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Peter Camenzind
tradução
Claudia Abeling
Dedicado a Fritz e Alice Leuthold
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Créditos
1
O que meu pai não logrou fazer, coube a essa decepção amorosa.
Ela me tornou bêbado.
Isso teve mais importância em relação à minha vida e ao meu
caráter do que qualquer outra coisa que eu tenha contado até o
momento. O forte e doce Deus era meu amigo fiel e o continua
sendo até hoje. Quem é tão poderoso quanto ele? Quem é tão belo,
fantástico, sonhador, alegre e melancólico? Ele é herói e mágico. É
sedutor e irmão de Eros. Nada lhe é impossível; ele preenche
pobres corações humanos com poemas belos e encantados.
Solitário e camponês, fui transformado em rei, poeta e sábio. Ele
lança novos destinos aos barcos que se esvaziaram no rio da vida e
retorna aqueles encalhados ao célere fluxo da grande existência.
Assim é o vinho, igual a todas as artes e dotes preciosos. Ele
quer ser amado, procurado, compreendido e conquistado com
esforço. Não são muitas as pessoas que chegam lá; portanto, ele as
aniquila aos milhares. Ele as envelhece e mata ou apaga a chama
do seu espírito. Mas convida suas preferidas a festas e lhes constrói
pontes coloridas a ilhas seguras. Quando estão cansadas, lhes
coloca travesseiros sob a cabeça e as acolhe quando sucumbem à
tristeza com um abraço mudo e bondoso como amigo e mãe
consoladora. Transforma a confusão da vida em grandes mitos e
dedilha a música da criação em poderosas harpas.
Em outras vezes, ele é a criança de cachos longos e sedosos,
ombros estreitos e membros delicados. Aninha-se em seu coração,
ergue o rostinho ao seu e o observa, espantado e sonhador, com
seus grandes olhos amorosos e em cujas profundezas as
recordações do Paraíso e a intacta inocência divina brilham e fluem,
cintilantes, como uma fonte que brotou na floresta.
E o doce Deus assemelha-se à corrente que percorre, profunda e
ruidosa, uma noite de primavera. E ao mar que embala o sol e a
tempestade em ondas cálidas.
Ao conversar com suas pessoas preferidas, estas são
surpreendidas pelo tormentoso mar dos segredos, da lembrança, da
poesia, dos pressentimentos, que as aterroriza e inunda. O mundo
como é conhecido se reduz e some, e numa alegria atemorizada a
alma se lança à imensidão sem fronteiras do desconhecido, onde
tudo é estranho e familiar e onde a língua é a da música, dos poetas
e do sonho.
Bem, tenho de contar.
Aconteceu de eu, esquecido de mim, conseguir passar horas
alegre, estudando, escrevendo e ouvindo a música de Richard.
Porém não havia nenhum dia livre de sofrimento. Às vezes ele me
assaltava apenas tarde da noite, na cama, me fazendo gemer,
trazendo agitação, permitindo que eu conciliasse o sono apenas
tardiamente, em lágrimas. Ou renascia quando eu topava com
Erminia Aglietti. Mas, em geral, o sofrimento me acometia ao findar
a tarde, quando começavam as noitinhas bonitas, cálidas e
lânguidas. Então eu ia até o lago, pegava um barco, remava até
sentir calor e cansaço, achando impossível voltar para casa. Era o
caso de ir para um bar ou uma taberna. Experimentava diversos
vinhos, bebia e matutava, e por vezes ficava meio doente no dia
seguinte. Nesse estado, por dezenas de vezes um tamanho
sentimento de tristeza atroz e de asco me fazia jurar não beber
nunca mais. Mas eu voltava a beber. Pouco a pouco passei a
diferenciar os vinhos e seus efeitos e os apreciava com um tipo de
consciência que ainda se mantinha suficientemente ingênua e
natural. Por fim, encontrei um porto seguro no tinto Veltliner. No
primeiro copo, seu gosto era seco e excitante, depois ele me
obnubilava os pensamentos até que passassem a ser devaneios
silenciosos, constantes, para então passar a encantar, criar,
escrever a própria poesia. Todas as paisagens que um dia me
agradaram pareciam então me envolver, imersas numa iluminação
agradável, e eu caminhava dentro delas, cantava, sonhava e sentia
correr em mim uma vida maior, mais quente. E terminava numa
tristeza absolutamente confortável, como se ouvisse um violino
tocando canções populares e soubesse ter passado ao largo de
uma grande felicidade, algures, a qual havia perdido.
Aconteceu de eu estar cada vez menos sozinho no bar, e mais
na companhia de todo tipo de gente. Assim que me via rodeado de
pessoas, o efeito do vinho em mim se modificava. Eu me tornava
falante, mas não excitado, estranhamente febril. Um lado meu até
então quase desconhecido florescia de repente, como se fosse mais
afim dos cardos e das urtigas do que das flores de jardim e
daquelas ornamentais. Pois a verborragia vinha acompanhada da
mente fria e arguta, tornando-me seguro, superior, crítico e
engraçado. Se houvesse pessoas cuja presença me incomodava,
logo as ridicularizava e perturbava ora com elegância e astúcia ora
com grosseria e tenacidade, por tanto tempo que acabavam indo
embora. Aliás, desde a infância nunca achei os seres humanos
especialmente amáveis ou necessários, e começava a observá-los
de maneira crítica e irônica. Adorava inventar e contar pequenas
histórias, em que as relações pessoais eram apresentadas
satiricamente como secas e de evidente objetividade, para então
ironizá-las com amargura. Nem eu próprio sabia de onde vinha esse
tom desdenhoso; ele surgia como uma pústula madura de dentro de
mim e dele não me livrei por anos.
Entrementes, se eu passasse a noite sentado sozinho, sonhava
com montanhas, estrelas e música triste.
Nessas semanas, fiz uma série de observações sobre a
sociedade, a cultura e a arte de nosso tempo, um livrinho perverso,
cujo berço foram minhas conversas na taberna. E meus esforçados
e alentados estudos históricos acresciam ao todo algum material
específico, conferindo às minhas sátiras uma espécie de base
sólida.
Por causa desse trabalho, tornei-me colaborador fixo de um
jornal de grande circulação, algo que quase garantia meu sustento.
Logo em seguida, as crônicas foram publicadas também como
livrinho independente e fizeram algum sucesso. Foi então que
abandonei definitivamente a filologia. Já cursava os semestres
finais, e os vínculos com revistas alemãs que começavam a ser
criados me tiravam da obscuridade e da pobreza de até então para
me erguer ao círculo dos consagrados. Ganhando meu pão,
renunciei à bolsa fastidiosa e desfraldei as velas rumo à desprezível
vida de um pequeno autor profissional. E apesar do sucesso e de
minha vaidade, e apesar das sátiras e de minhas decepções
amorosas, pairava sobre mim o brilho cálido da juventude na forma
de contentamento e melancolia. Apesar de toda ironia e da pequena
e inocente arrogância, eu sempre vislumbrava em sonhos meu
objetivo — uma felicidade, uma realização. Não sabia qual, apenas
pressentia que a vida deveria uma vez lançar a meus pés uma
felicidade especialmente risonha, uma fama, talvez um amor, uma
satisfação de meu desejo e uma elevação de minha pessoa. Eu
continuava como o pajem que sonha com as damas nobres e o
título de cavaleiro.
Acreditava estar no início de uma via ascendente. Não sabia que
tudo o que havia vivido até então eram apenas casualidades e que
eu carecia, assim como minha vida, de um tom básico, pessoal. Eu
não sabia que sofria de um anseio que não se limita nem se satisfaz
pelo amor ou pela fama.
E eis que desfrutava do meu discreto renome com todo o prazer
juvenil. Me fazia bem sentar em meio a pessoas inteligentes e
espirituosas, com um bom vinho, e quando eu começava a falar
notava seus rostos atentos e ávidos voltados para mim.
Por vezes eu percebia o quanto essas almas de nossos dias
ansiavam por redenção e os caminhos estranhos que esse anseio
as fazia trilhar. Acreditar em Deus era considerado burrice e quase
indecoroso, mas se acreditava em inúmeros ensinamentos e nomes,
em Schopenhauer, em Buda, em Zaratustra e muitos outros. Havia
poetas jovens, obscuros, que prestavam reverências solenes diante
de estátuas e pinturas de casas elegantes. Eles tinham vergonha de
se ajoelhar diante de Deus, mas não diante de Zeus de Otricoli.
Havia ascetas que se torturavam com a abstinência e cujo asseio
bradava aos céus. Seu Deus se chamava Tolstói ou Buda. Havia
artistas que eram estimulados a estados de espírito distintos por
meio de bem escolhidos e bem combinados papéis de parede,
músicas, comidas, vinhos, perfumes ou cigarros. Era de hábito falar
com uma naturalidade artificial de linhas musicais, arranjos
cromáticos e coisas semelhantes, e eles estavam o tempo todo à
procura do “toque pessoal”, que em geral era um pequeno e
inofensivo autoengano ou maluquice. No fundo, eu achava essa
comédia forçada divertida e ridícula, mas me arrepiava pelo tanto de
desejo verdadeiro e de autêntica força espiritual que ardia e se
apagava nisso.
De todos os fantásticos poetas, artistas e filósofos da moda que,
com espanto e satisfação, conheci, não sei de nenhum que tenha se
notabilizado. Entre eles, havia um alemão do norte da Alemanha
que regulava comigo em idade, uma figura simpática, delicada,
amável e sensível em tudo que se referia ao mundo artístico. Era
considerado um dos futuros grandes poetas, e algumas vezes
assisti a leituras de seus poemas que, na minha lembrança, ainda
carregam algo de incrivelmente arejado, de uma grande beleza
espiritual. Talvez fosse o único entre nós que poderia realmente se
transformar em poeta. Mais tarde, por acaso, descobri sua breve
história. Tendo se tornado arredio devido a um fracasso literário, o
supersensível retirou-se de toda e qualquer vida pública e caiu nas
mãos de um mecenas desgraçado, que, em vez de incentivá-lo e
fazê-lo voltar à razão, apressou seu fim definitivo. Ele mantinha
conversas insossas sobre estética com as senhoras nervosas
presentes nas mansões do ricaço, imaginava-se um herói
desvalorizado e, como resultado da condução desastrada, foi
sistematicamente perdendo a razão devido a muita música de
Chopin e êxtases pré-rafaelitas.
Só consigo me lembrar com arrepio e comiseração de tal bando
de poetas e belas almas vestidos e penteados de maneira
excêntrica, visto que percebi o perigo de sua companhia apenas
mais tarde. Minha herança camponesa de gente das montanhas me
impedia de participar dessa confusão.
A amizade, porém, trazia consigo mais nobreza e felicidade do
que a fama e o vinho, o amor e a sabedoria. Afinal, era a única coisa
que fazia frente contra o meu pessimismo congênito e que mantinha
o frescor e o brilho dos meus anos de juventude. Até hoje, não
conheço nada mais incrível no mundo do que uma amizade honesta
e verdadeira entre homens; por vezes, quando sinto saudades dos
meus anos de mocidade, então é apenas das amizades da época
dos estudos.
Desde que me apaixonei por Erminia, eu abandonei um pouco
Richard. No início, foi inconsciente; depois de algumas semanas,
porém, confessei-lhe meus remorsos. Ele me revelou que tinha,
infelizmente, antevisto o início e o desenrolar dessa infelicidade, e
novamente me juntei a ele de coração e com apreço. Naquela
época, tudo o que aprendi sobre as pequenas artes da vida,
animadas e livres, veio por seu intermédio. Richard era bonito e
vivaz, tanto de corpo quanto de alma, e para ele a vida não parecia
ter sombras. Inteligente e sagaz, ele certamente conhecia as
paixões e os desencantos da época, mas a eles era imune e não
saía machucado. Seu andar, sua fala e sua pessoa como um todo
eram elegantes, harmônicos e adoráveis. Ah, e suas risadas!
Richard não dava muita importância aos meus estudos sobre o
vinho. Às vezes me acompanhava, mas dois copos eram seu limite.
Ao observar meu consumo, muito maior que o seu, ingenuamente
se espantava. Mas quando notava que eu estava sofrendo, indefeso
frente ao desânimo, tocávamos música juntos, ele lia em voz alta ou
me levava a passear. Em nossas pequenas excursões, nos
comportávamos de maneira tão relaxada quanto dois garotinhos.
Certa vez, descansamos em um vale arborizado por volta de um
meio-dia quente, fizemos guerra de pinhas e cantamos versos de A
piedosa Helena no ritmo de melodias sentimentais. O riacho célere
e cristalino, sedutoramente fresco, rumorejou tanto nas nossas
orelhas que tiramos as roupas e entramos na água fria. Então veio a
ideia de encenar uma comédia. Ele se sentou numa rocha coberta
de musgo e era a Lorelei,5 e eu passava na sua frente como
marinheiro num pequeno barco. Seu papel de donzela tão pudica,
cheio de caretas, foi tão bom que eu, que deveria fazer o grande
sofredor, quase não consegui parar de rir. De repente ouvimos
vozes, um grupo de turistas apareceu na trilha e tivemos
rapidamente de esconder nossa nudez na margem inclinada e sem
vegetação. Quando a turma passou por nós, Richard emitiu todo
tipo de sons estranhos, guinchou, zuniu e grunhiu. As pessoas
pararam, olharam ao redor, caíram na água e por pouco não nos
descobriram. Foi então que meu amigo ergueu-se de seu
esconderijo, apenas seu tronco visível, olhou para o grupo indignado
e falou com voz grossa e gesticulação de padre: “Vão na paz!”. Logo
em seguida, tornou a desaparecer, beliscou meu braço e disse: “Foi
uma charada”.
“Como assim?”, perguntei.
“Pan assusta alguns pastores”, ele riu. “Mas infelizmente havia
algumas mulheres entre eles.”
Ele não se interessava muito pelos meus estudos de história.
Mas logo dividiu comigo minha quase apaixonada predileção por
Francisco de Assis, embora fizesse algumas piadas sobre ele que
me magoavam. Enxergávamos o abençoado sofredor caminhando
pela paisagem da Úmbria, satisfeito e feliz como uma amorosa
criança crescida, tomado de júbilo por seu Deus e cheio de amor
singelo por todos os seres humanos. Líamos juntos seu imortal
Cântico ao Sol e o sabíamos quase de cor. Num barco a vapor no
lago, certa vez, ao voltarmos de um passeio com o vento do
entardecer movimentando a água dourada, ele perguntou em voz
baixa: “Ei, o que o santo diz para isso?”. E eu citei:
“Laudato si, misignore, per frate vento e per aere e nubilo e
sereno et onne tempo!”6
Quando brigávamos e nos dizíamos coisas infames, ele — feito
um garoto de escola — me chamava por tantos apelidos
engraçados que eu logo caía na risada e a desavença murchava.
Meu caro amigo era relativamente sério apenas quando escutava ou
tocava suas músicas prediletas. Mesmo então ele podia parar tudo a
fim de fazer alguma graça. Apesar disso, seu amor à arte era de
uma entrega pura, afetuosa, e seu sentimento pelo autêntico e pelo
significativo me parecia certeiro.
Ele dominava maravilhosamente a delicada e terna arte do
consolo, do apoio ou do estímulo quando um de seus amigos se
encontrava em apuros. Quando eu ficava mal-humorado, ele sabia
contar inúmeras pequenas anedotas encantadoramente grotescas;
o tom de sua voz tinha algo de calmante e estimulador a que eu
raramente conseguia resistir.
Eu lhe impunha um pouco de respeito, visto que era mais sério
do que ele; entretanto, minha força física o impressionava ainda
mais. Richard a valorizava diante de outros e tinha orgulho do amigo
que poderia estrangulá-lo com uma só mão. Ele dava muito valor às
capacidades e habilidades físicas, me ensinou a jogar tênis, remava
e nadava comigo, me levava para andar a cavalo e não descansou
até eu me sair tão bem no bilhar quanto ele. Era seu jogo predileto,
e ele não apenas o praticava com arte e maestria, mas sempre
estava muito animado, divertido e alegre durante as partidas.
Frequentemente batizava as três bolas com os nomes de pessoas
conhecidas e a cada tacada construía — a partir da posição,
proximidade e distância das bolas — histórias inteiras cheias de
piadas, insinuações e comparações caricatas. Entretanto, jogava
com tranquilidade, leveza e absoluta elegância, e era um prazer
observá-lo.
Ele valorizava minha atividade literária tanto quanto eu mesmo.
Certa vez, me disse: “Veja, sempre achei você um poeta e ainda
acho, não por causa dos seus folhetins, mas porque sinto que há
algo bonito e profundo dentro de você e que mais dia menos dia virá
à luz. E daí será poesia de verdade”. Enquanto isso, os semestres
passavam como pequenas moedas que escorregam pelos nossos
dedos, e de repente chegou a hora em que Richard teve de pensar
em voltar para casa. Aproveitamos as semanas que corriam com
uma leveza um tanto artificial e, ao final, chegamos à conclusão de
que um evento brilhante e festivo deveria encerrar de maneira
alegre e auspiciosa esses belos anos antes da despedida amarga.
Sugeri uma excursão de férias pelos Alpes de Berna, mas ainda não
era primavera e estávamos muito adiantados para as montanhas.
Enquanto eu quebrava a cabeça para achar outras ideias, Richard
escreveu ao pai e me preparou secretamente uma grande e alegre
surpresa. Um dia ele chegou com um cheque vultoso e me convidou
a acompanhá-lo, na condição de guia, ao norte da Itália.
Meu coração batia temeroso e exultante. Um desejo ardente,
cultivado desde os tempos de garoto e milhares de vezes sonhado
iria se concretizar. Febrilmente fui atrás de meus pequenos
preparativos, ensinei algumas palavras de italiano ao meu amigo,
achando — até o último dia — que tudo poderia malograr.
Nossa bagagem tinha sido despachada antecipadamente,
estávamos sentados no vagão, campos e colinas verdes passavam
rápidos, chegamos aos lagos Uri e Gotthard, dali aos vilarejos de
montanha, riachos, encostas de cascalho e picos nevados do
Tessino e depois às primeiras casas de pedra escura em vinhedos
planos, e à aguardada viagem rumo aos lagos e através da fértil
Lombardia, até a animada e barulhenta Milão, estranhamente
sedutora e repulsiva.
Richard nunca havia visto o domo de Milão, sabia apenas que
era uma construção grande e famosa. Foi divertidíssimo
acompanhar sua indignada decepção. Depois de ter superado o
primeiro susto e recobrado o humor, ele mesmo sugeriu subir ao
telhado e circular entre a maravilhosa barafunda de estátuas de
pedra. Descobrimos, com alguma satisfação, que não era preciso se
lamentar pelas centenas de infelizes estátuas largadas ali, pois, via
de regra, as mais novas eram feitas em série e sem maiores
qualidades. Ficamos encostados por quase duas horas sobre as
largas placas de mármore inclinadas que um luminoso dia de abril
havia aquecido ligeiramente. Satisfeito, Richard me confessou:
“Sabe, no fundo não tenho nada contra passar por outras
decepções como essa da catedral maluca. Durante toda a viagem
tive um pouco de medo de todas as coisas maravilhosas que
veríamos e que nos deprimiriam. Mas a coisa começa de um jeito
tão simpático, tão ridiculamente humano!”. A coleção de
personagens, em cujo centro nos encontrávamos, ensejava-lhe toda
sorte de fantasias barrocas.
“Acho”, ele disse, “que o maior e mais distinto santo está na torre
do coro, que é o ponto mais alto. Visto que não é nada agradável
ficar eternamente se segurando nessas torrezinhas pontudas feito
um equilibrista de pedra, é bem provável que de tempos em tempos
o santo mais santo seja rendido e levado ao céu. Imagine o
espetáculo a cada vez! Pois é evidente que todos os outros santos
como que avançam uma casa, seguindo exatamente a hierarquia, e
todos têm de dar um grande salto até o nicho do antecessor, sempre
muito rápido e todos invejosos de todos que estão à sua frente.”
Independentemente das vezes que passei por Milão, aquela
tarde sempre retornou à minha mente e, com um sorriso
melancólico, eu enxergava as centenas de santos de mármore
dando seus saltos audazes.
Em Gênova, ganhei um novo amor. Era um dia claro, cheio de
vento, pouco depois do meio-dia. Tinha apoiado os braços numa
amurada larga, atrás de mim estava a colorida Gênova; embaixo, a
grande massa de água azul crescia, cheia de vida. O mar. Com um
bramir obscuro e desejo incompreendido, o eterno e o imutável se
lançavam contra mim, e senti como algo meu se ligava, para a vida
e para a morte, com essa água azul e cheia de espuma.
O vasto horizonte do mar me impactou igualmente. Mais uma
vez, enxerguei — como nos tempos de criança — o diáfano azul
longínquo como um portão aberto a me esperar. E mais uma vez fui
tomado pela sensação de não ter nascido para a vida ordinária entre
as pessoas, em cidades e apartamentos, mas para transitar por
regiões estrangeiras e viajar sem destino pelos mares. Aflorou-me
novamente, com um ímpeto sombrio, o desejo antigo e melancólico
de me atirar ao peito de Deus e de unir fraternalmente minha
insignificante vida ao infinito e eterno.
Em Rapallo, nadando, lutei com a correnteza pela primeira vez,
experimentei a adstringente água salgada e senti a força dos
vagalhões. Ao redor, límpidas ondas azuis, rochas litorâneas
amarronzadas, o tranquilo céu profundo e o grande eterno marulho.
Eu me encantava a cada vez com a visão dos navios que
deslizavam ao longe, dos mastros pretos e das velas claras, ou com
a pequena trilha de fumaça de um vapor ainda mais distante. À
exceção de minhas adoradas nuvens nômades, não conheço
imagem mais bonita nem mais profunda da nostalgia e da
peregrinação do que a de um navio a grande distância e que,
afastando-se, fica cada vez menor até sumir no horizonte aberto que
o aguarda.
E chegamos a Florença. A cidade se apresentou como eu a
conhecia de centenas de fotos e milhares de sonhos — arejada,
ampla, convidativa, atravessada por um rio verde, cheio de pontes,
e circundada por colinas claras. A torre divertida do Palazzo Vecchio
espetava, audaciosa, o céu aberto, a bela Fiesole despontava no
alto, alva e aquecida pelo sol, e as flores das árvores frutíferas
pintavam de branco e vermelho-rosado todas as colinas. A vida
toscana, animada e agitada, inocente, se revelou para mim feito um
milagre e quase me senti mais aclimatado do que em minha própria
terra. Passávamos os dias percorrendo igrejas, praças, vielas,
loggie e mercados; as noites, sonhando nos jardins das colinas,
onde os limões já amadureciam, ou bebendo e conversando em
pequenos bares de chianti. Nos intervalos, as ricas horas que
traziam felicidade nas galerias e no museu Bargello, nos conventos,
bibliotecas e sacristias, as tardes em Fiesole, San Miniato,
Settignano, Prato.
De acordo com o que havíamos combinado antes da partida,
deixei Richard sozinho por uma semana e desfrutei da caminhada
mais nobre e adorável da minha juventude pelo relevo verde e
ondulante da Úmbria. Percorri as trilhas de são Francisco e em
algumas horas sentia-o caminhando ao meu lado, a alma
preenchida por um amor insondável, cumprimentando cada
passarinho, cada fonte e cada arbusto de roseira-brava com
gratidão e alegria. Eu colhia e chupava limões em encostas
radiantes, ensolaradas, passava a noite em pequenas vilas, cantava
e declamava poemas para mim mesmo e festejei a Páscoa em
Assis, na igreja do meu santo.
Ainda acho que esses oito dias de caminhada pela Úmbria foram
o ápice e o belo crepúsculo de meus dias de juventude. Fontes
brotavam dentro de mim todos os dias, e eu enxergava a paisagem
de primavera, festiva e luminosa, como se pelos bondosos olhos de
Deus.
Na Úmbria, acompanhei Francisco, o “jogral de Deus”, com
veneração; em Florença, deliciei-me com a constante representação
da vida no Quattrocento. Afinal, em casa eu já havia escrito sátiras a
respeito das formas de vida atuais. Mas foi em Florença que senti,
pela primeira vez, todo o ridículo sórdido da cultura moderna. Foi lá
que tive a noção de que eu sempre seria um estranho em nossa
sociedade e foi lá que despertou em mim, pela primeira vez, o
desejo de tocar a vida fora dessa sociedade e, se possível, no sul
da Europa. Aqui eu poderia conviver com as pessoas, aqui eu me
alegrava o tempo todo pela naturalidade descomplicada da vida,
enobrecida e refinada pela tradição da cultura clássica e da história
que a recobria.
As belas semanas passaram voando, belas e encantadoras;
também nunca havia visto Richard assim tão arrebatado. Alegres e
animados, esvaziamos os cálices da beleza e do prazer. Fomos
conhecer vilarejos mais afastados, nas colinas; fizemos amizade
com taberneiros, monges, moças do campo e párocos locais
modestos e satisfeitos; escutamos serenatas ingênuas; demos pão
e frutas a belas crianças morenas; e do alto das montanhas
ensolaradas avistamos a Toscana, imersa no brilho da primavera, e,
mais ao longe, o faiscante mar da Ligúria. E ambos dividimos a forte
sensação de estarmos diante de uma nova vida, rica, merecedores
de nossa felicidade. Trabalho, luta, prazer e fama estavam tão
próximos e certos à nossa frente que usufruímos sem pressa dos
dias felizes. Também a separação iminente parecia leve e
transitória, pois sabíamos, com mais certeza que nunca, que um era
indispensável ao outro e por toda a vida.
Agora é a vez do tempo de minha vida que parece ter sido mais
movimentado e colorido do que nunca e que daria um romance
pequeno daqueles que estão em voga. Eu deveria contar como um
jornal alemão me nomeou redator. Como dei liberdade excessiva à
pena e à língua ferina, recebendo em troca escárnio e
doutrinamento. Como conquistei a fama de bêbado e, por fim,
depois de contendas mordazes, me desliguei do cargo e pedi para
ser enviado a Paris como correspondente. Como vivi feito cigano
nesse lugar amaldiçoado, matando o tempo e participando de
malandragens em diversos setores.
Não satisfazer os sórdidos de plantão entre meus leitores e omitir
aqui esse breve período está longe de ser covardia. Reconheço que
trilhei descaminhos em série, vi toda espécie de sujeira e fiquei
preso nela. Desde então, desapareceu-me o gosto pelo romantismo
da boemia, e vocês hão de permitir que eu me mantenha no que é
puro e bom, que também existiu em minha vida, e deixar perdido e
descartado aquele tempo perdido.
Certa noite, estava sentado sozinho no Bois de Boulogne,
pensando se deveria deixar Paris ou até mesmo a vida. Depois de
muito tempo, essa foi a primeira vez que a revisitei em pensamentos
e calculei não ter muito a perder.
Mas então me veio a lembrança cristalina de um dia há muito
passado e esquecido — uma manhã de verão, em casa nas
montanhas, e eu me vi ajoelhado junto a uma cama; nela estava
minha mãe, moribunda.
Levei um susto e me envergonhei por aquela manhã ter sumido
de minha memória por tanto tempo. Os pensamentos de morte
tinham desaparecido. Pois acredito que nenhum ser humano sério e
não totalmente fora dos eixos é capaz do suicídio se um dia viu uma
vida saudável e boa fenecer. Revi a morte de minha mãe. Revi em
seu rosto o trabalho silencioso e circunspecto da morte que o
enobrecia. A morte parecia rude, mas também tão forte e bondosa
quanto um pai zeloso que conduz o filho perdido de volta para casa.
De repente, soube novamente que a morte é nossa irmã
inteligente e boa, que conhece a hora certa e na qual podemos
confiar com segurança. E comecei a compreender também que o
sofrimento, as decepções e a melancolia não existem para nos
irritar, desvalorizar e desonrar, mas para nos amadurecer e alentar.
Oito dias mais tarde minhas bagagens tinham sido despachadas
para a Basileia e atravessei a pé uma região bonita do sul da
França. A cada dia que passava, sentia que os infelizes tempos
parisienses, cujas lembranças me seguiam como um rastro
fedorento, se desfocavam e dissolviam no ar. Assisti a uma cour
d’amour. Pernoitei em castelos, moinhos, celeiros e tomei vinho
ensolarado e quente com rapazes morenos e falantes.
Molambento, magro, queimado do sol e mudado internamente,
depois de dois meses cheguei à Basileia. Foi minha primeira grande
peregrinação, a primeira de muitas. Há poucos lugares entre
Locarno e Verona, entre a Basileia e Brig, entre Florença e Perugia
que não percorri por duas ou três vezes com minhas botas
empoeiradas — atrás de sonhos dos quais nenhum ainda se
concretizou.
Minha outra mácula era muito pior. O convívio com as pessoas não
me trazia alegria, eu levava a vida de maneira solitária e as coisas
humanas eram por mim tratadas com zombaria e desdém.
No início da minha nova vida, eu ainda não pensava nisso.
Achava correto deixar as pessoas entregues a si mesmas e dedicar
meu carinho, minha atenção e minha simpatia à vida secreta da
natureza, que, no início, me preenchia por completo.
À noite, quando queria me deitar, lembrava subitamente de uma
colina, da franja de uma floresta, de uma árvore predileta que havia
muito eu não visitara. Ela estava entregue ao vento da noite,
sonhando, talvez até meio adormecida, gemendo e esticando os
galhos. Qual seu aspecto? E eu saía de casa, procurava a árvore e
percebia sua forma indefinida na escuridão, observava-a com terno
espanto e retornava, carregando sua imagem imprecisa.
Vocês dão risada. Talvez esse amor fosse errado, mas não
desperdiçado. Mas como eu haveria de encontrar a partir dali o
caminho que conduz ao amor pelos seres humanos?
Bem, depois do primeiro passo, coisas boas acontecem
naturalmente. A ideia de minha grande obra poética me parecia
cada vez mais próxima e possível. E se minha benquerença alguma
vez me levasse a falar poeticamente a língua das florestas e dos
rios, quem seriam os ouvintes? Não apenas os objetos de meu
afeto, mas principalmente os seres humanos — dos quais eu queria,
nas questões do amor, ser líder e professor. Mas com os seres
humanos eu era rude, desdenhoso e antipático. Senti a contradição
e a necessidade de combater a hostilidade afrontosa e de estender
minha fraternidade igualmente às pessoas. E isso era penoso, pois
o isolamento e os golpes do destino tinham me tornado duro e mau
exatamente nesse ponto. Não era suficiente que eu me esforçasse,
em casa e na taberna, para ser menos rude, ou que
cumprimentasse com um aceno de cabeça aqueles que passavam.
Aliás, já nisso eu percebia o quanto havia comprometido a relação
com as pessoas, pois minhas tentativas de ser simpático eram
vistas com desconfiança e frieza ou consideradas zombaria. O pior
é que eu tinha evitado por quase um ano a casa daquele intelectual,
o único entre meus conhecidos, e percebi que voltar lá era prioritário
para eu encontrar um caminho qualquer à sociabilidade desse lugar.
E foi quando minha própria natureza humana, da qual eu tanto
desdenhava, veio em meu auxílio. Bastou eu pensar naquela casa
de novo para, ato contínuo, Elisabeth me voltar à mente, bela diante
da nuvem de Segantini, e de súbito notei o quanto minha nostalgia e
melancolia estavam impregnadas dela. E pela primeira vez pensei
seriamente em me casar. Até então eu tinha estado tão convencido
de minha incapacidade ao casamento que uma ácida ironia
acompanhava meus pensamentos a respeito. Eu era poeta,
caminhante, beberrão, solitário! E eis que parecia reconhecer que o
destino queria construir minha ponte para o mundo através de um
casamento por amor. Tudo parecia tão sedutor e seguro! Eu tinha
sentido e constatado que Elisabeth me dava atenção e que também
possuía uma natureza sensível e nobre. Recordei-me de como sua
beleza tinha se acendido na conversa sobre San Clemente, e mais
tarde, em frente ao Segantini. Havia anos eu armazenara, através
da arte e da natureza, um rico lado interior; ela aprenderia comigo a
enxergar a beleza que se esconde em todos os lugares, e eu a
envolveria com o que é belo e autêntico, de modo que seu rosto e
sua alma se esqueceriam de todas as preocupações, e seus
atributos desabrochariam. Curiosamente não percebi o risível de
minha súbita transformação. Eu, solitário e estranho, tinha me
transformado da noite para o dia num sujeito apaixonado que sonha
com a felicidade do casamento e do estabelecimento do próprio lar.
Fui até a hospitaleira casa o mais rapidamente possível, tendo
sido recebido com simpáticas reprimendas. Voltei mais outras tantas
vezes e depois de algumas visitas reencontrei Elisabeth. Oh, ela era
bonita! Parecia-se com a imagem que eu fizera dela como minha
amada: bela e contente. E desfrutei durante toda uma hora a beleza
alegre de sua presença. Ela me cumprimentou de maneira
simpática, até afetuosa, expressão de uma amizade íntima que me
deixou feliz.
Pós-escrito
1 O vento föhn ocorre quando uma camada profunda de vento é forçada a subir uma
montanha. Muitas lendas cercam o föhn, que supostamente provoca comportamentos
esquisitos nas pessoas. [Esta e as demais notas são da tradutora.]
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2 Os Fugger foram uma família de importantes banqueiros e mercadores de Augsburgo do
final do século xv ao início do xvii.
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3 Wilhelm Busch (1832-1908), poeta, pintor e caricaturista alemão. Juca e Chico, talvez
seus personagens mais famosos, são meninos travessos que infernizam a vida dos
moradores de seu vilarejo.
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4 “Dies Wort drang ihm in die Natur/ So dass er schleunigst Bessrung schwur”: trecho da
obra A piedosa Helena, de Wilhelm Busch.
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5 A lendária Lorelei é uma espécie de sereia que, sentada num penhasco junto ao Reno,
penteia seus cabelos dourados e distrai os marinheiros com sua beleza e música,
causando acidentes.
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6 “Louvado seja, ó meu Senhor, pelo irmão vento e pelo ar, e nuvens, e sereno, e todo o
tempo.”
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7 Semanário satírico, publicado entre 1896 e 1944.
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8 Referência ao primeiro verso do poema “O Atlas” de Heine, musicado por Schubert: “Ich,
unglückselger Atlas!” [Eu, desafortunado Atlas!].
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9 “Quanto é bela a mocidade/ que se escapa tão andeja!/ Aí seja alegre quem seja:/ de
amanhã nada se sabe.” Tradução de Jorge de Sena, em Poesia do século xx (Coimbra:
Fora do Texto, 1994).
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10 Trata-se de jovens artesãos aprendizes que tradicionalmente circulavam entre as
cidades em busca de oportunidades de trabalho e aprimoramento de suas técnicas; para
muitas corporações de ofícios, essa peregrinação “profissional” era precondição para se
conseguir o título de mestre.
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11 “Wie eine weiße Wolke/ Am hohen Himmel steht,/ So licht und schön und ferne/ Bist du,
Elisabeth.// Die Wolke geht und wandert/ Kaum hast du ihrer acht,/ Und doch durch deine
Träume/ Geht sie bei dunkler Nacht.// Geht und erglänzt so selig,/ Dass fortan ohne Rast/
Du nach der weißen Wolke/ Ein süßes Heimweh hast.”
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12 Obras de Gottfried Keller (1819-90).
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13 Cunctator, palavra latina, dá origem ao adjetivo “cuntatório”, “aquele que adia”.
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Gret Widmann © Martin Hesse Erben
capa
Luciana Facchini
ilustração de capa
Juan Narowé
preparação
Nina Schipper
revisão
Eloah Pina
Fernanda Alvares
versão digital
Booknando
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 833.9