação, os armazéns e as oficinas, estava febrilmente ocupado
com as atividades de uma atarefada casa de grandes dimensões.
O palafreneiro conduziu-os a um pequeno aposento de madeira
debaixo da parede de cortina.
- A minha senhora mandou preparar este aposento para vós.
Utilizem-no como se fosse vosso, e o guarda do portão certificar-se-
á de que podem entrar e sair à vontade, para irem à igreja.
A hospitalidade dela, tal como eles descobriram, era meticulosa
mas distante e impessoal. Ela tinha providenciado água para se
lavarem, catres confortáveis para descansarem, enviara-lhes
comida da sua própria mesa, e tinha mandado dizer que pedissem
tudo o que precisassem ou quisessem que pudesse ter sido
esquecido, mas não os recebeu pessoalmente. Talvez o perdão não
fosse tão longe que a presença arrependida de Haluin lhe fosse
agradável. Também não foram os criados que os serviram, mas sim
os dois palafreneiros que tinham vindo com ela de Hales. Foi o mais
velho dos dois que lhes trouxe carne, pão e queijo e um pouco de
cerveja da despensa. Cadfael não se enganara a respeito da
relação entre eles, pois este era claramente o pai do outro, um
homem rijo, entroncado, de cerca de cinquenta anos, calado como o
filho, de ombros mais largos e de pernas mais tortas devido ao fato
de ter passado tantos anos a cavalo como em pé. Tinha os mesmos
olhos frios, desconfiados, o mesmo audacioso maxilar forte e
barbeado, mas este estava queimado com um bronzeado duradouro
que Cadfael reconheceu do seu próprio passado como tendo a sua
origem muito longe de Inglaterra. O seu senhor tinha sido um
cruzado. Este homem certamente que estivera com ele na Terra
Santa e obtivera lá o seu tom acobreado, sob o sol violento de que
ele tão bem se recordava.
O palafreneiro mais velho apareceu mais tarde com uma
mensagem, não para Haluin mas sim para Cadfael. Haluin tinha
adormecido no seu catre, e a entrada do homem, leve e suave como
um gato apesar de todo o seu volume, não perturbou o seu
descanso, e Cadfael sentiu-se grato por isso. Ele tinha à sua frente
uma noite longa e inquieta. Fez sinal ao palafreneiro para que
esperasse e saiu com ele para o pátio, fechando a porta
suavemente atrás de si.
- Deixá-lo dormir. Ele vai precisar de estar bem acordado mais
tarde.
- A minha senhora contou-nos como ele tenciona passar a noite -
disse o palafreneiro. - Ela está a chamá-lo a si, se não se importa de
me acompanhar agora. Deixem o outro irmão dormir, disse ela, pois
ele esteve mortalmente doente. Ele é muito corajoso, caso contrário
nunca teria vindo tão longe com aqueles pés. Por aqui, Irmão!
A habitação da viúva tinha sido construída a um canto da
muralha, protegida dos ventos e, embora fosse pequena, era
suficientemente grande para as visitas ocasionais que ela decidia
fazer à corte do seu filho. Consistia num salão e num aposento
estreitos, e numa cozinha construída de encontro à muralha. O
palafreneiro atravessou o salão com um ar de autoridade natural,
como alguém que detinha privilégios ali, e apresentou-se perante a
sua senhora de um modo muito semelhante ao adoptado por um
filho ou irmão, confiante e digno de confiança. Adelais de Clary era
bem servida, mas sem subserviência.
- Aqui está o Irmão Cadfael de Shrewsbury, minha senhora. O
outro está a dormir.
Adelais estava sentada junto de uma roca carregada de lã azul-
escura, fazendo girar o fuso com a mão esquerda mas, quando eles
entraram, parou de o rodar e colocou-o cuidadosamente de
encontro ao pé da roca para evitar que o novelo se desfizesse.
- Ótimo! É o que ele precisa. Deixa-nos agora, Lothair, o nosso
hóspede saberá encontrar o caminho de volta. O meu filho já está
em casa?
- Ainda não. Eu estarei atento à sua chegada.
- Ele tem Roscelin com ele - disse ela - e os cães. Quando
estiverem todos em casa, no canil e no estábulo, podes ir
descansar, que bem o mereces.
Ele limitou-se a acenar a cabeça para indicar que compreendera e
foi-se embora, taciturno e pouco efusivo como sempre, mas, no
entanto, havia na troca de palavras entre eles um tom de
invulnerável segurança, firme como uma pedra arraigada. Adelais
ficou calada até a porta do aposento se ter fechado atrás do seu
criado. Ela estava a observar Cadfael com uma atenção silenciosa e
um leve esboço de sorriso.
- Sim - disse ela, como se ele tivesse falado. – É mais do que um
criado. Esteve com o meu marido durante todos os anos que ele
combateu na Palestina. Mais de uma vez; ele prestou a Bertrand o
pequeno serviço de o manter vivo. E um compromisso de fidelidade
diferente, não o de um criado. Tão leal como alguma vez um senhor
foi para com o seu suserano. Eu herdei o que pertencia ao meu
senhor antes de mim. Ele chama-se Lothair. O filho dele é o Luc.
Nascido e criado no mesmo molde. Deve ter reparado na
parecença, é difícil não notar.
- Reparei, sim - retorquiu Cadfael. - E soube onde é que Lothair
obteve a sua pele cor de cobre.
- Sabia? - Tendo-se dado ao trabalho de olhar para ele pela
primeira vez, ela estava agora a estudá-lo com um interesse mais
intenso.
- Eu próprio passei alguns anos no Oriente, antes dele. Se ele
viver o tempo suficiente, o seu castanho irá desaparecer como
aconteceu ao meu, mas leva muito tempo.
- Ah! Então, não foi entregue aos monges em criança. Eu bem
achei que não tinha o ar desses inocentes virgens - disse Adelais.
- Eu entrei no mosteiro de minha livre vontade - disse Cadfael -,
quando chegou a altura.
- Ele também o fez... de sua livre vontade, embora eu ache que
não tenha sido na altura certa. - Ela moveu-se na cadeira e
suspirou. - Mandei chamá-lo para lhe perguntar se têm tudo de que
necessitam... se os meus homens estão a tomar bem conta de vós.
- Muito bem. E pela vossa amabilidade e pela deles estamos
extremamente gratos.
- E também para lhe perguntar sobre ele... sobre Haluin. Eu vi
como ele está mal. Alguma vez vai melhorar?
- Ele nunca vai conseguir andar como antes - disse Cadfael. -
Mas, à medida que os seus tendões ganharem força, irá melhorar.
Julguei que ele estivesse a morrer, todos nós pensámos isso, mas
está vivo e ainda irá encontrar muitas coisas boas na vida... quando
conseguir ter paz de espírito.
- E ele ficará em paz depois desta noite? É disto que precisa?
- Penso que sim, que ficará em paz.
- Então, isto tem a minha bênção. E depois vai levá-lo de volta
para Shrewsbury? Posso arranjar-lhes cavalos - disse ela - para o
regresso. Lothair pode ir buscá-los para os levar para Hales quando
regressarmos.
- Ele vai certamente recusar essa amabilidade - disse Cadfael. -
Ele prometeu completar esta penitência a pé.
Ela acenou a cabeça em sinal de compreensão.
- Eu vou perguntar-lhe, mesmo assim. Bem... é tudo, Irmão. Se
ele não quiser, não posso fazer mais nada. Sim, há uma coisa que
eu posso fazer! Irei às Vésperas esta noite, falarei com o padre e
certificar-me-ei de que ninguém... ninguém... porá em causa ou
perturbará a sua vigília. Com certeza que compreende que ninguém
deve saber nada, exceto nós, que conhecemos demasiado bem a
situação. Diga-lhe isso. O que resta é entre ele e Deus.
O dono da casa estava a passar o portão no momento em que
Cadfael voltava para o aposento onde Haluin dormia. O som de
arreios, cascos e vozes entraram à frente da cavalgada, um som
vivaz que fez sair de casa cavalariços e criados, como abelhas de
um cortiço perturbado, para assistir à chegada do seu senhor. E ali
vinha ele, Audemar de Clary, num cavalo castanho alto, um homem
grande em traje de montar escuro, simples como o de um
trabalhador, não ostentando qualquer ornamento e não tendo
necessidade de o fazer para indicar que era o detentor da
autoridade aqui. Ele montava de cabeça descoberta, o capuz da
capa curta estava atirado para trás sobre os ombros, e o cabelo
ondulado era tão escuro como o da mãe, mas os vigorosos ossos
do seu rosto, o nariz de cana alta, as maçãs do rosto proeminentes
e a testa altiva que tinham sido certamente herdados do seu pai
cruzado.
Ele ainda não devia, pensou Cadfael, ter quarenta anos. O vigor
dos seus movimentos ao desmontar, a energia dos seus passos no
chão e os gestos das suas mãos ao descalçar as luvas eram todos
jovens. Mas os traços vigorosos do seu rosto e a autoridade que era
manifesta em todo ele, a eficiência da sua gestão aqui e o pronto e
competente serviço que esperava receber e, de fato, obtinha,
faziam-no parecer mais velho em dominância do que era em anos.
Ele tinha sido o senhor feudal, recordou-se Cadfael, durante a longa
ausência do pai, começando cedo, provavelmente antes dos vinte
anos, e o domínio De Clary era extenso e disperso por vários locais.
Ele aprendera bem o seu ofício. Não era um homem que se
pudesse contrariar levianamente, mas ali ninguém o temia. Os
criados aproximavam-se dele alegremente e falavam-lhe com à-
vontade. A sua ira, quando justificada, poderia ser devastadora, até
mesmo perigosa, mas seria justa.
Ao seu lado vinha montado um jovem, pajem ou escudeiro, de
dezessete ou dezoito anos, de rosto fresco e corado do ar frio e do
exercício, e, a seguir a eles, vinham dois homens do canil, a pé com
os cães pela trela depois da corrida. Audemar entregou as rédeas
ao cavalariço que veio a correr para ele e ficou a bater com as botas
no chão enquanto tirava a capa e a colocava nas mãos do jovem. A
breve azáfama terminou ao fim de poucos minutos, com os cavalos
a atravessar o pátio a caminho do estábulo e os cães a serem
levados para o canil. O jovem palafreneiro Luc saiu do estábulo e foi
falar com Audemar, aparentemente para transmitir uma mensagem
de Adelais, pois Audemar olhou uma vez para o alojamento da
dama, acenou a cabeça em sinal de compreensão e dirigiu-se com
passos largos para a porta dela. Os seus olhos recaíram sobre
Cadfael, que dera discretamente um passo ao lado para sair do seu
caminho e, por um instante, ele fez uma pausa como se fosse parar
para falar com ele, mas depois mudou de ideias e seguiu o seu
caminho, desaparecendo no vão da porta fundo.
A julgar pela hora a que ela, os palafreneiros e a aia tinham
passado por ele na floresta, supôs Cadfael que Adelais tinha
chegado a Elford no mesmo dia, dois dias antes. Eles não teriam
tido necessidade de parar para passar a noite entre Chenet e Elford,
a distância era fácil de percorrer a cavalo. Por conseguinte, ela já
devia ter visto o filho e falado com ele. O que ela tinha para lhe
comunicar agora, assim que ele regressou de montar, podia muito
bem ter a ver com as notícias desse dia na casa senhorial de Elford.
E o que haveria de novo senão a chegada dos dois monges de
Shrewsbury e o seu motivo para ali estarem, um motivo que ela
interpretaria à sua vontade para ele? Porque ele estava aqui em
Elford quando a irmã morreu em resultado de uma febre, como toda
a gente supôs - será que o seu irmão também? - em Hales. Isso
devia ter sido a única coisa que ele soubera, uma morte simples,
triste, tal como pode acontecer em qualquer família, até mesmo a
alguém na flor da juventude. Não, aquela mulher forte e decidida
nunca contaria o segredo ao filho. A uma aia de confiança, uma
confidente, talvez. Ela deveria ter necessidade de alguém assim,
que talvez já tivesse morrido. Mas ao jovem filho, não, nunca.
E, se isso fosse verdade, não admira que Adelais estivesse a
tomar todas as precauções para facilitar o caminho de Haluin para a
expiação e para se livrar dele o mais depressa possível,
precavendo-se de todas as perguntas, até mesmo do padre,
oferecendo cavalos para apressar a sua partida e fazendo os dois
peregrinos jurar que não iriam revelar nada do passado a nenhum
outro ser humano, nem dizer uma só palavra sobre o significado da
sua missão, nem mencionar o nome de Bertrade.
Há uma coisa, pelo menos, que eu começo a compreender,
pensou Cadfael. Para onde quer que nos voltemos, há Adelais entre
nós e todos os outros. Ela aloja-nos, dá-nos de comer e são os seus
criados mais fiéis que nos servem, e nenhum da casa do filho. O
nome e a reputação da minha filha estão suficientemente seguros
no túmulo, dissera ela, deixá-los jazer calmamente lá. Não admira
que ela tivesse montado apressadamente para chegar primeiro a
Elford e estar pronta para os receber.
E, amanhã de manhã, se Haluin estiver suficientemente bem para
partir, ir-nos-emos embora, pensou ele, e ela pode ficar tranquila. Se
for necessário, poderemos encontrar outro local de paragem a uma
ou duas milhas daqui, mas, custe o que custar, deixaremos estas
paredes, e ela não precisará de pensar mais em Haluin nem de
voltar a vê-lo.
O jovem escudeiro tinha ficado a ver o seu senhor atravessar o
pátio em direção à porta da dama, com a capa de Audemar atirada
sobre o ombro; a sua cabeça nua era quase da cor do linho contra o
tecido escuro. Ele ainda tinha a graciosidade enérgica e angular da
juventude. Dentro de um ou dois anos, o seu corpo magro atingiria
uma masculinidade sólida e elegante, com todos os movimentos sob
um suave controlo, mas, por enquanto, mantinha a insegurança
vulnerável de um rapaz. Procurou Audemar com uma expressão de
surpresa e especulação, fitou Cadfael com uma curiosidade franca e
virou-se lentamente em direção à residência de Audemar.
Este devia ser o Roscelin a que Adelais se tinha referido, pensou
Cadfael, ao vê-lo ir-se embora. Pela figura e pela cor da pele, não
era um filho da casa, mas também não era um criado. Sem dúvida
um jovem da família de um dos rendeiros de Audemar enviado para
junto do seu suserano para aprender a manejar as armas e adquirir
os conhecimentos e a prática de uma pequena corte, como
preparação para o mundo mais amplo. Fidalgotes aprendizes deste
tipo proliferavam em todas as grandes baronias, pelo que o domínio
De Clary poderia muito bem ser o patrono de um ou dois deles.
O fim de tarde tinha-se tornado frio, e estava a levantar-se um
vento frio e cortante, acompanhado de chuva que picava como
agulhas finas. A hora das Vésperas não estava muito distante.
Cadfael saiu do frio e encontrou o Irmão Haluin acordado e à
espera, silencioso e tenso, da hora da sua realização.
Era evidente que Adelais tinha dado bem as suas ordens.
Ninguém interferiu na sua privacidade, ninguém fez perguntas ou
manifestou curiosidade. O jovem palafreneiro trouxe-lhes comida
antes das Vésperas e, no fim do serviço religioso, ficaram sozinhos
para fazer a vigília à vontade. Era pouco provável que alguém da
casa se tivesse interrogado a respeito deles, pois estavam
acostumados a visitas de todos os géneros, e as devoções de dois
beneditinos itinerantes não surpreenderam ninguém. Não era nada
de espantar que monges da abadia de São Pedro decidissem
passar a noite a rezar numa igreja de São Pedro, e ninguém tinha
nada a ver com isso.
O Irmão Haluin realizou o seu intento e cumpriu a sua promessa.
Não quis nada que tornasse a pedra mais macia, nem outra capa
para o proteger do frio da noite, nada que diminuísse a severidade
da penitência. Cadfael ajudou-o a ajoelhar-se, ao alcance do apoio
sólido do túmulo, de modo a que, se se sentisse tonto ou prestes a
desmaiar, pelo menos poderia agarrar-se a ele para amortecer a
queda. As muletas foram colocadas ao fundo do túmulo. Não
permitiu que ninguém fizesse mais nada por ele. Mas Cadfael
ajoelhou-se com ele, recolhido na sombra para o deixar a sós como
a sua falecida Bertrade e um Deus que sem dúvida o ouvia com
compaixão.
Foi uma noite longa e fria. A lamparina do altar era um ponto
brilhante na escuridão, vermelho como o fogo, ainda que não desse
calor. O silêncio prosseguiu hora após hora, e o arquejo gradual da
respiração de Haluin e o murmúrio constante do movimento dos
seus lábios eram como uma ondulação infinitesimal a vibrar através
dele, sendo sentidos no sangue e nas entranhas, mais do que
audíveis através do ouvido. De algures no seu interior ele extraiu
uma fonte inesgotável de palavras dedicadas à sua falecida
Bertrade. A sua tensão e paixão mantiveram-no erecto e esquecido
da dor, embora a dor se tivesse apoderado dele antes da meia-noite
e nunca o tivesse abandonado até ao momento em que o seu
enlevo e a sua provação terminaram simultaneamente, ao raiar do
dia.
Quando finalmente abriu os olhos para a luz de uma manhã gélida
e desentrelaçou laboriosamente as mãos frias, já se ouviam, vindos
do exterior, os sons da atividade habitual do início da manhã.
Regressando de um lugar muito longínquo, dentro de si, Haluin
olhou, ofuscado, para o dia que acordava. Tentou mover-se e
agarrar a orla do túmulo, mas os seus dedos estavam tão
dormentes que não sentiam nada, e os braços tão doloridos que não
conseguiram ajudá-lo a levantar-se. Cadfael pôs um braço à volta
dele para o erguer, mas Haluin não conseguia endireitar os joelhos
doloridos para colocar o pé no chão e ficou pendurado, como um
peso morto, no braço que o rodeava. E, subitamente, ouviram-se
passos leves e outro braço, jovem e forte, abraçou o corpo pelo
outro lado, uma cabeça loura inclinou-se para os ombros de Haluin
e os dois homens endireitaram-no e seguraram-no enquanto o
sangue voltava a fluir dolorosamente para as pernas dormentes.
- Por amor de Deus, homem - disse o jovem Roscelin num tom
impaciente -, por que é que tens de tratar de ti próprio com tanta
dureza quando já tens provações suficientes para qualquer homem
são de espírito suportar?
Haluin ficou demasiado sobressaltado e a sua mente ainda se
encontrava demasiado longe, para ser capaz de compreender o que
fora dito, quanto mais responder. E embora Cadfael, interiormente,
considerasse a reação do jovem perfeitamente sensata, em voz alta
disse, num tom prático: - Segura-o bem enquanto eu apanho as
muletas. E Deus te abençoe por teres aparecido numa altura tão
conveniente. Não te zangues com ele, estás a perder tempo. Ele fez
uma promessa.
- Uma promessa tola! - disse o rapaz com a certeza arrogante da
sua idade. - Quem é que beneficia com isto? - Apesar de toda a sua
desaprovação, segurou Haluin afetuosamente e com firmeza, e
olhou de lado para ele com uma expressão tão ansiosa como
exasperada.
- Ele - disse Cadfael, colocando as muletas debaixo das axilas de
Haluin e começando a tentar imprimir novamente vida às mãos frias,
que não conseguiam ainda agarrar as hastes. - É difícil de acreditar,
mas podes ter a certeza. Pronto, agora podes deixá-lo apoiar-se nas
muletas, mas segura-o bem. Está tudo bem para ti, com a tua idade,
consegues dormir bem, sem nada de que te possas arrepender nem
nada de que tenhas que pedir perdão. Como é que chegaste
mesmo na hora certa? - perguntou ele, olhando para o jovem com
um novo interesse e, por conseguinte, mais de perto. - Mandaram-te
aqui?
Pois este rapaz parecia um instrumento pouco provável para
Adelais utilizar para acompanhar os seus hóspedes na entrada e
saída de Elford - demasiado jovem, demasiado direto, demasiado
inocente.
- Não - respondeu Roscelin num tom seco, acrescentando
seguidamente num tom mais cortês: - Senti curiosidade.
- Bem, isso é humano - admitiu Cadfael, reconhecendo o seu
próprio pecado inveterado.
- E, esta manhã, Audemar não teve logo trabalho para mim, ele
está ocupado com o seu administrador. Não será melhor levar este
seu irmão de volta aos seus aposentos, onde está mais quente?
Como vamos fazer isso? Eu posso ir buscar um cavalo para ele se
conseguirmos pô-lo em cima dele.
Haluin tinha regressado do seu lugar distante e deu consigo a ser
discutido e tratado como se não tivesse mente própria, e sem saber
bem onde se encontrava. Endireitou-se instintivamente, reagindo
contra a indignidade.
- Não - disse ele. - Agradeço-vos, mas já consigo andar. Não
abusarei mais da vossa hospitalidade. - E dobrou as mãos, agarrou
nas hastes das muletas e deu os primeiros passos cautelosos para
se afastar do túmulo.
Eles seguiram-no de perto, um de cada lado para o caso de ele
vacilar, com Roscelin a subir primeiro os degraus e a passar a
ombreira da porta para evitar um possível tropeção, e Cadfael atrás
dele para o segurar se ele caísse para trás. Mas Haluin tinha
chamado em seu auxílio uma força de vontade reavivada e
fortalecida pelo fato de ter conseguido fazer aquilo a que se
propusera, e estava decidido a conseguir andar sozinho, por mais
que isso lhe custasse. E não havia pressa. Quando sentisse
necessidade, podia descansar sobre as muletas para recuperar o
fôlego, e Haluin fê-lo três vezes antes de chegarem ao pátio de
Audemar, já cheio de gente atarefada com a padaria, as estrebarias
e o poço. Cadfael refletiu que a inteligência e a sensibilidade de
Roscelin se manifestavam bem no fato de, a cada pausa, ele
esperar sem fazer qualquer comentário nem manifestar impaciência,
e evitar oferecer ajuda até esta lhe ser pedida. Assim, Haluin
regressou aos aposentos situados no pátio de Audemar tal como
queria, pelos seus próprios pés deformados, e pôde sentir que
merecera o conforto da sua cama. Roscelin seguiu-os até ao
interior, ainda curioso, sem pressa de ir à procura de quaisquer
tarefas que estivessem à sua espera.
- É tudo, então? - perguntou ele, observando Haluin a esticar, com
alívio, os membros ainda dormentes e a puxar o cobertor para cima
deles. - Então para onde vão quando nos deixarem? E quando? Não
vão partir hoje?
- Vamos regressar a Shrewsbury - disse Cadfael. - Se é hoje, isso
eu duvido. Seria sensato ter um dia de descanso. - Pela calma
exausta do rosto de Haluin e pelo olhar tranquilo virado para o seu
interior, ele não demoraria muito a mergulhar no melhor e mais
merecido sono desde que fizera a sua confissão.
- Eu vi-te chegar com Audemar ontem - disse Cadfael, estudando
o rosto do jovem à sua frente. - A dama mencionou o teu nome. És
familiar dos De Clary?
O rapaz abanou a cabeça.
- Não. O meu pai é rendeiro e vassalo dele, eles sempre foram
bons amigos e existe uma ligação por casamento, há já algum
tempo. Não, eu fui enviado para servir Audemar, por ordem do meu
pai.
- Mas não de acordo com os teus desejos - disse Cadfael,
interpretando o tom mais do que as palavras.
- Não! Muito contra a minha vontade! - disse Roscelin
abruptamente, olhando, com um ar zangado, para as tábuas do
soalho entre as suas botas.
- No entanto, ele parece ser um bom senhor - sugeriu Cadfael,
brandamente -, e melhor do que a maior parte.
- Ele é bastante bom - admitiu o rapaz. - Não tenho qualquer
queixa dele. Mas não gostei que o meu pai me tivesse mandado
para aqui para se ver livre de mim lá em casa, essa é a verdade.
- Então, por que é que - interrogou-se Cadfael, sentindo
curiosidade mas sem perguntar diretamente - ... um pai havia de
querer ver-se livre de ti? - Pois aqui estava, sem qualquer dúvida, o
retrato de um filho apresentável, honesto, bem formado, bem
comportado e decididamente atraente com o seu cabelo louro e
rosto macio, um filho que qualquer pai gostaria de exibir perante os
seus pares. Até mesmo quando taciturno o seu rosto era agradável,
mas certamente que era verdade que ele não tinha o ar de alguém
que se sentia feliz no seu serviço.
- Ele tem os seus motivos - disse Roscelin num tom de tristeza. -
Eu diria que bons motivos, eu sei isso. Mas não estou em tão maus
termos com ele que possa recusar-lhe a obediência que lhe é
devida. Por isso estou aqui e sou obrigado a ficar a não ser que o
senhor e o pai me autorizem a ir-me embora. Mas eu não sou tão
idiota que não admita que podia estar em lugares muito piores. Por
isso, o melhor é aprender o mais possível enquanto aqui estiver.
Parecia que a sua mente se tinha voltado para uma outra questão
mais grave, pois ficou silencioso durante alguns momentos, a olhar
para os dedos entrelaçados com o sobrolho franzido e erguendo a
vista apenas para fitar atentamente Cadfael e pousando
demoradamente os olhos no hábito negro e na tonsura.
- Irmão - disse ele abruptamente -, tenho estado a pensar na vida
monástica. Alguns homens entraram para ela, não é verdade,
porque o que eles mais queriam lhes era impossível... proibido! Isso
é verdade? Ela pode proporcionar uma vida satisfatória se... se a
vida que um homem deseja estiver fora do seu alcance?
- Pode - disse a voz do Irmão Haluin, saída, suave e tranquila, de
um sonho acordado agora muito próximo do sono. - Sim, pode!
- Eu não recomendaria que alguém entrasse para ela como
segunda escolha - disse Cadfael com firmeza. No entanto fora isso
o que Haluin fizera, há muito tempo, e ele falou agora como se
estivesse a registrar uma revelação, a abertura dos seus olhos
interiores no momento em que eles estavam pesados e a fechar-se
de sono.
- O tempo poderá ser longo e o preço elevado - disse Haluin com
suave certeza -, mas no fim não seria uma segunda escolha.
Ele inspirou profundamente, após o que soltou um longo suspiro,
virando a cabeça para o outro lado na almofada. Estavam ambos a
olhá-lo com tanta atenção, duvidando e interrogando-se, que
nenhum deles deu pela aproximação de passos rápidos no exterior
e deram meia volta, surpreendidos, quando a porta se abriu e
Lothair entrou com um cesto de comida e um jarro de cerveja para
os hóspedes. Quando viu Roscelin sentado descontraidamente no
catre de Cadfael e aparentemente de boas relações com os Irmãos,
o rosto desgastado do palafreneiro contraiu-se perceptível, quase
ominosamente, e, por um momento, uma faísca mais profunda
brilhou e desapareceu de novo nos seus olhos claros.
- Que estás a fazer aqui? - perguntou ele com a brusquidão de um
igual e a autoridade intransigente de alguém mais velho. - O jovem
Roger anda à tua procura, e o meu senhor quer-te ao serviço assim
que tiver quebrado o jejum. É melhor ires e depressa.
Não se poderá dizer que Roscelin tenha manifestado qualquer
sinal de abalo com esta notícia, nem ressentimento pela forma como
ela fora transmitida; pelo contrário, a segurança do homem pareceu
diverti-lo. Mas ele levantou-se de imediato e, com um aceno de
cabeça e uma palavra de despedida, foi-se embora obedientemente,
mas sem pressa. Lothair ficou à porta de olhos semicerrados a vê-lo
partir e só entrou no quarto com a sua carga depois de o rapaz ter
chegado aos degraus do solar.
O nosso cão de guarda, pensou Cadfael, recebera ordens para
afastar todos os que se aproximassem demasiado de nós, mas não
imaginara que teria que fazer o mesmo com o jovem Roscelin. Será
que havia uma razão para que esse contato em particular lhe
provocasse consternação? Pois aquela foi a primeira faísca que eu
vi emanar do seu aço!

CAPíTULO 6

A própria Adelais fez uma visita de cortesia aos seus hóspedes


monásticos depois da missa, com perguntas solícitas sobre a sua
saúde e bem-estar. Era possível, refletiu Cadfael, que Lothair lhe
tivesse relatado a inconveniente e indesejável incursão do jovem
Roscelin numa reserva que ela queria claramente manter privada.
Ela apareceu à porta do pequeno aposento com o missal na mão,
sozinha, tendo enviado a aia para a sua casa de viúva. Haluin
estava acordado e, deitando apressadamente a mão às muletas, fez
menção de se levantar do catre como reconhecimento respeitoso da
sua chegada, mas ela fez-lhe sinal com a mão para que voltasse a
deitar-se.
- Não, deixa-te ficar quieto! Não é necessária qualquer cerimônia
entre nós. Como é que te sentes, agora que a tua promessa foi
cumprida? Espero que tenhas sentido a graça divina e que possas
regressar para o teu mosteiro em paz. Desejo-te essa misericórdia.
Uma viagem fácil e uma chegada em segurança.
E, acima de tudo, pensou Cadfael, uma partida breve. E não
admira. Isso é também o que eu quero, e o que Haluin deve querer.
Pôr ponto final neste assunto, de uma forma limpa, sem que mais
ninguém sofresse, com perdão mútuo, referido uma vez e, depois
disso, o silêncio.
- Tu descansaste pouco - disse ela - e tens uma viagem longa de
regresso a Shrewsbury. A minha cozinha fornecer-vos-á comida
para as primeiras etapas do caminho. Mas eu acho que também
devias aceitar cavalos. Eu já o disse ao Irmão Cadfael. Os estábulos
daqui podem dispensar montarias e eu mandarei buscá-las quando
regressar a Hales. Não devias tentar fazer todo o caminho de
regresso a pé.
- Pela oferta, e por toda a vossa amabilidade, ficamos gratos -
disse Haluin num protesto imediato e apressado. – Mas não posso
aceitar. Propus-me ir e vir a pé, e tenho que cumprir a minha
promessa. Constitui um compromisso de fé eu não estar tão
completamente aleijado que serei totalmente inútil daqui em diante,
quer para Deus, quer para os homens. Certamente que não desejais
que eu regresse a casa coberto de vergonha e perjúrio.
Ela abanou a cabeça com aparente resignação perante a
obstinação dele.
- O teu companheiro avisou-me que, quando falasse nisso, irias
recusar, mas eu tinha esperança de que visses a razão. Certamente
que também te comprometeste a regressar para as tuas tarefas na
abadia o mais depressa possível. Isso não tem qualquer peso? Se
insistires em ir a pé, só poderás partir amanhã, depois de uma noite
tão dura em cima das pedras.
Para Haluin, as palavras soaram, sem dúvida, como uma
manifestação genuína de solicitude, um convite para que ele ficasse
até ter descansado completamente. Para Cadfael, pareceu uma
forma subtil de os mandar embora.
- Nunca pensei que ia ser fácil - disse Haluin - levar a cabo o que
prometi. Nem deveria ser. Toda a virtude, se é que há nisso
qualquer virtude, consiste em suportar dificuldades e completar a
penitência. Eu posso fazê-lo e fá-lo-ei. Tendes razão, tenho o dever
para com o meu abade e os meus irmãos de voltar para as minhas
tarefas o mais depressa que puder. Temos que partir hoje. Ainda
restam algumas horas de luz, não devemos desperdiçá-las.
Para dizer a verdade, ela pareceu surpreendida com uma tão
pronta anuência ao que ela pretendia, mesmo que não tivesse
expressado esse desejo. Ela insistiu, embora sem veemência, na
necessidade de descanso, mas cedeu docilmente perante a teimosa
insistência de Haluin. As coisas tinham corrido tal como ela queria,
no último momento podia dar-se ao luxo de ter uma breve convulsão
de pena e compaixão.
- Será como desejares - disse ela. - Muito bem, Luc trar-vos-á
comida e bebida antes de partirem e encherá a vossa sacola.
Quanto a mim, despeço-me com toda a boa vontade. Agora e no
futuro, desejo-te sorte.
Quando ela se foi embora, Haluin ficou em silêncio durante algum
tempo, estremecendo um pouco com a repercussão da sensação de
ter chegado ao fim. Tudo acontecera tal como ele esperara e, no
entanto, sentia-se abalado.
- Eu tornei as coisas desnecessariamente difíceis para ti - disse
ele num tom pesaroso. - Deves estar tão cansado como eu, e eu
obriguei-te a partir assim, sem teres dormido. Ela queria que nos
fôssemos embora e, pela minha parte, desejo ansiosamente ir-me
embora. Quanto mais depressa nos separarmos, melhor será para
todos nós.
- Fizeste bem - disse Cadfael. - Quando sairmos daqui, não
precisamos de ir muito longe, em todo caso, não estás em
condições de o fazer. Mas o que precisamos de fazer é sair daqui.
Deixaram os portões da casa senhorial de Audemar de Clary a
meio da tarde, sob um céu pesado com nuvens cinzentas, e viraram
para oeste ao longo do trilho que atravessava a aldeia de Elford,
com um vento frio, insidioso, a bater-lhes nos rostos. Estava
terminado. Desse ponto em diante, a cada passo que dessem,
estavam a voltar para a normalidade e segurança, para as horas
monásticas e para a abençoada rotina diária de trabalho, culto e
oração.
Da estrada, Cadfael olhou uma vez para trás e viu os dois
palafreneiros de pé junto do portão a ver os hóspedes partir. Duas
figuras sólidas, robustas, taciturnas e inescrutáveis, a seguir a
retirada dos intrusos com olhos nortenhos claros e ferozes. A
certificarem-se, pensou Cadfael, de que o desassossego que
trouxemos à dama parte conosco e não deixa qualquer sombra
atrás de si.
Não voltaram a olhar para trás. O que era agora necessário era
colocar pelo menos uma milha segura, alienante, entre eles e a casa
da viúva de Elford, e, depois disso, podiam começar a procurar um
abrigo para passar a noite, pois era óbvio que Haluin estava
desfigurado e cinzento de exaustão e não iria longe sem correr o
perigo de desfalecer. O seu rosto estava decidido a suportar o
sofrimento, e ele avançava firme mas pesadamente nas suas
muletas, com os olhos dilatados e escuros nas órbitas fundas. Era
duvidoso que sentisse a paz que devia ter encontrado no túmulo de
Bertrade, mas talvez não fosse Bertrade quem assombrava os seus
pensamentos.
- Nunca mais a verei - disse Haluin, para Deus, para si próprio e
para o crepúsculo que caía, mais do que para Cadfael. E foi difícil
dizer se as palavras foram ditas com alívio ou com pena, como se
tivesse deixado qualquer coisa inacabada.
A primeira neve de um Março caprichoso desabou subitamente
sobre eles, caindo do céu cada vez mais baixo quando estavam a
cerca de duas milhas de Elford. O ar estava à beira do gelo, não foi
uma queda forte ou prolongada mas, enquanto durou, era espessa e
ofuscante, picando-lhes os rostos e confundindo o trilho à sua
frente. O crepúsculo prematuro fechou-se sobre eles quase
abruptamente, envolvendo-os numa escuridão sombria da qual
saíam nuvens de flocos brancos que rodopiavam à volta deles de
um modo desnorteante, cobrindo, como um véu, todos os marcos
existentes num troço de caminho descampado, varrido pelo vento e
sem árvores.
Haluin tinha começado a tropeçar, perturbado pelos flocos que lhe
invadiam os olhos e incapaz de libertar uma mão para juntar as
dobras do capuz para se proteger da agressão. Por duas vezes
colocou uma muleta ao lado do trilho e quase caiu. Cadfael parou e
deixou-se ficar perto dele, de costas para o vento, para proporcionar
ao companheiro algum tempo para respirar e abrigo durante alguns
minutos, enquanto tentava ver onde estavam e o que conseguia
recordar-se dos campos em redor, da viagem anterior. Qualquer
casa, por mais miserável que fosse, seria bem-vinda até esta
borrasca ter terminado. Algures aqui, calculou ele, tinha havido um
trilho lateral que seguia para norte e que conduzia ao que parecia
ser um aglomerado de casas pequenas e à paliçada comprida da
cerca de uma casa senhorial, o único sinal de ocupação que se
conseguia ver da estrada.
A sua memória estava correta. Seguindo cautelosamente à frente,
com Haluin a segui-lo muito de perto, chegou a um conjunto isolado
de arbustos e árvores baixas que se lembrava claramente de ter
visto nesta planície pouco arborizada e, um pouco mais adiante,
abria-se o trilho. Houve mesmo uma centelha bruxuleante de um
archote, vista intermitentemente através da queda de neve
rodopiante, para os manter no caminho em direção à habitação
distante. Quando o dono da casa mostrava uma luz a viajantes
surpreendidos pela noite era sinal de que havia uma calorosa
recepção à sua espera.
Levaram mais tempo a chegar ao povoado do que Cadfael
contara, uma vez que Haluin estava a vacilar bastante, e era
necessário caminhar muito devagar e voltar constantemente atrás
para o manter perto de si. Aqui e ali uma árvore solitária surgia
subitamente da brancura rodopiante à esquerda ou à direita,
desaparecendo de novo tão abruptamente como surgira. Os flocos
de neve tinham-se tornado maiores, os sinais de gelo estavam a
desaparecer, e a neve não persistiria no chão para além da manhã.
No alto, as nuvens eram fragmentadas e desfeitas por um vento de
intensidade crescente, e deixavam ver as estrelas dispersas.
A centelha do archote tinha desaparecido, escondida por trás da
cerca da casa senhorial. Um pilar de portão de madeira sólida surgiu
na escuridão, com uma paliçada alta à esquerda e o portão largo
aberto à direita, e subitamente, do outro lado de um pátio largo,
voltou a ver-se o archote colocado num suporte que se projectava
sob o beiral, para iluminar as escadas que iam ter à porta da casa. A
habitual incrustação de edifícios de serviço orlava a paliçada.
Cadfael deu um grito antes de entrar, e um homem saiu de uma
porta do estábulo para a neve que caía, gritando para outros
enquanto se aproximava. Ao cimo dos degraus, a porta da casa
abriu-se sobre o clarão de uma agradável lareira.
Cadfael conduziu Haluin pelo braço, aos tropeções, através do
portão aberto, e outro braço voluntário segurou-o à volta do corpo
do outro lado, içando-o vigorosamente para o abrigo relativo no
interior da paliçada. Uma voz gritou através da queda de neve: -
Irmãos, escolheram uma má noite para andar na estrada. Agora,
força, os vossos problemas chegaram ao fim. Nós nunca fechamos
os nossos portões ao vosso hábito.
Havia outros a aproximar-se para levar os viajantes dentro, um
jovem que saiu apressadamente da galeria subterrânea com um
capuz de aniagem por sobre a cabeça e ombros, e um ancião de
barba e roupão que emergiu da casa e desceu até meio das
escadas para ir ter com eles. Haluin foi içado, mais do que
conduzido pelos íngremes degraus acima, onde o dono da casa
surgiu, vindo do seu solar, para conhecer os inesperados visitantes.
Um homem claro, magro, de ossos compridos, com uma barba
curta cor palha aparada e uma espessa touca de cabelo da mesma
cor. Próximo dos quarenta anos, pensou Cadfael, com um rosto
corado, franco, em que brilhavam os olhos saxónicos azuis quase
espantosamente cintilantes, sinceros e preocupados.
- Entrem, entrem, Irmãos! Ainda bem que nos encontraram! Aqui,
traga-o para aqui, para perto do fogo. - Ele vira imediatamente os
hábitos beneditinos, os flocos de neve alojados nas dobras e agora
sacudidos, a silvar, para o fogo da lareira central da sala, os pés
aleijados do visitante mais novo, a exaustão exangue do seu rosto. -
Edgytha, manda preparar camas nos aposentos da ponta e diz a
Edwin que aqueça mais vinho.
A sua voz era forte, solícita e afectuosa. Sem pressa aparente, os
criados corriam de um lado para o outro a fazer os seus
benevolentes recados, e ele próprio instalou Haluin num banco de
encontro à parede, num local em que o calor do fogo podia alcançá-
lo.
- Este seu jovem irmão está em muito mau estado - disse o
anfitrião a Cadfael - para percorrer estradas tão longe de casa. Não
há ninguém da vossa ordem por aqui, com exceção das freiras de
Farewell, um convento fundado recentemente pelo bispo. De que
casa são?
- Da de Shrewsbury - disse Cadfael, encostando as muletas de
Haluin ao banco, para que ele pudesse pegar nelas, se quisesse.
Haluin recostou-se de olhos fechados, com a face cinzenta a ganhar
um pouco de cor com o calor e o bem-estar.
- De tão longe? Se o vosso abade tinha assuntos a tratar noutro
condado, ele não podia ter dado essa incumbência a um homem
robusto?
- Esta incumbência era do próprio Haluin - disse Cadfael. -
Ninguém mais a podia ter cumprido. Agora está terminada, e
estamos a caminho de casa; e chegaremos lá em diversas etapas.
Sempre com a ajuda de pessoas hospitaleiras como o senhor.
Posso perguntar-lhe que local é este? Conheço muito mal estes
lados.
- Eu chamo-me Cenred Vivers. O meu nome vem desta casa
senhorial. Este irmão chama-se Haluin, foi o que disse? E o irmão?
- Chamo-me Cadfael. Nasci galês e fui criado na fronteira, com
um pé de cada lado. Sou monge em Shrewsbury há mais de vinte
anos. A minha missão nesta viagem é simplesmente fazer
companhia a Haluin e certificar-me de que ele chega em segurança
ao seu destino e regressa em segurança.
- Não é tarefa fácil - concordou Cenred em voz baixa, lançando
um olhar pesaroso aos pés deformados de Haluin - no estado em
que ele está. Mas se a tarefa está cumprida e só falta o caminho de
regresso a casa, sem dúvida que o farão. Como é que ele se
magoou?
- Caiu de um telhado. Tivemos de fazer reparações nos dias
rigorosos antes do Natal. Foram as telhas que caíram atrás dele que
lhe cortaram os pés aos pedaços. Mas conseguimos mantê-lo vivo.
Falavam dele em voz baixa, um pouco afastados, embora ele
estivesse deitado tão calma e tranquilamente como se tivesse
adormecido, de olhos fechados, com as longas pestanas escuras a
lançar sombras sobre as faces encovadas. O salão esvaziara-se à
sua volta, toda a atividade se deslocara para outro lugar, e tinha a
ver com almofadas, cobertores e as tarefas hospitaleiras da cozinha.
- Estão a ser lentos com o vinho - disse Cenred - e devem estar
ambos a precisar de algo quente dentro de vós. Se me desculpar,
Irmão, vou apressar as coisas na despensa.
E ele saiu, e, à sua passagem, a lufada de vento fez estremecer
as pálpebras de Haluin. Ao fim de um momento, abriu os olhos e
olhou, aturdido, lentamente à sua volta, observando a quente
obscuridade do salão de teto alto, o brilho do fogo, os cortinados
pesados que separavam duas alcovas retiradas dos olhos do
público, a porta entreaberta do solar de que Cenred tinha emergido.
Do seu interior, via-se o brilho pálido e regular da luz das velas.
- Estive a sonhar? - perguntou Haluin, olhando em volta. - Como é
que chegámos aqui? Que lugar é este?
- Não tenhas receio - disse Cadfael -, chegaste aqui pelo teu
próprio pé, só foi preciso um braço para te ajudar a subir os degraus
até à casa. A casa senhorial chama-se Vivers, e o senhor é Cenred.
Caímos em boas mãos.
Haluin respirou profundamente.
- Eu não sou tão forte como pensava que era - disse ele com
tristeza.
- Não importa, agora podes descansar. Deixámos Elford para trás.
Estavam ambos a falar em voz baixa, um pouco intimidados pelo
silêncio que os envolvia, mesmo no centro desta populosa casa.
Quando pararam ambos de falar, a quietude parecia quase
expectante. E, no silêncio, a porta entreaberta do solar abriu-se
completamente à luz dourada das velas no seu interior, e uma
mulher surgiu na ombreira da porta. Por um instante, ela ficou
nitidamente recortada como uma sombra contra a luz suave do
interior, uma figura magra, ereta, madura e nobre nos seus
movimentos, certamente a dama da casa e mulher de Cenred. No
momento seguinte, ela tinha entrado no salão com dois ou três
passos leves e rápidos, e a luz do archote mais próximo incidiu
sobre o seu rosto na sombra e na figura que avançava em direção a
eles, fazendo surgir a forma vaga de uma pessoa muito diferente.
Tudo nela se alterou. Não era uma castelã com mais de trinta anos,
mas sim uma moça de rosto fresco, arredondado, com, no máximo,
dezessete ou dezoito anos, metade do seu rosto oval consistia em
dois olhos enormes admirados e na testa larga e alta por cima
deles, branca e macia como uma pérola.
Haluin emitiu um som estranho e suave na garganta, algo entre
uma exclamação e um suspiro, agarrou nas muletas e pôs-se de pé,
olhando para esta súbita e resplandecente aparição enquanto ela,
deparando-se abruptamente com a intromissão de desconhecidos,
recuou apressadamente, olhando para ele. Por um momento
ficaram ali, em silêncio e imóveis, depois a moça deu meia volta e
voltou a entrar no solar, fechando a porta quase furtivamente atrás
de si.
As mãos de Haluin afrouxaram a pressão sobre as muletas e
ficaram a balançar, inertes, as muletas deslizaram e caíram debaixo
dele, e ele tombou gradualmente para a frente, dobrado sobre si
mesmo, e ficou deitado, inconsciente, no chão.
Levaram-no para uma cama preparada para ele numa alcova
sossegada, retirada do salão, e deitaram-no lá, ainda sob um
desmaio profundo.
- É simples exaustão - disse Cadfael, para tranquilizar a
ansiedade solícita de Cenred. - Eu sabia que ele estava a esforçar-
se demasiado, mas tudo isso terminou. A partir de agora, podemos
levar as coisas com calma. Deixá-lo dormir esta noite e ele estará
bem. Vê, ele está a voltar a si. Está a abrir os olhos.
Haluin mexeu-se, as pestanas estremeceram antes de se abrirem
no escuro sobre olhos vivamente conscientes no seu interior, os
quais se ergueram para um círculo de rostos vagos, preocupados.
Ele tinha consciência de onde estava e sabia o que lhe tinha
acontecido antes de ter sido transportado para ali, pois as primeiras
palavras que disse foram um humilde pedido de desculpas por os
ter incomodado e um agradecimento pelos seus cuidados.
- A culpa foi minha - disse ele. - Foi presunçoso da minha parte
esforçar-me demasiado. Mas agora está tudo bem comigo. Está
tudo bem.
Uma vez que era óbvio que aquilo de que mais necessitava era
de descanso, deixaram-nos instalar-se no seu pequeno aposento,
embora a noite lhes tivesse trazido algumas visitas. O administrador
barbado trouxe-lhes vinho quente com especiarias e enviou-lhes a
velha Edgytha, que lhes levou água para lavar as mãos, comida e
uma lamparina, e lhes perguntou que mais precisavam para estarem
confortáveis.
Era uma mulher alta, magra e ativa, talvez com sessenta anos,
com o à-vontade e o ar de autoridade habitual em criados que
foram, durante muitos anos, confidentes do senhor ou da dama e
alcançaram um grau de confiança que acarreta consigo um
privilégio reconhecido. As criadas jovens tinham-lhe respeito,
embora não tivessem exatamente medo dela, e o seu elegante
vestido preto, a toca branca e as chaves a tilintar à sua cintura
testemunhavam o seu estatuto.
Mais tarde, nessa noite, ela apareceu outra vez, a acompanhar
uma dama forte e simpática, de voz suave e afável, que veio
perguntar amavelmente se os irmãos reverendos tinham tudo o que
necessitavam para passar a noite, e se o que perdera os sentidos
tinha recuperado confortavelmente do seu desmaio. A mulher de
Cenred era bonita e rosada, de cabelo e olhos castanhos, e muito
diferente da jovem alta, magra e vulnerável que saíra do solar e que
recuara, surpreendida com a inesperada aparição de
desconhecidos.
- E o senhor Cenred e sua dama têm filhos? - perguntou Cadfael
depois de a sua anfitriã se ter ido embora.
Edgytha era discreta, possessivamente protetora em relação à
sua família e a tudo o que lhe pertencia mas, após um momento de
hesitação, ela respondeu bastante delicadamente: - Eles têm um
filho, um filho crescido. - E ela acrescentou, reconsiderando
inesperadamente a sua relutância em satisfazer a curiosidade
importuna: - Ele encontra-se ausente, ao serviço do suserano do
meu senhor Cenred.
Havia um curioso laivo de reserva, até mesmo de reprovação, na
sua voz, embora ela nunca o tivesse admitido. Isso quase distraiu a
mente de Cadfael das suas próprias preocupações, mas ele insistiu
delicadamente: - E não tem filhas? Houve uma jovem que entrou por
um momento no salão enquanto estávamos à espera. Ela não é filha
da casa?
Ela lançou-lhe um olhar longo, firme e perscrutante, com as
sobrancelhas erguidas e os lábios cerrados, censurando claramente
um tal interesse em mulheres jovens, vindo de um monástico. Mas
os hóspedes da casa devem ser tratados com inquebrantável
cortesia, mesmo quando não a merecem.
- Essa dama é irmã de Lorde Cenred - disse ela. - O velho Lorde
Edric, o seu pai, casou-se pela segunda vez já em idade avançada.
Com a diferença de idades, ela é para ele mais uma filha do que
uma irmã. Duvido que voltem a vê-la. Ela não desejaria perturbar o
descanso de homens com o vosso hábito. Ela foi bem educada -
concluiu Edgytha com evidente orgulho pessoal no produto da sua
própria devoção, e um aviso claro de que monges de preto
chegados por acaso à casa deveriam manter os olhos baixos na
presença de uma jovem virgem.
- Se ela esteve a seu cargo - disse Cadfael, amavelmente -, não
duvido que honre a sua educação. Também tomou conta do filho de
Cenred?
- A minha dama não sonharia sequer em confiar o seu pintainho a
outra pessoa. - A velha animou-se com terno fervor ao pensar nas
crianças de que fora ama. - Nunca ninguém tomou conta de bebês
melhores - disse ela -, e amo-os a ambos como se fossem meus
filhos.
Quando ela se foi embora, Haluin ficou calado durante algum
tempo, mas os seus olhos estavam abertos e claros, e as linhas do
seu rosto atentas e vigilantes.
- Houve realmente uma moça a entrar aqui? - disse ele,
finalmente, franzindo a testa com o esforço de se recordar do
momento em que a sua mente se tornara nebulosa e incerta. -
Tenho estado aqui deitado a tentar recordar-me por que é que fiquei
tão sobressaltado. Lembro-me das muletas a cair, mas muito pouco
para além disso. Entrar num ambiente quente fez a minha cabeça
andar à roda.
- Sim - disse Cadfael -, houve uma moça. Ao que parece, é meia-
irmã de Cenred, mas cerca de vinte anos mais nova. Se achavas
que ela tinha sido um sonho, não, não foi sonho nenhum. Entrou no
salão vinda do solar, sem saber que aqui estávamos e não gostou
do nosso aspecto, pelo que voltou apressadamente para trás e
fechou a porta atrás de si. Recordaste disso?
Não, ele não se recordava, ou apenas se lembrava como uma
visão isolada que surge num sonho e desaparece outra vez assim
que a vemos. Ele franziu a testa a tentar ansiosamente recuperá-la
e abanou a cabeça como se estivesse a desanuviar os olhos
nublados pelo cansaço.
- Não... nada é claro. Lembro-me da porta a abrir-se. Se dizes que
ela entrou, eu acredito... mas não me recordo de nada, nem sequer
do rosto... Amanhã, talvez...
- Se aquele seu dragão dedicado tiver alguma coisa a ver com
isso - disse Cadfael -, não voltaremos a vê-la. Penso que a Edgytha
não tem uma opinião muito boa dos monges. Bem, estás pronto
para dormir? Posso apagar a lamparina?
Mas se Haluin não tinha uma recordação clara da filha da casa,
se aquele breve relance não deixara uma imagem, primeiro uma
figura escura recortada contra a luz da vela e depois iluminada pelo
brilho vermelho do archote, Cadfael ficara com uma imagem muito
nítida que se tornou ainda mais clara quando apagou a lamparina e
se deitou no escuro ao lado do seu companheiro adormecido. E,
para além da recordação, ele tinha uma sensação estranha,
inquieta, de que ela tinha um significado especial para ele se, ao
menos, ele conseguisse descobrir exatamente qual. O motivo dessa
sensação era para ele um mistério. Acordado no escuro, invocou os
traços do seu rosto, os movimentos do seu corpo quando ela entrou
na luz, e não conseguiu encontrar nada que devesse ser
significativo para ele, nenhuma parecença com qualquer mulher que
tivesse visto antes, exceto na medida em que todas as mulheres
são irmãs. No entanto, a sensação de fugidia familiaridade a
respeito dela persistia.
Uma moça alta, embora não tão alta como dava a impressão de
ser, pois a sua magreza contribuía para essa imagem, mas com
uma altura acima da média para uma moça em vias de se tornar
mulher. A sua postura era ereta e graciosa, mas ainda com a
agilidade tentativa e vulnerável de uma criança, a brusquidão de um
carneiro ou fauno, atento a todos os sons e movimentos.
Sobressaltada, ela afastara-se rapidamente deles e, no entanto,
tinha fechado a porta com uma suavidade contida, para não os
sobressaltar. E quanto ao seu rosto - ela não era bela, exceto na
medida em que a juventude, a inocência e a elegância são sempre
belas. Tinha um rosto oval, que se afunilava desde a testa larga e
dos olhos grandes e bem afastados até ao queixo redondo e firme.
A cabeça estava descoberta, com o cabelo puxado para trás e
entrançado, o que acentuava ainda mais a testa branca alta e os
olhos enormes sob as suas sobrancelhas escuras e pestanas
compridas. Os olhos consumiam metade do rosto. Não eram de um
castanho-puro, pensou Cadfael, pois, apesar de serem escuros,
tinham uma claridade, uma profundidade e uma resplandecência
que eram perceptíveis até mesmo quando vista apenas de relance.
Eram mais cor de avelã-escura com laivos de verde, e tão límpidos
e profundos que parecia possível uma pessoa mergulhar neles e
afundar-se. Olhos totalmente francos e vulneráveis e
completamente intrépidos. Os animais jovens, selvagens e
corajosos dos bosques que ainda não foram perseguidos ou feridos
podem ter um olhar assim. E as linhas puras e finas das maçãs do
rosto de que Cadfael se recordava, elegantes e fortes, eram, depois
dos olhos, a sua principal característica distintiva.
E em tudo aquilo, claramente definido no olho da mente, o que
seria que o estava a perturbar, a penetrá-lo com a memória fugidia
de uma outra mulher? Ele deu consigo a invocar, um a um, os rostos
de mulheres que tinha conhecido, metade da população de uma
vida longa e variada, para o caso de um qualquer molde de traços,
porte da cabeça ou gesto de mão lhe fizesse lembrar algo que
tivesse significado para ele. Mas não havia qualquer semelhança,
nem qualquer eco. A irmã de Cenred permanecia única e à parte,
perseguindo-o apenas porque tinha aparecido e desaparecido num
momento, e, provavelmente, ele nunca mais voltaria a vê-la.
Mesmo assim, a última visão fugidia no interior das suas
pálpebras, quando adormeceu, foi do rosto espantado dela.
De manhã, o ar tinha perdido a sua ferroada gélida e a maior
parte da neve que caíra já tinha derretido e desaparecido, deixando
os seus cordões esfarrapados ao longo da base de todos os muros
e debaixo dos troncos de todas as árvores. Cadfael olhou para fora
da porta do salão e sentiu-se inclinado a desejar que a neve
continuasse a cair para impedir Haluin de insistir em fazer-se de
novo imediatamente à estrada. Afinal, não havia necessidade de se
ter preocupado, pois, assim que a casa senhorial ficou a pé e
ocupada com as suas tarefas cotidianas, o administrador de Cenred
veio à procura deles, com o pedido de que fossem ter com o seu
senhor ao solar assim que quebrassem o jejum, pois ele tinha algo a
pedir-lhes.
Cenred estava sozinho quando eles entraram, com as muletas de
Haluin a provocarem um som oco nas tábuas do chão. A sala era
iluminada por duas janelas fundas e estreitas nas quais estavam
encaixados bancos almofadados, e mobilada com belas arcas ao
longo de uma parede, uma mesa lavrada e uma principesca cadeira
para uso do dono da casa. Era evidente que a dama Emma geria
uma casa bem ordenada, pois os cortinados e as almofadas eram
de um fino bordado, e a armação de tapeçaria que estava a um
canto, com a sua teia de cores vivas meio terminada, mostrava que
era tudo fabricado em casa.
- Espero que tenham dormido bem, Irmãos - disse Cenred,
levantando-se para os cumprimentar. - Já recuperou da indisposição
de ontem à noite? Se houver alguma coisa que a minha casa não
vos ofereceu, só têm que pedir. Utilizem-na como se fosse vossa. E
espero que consintam em ficar mais um ou dois dias antes de
prosseguirem viagem.
Cadfael partilhou a esperança, mas teve receio de que Haluin
despertasse a sua consciência demasiado ansiosa e levantasse
objecções. Mas ele não teve tempo de fazer mais nada a não ser
abrir a boca, porque Cenred prosseguiu imediatamente: - Porque eu
tenho algo a pedir-vos... Algum de vós é um padre ordenado?
CAPíTULO 7

- Sim - disse Haluin, após um momento de silêncio. - Eu sou


padre. Estudei para as ordens menores assim que entrei para o
mosteiro, e tornei-me padre quando fiz trinta anos. Os que entram
jovens e já são letrados são encorajados a fazê-lo. Como padre, o
que devo fazer para o servir?
- Eu quero que celebre um casamento - disse Cenred. Desta vez,
o silêncio foi mais longo, e a sua concentração nele mais
desconfiada e pensativa. Pois se estava previsto um casamento
naquela casa, certamente que já teriam falado com um padre,
alguém que conhecesse as circunstâncias e as partes, não um
beneditino surgido por acaso, surpreendido por uma queda de neve.
Cenred viu as suas dúvidas refletidas no rosto atento de Haluin.
- Sei o que dirão. Que esta deve ser seguramente uma questão
para o padre da minha paróquia. Não há igreja aqui em Vivers,
embora tencione construir e dotar uma em breve. E acontece que a
nossa igreja paroquial mais próxima está neste momento sem
padre, até o bispo decidir nomear alguém, pois é ele que atribui o
benefício. Eu tencionava mandar chamar um primo da nossa casa
que já foi ordenado mas, se estiverem dispostos a celebrar o
casamento, podemos poupar-lhe uma viagem no meio do Inverno.
Prometo-vos que não há nada de ilícito nesta questão e, se ela foi
decidida um tanto apressadamente, existem razões válidas para
isso. Sentem-se aqui comigo, pelo menos, que eu vos direi tudo o
que precisam de saber, e então farão o vosso juízo.
Com a veemência impulsiva e generosa que parecia natural nele,
deu alguns passos em frente para apoiar Haluin pelo antebraço
enquanto este se baixava para se sentar no banco almofadado
situado de encontro à parede almofadada. Cadfael sentou-se ao
lado do amigo, contentando-se em observar e escutar, uma vez que
não era padre, e aqui ele não teria uma decisão difícil a tomar e, por
causa de Haluin, sentia-se grato pela demora.
- O meu pai já era velho - disse Cenred, indo direto ao assunto -
quando se casou pela segunda vez com uma mulher trinta anos
mais nova do que ele. Quando a minha irmã Helisende nasceu, eu
já estava casado e tinha um filho com um ano. As duas crianças, o
rapaz e a moça, cresceram juntos nesta casa como irmãos e foram
sempre muito amigos. E nós, os mais velhos, ficamos muito
satisfeitos por eles terem a companhia um do outro. Grande parte
da culpa foi minha. Não reparei quando eles começaram a ser mais
do que companheiros de folguedos. Nunca pensei que a
camaradagem e o afeto infantis podiam, ao fim de alguns anos,
transformar-se em algo muito mais perigoso. Eu não fecho os olhos
aos fatos, Irmãos, depois de os ter visto e de ter sido forçado a vê-
los. Aqueles dois foram deixados a brincar sozinhos durante
demasiado tempo e com demasiado carinho. Eles deslizaram para
um afeto desmedido, mesmo debaixo do meu próprio nariz, e eu
estive cego até ser quase demasiado tarde. Eles amam-se de uma
forma e com uma intensidade que é anátema entre dois familiares
tão próximos. Graças a Deus que eles não cometeram nenhum
pecado da carne, ainda não. Eu espero ter acordado a tempo. Deus
sabe que desejo tudo o que há de melhor para ambos, quero que
eles sejam felizes, mas que felicidade pode existir num amor que é
uma abominação? É muito melhor separá-los agora e confiar no
tempo para lhes atenuar a dor. Eu mandei o meu filho fazer a sua
aprendizagem das armas com o meu suserano, que é um bom
amigo e conhece o motivo e a necessidade. E embora se sinta
magoado por ter sido banido deste modo, o meu filho jurou não
regressar antes de eu lhe dar autorização. Agi corretamente?
- Eu penso - disse Haluin lentamente - que não podia ter feito
outra coisa. Mas é uma pena que o afeto deles tenha ido tão longe
sem ser controlado.
- Pois é. Mas quando duas crianças crescem juntas desde bebês
como irmãos, isso em si é suficientemente comum para afastar
todos os pensamentos de afeto que conduza a um casamento. Às
vezes, pergunto a mim próprio quanto é que a Edgytha viu o que eu
não vi. Ela fez-lhes sempre todas as vontades. Mas nunca, nunca
me disse nada a mim nem à minha mulher e, quer tenha feito bem
ou não, eu tenho de continuar.
- Diga-me uma coisa - disse Cadfael, falando pela primeira vez -,
o seu filho não se chama Roscelin?
Os olhos de Cenred voltaram-se, brilhantes, para o rosto de
Cadfael, numa expressão de espanto.
- Chama, sim. Mas como é que sabe?
- E o seu suserano é Audemar de Clary. Nós viemos diretamente
de Elford, conversámos com o seu filho lá, ele apoiou o Irmão Haluin
com o seu braço forte, quando este precisou.
- Falaram com ele! E o que disse o meu filho em Elford? O que
disse ele de mim? - Ele estava atento e pronto para ouvir palavras
amargas de queixa e alienação, e para engolir a dor, se necessário.
- Muito pouco, e certamente nada que o senhor não pudesse ouvir
com uma mente tranquila. Nem uma palavra sobre a sua irmã. Ele
mencionou que tinha saído de casa porque o seu pai assim o
desejou e que não podia recusar a obediência que lhe é devida. Só
conversámos com ele durante alguns minutos, por puro acaso. Mas
eu não vi nada que não seja motivo de satisfação e orgulho para si.
Pense só que ele está apenas a cerca de três milhas de distância,
mas mantém a sua palavra. Só há uma coisa que me lembro de ele
dizer - prosseguiu Cadfael, com o propósito súbito de sondar o
terreno -, que talvez, como pai, tenha o direito de saber. Ele
perguntou-nos muito solenemente se a nossa ordem poderia
proporcionar uma vida meritória para um homem... se a vida que ele
mais desejasse lhe fosse proibida.
- Não - exclamou Cenred num vigoroso protesto. - Isso não! Eu
não permitiria, por nada neste mundo, que ele voltasse as costas às
armas e à fama para se esconder num mosteiro. Ele não é feito para
isso! Um jovem tão promissor! Irmão, isso só vem confirmar a
justeza do que vos estou a pedir. O que tem que ser feito não pode
ser adiado. Uma vez feito, ele irá aceitar a situação. Enquanto a
perda não for final, ele continuará a ter esperança e a perseguir o
impossível. É por isso que eu quero que ela esteja casada, casada e
fora desta casa, antes de Roscelin voltar a entrar nela..
- Eu compreendo muito bem os seus motivos - disse Haluin,
abrindo muito os seus olhos encovados -, mas não seria correto
fazer deles as razões para um casamento se a dama não estiver de
acordo. Por mais difícil que seja o seu dilema, não pode sacrificar
um para preservar o outro.
- Está enganado - disse Cenred sem veemência. - Eu amo a
minha jovem irmã, já falei com ela aberta e claramente. Ela sabe,
ela reconhece a enormidade do que os ameaça a ambos, a
impossibilidade de esse amor alguma vez dar frutos. Ela quer esse
terrível nó desfeito tanto quanto eu. Ela quer uma carreira honrosa
para Roscelin porque o ama e, em vez de ver essa carreira
manchada por causa dela, concorda em procurar refúgio no
casamento com outro homem. Esta não foi uma rendição forçada. E
também não foi uma escolha leviana. Eu fiz o melhor que consegui
fazer por ela, é um casamento que agradaria a qualquer família.
Jean de Perronet é um jovem bem dotado, com uma boa posição e
uma boa herança. Helisende já o conhece e gosta dele, se bem não
possa amá-lo ainda. Isso poderá vir mais tarde, pois ele sente uma
grande atração por ela. Ela concordou plenamente com o
casamento. E De Perronet tem uma vantagem inestimável -
acrescentou ele num tom sombrio -, a sua casa fica distante. Ele
levá-la-á para Buckingham, para longe da vista de Roscelin. Longe
da vista, eu não diria longe do coração mas, pelo menos, os traços
de um rosto recordado podem desvanecer-se gradualmente ao
longo dos anos, à medida que até mesmo as feridas mais profundas
forem sarando.
Ele tornou-se eloquente devido à sua própria inquietação e
angústia, um homem bom preocupado com os melhores interesses
de toda a sua família. Ele não reparara, como acontecera com
Cadfael, na palidez cada vez mais acentuada do rosto magro de
Haluin, na linha cerrada e dolorosa dos seus lábios, ou na forma
como as mãos unidas agarravam a aba do hábito até se verem os
ossos brancos através da carne. As palavras que Cenred não
escolhera deliberadamente para magoar ou comover tinham a sua
própria força inspirada para reabrir a ferida antiga que ele viera tão
longe para tentar sarar. Os traços de um rosto recordado,
seguramente um tanto obscurecidos ao fim de dezoito anos, tinham
readquirido vida para ele. E as feridas que nunca cessaram de se
inflamar no interior não podem sarar antes de serem de novo
abertas e limpas, se necessário através do fogo.
- E não precisam de se preocupar, que eu também não me
preocupo - disse Cenred - com a possibilidade de ela não ser
tratada com carinho e grande consideração por De Perronet. Ele
pediu a mão dela há dois anos e, embora ela na altura não o
quisesse nem a qualquer outro pretendente, ele esperou.
- A sua dama está de acordo? - perguntou Cadfael.
- Conversámos os três sobre o assunto. E estamos todos de
acordo. Vai celebrar o casamento? Eu consideraria o fato de um
padre aparecer à minha porta na véspera da chegada do noivo sem
ter sido chamado uma espécie de bênção ao que nós pretendemos -
disse Cenred com simplicidade. - Fique até amanhã, Irmão, padre, e
case-os.
Haluin separou lentamente as mãos contorcidas e inspirou como
um homem a acordar em dor. Ele disse em voz baixa: - Eu fico. E
casá-los-ei.
- Espero ter agido bem - disse Haluin quando estavam de volta
aos seus próprios aposentos. Mas não parecia que ele estivesse a
pedir uma confirmação da sua decisão, mas sim a coloaqui-la bem
perante os seus próprios olhos como uma responsabilidade a que
não tinha qualquer intenção de se esquivar nem de partilhar. - Eu
conheço perfeitamente bem - disse ele -, os perigos da proximidade,
e o caso deles é mais desesperado do que o meu alguma vez foi.
Cadfael, eu dou por mim a ouvir os ecos que julguei terem morrido
há muito tempo. Tudo tem uma finalidade. Não há nada que não
tenha uma finalidade. E se a minha queda se deu apenas para eu
poder tomar consciência de como já tinha caído tanto, e para ser
obrigado a tentar erguer-me de novo? E se eu renasci de novo
aleijado para me ver forçado a efetuar as viagens do corpo e do
espírito que temi quando era novo e são? E se Deus me meteu na
cabeça a ideia de fazer a peregrinação para me tornar um milagre
de outra alma necessitada? Será que fomos trazidos a este local?
- Conduzidos, acho eu - disse Cadfael num tom prático,
lembrando-se da neve que os cegava e da pequena faísca do
archote a chamá-los no escuro.
- É verdade, chegar na véspera da chegada do noivo demonstrou
um bom sentido de oportunidade. A única coisa que eu posso fazer
é assumir o fardo - disse Haluin - e esperar ser conduzido no
caminho certo. Estes segundos casamentos na velhice, Cadfael,
são responsáveis por lamentáveis embrulhadas. Como é que dois
bebês que brincam juntos no chão sabem que são tia e sobrinho e,
por conseguinte, fruto proibido? É uma pena o amor ser
desperdiçado sem qualquer finalidade.
- Eu não tenho tanta certeza - disse Cadfael - de que o amor seja
alguma vez desperdiçado sem qualquer finalidade. Bem, pelo
menos agora podes ficar sossegado a descansar durante um dia ou
mais, o que te fará muito bem. Isso, de qualquer modo, vem numa
boa altura.
E essa era claramente a melhor utilização que Haluin poderia
fazer da sua paragem no caminho de regresso, uma vez que já se
testara a si próprio até muito perto do seu limite de resistência.
Cadfael deixou-o em paz e foi dar uma volta, à luz do dia, pela casa
senhorial de Vivers. Estava um dia nublado com um vento
intermitente, o ar estava livre de gelo e havia aguaceiros ocasionais,
mas nenhum deles durava muito tempo.
Ele percorreu a largura do enclave até ao portão, para ver toda a
extensão da casa. Havia janelas no teto íngreme por cima do solar,
provavelmente haveria dois quartos retirados. Haluin e o seu
companheiro tinham sido alojados atenciosamente no piso
normalmente habitado. Sem dúvida que, nesse momento, um dos
aposentos superiores estava a ser preparado para o noivo
esperado. A azáfama cotidiana no pátio parecia decorrer sem
pressas nem confusão; as coisas estavam bem ordenadas aqui.
Para além da paliçada, a paisagem suave, ondulante, estendia-se
ao longo de campos, bosques e colinas esparsamente arborizadas,
todos os verdes estavam ainda descolorados e secos de Inverno,
mas os ramos pretos mostravam aqui e ali os primeiros nódulos dos
botões da Primavera. Tênues folhos de neve orlavam todos os
locais côncavos e abrigados, mas o brilho do sol estava a atravessar
as nuvens baixas e, ao meio-dia, todos os restos da queda de neve
da noite anterior teriam desaparecido.
Cadfael espreitou os estábulos e as cavalariças e viu que
estavam bem fornecidos e briosamente tratados por criados sempre
dispostos a mostrá-los a um visitante interessado. No canil, numa
baia separada, estava uma cadela deitada em cima de palha limpa
com seis cachorrinhos à sua volta, talvez com cinco semanas. Ele
não resistiu a entrar no compartimento escuro para pegar num dos
cachorrinhos, e a cadela foi complacente e acolheu bem a
admiração da sua ninhada. O calor macio do pequeno corpo nos
seus braços tinha um cheiro semelhante a pão fresco. Ele estava a
baixar-se para colocar o cachorrinho de novo no meio dos seus
irmãos quando ouviu, atrás de si, uma voz calma e clara: - O Irmão
é o padre que me vai casar?
E ali estava ela na ombreira da porta, de novo uma forma sombria
contra a luz, tão serena, tão segura, que poderia ser facilmente
tomada por uma mulher madura e majestosa de trinta anos, embora
a voz fresca e leve pertencesse à sua idade.
A moça Helisende Vivers ainda não estava ataviada para receber
o seu noivo e vestia um vestido simples de dona de casa, de lã azul-
escura, e trazia na mão um balde suavemente fumegante de carne
e farinha para os cães.
- O Irmão é o padre que me vai casar?
- Não - disse Cadfael, deixando a cadela e a sua irrequieta
ninhada e pondo-se lentamente de pé. - É o Irmão Haluin. Eu nunca
estudei para poder tomar ordens. Conheço-me bem a mim próprio.
- Então, é o homem aleijado - disse ela com uma compaixão
distante. - Lamento muito que ele sofra tais agruras. Espero que o
tenham tornado confortável, aqui na nossa casa. O Irmão sabe do
meu casamento... que Jean chega aqui hoje?
- O seu irmão disse-nos - disse Cadfael, observando os traços do
seu rosto oval a emergir suavemente da sombra, com todas as
linhas melancólicas e cândidas a testemunharem a sua juventude. -
Mas há coisas que ele não nos pôde contar - disse ele, observando-
a atentamente - a não ser por ter ouvido dizer. Só a Helisende nos
pode dizer se este casamento tem o seu consentimento, dado de
livre vontade ou não.
O breve silêncio dela sugeriu, mais do que hesitação, uma
observação atenta do homem que levantara a questão. Os seus
olhos grandes, intrepidamente honestos, acariciavam e penetravam,
sem medo de ser também penetrados. Se o considerasse tão
estranho às suas necessidades e problemas que fosse inaceitável,
ela teria posto termo ao encontro logo ali, delicadamente, mas sem
satisfazer o que teria sido, então, mera curiosidade da parte dele.
Mas ela não o fez.
- Se, depois de crescidos, fazemos alguma coisa de livre vontade
- disse ela -, então, sim, eu faço isto de livre vontade. Há regras que
têm de ser observadas. Partilhamos o mundo com outras pessoas
que têm direitos e necessidades e estamos todos vinculados. Pode
dizer ao Irmão Haluin... suponho que devia chamar-lhe padre
Haluin... que não precisa de estar preocupado comigo. Eu sei o que
estou a fazer. Ninguém me está a obrigar.
- Eu dir-lhe-ei - disse Cadfael. - Mas penso que o faz pelos outros
e não por si própria.
- Então, diga-lhe que eu decido... livremente... fazê-lo pelos
outros.
- E a respeito de Jean de Perronet? - disse Cadfael. Por um
instante, os seus lábios, firmes e cheios, tremeram.
Essa era a única coisa que ainda perturbava a sua compostura
resoluta, o fato de não estar a ser justa para com o homem que ia
ser seu marido. Cenred certamente que não o teria informado que
ele estava a obter apenas um triste resíduo, depois de o coração ter
desaparecido. E ela também não lho podia dizer. O segredo
pertencia apenas à família. A única esperança para este
desafortunado par era que o amor viesse com o tempo, um tipo de
amor, melhor, talvez, do que muitos casamentos alguma vez
atingem, mas, mesmo assim, longe do ideal.
- Vou tentar - disse ela com firmeza - dar-lhe tudo o que ele pede,
tudo o que ele quer e de que está à espera. Ele merece o melhor e
vai ter o melhor que eu conseguir dar-lhe.
Não havia necessidade de lhe dizer que talvez não fosse
suficiente, ela já o sabia e sentia-se inquieta quanto à dimensão do
logro a que não conseguia escapar. Talvez até fosse possível que o
que já fora dito na obscuridade do canil tivesse reaberto um
profundo abismo de dúvida que ela quase conseguira vedar. Era
melhor deixar as coisas tal como estavam, uma vez que não havia
possibilidade de tornar mais leve o fardo que ela carregava.
- Bem, rezarei para que seja abençoada em tudo o que fizer -
disse Cadfael, afastando-se para sair do caminho dela. A cadela
tinha-se afastado dos seus cachorrinhos e estava a cheirar o balde,
abanando a cauda numa expressão de esfomeada expectativa. A
rotina diária prossegue através de nascimentos, casamentos,
mortes e festivais. Quando olhou para trás, da ombreira da porta, a
moça Helisende estava inclinada a encher o comedouro da cadela,
com a pesada trança de cabelo escuro a balançar no meio da
ninhada. Ela não ergueu a vista, mas, apesar disso, ele teve a
sensação de que ela teve a profunda e vulnerável percepção da sua
presença, até ele dar meia volta e se afastar suavemente.
- Vai ter saudades da sua filha de leite - perguntou Cadfael
quando Edgytha foi servir-lhes comida e bebida ao meio-dia. - Ou
vai com ela para o sul quando ela se casar?
A mulher idosa hesitou, taciturna por natureza mas necessitando
visivelmente de aliviar um coração que não estava absolutamente
nada reconciliado com a ideia de perder a sua menina. Dentro das
dobras rígidas da touca, as suas faces murchas tremeram.
- O que ia eu fazer, com a minha idade, num local estranho? Sou
demasiado velha para servir de muito agora, por isso ficarei aqui.
Pelo menos, sei como são as coisas por aqui e toda a gente me
conhece. Que respeito obteria eu numa casa estranha? Mas ela irá,
eu sei. Ela irá, suponho, tal como deve ir. E o jovem é bastante
bom... se o meu cordeiro não tivesse outro nos seus olhos e no seu
coração.
- E colocado tão fora do seu alcance - recordou-lhe Haluin,
suavemente, mas o seu próprio rosto estava pálido e, quando ela se
virou para olhar para ele em silêncio durante um longo momento, ele
desviou os olhos e virou a cabeça.
Os olhos dela eram de um azul-pálido, desmaiado. Outrora,
sombreados por pestanas que agora eram finas e escassas, eles
talvez se assemelhassem mais à cor de pervincas.
- Então, o meu senhor contou-vos - disse ela. - É o que todos
dizem. E se não puder ser evitado, ela podia sair-se pior. Eu sei! Eu
vim para aqui ao serviço da mãe dela, há todos aqueles anos, e
aquele também não foi um casamento de amor, com ela tão jovem e
ele quase com o triplo da idade dela. Ele era um homem bom e
generoso, mas velho, velho! Ela precisava muito, pobre senhora, de
alguém da sua própria casa, alguém que conhecesse bem e em
quem pudesse confiar. Pelo menos, eles vão casar a minha menina
com um rapaz novo.
Cadfael fez a pergunta que há algum tempo estava a preocupar-
lhe a mente, pois não fora dita uma única palavra sobre o assunto: -
A mãe de Helisende morreu?
- Não, não morreu. Mas tomou o véu em Polesworth há cerca de
oito anos, depois de o velho senhor ter morrido. Entrou para a vossa
ordem, é uma freira beneditina. Teve sempre uma inclinação por
esta ordem e, quando o marido morreu e começaram a falar nela e
a negociar, como sucede com as damas viúvas, e a insistir para que
se voltasse a casar, preferiu abandonar o mundo. É uma forma de
fuga - disse Edgytha, cerrando carrancudamente os lábios.
- E deixou a filha sem mãe? - perguntou Haluin, num tom que
exprimia mais censura do que tencionara.
- Ela deixou a filha muito bem entregue! Deixou-a com a dama
Emma e comigo! - Edgytha enfureceu-se lentamente por um
momento e reprimiu o breve fogo no interior das pestanas baixas. -
Aquela criança teve três mães, e todas elas afetuosas. A minha
senhora Emma nunca conseguiu ser dura para com qualquer coisa
pequena. Demasiado branda, na realidade, aqueles dois faziam o
que queriam dela. Mas a minha verdadeira dama era dada à solidão
e à melancolia e, perante a possibilidade de um novo casamento,
não, ela recusou-se e preferiu tomar o véu a voltar a casar-se.
- Helisende nunca pensou em procurar esse refúgio? - perguntou
Cadfael.
- Ela não, Deus não permita que alguma vez o faça! A minha
menina nunca pensou nisso. Para os que o fazem de livre vontade
pode ser a felicidade mas, para os que são pressionados a fazê-lo,
deve ser o inferno na terra! Perdoem-me a expressão, Irmãos! Os
Irmãos conhecem melhor a vossa própria vocação, e sem dúvida
que tomaram o hábito pelas melhores razões, mas Helisende... Não,
eu não gostaria disso para ela. Se tem que haver uma segunda
escolha, é muito melhor que seja este rapaz Perronet. - Ela
começou a recolher as bandejas e os pratos que eles tinham
esvaziado e pegou no jarro para voltar a encher as canecas. - Ouvi
dizer que tinham estado em Elford e que viram o Roscelin lá. É
verdade?
- É, sim - disse Cadfael -, saímos de Elford ontem. Tivemos, por
acaso, uma breve conversa com o jovem, mas só esta manhã é que
soubemos que ele era oriundo da casa senhorial de Vivers.
- E como estava ele? - perguntou ela, ansiosamente. - Está bem?
Estava com o espírito em baixo? Há um mês ou mais que não o
vejo, e sei como ele aceitou mal ser enviado para longe da sua
própria casa como um pajem que tivesse cometido uma ofensa,
quando ele não fez nada de mal, nem pensou nada de mal. É o
melhor rapaz que se pode imaginar! O que disse ele?
- De qualquer modo, ele estava de excelente saúde - disse
Cadfael, cautelosamente - e muito bem disposto, tendo em
consideração tudo o resto. É verdade que se queixou de ter sido
banido e estava pouco satisfeito de estar onde estava. Naturalmente
que falou pouco a respeito das circunstâncias, uma vez que éramos
visitantes ocasionais que não conhecia, mas não creio que ele
tivesse dito mais a qualquer pessoa que estivesse de algum modo
relacionada com o assunto. Mas ele disse que tinha dado a sua
palavra de que cumpriria as ordens do pai e que aguardaria que lhe
fosse dada autorização para voltar para casa.
- Mas ele não sabe - disse ela, entre a ira e a impotência - o que
está a ser planejado aqui. Ele só terá autorização para voltar assim
que Helisende tiver saído da casa e partido para sul, a caminho da
casa senhorial daquele jovem. E que regresso a casa será para o
pobre rapaz! É uma vergonha fazer as coisas nas suas costas!
- Eles acham que é melhor assim - disse Haluin, pálido e
comovido. - Até mesmo no melhor interesse dele, pensam eles. E
este problema é difícil até mesmo para eles. Se estão errados em
esconder este casamento dele até estar consumado, certamente
que poderão ser perdoados.
- Há os que - disse Edgytha num tom lúgubre - nunca o serão. -
Ela pegou na bandeja de madeira e as chaves que trazia à cintura
tilintaram ligeiramente enquanto se dirigia à porta. - Gostaria que
isto tivesse sido feito com honestidade. Gostaria que ele fosse
informado. Quer pudesse tê-la quer não, ele tinha o direito de saber
e de lhe dar a sua bênção ou de condenar o casamento. Como é
que o contactaram, para saberem metade do seu nome e não o
nome todo?
- Foi a dama que referiu o seu nome - disse Cadfael - quando De
Clary chegou a casa, depois de um passeio a cavalo, o jovem
estava com ele. Roscelin, chamou-lhe ela. Foi mais tarde que
falámos com ele. Ele viu que o meu amigo estava dolorido depois de
ter passado a noite de joelhos e veio oferecer-lhe o braço para ele
se apoiar.
- É exatamente o que ele faria! - disse ela, num tom mais
caloroso. - A alguém que visse em dificuldades. A dama, disse? A
dama de Audemar?
- Não, a nossa incumbência não era junto dele, nós nunca vimos
a sua mulher nem os filhos. Não, foi a mãe dele, Adelais de Clary.
Os pratos balançaram momentaneamente na bandeja de
Edgytha. Ela equilibrou-a com cuidado numa mão e estendeu a
outra para a fechadura da porta.
- Ela está lá? Lá em Elford?
- Está. Ou estava, quando nos viemos embora, ontem, e com a
neve a cair tão pouco tempo depois, seguramente que ainda está.
- Ela raramente o visita - disse Edgytha, encolhendo os ombros. -
Ela e a mulher do irmão não se dão muito bem. O que também não
é muito invulgar. Suponho que estão melhor longe uma da outra. -
Ela abriu a porta habilmente com um cotovelo e rodou a enorme
bandeja de modo a que esta passasse de lado pela porta. - Ouviram
os cavalos lá fora? Deve ser Jean de Perronet e o seu grupo a
chegar.
Certamente que não havia nada de clandestino ou secreto na
chegada de Jean de Perronet, embora também não houvesse nada
de cerimonioso ou ostentoso. Ele chegou com um criado pessoal,
dois cavalariços, dois cavalos para a noiva e para a sua aia, e
burros de carga para a bagagem. Todo o séquito era prático e
eficiente, e o próprio De Perronet tinha uma aparência muito
simples, sem floreios no traje nem nos modos, embora Cadfael
reparasse, com apreço, na qualidade dos seus cavalos e dos
arreios. Este jovem sabia onde gastar o seu dinheiro e onde poupar.
Haluin e Cadfael saíram juntos para ver os hóspedes desmontar e
descarregar a bagagem. O ar da tarde estava a clarear, anunciando
a geada noturna, mas havia nuvens varridas pelo vento na camada
de ar superior, e era possível que houvesse pequenas rajadas de
neve a meio da noite. Os viajantes ficariam muito satisfeitos por
estarem sob um bom teto, protegidos do vento gélido.
De Perronet desmontou do seu cavalo ruano em frente da porta
do solar, e Cenred desceu os degraus para ir ao seu encontro,
abraçando-o e conduzindo-o pela mão até à porta, onde a dama
Emma aguardava para lhe dar as boas-vindas com idêntico calor.
Helisende, reparou Cadfael, não apareceu. Ao jantar, na mesa alta,
ela não teria outra opção a não ser estar presente, mas, nesta
altura, era apropriado que as honras da casa fossem feitas pelo seu
irmão e pela mulher deste, os guardiães da sua pessoa e decisores
do seu casamento. O anfitrião, a anfitriã e o hóspede
desapareceram no interior do grande salão. Os criados de Cenred e
os cavalariços de De Perronet descarregaram a bagagem e
colocaram os cavalos no estábulo, tendo-o feito com tanta eficiência
que, ao fim de alguns minutos, o pátio estava vazio.
Então, aquele era o noivo! Cadfael ficou a refletir sobre o que vira
e, até agora, não conseguia encontrar qualquer falta, exceto no fato
de ser, como Edgytha dissera, uma segunda escolha. E uma
segunda escolha era tudo o que aquele rapaz teria. Um jovem, de
talvez vinte cinco ou vinte seis anos, que, pelo seu porte, já estava
habituado à autoridade e à responsabilidade, e era bem capaz de
lidar com elas. Os seus homens, pelo menos estes favoritos,
sentiam-se à-vontade com ele. Conhecia as suas obrigações, tal
como eles conheciam as deles, e havia um ar de responsabilidade
mútua entre eles. Além disso, era um jovem bem-parecido, alto e
elegante, com um rosto franco e amável, e, pelo seu aspecto,
estava extremamente feliz na véspera do seu casamento. Cenred
tinha conseguido o melhor partido possível para a sua jovem irmã, e
o seu melhor prometia vir a ser muito bom. Era uma pena não poder
ter sido o que o coração dela desejava. - Mas que outra coisa
poderia ele ter feito? - disse Haluin, manifestando, em poucas
palavras, a profundidade do seu próprio desalento e das suas
dúvidas.

CAPÍTULO 8

No fim da tarde, Cenred mandou o seu administrador perguntar


aos dois irmãos beneditinos se se sentiam capazes de jantar com a
sua família no salão, ou se o padre Haluin preferia continuar a
descansar e ser servido nos seus aposentos. Haluin, que se tinha
recolhido numa meditação sombria, introspectiva, preferiria
certamente ter permanecido isolado, mas achou que seria descortês
da sua parte ausentar-se por mais tempo, e fez um esforço para
emergir do seu silêncio ansioso e comparecer na mesa alta. Devido
à sua função como padre que os iria casar, tinha-lhe sido dado um
lugar próximo do casal de noivos. Cadfael, sentado um pouco à
parte, tinha-os todos dentro do seu campo de visão. E lá em baixo,
no centro do salão, sob o brilho dos archotes, todos os membros da
casa estavam reunidos de acordo com o seu estatuto social.
Ocorreu a Cadfael, ao observar o rosto grave de Haluin, que esta
seria a primeira vez que o seu amigo tinha sido chamado a servir de
intermediário de Deus. Era verdade que hoje em dia, mais do que
no passado, os irmãos jovens eram encorajados a aspirar às
ordens, mas muitos seriam, como sucedia com Haluin, padres sem
tarefas pastorais que, ao longo de uma longa vida, nunca
celebrariam batizados, casamentos ou funerais, nunca ordenariam
outros que os seguissem nos mesmos trilhos resguardados. É uma
terrível responsabilidade - pensou Cadfael, que nunca aspirara à
ordenação - ter a graça de Deus confiada às mãos de um homem,
ter o privilégio e o fardo de desempenhar um papel na vida de
outras pessoas, prometer-lhes a salvação no batismo, unir as suas
vidas no matrimônio, deter a chave do purgatório na hora da partida.
Se eu interferi, pensou ele com devoção, e Deus sabe que o fiz,
quando foi necessário e não havia um homem melhor para o fazer,
pelo menos interferi apenas como um pecador como os outros,
percorrendo a mesma estrada, e não como emissário do céu,
baixando-se para elevar. Agora, Haluin enfrenta esta mesma
exigência terrível, e não admira que tenha medo.
Ele olhou ao longo da série de rostos que Haluin, estando tão
próximo deles, só conseguia ver como perfis sobrepostos, cada um
deles vislumbrado por um breve momento à medida que a
ondulação do movimento fluía ao longo da mesa alta, e
enganosamente iluminado pelo brilho cada vez mais fraco dos
archotes. O rosto largo, franco de Cenred, de traços rudes, um
pouco franzido e tenso, mas resolutamente jovial, a sua mulher a
presidir à mesa com decidida afabilidade e um sorriso um tanto
ansioso, De Perronet, em feliz inocência, resplandecente com o
prazer óbvio de ter Helisende sentada a seu lado e praticamente
sua. E a moça, pálida e calada e resolutamente afável ao seu lado,
fazendo o possível por corresponder à alegria dele, uma vez que ele
não tinha qualquer culpa desta dor, e ela tinha consciência de que
ele merecia melhor. Ao vê-los juntos, não havia qualquer dúvida
quanto ao afeto do homem, e se ele reparara na ausência de um
fulgor idêntico nela, talvez aceitasse isso como a base comum do
início de qualquer casamento e estivesse disposto a ser paciente
até o botão florir.
Esta era a primeira vez que Haluin via a moça desde que ela, ao
surpreendê-lo no salão, o fizera pôr-se de pé e seguidamente cair
ao chão, meio aturdido como ele já estava com o vento cortante e a
neve ofuscante. E essa rígida figura no seu melhor, dourada pela luz
dos archotes, podia bem ser uma desconhecida que ele nunca vira
antes. Quando o acaso lhe deu uma visão clara do seu perfil, ele
olhou para ela com um sentimento de dúvida e perplexidade,
sobrecarregado com um sentido de responsabilidade que, para ele,
era novo e, ao mesmo tempo, pesado.
Já era tarde quando as mulheres se retiraram da mesa alta,
deixando os homens a beber o seu vinho, embora eles não fossem
ficar sentados no salão durante muito mais tempo. Haluin olhou em
volta para cruzar o seu olhar com o de Cadfael, concordando de
imediato que era altura de deixarem o anfitrião e o hóspede juntos, e
Haluin estava já a pegar nas muletas e a preparar-se para o esforço
de se levantar quando Emma entrou outra vez no salão, vinda do
solar, com um passo agitado e um rosto ansioso, seguida por uma
criada jovem.
- Cenred, aconteceu uma coisa estranha! A Edgytha saiu e ainda
não voltou, e agora está a começar outra vez a nevar, e onde é que
iria tão tarde, numa noite destas? Mandei chamá-la para me ajudar
a deitar, como sempre, e ela não está em parte nenhuma, e agora
Madlyn diz-me que ela saiu há horas, assim que começou a
anoitecer.
Cenred foi lento a deslocar a mente do seu dever de hospitalidade
para com o seu hóspede para um problema doméstico,
aparentemente pequeno, seguramente um assunto para ser
resolvido por mulheres e não por ele.
- Mas certamente que a Edgytha pode sair de casa, se quiser -
disse ele, num tom bem-humorado -, e voltar exatamente quando
decidir. Ela é uma mulher livre, sabe o que quer, e é uma pessoa
responsável. O fato de não estar em casa uma vez quando é
precisa não tem muita importância. Por que é que nos havemos de
preocupar com isso?
- Mas quando é que ela fez uma coisa destas sem dizer nada?
Nunca! E agora está outra vez a chover e, se o que Madlyn diz for
verdade, ela já saiu há quatro horas ou mais. E se lhe aconteceu
alguma coisa? Ela não ficaria fora de casa tanto tempo por sua livre
vontade. E tu sabes como eu gosto dela. Não gostaria, por nada
deste mundo, que lhe acontecesse alguma coisa de mal.
- Eu também não - disse Cenred, calorosamente -, nem a nenhum
dos meus empregados. Se ela se perdeu, vamos à procura dela.
Mas não há necessidade de ficarmos aflitos antes de sabermos se
houve algum acidente. Vamos lá, moça, fala, o que é que sabes
sobre o assunto? Dizes que ela saiu há algumas horas?
- Foi, sim, sir! - Madlyn deu alguns passos em frente, de olhos
abertos de excitação. - Foi depois de estar tudo pronto. Eu vinha da
leiteria e vi-a vir da cozinha com a capa vestida, e disse-lhe que esta
ia ser provavelmente uma noite atarefada e que iam dar pela falta
dela, e ela disse que estaria de volta antes de a chamarem. Nunca
pensei que demorasse tanto.
- E não lhe perguntaste aonde ia? - perguntou Cenred.
- Perguntei - disse a moça -, embora houvesse poucas
probabilidades de ela dizer muito sobre os seus assuntos, e eu já
devia saber que ela ia dar uma resposta azeda, se é que ia
responder. Mas o que disse não fez sentido. Ela disse que ia à
procura de um gato - disse Madlyn com inocência e perplexidade -
para colocar no meio dos pombos.
Embora não significassem nada para ela, as palavras tinham
significado para Cenred e para a sua mulher, que claramente a
ouviam pela primeira vez. O olhar sobressaltado de Emma voou
para o rosto do marido, que se pôs abruptamente de pé. Cadfael leu
o olhar que trocaram entre si como se ouvisse as palavras a soar
aos seus ouvidos. Ele tinha recebido deixas suficientes para fazer
facilmente a leitura. Edgytha tinha sido ama de ambos, fizera-lhes
sempre as vontades, amava-os como se fossem seus, sente-se
indignada com a sua separação, independentemente do que a igreja
e os laços de sangue pudessem dizer, e muito mais ainda com este
casamento que torna a separação definitiva. Ela foi pedir ajuda para
evitar o que deplora, mesmo neste último momento. Ela foi dizer a
Roscelin o que estava a ser feito nas suas costas. Ela foi a Elford.
Nada disso poderia ser dito em voz alta em frente de Jean de
Perronet, que estava agora de pé ao lado de Cenred, a olhar de
rosto em rosto, intrigado e solidário com um problema doméstico
que não tinha nada a ver com ele. Uma criada velha que
desaparecera ao fim da tarde, com a noite a aproximar-se e a neve
a cair, exigia pelo menos uma busca simbólica. Ele fez a sugestão
ingenuamente, preenchendo um silêncio que a qualquer momento
poderia levá-lo a analisar com mais atenção o que estava a
acontecer ali.
- Se ela já saiu há tanto tempo, não devíamos ir à sua procura?
Os caminhos nem sempre são seguros à noite, e para uma mulher
que se aventura sozinha...
A sugestão foi extremamente oportuna, e Cenred aceitou-a com
gratidão.
- É o que vamos fazer. Vou enviar um grupo pelo caminho mais
provável. Se ela tencionava fazer uma visita na aldeia, pode ser que
se tenha apenas atrasado por causa da neve. Mas não te deves
preocupar com isto, Jean. Não gostaria que a tua estada fosse
ensombrada. Deixa esta questão aos meus homens, temos gente
suficiente na casa. E podes ter a certeza de que ela não pode estar
longe, encontrá-la-emos rapidamente e trá-la-emos em segurança
para casa.
- Terei todo o gosto em ir consigo - ofereceu-se De Perronet.
- Não, não, não o permitirei. Todas as coisas aqui devem
prosseguir conforme planeámos e nada deve estragar a ocasião.
Utiliza a minha casa como se fosse tua e dorme com uma mente
tranquila, porque amanhã este pequeno incidente estará resolvido.
Não foi difícil persuadir o prestimoso hóspede a abandonar a sua
generosa intenção, que talvez tivesse sido manifestada apenas
como um gesto de cortesia. Os problemas domésticos de um
homem só a ele pertencem, e é melhor deixar que seja ele a
resolvê-los. É delicado oferecer ajuda, mas é sensato ceder
airosamente. Cenred sabia muito bem onde Edgytha decidira ir, não
havia qualquer dúvida sobre que estrada tomar para ir à sua
procura. Além disso, havia realmente motivo para preocupação, pois
em quatro horas ela podia ter ido e vindo, mesmo com neve. Cenred
deixou a mesa do jantar com um ar decidido, dando ordens aos
homens do seu séquito para que se reunissem junto da porta do
salão. Desejou enfaticamente uma boa noite a De Perronet, o que
foi docilmente aceita como uma exclusão desta reunião familiar, e
deu ordens enérgicas aos criados que escolheu para integrarem o
grupo de busca, seis jovens vigorosos, juntamente com o seu
administrador.
- Que devemos fazer? - perguntou o Irmão Haluin a meia voz, de
pé, ao lado de Cadfael, ambos um pouco afastados.
- Tu - disse Cadfael - tens de ir para a cama, como um homem
sensato, e dormir, se puderes. E uma ou duas orações não farão
mal nenhum. Eu vou com eles.
- Ao longo da estrada mais próxima para Elford - disse Haluin,
pesadamente.
- Para encontrar um gato para colocar no meio dos pombos. Sim,
onde mais? Mas tu ficas aqui. Não há nada que possas fazer ou
dizer, se for necessário dizer alguma coisa que eu não seja capaz
de fazer.
A porta do salão abriu-se, o grupo desceu os degraus para o
pátio, dois deles com archotes na mão. Cadfael, que seguia em
último lugar, olhou para uma noite brilhante, gélida. O chão estava
coberto de flocos pequenos, afiados como agulhas, que caíam de
um céu quase límpido, estrelado e demasiado frio para uma queda
de neve forte. Da ombreira da porta, olhou para trás e viu as
mulheres da casa, as de posição elevada bem como as criadas,
todas unidas na mesma intranquilidade a um canto do salão,
seguindo com os olhos os homens que partiam, as criadas muito
juntas, Emma com o seu rosto liso e suave enrugado de
preocupação e puxando com nervosismo os seus dedos gordos.
E Helisende, de pé a um passo de distância, a única que não
procurava consolação nas suas iguais. Estava suficientemente
recuada de um dos candelabros de parede para que o archote
mostrasse todo o seu rosto, sem sombras exageradas. Tudo o que
Emma tinha relatado ao marido, tudo o que Madlyn contara,
seguramente que agora Helisende já sabia. Sabia que Edgytha tinha
saído, sabia qual tinha sido o motivo. Ela estava a olhar, de olhos
bem abertos, para um futuro que já não conseguia prever, em que
os resultados do trabalho desta noite se ocultavam em perplexidade
e desalento e, possivelmente, catástrofe. Ela tinha-se preparado
para um sacrifício voluntário, mas não se encontrava preparada
para o que quer que a ameaçava agora. O seu rosto parecia tão
imóvel e composto como sempre, no entanto tinha perdido toda a
sua calma e certeza, a sua decisão tinha-se transformado em
impotência e a sua resignação em desespero. Ela tinha chegado a
um campo de batalha que acreditava que conseguiria defender,
independentemente do preço que tivesse que pagar, e agora o chão
tremera e abrira-se sob os seus pés, e ela já não controlava o seu
próprio destino. A imagem da sua elegância despedaçada,
desarmada e vulnerável, foi o último relance que Cadfael levou
consigo para a escuridão e para o frio.
Cenred puxou a capa de modo a cobrir o rosto para se proteger
do vento e saiu pelo portão da casa senhorial seguindo um caminho
que Cadfael desconhecia. Com Haluin, ele virara da estrada
distante, dirigindo-se diretamente para o brilho da luz dos archotes
da casa senhorial, mas o trilho que agora tomaram descrevia uma
curva e ia dar a uma estrada muito mais próxima de Elford, cortando
provavelmente pelo menos meia milha do caminho. A noite tinha a
sua própria luz tremulante, oriunda em parte das estrelas, e em
parte da fina camada de neve, pelo que puderam avançar
rapidamente, espalhados ao longo de uma linha cujo centro era o
trilho. Estavam aqui em campo aberto, no início despido de árvores,
depois com um cordão de árvores e arbustos. Não se ouvia nada a
não ser o som dos seus próprios passos e da respiração, e o suave
gemido do vento no meio dos arbustos. Cenred mandou-os parar
duas vezes para terem silêncio e chamou em voz alta para a noite,
mas não obteve qualquer resposta.
Cadfael calculou que, para uma pessoa que conhecesse bem
este caminho, a distância até Elford seria de aproximadamente duas
milhas. Há muito tempo que Edgytha poderia estar de volta a Vivers
e, pelo que ela dissera à criada Madlyn, tencionava regressar muito
a tempo de estar à disposição da sua patroa depois do jantar. E
numa noite tão clara e com pouco mais do que um polvilho de neve,
ela também não se podia ter afastado de um caminho conhecido.
Começou a parecer-lhe óbvio que algo tinha acontecido para
impedir a sua missão ou o seu regresso em segurança. Não os
rigores da natureza ou o capricho do acaso, mas sim a mão do
homem. E, numa noite assim, era pouco provável que os bandidos
que atacavam os viajantes, mesmo que eles existissem neste
campo aberto, andassem por aí, uma vez que as suas vítimas não
estariam exatamente ansiosas por se aventurar a sair de casa numa
noite tão gelada. Não, se alguém tivesse intervido para impedir
Edgytha de alcançar o seu objetivo, isso fora feito deliberadamente.
Havia, talvez, uma possibilidade melhor, a de ela ter chegado até
Roscelin com a notícia e de este a ter persuadido a não regressar e
a permanecer em segurança em Elford, deixando o resto a seu
cargo. Mas Cadfael não tinha a certeza de acreditar nessa
possibilidade. Se isso tivesse acontecido, Roscelin já teria entrado,
indignado, no salão de Vivers, antes sequer de terem dado pela falta
de Edgytha.
Cadfael tinha-se colocado ao lado de Cenred, avançando
apressadamente no centro da fila de caçadores, e um sombrio olhar
de soslaio saudou-o e reconheceu-o, sem grande surpresa.
- Não havia necessidade, Irmão - disse Cenred, secamente. - Nós
somos suficientes para o trabalho.
- Um homem mais não fará mal nenhum - disse Cadfael. Não
fazia mal, mas possivelmente também não era bem-vindo. Era
melhor que este assunto fosse mantido estritamente privado e
restrito à casa de Vivers. No entanto, pareceu que Cenred não ficou
grandemente perturbado pela presença de um monge beneditino no
meio do grupo de busca. Estava preocupado em encontrar Edgytha,
de preferência antes de ela chegar a Elford, e, caso não o
conseguisse, a tempo de anular qualquer mal que ela tivesse
desencadeado. Talvez ele estivesse à espera de encontrar o filho
algures ao longo do caminho, vindo apressadamente para impedir o
casamento que iria destruir as suas últimas esperanças vãs. Mas
eles tinham percorrido mais de uma milha, e a noite continuava
vazia à sua volta.
Estavam a deslocar-se através de um bosque esparso, aberto,
sobre erva irregular, em tufos, em que a neve congelada era
demasiado fina para esmagar as folhas das ervas, e poderiam ter
passado pelo pequeno montículo ao lado do caminho do lado direito
se não fosse o chão escuro que era visível através da cobertura de
renda branca, mais escuro que o castanho-des-corado da turfa de
Inverno. Cenred passou por ele, mas estancou imediatamente
quando Cadfael parou, e ficou a olhar para onde ele estava a olhar.
- Depressa, tragam um archote para aqui!
A luz amarela delineava claramente a forma de um corpo humano
estendido no chão, com a cabeça afastada do caminho,
esbranquiçada como uma crosta de neve. Cadfael baixou-se e
limpou o véu cristalino de um rosto voltado para cima, de olhos
abertos e contorcido numa expressão de medo espantado, e uma
cabeça de cabelos brancos da qual o capuz tinha caído para trás
quando ela caíra. Estava deitada de costas mas inclinada sobre o
lado direito, com os braços esticados para a frente como se tentasse
proteger-se de um golpe. Através da filigrana branca via-se a sua
capa preta. Sobre o seio, uma pequena mancha sujava o véu, no
local onde o sangue, num pequeno fio, tinha derretido os flocos de
neve ao mesmo tempo que eles caíam. Pelo modo como estava
caída, não era possível dizer de imediato se ela ia a caminho de
Elford ou de casa quando fora atacada, mas pareceu a Cadfael que,
no último momento, ela ouvira alguém a aproximar-se furtivamente
por detrás e dera meia volta, com as mãos erguidas para proteger a
cabeça. O punhal que o seu atacante tencionara introduzir entre as
costelas, por trás, tinha falhado o golpe e mergulhara no seu peito.
Estava morta e fria, e o gelo confundia todas as conjecturas sobre a
hora a que devia ter morrido.
- Deus do céu! - disse Cenred num murmúrio. - Isto é algo que
nunca imaginei vir a ver! O que quer que ela tencionasse fazer,
porquê isto?
- Os lobos caçam até mesmo no gelo - disse o administrador
pesadamente. - Embora ninguém sabe que riquezas poderão eles
encontrar aqui! E vejam só, não levaram nada, nem sequer a capa
dela. Os bandoleiros tê-la-iam despido.
Cenred abanou a cabeça.
- Não há gente dessa por estas partes, juro. Não, esta é uma
questão totalmente diferente. Gostaria de saber em que direção ela
ia quando foi atacada.
- Quando a deslocarmos - disse Cadfael -, é possível que
descubramos. E agora? Já não podemos fazer nada por ela. Quem
quer que tenha manejado a faca sabia o que estava a fazer e não
precisou de um segundo golpe. E as pegadas que tenha deixado
para trás dificilmente serão visíveis no chão, mesmo nos locais em
que a neve não as cobriu.
- Temos de a levar para casa - disse Cenred num tom sombrio. - E
será uma ocasião muito triste para a minha mulher e para a minha
irmã. Elas gostavam muito da velha. Ao longo de todos estes anos,
desde que a minha jovem madrasta a trouxe para a nossa casa, ela
foi sempre leal e digna de toda a confiança. Isto terá de ser vingado!
Vamos mandar alguém saber se ela chegou a Elford e o que sabem
dela lá, e se eles ouviram falar da existência de assaltantes por
estes caminhos, talvez fugidos de outras regiões. Embora seja difícil
de acreditar, Audemar governa as suas terras com uma mão firme.
- Quer que vamos buscar uma padiola, meu senhor? - perguntou
o administrador. - Ela não pesa muito, podíamos levá-la à vez dentro
da capa.
- Não, não há necessidade de fazer outra viagem. Mas tu, Edred,
leva Jehan contigo e vai até Elford, e vê se descobres o que sabem
sobre ela lá, se alguém a viu e falou com ela. Não, leva dois homens
contigo. Não quero que corras perigo na estrada, se houver
bandoleiros por aí.
O administrador acatou as ordens e levou um archote para o
iluminar durante o resto do caminho. A pequena chama resinosa foi
definhando ao longo do trilho em direção a Elford e desapareceu
gradualmente na noite. Os que ficaram, dirigiram-se ao corpo e
ergueram-no para o lado para desabotoar e estender no chão a
capa que ela tinha vestida. Assim que a levantaram, uma coisa pelo
menos ficou clara.
- Há neve debaixo dela - disse Cadfael. A sua forma mirrada
estava escura e húmida nos locais em que tinha havido contato
suficiente para o calor do corpo derreter os flocos de neve, mas em
redor da orla em que as dobras da sua roupa só tinham pousado ao
de leve, havia ainda uma borda de renda. - Foi depois de ter
começado a nevar que ela caiu. Ela estava a caminho de casa.
Ela era leve e mole nas mãos deles. O frio do seu corpo era
causado pelo gelo e não pela morte. Embrulharam-na bem na capa
e ataram-na com dois ou três cintos e com o cordão de cintura de
Cadfael, para os criados que a transportavam terem onde agarrar, e
foi assim que estes a carregaram ao longo da cerca de uma milha
de regresso a Vivers.
Os membros da casa ainda estavam acordados,
incapazes de descansar antes de saberem o que estava a
acontecer. Uma das criadas viu a triste procissão a entrar no
portão e correu, a chorar, a dizer a Emma. Quando o corpo
de Edgytha chegou ao salão, já todas as criadas estavam
outra vez reunidas, muito juntas, para se consolarem umas
às outras. Emma assumiu o controlo, com mais
determinação do que se poderia esperar de uma pessoa
suave e frágil, e pôs as moças a trabalhar com uma rapidez
que as impedia de chorar, preparando uma mesa
desmontável num dos aposentos pequenos para fazer um
esquife, compondo os membros em desordem, aquecendo
água, trazendo lençóis perfumados das arcas do átrio para
drapejar e cobrir a morta. As cerimônias fúnebres são tão
úteis para os vivos como para os mortos, ocupando-lhes as
mãos e as mentes e consolando-os das coisas deixadas por
fazer ou mal feitas durante a vida. Ao fim de pouco tempo, o
murmúrio de vozes baixas oriundo do aposento onde estava
a morta tinha-se suavizado e deixado de ser de angústia e
desalento, tendo-se transformado num cântico suave e
elegíaco, quase calmante.
Emma saiu para o salão, onde o marido e os seus
homens estavam a aquecer os pés gelados na lareira e a
esfregar as mãos entorpecidas.
- Cenred, como é isto possível? Quem poderia ter feito
uma coisa destas?
Ninguém tentou responder, nem ela estava à espera de
uma resposta. - Onde é que a encontraram?
A isso o marido respondeu, esfregando, com um ar
cansado, a testa franzida. - A mais de meio caminho para
Elford, pela estrada curta, estendida ao lado do trilho. E não
estava lá há muito tempo, pois havia neve debaixo dela. Foi
no caminho de regresso que alguém a atacou.
- Achas - perguntou Emma em voz baixa - que ela foi a
Elford?
- Por aquele caminho, a que outro lugar poderia ela ter
ido? Mandei Edred lá, para tentar saber se ela lá foi e com
quem falou. Devem estar de volta daqui a mais ou menos
uma hora, mas só Deus sabe se terão notícias.
Estavam ambos a rodear delicadamente o cerne da
questão, evitando mencionar o nome de Roscelin ou
qualquer palavra sobre o motivo que teria levado Edgytha a
sair de casa sozinha numa noite invernosa. É verdade que,
nessa altura, a notícia já tinha chegado até mesmo ao canil
e à estrebaria, e todos os membros da casa de Vivers
estavam reunidos, os criados de dentro de casa juntos num
grupo ansioso a um canto do salão, e os de fora a olhar por
cima do ombro, incapazes de se dedicar às suas tarefas
habituais ou ao seu descanso normal até que acontecesse
algo ali dentro que os fizesse dispersar. Era pouco provável
que o seu senhor tivesse falado a algum deles do amor ilícito
de Roscelin, mas era possível que muitos tivessem
detectado as correntes subterrâneas que arrastavam
Helisende para aquele casamento apressado. Em frente de
todo este clã teria de ser observada alguma reserva no
discurso.
E, para complicar ainda mais as coisas, apareceu Jean
de Perronet, oriundo do aposento superior para onde se
tinha retirado por cortesia, mas não para dormir, pois ainda
vestia o traje com que jantara. E também o Irmão Haluin,
ansioso e calado, vindo da sua cama. Todos os que se
encontravam sob o teto de Vivers nessa noite tinham sido
gradual e quase furtivamente atraídos para o salão.
Não, todos não. Cadfael olhou em volta dos presentes e
deu pela falta de um rosto. Quando todos os outros se
reuniam, Helisende ausentava-se.
Pela expressão do seu rosto, De Perronet tinha estado a
pensar seriamente desde que acedera ao desejo do seu
anfitrião e permitiria que o grupo de busca saísse para a
noite sem ele. Ele entrou no salão com um rosto composto e
grave, não revelando nada do que lhe ia na mente, demorou
algum tempo a olhar em volta do círculo silencioso e triste e,
por último, olhou mais longamente para Cenred, que estava
de pé, com as botas a fumegar nas cinzas da lareira e que,
de cabeça baixa, olhava fixamente para as brasas do fogo.
- Creio - disse De Perronet lentamente - que as coisas
não acabaram bem. Encontraram a vossa criada?
- Encontrámo-la - respondeu Cenred.
- Maltratada? Morta? Está a dizer-me que a encontraram
morta?
- E não de frio! Apunhalada - disse Cenred, bruscamente
- e deixada à beira do caminho. E não vimos nem ouvimos
sinal de outra pessoa ao longo do caminho, embora isso
tenha acontecido há pouco tempo, depois de a neve ter
começado a cair.
- Ela está conosco há dezoito anos - disse Emma
contorcendo as mãos com tristeza debaixo do peito. - Pobre
alma, pobre alma, acabar assim... atacada por um bandido e
deixada a morrer ao frio. Era a última coisa que eu gostaria
que acontecesse.
- Lamento muito - disse De Perronet - que uma coisa
destas tivesse acontecido e numa altura destas. Poderá
haver alguma ligação entre a ocasião que me trouxe aqui e a
morte desta mulher?
- Não! - exclamaram o marido e a mulher ao mesmo
tempo, preferindo resistir ao pensamento que já se formava
nas suas mentes, a mentir para enganar o hóspede. - Não -
disse Cenred mais suavemente - Penso que não há, espero
que não haja. De todas as possibilidades, essa é a mais
infeliz, no entanto, certamente, que não é mais do que uma
possibilidade.
- Possibilidades infelizes como essas existem - admitiu
De Perronet, com evidente reserva. - E elas não deixam de
estragar festas, até mesmo casamentos. Não quer adiar
este?
- Não, por que é que havia de o fazer? É o nosso pesar,
não o teu. Mas é um homicídio, e tenho de mandar
comunicar ao xerife e iniciar uma caçada ao assassino. Que
eu saiba, ela não tem quaisquer familiares vivos, por isso
compete-nos sepultá-la. Faremos o que for preciso. Mas não
há necessidade de ensombrar a tua vida.
- Receio que já tenha ensombrado - disse De Perronet -
a de Helisende. Esta mulher, creio eu, foi ama dela e era-lhe
muito cara.
- Mais um motivo para a levares para longe daqui, para
uma casa nova e uma vida nova. - Ele olhou em volta à
procura dela pela primeira vez, admirado por não a ver ali
entre as mulheres, mas aliviado por não estar ali a complicar
uma questão já suficientemente perturbadora. Se ela
tivesse, de fato, sido capaz de adormecer, tanto melhor,
deixá-la dormir sem saber nada até à manhã seguinte. As
criadas estavam a regressar do aposento onde tinham
estado a preparar o corpo de Edgytha. Não havia mais nada
que elas pudessem fazer, e a sua presença inquieta, muda e
receosa em grupos, tornava-se opressiva. Cenred fez uma
tentativa para se libertar delas.
- Emma, manda as mulheres para a cama. Não há mais
nada a fazer aqui, e não há necessidade de ficarem à
espera. E vocês, meus amigos, vão dormir. Já foi feito tudo o
que pode ser feito até Edred voltar de Elford, não há
necessidade de ficarem todos à espera dele. - E para De
Perronet, ele disse: - Eu mandei-o, juntamente com dois
homens meus, informar o meu suserano sobre esta morte.
Um homicídio ocorrido nestas partes cabe dentro da sua
jurisdição, este será um problema tanto dele como meu.
Anda, Jean, se não te importas, vamos retirar-nos para o
solar e deixar o salão para os que vão dormir.
Sem dúvida, pensou Cadfael, observando as linhas
mortificadas do rosto de Cenred, que este se sentiria mais
feliz se De Perronet recusasse qualquer envolvimento e se
mantivesse afastado, mas agora não haveria qualquer
possibilidade de isso acontecer. E por mais que ele evadisse
a verdade sobre o motivo por que o seu administrador tinha
ido a Elford, só o nome daquele lugar tinha assumido agora
um significado a que não era possível escapar. E este não
era um homem que gostasse de mentir nem que o fizesse
com gosto ou habilidade.
As mulheres tinham acatado imediatamente as suas
ordens e dispersado, temerosas, para os seus aposentos,
ainda a murmurar. Os criados apagaram os archotes,
deixando apenas dois junto da porta grande para iluminar a
entrada, e alimentaram e abafaram o fogo da lareira para
que o mesmo ardesse lentamente durante a noite. De
Perronet seguiu o seu anfitrião até à porta do solar, e ali
Cenred virou-se e fez sinal a Cadfael para que os
acompanhasse.
- O Irmão esteve presente e pode testemunhar sobre o
modo como a encontrámos. Foi o irmão que mostrou que a
neve tinha começado a cair antes de ela ter sido atacada.
Importa-se de esperar conosco, para ver o que o meu
administrador diz quando regressar?
Não foi dito nada sobre se o Irmão Haluin deveria
considerar que o convite se aplicava também a ele, mas o
seu olhar cruzou-se com o de Cadfael, que não
recomendava esse passo, antes o dissuadia, mas ele
decidiu ignorá-lo. Já tinham ocorrido acontecimentos
suficientes para perturbar a sua mente, se ele ia unir duas
pessoas cujo casamento iminente era, pelo menos, suspeito
de ter provocado uma morte. Ele precisava de saber o que
estava por detrás daquelas deambulações noturnas e voltar
atrás com o seu compromisso, se visse que havia motivo
para tal. Cerrou os lábios e seguiu-os até ao solar, as suas
muletas eram pesadas e lentas no chão de junco e fizeram
um eco surdo quando pisou as tábuas no interior do solar.
Sentou-se num banco situado no canto mais escuro, um
ouvinte discreto, enquanto Cenred se sentava à mesa com
um ar cansado e colocava os cotovelos sobre o tampo,
apoiando a cabeça nas mãos musculosas.
- Os seus homens vêm a pé? - perguntou De Perronet.
- Vêm.
- Então, talvez tenhamos uma longa espera até eles aqui
chegarem. Tinha mais algum grupo noutras estradas?
Cenred respondeu secamente não, e não acrescentou
mais nada à laia de explicação ou desculpa. Há menos de
um quarto de hora, pensou Cadfael, observando-o, ele teria
respondido evasivamente ou deixado a pergunta sem
resposta. Agora, deixara de se preocupar com a discrição.
Um homicídio traz à superfície muitas questões não menos
dolorosas, permanecendo, ao mesmo tempo, à espreita no
escuro.
De Perronet fechou a boca e cerrou os dentes, decidido
a não fazer mais perguntas, e preparou-se para ficar
pacientemente à espera. A noite tinha-se cerrado sobre a
mansão senhorial de Vivers numa imobilidade silenciosa,
ominosa e opressiva. Era pouco provável que alguém
estivesse a dormir no salão mas, se algum deles se movia,
fazia-o furtivamente e, se alguém falava, era em murmúrios.
No entanto, a espera não foi tão longa como De
Perronet profetizara. O silêncio foi subitamente perturbado
pelo ruído surdo de cascos a galope na terra gelada do
pátio, por uma voz jovem furiosa a gritar peremptoriamente,
exigindo ser servida, pela corrida frenética de cavalariços no
exterior e pelo movimento apressado de todos os membros
do séquito despertos no interior. Pés correram às cegas no
escuro, tropeçando e farfalhando nos juncos, sílex e aço.
cuspiram faíscas demasiado breves e apressadas para
fazerem fogo, o primeiro archote foi mergulhado no lume
abafado e levado apressadamente para atear outros. Antes
de os que estavam no solar terem saído para o salão, um
punho bateu na porta exterior e uma voz irada exigiu ser
admitida.
Reconhecendo a voz, dois ou três homens correram
para destrancar a porta e cambalearam quando a porta
pesada foi atirada contra a parede, e à luz dos archotes
cada vez mais viva irrompeu a figura de Roscelin, de cabeça
descoberta, com o cabelo louro revolto devido à velocidade
com que viajara, e olhos azuis em chamas. O frio da noite
entrou com ele, e todos os archotes esmoreceram e
deitaram fumo, ao mesmo tempo que Cenred, emergindo
abruptamente do solar, ficou imobilizado no limiar do salão
pelo olhar flamejante do filho.
- O que é isto que Edred me contou? - perguntou
Roscelin. - O que é que o pai fez nas minhas costas?

CAPÍTULO 9

Desta vez, a autoridade paterna foi apanhada em


desvantagem, e Cenred teve perfeitamente consciência
disso. Ele também não possuía uma reputação de tirano em
que se pudesse apoiar, mas fez o possível por recuperar a
iniciativa perdida.
- O que é que estás a fazer aqui? - perguntou ele num
tom severo. - Eu mandei-te chamar? O teu senhor mandou-
te embora? Algum de nós te libertou do teu compromisso?
- Não - disse Roscelin, rutilante. - Ninguém me deu
autorização e eu não pedi autorização a ninguém. E quanto
ao meu compromisso, o pai libertou-me dele quando me
traiu. Não fui eu que faltei à palavra. E quanto aos meus
deveres para com Audemar de Clary, retomá-los-ei se tiver
que o fazer e aceitarei tudo o que o seu desagrado me
impuser, mas só depois de o pai me dizer abertamente o que
tencionava fazer nas minhas costas. Eu escutei-o, reconheci
a sua autoridade, obedeci-lhe. Será que não me devia nada
em troca? Nem sequer honestidade?
Um outro pai podia tê-lo agredido por tal insolência, mas
Cenred não teve essa opção. Emma estava a puxar-lhe
ansiosamente pela manga, preocupada com os seus dois
homens. De Perronet, atento e sério, apareceu a seu lado,
olhando para o rapaz irado que os enfrentava, e já se
apercebera da inevitável ameaça aos seus próprios planos.
Que outra coisa poderia ter trazido este jovem a correr
velozmente através da noite? E, de acordo com todos os
sinais, ele tinha vindo pela estrada mais curta, perigosa no
escuro, senão não tinha chegado tão cedo. Nada do que
acontecera nessa noite tinha ocorrido por acidente ou por
acaso. O casamento de Helisende Vivers tinha provocado
esta espiral de assassinato, busca e perseguição e ainda
não se sabia que mais iria acontecer.
- Eu não fiz nada - disse Cenred - de que me deva
envergonhar e nada de que deva prestar-te contas. Tu
sabes bem qual deve ser o teu papel, concordaste com ele,
portanto, agora, não te queixes. Eu sou o senhor da minha
própria casa, tenho direitos e deveres para com a minha
família. Cumpri-los-ei como achar que o devo fazer. E para o
melhor!
- Sem a cortesia de me dizer uma única palavra! -
chamejou Roscelin, ardendo como um fogo atiçado. - Não,
eu tive que saber por Edred, depois de os danos já se terem
feito sentir, depois de uma morte cuja culpa lhe pode ser
atribuída. Isso foi para o melhor? Ou atreve-se a dizer-me
que a Edgytha morreu por qualquer outro motivo, às mãos
de um desconhecido? Isso já seria suficientemente mau,
mesmo que não fosse pior que isso. Mas de quem foram os
planos que a fizeram sair para a noite? Atreve-se a dizer-me
que ela ia fazer outra coisa? Edred diz que ela ia a caminho
de Elford quando alguém a atacou. Eu estou aqui para evitar
o resto.
- O seu filho está a referir-se, suponho - disse De
Perronet, em voz alta e num tom frio -, ao casamento
organizado entre a dama Helisende e eu. Sobre essa
questão, penso que também tenho uma palavra a dizer.
Os enormes olhos azuis de Roscelin deslocaram-se do
rosto do pai para o do hóspede, e o encontro deixou-o
silencioso durante um longo momento. Cadfael lembrou-se
que não eram dois desconhecidos. As duas famílias
conheciam-se, talvez até fossem familiares distantes e, dois
anos antes, De Perronet pedira formalmente a mão de
Helisende. Não havia animosidade pessoal no olhar de
Roscelin, era mais uma raiva perplexa e frustrada contra as
circunstâncias do que contra este pretendente preferido, de
quem ele não podia nem devia ser rival.
- O senhor é o noivo? - perguntou ele, secamente.
- Sou, e mantenho a minha pretensão. E o que tem a
dizer contra isso?
Animosidade ou não, eles tinham começado a
encrespar-se como galos de combate, mas Cenred colocou
uma mão no braço de De Perronet para o reprimir e, com um
gesto, fez o filho recuar.
- Esperem, esperem! Isto já foi demasiado longe para
ser mantido secreto. Diz-me uma coisa, meu rapaz, ouviste
falar deste casamento, tal como ficaste a saber da morte de
Edgytha apenas através de Edred?
- De que outra forma poderia ser? - perguntou Roscelin.
- Ele apareceu, ofegante, com as notícias e despertou toda a
casa, Audemar e tudo. Duvido que ele quisesse que eu
ouvisse quando falou sobre o casamento, mas ouvi, e estou
aqui para descobrir por mim próprio aquilo que nunca quis
que eu questionasse. E veremos se tudo tem estado a ser
feito pelo melhor.
- Então, não viste a Edgytha? Ela não chegou a falar
contigo?
- Como é que ela podia fazê-lo se estava morta a cerca
de uma milha de Elford? - perguntou Roscelin num tom de
impaciência.
- Ela morreu depois de a neve ter começado a cair.
Tinha saído há horas, teve tempo suficiente para ter
chegado a Elford e iniciar o caminho de regresso. Ela
estivera algures, certamente que estava de regresso de
algum sítio. Que outro lugar podia ser?
- Então, o pai pensou que ela tinha, de fato, chegado a
Elford - disse Roscelin, lentamente. - Eu só ouvi dizer que
ela tinha morrido, pensei que estivesse a caminho. A
caminho de Elford, para falar comigo! Era isso o que estava
a pensar? Que ela me ia avisar do que estava a ser feito
aqui na minha ausência?
O silêncio de Cenred e o rosto infeliz de Emma foram
resposta suficiente.
- Não - disse ele, lentamente. - Eu não a vi. Nem, tanto
quanto eu saiba, ninguém da casa de Audemar a viu. Não
sei com quem é que ela foi falar. Certamente que não foi
comigo.
- Mas podia ter sido - disse Cenred.
- Não foi. Ela não foi falar comigo. No entanto - disse
Roscelin, implacavelmente -, aqui estou eu como se ela
tivesse ido, depois de o ouvir da boca de outra pessoa. Deus
sabe que sinto muito a morte da Edgytha, mas que mais há
a fazer a não ser sepultá-la com todo o respeito e depois
disso, se pudermos, encontrar e sepultar o seu assassino?
Mas não é demasiado tarde para reconsiderar o que deveria
ter lugar aqui amanhã, não é demasiado tarde para o alterar.
- Muito me admira - disse Cenred, num tom duro - que
não me acuses diretamente desta morte.
Ao ser confrontado com uma ideia tão monstruosa,
Roscelin ficou paralisado e, com o choque, ficou de boca
aberta e com as mãos abertas caídas, a balançar como as
de uma criança. Era óbvio que essa ideia nunca lhe passara
pela cabeça. Começou a balbuciar um desmentido furioso,
semiarticulado, mas abandonou-o a metade para se virar de
novo para De Perronet.
- Mas o senhor... o senhor tinha motivo suficiente para
querer impedi-la, se soubesse que ela me ia avisar. O
senhor tinha uma boa razão para a silenciar, para que a voz
dela não se levantasse contra o seu casamento, como eu
agora levanto a minha. Foi o senhor que a matou no
caminho?
- Isso é um disparate! - disse De Perronet com desdém.
- Toda a gente sabe que eu estive aqui, à vista de toda a
gente, durante toda a noite.
- Pode ter estado, mas tem homens que podem estar
habituados a fazer o trabalho por si.
- Todos eles podem ser afiançados pelos membros da
casa do seu pai. Além disso, já lhe foi dito que esta mulher
não foi morta à ida mas sim no regresso. Qual seria a minha
finalidade? E agora, gostaria de perguntar a ambos, pai e
filho - acrescentou ele secamente -, que interesse tem este
rapaz no casamento da sua familiar próxima, que o leva a
atrever-se a desafiar os interesses do irmão ou do marido
dela?
Agora, pensou Cadfael, já está tudo praticamente posto
às claras, embora ninguém o vá dizer abertamente. Pois De
Perronet é suficientemente perspicaz para ter compreendido
a paixão especial e proibida deste rapaz. E agora depende
de Roscelin se vai ser possível salvaguardar uma face
decente a respeito de toda esta questão. O que é pedir
muito a um jovem dilacerado como ele está, indignado com
o que considera uma traição. Agora veremos a sua coragem.
Roscelin tinha empalidecido e o seu rosto adquirira uma
brancura fixa de aço, com os belos ossos das maçãs do
rosto e do queixo bem delineados à luz dos archotes. Antes
de Cenred ter arranjado fôlego para afirmar a sua
dominância, o seu filho já o tinha feito por ele.
- O meu interesse é o de um familiar tão próximo como
um irmão que deseja a felicidade de Helisende mais do que
tudo no mundo. Nunca discuti o direito do meu pai, nem
duvido de que ele deseje a sua felicidade tanto como eu.
Mas quando ouvi falar num casamento planejado
apressadamente e na minha ausência, como podia eu ficar
tranquilo? Não vou ficar quieto a vê-la ser empurrada para
um casamento que possa não ser do seu agrado. Não vou
permitir que seja forçada ou persuadida contra a sua
vontade.
- Isso não aconteceu - protestou Cenred,
acaloradamente.
- Ela não está a ser forçada, consentiu de bom grado.
- Então, por que é que eu fui mantido na ignorância? Até
o fato ser consumado? Como é que posso acreditar no que
o vosso procedimento nega? - deu meia-volta para enfrentar
De Perronet, com o rosto pálido esforçadamente controlado.
- Meu senhor, não tenho nada contra si. Eu nem sequer
sabia quem ia ser o marido. Mas deve compreender que é
difícil acreditar que tudo tenha sido feito honestamente,
quando não foi feito abertamente.
- Agora já foi tudo revelado - disse De Perronet,
secamente.
- O que o impede de o ouvir dos lábios da própria dama?
Isso satisfá-lo-á?
O rosto branco de Roscelin fechou-se ainda mais
dolorosamente e, por um momento, lutou visivelmente contra
o medo da rejeição e perda inevitáveis. Mas não tinha outra
opção a não ser concordar.
- Se ela me disser que foi decisão sua, então, ficarei
calado.
- Ele não disse que, daí em diante, ficaria tranquilo.
Cenred virou-se para a mulher que, durante todo esse
tempo, ficara, leal, ao lado do marido, ao mesmo tempo que
os seus olhos perturbados nunca deixaram o rosto
atormentado do filho.
- Vai chamar Helisende. Ela falará por si própria.
No pesado e incómodo silêncio que se seguiu à saída de
Emma, não era claro para Cadfael se algum membro
daquela perturbada família tinha achado estranho, tal como
ele achara, que Helisende não tivesse há muito descido,
para descobrir por si própria o significado daquelas
movimentações noturnas. Ele não conseguia tirar da cabeça
a última vez que a vira, de pé, sozinha, no meio de tanta
gente, subitamente perdida e confusa numa estrada que ela
acreditara que poderia percorrer até ao fim com resoluta
dignidade. Numa situação tão tristemente alterada, ela tinha-
se desorientado. Era de admirar, contudo, que não tivesse,
em defesa da sua própria dignidade, descido com o resto
das pessoas para descobrir o melhor ou o pior quando o
grupo de busca regressasse. Será que ela sabia até que
Edgytha tinha morrido?
Cenred tinha avançado para o salão meio iluminado,
abandonando a reclusão do solar, uma vez que já não havia
qualquer privacidade por detrás de uma porta fechada. Uma
mulher da sua casa tinha sido morta. O casamento de uma
dama da família era uma ocasião de conflito e morte. Já não
havia qualquer possibilidade de distinção entre senhor e
homem ou senhora e criada. Todos aguardavam com igual
inquietação. Todos, exceto Helisende, que se tinha
ausentado.
O Irmão Haluin tinha recuado para as sombras e
sentava-se, calado e imóvel, num banco encostado à
parede, rigidamente debruçado entre as muletas que
segurava de encontro aos seus lados. Os seus olhos
escuros encovados percorriam atentamente os rostos,
lendo-os e interrogando-se. Se sentia algum cansaço, não
dava quaisquer mostras disso. Cadfael gostaria de o enviar
para a cama, mas havia em todos eles uma compulsão tão
forte, que ninguém ia sair dali. Só uma pessoa tinha resistido
à atração. Só uma fugira.
- O que detém as mulheres? - impacientou-se Cenred, à
medida que os momentos se arrastavam. - É preciso tanto
tempo para vestir um vestido?
Mas longos minutos se passaram até Emma reaparecer
à porta, com o rosto redondo, suave, cheio de consternação
e desalento, e as mãos juntas a mexer, agitadas, no cinto.
Atrás dela, com os olhos muito abertos, desconfiados,
espreitava a criada Madlyn. Mas não havia sinal de
Helisende.
- Ela desapareceu! - disse Emma, demasiado abalada e
perplexa para dizer muito. - Ela não está deitada, não está
no quarto, não a encontrei em parte nenhuma da casa. A
capa dela desapareceu. Jehan foi ao estábulo. O cavalo e os
arreios dela desapareceram com ela. Enquanto estiveste
ausente, selou o cavalo e foi-se embora em segredo,
sozinha.
Desta vez ficaram todos em silêncio, o irmão, o noivo, o
amante frustrado e todos os outros. Enquanto maquinavam,
agonizavam e discutiam sobre o seu destino, ela agira e
fugira de todos eles. Sim, até mesmo Roscelin, pois agora
ele sentia-se ferido e espantado, tão completamente perdido
como todos os outros. Cenred assumiu uma postura rígida e
olhou de testa franzida para o filho, e De Perronet deu meia
volta e lançou-lhe um olhar de desconfiança, mas era óbvio
que Roscelin não tinha nada a ver com esta fuga em pânico.
Até mesmo antes da morte de Edgytha, pensou Cadfael, a
sua missão secreta e o fato de ela não regressar tinham
estilhaçado toda a segurança que Helisende tão
esforçadamente reunira. Sim, De Perronet era um homem
bom e um partido honroso, e ela tinha-se comprometido com
ele a fim de se retirar do caminho de Roscelin e de se
libertar a si própria e a ele de uma situação insuportável.
Mas se esse sacrifício acarretasse apenas ira, perigo e
conflito, até mesmo morte, então tudo se alterara. Helisende
recuara da beira do abismo e libertara-se.
- Ela fugiu! - disse Cenred, exalando ruidosamente,
aceitando a situação sem a questionar. - Como é que ela
conseguiu fugir sem que ninguém a visse? E quando é que
terá partido? Onde estavam as suas criadas? Será que não
havia um cavalariço no estábulo para lhe perguntar onde ia
ou, pelo menos, para nos avisar? - Ele passou uma mão
impotente pelo rosto e lançou um olhar severo ao filho. - E
para onde fugiria ela a não ser para junto de ti?
Estava dito, não era possível retirar as palavras.
- Será que a escondeste algures em segredo e vieste
para aqui com a tua indignação falsa para disfarçar o teu
pecado?
- Não posso acreditar no que estou a ouvir! - disse
Roscelin, indignado. - Não a vi, nem recebi qualquer
mensagem dela, nem lhe enviei nenhuma, e o pai sabe isso.
Eu vim de Elford há pouco tempo pelo mesmo caminho que
os seus homens tomaram para ir até lá e, se ela estivesse
nesse trilho, ter-nos-íamos encontrado. Acha que eu a
deixaria ir a algum lado sozinha à noite, quer fosse para
Elford, quer fosse de volta para aqui? Se nos tivéssemos
encontrado, estaríamos juntos agora... onde quer que fosse.
- Há um caminho mais seguro pela estrada - disse De
Perronet. - Mais longo, mas igualmente rápido a cavalo, e
mais seguro. Se ela foi, de fato, para Elford, pode ter ido por
esse caminho. Certamente que não se arriscaria a ir pelo
mesmo caminho que os seus homens tinham tomado.
A sua voz era seca e fria e o rosto intimidativo, mas ele
era um homem prático e tencionava não perder energia nem
paixão nos afetos equivocados de um rapaz inexperiente.
Estes não ameaçavam a sua posição. O casamento que
desejava tinha sido combinado e aceita, e não havia
necessidade de desistir dele, nem ele o faria. O que
importava agora era encontrar a moça sã e salva.
- É possível que o tenha feito - concordou Cenred,
encorajado. - O mais provável é que o tenha feito. Se chegar
a Elford, estará em segurança. Mas vamos mandar alguém
atrás dela pela estrada e não deixar nada ao acaso.
- Eu vou voltar por esse caminho - propôs Roscelin,
ansiosamente, e, num salto, estava a dirigir-se para a porta
do salão, quando De Perronet o deteve, puxando-lhe pela
manga.
- Não, tu não! Eu desconfio que, se se encontrassem,
não voltaríamos a ver qualquer de vós. Deixemos Cenred ir
à procura da irmã e tenho a certeza de que, quando todo
este tumulto terminar, ela voltará para dizer o que lhe vai na
mente. E quando ela o fizer, meu rapaz, é melhor que
aceitas o que ela disser e que mantenhas a língua dentro
dos dentes.
Roscelin não gostou que lhe tocassem, nem de ser
chamado “rapaz” por um homem cuja altura e capacidade
ele conseguia igualar, embora não o igualasse em idade e
segurança. Libertou o braço e impediu mais afrontas com
um ar carregado.
- Se Helisende for encontrada sã e salva, se a deixarem
em paz para dizer o que lhe vai na mente, não na sua, meu
senhor, nem na do meu pai, nem na de qualquer outro
homem, seja ele padre, rei ou qualquer outra coisa, eu fico
satisfeito. E, em primeiro lugar - disse ele, voltando-se para
o pai com uma expressão que mediava entre o desafio e a
súplica -, encontre-a, deixe-me vê-la bem de saúde e tratada
com gentileza. Que mais importa agora?
- Eu próprio irei - disse Cenred com renovada autoridade
e voltando a passos largos para o solar, para ir buscar a
capa que tinha despido.
Mas ninguém iria sair de Vivers nessa noite. Mal Cenred
acabara de calçar de novo as botas e, nas cavalariças, os
cavalariços tinham acabado de pegar nas selas e nos
arreios, quando se ouviu a azáfama de meia dúzia de
cavaleiros a entrar no átrio, o toque de chamada e resposta
ao portão, o tilintar de arreios e o som surdo de cascos no
chão gelado.
Todos os que estavam no interior se apressaram a abrir
a porta para ver quem poderia ser, a uma hora tão avançada
da noite. Edred e os seus companheiros tinham ido a pé e
contava-se que regressassem a pé, e ali estava um grupo
bem montado a chegar. Os archotes saíram para a
escuridão, Cenred saiu, seguido de perto por Roscelin e De
Perronet e vários criados.
No pátio, os archotes tremulantes chamejavam,
diminuíam e chamejavam de novo sobre o rosto de ossos
fortes e do corpo massivo de Audemar de Clary enquanto
ele descia da sela e atirava as rédeas a um cavalariço que
surgira a correr. Atrás dele vinha Edred, o administrador, e
os cavalariços que tinham sido enviados a Elford, montados
agora em cavalos de De Clary, juntamente com três homens
de Audemar.
Cenred desceu apressadamente os degraus para os
receber.
- Meu senhor - disse ele, dirigindo-se, num tom formal,
ao seu amigo e suserano. - Não estava à espera de vos ver
esta noite, mas vindes em boa altura e sois muito bem-
vindo. Deus sabe que provavelmente vos vamos causar
problemas, como Edred vos deve ter dito... Um homicídio
dentro da vossa jurisdição é difícil de acreditar, mas assim é.
- Foi o que ouvi dizer - disse Audemar. - Vamos para
dentro e conta-me a história toda. Não se pode fazer nada
antes da manhã. - Ao entrar na sala, os seus olhos recaíram
sobre Roscelin, e ele registrou o seu rosto sério e nada
arrependido e disse num tom tolerante: - Tu aqui, rapaz?
Pelo menos disso eu estava à espera. - Era óbvio que a
razão mais profunda do degredo de Roscelin não era
segredo para Audemar, e ele sentia uma certa pena pelo
rapaz que o levava a compreender a sua loucura. Quando
passou por ele, bateu-lhe com força no ombro e arrastou-o
com ele para o solar. Roscelin resistiu ao ímpeto, agarrando
com força na manga do seu senhor.
- Meu senhor, há mais a dizer. Senhor - apelou ele com
veemência para o pai -, diga-lhe! Se ela partiu com destino a
Elford, onde poderá estar agora? Meu senhor, Helisende
desapareceu, saiu a cavalo sozinha, o meu pai acredita que
deve ter ido para Elford... por minha causa! Mas eu vim pelo
caminho pior e não a vi. Será que ela chegou lá em
segurança? Tire-me desta ansiedade... ela foi pela estrada
principal? Ela está em segurança em Elford?
- Não está, não! - Surpreendido com esta nova
preocupação, Audemar lançou um olhar penetrante ao filho,
depois ao pai e novamente ao filho, tendo bem a noção das
tensões que os afligiam. - Acabámos de chegar pela estrada
principal e não vimos sinal dela nem de qualquer outra
mulher. Numa estrada ou noutra, um de nós ter-se-ia
encontrado com ela. Vamos! - disse ele, pondo o braço livre
à volta de Cenred e levando-o consigo. - Vamos entrar e
juntar tudo o que sabemos para o utilizarmos com bom
senso amanhã à luz do dia. Minha senhora, deve ir
descansar, tudo o que podia ser feito antes de amanhecer já
foi feito e, a partir de agora, assumirei a responsabilidade.
Não há necessidade de passar a noite em vigília.
Não existia qualquer dúvida sobre quem mandava ali. Às
suas palavras, Emma apertou as mãos num gesto de
gratidão, lançou um olhar afectuoso ao marido e ao filho e
afastou-se docilmente para descansar o melhor que
conseguiria antes do nascer do dia. Do interior do solar,
Audemar olhou uma vez em volta, um olhar abrangente
bastante amável, mas cuja autoridade era inconfundível e
que dispensava a presença de todos os outros. Os seus
olhos recaíram sobre os dois beneditinos que aguardavam
discretamente na orla da cena, reconheceu-os com um
aceno de cabeça de reverência pelo seu hábito e sorriu.
- Boa noite, Irmãos - disse Audemar, encerrando a porta
com firmeza atrás de si e fechando-se no interior do solar
com os perturbados membros da casa de Vivers e com o
aspirante a seu familiar.

CAPÍTULO 10

- Ele tem razão! - disse o Irmão Haluin, estendido na


cama, no crepúsculo, antes do amanhecer, acordado e
agora liberto do seu longo silêncio na orla do caos de outros
homens. - Boa noite, Irmãos, e adeus! Não vai haver
casamento. Não pode haver casamento, agora não existe
noiva. E mesmo que ela voltasse, este casamento não pode
prosseguir como se não tivesse acontecido nada que
lançasse tantas dúvidas sobre ele. Quando aceitei o fardo,
porque mesmo então era um fardo um tanto pesado, não
havia qualquer motivo para pôr em causa a possibilidade de
aquela ser a melhor decisão, por mais penosa que fosse.
Agora existem razões para a questionar.
- Eu penso - disse Cadfael, escutando a voz baixa,
deliberada, à medida que Haluin apalpava o seu caminho
em direção a uma resolução - que não tens pena de ter sido
libertado da tua promessa.
- Não, não tenho pena. Tenho muita pena, Deus sabe-o,
de uma mulher ter morrido, pena de estas crianças serem
infelizes sem que haja remédio para isso. Mas agora eu não
seria responsável perante Deus por unir a moça a qualquer
homem a não ser que recupere a certeza que perdi. Ainda
bem que ela se foi embora, e rezo que para um refúgio
seguro. E a única coisa que temos agora a fazer - disse o
Irmão Haluin - é irmo-nos embora. Já não temos nenhum
papel a desempenhar aqui. De Clary disse-nos isso
claramente. E Cenred ficará satisfeito por nos ver pelas
costas.
- E tu tens uma promessa a completar, sem mais
motivos para demoras. É verdade! - disse Cadfael, dividido
entre o alívio e a pena.
- Já demorei demasiado tempo. É altura de reconhecer
como as minhas penas são pequenas - disse Haluin,
inflexivelmente - e como é grande o papel que escolhi. Fiz a
escolha por causa de mim próprio, agora com a vida que me
resta agirei por um motivo mais meritório.
Esta viagem, por conseguinte, pensou Cadfael, não foi
em vão. Pela primeira vez desde a sua fuga do mundo,
doente de culpa e perda, ele aventurara-se de novo no
mundo e encontrara-o cheio de dor, na qual a sua própria
dor tinha caído e se perdera, como uma gota de chuva no
mar. Durante todos aqueles anos ele tinha sido,
exteriormente, cumpridor dos seus deveres, obedecendo a
todas as regras da Ordem e, interiormente, agonizara na
solidão. A sua verdadeira vocação tinha início naquele
momento. Uma vez esclarecido, Haluin podia muito bem ser
feito do mesmo material que os santos. Quanto a mim, eu
sou um homem incorrigível.
Intimamente, ele não queria sair de Vivers sem que nada
tivesse sido resolvido. Tudo o que Haluin dissera era
verdade. A noiva tinha desaparecido, não podia haver
casamento, eles não tinham desculpa para permanecerem
ali por mais tempo e Cenred já não precisava deles. Na
verdade, ele ficaria muito satisfeito de os ver partir. Mas
Cadfael não estava satisfeito por se ir embora, voltando as
costas a um assassinato por vingar, com a justiça a não
cumprir a sua função, um erro que talvez nunca fosse
corrigido.
Era também verdade que Audemar de Clary era o
suserano ali, um homem de força e determinação, e
competia-lhe lidar com os crimes ocorridos dentro da sua
jurisdição. Não havia nada que Cadfael lhe pudesse dizer
que Cenred não lhe tivesse já dito.
E, afinal de contas, o que sabia Cadfael, de fato, sobre o
assunto? Que Edgytha estivera ausente várias horas antes
de morrer, uma vez que já havia neve no chão quando ela
caiu. Que ela devia estar de regresso a Vivers, tal como
tencionara. Que tivera bastante tempo para ir até Elford. Que
não tinha sido roubada. O assassino tinha-a simplesmente
morto e abandonado, não agindo como os salteadores. Se
não o tinha feito para a impedir de avisar Roscelin - pois isso
seria credível apenas na viagem de ida -, então para a calar,
por outro motivo, antes de ela conseguir regressar a Vivers.
No entanto, que ligação havia entre Elford e Vivers exceto o
fato de o jovem Roscelin ter sido banido para lá, para servir
Audemar? Que outro segredo existiria cuja revelação se
temia exceto o do casamento planejado?
Mas Edgytha não chegara a ver Roscelin, não falara
com ele, nem tinha ido ter com Audemar nem com alguém
da sua casa. Por conseguinte, se ela tivesse ido a Elford, por
que é que ninguém a vira? E se ela não tivesse ido a Elford,
onde é que tinha ido?
Por isso, se não fosse o que ele, juntamente com o seu
anfitrião e anfitriã, tinha suposto desde o início, o que era o
gato que Edgytha tinha ido procurar, para colocar no meio
dos pombos de Cenred?
E com toda a probabilidade, ele nunca conheceria as
respostas a estas perguntas, nem saberia que destino
aguardava a moça perdida e o rapaz infeliz, bem como os
pais deste, angustiados e dilacerados pela preocupação com
eles. Era uma pena! Mas não havia nada a fazer, eles já não
podiam invadir a família despedaçada de Cenred e abusar
da sua incómoda hospitalidade. Assim que a casa
começasse a acordar, eles deviam despedir-se e partir para
Shrewsbury. Ninguém sentiria a sua falta. E era altura de
voltarem para casa.
O dia amanheceu cinzento, sob um céu ligeiramente
nublado mas com nuvens altas e não ameaçando mais
quedas de neve. Só alguns fios e traços de branco
permaneciam ao longo das bases das paredes e debaixo
das árvores e dos arbustos e a geada estava a ceder. Não
seria um mau dia para viajantes.
Muito cedo, a casa estava acordada e ativa. Os criados
de Cenred despertaram do seu breve sono, de olhos turvos
e sombrios, conscientes de que não teriam descanso
durante o resto do dia. O que quer que tivesse sido decidido
na conferência solene que tivera lugar no solar durante a
noite, quaisquer que fossem os possíveis locais de asilo que
tivessem sido sugeridos como abrigos seguros para
Helisende, era certo que Audemar teria patrulhas a percorrer
todas as estradas e a fazer perguntas em todas as cabanas,
para o caso de alguém, algures, ter visto Edgytha ou falado
com ela, ou ter reparado numa figura furtiva e solitária à
espreita no caminho que ela tomara. Eles já estavam a
reunir-se no pátio, a selar os cavalos, a apertar arreios e a
aguardar estoicamente as suas ordens, quando Cadfael e
Haluin, calçados e vestidos para a estrada, compareceram
perante Cenred.
Quando se aproximaram, ele estava a conversar com o
seu administrador no meio da atividade do salão e virou-se
cortesmente para eles, mas com um olhar inexpressivo
como se, com estas preocupações mais graves, se tivesse
esquecido de alguma vez os ter visto. A recordação veio-lhe
de imediato à mente, mas não lhe provocou qualquer prazer,
apenas um gesto de contrição hospitaleira.
- Irmãos, peço-vos desculpa, tenho-vos negligenciado.
Não permitam que os nossos problemas vos perturbem.
Utilizem a minha casa como se fosse vossa.
- Meu senhor - disse Haluin -, agradecemos-lhe toda a
sua amabilidade, mas temos de partir. Eu já não lhe posso
ser útil. Já não há pressa, uma vez que já não há segredos.
E nós temos os nossos deveres à espera em casa. Viemos
aqui para nos despedirmos.
Cenred era demasiado honesto para fingir qualquer
relutância em se separar deles e não levantou qualquer
objecção.
- Protelei o vosso regresso para meu próprio benefício -
disse ele num tom pesaroso - e não serviu de nada.
Desculpem ter-vos arrastado para esta questão tão
deplorável. Acreditem, pelo menos, que a minha intenção
era boa. Têm o meu consentimento para partir. Desejo-vos
uma viagem tranquila.
- E a si, meu senhor, desejamos que encontre a dama
em segurança e que Deus vos oriente em todas as
perplexidades - disse Haluin.
Cenred não ofereceu cavalos para a primeira etapa da
viagem, como Adelais tinha feito para todo o percurso. Ele
precisava de todos os cavalos que tinha à sua disposição.
Mas ficou a observar as duas figuras de hábito, o saudável e
o aleijado, a descer lentamente os degraus que se seguiam
à porta do salão, a mão de Cadfael junto do cotovelo de
Haluin, pronta para o apoiar se fosse necessário, as mãos
de Haluin, já calosas de agarrar as hastes das muletas,
tensas e cautelosas a cada passo. No pátio, eles
atravessaram a azáfama dos preparativos e aproximaram-se
do portão. Cenred tirou os olhos deles, aliviado por se ter
visto livre de uma complicação e, com um ar decidido, ainda
que fatigado, voltou o rosto para os restantes.
Roscelin, impaciente com a demora, estava junto do
portão com as rédeas na mão, deslocando, inquieto, o peso
de um pé para o outro e aguardando impacientemente que o
pai ou Audemar desse ordens para montar. Ele lançou um
olhar preocupado aos dois monges enquanto estes se
aproximavam e, depois, mais animado, deu-lhes os bons-
dias e até sorriu através da máscara cinzenta distorcida da
sua própria ansiedade.
- Vão partir para Shrewsbury? É uma boa decisão.
Espero que façam boa viagem.
- E tu, que a tua busca tenha um final feliz - disse
Cadfael.
- Feliz para mim? - disse o rapaz, com o rosto
novamente ensombrado. - Não estou à espera disso.
- Se a encontrares sã e salva e solteira até ela decidir
casar-se, isso será uma felicidade razoável. Duvido que
possas pedir muito mais. Por enquanto - disse Cadfael,
cautelosamente - aceita o que cada dia tiver de bom e sê
grato por isso, e quem sabe que mais poderá ser
acrescentado?
- Está a falar de impossibilidades - disse Roscelin,
implacavelmente. - Mas sei que me deseja bem, e aceito o
que diz como tal, como é sua intenção.
- Onde irão primeiro procurar Helisende? - perguntou o
Irmão Haluin.
- Alguns de nós irão de novo a Elford, para se
certificarem de que, afinal de contas, ela não conseguiu
passar por nós e ir até lá. E a todas as casas senhoriais
próximas, para saber se alguém a viu ou a Edgytha. Ela não
pode ter ido longe. - Ele sofrera sinceramente e ficara
zangado por causa de Edgytha, mas o “ela” que expulsava
todos os outros da sua mente era Helisende.
Deixaram-no impaciente e angustiado, mais inquieto do
que o cavalo que se mexia e batia com as patas no chão,
desejoso de partir. Quando olharam para trás, do exterior do
portão, já ele tinha o pé no estribo e, atrás dele, os restantes
caçadores estavam a pegar nas rédeas para montar.
Voltariam primeiro a Elford, para o caso de Helisende se ter
escapado por entre os seus dedos, evitando os cavaleiros
em ambos os caminhos e chegando em segurança ao seu
refúgio. Cadfael e Haluin tomariam a direção oposta para
oeste. Para chegarem às luzes da casa senhorial, eles
tinham virado um pouco a norte da estrada. Não voltaram
pelo mesmo caminho e viraram imediatamente para oeste,
por um trilho que seguia ao longo da cerca da casa
senhorial. Quando chegaram ao limite do enclave, ouviram
os caçadores de Audemar partir e viraram-se para os ver
sair do portão, alongando-se num longo fio multicolor que se
foi desvanecendo em direção a leste e desapareceu entre as
árvores da primeira cintura e arvoredo.
- E este é o fim da história? - perguntou Haluin,
subitamente pesaroso. - E nunca ficaremos a saber como
tudo vai terminar! Pobre rapaz, com o seu amor sem
esperança. Toda a sua consolação neste mundo deve ser
vê-la feliz, se é que será alguma vez possível ela ser feliz
sem ele. Eu sei - disse o Irmão Haluin, com uma compaixão
que não estava manchada por qualquer autocomiseração
que ainda subsistisse - o que eles estão a sofrer.
Mas parecia que, de fato, para eles, aquele incidente
estava encerrado, e não fazia qualquer sentido olhar para
trás. Voltaram os rostos para oeste e prosseguiram com
firmeza ao longo deste caminho ainda não testado, com o
sol-nascente atrás deles a projectar as suas sombras
alongadas na erva húmida.
- Por este caminho - disse Cadfael, orientando-se
pensativamente quando pararam a meio do dia para comer a
sua refeição de pão, queijo e uma fatia de toucinho fumado
no abrigo de um outeiro coberto de arbustos - acho que não
vamos passar por Lichfield. Calculo que já estejamos a
passar a norte. Não tem importância, encontraremos uma
cama algures antes do anoitecer.
Entretanto, o dia estava límpido e seco, e os campos por
que passavam eram agradáveis, se bem que esparsamente
povoados, possibilitando-lhes menos encontros com seres
humanos do que acontecera na estrada que atravessava
diretamente Lichfield. Tendo dormido tão pouco, não iam
muito depressa, mas avançavam perseverantemente e
aceitavam o descanso que lhes era oferecido ao longo do
caminho, sempre que uma cabana solitária proporcionava a
hospitalidade de um banco junto da lareira e alguns minutos
de conversa.
Com a aproximação da noite, levantou-se um vento
suave, avisando-os de que eram horas de procurar abrigo.
Estavam numa zona que ainda sofria com a severa
utilização a que estivera sujeita cinquenta anos atrás. O
povo destas partes não vira com bons olhos a chegada dos
Normandos e tinha pago o preço da sua obstinação. Aqui e
ali, viam-se restos de propriedades desertas a desfazer-se
em erva e amoreiras silvestres, bem como ruínas de
moinhos a apodrecer suavemente dentro do seu próprio
riacho coberto de vegetação. Os povoados eram poucos e
distantes uns dos outros. Cadfael começou a perscrutar a
paisagem à procura de indícios de um teto habitado.
Um homem de idade que apanhava lenha no meio de
árvores velhas endireitou as costas curvadas para retribuir
as suas saudações e espreitou com curiosidade para eles de
dentro do seu capuz de serapilheira.
- Daqui a menos de meia milha, Irmãos, verão à direita a
cerca de um convento. Ainda está em construção, ainda é
quase todo de madeira, mas a igreja e o claustro são de
pedra, de certeza que os conseguem ver. Só há duas ou três
casas no povoado, mas as irmãs recebem viajantes.
Certamente que arranjam uma cama lá. - E acrescentou,
olhando para os seus hábitos negros: - Elas pertencem à
vossa ordem, é um convento beneditino.
- Eu não sabia que havia um convento beneditino por
estes lados - disse Cadfael. - Como se chama ele?
- Tem o mesmo nome do povoado, que se chama
Farewell. Só tem três anos. Foi o bispo De Clinton que o
fundou. Serão bem recebidos lá.
Eles agradeceram-lhe e deixaram-no a atar e a pegar o
seu enorme feixe de lenha, e viram-no partir para casa na
direção oposta, enquanto prosseguiam, animados, em
direção a oeste.
- Lembro-me - disse Haluin - de ter ouvido qualquer
coisa sobre este local, ou, pelo menos, sobre os planos do
bispo para fundar um novo convento aqui, perto da sua
catedral. Mas só ouvi o nome Farewell quando...
lembraste?... Cenred falou nele na noite em que chegámos a
Vivers. A única casa beneditina existente nesta zona, disse
ele, quando perguntou de onde nós éramos. Temos sorte,
ainda bem que viemos por este caminho.
Nesta altura, com o crepúsculo a fechar-se sobre eles,
ele começava a ficar cansado, apesar do ritmo calmo que
tinham estabelecido. Ficaram ambos satisfeitos quando o
caminho os levou até um pequeno relvado verde ladeado
por três ou quatro cabanas, e viram, para além destas, a
longa cerca clara da nova abadia e o teto da igreja acima
dela. O caminho conduziu-os a uma modesta casa de
porteiro, de madeira. Tanto o sólido portão como o
gradeamento estavam fechados mas, quando puxaram o
sino, uma sucessão de ecos voou na distância para o interior
e, ao fim de alguns minutos, viu-se luz e ouviram-se passos
leves a saltitar em direção a eles, oriundos de dentro da
cerca.
O gradeamento abriu-se e revelou um rosto redondo,
rosado e jovem, que lhes sorria. Grandes olhos azuis
examinaram os seus hábitos e tonsuras e reconheceram
neles membros da mesma Ordem.
- Boa noite, Irmãos - disse uma voz aguda, juvenil,
alegremente afectada. - É bastante tarde para andarem na
estrada. Podemos oferecer-lhes um teto e descanso?
- Era o que vínhamos pedir - respondeu Cadfael,
entusiasticamente. - Podem alojar-nos por esta noite?
- E durante mais tempo, se necessitarem - disse ela num
tom alegre. - Homens da Ordem serão sempre bem-vindos
aqui. Nós ficamos um pouco escondidas e ainda não somos
muito conhecidas e, com a casa ainda em construção,
oferecemos menos conforto, diria eu, do que algumas casas
mais antigas, mas temos espaço para hóspedes como os
Irmãos. Espere um pouco até eu destrancar a porta.
Ela já estava a fazê-lo, eles ouviram o ferrolho recuar e o
trinco da cancela erguer-se, e, depois, a porta abriu-se num
exuberante gesto de boas-vindas, e a porteira fez-lhes sinal
para que entrassem.
Ela não podia, pensou Cadfael, ter mais de dezassete
anos, e era nova no seu noviçado, uma daquelas filhas
supérfulas da pequena nobreza pouco endinheirada, para as
quais sobrava pouco dinheiro para o dote, e com poucas
perspectivas de um casamento vantajoso. Era baixa e
suavemente arredondada, não muito atraente mas fresca e
saudável como pão fresco, e reluzia abençoadamente de
entusiasmo com a sua nova vida e, ao que tudo indicava,
sem saudades do mundo que abandonara. A satisfação de
ocupar um cargo de confiança favorecia-a, o mesmo
sucedendo à touca branca e ao hábito preto que emoldurava
o seu rosto alegre e franco.
- Vieram de longe? - perguntou ela, olhando com
preocupação para o passo esforçado de Haluin.
- De Vivers - disse Haluin, tranquilizando-a rapidamente.
- Não é longe e viemos devagar.
- E ainda vão para muito longe?
- Para Shrewsbury - disse Cadfael -, onde pertencemos
à abadia de São Pedro e São Paulo.
- Fica muito distante - disse ela, sacudindo a cabeça. -
Devem estar a precisar de descansar. Importam-se de
esperar aqui na guarita enquanto digo à Irmã Ursula que tem
hóspedes? A Irmã Ursula é a nossa hospitaleira. O senhor
bispo pediu que viessem duas irmãs mais velhas e
experientes de Polesworth passar uma temporada conosco,
para instruir as noviças. Somos todas muito novas, e há
tanto a aprender, para além de todo o trabalho que temos de
fazer no edifício e no jardim. E eles enviaram-nos a Irmã
Ursula e a Irmã Benedita. Sentem-se e aqueçam-se durante
alguns minutos, eu já volto. - E foi-se embora com o seu
passo leve, dançante, tão alegre na sua vocação para o
claustro como qualquer das suas irmãs seculares poderia
estar perante um casamento iminente mais mundano. - Ela é
verdadeiramente feliz - disse o Irmão Haluin, admirado e
satisfeito. - Não, neste caso, não é uma segunda escolha.
Eu acabei por descobrir isso, mas ela sabe-o desde o início.
Se isto é obra das irmãs de Polesworth, elas devem ser
mulheres de sabedoria e graça.
A Irmã Ursula, a hospitaleira, era uma mulher alta e
magra com cerca de cinquenta anos e um rosto vincado e
experiente, ao mesmo tempo sereno, resignado, e até
mesmo ligeiramente divertido, como se tivesse visto e
passado a aceitar todas as extravagâncias do
comportamento humano, e nada agora seria capaz de a
surpreender ou desconcertar. Se a outra instrutora
emprestada for como esta, pensou Cadfael, então, estas
moças inexperientes de Farewell tiveram sorte.
- São muito bem-vindos - disse a Irmã Ursula entrando
energicamente na guarita seguida da jovem porteira
sorridente. - A abadessa terá muito gosto em recebê-los
amanhã de manhã, mas aquilo de que mais devem estar a
precisar agora é de comida, descanso e uma cama,
sobretudo porque ainda têm uma viagem muito longa à
vossa frente. Venham comigo, há um aposento preparado
para visitantes ocasionais e os nossos próprios irmãos são
extremamente bem-vindos.
Ela conduziu-os para o exterior da guarita até um pátio
exterior estreito de onde se via a igreja à sua frente, um
modesto edifício de pedra em que eram evidentes os sinais
do trabalho em curso, com pedra de cantaria e madeira,
cordas e andaimes empilhados de encontro à parede,
indicando que nada ali estava terminado. Mas em apenas
três anos elas tinham construído a igreja e toda a estrutura
do convento, com exceção da zona sul, em que apenas o
piso inferior que alojava o refeitório estava completo.
- O bispo forneceu-nos a mão-de-obra e uma dotação
generosa - disse a Irmã Ursula -, mas a construção ainda vai
demorar alguns anos. Entretanto, vivemos com simplicidade.
Não nos falta nada do que é necessário e não desejamos
nada que esteja para além das nossas necessidades.
Suponho que, quando todas estas casas de madeira forem
substituídas por construções de pedra, o meu trabalho aqui
estará terminado e voltarei para Polesworth, onde há muitos
anos fiz os meus votos, mas não sei se não preferiria ficar
aqui, se puder escolher. Quando se cria uma coisa desde o
seu nascimento, sentimos por ela o mesmo que se tivesse
nascido do nosso próprio corpo.
A cerca do enclave acabaria, sem dúvida, por ser
substituída por um muro de pedra, e as construções de
madeira que a orlavam, a enfermaria, os edifícios
domésticos, a hospedaria e os armazéns, seriam
reconstruídos gradualmente um a um. Mas a rápida visão do
claustro que tinham tido de passagem mostrara que as ervas
do pátio já tinham sido cortadas e que uma bacia de pedra
pouco funda continha água para atrair os pássaros.
- No próximo ano - disse a Irmã Ursula -, já teremos
flores. A Irmã Benedita, a nossa melhor jardineira em
Polesworth, veio para aqui comigo, o pátio é o seu domínio.
As coisas crescem para ela, os passarinhos vêm comer-lhe
à mão. Eu nunca tive esse dom.
- E a vossa abadessa também veio de Polesworth? -
perguntou Cadfael.
- Não, o Bispo De Clinton trouxe a Madre Patrice de
Con-ventry. Nós duas teremos de regressar à nossa própria
casa quando já não formos necessárias aqui, a não ser que,
como eu já disse, nos deixem ficar aqui o resto da vida.
Precisaríamos da autorização do bispo, mas, quem sabe, ele
talvez a conceda.
Para além do claustro, abria-se um pequeno pátio
privado, com a hospedaria a um extremo, perto da cerca
clara. O pequeno quarto que aguardava os primeiros
viajantes era escuro e cheio do calor e da fragrância da
madeira, mobilado com simplicidade com duas camas e uma
mesa pequena, um crucifixo na parede e um pequeno
oratório debaixo dele.
- Utilizem-no como se fosse vosso - disse a Irmã Ursula,
alegremente. - Eu vou mandar trazer o jantar. Chegaram
demasiado tarde para as Vésperas, mas, se quiserem juntar-
se a nós para as Completas, irão ouvir o sino. Se quiserem,
podem utilizar a nossa igreja para rezar. Ainda é nova mas,
quanto mais boas almas receber sob o seu teto, melhor. E
agora, se tiverem tudo o que precisam, deixo-vos a
descansar.
No abençoado silêncio virginal desta abadia nova de
Farewell, o Irmão Haluin adormeceu profundamente assim
que voltaram das Completas e dormiu profundamente
durante toda a noite, até depois do nascer de um dia suave
e límpido, livre de geada. Quando acordou, já Cadfael
estava a pé, a preparar-se para rezar o ofício divino matinal
e fazer as suas orações privadas na igreja.
- O sino já tocou para as Matinas? - perguntou Haluin,
levantando-se apressadamente.
- Não, e, a julgar pela luz do dia, ainda falta cerca de
meia hora. Se quisermos, poderemos ter a igreja só para
nós durante algum tempo.
- Essa é uma boa ideia - disse Haluin, saindo com ele de
bom grado para o pequeno pátio e atravessando-o até à
porta sul que ia dar ao claustro. A erva do pátio estava
húmida e verde, a palidez branqueada do Inverno tinha
desaparecido da noite para o dia. A tímida névoa de botões
de flor que mal se via alguns dias antes tinha agora uma cor
evidente, tendo-se transformado num suave véu verde. Só
seriam necessários alguns dias amenos e um pouco de sol
para que fosse subitamente Primavera. Na água límpida e
pouco funda da bacia de pedra, pequenos pássaros
trinavam e sacudiam-se, conscientes da alteração. O Irmão
Haluin aproximou-se da pequena igreja de Farewell através
de testemunhos de esperança. Certamente que esta
primeira igreja seria aumentada e substituída mais tarde,
quando as necessidades imediatas de construção fossem
satisfeitas, a sua dotação assegurada e o seu prestígio
estabelecido. No entanto, este primeiro edifício, embora
fosse pequeno e simples, seria sempre recordado com afeto,
e a sua substituição seria lamentada por aquelas que, tal
como a Irmã Ursula e a Irmã Benedita, tinham assistido ao
seu nascimento e nele tinham servido.
Celebraram o ofício divino juntos na tranquilidade
obscura da pedra, ajoelhados perante o pequeno pavio da
lamparina do altar, e depois rezaram as suas orações
privadas em silêncio. Por cima deles, a luz tornou-se mais
suave e clara, o primeiro raio velado do sol-nascente
atravessou a cerca do enclave e tocou nas pedras
superiores do muro a leste, tornando-o cor-de-rosa-pálido, e
o Irmão Haluin ainda estava ajoelhado, com as muletas
caídas a seu lado.
Cadfael foi o primeiro a levantar-se. Já não devia faltar
muito para as Matinas, e a presença de dois homens no seu
serviço religioso matinal poderia ser uma inconveniente
distração para irmãs jovens, mesmo que eles fossem
monges da mesma Ordem. Ele atravessou a porta sul e
ficou a olhar para o pátio, à espera que Haluin precisasse da
sua ajuda para se levantar.
De pé, ao lado da bacia de pedra ao centro, estava uma
irmã muito magra, direita e composta, a dar comida aos
pássaros. Desfazia o pão em migalhas em cima da orla larga
da bacia e colocava os pedaços na palma da mão estendida,
e à sua volta as asas das aves agitavam-se e vibravam
intrepidamente. O hábito preto acentuava a sua elegância, e
o seu porte possuía uma graciosidade juvenil que
trespassou, penetrante, a memória de Cadfael. A pose da
cabeça sobre o pescoço comprido e os ombros direitos, a
cintura estreita e elegante, a mão comprida a dar comida
aos pássaros, certamente que ele já as tinha visto antes,
noutro local, sob uma outra luz enganadora. Agora, ela
estava ao ar livre, banhada pela suave luz da manhã, e ele
não podia acreditar que estivesse enganado.
Helisende estava aqui em Farewell, Helisende num
hábito de freira. A noiva tinha fugido ao seu insuportável
dilema e tomado o véu em vez de casar com alguém que
não fosse o seu infeliz amante Roscelin. É verdade que
ainda não podia ter feito os votos, mas as outras irmãs
poderiam ter decidido dar-lhe a protecção imediata do
hábito, antes mesmo de ela ter dado início ao seu noviciado.
Ela tinha um ouvido apurado, ou talvez estivesse à
espera de ouvir passos leves na zona ocidental do claustro,
onde ficava o dormitório das irmãs. Pois ela tinha claramente
ouvido o som de alguém a aproximar-se daquela direção e
virou-se, sorridente, para o recém-chegado. O movimento
em si, pausado e tranquilo, lançou dúvidas sobre a
juventude que ele vira nela um momento antes e mostrou-
lhe um rosto que lhe era totalmente desconhecido.
Não era uma jovem inexperiente, mas sim uma mulher
serena e madura. A revelação que tivera lugar no salão de
Vivers descreveu um círculo completo, da ilusão para a
realidade, da moça para a mulher, tal como na altura tinha
girado para trás, da mulher para a moça. Não era Helisende,
nem sequer era muito parecida com Helisende, exceto na
testa alta de marfim, na suave e melancólica forma oval do
rosto e nos belos olhos cândidos e vulneráveis. Na figura e
no porte, sim, eram iguais. Se ela se virasse novamente de
costas, ter-se ia tornado outra vez a imagem da filha.
Pois quem mais poderia aquela mulher ser senão a
mãe-viúva, que preferira tomar o véu em Polesworth a ver-
se forçada a efetuar um segundo casamento. Quem mais a
não ser a Irmã Benedita, enviada para aqui para o novo
convento do bispo para ajudar a estabelecer uma tradição
segura e um exemplo abençoado para as irmãs jovens de
Farewell? A Irmã Benedita que encantava as flores e as
fazia crescer, e a quem os pássaros vinham comer à mão?
Ainda que o resto da casa de Vivers não o soubesse,
Helisende devia ter tido conhecimento de que ela se tinha
mudado. Helisende soubera onde procurar refúgio quando
dele necessitara. Para onde iria ela a não ser para junto da
mãe?
Ele estivera tão intensamente concentrado na mulher no
pátio que não ouvira nada vindo do interior da igreja, até se
aperceber do ruído das muletas nas pedras e deu meia
volta, quase com um sentimento de culpa, para regressar
aos seus deveres. Haluin tinha conseguido pôr-se de pé sem
ajuda e surgiu agora ao lado de Cadfael, olhando com
prazer para o pátio, onde a luz enevoada do sol e a sombra
húmida se misturavam.
Os seus olhos recaíram sobre a freira, e parou
abruptamente, oscilando sobre as muletas. Cadfael viu os
olhos escuros ficarem fixos e muito abertos, o seu olhar
parado a adquirir a incandescente imobilidade de uma visão
ou de um transe, e os lábios sensíveis a mover-se quase
sem emitirem um som, formando as lentas sílabas de um
nome. Quase sem som, mas não completamente, porque
Cadfael ouviu-o.
Num tom de espanto, de alegria e dor, e todos estes
sentimentos em extremos, com um ser possuído por um
êxtase religioso: - Bertrade! - murmurou o Irmão Haluin.

CAPÍTULO 11

Não havia qualquer engano no nome, nem qualquer


dúvida sobre a certeza absoluta com que fora pronunciado.
Se, por um momento, Cadfael sentiu uma saudável e
sensata incredulidade, no momento seguinte abandonou-a,
e ela foi imediatamente varrida por uma enorme torrente de
esclarecimento. Em Haluin não havia absolutamente dúvida
nenhuma. Ele soube o que viu, deu-lhe o seu nome
verdadeiro, inesquecível, e ficou ali perdido de espanto,
tremendo com a intensidade do que acabara de tomar
conhecimento. Bertrade!
O primeiro relance que tivera da filha dela tinha-o
atingido no coração, a cópia vista na semiobscuridade de
encontro à luz era muito semelhante ao original. Mas assim
que Helisende tinha avançado à luz do archote, a
semelhança tinha-se desvanecido, e a visão dissolvera-se.
Aquela era uma moça que ele não conhecia. Agora ela
aparecera outra vez e virara para ele o rosto que recordava
com saudade, e não havia mais dúvidas.
Então, ela não tinha morrido. Cadfael tentou
compreender, em silêncio, o que sabia. O túmulo que Haluin
procurara era uma ilusão. Ela não morrera da poção que lhe
roubara a criança, ela tinha sobrevivido a esse perigo e a
essa dor, para se casar com um marido idoso, vassalo e
amigo da família da mãe, e para lhe dar uma filha que era a
imagem dela própria na constituição e no porte. E ela tinha
feito o possível por ser uma esposa e uma mãe fiel até à
morte do seu velho senhor, mas, depois da morte deste,
voltara as costas ao mundo e seguira o seu primeiro amante
até ao claustro, escolhendo a mesma Ordem, tomando para
si própria o nome do fundador, ligando-se de uma vez por
todas à mesma disciplina para a qual Haluin fora impelido.
Então, por que é que, argumentou um diabinho
persistente na mente de Cadfael, por que é que tu... tu, não,
Haluin!... viste no rosto da moça de Vivers algo
inexplicavelmente familiar? Quem se estava a esconder de ti
nas profundas cavernas da memória, recusando-se a ser
reconhecido? Tu nunca tinhas visto a moça antes, nunca na
vida tinhas posto os olhos na sua mãe. Quem te olhou do
fundo dos olhos de Helisende e depois colocou um véu entre
eles, não foi Bertrade de Clary.
Tudo isto lhe fervilhou na mente no instante da
revelação, no breve momento antes de a própria Helisende
emergir das sombras da zona ocidental e entrar no pátio
para ir ter com a mãe. Ela não vestira o hábito, usava o
mesmo vestido que tinha usado na noite anterior à mesa do
irmão. Estava pálida e grave, mas tinha a calma do convento
à sua volta, aqui estava segura de todas as compulsões,
tinha tempo para pensar e para se aconselhar.
As duas mulheres encontraram-se, e as bainhas das
suas saias descreveram dois trilhos mais escuros no verde-
prateado da erva húmida. Viraram-se as duas lentamente
para a porta por onde Helisende tinha saído, prontas para
entrar e ir ter com o resto da irmandade para as Matinas.
Elas iam-se embora, desapareceriam e nada seria
respondido, nada ficaria resolvido, nada se tornaria claro! E
Haluin continuava a oscilar em cima das muletas, imóvel e
mudo. Ele ia perdê-la outra vez, ela já estava praticamente
perdida. As duas mulheres quase tinham chegado à parede
ocidental, as cordas da perda estavam esticadas quase ao
ponto de se partirem.
- Bertrade! - exclamou Haluin, num enorme grito de
terror e desespero.
O grito alcançou-as, ecoando surpreendentemente de
todas as paredes e fê-las dar meia volta e olhar com uma
expressão de alarme e espanto para a porta da igreja.
Haluin libertou-se do seu aturdimento com um enorme
arquejo e avançou destemidamente para o pátio, com as
muletas a ferir a erva macia.
Quando viram um homem desconhecido a dirigir-se
apressadamente a elas, as mulheres recuaram
instintivamente mas, quando olharam uma segunda vez para
o seu hábito e viram como ele era aleijado, estancaram a
sua fuga por pura compaixão para permitir que ele se
aproximasse e deram até alguns passos impulsivos para ir
ao seu encontro. Por um momento, não houve nesse
movimento mais do que isso, a pena de um homem aleijado.
Ele tivera demasiada pressa de chegar ao pé delas e
vacilou e, por um momento, desequilibrou-se, prestes a cair,
mas a moça, rápida na sua compaixão, deu um salto em
frente para o apoiar nos seus braços. O peso dele a cair nos
braços dela fê-los rodar, depois recuperaram o equilíbrio
com as faces quase coladas uma à outra, e Cadfael,
espantado, ofuscado de assombro, observou os dois rostos
lado a lado, durante um longo momento.
Assim, agora ele tinha finalmente a sua resposta. Agora,
ele sabia tudo o que havia a saber, tudo exceto o tipo de
fúria e azedume que podia levar um ser humano a fazer uma
coisa tão vil e cruel a outro. E até mesmo essa resposta não
seria difícil de encontrar.
Foi nesse momento de total esclarecimento que
Bertrade de Clary, olhando ansiosamente para o rosto do
desconhecido, soube que ele não era um estranho e
chamou-o pelo nome: - Haluin!
Não houve mais nada, não, nessa altura, apenas o
encontro dos olhos, o reconhecimento mútuo e a
compreensão de ambas as partes dos erros e sofrimentos
do passado, nunca totalmente compreendidos antes,
amargos e terríveis por um momento, depois apagados por
uma grande torrente de gratidão e alegria. Porque, no
momento em que os três ficaram calados e imóveis, a olhar
uns para os outros, todos eles ouviram o pequeno sino das
Matinas a tocar no dormitório e souberam que as irmãs iriam
descer as escadas em fila para entrarem, em procissão, na
igreja.
Não houve mais nada, não nessa altura. As mulheres
recuaram, lançando longos olhares de espanto, e deram
meia volta para responder à chamada e ir ter com as irmãs.
E Cadfael avançou para o pátio para pegar no braço do
Irmão Haluin e para o conduzir suavemente, como uma
criança sonâmbula, de regresso à hospedaria.
- Ela não morreu - disse Haluin, rigidamente erecto à
beira da cama. Disse-o muitas vezes, registando o milagre
numa repetição mais próxima duma litania do que de uma
oração: - Ela não morreu! Era falso, falso, falso! Ela não
morreu!
Cadfael não proferiu uma única palavra. Ainda não era
altura de falar sobre tudo o que estava por detrás desta
revelação.
De momento, a mente chocada de Haluin não conseguia
ver nada para além daquele fato, da alegria de saber que
aquela cuja morte, ocorrida por culpa sua, ele chorara
durante tanto tempo, estava viva, de boa saúde e num
refúgio seguro, e da perplexidade e da mágoa de terem
permitido que ele a chorasse durante tanto tempo.
- Tenho de falar com ela - disse Haluin. - Não me posso
ir embora sem ter conversado com ela.
- Não irás - garantiu-lhe Cadfael.
Agora era inevitável, era necessário que tudo ficasse
esclarecido. Eles tinham-se encontrado, tinham-se visto,
agora ninguém conseguiria desfazer isso, o cofre selado
tinha-se aberto, os segredos saltavam para fora dele, agora
já ninguém conseguia fechar outra vez a tampa.
- Não podemos partir hoje - disse Haluin.
- Não vamos partir. Espera aqui pacientemente - disse
Cadfael. - Vou tentar pedir uma audiência à abadessa.
A abadessa de Farewell, trazida de Coventry pelo Bispo
De Clinton para dirigir o seu novo convento, era uma mulher
anafada, com talvez cerca de quarenta e cinco anos, um
rosto cheio, avermelhado, e olhos castanhos astutos que
pesavam e mediam tudo com um só olhar e julgavam com
segurança. Ela estava sentada muito direita num banco sem
almofadas, numa pequena sala espartana, e, quando
Cadfael entrou, fechou o livro que tinha à sua frente.
- Teremos muito gosto, Irmão, em prestar-lhe os nossos
serviços. A Ursula disseme que é da abadia de São Pedro e
São Paulo, em Shrewsbury. Tencionava convidá-lo, bem
como ao seu companheiro, para jantar comigo, e faço agora
esse convite. Mas ouvi dizer que tinha solicitado este
encontro, antecipando qualquer gesto meu. Suponho que
deve ter um motivo. Sente-se, Irmão, e diga-me que mais
tem a pedir-me.
Cadfael sentou-se ao lado dela, debatendo mentalmente
se lhe devia contar muito ou pouco. Ela era uma mulher
bastante capaz, não só de preencher por si própria
quaisquer lacunas, mas também, supôs ele, uma mulher de
escrupulosa discrição que guardaria para si o que quer que
lesse nas entrelinhas.
- Eu venho, Reverenda Madre, pedir-lhe que autorize um
encontro, em privado, entre o meu Irmão Haluin e a Irmã
Benedita.
Ele viu as sobrancelhas dela erguerem-se, mas os
pequenos olhos vivos por baixo delas permaneceram
imperturbáveis e argutos.
- Quando eram jovens - disse ele - conheceram-se bem.
Ele estava ao serviço da mãe dela e, estando tão próximos
numa casa e sendo da mesma idade, um rapaz e uma moça
juntos, apaixonaram-se. Mas as pretensões de Haluin não
foram nada do agrado da mãe dela, e esta empenhou-se em
separá-los. Haluin foi despedido e proibido de contactar com
a moça, que foi persuadida a efetuar um casamento mais do
agrado da família. Sem dúvida que conhece a história dela
desde então. Haluin entrou para a nossa casa, obviamente
pela razão errada. Não é bom uma pessoa voltar-se para a
vida espiritual por desespero, mas muitos têm-no feito, como
eu e a Irmã sabemos, e tornaram-se membros fiéis e
honrosos das suas casas. Foi o que aconteceu com Haluin.
E, não duvido, também com Bertrade de Clary.
Ele reparou no brilho dos olhos dela ao ouvir aquele
nome. Havia muito pouco que ela não soubesse sobre o seu
rebanho, mas, se sabia mais do que ele dissera a respeito
desta mulher, não mostrou qualquer sinal nem fez qualquer
comentário, aceitando tudo tal como ele contara.
- Parece-me - disse ela - que a história que me conta
corre o risco de ser repetida noutra geração. As
circunstâncias não são exatamente as mesmas, mas o fim
poderá muito bem ser idêntico. Acho que devemos refletir
sobre como se deverá lidar com ela.
- Eu tenho isso em mente - disse Cadfael. - E como lidou
com ela até agora? Desde que a moça veio a correr até si
durante a noite? Porque há dois dias que toda a casa de
Vivers percorre as estradas à procura dela.
- Eu creio que não - disse a abadessa. - Porque ontem
eu mandei informar o irmão que ela está aqui em segurança
e que lhe pede que a deixe em paz durante algum tempo
para poder pensar e rezar. Penso que, dadas as
circunstâncias, ele respeitará o seu desejo.
- Circunstâncias que ela lhe contou - disse Cadfael com
convicção - na totalidade. Isto é, tanto quanto ela saiba.
- Contou. - Então, a Irmã tem conhecimento da morte de
uma mulher e do casamento combinado para Helisende. E
também sabe qual é o motivo desse casamento?
- Sei que ela tem um grau de parentesco demasiado
próximo do jovem. Sim, ela disseme. Mais, imagino, do que
conta ao seu confessor. Não precisa de recear por
Helisende, desde que aqui esteja, ela está a salvo de ser
importunada e tem a companhia e o conforto da sua mãe.
- Ela não poderia estar em melhor lugar - disse Cadfael,
fervorosamente. - Então, no que diz respeito a estes dois
que mais nos preocupam agora, devo dizer-lhe que foi dito a
Haluin que Bertrade tinha morrido, e ele acreditou nisso
durante todos estes anos, e, além disso, considerava-se
culpado pela morte dela. Esta manhã, pela graça de Deus,
ele viu-a à sua frente viva e de boa saúde. Eles não
trocaram quaisquer palavras a não ser os seus nomes. Mas
eu penso que seria melhor que trocassem, se o autorizar.
Eles servirão melhor nas suas distintas vocações se tiverem
paz de espírito. Além disso, têm o direito de saber que o
outro se sente bem e está feliz.
- E acha que - disse a abadessa com determinação -
eles se sentirão felizes? Depois... tal como antes?
- Mais e melhor do que antes - disse ele num tom de
certeza. - Posso falar pelo homem, e julgo que a abadessa
deve conhecer a mulher igualmente bem. Se se separarem
assim, sem trocarem uma palavra, sentir-se-ão
atormentados até ao fim dos seus dias.
- Eu não gostaria de responder a Deus por isso - disse a
abadessa, com um breve sorriso triste. - Bem, eles terão a
sua hora e farão as pazes. Não pode fazer mal, e é possível
que seja muito benéfico. Tencionam ficar aqui mais alguns
dias?
- O dia de hoje, pelo menos - disse Cadfael. - Pois tenho
mais um pedido a fazer-lhe. Vou deixar o Irmão Haluin a seu
cargo. Há uma coisa que tenho de fazer antes de voltar para
casa. Não aqui! Empresta-me um cavalo das suas
cavalariças?
Ela ficou a estudá-lo durante algum tempo e pareceu ter
ficado veladamente satisfeita com o que viu, pois finalmente
disse: - Com uma condição.
- Qual é?
- Que, quando chegar a altura e quando os problemas
acabarem, me conte a outra metade da história.
O Irmão Cadfael conduziu o seu cavalo emprestado para
o pátio das cavalariças e montou sem pressa. O bispo tinha
tido por bem proporcionar cavalariças adequadas para as
suas próprias visitas, bem como dois robustos cavalos para
remontas, para o caso de algum dos seus enviados passar
por ali e utilizar a hospitalidade da abadia. Tendo-lhe sido
dado liberdade para escolher, Cadfael escolhera
naturalmente o de melhor aspecto e o mais jovem, um
cavalo baio sólido e activo. A viagem que ele tinha em mente
não era muito longa, mas, já agora, por que razão não havia
de retirar dela o maior prazer possível durante o caminho?
Haveria muito pouco prazer no final dela.
O Sol já ia alto quando passou o portão, um sol pálido a
tornar-se mais brilhante e mais límpido à medida que o ar do
dia aquecia em direção à Primavera palpável. A neve fatal
que caíra em Vivers seria a última neve do Inverno,
completando, de uma forma apropriada, a peregrinação de
Haluin, tál como a primeira queda de neve a iniciara.
A gaze verde de filigrana de botões de flores ao longo
dos ramos dos arbustos e das árvores tinha explodido na
tenra plumagem de folhas jovens. A erva húmida cintilava e,
ao ser atingida pelo sol, exalava um vapor leve e fragrante.
Tanta beleza e, atrás dele, enquanto cavalgava, ficava uma
grande clemência, uma libertação justa e uma renovação da
esperança. E, à sua frente, havia uma alma solitária que
poderia ser salva ou perder-se.
Ele não tomou a estrada para Vivers. Não era ali que
tinha uma questão urgente a resolver, embora pudesse bem
regressar por aquele caminho. Parou uma vez para olhar
para trás, e a longa linha da cerca da abadia desaparecera
nas dobras da terra e, com ela, o povoado. Haluin estaria à
espera, interrogando-se, à procura do caminho através de
um sonho confuso, cheio de perguntas para as quais não
podia ter resposta, dividido entre a crença e a incredulidade,
entre a alegria receosa e a angústia rememorada, até a
abadessa o mandar chamar para o encontro que finalmente
tornaria tudo claro.
Cadfael seguiu lentamente até encontrar alguém a quem
pudesse pedir orientações. Uma mulher que conduzia
carneiros e cordeiros para o pasto na orla da aldeia parou de
bom grado para lhe indicar a estrada mais directa. Ele não
precisava de passar perto de Vivers, e ainda bem, pois não
tinha a mínima vontade de se encontrar já com Cenred ou
com os seus homens. Naquele momento, não tinha nada
para lhes dizer e, na realidade, não era ele que devia contar
o que teria de ser finalmente contado.
Uma vez no caminho que a sua informadora tinha
indicado, cavalgou rápida e Resolutamente até desmontar
junto do portão da casa senhorial de Elford.
Foi a jovem porteira que bateu suavemente à porta e
quebrou a solidão angustiada do irmão Haluin, algumas
horas mais tarde nessa manhã depois de o Sol ter perdido o
seu véu, e a erva do pátio ter começado a secar. Ele olhou
em volta quando ela entrou, à espera de ver Cadfael, e fitou-
a com os olhos ainda bem abertos e cheios de espanto.
- A Madre Abadessa enviou-me - disse a moça, com
uma suavidade resoluta, uma vez que ele quase parecia
incapaz de compreender - para o chamar à sua sala. Se vier
comigo, mostro-lhe o caminho.
Ele estendeu a mão obedientemente para as muletas.
- O Irmão Cadfael saiu e não voltou - disse ele
lentamente, olhando à sua volta como um homem a
despertar do sono. - Esta convocatória é também para ele?
Não devo esperar por ele?
- Não há necessidade - disse ela. - O Irmão Cadfael já
falou com a Madre patrice e disse-lhe que tinha uma tarefa a
cumprir agora. O irmão vai esperar o seu regresso aqui com
calma. Vem?
Haluin pôs-se de pé e seguiu-a através do pátio traseiro
até aos aposentos da abadessa, confiante como uma
criança, embora metade da sua mente estivesse ausente. A
pequena porteira acertou os seus passos ligeiros com o
andar esforçado dele, conduzindo-o com agradável
suavidade até à porta da sala, e virando-se para ele no limiar
com um sorriso alegre, encorajador: - Entre, é esperado.
Ela segurou a porta aberta para ele entrar, uma vez que
ele precisava de ambas as mãos para as suas muletas. Ele
atravessou o limiar a coXear, entrou na sala pouco iluminada
que cheirava a madeira e parou perto da entrada para fazer
uma vênia à Madre Superiora, mas ficou imóvel e trémulo
enquanto os seus olhos se habituavam à luz suave. Porque
a mulher que estava de pé à sua espera, imóvel e a sorrir
maravilhosamente no centro da sala, com as mãos
estendidas para o ajudar a aproximar-se, não era a
abadessa mas sim Bertrade de Clary.

CAPÍTULO 12

O cavalariço que atravessou calmamente o pátio para


saudar o visitante e lhe perguntar o que pretendia não era
Lothair nem Luc, mas sim um jovem magro que ainda não
tinha vinte anos, com uma enorme cabeleira escura. Atrás
dele, o pátio parecia esvaziado da sua habitual atividade,
com apenas alguns criados a levar a cabo as suas tarefas
de uma forma casual, como se todo o constrangimento
tivesse abrandado. Pelos vistos, o dono da casa e a maior
parte dos seus homens ainda estavam ausentes, à procura
de quaisquer palavras que conduzissem ao assassino de
Edgytha.
- Se veio à procura do senhor Audemar de Clary - disse
o rapaz, imediatamente - está com pouca sorte. Ele ainda
está em Vivers, por causa da mulher que foi morta há
algumas noites. Mas o seu administrador está aqui, se
pretender alojamento é melhor falar com ele.
- Obrigado - disse Cadfael, entregando-lhe as rédeas -,
mas não vim falar com Audemar de Clary. A minha missão é
com a mãe dele. Eu sei onde são os seus aposentos de
viúva. Se tomar conta do meu cavalo, vou perguntar à aia
dela se a dama tem a bondade de me receber.
- Como quiser. O Irmão já aqui esteve antes - disse o
rapaz, semicerrando os olhos numa expressão de
curiosidade a respeito deste visitante vagamente familiar. -
Há apenas alguns dias, com outro monge de preto, aquele
que andava de muletas e muito aleijado.
- É verdade - disse Cadfael. - E, nessa altura, falei com a
dama, e ela não deverá ter-me esquecido, nem ao Irmão
aleijado. Se ela me recusar uma audiência agora, deixá-la-ei
em paz... mas penso que não vai recusar.
- Então, tente - concordou o cavalariço em tom de
indiferença. - Ela ainda aqui está com a criada, e sei que
está em casa. Nos últimos dias, não tem saído de casa.
- Ela tinha dois palafreneiros consigo - disse Cadfael -,
pai e filho. Nós travámos conhecimento com eles quando
estivemos aqui, eles tinham vindo de Shropshire com ela. Eu
gostaria de conversar com eles depois, se não tiverem ido
para Vivers com os homens do senhor Audemar.
- Oh, esses homens! Não, eles são homens dela e não
dele. Mas também não estão aqui. Partiram ontem muito
cedo, numa incumbência dela. Para onde? Como é que eu
havia de saber para onde? De regresso a Hales,
provavelmente. É onde a velha dama vive a maior parte do
tempo.
Gostaria de saber, pensou Cadfael, voltando-se para a
habitação de Adelais situada no canto da muralha do
enclave, gostaria realmente de saber como reagiria Adelais
de Clary se soubesse que os cavalariços do seu filho se
referiam a ela como “a velha dama”. Sem dúvida que, aos
olhos daquele rapaz jovem, ela parecia velha como as
colinas, mas ela acalentava e conservava o que fora uma
grande beleza, e nada nem ninguém podia denegrir essa
excelência. Por algum motivo, ela tinha escolhido para
criada íntima alguém pouco atraente e com o rosto marcado
pela varíola, e se rodeava de rostos feios e vulgares que
faziam com que o seu próprio rosto brilhasse mais.
À porta da residência de Adelais, ele pediu uma
audiência, e a mulher, Gerta, tratou-o com arrogância,
protegendo a privacidade da sua ama e mostrando-se
segura das suas funções. Ele não mandara dizer qualquer
nome e, quando ela o viu, estancou, nada satisfeita por ver
um dos beneditinos de Shrewsbury de volta tão depressa e
tão inexplicavelmente.
- A minha dama não deseja receber visitas. Qual é o
assunto sobre o qual precisa de a incomodar? Se necessita
de alojamento e comida, o administrador do meu senhor
Audemar tratará disso.
- O meu assunto - disse Cadfael - é só com a dama
Adelais, e não diz respeito a mais ninguém. Diga-lhe que o
Irmão Cadfael está outra vez aqui, que ele veio da abadia de
Farewell e que deseja falar com ela. Eu acredito que ela
evite receber visitas. Mas julgo que não se vai recusar a falar
comigo.
Ela não era tão ousada que se atrevesse a assumir a
responsabilidade de lhe negar o pedido, embora se tivesse
afastado com uma sacudidela da cabeça, e gostaria muito
de trazer de volta uma resposta negativa. Pela expressão
azeda do seu rosto, era óbvio que esse prazer lhe fora
negado.
- A minha senhora manda-o entrar - disse, friamente,
abrindo a porta para ele passar e entrar no aposento. E sem
dúvida que ela estava à espera de ficar a ouvir o que se iria
passar, mas os seus privilégios não iam tão longe.
- Deixa-nos - disse a voz de Adelais de Clary, da sombra
profunda sob uma janela com as portadas fechadas. - E
fecha a porta.
Desta vez, ela não tinha, aparentemente, as mãos
ocupadas com tarefas femininas, não fingia estar a bordar
nem a fiar, estava meramente sentada na semiescuridão,
imóvel, com as mãos abertas sobre os braços da cadeira,
agarrando as cabeças de leão esculpidas em que os
mesmos terminavam. Não se moveu quando Cadfael entrou,
não ficou surpreendida nem perturbada. Os seus olhos
fundos fixaram-se nele com espanto e, pensou ele, sem
arrependimento. Foi quase como se ela tivesse estado à sua
espera.
- Onde deixou Haluin? - perguntou ela.
- Na abadia de Farewell - disse Cadfael.
Ela ficou em silêncio por um momento, olhando-o com
um rosto imóvel e olhos brilhantes, com uma intensidade
que ele sentiu com uma vibração no ar, antes mesmo de os
seus olhos se habituarem à obscuridade, e ele observou os
traços dela a surgirem gradualmente da escuridão, a
escuridão em que ela decidira encarcerar-se. Depois, ela
disse com uma determinação dura: - Não voltarei a vê-lo.
- Não, não vai voltar a vê-lo. Quando isto terminar,
voltamos para casa.
- Mas o Irmão - disse ela -, sim, durante todo este tempo
eu sempre pensei que voltaria. Mais cedo ou mais tarde,
havia de voltar. Ainda bem, talvez! Agora as coisas estão
para além do meu controlo. Bem, diga o que veio dizer. Eu
prefiro ficar calada.
- Isso não pode fazer - disse Cadfael. - É a sua história.
- Então, seja o meu cronista. Conte-a! Faça-me recordar!
Deixe-me ouvir como irá soar aos ouvidos do meu confessor,
se algum padre voltar a ouvir a minha confissão. - Ela
estendeu subitamente uma mão comprida, fazendo-lhe
imperiosamente sinal para que se sentasse, mas ele ficou de
pé onde a conseguia ver mais claramente, e ela não se
mexeu para evitar os olhos dele, nem fez quaisquer
concessões à fixidez do seu olhar. O seu rosto belo e
orgulhoso estava composto e mudo, não admitindo nada,
não negando nada. Só os olhos escuros a arder nas suas
órbitas fundas eram eloquentes e, mesmo assim, usavam
uma linguagem que ele não conseguia traduzir totalmente.
- A senhora sabe muito bem o que fez, há muitos anos -
disse Cadfael. - Impôs um castigo terrível a Haluin por ter
ousado amar a sua filha e a ter engravidado. Perseguiu-o
até ao convento para onde a sua inimizade o impelira...
demasiado cedo, mas os jovens desesperam depressa.
Obrigou-o a fornecer-lhe os meios para um aborto e
mandou-lhe dizer depois que os mesmos tinham matado a
mãe e a criança. Durante todos esses anos, fê-lo sentir essa
terrível culpa, que foi o seu tormento ao longo da vida. Disse
alguma coisa?
- Não - disse ela. - Continue! Mal começou.
- É verdade, mal comecei. Aquela poção de hissope e
flor de lúcio que obteve dele nunca foi utilizada. A sua
finalidade era apenas envenená-lo, não fez mal a mais
ninguém. O que fez com ela? Deitou-a fora? Não, muito
antes de lhe ter pedido as ervas, assim que o expulsou da
sua casa, suponho, tinha levado Bertrade daqui para Elford
e tinha-a casado com Edric Vivers. Deve ter sido isso,
certamente que isso foi feito a tempo de dar à criança que
ela esperava, quando nascesse, um pai credível, ainda que
pouco provável. Sem dúvida que o velho ficou orgulhoso de
ainda ser suficientemente potente para gerar um filho. Por
que é que alguém havia de questionar a data do nascimento,
uma vez que a senhora trabalhou tão depressa?
Ela não se tinha mexido nem pestanejado, os seus olhos
nunca abandonaram o seu rosto, não admitindo nada, não
negando nada.
- Nunca teve receio - perguntou ele - de que alguém no
convento soubesse que Bertrade de Clary era mulher de
Edric Vivers e que não estava bem segura na sua sepultura?
Que ela tinha dado uma filha ao marido idoso? Bastava
apenas um viajante ocasional que gostasse de mexericos.
- Esse risco não existia - disse ela simplesmente. - Que
contato houve alguma vez entre Shrewsbury e Hales?
Nenhum, até ele dar a queda e conceber a sua
peregrinação. Era ainda muito menos provável que
houvesse contatos com casas senhoriais de outro condado.
Não havia qualquer risco.
- Bem, prossigamos. Viva, levou-a para longe daqui e
deu-a a um marido. Viva, a criança nasceu. Pelo menos,
teve essa misericórdia para com a moça... por que é que
não teve nenhuma para com ele? Porquê um ódio tão
amargo e vingativo que a fez conceber uma vingança tão
terrível? Não pelos erros da sua filha, não. Por que é que ele
não havia de ser um partido adequado para ela? Vinha de
uma boa família, seria herdeiro de uma bela casa senhorial,
se não tivesse tomado o hábito. O que é que tinha contra
ele? A senhora era uma mulher bonita, habituada à
admiração e a homenagens. O seu senhor estava na
Palestina. E lembro-me bem quando Haluin veio ter comigo,
com dezoito anos, ainda sem tonsura. Vi-o como a senhora
o vira durante alguns anos, na sua solidão celibatária... ele
era gracioso...
Ele deixou-se ficar por ali, pois os lábios longos e
resolutos dela tinham-se finalmente separado numa
afirmação deliberada. Ela ouvira-o sem vacilar, não fazendo
qualquer esforço para o fazer calar, nem proferindo qualquer
acusação. Agora, ela respondeu.
- Demasiado gracioso! - disse ela. - Eu não estava
habituada a ser rejeitada, nem sequer sabia cortejar. E ele
era demasiado inocente para me compreender. Como as
crianças assim ofendem sem ofensa! Por isso, se eu não o
podia ter - disse ela, secamente -, ela também não.
Nenhuma mulher o teria, e ela muito menos.
Estava dito, e ela manteve o que dissera, sem
acrescentar nada como atenuante; depois de ter falado,
ficou a refletir sobre o assunto, vendo de novo, como se tudo
se tivesse passado com outra mulher, o que já não sentia
com a mesma intensidade, o desejo e a raiva.
- Há mais - disse Cadfael -, muito mais. Há a questão da
sua mulher Edgytha. Edgytha era a confidente de confiança
de que precisava, a que conhecia a verdade. Foi ela que foi
enviada para Vivers com Bertrade. Totalmente leal e
dedicada a si, ela guardou o seu segredo e foi cúmplice da
sua vingança durante todos estes anos. E a senhora
confiava que ela o guardasse para sempre. Por isso, tudo
corria a seu favor, até Roscelin e Helisende crescerem e
passarem a amar-se, não como companheiros de
brincadeiras mas como homem e mulher. Sabendo mas
esquecendo que o mundo consideraria esse amor um amor
envenenado, culpado e proibido pela igreja. Quando o
segredo se tornou numa barreira entre eles, onde não devia
haver qualquer barreira, quando Roscelin foi banido para
Elford, e o casamento com De Perronet ameaçava uma
separação definitiva, então, Edgytha já não conseguiu
suportar a situação. Ela veio a correr para aqui durante a
noite... não para falar com Roscelin, mas sim para falar
consigo! Para lhe suplicar que contasse finalmente a
verdade, ou que lhe desse autorização para ela a contar por
si.
- Gostava de saber - disse Adelais -, como é que ela
sabia que eu estava ao seu alcance.
- Ela sabia porque eu lhe disse. Inadvertidamente, fi-la
sair no meio da noite para lhe suplicar que levantasse as
sombras que recaíam sobre duas crianças inocentes. Foi por
um mero acaso que mencionei que tínhamos falado consigo
aqui em Elford. Eu fi-la vir a correr para si e para a morte, do
mesmo modo que foi Haluin quem fez com que a senhora
viesse para aqui, com pressa de impedir que ele fizesse uma
descoberta perigosa. Nós, que só lhe desejámos felicidades,
fomos os instrumentos da sua ruína. Agora, é melhor pensar
no que lhe resta que ainda possa ser salvo.
- Continue! - disse ela num tom ríspido. - Ainda não
terminou.
- Não, ainda não. Então, Edgytha veio suplicar-lhe que
agisse corretamente. E a senhora recusou! Mandou-a voltar
para Vivers, desesperada. E já sabe o que lhe aconteceu no
caminho.
Ela não negou. O seu rosto estava sombrio e rígido, mas
os olhos nunca vacilaram.
- Será que ela ia dizer a verdade, mesmo contra a sua
proibição? Nunca saberemos a resposta. Mas alguém que
lhe era igualmente leal ouviu o suficiente para compreender
a ameaça que recairia sobre si se ela o fizesse. Alguém teve
medo dela, seguiu-a e silenciou-a. Oh, não foi a senhora! A
senhora teve outras ferramentas para usar. Mas disse
alguma coisa aos ouvidos deles?
- Não! - disse Adelais. - Isso eu não fiz! A não ser que o
meu rosto falasse por mim. E, se o fez, mentiu. Eu nunca lhe
teria feito mal.
- Eu acredito em si. Mas qual deles a seguiu? O pai e o
filho são iguais, não teriam qualquer dúvida em morrer por
si, e sem dúvida que um deles matou por si. E eles foram-se
embora daqui. Voltaram para Hales? Não, duvido, não é
suficientemente longe. A que distância fica a casa senhorial
mais longínqua do seu filho?
- Não os vai encontrar - disse Adelais segura de si. -
Quanto ao que fez, o que eu poderia ter evitado, não sei,
nem nunca vou querer saber. Calei-lhes a boca quando eles
quiseram falar. Porquê? Essa culpa, tal como tudo o resto, é
só minha, não cederei qualquer parte dela. Sim, mandei-os
para longe. Eles não vão pagar a minha dívida por mim.
Sepultar a Edgytha com respeito é fraca expiação. A
confissão, a penitência e até mesmo a absolvição não
podem devolver uma vida.
- Há uma reparação que ainda pode ser feita - disse
Cadfael. - Além disso, acho que, durante todos estes anos,
também teve que pagar um preço, tal como sucedeu com
Haluin. Não se esqueça de que eu vi o seu rosto quando ele
apareceu com o seu corpo arruinado à sua frente. Eu ouvi a
sua voz quando exclamou: “Que é que te fizeram?” Tudo o
que lhe fez, fez também a si própria e, uma vez feito, não
pôde ser desfeito. Agora pode libertar-se, se assim decidir.
- Continue! - disse Adelais, embora soubesse bastante
bem o que aí vinha. Ele reconheceu-o pela compostura que
ela tinha assumido durante toda a conversa. Certamente que
ela estivera à espera na sala mal iluminada que o dedo de
Deus apontasse.
- Helisende não é filha de Edric mas sim de Haluin. Não
existe uma única gota de sangue Vivers nas suas veias. Não
há nada que a impeça de se casar com Roscelin, se quiser.
Quem sabe se aqueles dois fazem bem em se casar? Mas,
pelo menos, a sombra do afeto incestuoso pode e deve ser
levantada de cima deles. A verdade tem que vir a lume, uma
vez que já veio em Farewell. Haluin e Bertrade estão lá
juntos, fazendo as pazes, dando paz um ao outro, e
Helisende, a filha deles, está com eles, e a verdade já saiu
da sua sepultura.
Ela sabia, soubera desde a morte da velha, que as
coisas tinham finalmente chegado a esse ponto e se, até aí,
desviara deliberadamente os olhos e se recusara a
reconhecê-lo, não poderia continuar a fazê-lo. Ela também
não era o tipo de mulher que, uma vez decidida, delegasse
uma tarefa difícil noutras pessoas, nem que fizesse as
coisas pela metade, quer para bem, quer para mal.
Ele não a pressionaria. Recuou para lhe dar espaço e
tempo e deixou-se ficar afastado a observar a sua
imobilidade disciplinada e medindo mentalmente o peso de
dezoito anos de silêncio de amor e ódio implacavelmente
contidos. As primeiras palavras que ouvira dela, mesmo
neste extremo, tinham sido sobre Haluin, e ele ainda
conseguia ouvir a vibração de dor na sua voz quando ela
exclamou: “O que é que te fizeram?”
Adelais levantou-se abruptamente da cadeira e, com
passos longos, decididos, foi até à janela e abriu as portadas
para deixar entrar o ar, a luz e o frio. Ficou durante algum
tempo a olhar para o pátio silencioso, para o céu pálido,
pontilhado de pequenas nuvens e para a gaze verde que
velava os ramos das árvores por detrás da muralha do
enclave. Quando se voltou de novo para ele, ele viu o seu
rosto à luz e viu, como numa visão dupla, tanto a beleza
imorredoira como a poeira que o tempo tinha lançado sobre
ela, as linhas tensas da sua garganta comprida tornadas
flácidas, o cinzento das cinzas no cabelo preto enrolado, as
rugas que se tinham reunido à volta da boca e dos olhos, a
rede de veias finas a manchar as faces que outrora eram
brancas como marfim. E ela era forte, não perderia
facilmente o seu apego ao mundo e recusar-se-ia a sair dele
com suavidade. Ela iria viver muito tempo e revoltar-se-ia
contra o ataque implaaquivel da velhice até que a morte a
derrotasse e, ao mesmo tempo, a libertasse. Pela própria
natureza de Adelais, a sua penitência estava assegurada.
- Não! - disse ela num tom de autoridade abrupta e
imperiosa, como se ele tivesse feito uma sugestão com a
qual estivesse em total desacordo. - Não, eu não quero um
advogado, nenhum homem me libertará de qualquer parte
do que é meu. O que tem que ser dito agora, di-lo-ei eu.
Mais ninguém! Se alguma vez seria dito se o Irmão nunca
aqui não tivesse vindo, com a sua mão no cotovelo do
Haluin e os seus olhos calmos que eu nunca consegui ler,
não sei. O Irmão sabe? Mas isso agora não interessa. O que
falta fazer, fá-lo-ei eu.
- Ordene-me que me vá embora - disse Cadfael -, que
eu irei. A senhora não precisa de mim.
- Como advogado, não. Como testemunha, talvez!
Porque é que há-de perder o final? Sim! - disse ela, com os
olhos a brilhar. - Irá a cavalo comigo e assistirá ao final.
Devo-lhe uma realização, tal como devo uma morte a Deus.
Ele foi a cavalo com ela, tal como ela decretara. Por que
não? Ele tinha de voltar para Farewell, e a estrada que
passava por Vivers era tão boa como qualquer outra. E
quando ela decidia fazer algo, não podia haver demoras
nem recusas.
Ela montou o cavalo com botas e esporas como um
homem, ela que nos últimos anos se contentara em sentar-
se decorosamente na sela para senhoras atrás do
palafreneiro, como competia a uma dama da sua idade e
dignidade. Ela montou com a segurança de um homem,
ereta e à vontade na sela, com as rédeas em baixo. E
cavalgou rápida mas perseverantemente, avançando sobre
as suas perdas tão vigorosamente como fazia em relação
aos ganhos.
Cadfael, cavalgando a seu lado, não conseguia deixar
de perguntar a si próprio se ela ainda se sentiria tentada a
ocultar alguma parte da verdade, para ocultar a última
traição. Mas a tranquilidade do seu rosto negava essa
possibilidade. Não haveria qualquer evasão, nem súplica,
nem desculpa. Ela tinha feito o que tinha feito, e era isso o
que ia contar. E só Deus saberia se estava arrependida.

CAPíTULO 13

Chegaram ao portão de Vivers uma hora depois do


meio-dia. O portão estava aberto e o tumulto tinha
desaparecido, no pátio não havia mais do que as atividades
normais. Era evidente que o mensageiro da abadessa tinha
sido recebido e que tinham acreditado nele e, quer de bom
grado ou com relutância, Cenred acedera ao desejo de
Helisende de ficar sozinha no seu santuário. Abandonada
uma busca, os homens de Audemar estariam livres para
perseguir um assassino. Que eles nunca encontrariam! Na
noite e na neve, quem poderia encontrar-se ao relento para
testemunhar a facada desfechada no bosque, ou atribuir um
nome ou um rosto ao assassino? Mesmo que tivesse havido
uma testemunha, quem nestas partes, para além dos
membros da casa de Audemar, reconheceria um
palafreneiro de Hales distante?
O administrador de Cenred estava a atravessar o pátio
quando Adelais chegou e, ao reconhecer a mãe do suserano
do seu senhor, apressou-se a ir ajudá-la a desmontar mas,
antes de ele chegar ao pé dela, já ela tinha descido da sela.
Ela endireitou a saia de xadrez e olhou em volta, à procura
de um empregado do filho. Cadfael tinha visto por si próprio
que os caçadores não tinham regressado a Elford, nem
estavam à vista aqui. Por um minuto, ela franziu a testa,
impaciente com a possibilidade de ter que esperar e conter
por mais tempo tudo o que tinha a dizer. Uma vez decidida,
desagradava-lhe ter de aguardar. Ela olhou para além da
profunda vênia do administrador na direção ao salão.
- O seu senhor está lá dentro?
- Está sim, minha senhora. Tenha a bondade de entrar.
- E o meu filho?
- Ele também, minha senhora. Regressou há apenas
alguns minutos, os seus homens ainda estão fora com os
nossos, fazendo perguntas em todas as casas num raio de
várias milhas - Uma perda de tempo! - disse ela, mais para
si própria do que para ele, e cerrou os lábios sobre o motivo.
- Ainda bem! Estão os dois aqui. Não, não precisa de lhes
dizer que cheguei. Eu própria o farei. Quanto ao Irmão
Cadfael, desta vez ele veio a acompanhar-me, não como
hóspede.
Até àquele momento, era duvidoso que o administrador
tivesse sequer olhado para o segundo cavaleiro, mas agora
ele fê-lo, especulando, supôs Cadfael, sobre o que trouxera
um visitante beneditino de volta tão cedo, particularmente
sem o seu companheiro. Mas não houve tempo para
perguntar. Adelais já se dirigia vigorosamente para os
degraus que conduziam ao salão, e Cadfael seguiu-a
obedientemente, como se fosse, de fato, o seu capelão
doméstico, deixando o administrador a olhar para ambos
com uma expressão de dúvida e espanto.
No salão, a refeição do meio-dia já tinha terminado, e os
criados estavam ocupados a levantar as mesas e a empilhá-
las a um lado. Adelais passou por eles sem uma palavra
nem um olhar, direita à porta coberta por uma cortina que
separava o aposento interior. Vindo de dentro, abafado pelos
cortinados, ouvia-se o murmúrio de vozes, e os tons baixos
de Cenred distinguiam-se da voz mais leve e mais jovem de
Jean de Perronet. O pretendente ainda não se tinha ido
embora, tencionando aguardar esforçada se não
pacientemente. Ainda bem, refletiu Cadfael. Ele tinha o
direito de conhecer a enorme dimensão do obstáculo que se
colocava agora no seu caminho. Era justo. De Perronet não
tinha feito nada de desonroso, tinha o direito de ser tratado
com cortesia.
Adelais afastou a cortina e abriu a porta. Estavam todos
lá, conferenciando em voz baixa sobre uma situação que os
deixara frustrados e impotentes, presos à inação, uma vez
que até mesmo o gesto de tentar encontrar o assassino de
Edgytha estava, nesta altura, condenado ao fracasso. Se
qualquer homem da região soubesse alguma coisa,
certamente que já se saberia. E se Audemar pensasse
sequer em contar os criados da mãe e erguer um dedo de
desconfiança contra os que faltavam, ela colocar-se-ia,
imovível, entre ele e eles. Onde quer que Lothair e Luc
pudessem estar agora, por mais perplexos e castigados se
sentissem com a repulsa dela pelo que eles tinham feito
erradamente por si, ela não iria permitir que lhes fosse
debitado o preço da dívida que considerava sua.
Ao som da porta a abrir-se, todos eles viraram
rapidamente a cabeça para ver quem entrara, pois a entrada
dela fora demasiado abrupta e confiante para ser um dos
criados. Ela olhou em volta do círculo de rostos
surpreendidos, Audemar e Cenred à mesa com vinho à sua
frente, Emma um pouco afastada, sentada ao bastidor mas
sem prestar qualquer atenção ao trabalho e aguardando,
com nervos tensos, que os acontecimentos se
desenrolassem de uma forma mais confortável e que a vida
retomasse o seu curso normal. E o desconhecido - Cadfael
viu que Adelais nunca tinha posto a vista em cima de Jean
de Perronet. O seu olhar demorou-se um pouco nele,
observando e identificando o noivo. Por um instante, os seus
lábios compridos contorceram-se ligeiramente num sorriso
amargo, antes de os seus olhos pousarem em Roscelin.
Sozinho a um canto, de onde podia observar todos os
outros, o rapaz estava sentado como se contemplasse uma
batalha iminente, e encontrava-se preparado e armado,
rígido e erecto no banco encostado à parede coberta por
uma tapeçaria, de cabeça erguida e lábios cerrados. Ao que
parecia, tinha aceito, muito contra a sua vontade, o desejo
de Helisende de ser deixada em paz em Farewell, mas não
perdoara a nenhum daqueles conspiradores que tinham
planejado casá-la em segredo, roubando-lhe até mesmo a
esperança perversa que o sustentava. O seu ressentimento
contra os pais estendia-se, por contágio, a De Perronet, até
mesmo a Audemar de Clary, para cuja casa ele fora banido
para fazer desaparecer o obstáculo aos seus planos. Como
poderia ele ter a certeza de que Audemar não participara em
mais nada a não ser no exílio? Um rosto franco por
natureza, alegre e bem disposto estava agora fechado e
olhava para eles com uma expressão de desconfiança e
inimizade. Adelais olhou para ele durante mais tempo do que
para qualquer dos outros. Outro jovem demasiado gracioso
para o seu próprio bem, atraindo o amor infeliz como a flor
atrai a abelha.
O momento de surpresa terminou. Cenred pôs-se de pé
com uma pressa hospitaleira e avançou com a mão
estendida para pegar na mão da visitante e a conduzir a um
lugar à mesa.
- Minha senhora, bem-vinda à minha casa! Sinto-me
muito honrado!
E Audemar, menos satisfeito, de testa semifranzida:
- Minha senhora, o que a traz aqui? E sozinha!
Agradava-lhe mais que a mãe, com uma personalidade
tão forte, se exilasse na distante casa senhorial de Hales e
mantivesse ali a sua própria corte. Ao vê-los assim frente a
frente, Cadfael viu que havia uma forte parecença entre os
dois. Sem dúvida que existia afeto entre eles mas, depois de
o filho se ter tornado adulto, seria difícil viverem juntos na
mesma casa.
- Não havia necessidade - disse Audemar - de vir até
aqui, não pode fazer nada que não tenha já sido feito.
Adelais permitira que a mão atenciosa de Cenred a
conduzisse para o centro da sala mas, uma vez ali, resistiu a
qualquer outro movimento e ficou de pé para que a vissem
claramente, libertando a mão com um gesto autoritário.
- Sim - disse ela -, há necessidade. - E, mais uma vez,
olhou longamente em redor dos rostos que a observavam. -
E não vim sozinha. O Irmão Cadfael é o meu acompanhante.
Ele veio da abadia de Farewell e regressará para lá quando
nos deixar. - O seu olhar deslocou-se de um jovem para o
outro, do noivo preferido para o apaixonado frustrado,
ambos a olhá-la com desconfiança, conscientes de
revelações iminentes, mas incapazes de adivinhar o que
poderia seguir-se.
- Ainda bem - disse Adelais - que vos encontro reunidos,
pois assim direi apenas uma vez o que tenho a dizer.
Nunca seria problema para ela, pensou Cadfael,
observando-a, prender a atenção de todos os que a
rodeavam, onde quer que ela fosse. Tornava-se de imediato
o ponto focal em todas as salas em que entrava, a
personalidade dominante em todas as reuniões. Agora
estavam todos em silêncio, à espera das suas palavras.
- Pelo que ouvi, Cenred - disse ela -, tencionavas, há
dois dias, casar a tua irmã, a tua meio-irmã, deveria eu dizer,
com este jovem. O que é razoável, concordariam a igreja e o
mundo, uma vez que ela se afeiçoara demasiado ao teu filho
Roscelin, e ele a ela, e esse casamento afastaria também,
da tua casa e do teu herdeiro, as sombras de uma ligação
pecaminosa. Perdoa-me por falar sem rodeios, é demasiado
tarde para o fazer de outra forma. Tu não tens culpa,
sabendo apenas o que sabes.
- Que mais havia a saber? - perguntou Cenred, intrigado.
- É bom que se fale sem rodeios. Eles são familiares
próximos, como muito bem sabe! A senhora não teria
tomado as mesmas medidas para afastar esse mal da sua
neta, tal como eu tencionei fazer em relação à minha irmã?
Sinto-me tão responsável por ela como pelo meu próprio
filho, e ela é-me igualmente querida. Ela é sua neta. Lembro-
me muito bem do segundo casamento do meu pai. Recordo-
me do dia em que trouxe a noiva para aqui, e do orgulho do
meu pai na criança que ela lhe deu. Uma vez que há muito
que ele morreu, eu devo a Helisende os cuidados de um pai,
tanto como os de um irmão. Certamente que procurei
protegê-la como ao meu filho. Continuo a desejar fazê-lo.
Esta é apenas uma pequena demora no caminho. O senhor
de De Perronet não retirou a sua pretensão, nem eu retirei a
minha autorização.
Audemar tinha-se levantado da cadeira e estava a olhar
para a mãe com a testa franzida e um rosto inexpressivo.
- Que mais há a dizer? - disse ele num tom calmo e,
embora falasse em voz baixa e serena, nesta dúvida havia
desagrado, e uma mulher de vontade menos implaaquivel
talvez a considerasse ameaçadora. Ela olhou-o nos olhos e
ficou impassível.
- O seguinte: que tu te incomodaste
desnecessariamente. Não existe qualquer barreira, Cenred,
entre o teu filho e Helisende, a não ser a barreira que tu
concebeste. Não existe qualquer perigo de incesto se eles
se casassem e dormissem juntos esta noite. Helisende não
é tua irmã, Cenred, ela não é filha do teu pai. Não existe
qualquer gota de sangue Vivers nas suas veias.
- Mas isso é um disparate - protestou Cenred, sacudindo
a cabeça ao ouvir uma afirmação tão incrível. - Toda esta
casa a conhece desde que nasceu. O que diz é impossível.
Por que é que conta uma história dessas, quando toda a
minha gente pode testemunhar que ela nasceu da mulher
legítima do meu pai, na sua cama nupcial, aqui nesta casa.
- E concebida na minha - disse Adelais. - Não é de
admirar que nenhum de vocês tenha contado os dias, eu
não perdi tempo. A minha filha já estava à espera de um
filho quando a trouxe para aqui para se casar.
Puseram-se todos de pé, todos exceto Emma, que se
encolheu, chocada, por detrás do seu bastidor, abalada
pelas exclamações de ira e incredulidade que chocavam à
sua volta como ventos contrários. Cenred ficara sem
respiração, mas De Perronet clamava que aquilo era falso e
que a dama estava louca, e Roscelin tinha-se levantado para
o enfrentar, cintilante, meio incoerente, voltando-se do seu
rival para Adelais, suplicando, exigindo que ela confirmasse
que era verdade. Até que Audemar bateu com força com o
punho na mesa e ergueu uma voz imperiosa para exigir
silêncio. E, durante todo esse tempo, Adelais estava de pé,
imóvel como uma estátua, ignorando o redemoinho de gritos
à sua volta.
E, depois, fez-se silêncio, sem quaisquer exclamações,
sem um único som, mal se ouvindo a respiração, enquanto
eles olhavam longa e atentamente para ela, como se a
verdade ou a falsidade do que ela dissera pudesse ser lida
no seu rosto se a fitassem sem pestanejar durante tempo
suficiente.
- A senhora sabe bem o que está a dizer? - perguntou
Audemar, com uma voz baixa e controlada.
- Perfeitamente bem, meu filho! Sei o que estou a dizer,
sei que é verdade. Eu sei o que fiz, sei que foi mal feito. Não
preciso que o digam, eu própria o digo. Mas fi-lo, e nem eu
nem vocês podem desfazer o que foi feito. Sim, enganei o
senhor feudal Edric, sim, obriguei a minha filha a casar-se
com ele, sim, coloquei um bastardo nesta casa. Ou, se
preferirem, tomei medidas para proteger o bom nome e os
bens da minha filha e garantir-lhe um estatuto honroso, tal
como Cenred deseja fazer em relação à sua irmã. Será que
Edric alguma vez se arrependeu no negócio? Acho que não.
Será que ele se sentiu feliz com a sua suposta filha?
Certamente que sim. Durante todos estes anos, deixei as
coisas como estavam, mas, agora, Deus decidiu de outro
modo, e não o lamento.
- Se isso for verdade - disse Cenred, respirando fundo. -
A Edgytha sabia. Ela veio para aqui com Bertrade, se estiver
a dizer a verdade, tão tarde, então, ela devia ter sabido.
- Ela sabia - disse Adelais. - E lamento o dia em que lhe
disse que não quando ela me suplicou que dissesse a
verdade mais cedo, e lamento ainda mais que ela não possa
estar hoje aqui para ser minha testemunha. Mas aqui está
alguém que o pode fazer. O Irmão Cadfael veio da abadia de
Farewell onde Helisende se encontra agora, e a sua mãe
está lá com ela. E, por um estranho acaso - disse ela -, o pai
também está. Já não me é possível esconder da verdade.
Eu declaro-a contra a minha própria vontade.
- Ao que parece, escondeu-a durante bastante tempo,
minha senhora - disse Audemar num tom sombrio.
- Escondi, sim, e não faço desta revelação uma virtude,
quando ela já saiu da sua sepultura.
Houve um silêncio breve e profundo antes de Cenred
perguntar lentamente: - Diz que ele está lá agora... o pai
dela? Em Farewell, com as duas?
- Eu só sei isso - disse ela - porque mo disseram. O
Irmão Cadfael responder-vos-á.
- Eu vi-os lá, aos três - disse Cadfael. - É verdade.
- Então, quem é ele? - perguntou Audemar. - Quem é o
pai dela?
Adelais retomou a sua história, sem nunca baixar os
olhos.
- Ele foi escrivão na minha casa, era de boas famílias,
apenas um ano mais novo do que a minha filha. Ele queria
ser aceito como pretendente à sua mão. Recusei-o. Eles...
tomaram medidas para me obrigar a aceitá-lo. Não, eu
talvez esteja a julgá-los mal, o que eles fizeram pode não ter
sido premeditado, mas sim feito num gesto de desespero,
porque ela estava tão perdida de amor como ele. Despedi-o
e trouxe-a para aqui apressadamente, para um casamento
que Lorde Edric tinha proposto cerca de um ano antes. E eu
menti e disse ao seu amado que ela tinha morrido. Menti-lhe,
dizendo que Bertrade e a criança tinham morrido quando
tentávamos libertá-la do seu fardo. Só agora é que ele soube
que tinha uma filha.
- Então - quis Cenred saber -, como é que ele a
encontrou agora, e ainda por cima num lugar tão pouco
provável? Toda esta história surge de um modo tão
estranho, vinda do nada, que eu não consigo acreditar.
- É bom que se habitue a ela - disse ela - porque nem o
senhor nem eu conseguimos fugir à verdade nem alterá-la.
Ele encontrou-a através da misericórdia de Deus. Que mais
precisa de saber?
Cenred virou-se para Cadfael num gesto de apelo
irritado.
- Irmão, uma vez que foi hóspede nesta casa, diga-me o
que sabe sobre este assunto. Ao fim de tantos anos, esta é,
de fato, uma história verdadeira? E como é que os três se
encontraram agora, no fim de tudo?
- A história é verdadeira - disse Cadfael. - E é verdade
que eles se encontraram, nesta altura já devem ter
conversado. Ele encontrou-as porque, acreditando que a sua
amada estava morta e tendo estado perto da sua própria
morte alguns meses antes e tendo sido poupado, voltou os
seus pensamentos para a mortalidade e decidiu que, uma
vez que nunca voltaria a vê-la neste mundo, deveria fazer
uma peregrinação à sua sepultura e rezar pela sua paz no
outro. E, não a tendo encontrado em Hales, onde supôs que
ela estivesse, veio até aqui, meu senhor, à sua casa
senhorial de Elford, onde a vossa família está sepultada.
Agora, no caminho de regresso a casa, pela graça de Deus,
a noite passada solicitámos alojamento na abadia de
Farewell. Aí, a dama que era sua irmã está atualmente a
servir de instrutora das noviças do novo convento do bispo.
E foi para lá que Helisende fugiu, à procura de um refúgio de
uma tensão demasiado dolorosa. E, assim, estão todos
finalmente sob um mesmo teto.
Após um momento de silêncio, Audemar disse
suavemente: - “A noite passada nós solicitámos alojamento
na abadia de Farewell”. Já quase disse o suficiente, mas
acrescente mais uma coisa... o nome dele!
- Ele entrou para o mosteiro há muito tempo. É um irmão
meu da abadia de São Pedro e São Paulo, em Shrewsbury.
O senhor já o viu, é o mesmo irmão que chegou comigo a
Elford, percorrendo todo o caminho de muletas. Monge e
padre, meu senhor Cenred, a quem pediu que casasse
Helisende com o homem que tinha escolhido para ela. O
nome dele é Haluin.
Agora tinham todos começado, espantados, a acreditar
naquilo cujas implicações não conseguiam ainda
compreender totalmente. Com olhares vidrados, foram-se
apercebendo lentamente do que tudo isto deveria significar
para eles. Para Roscelin, estremecendo e brilhando como
um archote recentemente aceso, foi a súbita leveza
estonteante e a libertação da culpa e da dor, o ar do dia
passou a ser intoxicante como o vinho, e o mundo expandiu-
se numa nova luz de esperança e alegria que lhe ofuscava
os olhos e emudecia a língua. Para De Perronet, foi o
desafio pungente de se ver confrontado com um forte rival
quando não esperara qualquer conflito, e o endurecimento
instintivo do seu orgulho e determinação de lutar pelo prémio
ameaçado com todas as suas forças. Para Cenred, foi o
desmoronar de todas as suas recordações familiares, de um
pai que agora parecia diminuído, até mesmo senil, pela sua
afectuosa aceitação de um logro, de uma irmã abruptamente
transformada numa desconhecida, uma intrusa sem direitos
na sua casa. Para Emma, calada e receosa no seu canto, o
pesar de uma ofensa contra o seu senhor e a perda de
alguém que quase considerava sua própria filha.
- Então, ela não é minha irmã - disse Cenred,
lentamente, mais para si próprio do que para qualquer outra
pessoa, repetindo rapidamente a frase para todos eles com
uma ira súbita: - Ela não é minha irmã!
- Não - disse Adelais. - Mas até agora ela acreditava que
era. A culpa não é dela, nunca a deves culpar.
- Ela não é da minha família. Não lhe devo nada, nem
dote, nem terras. Ela não pode exigir nada de mim. - Falou
com amargura e não num tom vingativo, lamentando o corte
absurdo de um afeto forte.
- Nada. Mas ela é da minha família - disse Adelais. - As
terras que a mãe herdou como viúva foram para Poleswoth
quando ela tomou o véu, mas Helisende é minha neta e
minha herdeira. As terras que eu possuo por direito próprio
irão para ela. Não será pobre. - Ela olhou para De Perronet
enquanto falava e sorriu, mas foi um sorriso irônico. Não
havia necessidade de fazer com que o caminho dos
amantes fosse demasiado fácil tornando a moça menos
lucrativa e, por conseguinte, menos atraente aos olhos do
rival.
- Minha senhora, está a interpretar-me mal - disse
Cenred com uma fúria muda. - Esta casa tem sido a casa
dela, e ela deverá continuar a considerá-la a sua casa. Para
onde há-de ela ir? Fomos nós que ficamos subitamente
mutilados, como membros amputados. O pai e a mãe estão
ambos em conventos, e que orientação, que cuidados
recebeu ela alguma vez de si? Quer seja ou não da família,
o seu lugar é aqui em Vivers.
- Mas agora não há nada que o impeça - exclamou
Roscelin num tom triunfante. - Posso abordá-la, posso pedir
a sua mão, agora já não existe qualquer barreira. Não
fizemos mal nenhum, não existe nenhuma sombra sobre
nós, nenhuma proibição entre nós. Eu vou busca-la e trazê-
la para casa. Ela virá, virá com toda a satisfação! Eu sabia -
exultou ele, com os olhos azuis a brilhar de alegria. - Eu
sabia que nunca houve mal nenhum em nos amarmos,
nunca, nunca! Foi o senhor que me convenceu que eu tinha
pecado. Deixe-me ir busca-la, meu senhor!
Ao ouvir estas palavras, De Perronet inflamou-se e, com
um silvo que parecia um fósforo a acender-se, deu dois
rápidos passos em frente para confrontar o rapaz.
- Está a saltar demasiado depressa e demasiado longe,
meu amigo! Os seus direitos não são melhores do que os
meus. Não desisto da minha pretensão, insisto nela,
esforçar-me-ei com todas as forças por obtê-la.
- E poderá fazê-lo - exultou Roscelin, demasiado
embriagado de alívio para não ser generoso ou para se
sentir ofendido. - E acho que todos os homens têm o direito
de dizer o que quiserem, mas agora em termos de
igualdade, o senhor, eu e quem mais quiser, e veremos o
que Helisende responde. - Mas ele sabia qual seria a
resposta dela, e sua certeza era, em si, uma ofensa, embora
não tivesse essa intenção, e De Perronet já tinha a sua mão
no punhal e palavras mais acaloradas a subir-lhe pela
garganta quando Audemar bateu na mesa e os fez calar.
- Façam pouco barulho! Eu sou o suserano aqui ou não
sou? E a moça tem família, pois ela é minha sobrinha. Se
alguém aqui tem direitos sobre ela e um dever para com
ela... alguém que há muito não os cedeu a outro homem!...
sou eu, e eu digo que, se Cenred quiser, eu coloco-a aqui
sob a sua tutela, com todos os direitos que ele exerceu
sobre ela como membro da sua família durante todos estes
anos. E a respeito do seu casamento, tanto ele como eu
teremos em consideração o que for melhor para ela, mas
nunca contra a sua vontade. Mas, por agora, deixemo-la em
paz! Ela pediu algum tempo de tranquilidade e tê-lo-á.
Quando estiver pronta para regressar, irei busca-la.
- Satisfeito - disse Cenred, respirando fundo. - Estou
satisfeito! Não poderia pedir melhor.
- E Irmão... - Audemar virou-se para Cadfael. O assunto
estava agora inteiramente nas suas mãos, ele possuía
autoridade sobre todas estas questões, e o que ele
ordenava seria feito. O seu objetivo era provocar o menor
dano possível, tal como o da sua mãe fora a destruição
definitiva. - Irmão, se voltar para Farewell, conte-lhes o que
eu disse. O que está feito está feito, tudo o que há por fazer
será feito à luz do dia, abertamente. Roscelin - ordenou ele
secamente, virando-se para o rapaz inquieto, cintilante com
a alegria da libertação -, manda preparar os cavalos, vamos
voltar para Elford. Ainda estás ao meu serviço até eu decidir
dispensar-te, e ainda não me esqueci de que te ausentaste
sem autorização. Não vamos ter mais motivos de
desagrado.
Mas a sua voz era seca, e nem as palavras nem a sua
expressão lançaram a menor sombra sobre a alegria
exultante de Roscelin.
Este inclinou o joelho numa ligeira vênia e saiu
alegremente da sala para cumprir as ordens do seu senhor.
Por último, Audemar olhou longamente para Adelais,
que se encontrava de pé, com os olhos postos com firmeza
no rosto dele, à espera do seu juízo.
- Senhora, vai voltar para Elford comigo. Já fez o que
veio fazer aqui.
No entanto, foi Cadfael que montou primeiro. Já
ninguém precisava dele ali, e a curiosidade natural que ele
pudesse sentir a respeito dos ajustamentos familiares que
ainda tinham de ser feitos e que talvez fossem menos
facilmente efectuados do que ordenados, teria de ser contida
para sempre, pois era pouco provável que voltasse a passar
por ali. Solicitou o seu cavalo sem pressa e montou, e
estava a dirigir-se ao portão quando Roscelin se afastou dos
cavalariços que estavam a selar os cavalos de Audemar e
veio a correr até junto do seu estribo.
- Irmão Cadfael... - ele ficou sem palavras por um
momento, pois o seu espanto e felicidade estavam para
além das palavras, sacudiu a cabeça e riu-se da sua própria
incoerência. - Diga-lhe! Diga-lhe que estamos livres, não
precisamos de mudar, agora ninguém nos pode denegrir...
- Meu filho - disse Cadfael, alegremente -, por esta altura
ela já sabe tanto como tu.
- E diga-lhe que em breve, muito em breve, eu irei
busca-la. Oh, sim, eu sei - disse ele num tom confiante,
vendo as sobrancelhas erguidas de Cadfael -, é a mim que
ele vai enviar. Eu conheço-o. Ele prefere enviar um familiar
que conhece e em quem confia, um homem seu, com terras
que fazem fronteira com a sua, a enviar um senhor de terras
distantes. E o meu pai já não se interporá entre nós. Por que
é que ele haveria de o fazer, quando isso resolve tudo? Que
é que se alterou, a não ser o que precisava de ser alterado?
E havia algo de verdadeiro naquelas palavras, refletiu
Cadfael, olhando da sela para o rosto jovem e ardente. O
que se alterara fora a substituição da falsidade pela verdade
e, por mais difícil que a assimilação pudesse ser, seria
certamente para melhor. A verdade pode ser cara mas, no
fim, nunca fica aquém do valor do preço pago.
- E diga-lhe - disse Roscelin, ansiosamente - ... ao irmão
aleijado... o pai dela... - A sua voz ficou suspensa na palavra
com admiração e reverência. - Diga-lhe que estou contente,
diga que tenho uma dívida para com ele que nunca poderá
ser paga. E diga-lhe que ele não precisa de se preocupar
com a felicidade dela, porque vou dedicar-lhe toda a minha
vida.

CAPÍTULO 14

Aproximadamente ao mesmo tempo que Cadfael


desmontava no pátio de Farewell, Adelais de Clary estava
sentada com o seu filho no aposento privado deste em
Elford. Tinha havido um longo e pesado silêncio entre eles.
A tarde estava a chegar ao fim, começava a escurecer, e ele
não mandara pedir velas.
- Há uma questão - disse ele finalmente, saindo da sua
imobilidade - que ainda não foi referida. Foi consigo, minha
senhora, que a velha veio falar. E a senhora mandou-a de
volta com uma resposta seca. Para a morte! Foram ordens
suas?
Ela respondeu, sem emoção:
- Não!
- Não lhe vou perguntar o que sabe sobre isso. Para
quê? Ela está morta. Mas não gosto da forma como trata
das coisas e não quero ter nada a ver com ela. Amanhã,
minha senhora, vai regressar a Hales. Pode ficar com Hales
para seu eremitério. Mas não volte nunca a esta casa, pois
não será admitida. As portas de todas as minhas senhorias,
com exceção de Hales, estão, daqui em diante, fechadas
para si.
Ela disse num tom de indiferença:
- Como quiseres, a mim tanto me faz. Só preciso de um
pouco de espaço, e posso não precisar dele por muito
tempo. Hales serve muito bem.
- Então, minha senhora, parta quando quiser. Será
acompanhada em segurança na estrada, uma vez que -
disse ele com um significado azedo - se separou dos seus
próprios palafreneiros. E uma liteira, se preferir esconder o
rosto. Não se poderá dizer que viaja indefesa, como uma
velha sozinha de noite.
Adelais levantou-se do seu banco e saiu do aposento
sem dizer uma palavra.
No salão, os criados tinham começado a acender os
primeiros archotes e a coloaqui-los nos seus castiçais, mas
em todos os cantos e nas traves do teto alto enegrecidas
pelo fumo, a escuridão aglomerava-se e colava-se, como
teias de aranha de sombra.
Roscelin estava de pé junto do lume da lareira central
pavimentada de lajes, remexendo-o com o calcanhar da sua
bota para o reatear depois de ter sido abafado durante o dia.
Ainda trazia a capa de Audemar no braço, com o capuz a
balançar de uma mão. A luz das chamas reanimadas
douravam-lhe o rosto inclinado, de faces lisas, com ossos
elegantes e uma pele clara como a de uma moça, e, nos
seus lábios sonhadores, o mais suave e atraente dos
sorrisos testemunhava a sua profunda felicidade. O cabelo
louro balançava de encontro ao seu rosto e separava-se
acima da nuca suave, a beleza mais reveladora dos jovens.
Por um momento, ela deixou-se ficar na sombra a observá-
lo, sem que ele reparasse nela, pelo prazer e pela dor de
sentir novamente a atração irresistível, a felicidade
insuportável e a angústia de ver a beleza e a juventude
passar e partir. Era uma recordação demasiado vívida e
doce de coisas há muito acabadas e que durante anos
julgara esquecidas, mas que, tal como a fênix, voltaram a
arder com uma nova vida quando uma porta se abrira e a
confrontara com a ruína do ente amado que o tempo tinha
deixado.
Ela passou por ele silenciosamente, para que ele não a
ouvisse e voltasse para ela os olhos azuis demasiado
radiantes, demasiado exultantes. Os olhos escuros que ela
recordava, profunda e delicadamente colocados por baixo de
sobrancelhas pretas arqueadas, nunca tinham tido aquela
expressão, não por ela. Sempre obedientes, sempre
cautelosos, muitas vezes baixos na sua presença.
Adelais saiu para o frio da noite e dirigiu-se aos seus
próprios aposentos. Bem, estava tudo terminado. O fogo era
agora cinzas. Ela nunca mais o voltaria a ver.
- Sim, eu vi-a - disse o Irmão Haluin. - Sim, falei com ela.
Toquei-lhe na mão, é uma carne quente, carne de mulher,
não é uma ilusão. A porteira levou-me à sua presença sem
que eu estivesse preparado, não conseguia falar nem
mover-me. Há tanto tempo que ela estava morta para mim.
Até mesmo quando a vi de relance no pátio, no meio dos
pássaros... Depois disso, quando te foste embora, não tinha
a certeza de não ter sonhado. Mas tocar-lhe, ouvi-la chamar
o meu nome... E ela ficou contente. O caso dela não foi igual
ao meu, embora, Deus sabe que não penso que o seu fardo
tenha sido mais leve. Mas ela sabia que eu estava vivo, ela
sabia onde eu estava e o que eu era, e não sentia qualquer
culpa, não tinha feito mal nenhum a não ser amar-me. E ela
conseguiu falar. E as palavras que ela me disse, Cadfael!
“Aqui está alguém”, disse ela, “que já te abraçou por um bom
motivo. Agora, por um bom motivo, abraça-a. Ela é tua filha.”
Consegues imaginar um milagre assim? E disse-o,
entregando-me a filha pela mão. Helisende, a minha filha...
não morreu! Viva, jovem, generosa e fresca como uma flor.
E eu pensava que a tinha destruído, que tinha destruído as
duas! A minha filha beijou-me de sua doce e livre vontade.
Mesmo que fosse só por pena... deve ter sido pena, como é
que ela podia amar alguém que não conhecia? Mas, mesmo
que tivesse sido apenas por pena, foi uma dádiva mais
valiosa do que o ouro.
“E ela vai ser feliz. Pode amar quem quiser e casar com
quem ama. Chamou-me “pai” uma vez, mas eu penso que
queria referir-se à minha condição de padre, pois foi assim
que ela me conheceu. Mesmo assim, foi bom ouvi-la
chamar-me assim, e será doce recordar. A hora que nós três
passámos juntos compensa os dezoito anos, embora pouco
tivéssemos dito. O coração não conseguia suportar mais.
Bertrade já voltou para as suas tarefas. E eu devo voltar
para as minhas, em breve... muito em breve... amanhã...”
Cadfael tinha ficado silencioso durante o longo, vacilante
e eloquente monólogo de revelação do seu amigo, quebrado
por longas pausas durante as quais Haluin caíra de novo
num transe de assombro. Não houve uma só palavra sobre
a ação abominável que, leviana e cruelmente, tinha sido
praticada contra ele e que tinha sido varrida da sua mente
sem um único pensamento de atribuição de culpa ou de
perdão, pela alegria de a mesma ter sido desfeita. E esse foi
o último e mais irônico juízo a respeito de Adelais de Clary.
- Vamos às Vésperas? - disse Cadfael. - O sino já tocou,
nesta altura já devem estar todas nos seus lugares,
podemos entrar sem que reparem em nós.
Do canto escuro da igreja que tinham escolhido, Cadfael
observou os rostos jovens e francos das irmãs e demorou o
seu olhar na Irmã Benedita, que fora outrora Bertrade de
Clary. Ao seu lado, a voz baixa e feliz de Haluin entoava
respostas e orações, mas o que Cadfael estava a ouvir na
sua mente era a mesma voz a falar dolorosa, lenta e
hesitantemente, na escuridão do celeiro do guarda-florestal,
antes do amanhecer. Ali no seu oratório, serena, realizada e
feliz, estava a mulher que ele tentara descrever. “Ela não era
bela como a mãe. Não tinha aquela radiosidade sombria,
mas sim algo mais bondoso. Não havia nada de sombrio ou
secreto nela, tudo era franco e iluminado pelo sol como uma
flor. Ela não tinha medo de nada - não nessa altura.
Confiava em toda a gente. Nunca tinha sido traída - não até
essa altura. Só o foi uma vez e morreu por causa disso.”
Mas não, ela não tinha morrido. E certamente que neste
momento, devota e obediente, não havia nada de sombrio
ou secreto nela. O rosto oval irradiava serenidade enquanto
ela celebrava com alegria a misericórdia de Deus, ao fim de
tantos anos. Sem lamentar nada; a sua felicidade não tinha
qualquer mácula. A vocação que assumira sem ser
abençoada e em que se esforçara contra a sua natureza,
talvez, durante todos aqueles anos, seguramente que só
agora tinha atingido a sua verdadeira plenitude, na revelação
da graça. Ela não voltaria atrás, nem sequer por aquele
primeiro amor. Não havia necessidade. O amor tem
estações. O amor deles tinha passado para além das
tempestades da Primavera e do calor do Verão para a calma
dourada dos primeiros dias de Outono, antes de as folhas
terem começado a cair. Bertrade de Clary tinha o mesmo ar
do Irmão Haluin, segura e invulnerável na paz de espírito.
Daí em diante, a presença era desnecessária e a paixão
irrelevante. Tinham-se aliviado da tensão do passado e
ambos tinham trabalho a fazer no futuro, e fá-lo-iam com
mais empenho e dedicação por saberem, cada um deles,
que o outro vivia e trabalhava no mesmo parreiral.
De manhã, depois das Matinas e feitas as despedidas,
iniciaram a longa viagem de regresso a casa.
As irmãs estavam no capítulo quando Cadfael e Haluin
pegaram na sacola e nas muletas e saíram da hospedaria,
mas a moça Helisende foi com eles até ao portão. Pareceu a
Cadfael que todos aqueles rostos à sua volta se tinham
libertado de todas as sombras e de todas as dúvidas, que
todos eles tinham agora um brilho de espanto, admirados
com o bem que sobre eles recaíra. Agora era possível ver
mais claramente como o pai e a filha eram parecidos, pois
muitas das marcas dos anos tinham desaparecido do rosto
de Haluin.
Quando se despediram, Helisende, ardente mas tímida,
abraçou-o em silêncio. Independentemente da forma como
tinham passado o dia anterior, quaisquer que tivessem sido
as confidências que tivessem trocado, ela não podia
conhecê-lo tão rapidamente por si própria, apenas através
dos olhos da sua mãe, mas sabia que ele era meigo e que
tinha um aspecto e modos agradáveis, e que a erupção dele
na sua vida a libertara de um pesadelo de culpa e perda, e
seria desse modo que ela se recordaria e pensaria sempre
nele, com um prazer e uma gratidão não muito distantes do
amor. O que era ganho suficiente, mesmo se ele nunca mais
voltasse a vê-la.
- Deus o conserve, pai - disse Helisende.
Foi a primeira e a última vez que ela lhe deu esse título
não como padre mas como homem, mas foi uma dádiva que
lhe iria durar uma vida inteira.
Passaram a noite em Hargedon, onde os cônegos de
Hampton tinham uma granja, numa zona que estava a ser
lentamente recuperada da destruição que se seguira à
ocupação normanda. Só agora, ao fim de sessenta anos, a
terra arável estava a ser ressuscitada da vegetação rasteira,
e havia alguns povoados a ser construídos em cruzamentos
de caminhos ou em locais em que um rio fornecia água para
um moinho. A segurança relativa proporcionada pelos
cônegos, pelo administrador e pelos criados tinha levado
outros a instalar-se na região, e agora viam-se filhos mais
novos empreendedores a talhar cabanas dos bosques
negligenciados. Mas ainda era um território esparsamente
povoado, plano, solitário e, à luz do entardecer, melancólico.
No entanto, a cada passo esforçado dado para oeste através
da planície sombria, a vivacidade do Irmão Haluin
aumentava, o seu passo acelerava e o seu rosto ficava mais
corado de ansiedade.
Da janela estreita, sem portadas, do celeiro, olhou para
oeste, para a noite estrelada. Mais próximo de Shrewsbury,
onde as colinas começavam a elevar os seus velos em
direção às montanhas do País de Gales, a terra e o céu
estavam harmoniosamente equilibrados, mas aqui a
abóbada celeste parecia imensa, e a terra dos homens
oprimida e sombria. O brilho das estrelas e o espaço negro
entre elas denunciavam um toque de gelo no ar, mas
prometiam um belo dia para o dia seguinte.
- E nunca sentes - perguntou Cadfael em voz baixa -
vontade de olhar por cima do ombro?
- Não - disse Haluin, tranquilamente. - Não há
necessidade. Atrás de mim está tudo bem. Está tudo muito
bem. Não há nada para eu fazer ali, tudo o que tenho para
fazer está no local para onde eu vou. Agora somos irmã e
irmão. Não pedimos mais nada, não desejamos mais nada.
Agora posso levar um coração inteiro para Deus. Sinto-me
muito feliz por Ele me ter feito desanimar, para depois me
erguer, renovado para O servir.
Houve um longo silêncio tranquilo enquanto ele
continuava a olhar para a noite límpida com uma espécie de
fome vívida no rosto.
- Quando partimos para Hales, deixei uma folha a meio -
disse ele, pensativamente. - Pensei que não demoraria
muito a estar de volta para a terminar. Espero que o Anselm
não a tenha dado a outro. Era um N maiúsculo para “Nunc
Dimittis”, a que ainda faltavam metade das cores.
- Ela estará à tua espera - garantiu-lhe Cadfael.
- O Aelfric é bom, mas não sabe o que eu quero, pode
exagerar no ouro. - A sua voz era suave, prática e jovem.
- Tem calma, não te preocupes - disse Cadfael. - Tem
paciência durante mais três dias, que terás o pincel e a pena
novamente na mão para retomares o teu trabalho. E eu
tenho de voltar para as minhas ervas, pois nesta altura os
armários dos medicamentos já devem estar praticamente
vazios. Deita-te, rapaz, e descansa. Amanhã há mais milhas
à tua espera.
Um vento suave de oeste soprou através da janela
aberta e Haluin levantou a cabeça e cheirou o ar como um
cavalo de raça a farejar a sua cavalariça.
- Que bom que é - disse ele - estar a caminho de casa!
FIM

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