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Hermann Hesse

Peter Camenzind
tradução
Claudia Abeling
Dedicado a Fritz e Alice Leuthold
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Créditos
1

No começo era o mito. Assim como Deus Altíssimo, em sua busca


por expressão, trouxe poesia à alma de hindus, gregos e
germânicos, também Ele continuou, dia após dia, trazendo poesia à
alma de todas as crianças.
Eu ainda não sabia o nome do lago e das montanhas e dos
riachos da minha terra. Iluminado pelo sol, porém, eu via o espelho
largo, verde-azulado, pontilhado por luzinhas e, cercando-o feito
uma coroa espessa, as montanhas escarpadas; nos seus picos
mais altos, as estreitas passagens entre a neve e minúsculas
quedas-d’água; a seus pés, os relvados inclinados, abertos,
ocupados por árvores frutíferas, chalés e vacas alpinas cinzentas. E
como minha pequena pobre alma estava deitada ali, tão vazia,
silenciosa e expectante, os espíritos do lago e das montanhas nela
inscreviam seus belos e audazes atos. Os penhascos e as paredes
rochosas falavam, teimosos e reverentes, dos tempos de que são
filhos e cujas feridas carregam. Falavam de antes, de quando a
Terra irrompeu, se curvou e expeliu do seu corpo torturado, em
lamuriosa agonia de nascimento, picos e arestas. Massas rochosas
erguiam-se estrondosas e ressonantes, até se partirem e perderem
seus cumes; montanhas gêmeas debatiam-se desesperadas por
espaço até uma vencer e se empertigar, empurrando a irmã para o
lado, quebrando-a. No alto dos desfiladeiros, ainda havia aqui e
acolá cumes partidos, rochas atiradas para longe e fragmentadas, e
em cada degelo a queda-d’água derrubava blocos do tamanho de
uma casa, estilhaçando-os feito vidro, ou os incrustava com golpes
violentos nos relvados macios.
Essas montanhas rochosas diziam sempre a mesma coisa. E era
fácil entendê-las ao se observar suas encostas íngremes,
fragmentadas, tortas, desgastadas, cheias de feridas abertas,
camada sobre camada. “Sofremos coisas inomináveis”, diziam, “e
ainda estamos sofrendo.” Mas o diziam com orgulho, sérias e
concentradas, como combatentes veteranas, inabaláveis.
Sim, combatentes. Eu as via lutar, contra água e tempestade, nas
terríveis noites que antecediam a primavera, quando o föhn,1
amargurado, uivava em volta de suas velhas cabeças, e o fluxo dos
riachos arrancava pedaços frescos e crus de seus flancos. Elas
suportavam essas noites obstinadamente enraizadas, taciturnas,
afogueadas e resolutas, opunham à tempestade as encostas e os
cumes fendidos pelas intempéries e, agrupadas de maneira tenaz e
desafiadora, reuniam toda sua força. E a cada ferida ouvia-se o
ribombar tenebroso da raiva e do medo, e mesmo os ecos mais
distantes ressoavam, truncados e furibundos, seus terríveis
gemidos.
E eu via pradarias, encostas e fendas rochosas cheias de terra
recobertas com grama, flores, samambaias e musgos, batizados
pela antiga língua do povo com nomes curiosos, significativos. Eles,
filhos e netos das montanhas, coloridos e inofensivos, viviam nos
seus lugares. Eu os tateava, observava, sentia seu aroma e
aprendia seus nomes. As árvores me impressionavam de modo
mais sério e profundo. Eu as via levar sua vida independente, tomar
sua forma específica, criar sua copa e lançar sua sombra única.
Como ermitãs e batalhadoras, elas me pareciam parentes próximas
das montanhas, pois cada qual, principalmente aquelas dos pontos
mais altos, conduzia sua luta silenciosa e tenaz por existência e
crescimento enfrentando o vento, as intempéries e as rochas. Cada
qual tinha seu quinhão a carregar e necessitava se fixar, disso
resultando aspecto e feridas peculiares. Havia pinheiros cujos
galhos as tempestades permitiram que crescessem apenas em um
lado, e outros cujos caules vermelhos haviam se enrodilhado feito
serpentes em ressaltos de rochas, de modo que árvore e rocha se
pressionavam e se sustentavam mutuamente. Elas me pareciam
guerreiros e despertavam temor e respeito em meu coração.
Nossos homens e nossas mulheres, entretanto, assemelhavam-
se às árvores, eram angulosos, muito encarquilhados e pouco
falantes, ao menos os melhores. Por essa razão, aprendi a observar
as pessoas, pensar sobre elas, como se fossem árvores ou rochas,
sem as honrar menos nem as amar mais do que os silenciosos
pinheiros.
Nosso vilarejo Nimikon fica numa área inclinada, triangular, junto
ao lago e cercada por duas montanhas. Um caminho leva ao
convento próximo; outro, ao vilarejo vizinho, a quatro horas e meia
de distância. As demais localidades ao redor do lago são acessadas
por água. Nossas casas são construídas de madeira, no estilo
antigo, sem uma idade definida. Quase não aparecem construções
novas, e as velhas casinhas são reformadas aos poucos, conforme
a necessidade. Num ano é o piso, noutro um remendo no telhado, e
metades de vigas e algumas ripas, que outrora faziam parte da
parede da casa, se transformam em caibros no telhado, e quando
não tiverem serventia nem mais para tanto, mas ainda estiverem
boas demais para serem queimadas, serão usadas para ajeitar o
estábulo ou reforçar transversalmente a porta da casa. Algo
parecido se passa com seus moradores; cada um desempenha o
seu papel pelo tempo que lhe for possível, para em seguida
ingressar, com hesitação, no grupo dos inúteis e, por fim,
desaparecer no escuro, sem gerar maior comoção. Aquele que
retorna depois de anos longe não encontra nada mudado além de
alguns telhados consertados e outros mais recentes tornados
velhos; os idosos de então se foram, mas há outros idosos que
vivem nos mesmos chalés, usam os mesmos nomes, cuidam do
mesmo grupo de crianças de cabelo escuro e mal se diferenciam,
no rosto e nos movimentos, dos já falecidos.
Nossa comunidade carecia de um fluxo mais frequente de vida e
sangue novos, vindos de fora. Os moradores, uma gente
razoavelmente robusta, é quase toda aparentada de maneira íntima
entre si, e quase três quartos carrega o sobrenome Camenzind. Ele
preenche as páginas do registro da igreja e aparece nas cruzes do
cemitério, pregado nas casas, pintado a óleo ou num artesanato
simples de entalhe, e pode ser lido em carroças, em baldes nos
estábulos e em barcos no lago. Também na porta da casa de meu
pai estava pintado: “Esta casa foi construída por Jost e Franziska
Camenzind”, mas a referência não era a meu pai, mas a seu
antepassado, meu bisavô. E caso eu venha a morrer sem deixar
filhos, sei que um Camenzind virá morar novamente no velho ninho,
se este ainda estiver de pé com um teto sobre si.
A despeito da aparente monotonia, nossa vizinhança tinha bons
e maus, elegantes e molambentos, poderosos e pés-de-chinelo e,
ao lado de alguns inteligentes, uma bela coleção de loucos, sem
contar os cretinos. Era, como costuma ser, um pequeno retrato do
vasto mundo — e como grandes e pequenos, inteligentes e loucos
estavam indissociavelmente ligados e aparentados, a grave soberba
e a torpe leviandade pisavam nos calos uma da outra vezes o
suficiente debaixo de um mesmo teto, de modo que nossa vida
oferecia bastante espaço para o profundo e o cômico do aspecto
humano. E tudo isso coberto apenas por um eterno véu de opressão
oculta ou inconsciente. A dependência das forças da natureza e a
tribulação de uma existência pautada pelo trabalho tinham
impregnado ao longo do tempo uma tendência à melancolia nas
nossas gentes (que envelheciam inexoravelmente), a qual não
destoava demais nesses rostos severos, rústicos, mas também não
lhes trazia frutos, ao menos não vantajosos. Exatamente por essa
razão ficávamos aliviados com aqueles poucos loucos que ainda
eram tranquilos e sérios o bastante, mas contribuíam com alguma
cor e com a oportunidade para risadas e zombarias. Quando um
deles caía na boca do povo devido a uma nova travessura, um
lampejo de alegria iluminava as faces morenas, encarquilhadas, dos
filhos de Nimikon. E ao prazer do entretenimento em si juntava-se,
como fino tempero hipócrita, o deleite da própria superioridade, que
arrulhava de prazer sabendo-se segura contra tais tolices ou
enganos. Meu pai fazia parte daqueles muitos que estavam no
centro, entre os justos e os pecadores, e que, sem se fazerem de
rogados, aproveitavam das conveniências de ambos os lados.
Nenhuma traquinagem era perfeita se não o levasse a sentir uma
alegre inquietação — e então ele oscilava entre a admiração pública
pelo seu perpetrador e a consciência exibicionista da própria
inocência.
Entre os loucos estava meu tio Konrad, sem nada dever nem a
meu pai nem a outros heróis no que diz respeito à inteligência.
Antes, ele era um espertalhão conduzido por um irrequieto espírito
inventivo, que muitos poderiam bem ter invejado. Mas é evidente
que nada dava certo para ele. O fato de ele não se deixar abater
nem ficar triste e prostrado por causa disso, e sim recomeçar algo
novo a cada vez, sempre com um curioso e animado sentimento do
tragicômico de seus empreendimentos, era uma vantagem inegável,
embora os outros a classificassem como uma particularidade
ridícula e contassem Konrad entre os tais bobos da corte gratuitos
do vilarejo. A relação de meu pai com ele era um constante vaivém
entre admiração e desdém. Cada novo projeto do cunhado lhe trazia
curiosidade e excitação intensas, que ele tentava em vão esconder
por meio de perguntas irônicas e alusões capciosas. E quando meu
tio estava certo do próprio sucesso e começava a posar de maioral,
ele entrava no clima e se juntava ao gênio numa fraternidade
especulativa até a chegada do inevitável fracasso — para o qual
meu tio dava de ombros, enquanto meu pai, irritado, o soterrava
com desdém e ofensas, sem lhe dirigir a palavra ou o olhar durante
meses.
Nosso vilarejo deve a Konrad a primeira visão de um barco a
vela, e o bote do meu pai teve de entrar na dança. O velame e a
cordoalha tinham sido produzidos pelo meu tio, de modo impecável,
seguindo moldes de um almanaque. E, no fim das contas, não foi
culpa de Konrad nossa pequena embarcação ser estreita demais
para um barco a vela. Os preparativos duraram semanas, meu pai
ficou agitadíssimo pela grande tensão, expectativa e ansiedade, e o
restante do vilarejo também não falava de outra coisa senão da
nova empreitada de Konrad Camenzind. O dia do batizado do barco
a vela, num final de verão cheio de vento, foi memorável para nós.
Meu pai, antevendo vagamente uma possível catástrofe, se
manteve à distância e, para meu desgosto, proibiu-me de
acompanhar o percurso. O filho do padeiro Füßli seguiu sozinho
com o velejador. Mas o vilarejo inteiro estava reunido na nossa praia
de cascalho e no jardinzinho, observando o espetáculo inédito. Um
ligeiro vento leste soprava na direção do lago. No começo, o filho do
padeiro teve de remar até que o barco pegasse a brisa, inflasse a
vela e disparasse, orgulhoso. Pasmos, o vimos desaparecer por trás
do promontório mais próximo e nos preparamos para festejar o
esperto tio como herói por ocasião de sua volta para casa e nos
envergonhar dos nossos pensamentos desdenhosos. Mas quando a
embarcação regressou, de noite, não tinha mais vela, os marujos
estavam mais mortos do que vivos, e o filho do padeiro tossiu e
disse: “Vocês se divertiram a valer, mas por pouco não haveria dois
banquetes fúnebres no domingo”. Meu pai teve de ajeitar dois
assentos novos no barco e desde então nenhuma vela se espelhou
novamente na água azul. Durante muito tempo, todas as vezes que
Konrad tinha pressa, as pessoas lhe gritavam: “Içar velas, Konrad!”.
Meu pai ficava irritadíssimo e, por muito tempo, sempre que topava
com o cunhado, desviava o olhar e sua cusparada fazia um amplo
arco no ar como sinal de inexprimível desdém. Isso durou até que
Konrad apareceu com um projeto de forno à prova de fogo, que
garantiu chacota infinita a seu inventor e custou quatro táleres a
meu pai. Ai de quem ousasse lembrá-lo dessa história dos quatro
táleres! Muito depois, quando a casa estava passando por
necessidades outra vez, minha mãe falou de passagem que seria
bom se o dinheiro, desperdiçado de maneira tão pecaminosa,
estivesse à mão. Meu pai ficou vermelho feito um pimentão até o
pescoço, mas se conteve e retrucou apenas: “Quisera eu ter
gastado tudo em bebida num único domingo”.
No fim de cada inverno, o föhn chegava com seu bramido grave,
que os alpinos escutam, trêmulos e horrorizados, e do qual sentem
tamanha falta quando estão longe de casa.
Homens e mulheres, montanhas, animais silvestres e domésticos
percebem, com horas de antecedência, a proximidade do föhn. Sua
chegada, precedida quase sempre de ventos contrários, gelados,
anuncia-se por um zumbido quente e grave. Num instante, o lago
azul-esverdeado se torna escuro como a noite e subitamente cria
espumas apressadas, brancas. Logo em seguida, ele que há
poucos minutos estava em silêncio, parado, estrondeia com uma
rebentação violenta feito o mar contra o cais. Ao mesmo tempo,
toda a paisagem se retrai, temerosa. É possível contar as rochas
dos picos, que costumavam estar a uma distância considerável, e
distinguir telhados, cumeeiras e janelas dos vilarejos que antes
eram apenas manchas marrons ao longe. Tudo se aproxima,
montanhas, gramados e casas, como um rebanho amedrontado. E
daí vem o zumbido furioso, o tremor no solo. Ondas do lago,
açoitadas pelo vento, erguem-se no ar como fumaça, e o tempo
todo é possível acompanhar, ainda mais à noite, a luta desesperada
da tempestade contra as montanhas. Pouco tempo depois corre
pelos vilarejos a notícia de lagos soterrados, casas danificadas,
botes destruídos, pais e irmãos perdidos.
Na infância, eu temia o föhn; chegava a detestá-lo. Com o
despertar da selvageria adolescente, porém, passei a gostar dele —
o rebelde, o eterno jovem, o guerreiro atrevido e arauto da
primavera. Era maravilhoso como ele começava sua batalha
selvagem, tão cheio de vida, exuberância e esperança, atacando,
sorrindo e gemendo, como ele passava uivando, célere, pelos
desfiladeiros, comia a neve das montanhas e curvava as árvores
jovens com suas mãos ásperas e as fazia gemer. Mais tarde, meu
amor só fez aumentar e eu saudava no föhn o Sul doce, riquíssimo,
do qual nascem correntes de prazer, calor e beleza que se quebram
nas montanhas e finalmente, exaustas, se esvaem na planície
gelada do Norte. Não há nada mais peculiar e precioso do que a
doce febre do föhn que acomete no seu tempo as pessoas das
montanhas e, principalmente, as mulheres, roubando-lhes o sono e
excitando todos os seus sentidos. Eis o Sul, que se joga
tempestuoso e ardente nos braços do Norte áspero, mais pobre,
anunciando aos vilarejos alpinos cobertos de neve que, nos lagos
púrpuras próximos à Itália e à França, prímulas, narcisos e galhos
de amendoeiras recomeçaram a florescer.
E quando o föhn perde sua força e as últimas avalanches sujas já
derreteram, acontece o melhor. Pois é hora de surgir, por todos os
lados das montanhas, os prados amarelados, salpicados de flores;
os picos nevados e as geleiras continuam no alto, puros e
tranquilos; o lago se torna azul e quente, refletindo o sol e as nuvens
em procissão.
Esse conjunto consegue preencher uma infância e, se
necessário, também uma vida. Pois tudo fala em voz alta e
ininterruptamente a língua de Deus, como os lábios do homem
nunca o fizeram. Quem a ela foi apresentado na infância vai ouvi-
la — doce, intensa e terrível — durante toda a vida, sem nunca
conseguir fugir ao seu encantamento. Quem está em casa nas
montanhas pode estudar filosofia ou historia naturalis durante
muitos anos, mas assim que perceber o föhn ou escutar uma
avalanche investindo contra a floresta, sentirá o coração palpitando
no peito e pensará em Deus e na morte.
A casinhola de meu pai era vizinha de um jardim minúsculo,
cercado. Cresciam lá alfaces amargas, tubérculos e repolhos, e a
dona da casa havia ajeitado ainda uma jardineira comoventemente
estreita e simplória para as flores, na qual dois pés de minirrosas,
um pé de dálias e um punhado de resedás esturricavam, mirrados e
desesperançados. Junto ao jardim havia um espaço ainda menor,
pedregoso, que chegava até o rio. Lá estavam dois tonéis
avariados, algumas tábuas e caibros e, mais embaixo, nosso bote
encontrava-se na água, amarrado. Naquela época, ele ainda era
impermeabilizado e remendado a cada dois anos. Os dias em que
isso se dava ficaram bem gravados na minha memória, tardes
quentes no começo do verão, ensolaradas. Sobre o jardinzinho
voejavam as borboletas ocres, o lago se parecia com um espelho,
azul e plácido, faiscando com discrição, os picos das montanhas
apareciam um pouco nublados, e o pequeno espaço de pedrinhas
rescendia fortemente a alcatrão e a tinta a óleo. Durante toda a
estação o bote continuava cheirando a piche. Mesmo anos mais
tarde, todas as vezes em que eu topava, em algum lugar perto do
mar, com a peculiar mistura de água com piche, materializava-se
imediatamente diante de mim nossa casinha perto do lago, e eu via
meu pai, em mangas de camisa, lidando com pincéis; via as
nuvenzinhas azuladas que saíam de seu cachimbo e subiam em
silêncio no ar do verão, e as pequenas borboletas amarelas,
luminosas, em seu voo vacilante. Nesses dias, meu pai ficava de
bom humor, o que não era nada usual, assobiava como um
passarinho — o que fazia à perfeição — e soltava até um único e
breve “iodelei”, mas somente a meia-voz. Minha mãe preparava algo
bom para o jantar, e agora penso que ela o fazia com a discreta
esperança de que Camenzind não fosse à taberna naquela noite.
Mas ele ia assim mesmo.
Não posso dizer que meus pais tivessem incentivado ou
atrapalhado de maneira significativa o desenvolvimento de meu
jovem temperamento. Minha mãe sempre estava cheia de trabalho e
certamente não havia nada a que meu pai se dedicasse menos no
mundo do que a questões de educação. Ele já se ocupava o
suficiente de cuidar da melhor maneira possível de seus poucos pés
de árvores frutíferas, da sua plantaçãozinha de batatas e de
providenciar o feno. Mais ou menos a cada duas semanas, antes de
sair, ele me pegava pela mão e desaparecia em silêncio no palheiro
que ficava sobre o estábulo. E lá acontecia então um curioso ato de
castigo e expiação: eu recebia um quinhão de traulitadas, sem que
meu pai ou eu soubéssemos exatamente por quê. Eram sacrifícios
silenciosos no altar da Nêmesis, ofertados sem pitos por parte de
meu pai e sem berreiro da minha parte, tributos a uma força
misteriosa. Anos mais tarde, sempre que ouvia falar do destino
“cego”, me recordava dessas misteriosas cenas, que me pareciam
uma representação muito plástica desse conceito. Sem o saber,
meu bom pai seguia a pedagogia simples que a própria vida
costuma nos ministrar, na medida em que, de tempos em tempos e
sem aviso prévio, faz desabar sobre nós uma tempestade, restando-
nos matutar sobre os erros cometidos que as forças superiores
estariam querendo punir. Infelizmente, nunca ou raras vezes tive
essa consciência — talvez eu assumisse esses castigos em
prestações com tranquilidade, sem a desejável autocrítica, ou com
arrogância; a cada noite dessas, eu me sentia satisfeito por ter
pagado meu quinhão e saber que haveria algumas semanas de
sossego pela frente. Eu me opunha de maneira muito mais ativa às
investidas do velho de me encaminhar ao trabalho. A natureza
incompreensível e pródiga tinha unido em mim dois dons
contraditórios: uma força física incomum e, infelizmente, um não
menor fastio pelo trabalho. Meu pai se esforçava ao máximo para
me transformar num filho útil e num ajudante, mas eu escapulia com
artimanhas de todas as tarefas que me tinham sido impostas. Na
escola, minha maior simpatia em relação aos heróis da Antiguidade
era dirigida a Hércules, visto que fora obrigado aos famosos
trabalhos pesados. Naquela época, não havia nada melhor do que
passar o tempo sobre as rochas e os campos ou junto à água.
Montanhas, lago, tempestade e sol eram meus amigos, me
contavam coisas e me educavam; durante muito tempo, sentia-me
mais próximo deles do que de quaisquer outras pessoas ou de seus
destinos. As nuvens, porém, me eram as mais queridas, eu as
preferia ante o lago reluzente, os tristes pinheiros ou os rochedos
luminosos.
Mostrem-me neste vasto mundo o homem que melhor conheça
as nuvens e que goste mais delas do que eu! Ou mostrem-me algo
mais bonito que as nuvens! Elas são festa e bálsamo aos olhos, são
bênção e dádiva divina, são ira e força destrutiva. Delicadas, macias
e pacíficas como as almas dos recém-nascidos, são belas, ricas e
generosas como anjos do bem, são pesadas, inevitáveis e
implacáveis como os mensageiros da morte. Pairam em camadas
finas, prateadas; flutuam sorrindo, brancas com bordas douradas;
ficam paradas, descansando, em cores amareladas, avermelhadas,
azuladas. Elas se esgueiram sinistras e lentas como assassinos,
correm impetuosas como cavaleiros a galope, pendem tristes e
sonhadoras em alturas descoradas como ermitãos melancólicos.
Tomam as formas de ilhas bem-aventuradas e de anjos benfazejos,
assemelham-se a mãos ameaçadoras, velas desfraldadas, grous
em migração. Planam entre as alturas de Deus e a pobre Terra
como símbolos de todas as aspirações humanas, a ambas
pertencendo — sonhos da Terra, nos quais ela aninha sua alma
maculada junto ao céu puro. São o símbolo eterno de toda
caminhada, procura, desejo e saudade. E da mesma maneira como
pendem — vacilantes, teimosas e nostálgicas — entre o céu e a
terra, assim as almas dos seres humanos pendem — vacilantes,
teimosas e nostálgicas — entre o tempo e a eternidade.
Ah, as nuvens, belas, vaporosas, incansáveis! Eu era uma
criança inocente e as amava, observava-as e não sabia que
acabaria por percorrer a vida feito uma nuvem — peregrino,
estrangeiro em todo lugar, flutuando entre o tempo e a eternidade.
Desde a infância elas foram amigas e irmãs queridas. Não há rua
que eu atravesse sem que nos cumprimentemos, um meneio de
cabeça, olho no olho por alguns instantes. Também não me esqueci
do que com elas aprendi outrora: suas formas, cores, traços, jogos,
danças e descansos, e suas curiosas histórias terrenas e celestiais.
Por exemplo, a história da princesa da neve. O cenário é a
montanha do meio, logo antes do início do inverno, quando o vento
sopra baixo e quente. A princesa da neve, acompanhada por um
pequeno séquito, surge de um lugar altíssimo à procura de um
espaço de descanso entre os amplos vales das montanhas ou sobre
um cimo largo. O invejoso bise, vento frio e seco, observa ávido a
ingênua se instalar, sobe lambendo dissimuladamente a montanha e
de súbito lança-se sobre ela, iracundo e ruidoso. Lança fiapos de
nuvens pretas contra a princesa, troça dela, dispara insultos, quer
afugentá-la. Durante um tempo a princesa fica inquieta, espera,
aguarda e algumas vezes retorna à sua altura, balançando a cabeça
com vagar e ironia. Outras vezes, de repente, junta ao seu redor as
amigas apavoradas, exibindo-lhes o semblante nobre e ofuscante e,
com mão enérgica, enxota o diabrete, que hesita, chora e foge. E
ela descansa calmamente, envolve o trono numa neblina pálida, e
quando a névoa se dissipa, os vales e os cumes estão cobertos com
neve recente, muito branca e brilhante.
Havia nessa história algo nobre, algo sobre a alma e o triunfo da
beleza, que me encantava e embalava meu pequenino coração
como um segredo feliz.
Logo veio também o tempo em que eu podia me aproximar das
nuvens, caminhar entre elas e observá-las juntas desde o alto. Eu
tinha dez anos quando escalei o primeiro pico, o Sennalpstock, aos
pés do qual está nosso vilarejo Nimikon. Foi lá que vi pela primeira
vez os horrores e as belezas das montanhas. Gargantas muito
fundas, cheias de gelo e água de degelo, geleiras verde-vítreo,
lastimáveis detritos rochosos glaciais, e sobre tudo isso — feito um
sino alto e redondo — estava o céu. Quem viveu durante dez anos
imprensado entre montanha e lago, envolto de maneira muito
próxima por picos altos, não se esquece do dia em que um céu
grande, muito extenso, abriu-se sobre ele e, à sua frente, surgiu um
horizonte infinito. Já na subida, espantei-me com o tamanho
surpreendente das escarpas e dos rochedos que tão bem conhecia
de baixo. E agora via, com ansiedade e júbilo, a amplidão
inenarrável derramando-se sobre mim. Eis que o mundo era assim
maravilhosamente grande! Todo o nosso vilarejo, perdido lá
embaixo, não passava de uma pequena mancha clara. Picos que,
vistos do vale, considerávamos tão próximos, estavam a várias
horas de distância uns dos outros.
Foi então que suspeitei ter tido apenas um vislumbre muito breve
do mundo e não um panorama alentado, e que lá fora podia haver
montanhas que se erguiam e desmoronavam, acontecimentos de
vulto que nunca seriam sabidos naquele nosso vale. Ao mesmo
tempo, fremia dentro de mim algo feito a agulha de uma bússola,
impulsionando-me inconscientemente rumo àquelas lonjuras. E
apenas quando vi os espaços infinitos que as nuvens percorrem é
que compreendi também sua beleza e melancolia.
Meus dois acompanhantes adultos elogiaram minha escalada
competente, descansaram um pouco no cume gelado e riram da
minha alegria escancarada. Mas, depois de passado meu primeiro
espanto, berrei de prazer e emoção na atmosfera límpida, feito um
touro solto. Essa foi minha primeira ode, desarticulada, à beleza.
Aguardei por um eco ensurdecedor, mas meu alarido se perdeu sem
deixar rastro nas alturas serenas como um pipilar débil. Fiquei muito
envergonhado e silenciei.
Esse dia quebrou um gelo qualquer em minha vida, pois, a partir
de então, as coisas passaram a acontecer. Primeiro, eu participava
com mais frequência das excursões às montanhas, também das
difíceis, e me entreguei com uma volúpia estranhamente
atormentada aos grandes segredos das alturas. Em seguida, fui
designado pastor de cabras. Numa das encostas para a qual
costumava levar meus animais, havia um canto protegido do vento,
recoberto por gencianas azul-cobalto e saxífragas vermelho-claras,
que era meu lugar preferido no mundo. Dali não se via o vilarejo e
do lago enxergava-se, por sobre as rochas, apenas uma faixa
estreita, lisa; por outro lado, as flores ardiam em cores frescas,
risonhas, o céu azul parecia uma tenda sobre os pontiagudos cumes
nevados, e ao lado do leve tilintar dos sinos das cabras, a não
distante queda-d’água soava ininterruptamente. Eu ficava deitado
sob o sol, seguindo com o olhar as nuvenzinhas brancas e
cantarolando baixo coisas típicas, até que as cabras se
apercebessem da minha indolência e passassem a tentar todo tipo
de brincadeiras e gracinhas proibidas. Logo nas primeiras semanas,
a minha folgança incorreu num amargo engano quando caí, junto
com uma cabra que estivera perdida, na fenda de uma rocha. A
cabra morreu e minha cabeça doía; além disso, fui inapelavelmente
surrado, fugi do meu velho e fui trazido de volta sob súplicas e
lamentos.
Essas poderiam ter sido tranquilamente minhas primeiras e
últimas aventuras. Daí este livrinho não seria escrito e seriam
poupadas algumas outras confusões e teimosias. Muito
provavelmente eu teria me casado com uma prima qualquer ou até
congelado na água da geleira, algures. Não teria sido de todo mau.
Porém a história é outra e não me compete comparar a fantasia com
a realidade.
Naquela época, meu pai tinha um trabalho modesto no convento
de Welsdorf. Mas caiu doente e mandou que eu avisasse lá em seu
serviço. Não foi o que fiz; ao contrário, pedi papel e caneta ao
vizinho e escrevi uma carta educada aos frades, entreguei-a à
mulher do mensageiro e, por conta própria, dirigi-me à montanha.
Certo dia da semana seguinte, ao voltar para casa, deparei-me
com um padre esperando por aquele que tinha escrito a bela carta.
Fiquei ressabiado, mas ele me elogiou e tentou convencer meu pai
a permitir que eu me tornasse seu aluno. O tio Konrad estava em
alta novamente e foi chamado a opinar. Claro que se entusiasmou
de pronto por eu estudar, mais tarde frequentar a faculdade e me
tornar intelectual e homem respeitável. Meu pai deixou-se
convencer e dessa maneira meu futuro passou a fazer parte dos
perigosos projetos do meu tio, assim como o forno à prova de
incêndio, o barco a vela e tantas outras invencionices.
De imediato fui posto a estudar a valer, primeiro latim, história
bíblica, botânica e geografia. Eu achava tudo muito prazeroso e não
imaginava que a coisa toda talvez pudesse custar minha terra e
belos anos da minha vida. Não era culpa exclusiva do latim. Meu pai
teria me tornado camponês mesmo se eu soubesse de cor, de trás
para a frente, todo o viri illustres. Mas o homem esperto tinha
identificado dentro de mim a preguiça insuperável como meu ponto
fraco e minha virtude cardeal. Eu escapava do trabalho sempre e
onde era possível, fugindo para as montanhas ou para o lago, ou
ficava às escondidas deitado de lado numa encosta — lendo,
sonhando e passando o tempo. Sabedor disso, ele por fim abriu
mão de mim.
Eis a oportunidade de discorrer brevemente sobre meus pais. Da
beleza passada da minha mãe, restaram-lhe apenas o porte firme,
ereto, e os graciosos olhos escuros. Ela era alta, muito forte,
dedicada e calma. Embora fosse tão inteligente quanto meu pai e
até superior a ele em força física, ela não mandava na casa,
deixando o comando para o marido. Ele era de estatura mediana,
tinha membros finos, quase delicados, e uma cabeça teimosa,
esperta, com um rosto claro e cheio de ruguinhas que não paravam
quietas. Além disso, uma pequena ruga vertical na testa. Ela
escurecia todas as vezes que ele erguia as sobrancelhas,
conferindo-lhe uma aparência de grande sofrimento; parecia então
que meu pai estava tentando se lembrar de algo muito importante,
mas sabia que era em vão. Dava para perceber certa melancolia
nele, mas ninguém prestava atenção nisso, pois os moradores de
nosso vilarejo estão sempre acometidos por um leve desalento
devido aos longos invernos, aos perigos, à sobrevivência cansativa
e ao apartamento dos acontecimentos do mundo.
De ambos herdei pedaços importantes de meu ser. Da minha
mãe, uma singela sabedoria prática, um tanto de fé em Deus e um
jeito calmo, pouco falante. De meu pai, entretanto, uma angústia
diante de decisões, a incapacidade de lidar com dinheiro e a arte de
beber muito e com absoluta consciência disso. O último dom,
porém, ainda não se mostrava nessa tenra idade. Exteriormente,
tenho os olhos e a boca de meu pai; de minha mãe, a compleição
física, o passo pesado, vigoroso, e a grande força muscular. De meu
pai e dos nossos recebi a sagacidade do camponês, mas também a
índole pesarosa e a tendência à melancolia sem motivo. Visto que
eu queria passar muito tempo longe da minha terra, entre estranhos,
alguma intrepidez e uma alegre impertinência me teriam sido
mais proveitosas.
Assim equipado e portando roupas novas, saí em viagem para a
vida. Os dotes paternos provaram sua eficácia, pois fui para o
mundo, e desde então caminho com meus próprios pés. Apesar
disso, faltou algo que nem a ciência nem a vida nunca me
trouxeram. Pois hoje, como outrora, consigo escalar uma montanha,
marchar durante dez horas, remar ou até matar um homem, se
preciso, mas para ser um bon vivant falta-me o que me faltava
antes. A lida precoce e restrita com a terra e suas plantas e animais
não me proporcionou o desenvolvimento de muitas habilidades
sociais, e ainda hoje meus sonhos são uma prova curiosa do quanto
me inclino, infelizmente, a uma vida puramente animal. Com muita
frequência sonho que estou deitado numa praia como se fosse um
bicho, em geral um leão-marinho, e tamanha é minha sensação de
bem-estar que, ao acordar, percebo a reconquista de minha
dignidade humana não com alegria ou orgulho, mas apenas
desgosto.
Como de costume, fui educado num ginásio com uma bolsa de
estudos e de alimentação e estava destinado a me tornar filólogo.
Ninguém sabe o porquê. Não há disciplina mais inútil e tediosa nem
à qual eu tenha menos pendor.
Os anos escolares passaram rápido. Entre contendas e aulas,
havia horas repletas de saudades, horas repletas de atrevidos
sonhos de futuro, horas repletas de reverente adoração pela ciência.
De vez em quando minha preguiça de nascença dava o ar de sua
graça, trazendo todo tipo de aborrecimentos e castigos, em seguida
dando lugar a um novo entusiasmo qualquer.
“Peter Camenzind”, falou meu professor de grego, “você é
cabeça-dura e muito esquisito, ainda vai se dar mal.” Olhei para o
gordo de óculos, escutei o que tinha a dizer e achei-o engraçado.
“Peter Camenzind”, falou o professor de matemática, “você é um
gênio da preguiça e lamento que não haja nota menor que zero.
Avalio sua produção atual como menos dois e meio.” Olhei para ele,
senti pena de sua vesguice e achei-o muito aborrecido.
“Peter Camenzind”, falou certa vez o professor de história, “você
não é bom aluno, mas algum dia será um bom historiador. Você é
preguiçoso, mas sabe diferenciar o que importa do que não
importa.”
Isso também não me afetou sobremaneira. Contudo, eu tinha
respeito pelos professores, pois pensava que estavam de posse da
ciência — e eu tinha uma veneração grave, imponente pela ciência.
E embora todos os professores concordassem a respeito de minha
preguiça, eu seguia em frente e ficava acima da média. Certamente
percebia que a escola e as matérias colegiais eram insuficientes;
mas aguardava pelo que viria depois. Supunha que por trás desses
preparativos e armações escolares havia o espírito puro, uma
ciência indubitável e segura da verdade. Lá eu saberia o significado
da obscura barafunda da história, da luta dos povos e da questão
derradeira de cada indivíduo.
Outro desejo era ainda mais forte e mais vivo dentro de mim. Eu
queria ter um amigo.
Conheci um garoto de cabelos castanhos, sério, dois anos mais
velho do que eu, chamado Kaspar Hauri. Seu jeito de andar e de
ficar parado era seguro e calmo, ele mantinha a cabeça de maneira
máscula e séria e não conversava muito com os colegas. Passei
meses olhando para ele com grande admiração, seguia-o na rua
esperando ardentemente ser notado. Eu sentia ciúmes de todos os
pequeno-burgueses que ele cumprimentava e de toda casa da qual
entrava ou saía. Mas eu estava dois anos atrás dele e ele
certamente se sentia superior aos próprios colegas. Nunca trocamos
nenhuma palavra. Em seu lugar, um garotinho enfermiço se
aproximou de mim sem que eu o tivesse chamado. Ele era mais
jovem do que eu, tímido e obtuso, mas tinha olhos e traços bonitos,
sofredores. Visto que era delicado e um tanto disforme, suportava
muitas gozações na sua classe e procurou em mim — que era forte
e respeitado — um protetor. Logo ficou tão doente que não pôde
mais frequentar a escola. Não senti falta dele e rapidamente o
esqueci.
Em minha classe havia um menino loiro agitado, arteiro, músico,
mímico e palhaço. Conquistei sua amizade não sem esforço e o
pequeno ágil colega sempre se mostrava um tantinho insolente
comigo. De todo modo, passei a ter um amigo. Procurei-o em seu
quartinho, li alguns livros com ele, fiz as lições de grego em seu
lugar e, em troca, recebi ajuda em álgebra. Às vezes também
saíamos a passear; formávamos uma dupla improvável. Ele era
sempre o falante, o engraçado, o divertido, o ladino, e eu ouvia, ria e
estava feliz por ter um amigo tão popular.
Certa tarde, porém, presenciei sem querer como o pequeno
charlatão apresentava a alguns colegas, na saída da escola, uma de
suas tiradas cômicas favoritas. Ele tinha acabado de imitar um
professor e, em seguida, disse: “Adivinhem quem é!”, e começou a
ler alguns versos de Homero em voz alta. Ao mesmo tempo, me
copiava com muita fidelidade, minha postura constrangida, meu jeito
amedrontado de ler, minha pronúncia carregada dos habitantes das
regiões montanhosas e também meu tique constante de quando
estou concentrado, piscar os olhos e fechar o esquerdo. O resultado
era muito divertido, feito com a maior comicidade e o maior
desprezo possíveis.
Quando ele fechou o livro e colheu o merecido aplauso,
aproximei-me dele por trás e me vinguei. Não achei palavras, mas
expressei de maneira patente toda a minha indignação, vergonha e
raiva numa única bofetada daquelas. A aula começou e o professor
notou os gemidos e a bochecha vermelha, inchada, do meu ex-
amigo, que ainda por cima era seu queridinho.
“Quem fez isso com você?”
“O Camenzind.”
“Camenzind, venha para a frente! É verdade?”
“Sim, senhor.”
“Por que você bateu nele?”
Nenhuma resposta.
“Você tinha um motivo?”
“Não.”
Portanto, fui energicamente castigado e deleitei-me, estoico, na
condição de mártir inocente. Mas como eu não era nem estoico nem
santo, mas um garoto em idade escolar, depois da punição mostrei
a língua, toda ela, para meu inimigo. O professor, espantado, foi
para cima de mim.
“Você não tem vergonha? O que significa isso?”
“Que ele é um canalha e desprezo o sujeito. Além disso, é
covarde.”
Terminou assim minha amizade com o farsante. Ele não teve
sucessores e precisei passar os anos da adolescência sem nenhum
amigo. Mas apesar de minha visão do mundo e das pessoas ter
mudado algumas vezes desde então, sempre me recordo daquela
bofetada com profunda satisfação. Tomara que o loiro também não
a tenha esquecido.
Aos dezessete anos, apaixonei-me pela filha de um advogado.
Ela era bonita e tenho orgulho de ter sempre me apaixonado por
mulheres muito bonitas. Conto o que sofri por causa dela e de
outras numa próxima ocasião. Ela se chamava Rösi Girtanner e
ainda hoje é merecedora do amor de tantos outros homens que não
eu.
Naquela época, minha energia juvenil acumulada queimava em
todos os membros. Envolvi-me em brigas terríveis com meus
colegas, tinha orgulho de ser o melhor lutador, lançador de bolas,
velocista e remador; ao mesmo tempo, estava sempre melancólico.
Mas isso não tinha quase nenhuma relação com a história de amor.
Tratava-se simplesmente da doce melancolia das vésperas da
primavera, que me tocava com mais intensidade do que aos outros,
fazendo com que ideias tristes, pensamentos de morte e ideias
pessimistas me trouxessem prazer. Claro que havia também o
colega que me dera para ler o Livro das canções, de Heine, numa
edição barata. Na realidade, não era mais uma leitura — eu tinha
mergulhado todo meu coração nos versos vazios, sofria, escrevia
junto com o autor e entrei numa exaltação lírica que provavelmente
combinava comigo tanto quanto uma camisolinha com um leitão. Até
então, eu não fazia ideia das “belas-letras”. Depois, seguiram-se
Lenau, Schiller, em seguida Goethe e Shakespeare. De repente, o
fantasma pálido da literatura transformou-se numa grande divindade
para mim.
Um doce arrepio acompanhava a sensação de que esses livros
exalavam um ar aromático e fresco de uma nova vida, inédita na
terra, mas verdadeira e que agora queria desabrochar e vivenciar
seus destinos em meu coração arrebatado. No meu canto de leitura
no quartinho do sótão, onde se ouviam apenas as batidas das horas
do campanário próximo e o estalar seco das cegonhas aninhadas ali
ao lado, as personagens de Goethe e Shakespeare entravam e
saíam. O divino e o ridículo da humanidade se revelaram para mim:
o enigma de nosso coração dividido e indomável, a profunda
essência da história mundial e o poderoso milagre do espírito, que
ilumina nossos dias breves e que, pela força do conhecimento,
eleva nossa insignificante existência ao plano do necessário e do
eterno. Quando metia a cabeça pela estreita abertura da janela,
enxergava o sol brilhar sobre os telhados e as vielas estreitas,
escutava espantado os pequenos ruídos do trabalho e do cotidiano
soarem ali, distorcidos, e sentia a solidão e o mistério do meu canto
de sótão preenchido por grandes espíritos a me envolverem como
um conto de fadas absolutamente maravilhoso. E pouco a pouco,
quanto mais eu lia e quanto mais me tocava a visão dos telhados,
das vielas e do dia a dia — num crescendo de encanto e
estranhamento —, surgia em mim a sensação vacilante e
constrangedora de que eu talvez fosse um visionário e de que o
mundo aberto a minha frente estivesse à espera de que uma parte
de seus tesouros fosse descoberta por mim, para os livrar do véu do
acaso e do habitual, salvando-os do desaparecimento por meio da
força do lirismo, eternizando-os.
Envergonhado, comecei a escrever e gradualmente alguns
cadernos foram sendo preenchidos com versos, esboços e
pequenos contos. Eles se extraviaram e provavelmente não tinham
grande valor, mas me proporcionaram suficientes palpitações e
íntimo deleite. Críticas e autoavaliações seguiram-se apenas
lentamente a essas tentativas, e a necessária primeira grande
decepção se deu apenas no último ano da escola. Eu já havia
começado a selecionar meus primeiros poemas e a observar meus
escritos com desconfiança quando por acaso caíram em minhas
mãos alguns volumes de Gottfried Keller, que imediatamente li duas
ou três vezes seguidas. Ao perceber o quão distante meus sonhos
imaturos estavam da verdadeira arte, austera, verdadeira, queimei
meus poemas e novelas e, desencantado e triste, mirei o mundo
com um terrível desalento.
2

Por falar do amor, durante toda a vida eu me conservei um menino.


Para mim, o amor às mulheres sempre foi uma adoração
purificadora, uma chama forte escandecendo minhas aflições, mãos
que suplicam erguidas em direção ao céu azul. Por causa da minha
mãe e a partir de um sentimento próprio, impreciso, eu venerava
todas as mulheres como um gênero estranho, belo e enigmático,
que nos é superior pela congênita beleza e uniformidade do ser e
que devemos manter sagrado porque, à semelhança de estrelas e
picos azuis de alturas inauditas, parece estar mais próximo de Deus
do que nós. E como a vida rude adicionava seus vários percalços, o
amor às mulheres me trouxe momentos amargos e doces; embora
as mulheres tivessem permanecido no pedestal, a figura solene do
sacerdote suplicante transformou-se dentro de mim na figura
constrangedora e cômica do idiota digno de escárnio.
Eu encontrava Rösi Girtanner quase todos os dias às refeições.
Uma donzela de dezessete anos, de porte altivo e flexível. O rosto
fino, fresco e moreno expressava a beleza serena que sua mãe
ainda trazia à época e que fora também compartilhada por suas
avós e bisavós. Dessa casa antiga, elegante e abençoada, tinham
saído, geração após geração, uma extensa e elegante linhagem de
mulheres, todas serenas, todas frescas, nobres e de beleza
imaculada. O retrato de uma menina da família Fugger,2 assinado
por um mestre desconhecido do século xvi, é um dos quadros mais
incríveis que meus olhos já viram. As mulheres da família Girtanner
eram assim, e assim era também Rösi.
Naquela época, eu não sabia nada disso. Eu a via apenas
caminhando em sua calma e alegre dignidade e sentia a nobreza de
seu ser sem afetação. E à noitinha eu ficava pensando nela até
conseguir imaginá-la presente e com clareza, quando um arrepio
doce e furtivo tomava minha alma de garoto. Logo, porém, esses
momentos de prazer se turvaram, resultando em dores amargas. De
súbito, percebi como ela me era estranha, pois não me conhecia
nem perguntava por mim, e que minha bela imagem onírica era fruto
de um assalto à sua natureza abençoada. E nos momentos em que
sentia isso de maneira mais aguda e dilacerante, sua imagem
aparecia diante de meus olhos tão verossímil, tão viva, que parecia
respirar, e uma onda escura e quente inundava meu coração e até
minhas veias mais profundas pareciam pulsar de modo
estranhamente dolorido.
Durante o dia, por vezes essa onda voltava em meio a uma aula
ou a uma briga acalorada. Daí eu fechava os olhos, baixava as
mãos e me sentia cair num abismo morno, até que o chamado do
professor ou o tapa de um colega me despertasse. Eu me
esquivava, corria para longe e, num devaneio maravilhoso,
admirava o mundo. Aí eu via, subitamente, como tudo era belo e
colorido, como a luz e a respiração fluíam por todas as coisas, como
o rio era de um verde muito claro, os telhados vermelhos e as
montanhas azuis. Essa beleza ao meu redor não vinha me distrair;
ao contrário, macambúzio, eu fruía dela em silêncio. Quanto mais
belo o conjunto, mais estranho eu o sentia, visto que dele não era
integrante, mas seu observador externo. Dessa maneira, meus
pensamentos sombrios refaziam o caminho de volta a Rösi: se eu
morresse naquela hora exata, ela não saberia, não perguntaria a
respeito, não se incomodaria!
Apesar disso, meu desejo era o de não ser notado por ela.
Gostaria de ter feito algo muito diferente para Rösi — ou lhe
presenteado com algo muito diferente —, permanecendo incógnito.
E realmente fiz muitas coisas por ela. Durante um breve período
de férias, fui mandado para casa. Lá eu me incumbia, diariamente,
de todos os tipos de ações que exigiam força física, no meu
entender, tudo em homenagem a Rösi. Escalei, a partir da encosta
íngreme, um pico difícil. No lago, realizei travessias desmedidas na
nossa embarcação, grandes distâncias em pouco tempo. Depois de
um percurso desses, quando voltava exausto e faminto, resolvia
ficar até a noite sem comer nem beber. Tudo para Rösi Girtanner.
Eu carregava o seu nome e louvores a desfiladeiros longínquos e a
abismos até então inexplorados.
Ao mesmo tempo, minha juventude aprisionada na escola
expiava seu desejo. Os ombros se alargavam vigorosamente, rosto
e pescoço tornavam-se bronzeados, e músculos cresciam e
inchavam para todos os lados.
No penúltimo dia de férias levei ao meu amor um buquê de flores
colhido com sacrifício. Embora eu soubesse que havia edelweiss
nas estreitas faixas de terra de várias encostas crispadas, essa flor
prateada inodora e incolor, débil, sempre me pareceu carecer de
alma e ser pouco bonita. Por outro lado, eu conhecia alguns
arbustos esparsos de rosas alpinas de florada tardia, perdidos nos
sulcos de uma desafiadora parede rochosa e tentadoramente
difíceis de ser alcançados. Ora, devia ser possível. E visto que na
juventude e no amor nada é impossível, cheguei ao objetivo com as
mãos machucadas e com cãibras nas coxas. Na situação
periclitante em que me encontrava não dava para expressar meu
júbilo, mas o coração trinava e espocava de prazer quando cortei
cuidadosamente as hastes delicadas e segurei o butim nas mãos.
Era preciso regressar, as flores na boca, escalando de ré, e
somente Deus sabe como eu, rapaz atrevido, consegui chegar são e
salvo ao pé da encosta. A florada das rosas alpinas tinha terminado
em toda a montanha, eu carregava as últimas hastes com seus
delicados botões.
No dia seguinte, carreguei as flores durante as cinco horas da
viagem. No início, o coração martelava vigorosamente enquanto me
dirigia à cidade da bela Rösi; quanto mais me distanciava das
montanhas, mais o amor atávico me puxava para trás. Recordo-me
tão bem daquela viagem de trem! O Sennalpstock havia muito já
não era visível e em seguida as montanhas irregulares mais à frente
foram desaparecendo sucessivamente. Cada uma se despedia do
meu coração com uma leve pontada. Chegou o momento em que
todas as montanhas da minha região tinham desaparecido e uma
paisagem larga, baixa, verde-luminosa apareceu. Isso não havia me
comovido na minha primeira viagem. Dessa vez, porém, fui tomado
por inquietação, angústia e luto, como se estivesse condenado a
avançar continuamente em terras cada vez mais planas, abdicando
de maneira irrevogável das montanhas e do direito de viver na
minha terra. Ao mesmo tempo, o rosto bonito e estreito de Rösi não
saía de minha mente — tão delicado, estranho, frio e indiferente em
relação a mim que a amargura e a dor me impediam de respirar
direito. Diante da janela, as cidades alegres, limpas, sucediam-se
com suas torres esguias e seus telhados brancos, pessoas
entravam e saíam do trem, conversavam, cumprimentavam-se,
riam, fumavam e faziam piadas — muitos habitantes das terras
baixas, gente desembaraçada, franca e educada —, e eu, garoto
tosco das terras altas, ficava sentado ali no meio, quieto, triste e
melancólico. Achei que as montanhas tinham ficado para trás para
sempre e que eu nunca seria como um deles, tão alegre, tão
desenvolto, tão confiante. Um tipo desses sempre faria troça de
mim, acabaria se casando com Rösi e estaria sempre um passo a
minha frente.
Cheguei à cidade com esses pensamentos. Depois das primeiras
saudações de boas-vindas, subi ao sótão, abri minha mala e tirei de
dentro dela uma folha grande de papel. Não era dos mais finos, e
quando o usei para embrulhar as rosas alpinas e amarrei o maço
com um barbante trazido especialmente de casa, o resultado não foi
exatamente um mimo. Sisudo, carreguei-o até a rua onde morava o
advogado Girtanner e na primeira oportunidade passei pela porta do
prédio, olhei ao redor no corredor pouco iluminado e depositei meu
ramo desengonçado aos pés da larga escada senhorial.
Ninguém me viu, e eu nunca soube se Rösi acabou tomando
conhecimento da minha lembrança. Mas eu tinha escalado encostas
e arriscado minha vida a fim de levar um buquê de rosas até a
escada de seu apartamento e havia ali algo de doce, melancólico e,
ao mesmo tempo, alegre, poético, que me fazia bem e de que até
hoje me recordo. Apenas nas horas em que Deus me abandona
sinto que a aventura das rosas não passou de um ato quixotesco,
como todas as minhas histórias de amor seguintes.
Esse meu primeiro amor nunca teve um desfecho, mas foi
murchando, incerto e indefinido, nos meus anos de juventude e
caminhou ao lado de minhas paixões posteriores como uma espécie
de irmão mais velho. Ainda não consigo imaginar alguém mais
nobre, puro e belo do que aquela distinta jovem, bem-nascida e de
olhar sereno. E, alguns anos mais tarde, numa exposição histórica
em Munique, quando me deparei com um retrato anônimo,
docemente enigmático, da filha dos Fugger, foi como se toda a
minha juventude sonhadora, triste, estivesse representada diante de
mim, fitando-me, de maneira profunda e perdida, com olhos
inescrutáveis.
Enquanto isso, fui me transformando lenta e compassadamente
num rapazote em sentido pleno. A fotografia da época mostra um
jovem camponês anguloso, alto, de uniforme escolar de qualidade
ruim, com olhos um tanto baços e membros ainda em
desenvolvimento, desengonçados. Apenas a cabeça tinha algo de
amadurecido e definitivo. Com uma espécie de espanto, me vi
abandonando as manias de criança enquanto aguardava, com
sombria expectativa, o tempo de aluno de curso superior.
Eu deveria estudar em Zurique e, para o caso de um
desempenho extraordinário, meus mecenas haviam aventado a
possibilidade de uma viagem de estudos. Tudo isso me parecia
como um belo quadro clássico: um caramanchão austero e também
agradável com os bustos de Homero e Platão, eu sentado ali dentro,
curvado sobre papéis, e por todos os lados uma visão ampla e
luminosa da cidade, do lago, das montanhas e de belas paisagens
distantes. Meu temperamento tinha se tornado mais sóbrio, mas
também mais desembaraçado, e eu me alegrava pela felicidade
futura com a firme convicção de ser digno dela.
No último ano de escola, o estudo do italiano e o primeiro contato
com os antigos novelistas tinham me encantado, e reservei seu
conhecimento mais aprofundado como primeira atividade
extracurricular dos semestres em Zurique. Chegou então o dia em
que disse adeus a meus professores e ao zelador da casa onde
morava, arrumei e fechei minha bagagem e, movido por uma doce
nostalgia, dei uma volta de despedida ao redor da casa de Rösi.
O tempo das férias, logo em seguida, me proporcionou um
aperitivo amargo da vida, arrancando-me, de modo rápido e
doloroso, de meus belos sonhos. Primeiro, encontrei minha mãe
doente. Estava acamada, quase muda, e não fez muita festa pela
minha chegada. Apesar de não ser muito emotivo, fiquei chateado
por não ouvir minha alegria e meu orgulho juvenil ecoados. Em
seguida, meu pai me explicou que embora ele não se opusesse aos
meus estudos, não poderia financiá-los. Se a pequena bolsa não
fosse suficiente, eu teria de dar um jeito de fechar as contas. Na
minha idade, ele já vivia do próprio trabalho e assim por diante.
Dessa vez também não pude me dedicar muito às caminhadas, ao
remo e ao alpinismo, pois precisava ajudar em casa e no campo, e
nos meios dias livres eu não tinha disposição para nada, nem
mesmo para ler. Ficava indignado e exausto ao ver como o cotidiano
exigia, faminto, seus direitos, devorando tudo o que eu havia trazido
em excesso de energia e arrogância. Aliás, depois de ter
escancarado a situação financeira, meu pai se manteve ríspido e
sucinto comigo (como era seu estilo), mas de modo algum
antipático. Entretanto, não gostei disso. O fato de minha formação
escolar e meus livros resultarem num respeito silencioso de sua
parte, um tanto depreciativo, me incomodava e me fazia sentir pena.
E eu também pensava com frequência em Rösi e voltava a ficar com
a sensação desagradável e inequívoca de não ser capaz de me
tornar um homem seguro e autônomo no “mundo” devido às minhas
raízes camponesas. Passava dias pensando se não seria melhor
continuar por ali, na ladainha infinda e sombria da lastimável vida
caseira, esquecendo-me do meu latim e de minhas esperanças. Eu
perambulava, torturado e irritado, sem encontrar alento ou paz nem
mesmo junto ao leito da minha mãe doente. A imagem daquele
caramanchão de sonho com o busto de Homero me parecia
sarcástica e eu a destruía, despejando sobre ela toda a amargura e
a hostilidade de meu ser atormentado. As semanas se tornaram
insuportavelmente longas, como se minha juventude fosse se
dissolver nesse desesperançado tempo de frustração e de conflito.
Depois de passada a surpresa e a indignação de ver meus
sonhos felizes serem destruídos de maneira tão rápida e completa,
foi a vez de me espantar com a superação súbita e vigorosa da
agonia daquele presente. A vida havia me mostrado seu lado
cinzento da rotina do trabalho, mas depois apareceu diante de
minha mente confusa com suas profundezas eternas, presenteando
minha juventude com uma vivência despretensiosa e potente.
Logo cedo pela manhã de um dia quente de verão, fiquei com
sede ainda na cama e me levantei para ir à cozinha, onde sempre
encontrava uma vasilha de água fresca. Para tanto, tinha de passar
pelo dormitório de meus pais, e foi quando ouvi o gemido estranho
da minha mãe. Cheguei à sua cama, mas ela não me viu e não falou
comigo, continuando a estertorar de maneira angustiada, com as
pálpebras trêmulas e o rosto azulado. Não me assustei
sobremaneira, embora sentisse um pouco de medo. Mas então vi
suas mãos sobre o lençol, serenas como irmãs adormecidas.
Estranhamente exaustas e sem vontade, como não acontece com
nenhum vivente, as mãos me fizeram compreender que minha mãe
estava morrendo. Esqueci-me da sede e me ajoelhei ao lado da
cama, coloquei a mão sobre a testa da enferma e procurei seu olhar.
Quando ele me encontrou, era bom e não refletia seu tormento, mas
estava perto de fenecer. Não me lembrei de acordar meu pai, que
dormia ao lado com a respiração pesada. Fiquei ajoelhado por
quase duas horas e assisti à morte afligir minha mãe. Ela se
manteve em silêncio, séria e corajosa, como era de seu feitio,
dando-me um belo exemplo.
O pequeno cômodo estava quieto e foi sendo preenchido aos
poucos pela claridade da manhã que nascia; casa e vila dormiam e
eu podia acompanhar em pensamento o percurso da alma de um
moribundo por sobre a casa, a vila, o lago e os picos nevados das
montanhas rumo à fresca liberdade de um límpido céu de
primavera. Senti pouca dor, pois admirava e respeitava a
oportunidade de poder assistir à resolução de um grande enigma,
com o círculo de uma vida se fechando com um leve tremor. A
coragem silenciosa da moribunda foi tão sublime que sua glória
discreta lançou um raio límpido, refrescante, também sobre minha
alma. Não reclamei de meu pai estar dormindo ali ao lado, de padre
algum estar presente, de nenhum sacramento ou oração
acompanhar a alma que voltava à casa. Senti apenas o bafejo
aterrorizante da eternidade soprar pelo quarto na penumbra e se
misturar comigo.
No último instante, os olhos já estavam fechados, beijei pela
primeira vez na minha vida a boca murcha e fria de minha mãe. Em
seguida, o contato estranho, gelado, me arrepiou; sentei-me na
beirada da cama e senti como uma grande lágrima — e depois outra
e mais outra — escorria, lenta e hesitante, pela minha bochecha,
meu queixo e minhas mãos.
Logo em seguida, meu pai despertou, viu que eu estava sentado
ali e perguntou, sonolento, o que estava acontecendo. Eu queria
responder, mas não conseguia dizer nada. Saí do cômodo, fui para
meu quarto como em sonho e comecei a me vestir devagar e de
maneira automática. Pouco tempo depois o velho apareceu.
“A mãe está morta”, ele disse. “Você sabia?”
Assenti com a cabeça.
“Por que você me deixou dormindo? E nenhum padre esteve
presente! Você devia…” Ele soltou um xingamento pesado.
Nessa hora, minha cabeça doeu como se uma veia tivesse
saltado. Pulei sobre ele e agarrei-o firmemente com as duas
mãos — na força, ele era um menino em relação a mim — e o
encarei. Eu não conseguia falar nada, e ele se manteve quieto e
acabrunhado. E quando nós dois voltamos para junto da minha
mãe, ele também foi assolado pela virulência da morte e seu rosto
se tornou estranho e solene. Depois ele se curvou sobre a morta e
começou a gemer, baixinho e feito criança, quase um passarinho,
num tom fraco e agudo. Afastei-me e fui levar a notícia aos vizinhos.
Eles me escutaram, não fizeram perguntas, me deram a mão e
ofereceram ajuda ao nosso lar órfão. Um deles se pôs a caminho do
convento a fim de buscar um padre, e quando voltei para casa uma
vizinha já estava no nosso estábulo, cuidando da vaca.
O sacerdote veio, assim como quase todas as mulheres do
vilarejo. Tudo transcorreu de maneira pontual e precisa, até o caixão
foi providenciado sem que nos ocupássemos dele, e, pela primeira
vez, notei com clareza como é bom estar entre os seus nas horas
difíceis e fazer parte de uma comunidade pequena, segura. No dia
seguinte, eu talvez devesse ter refletido mais profundamente sobre
isso.
Pois quando o caixão foi abençoado e baixado, e o curioso
bando de chapéus cilíndricos, fora de moda e esgarçados, também
o de meu pai, foi guardado cada um em sua caixa e no seu armário,
meu pobre pai foi tomado por uma fraqueza. Assolado pela
autocomiseração e com uma oratória estranha, em grande parte de
caráter bíblico, ele me apresentou sua desgraça: visto que a mulher
estava enterrada, ele perderia também o filho, vendo-o viajar para
longe. Ouvi assustado o discurso incessante e estive prestes a lhe
prometer que ficaria em casa.
Nesse instante — eu já havia começado a responder —,
aconteceu algo estranho comigo. Subitamente, num único segundo,
tudo o que eu havia pensado, desejado e ansiado ardentemente
desde a infância materializou-se numa única visão. Vi trabalhos
grandes e belos aguardando por mim, livros a serem lidos e a serem
escritos. Escutei o föhn soprar e enxerguei lagos e margens
plácidas em cores meridionais. Vi pessoas desfilarem à minha
frente, expressões inteligentes e educadas, mulheres belas e
elegantes, vi estradas e passos que atravessavam os Alpes e trens
que cortavam países, tudo ao mesmo tempo, mas também tudo
separado e muito nítido, e por trás dessas imagens o espaço
ilimitado de um horizonte claro, entrecortado por nuvens em
movimento. Aprender, criar, observar, caminhar — a pletora da vida
apareceu num espocar fugidio e, assim como quando eu era
menino, algo dentro de mim me lançava de maneira desconhecida e
poderosa à vastidão do mundo.
Fiquei em silêncio e deixei meu pai falar, apenas balancei a
cabeça e esperei que se acalmasse. Isso aconteceu apenas à
noitinha. Então, expliquei-lhe minha firme decisão de estudar e
procurar meu futuro lar no reino do espírito, mas sem esperar
nenhum tipo de apoio de sua parte. Ele não continuou a insistir e
apenas me olhou magoado, balançando a cabeça. Pois também
havia compreendido que a partir daquele momento eu trilharia meu
próprio caminho e rapidamente me tornaria estranho à sua vida.
Hoje, durante a escrita, ao me lembrar desse dia, revi meu pai
exatamente como naquela noite, na cadeira junto à janela. Sua
cabeça pequena de camponês, inteligente, está imóvel sobre o
pescoço fino, o cabelo curto começa a ficar grisalho, e nos traços
duros, rígidos, a tenaz masculinidade enfrenta o sofrimento da
velhice que se aproxima.
Ainda resta contar um pequeno episódio, digno de nota, que diz
respeito a ele e a minha estadia debaixo de seu teto. Certa noite,
nas últimas semanas antes de minha partida, meu pai colocou seu
gorro e tocou a maçaneta da porta. “Aonde você vai?”, perguntei.
“Não te interessa”, ele respondeu. “Você poderia me dizer, caso não
seja algo ilegal”, falei. Ele riu e disse: “Venha junto, afinal você não
conta mais entre os pequenos”. Daí o acompanhei. À taberna.
Alguns camponeses estavam sentados diante de um caneco de
cerveja, dois cocheiros estranhos bebiam absinto, e numa mesa
cheia rapazes jogavam cartas com grande algazarra.
Eu estava acostumado a vez ou outra tomar um copo de vinho,
mas era a primeira vez que eu entrava numa taberna sem uma
necessidade premente. Eu sabia, de ouvir dizer, que meu pai era um
bebedor contumaz. Ele bebia muito e bebia bem, e por essa razão,
seus cuidados com o lar, sem que ele os tivesse seriamente
negligenciado, permaneciam sempre em estado de petição de
miséria. Espantou-me o quanto de atenção ele recebeu do dono do
estabelecimento e dos outros clientes. Ele mandou trazer um litro de
vinho do cantão do Vaud, pediu que me servissem e ficou me dando
aulas de como fazer isso direito. Era preciso começar com a garrafa
baixa, depois subi-la o máximo possível e, no final, descer a garrafa
de novo. Em seguida, começou a falar dos diversos vinhos que
conhecia e que costumava desfrutar em raras oportunidades, por
exemplo quando ia à cidade ou à terra dos romanos. Ele discorria
com respeitosa seriedade sobre o Veltliner tinto, do qual
diferenciava três tipos. Nesse momento, começou a falar com voz
mais baixa, persuasiva, de determinadas garrafas de vinho do Vaud.
Quase sussurrando e com a expressão de um contador de histórias,
por fim ele descreveu o vinho de Neuchâtel. A espuma de certas
safras deste último formava uma estrela no copo ao serem servidas.
E com o dedo indicador úmido ele desenhou a estrela sobre a mesa.
Mais tarde, mergulhou em especulações formidáveis sobre a
essência e o sabor do champanhe, do qual ele nunca havia provado
e ao qual imputava a capacidade de entortar dois homens com
apenas uma garrafa.
Em silêncio e pensativo, meu pai acendeu um cachimbo. E ao
perceber que eu não tinha nada para fumar, me deu um trocado
para cigarros. E então ficamos sentados frente a frente, soprando
fumaça um no rosto do outro e esvaziando em pequenos goles o
primeiro litro. Gostei especialmente do vinho do Vaud, amarelo e
picante. Pouco a pouco os camponeses das mesas ao lado se
metiam na conversa e finalmente eles se transferiram, pigarreando,
cuidadosos, para nossa mesa. Logo eu era o tema central, e ficou
evidente que minha fama de alpinista ainda persistia. Todo tipo de
audaciosa escalada e de queda incrível, envoltas numa névoa
mítica, foi relatado, discutido e defendido. Nesse meio-tempo,
tínhamos quase terminado o segundo litro e eu sentia os olhos
latejarem. Muito contrariamente à minha natureza, comecei a me
vangloriar em voz alta e contei também da subida atrevida na
parede superior do Sennalpstock, onde tinha buscado rosas alpinas
para Rösi Girtanner. Não acreditaram em mim, protestei, as pessoas
riam e fiquei bravo. Chamei para briga aqueles que não engoliram a
história e deixei claro que, se fosse preciso, acabaria socando todos
juntos. Foi então que um camponês idoso, todo curvado, foi ao
balcão e trouxe um grande jarro de barro e deitou-o sobre a mesa.
“Quero fazer uma proposta”, ele riu. “Se você é tão forte assim,
quebre o jarro com a mão. E te pagamos a quantidade de vinho que
cabe aí. Mas se não conseguir, a conta é sua.”
Meu pai concordou na hora. Então me levantei, embrulhei o
punho num lenço e soltei a mão. Os dois primeiros socos não
tiveram efeito. No terceiro, porém, o jarro se espatifou. “Pagando!”,
disse meu pai, exultante de alegria; o velho parecia concordar.
“Certo”, ele disse, “pago tanto vinho quanto cabe no jarro. Mas não
vai ser muita coisa.” Claro, os cacos mal serviam para envasar
algum vinho, e eu, além de estar com o braço doendo, ainda fui alvo
de zombaria. Até meu pai começou a rir de mim.
“Ora, então você venceu!”, exclamei, enchi um caco com o nosso
vinho e derramei-o sobre a cabeça do velho. Tínhamos voltado a ser
os vencedores, sendo aplaudidos pelos clientes.
Essas brincadeiras de mau gosto não prosseguiram. Meu pai me
carregou de volta para casa. Trôpegos, nervosos e mal-humorados,
entramos no quarto onde havia menos de três semanas estava o
caixão da minha mãe. Dormi feito uma pedra e na manhã seguinte
acordei totalmente acabado e moído. Meu pai fez troça, estava
animado e em forma, visivelmente feliz por sua superioridade. Em
silêncio, jurei nunca mais tomar um pileque e passei a ansiar pelo
dia de ir embora.
Chegou o dia e parti, mas não mantive o juramento. Desde
então, o vinho amarelo do Vaud, o Veltliner tinto, o vinho da estrela
de Neuchâtel e muitos outros se tornaram meus conhecidos e bons
amigos.
3

Tendo deixado para trás a atmosfera ordinária e opressiva da terra


natal, bati asas rumo ao prazer e à liberdade. Se de quando em vez
acabei me dando mal na vida, soube aproveitar rica e
generosamente o prazer, raro e encantador, da juventude. Feito um
jovem guerreiro que descansa nas bordas floridas da mata, vivia em
bem-aventurada inquietude entre batalhas e aventuras; e como um
visionário cheio de pressentimentos, estava diante de abismos
escuros, ouvindo o bramido de grandes correntezas e tempestades
e com a alma pronta a aceitar a ressonância das coisas e a
harmonia de tudo o que é vivo. Feliz, eu sorvia grandes goles dos
cálices cheios da juventude, sofri em silêncio dores açucaradas por
mulheres belas, timidamente adoradas, e aproveitei o máximo
possível da mais nobre felicidade juvenil, que é uma alegre e pura
amizade masculina.
Cheguei num terno novo de couro e com uma pequena mala
cheia de livros e outros pertences, disposto a conquistar um pedaço
do mundo e provar, o mais rápido possível à gente tosca de casa,
que eu era feito de outro material do que aquele do restante dos
Camenzind. Vivi três anos maravilhosos na mesma minúscula
mansarda de vista ampla, estudei, compus poemas, ansiando por
toda a beleza do mundo que eu sentia me envolver com calorosa
proximidade. Não era todo dia que havia uma refeição quente, mas
em todos os dias, todas as noites e todas as horas o coração
cantava, sorria e chorava, repleto de uma alegria muito intensa,
agarrando a vida dileta com intensidade e paixão.
Zurique foi a primeira grande cidade que eu, um joão-ninguém,
conheci; durante algumas semanas, meus olhos se mantiveram
constantemente arregalados. Não me coube admirar ou invejar com
sinceridade a vida urbana — afinal, eu era camponês; mas apreciei
a multiplicidade de caminhos, casas e pessoas. Observava as ruas
cheias de carros, os atracadouros, as praças, os jardins, as
construções opulentas e as igrejas; via hordas de pessoas
atarefadas dirigindo-se ao trabalho, via estudantes flanando, gente
sofisticada passeando de carro, dândis se pavoneando, forasteiros
circulando. As mulheres dos ricos, palacianas e elegantes ao seguir
a moda, me pareciam pavões em terreiro de galinhas: bonitas,
orgulhosas e um tantinho ridículas. Na verdade, eu não era tímido,
apenas desajeitado e teimoso, e não duvidava ser a pessoa certa
para compreender minuciosamente essa animada vida das cidades
e mais tarde encontrar o lugar nela que me estava garantido.
A juventude se apresentou a mim na figura de um moço bem-
apessoado que estudava na mesma cidade e que havia alugado
dois belos cômodos no primeiro andar de meu prédio. Todos os dias
eu o escutava tocar piano e pela primeira vez senti algo como a
magia da música, a mais feminina e doce das artes. Depois vi o
rapaz bonito sair do prédio, na mão esquerda um livro ou uma
partitura, na direta o cigarro, cuja fumaça rodopiava atrás de seu
corpo magro e elegante. Um amor tímido atraiu-me a ele, mas
permaneci à distância, temendo relacionar-me com alguém leve,
livre e rico; aproximá-lo a minha pobreza e a minha falta de estilo de
vida só iria me humilhar. Foi quando ele veio até mim. Num final de
tarde, bateram à minha porta e levei um pequeno susto, pois nunca
havia recebido visita. De maneira tão desenvolta e alegre como se
fôssemos velhos conhecidos, o belo estudante entrou, me deu a
mão, disse seu nome.
“Queria saber se você não se anima a tocar um pouco de música
comigo”, ele disse amistoso. Durante toda minha vida, porém, eu
nunca havia encostado num instrumento. Falei isso e acrescentei
que, à exceção de cantoria tirolesa, não era versado em arte
nenhuma, mas que seu piano já tinha chegado até mim de maneira
encantadora.
“Como a gente se engana”, ele exclamou, divertido. “Pela sua
aparência, eu poderia jurar que você era músico. Estranho! Mas
você domina o iodelei? Ah, por favor, cante um pouco para mim!
Adoro ouvir.”
Fiquei absolutamente aterrorizado e lhe expliquei que assim, de
chofre e dentro de casa, não poderia sair cantando. Isso tinha de
acontecer numa montanha ou pelo menos ao ar livre,
espontaneamente.
“Então vá cantar na montanha! Que tal amanhã? Por favor.
Podemos sair juntos de tardezinha. Zanzamos por aí, conversando
um pouco; lá em cima você canta e depois vamos jantar em algum
vilarejo. Você tem tempo?”
Ah, sim, tempo suficiente. Concordei apressado. Depois lhe pedi
que tocasse um pouco para mim e desci com ele até seu belo e
espaçoso apartamento. Alguns quadros com molduras modernas, o
piano, uma certa bagunça graciosa e um leve cheiro de cigarro
resultavam, naquele espaço, em um tipo de elegância livre e
acolhedora, uma atmosfera de conforto que me era absolutamente
inédita. Richard sentou-se ao piano e tocou alguns acordes.
“Você conhece isso, não é?”, ele perguntou; ao afastar a bela
cabeça do piano e me olhar exultante, sua aparência era magnífica.
“Não”, respondi, “não conheço nada.”
“É Wagner”, ele respondeu, “de Os mestres cantores”, e
continuou tocando. O som era leve e vigoroso, nostálgico e
animado, e me envolveu como um banho morno, excitante. Ao
mesmo tempo, eu contemplava com desejo secreto o pescoço fino e
as costas do músico, as mãos brancas de pianista, e era tomado
pelo mesmo sentimento de carinho, tímido e assombrado, com o
qual eu havia observado aquele aluno de cabelos castanhos, com a
vaga suposição de que essa pessoa bela e elegante talvez se
tornasse meu amigo de verdade, concretizando antigos desejos,
nunca esquecidos, de uma amizade dessas.
No dia seguinte, fui buscá-lo. Devagar e tagarelas, subimos uma
colina de altura mediana, observamos a cidade do alto, o lago e os
jardins e apreciamos a copiosa beleza da boca da noite.
“E agora você vai cantar!”, Richard exclamou. “Se ainda estiver
constrangido, fique de costas para mim. Mas, por favor, bem alto!”
Ele podia se dar por satisfeito. Soltei a voz num iodelei potente e
exultante em direção ao vasto crepúsculo rosado, usando de todos
os tons e variações. Quando terminei, ele quis dizer alguma coisa,
mas se conteve e, atento, apontou para as montanhas. A resposta
veio de uma altura longínqua e era suave, prolongada e ondulante,
a saudação de um pastor ou de um caminhante, que escutamos
felizes e em silêncio. Durante esse momento de observação e
atenção que passamos juntos, senti um delicioso arrepio por estar,
pela primeira vez, ao lado de um amigo, olhando a dois para a bela
vastidão do mundo e suas nuvens cor-de-rosa. O lago vespertino
começava seu delicado jogo de cores, e pouco antes do pôr do sol
enxerguei, por meio da névoa que se dissipava, alguns teimosos
picos alpinos, de recortes atrevidos.
“Lá fica minha terra”, eu disse. “A montanha recortada do meio é
a Fluh vermelha; à direita fica a Geißhorn; à esquerda e mais para
trás, a Sennalpstock arredondada. Eu tinha dez anos e três
semanas de idade quando alcancei pela primeira vez aquele pico
largo.”
Eu apertei os olhos a fim de vislumbrar outro dos picos mais ao
sul. Depois de um tempo, Richard disse algo que não entendi.
“O que você disse?”, perguntei.
“Disse que agora sei qual é sua arte.”
“Ou seja?”
“Você é poeta.”
Fiquei vermelho e irritado e, ao mesmo tempo, surpreso por ele
ter adivinhado.
“Não”, exclamei, “não sou poeta. Embora tenha composto alguns
versos na escola, há tempos parei.”
“Posso vê-los algum dia?”
“Foram queimados. Mas você não poderia vê-los mesmo se
ainda existissem.”
“Certamente seriam coisas muito modernas, usando bastante
Nietzsche?”
“O que é isso?”
“Nietzsche? Deus do céu, você não o conhece?”
“Não. De onde deveria conhecê-lo?”
Ele estava deliciado pelo fato de eu não conhecer Nietzsche.
Mas fiquei irritado e perguntei quantas geleiras ele já tinha escalado.
Quando ele disse que nenhuma, mostrei um espanto igualmente
desdenhoso, como ele acabara de fazer comigo. Daí ele colocou a
mão sobre o meu braço e disse, muito sério: “Você é sensível. Mas
não faz ideia da inveja que sua pessoa ilibada suscita, nem de sua
raridade. Veja, em um ou dois anos você vai conhecer Nietzsche e
todo o restante também e muito melhor do que eu, porque é mais
inteligente e minucioso. Mas gosto de você com seu jeito de agora.
Nietzsche e Wagner lhe são desconhecidos, mas você esteve
muitas vezes nas montanhas com neve e tem um rosto típico das
terras altas. Consigo perceber isso no olhar e na testa”.
Também isso de ele me observar assim de modo tão franco e
informal, expressando sua opinião sem mais, me espantou e me
pareceu muito estranho.
Mas fiquei ainda mais surpreso e feliz quando, oito dias mais
tarde, ele selou sua fraternidade comigo numa cervejaria ao ar livre
muito frequentada, levantando-se da mesa num pulo, tascando-me
um beijo e um abraço e dançando comigo ao redor da mesa feito
um maluco.
“O que as pessoas vão pensar!”, alertei, tímido.
“Elas vão pensar: esses dois estão transbordando felicidade ou
transbordando álcool. A maioria, porém, não vai pensar nada.”
Apesar de ser mais velho, mais inteligente, mais bem-educado e
em tudo mais experiente e refinado, Richard parecia muitas vezes
ser uma verdadeira criança quando comparado a mim. Na rua, ele
flertava de maneira festiva e zombeteira com meninas adolescentes,
interrompia inesperadamente as peças de piano mais sérias com
piadas infantis, e certa vez, quando resolvemos ir à igreja por mera
diversão, ele falou, todo pensativo e solene, no meio do sermão: “Ei,
você não acha que o padre se parece com um coelhinho velho?”. A
comparação era certeira, mas achei que ele podia ter me dito isso
depois — e o alertei a respeito.
“Mas se era verdade!”, ele resmungou. “Mais tarde eu
provavelmente teria me esquecido.”
O fato de suas piadas nem sempre serem espirituosas, muitas
vezes reduzidas à citação de algumas linhas de Wilhelm Busch,3
não me incomodava e tampouco aos outros, pois do que
gostávamos nele não eram os gracejos e a inteligência, mas a
alegria incontida de sua natureza solar, infantil, que se revelava a
cada instante e o envolvia numa atmosfera leve e animada. Ela
podia desabrochar num gesto, num riso abafado, num olhar gaiato,
pois nunca conseguia ficar oculta por muito tempo. Estou
convencido de que, às vezes, também ao dormir, ele sorria ou
gesticulava de maneira divertida.
Richard frequentemente me colocava na roda com outros jovens,
estudantes, músicos, pintores, literatos, todo tipo de estrangeiro,
pois a totalidade das pessoas interessantes, originais, amantes da
arte que circulavam pela cidade acabava por entrar em contato com
ele. Havia entre elas alguns espíritos sérios e combativos, filósofos,
estetas e socialistas, e de muitos pude aprender um bocado.
Conhecimentos das diversas áreas vinham, em fragmentos, ao meu
encontro; eu os completava lendo muita coisa em paralelo, e assim
fui ganhando, pouco a pouco, certa noção daquilo que atormentava
e encantava as mentes mais instigantes da época, além de um
panorama útil e estimulante dos intelectuais progressistas. Sentia-
me atraído por seus desejos, noções, trabalhos e ideais e também
os compreendia, sem que um forte impulso pessoal me
posicionasse a favor ou contra eles. Na maior parte dos casos, toda
a energia intelectual e a paixão estavam direcionadas às situações e
às organizações da sociedade, do Estado, das ciências, das artes,
dos métodos didáticos; entretanto, me pareciam minoria aqueles
que tinham necessidade de, sem um objetivo externo, investir em si
mesmos e esclarecer sua relação pessoal com o tempo e a
eternidade. Também em mim, esse impulso ainda não despertara
totalmente.
Não fiz outras amizades, visto que meu apego a Richard era
exclusivo e ciumento. Também não me aproximava das mulheres
com as quais ele se relacionava com frequência e de modo íntimo.
Eu levava a sério mesmo nossos menores combinados e ficava
magoado quando ele me fazia esperar. Certa vez, ele me pediu que
eu o buscasse a determinada hora para irmos remar. Não o
encontrei em casa e esperei três horas por sua chegada, em vão.
No dia seguinte, joguei-lhe na cara o descaso.
“Por que você simplesmente não foi remar sozinho?”, ele riu
admirado. “Me esqueci por completo da coisa; ora, não é uma
calamidade.”
“Estou acostumado a honrar pontualmente meus compromissos”,
respondi agitado. “Mas também estou acostumado a que você não
se importe em me deixar esperando por aí. Afinal, quando se tem
tantos amigos quanto você!”
Ele me olhou com uma surpresa desmedida.
“Ora, você leva qualquer coisinha tão a sério?”
“Minha amizade não é uma bagatela.”
“A frase acertou-o em cheio e ele prometeu pisar no freio…”,4
Richard recitou solene, tomou-me a cabeça entre as mãos, esfregou
a ponta do nariz na ponta do meu como é hábito entre os orientais e
fez carinhos até que eu, rindo irritado, soltei-me dele; a amizade,
porém, estava intacta novamente.
A minha mansarda abrigava volumes emprestados, muitos deles
valiosos, de filósofos modernos, poetas e críticos, revistas literárias
da Alemanha e da França, peças modernas de teatro, cadernos
culturais franceses e ensaios de estetas vienenses então em voga.
Ocupava-me com meus autores clássicos italianos e com estudos
históricos de maneira mais séria e dedicada do que com essas
leituras ligeiras. Meu desejo era deixar de lado a filologia o mais
rápido possível e estudar apenas história. Além de obras sobre
história geral e de metodologia histórica, eu ia às fontes e lia
monografias sobre a Baixa Idade Média na Itália e na França. Foi
assim que passei a conhecer melhor meu ser humano favorito —
Francisco de Assis, o santo mais abençoado e divino. E então meu
sonho de plenitude da vida e do espírito concretizava-se todos os
dias, aquecendo-me o coração com ambição, alegria e vaidade
juvenis. Na sala de aula, a ciência séria, um tanto árida e por vezes
um pouco monótona, me cansava. Em casa, eu voltava às histórias
reconfortantes e piedosas ou aterrorizantes da Idade Média ou aos
prazerosos velhos autores, cujo mundo belo e acolhedor me
envolvia como um cantinho de sonhos, fresco e sombreado, ou eu
sentia a onda selvagem dos ideais e das paixões modernas me
engolfar. No meio-tempo, eu ouvia música, divertia-me com Richard,
participava das reuniões com seus amigos, confraternizava com
franceses, alemães, russos, frequentava leituras de livros
incrivelmente modernos, visitava alguns ateliês de pintores ou
juntava-me a reuniões noturnas com uma porção de jovens mentes
excitadas e confusas, que me rodeavam como um carnaval
fantástico.
Certo domingo, Richard visitou comigo uma pequena exposição
de pinturas recentes. Meu amigo ficou parado diante de um quadro
de um pasto alpino com algumas cabras. Tinha sido pintado com
esmero e bom gosto, mas era um tanto fora de moda e, na verdade,
não dispunha de uma autêntica essência artística. Qualquer galeria
possui suficientes quadrinhos desses, de pouca importância. De
toda maneira, porém, fiquei contente pela representação bastante
fiel dos meus Alpes. Perguntei a Richard o que o atraía naquela
pintura.
“Isto aqui”, ele disse, apontando para o nome do pintor no canto.
Não consegui ler as letras marrom-avermelhadas. “O quadro”, disse
Richard, “não tem nada de especial. Há mais bonitos. Mas não há
pintora mais bonita do que essa. Ela se chama Erminia Aglietti e, se
você quiser, podemos visitá-la amanhã e lhe dizer que é uma
grande pintora.”
“Você a conhece?”
“Sim, senhor. Se os quadros dela fossem tão belos quanto ela
própria, então estaria rica há tempos e não pintaria mais. Ela não
trabalha com entusiasmo, mas apenas porque, casualmente, não
aprendeu outra coisa com a qual pudesse se sustentar.”
Richard tornou a esquecer o assunto, voltando a ele apenas
semanas mais tarde.
“Encontrei a Aglietti ontem. Queríamos tê-la visitado não faz
muito tempo, não é? Então, venha! Seu colarinho ainda está limpo?
É que ela repara.”
O colarinho estava limpo e fomos juntos até lá, eu com alguma
relutância, pois nunca gostei da relação livre e um tanto irreverente
de Richard e de seus colegas com as pintoras e as estudantes. Os
homens se comportavam de maneira desrespeitosa, algo entre
rudes e irônicos; as jovens, por sua vez, eram práticas, inteligentes
e perspicazes, e em nenhum lugar eu sentia o aroma arrebatador
em meio ao qual eu gostava de ver as mulheres e venerá-las.
Entrei no ateliê um pouco constrangido. Embora estivesse
familiarizado com o ambiente dos ateliês dos pintores, era a primeira
vez que visitava um lugar assim unicamente feminino. O aspecto era
bastante discreto e muito arrumado. Três ou quatro quadros prontos
já estavam emoldurados, um permanecia ainda em processo sobre
o cavalete. O resto das paredes estava coberto de esboços a lápis,
de aparência muito clara e delicada, e de uma estante de livros meio
vazia. A pintora recebeu nossa saudação com frieza. Ela baixou o
pincel e, de avental, apoiou-se no armário, parecendo não querer
perder muito tempo conosco.
Richard não mediu elogios em relação ao quadro exposto. Ela o
ridicularizou, não aceitando os cumprimentos.
“Mas, senhorita, eu poderia estar interessado em comprar o
quadro! Aliás, as vacas ali são tão realistas…”
“São cabras”, ela falou com tranquilidade.
“Cabras? Claro, cabras! O detalhamento me deixou espantado.
São cabras de verdade, caprinas. Pergunte ao meu amigo
Camenzind, que é filho das montanhas; ele vai me dar razão.”
Nessa hora, enquanto eu prestava atenção na conversa — entre
divertido e constrangido —, percebi o olhar da pintora se voltar para
mim, perscrutador. Ela me olhou longamente, sem nenhum
acanhamento.
“Você é lá do alto?”
“Sim, senhorita.”
“Dá para notar. Bem, o que acha das minhas cabras?”
“Oh, certamente são muito boas. Pelo menos não achei que
fossem vacas, ao contrário de Richard.”
“É muita gentileza sua. O senhor é músico?”
“Não, estudante.”
Ela não trocou mais nenhuma palavra comigo e me senti livre
para observá-la. Seu corpo estava coberto e deformado devido ao
longo avental, e o rosto não me pareceu bonito. As feições eram
angulosas e descarnadas, os olhos um tanto severos, o cabelo farto,
preto e macio; o que me incomodava e quase repugnava era a
tonalidade do rosto. Ela me lembrava um gorgonzola e eu não
ficaria surpreso em encontrar veios esverdeados ali. Nunca tinha
visto tamanha palidez e, sob a desfavorável luz matutina do ateliê,
ela parecia assustadoramente pétrea — não como o mármore, mas
como uma rocha muito castigada pela chuva, embaciada. Eu não
estava acostumado a julgar um rosto feminino, antes mantinha o
hábito juvenil de encontrar a doçura, o cor-de-rosa, o encanto.
A visita também mexeu com o humor de Richard. Exatamente por
esse motivo, fiquei ainda mais perplexo quando, depois de um
tempo, ele me comunicou que a Aglietti gostaria de fazer um
desenho meu. Tratava-se apenas de alguns esboços, ela não
precisava do rosto, mas meu corpo largo tinha algo de típico.
Antes disso se transformar em tema de conversa, aconteceu algo
fugaz que mudou toda a minha vida e determinou, durante anos, o
meu futuro. Certa manhã, ao me levantar, eu tinha me tornado
escritor.
Instigado por Richard, e somente como exercício, eu havia feito
algumas anotações, com a fidelidade possível, sobre figuras do
nosso círculo, pequenos eventos, conversas; também escrevi
alguns ensaios a respeito de temas literários e históricos.
Então, certa manhã, eu ainda estava na cama, Richard veio até
minha casa e colocou trinta e cinco francos sobre o cobertor. “É
seu”, ele disse em tom comercial. Por fim, depois de eu ter exaurido
todas as minhas suposições, ele puxou do bolso uma folha de jornal
e me mostrou, impressa ali, uma de minhas novelas curtas. Ele
havia copiado vários de meus originais, havia os levado até um
jornalista amigo e os vendido na surdina. Eu estava segurando nas
mãos o primeiro que foi publicado, mais os honorários
correspondentes.
Nunca me senti tão esquisito. Na verdade, estava bravo por
Richard fazer as vezes de Providência, mas o primeiro doce orgulho
de escritor, o bom dinheiro e a ideia de uma pequena fama literária
acabaram sendo mais fortes e, por fim, vencedores.
Num café, meu amigo me apresentou ao jornalista, que me pediu
para ficar com os outros trabalhos que Richard lhe mostrara e
propôs que eu lhe mandasse mais de tempos em tempos. Ele
estava interessado no tom particular dos meus escritos,
principalmente o dos históricos, pelos quais poderia pagar bem.
Apenas então senti o peso da coisa. Eu não só passaria a comer
diariamente e a pagar minhas pequenas dívidas como também
abandonaria — talvez em breve — o curso que frequentava de
maneira compulsória e viveria do meu trabalho, atuando na área do
meu interesse.
A princípio, recebi do jornalista uma pilha de livros recém-
lançados para serem resenhados. Mergulhei de cabeça na tarefa e
passei semanas ocupado; mas visto que os honorários seriam
pagos apenas ao final do trimestre e que eu já tinha começado a
gastá-los por conta, certo dia me vi à míngua e novamente forçado a
jejuar. Durante alguns dias fiquei em casa vivendo à base de pão e
café, depois a fome me levou a um restaurante. Levei três dos livros
resenhados para deixá-los lá como garantia do pagamento. Já os
tinha tentado oferecer, sem sucesso, a um sebo. A comida estava
maravilhosa, mas na hora do café comecei a ficar angustiado.
Timidamente avisei à criada que não tinha dinheiro, mas que queria
deixar os livros como uma espécie de penhor. Ela pegou um deles,
de poesia, o folheou curiosa e perguntou se poderia ler. Ela disse
que gostava muito de ler, mas não arranjava tempo. Senti que
estava salvo e propus os três volumes como pagamento pela
comida. Ela concordou e, dessa maneira, aos poucos os livros me
renderam dezessete francos. Eu pedia queijo e pão por um livrinho
de poesia; pelos romances, o mesmo mais vinho; narrativas curtas
valiam apenas uma xícara de café com pão. Pelo que me lembre,
via de regra eram coisas menores num estilo moderno, forçado, e a
bondosa moça deve ter tido uma impressão para lá de estranha da
moderna literatura alemã da época. Lembro-me, divertido, daquelas
manhãs que corria para terminar de ler um livro e rabiscava algumas
linhas a respeito, a fim de estar com tudo pronto à hora do almoço e
trocá-lo por algo de comer. Eu tentava esconder de Richard meu
aperto financeiro pois tinha vergonha, o que não fazia sentido, e
aceitava sua ajuda apenas a contragosto e sempre por períodos
muito curtos.
Eu não me considerava poeta. Minhas produções eventuais eram
destinadas aos folhetins, não eram textos líricos. Secretamente,
porém, nutria a esperança de que chegaria o instante da grande
poesia, de uma música maior e mais ousada sobre a nostalgia e a
vida.
O límpido espelho brilhante de minha alma era sombreado de
tempos em tempos por um tipo de melancolia, mas nunca se
avariava seriamente. Ela durava um dia ou uma noite, como uma
tristeza sonhadora, solitária, mas desaparecia novamente sem
deixar vestígios para retornar semanas ou meses depois. Aos
poucos comecei a tratá-la feito uma velha amiga e não me sentia
oprimido, mas apenas com um cansaço intranquilo de doçura toda
própria. Quando ela me assaltava, à noite, em vez de dormir eu
ficava horas junto à janela olhando para o lago negro, as silhuetas
das montanhas desenhadas no céu pálido e, acima delas, as belas
estrelas. Muitas vezes eu era acometido por uma sensação forte,
angustiada e doce, como se toda essa beleza potente me olhasse
com uma justa acusação. Como se as estrelas, as montanhas e os
lagos aguardassem por alguém que entendesse sua beleza e o
sofrimento de sua existência muda e os expressasse, como se eu
fosse esse alguém e como se essa fosse minha verdadeira
profissão — a de dar voz à natureza muda na poesia. Nunca pensei
em como isso seria possível, sentia apenas a noite bela e
impaciente aguardar por mim num desejo calado. E também nunca
escrevia nada nesse estado de espírito. Mas tinha um sentimento de
responsabilidade para com essas vozes escuras e costumava
empreender caminhadas solitárias durante as noites. Era como se
eu pudesse assim mostrar um pouco de amor à terra, que se
oferecia a mim numa súplica silenciosa; entretanto, eu logo ria
dessa ideia. As caminhadas se tornaram um elemento básico de
minha vida futura; desde então, passei grande parte dos anos como
andarilho, em excursões de semanas ou meses através de vários
países. Acostumei-me a seguir em frente com pouco dinheiro no
bolso e um pedaço de pão, solitário durante dias e dormindo muitas
vezes ao ar livre.
Por causa da escrita, eu havia me esquecido completamente da
pintora. Até que recebi um bilhete de sua parte: “Alguns amigos e
amigas estarão em casa para o chá na quinta. Venha também e
traga seu amigo”.
Fomos e nos deparamos com uma pequena comunidade de
artistas. Formavam, em sua quase totalidade, uma algaravia de
pessoas não famosas, esquecidas, sem sucesso, o que me parecia
algo comovente, embora todas parecessem estar muito contentes e
satisfeitas. Havia chá, pão com manteiga, presunto e salada. Visto
que não conhecia ninguém e que também não estava muito falante,
fui cuidar da minha fome e passei cerca de meia hora comendo em
silêncio, enquanto os outros bebericavam seus chás e batiam papo.
E quando os outros convidados resolveram pegar algo de comer,
ficou evidente que eu sozinho tinha acabado com quase todo o
presunto. Na minha imaginação, havia pelo menos mais uma
segunda bandeja daquelas, o que não se confirmou. Quando as
pessoas começaram a rir baixinho e me olhar com ironia, fiquei
bravo e mandei a italiana e seu presunto para o inferno. Levantei-
me e me desculpei rapidamente com ela, expliquei que da próxima
vez traria meu próprio jantar e fui pegar meu chapéu.
Então a Aglietti me tirou o chapéu da mão, olhou para mim de
maneira espantada e calma, pedindo seriamente que eu ficasse.
Seu rosto estava banhado pela luz de uma luminária, suavizada
pela cúpula. Foi então que, em meio à irritação, notei a estonteante
beleza madura dessa mulher. De repente, me senti muito mal-
educado e idiota e, feito um aluno obediente, voltei a me sentar a
um canto afastado. Fiquei por ali, folheando um álbum do lago de
Como. Os outros bebiam chá, andavam pelos cômodos; as risadas
e as conversas se entrecruzavam; e, em algum lugar ao fundo, era
possível ouvir violinos e um violoncelo sendo afinado. Uma cortina
foi afastada e quatro jovens apareceram sentados diante de
estantes improvisadas, prontos a tocar um quarteto de cordas.
Nesse instante, a pintora veio até mim, colocou uma xícara de chá
sobre a mesinha, fez um movimento simpático com a cabeça e
sentou-se ao meu lado. O quarteto começou e durou um bocado,
mas eu não escutei nada, pois fiquei admirando com olhos
arregalados a mulher magra, fina, bem-vestida, de cuja beleza eu
duvidara e sobre cuja comida eu avançara. Com alegria e ansiedade
lembrei-me de que ela queria me desenhar. Daí pensei em Rösi
Girtanner, na escalada da parede alpina com as rosas, na história
da princesa da neve — naquela hora, tudo isso me pareceu apenas
uma preparação para aquele momento. Quando a música terminou,
a pintora não foi embora (como eu temia), mas ficou sentada
calmamente e começou a conversar comigo. Ela me parabenizou
por um conto que havia lido no jornal. Gracejou sobre Richard, ao
redor de quem algumas garotas se espremiam e cujas risadas
despreocupadas se sobrepunham às vezes a todas as outras vozes.
Então ela pediu novamente para me desenhar. Nessa hora, tive uma
ideia. De repente, passei a conversar com ela em italiano, e com
isso não apenas recebi um olhar espantado e feliz de seus vivazes
olhos latinos, mas também tive o delicioso prazer de ouvi-la falar na
sua língua natal, a língua que correspondia à sua boca e aos seus
olhos, a lingua toscana sonora, elegante, veloz, com um leve e
encantador acento do Tessino. Eu não falava bem nem era fluente,
mas não me abalei. Ela me disse que voltasse outro dia para ser
desenhado por ela.
“A rivederla”, falei na despedida, curvando-me o máximo que
pude.
“A rivederci domani”, ela sorriu e acenou com a cabeça.
Ao sair de sua casa, caminhei sem parar até que a rua encontrou
uma colina e, subitamente, uma paisagem escura abriu-se diante de
mim, bela e poderosa. Um único barco com luz vermelha
atravessava o lago, lançando faixas tremeluzentes sobre a água
negra; em pontos isolados, uma pequena onda solitária formava-se
com sua moldura prateada e fina. Num jardim próximo, ouvia-se o
som de bandolim e risadas. O céu estava encoberto quase pela
metade e um forte vento quente soprava sobre as colinas.
A paixão agia comigo igual ao vento que acariciava, assediava e
curvava os galhos das árvores frutíferas e as copas escuras das
castanheiras, fazendo-as murmurar, sorrir e tremer. Ajoelhei-me no
topo da colina, deitei-me na terra, ergui-me e gemi, bati os pés no
chão, joguei o chapéu à minha frente, esfreguei o rosto na grama,
sacudi troncos de árvores, chorei, ri, solucei, praguejei, fiquei com
vergonha, estava feliz e angustiado pela morte. Depois de uma
hora, tudo dentro de mim tinha sido exaurido e sufocado num torpor
sombrio. Eu não pensava em nada, não decidia nada, não sentia
nada; sonâmbulo, desci a colina, flanei por meia cidade, descobri
numa ruela afastada um bar ainda aberto, entrei sem muito ânimo,
tomei dois litros de vinho do Vaud e voltei para casa ao amanhecer,
absolutamente bêbado.
Na tarde seguinte, a srta. Aglietti ficou muito assustada quando
fui visitá-la.
“O que aconteceu com você? Está doente? Sua aparência está
péssima.”
“Nada demais”, respondi. “Parece que estive muito embriagado
na noite passada, isso é tudo. Por favor, comece!”
Ela me pediu que eu me sentasse numa cadeira e permanecesse
imóvel. Foi o que fiz, logo caindo no sono; acabei por dormir a tarde
inteira no ateliê. Sonhei que nosso barco estava sendo pintado lá
em casa; o motivo deve ter sido o cheiro de terebintina daquele
ateliê de pintura. Eu estava deitado no cascalho ao lado da
embarcação, observando meu pai lidar com tinta e pincel; minha
mãe também estava presente, e quando lhe perguntei se ela não
tinha morrido, ela me respondeu baixinho: “Não, pois se eu não
estivesse aqui, no fim você se tornaria um tratante igual a seu pai”.
Ao acordar, caí da cadeira e percebi que tinha sido transportado
ao ateliê de Erminia Aglietti. Não a enxerguei de pronto, mas ouvi o
tilintar de xícaras e talheres no cômodo vizinho e concluí que
deveria ser a hora do jantar.
“Acordou?”, ela chamou.
“Sim. Dormi por muito tempo?”
“Quatro horas. Não se envergonha?”
“Ah, sem dúvida. Mas tive um sonho tão bonito.”
“Conte!”
“Sim, se você vier até aqui e me perdoar.”
Ela veio, mas não me perdoou até eu lhe contar o meu sonho.
Então comecei o relato e, com isso, voltei à infância esquecida;
quando me calei, já estava totalmente escuro e eu havia lhe
desfiado — e a mim mesmo — toda a história de minha meninice.
Ela me deu a mão, desamassou meu paletó, convidou-me a voltar
no dia seguinte para o desenho e senti que tinha compreendido e
perdoado minha falta de educação desse dia.
Nos dias seguintes, passei horas posando para ela. Quase não
conversávamos, eu ficava sentado ou em pé, quieto e como que
encantado, escutando o traçado macio do lápis a carvão; inspirava o
leve aroma de tinta a óleo e não sentia outra coisa senão a emoção
de estar próximo à mulher amada e saber que seu olhar me
procurava o tempo todo. A luz branca do ateliê batia nas paredes,
algumas moscas sonolentas voejavam junto aos vidros e no cômodo
ao lado uma chama da espiriteira crepitava, pois eu ganhava uma
xícara de café ao final de cada sessão.
De volta para casa, pensava com frequência em Erminia. Minha
paixão não era afetada nem diminuída pelo fato de eu não conseguir
admirar sua arte. Ela era tão bela, bondosa, serena e segura; por
que haveria de me importar com seus quadros? Para mim, seu
trabalho incansável continha algo de heroico. A mulher na luta pela
vida, uma heroína silenciosa, paciente e corajosa. Aliás, não existe
nada mais inútil do que se pensar em quem se ama. Tais
pensamentos são como algumas canções populares ou militares,
que contam milhares de coisas e nas quais o refrão reaparece a
cada vez, teimoso, mesmo onde não é cabido.
Pois assim também é a imagem da bela italiana que trago na
lembrança, não de maneira desfocada, mas sem as muitas
pequenas linhas e traços que costumamos distinguir melhor num
estranho do que em alguém que nos é próximo. Não sei mais como
ela usava o cabelo, como se vestia e coisas assim, nem se era alta
ou baixa. Quando penso nela, vejo uma mulher de cabelos
castanhos, a cabeça bem desenhada, dois olhos penetrantes, não
muito grandes, num rosto pálido e vivaz, com uma boca
maravilhosamente delineada, de lábios estreitos e de uma
madureza austera. Quando penso nela e em todo aquele tempo em
que estive enamorado, recordo-me sempre daquela noite na colina,
onde o vento cálido soprava sobre o lago e eu alternava choro,
júbilo e braveza. E de outra noite, de que conto agora.
Estava claro para mim que eu deveria me declarar à pintora e
tentar conquistá-la. Se ela tivesse se mantido distante, eu
tranquilamente teria continuado a venerá-la e a sofrer dores ocultas.
Mas estando sempre com o espinho no coração, não suportei vê-la
quase todos os dias, conversar com ela, dar-lhe a mão e entrar em
sua casa.
Artistas e seus amigos haviam organizado uma pequena festa de
verão. Era próxima ao lago, num jardim lindíssimo, numa tardinha
deliciosamente agradável do alto verão. Tomávamos vinho e água
gelada, escutávamos música e observávamos as lanternas de papel
vermelho que pendiam de longas guirlandas entre as árvores. As
pessoas conversaram, riram e, por fim, cantaram. Algum pintor
jovem, de barrete atrevido, apoiado de costas no parapeito e
dedilhando um violão de braço comprido, fez as vezes do romântico.
Os poucos artistas importantes não se encontravam presentes ou
tinham se sentado junto aos mais velhos, fora do burburinho. Das
mulheres, algumas jovens apareceram com seus leves vestidinhos
de verão, as outras andavam por ali com os desalinhados trajes de
trabalho. Uma estudante mais velha, feiosa, chamou minha atenção;
ela usava um chapéu de palha masculino sobre os cabelos curtos,
fumava charutos, bebia bastante vinho e falava alto e demasiado.
Richard, como de costume, estava entre as mocinhas. Apesar de
toda a excitação, eu me mantinha tranquilo, bebia pouco e esperava
por Erminia, que havia prometido que sairíamos a remo. Ela acabou
chegando, me deu algumas flores de presente e entrou comigo no
barquinho.
O lago estava liso feito óleo e incolor, pois entardecia.
Rapidamente conduzi a pequena embarcação para longe, no
silêncio, mantendo os olhos na mulher esguia à minha frente,
apoiada de maneira confortável e satisfeita no banco do remador. O
céu ainda estava azul e pouco a pouco surgiam estrelas opacas,
uma após a outra, e em alguns pontos das margens ouvia-se a
música e a alegria daqueles nos jardins. A água inerte aceitava os
remos com um leve gorgolejar, outros barcos deslizavam por ali, nos
pontos mais escuros quase invisíveis sobre a superfície plácida,
mas eu prestava pouca atenção neles, pois estava vidrado na
mulher e o coração temeroso guardava, como um pesado anel de
ferro, a declaração de amor que eu pretendia fazer. A beleza e a
poesia do crepúsculo, nós sentados no barco, as estrelas, o lago
morno e calmo — tudo isso angustiava, pois a mim parecia um
cenário de teatro, em cujo centro se desenrolaria uma cena
sentimental. Amedrontado e constrangido pelo profundo silêncio,
pois ambos nos mantínhamos calados, eu remava com vontade.
“Como o senhor é forte”, a pintora disse, pensativa.
“Gordo, quer dizer?”, perguntei.
“Não, estou falando dos músculos”, ela riu.
“Sim, sou forte.”
Esse não era um começo adequado. Triste e irritado, continuei
remando.
Depois de um tempo, pedi que ela me contasse um pouco sobre
sua vida.
“O que quer saber?”
“Tudo”, respondi. “De preferência, uma história de amor. Depois
eu conto uma minha, a única. Ela é muito breve e você vai se
divertir.”
“Ah, que coisa! Conte logo!”
“Não, primeiro a senhorita! Afinal, já sabe muito mais a meu
respeito do que o contrário. Quero saber se já esteve apaixonada de
verdade ou se, como temo, talvez seja inteligente e orgulhosa
demais para isso.”
Erminia refletiu durante um instante.
“Essa é outra de suas ideias românticas”, ela falou, “pedir que
uma mulher lhe conte histórias à noite, bem no meio do lago escuro.
Infelizmente, não consigo. Vocês, poetas, estão acostumados a
achar palavras bonitas para tudo e não acreditam que aqueles que
revelam menos de seus sentimentos também tenham coração. Mas
se enganou a meu respeito, pois não creio que seja possível alguém
amar de modo mais apaixonado e impetuoso do que eu. Amo um
homem que está compromissado com outra mulher e ele me ama
da mesma maneira; mas não sabemos se ficaremos juntos algum
dia. Trocamos cartas e às vezes também nos encontramos…”
“Posso lhe perguntar se esse amor a faz feliz, triste ou as duas
coisas?”
“Ah, o amor não existe para nos fazer felizes. Acho que ele existe
para nos mostrar como podemos ser fortes ao suportar o
sofrimento.”
Compreendi e não pude evitar um pequeno gemido.
Ela ouviu.
“Ah”, ela disse, “o senhor sabe do que estou falando? Mas ainda
é tão jovem! Quer se abrir comigo também? Mas só se realmente
quiser…”
“Outra vez, quem sabe, srta. Aglietti. Hoje não estou bem-
disposto e sinto muito se porventura tenha estragado sua
disposição. Vamos voltar?”
“Como quiser. Estamos muito longe?”
Não lhe respondi mais, apenas meti os remos dentro da água,
dei meia-volta e comecei a remar como se um vento se
aproximasse. A embarcação deslizava ligeira e, enquanto um
turbilhão de infelicidade e vergonha se agitava dentro de mim, senti
o suor escorrer sobre o rosto em grandes gotas; ao mesmo tempo,
estava com frio. Arrepiava-me pensar o quão próximo estive de
fazer o papel do suplicante que se ajoelha, do amante rechaçado de
maneira maternal e amistosa. Ao menos disso escapei, sendo
preciso apenas me haver com o restante das lamentações. Remei
feito um louco na direção de casa.
Chegando ao atracadouro, a bela senhorita ficou um tanto
espantada quando me despedi rapidamente e a deixei sozinha.
O lago estava tão liso, a música tão animada e as luminárias de
papel tão vermelhas quanto antes, mas então tudo me parecia de
grande idiotice e ridículo. Principalmente a música. Minha vontade
era socar o violonista de jaqueta de veludo que ainda tocava, todo
pimpão, seu instrumento preso a uma fita larga de seda. E ainda
haveria fogos de artifício. Quanta infantilidade!
Pedi a Richard alguns francos emprestados, empurrei o chapéu
para trás e comecei a caminhar, me afastando cada vez mais da
cidade, hora após hora, até sentir sono. Deitei-me num relvado, mas
acordei depois de uma hora molhado pelo sereno, enrijecido e
tremendo, e me dirigi à próxima vila. Era cedo pela manhã.
Forrageiros atravessavam a viela empoeirada, empregados
sonolentos espiavam pelas portas das cocheiras, as atividades de
verão dos camponeses se anunciavam por todos os lados. Você
deveria ter permanecido camponês, falei a mim mesmo,
caminhando envergonhado pela vila até que os primeiros raios de
sol me permitiram descansar novamente. Resolvi parar na entrada
de um pequeno bosque de faias e me deitei sobre o chão duro.
Dormi debaixo do sol quente até o fim da tarde. Quando acordei, a
cabeça impregnada pelo cheiro do relvado, e os braços e as pernas
gostosamente pesados como só acontece depois de muito
descanso sobre esta terra de Deus, a festa e o passeio de barco me
pareceram muito distantes, tristes e quase esquecidos, como um
romance lido há meses.
Fiquei três dias longe, deixei o sol queimar minha pele e pensei
se não deveria voltar para casa e ajudar meu pai a terminar a ceifa.
A dor ainda não tinha passado, claro. Depois de regressar à
cidade, de início eu fugia do olhar da pintora como se ela fosse a
peste, mas isso não durou muito. A tristeza me dava um nó na
garganta todas as vezes que ela me olhava ou falava comigo.
4

O que meu pai não logrou fazer, coube a essa decepção amorosa.
Ela me tornou bêbado.
Isso teve mais importância em relação à minha vida e ao meu
caráter do que qualquer outra coisa que eu tenha contado até o
momento. O forte e doce Deus era meu amigo fiel e o continua
sendo até hoje. Quem é tão poderoso quanto ele? Quem é tão belo,
fantástico, sonhador, alegre e melancólico? Ele é herói e mágico. É
sedutor e irmão de Eros. Nada lhe é impossível; ele preenche
pobres corações humanos com poemas belos e encantados.
Solitário e camponês, fui transformado em rei, poeta e sábio. Ele
lança novos destinos aos barcos que se esvaziaram no rio da vida e
retorna aqueles encalhados ao célere fluxo da grande existência.
Assim é o vinho, igual a todas as artes e dotes preciosos. Ele
quer ser amado, procurado, compreendido e conquistado com
esforço. Não são muitas as pessoas que chegam lá; portanto, ele as
aniquila aos milhares. Ele as envelhece e mata ou apaga a chama
do seu espírito. Mas convida suas preferidas a festas e lhes constrói
pontes coloridas a ilhas seguras. Quando estão cansadas, lhes
coloca travesseiros sob a cabeça e as acolhe quando sucumbem à
tristeza com um abraço mudo e bondoso como amigo e mãe
consoladora. Transforma a confusão da vida em grandes mitos e
dedilha a música da criação em poderosas harpas.
Em outras vezes, ele é a criança de cachos longos e sedosos,
ombros estreitos e membros delicados. Aninha-se em seu coração,
ergue o rostinho ao seu e o observa, espantado e sonhador, com
seus grandes olhos amorosos e em cujas profundezas as
recordações do Paraíso e a intacta inocência divina brilham e fluem,
cintilantes, como uma fonte que brotou na floresta.
E o doce Deus assemelha-se à corrente que percorre, profunda e
ruidosa, uma noite de primavera. E ao mar que embala o sol e a
tempestade em ondas cálidas.
Ao conversar com suas pessoas preferidas, estas são
surpreendidas pelo tormentoso mar dos segredos, da lembrança, da
poesia, dos pressentimentos, que as aterroriza e inunda. O mundo
como é conhecido se reduz e some, e numa alegria atemorizada a
alma se lança à imensidão sem fronteiras do desconhecido, onde
tudo é estranho e familiar e onde a língua é a da música, dos poetas
e do sonho.
Bem, tenho de contar.
Aconteceu de eu, esquecido de mim, conseguir passar horas
alegre, estudando, escrevendo e ouvindo a música de Richard.
Porém não havia nenhum dia livre de sofrimento. Às vezes ele me
assaltava apenas tarde da noite, na cama, me fazendo gemer,
trazendo agitação, permitindo que eu conciliasse o sono apenas
tardiamente, em lágrimas. Ou renascia quando eu topava com
Erminia Aglietti. Mas, em geral, o sofrimento me acometia ao findar
a tarde, quando começavam as noitinhas bonitas, cálidas e
lânguidas. Então eu ia até o lago, pegava um barco, remava até
sentir calor e cansaço, achando impossível voltar para casa. Era o
caso de ir para um bar ou uma taberna. Experimentava diversos
vinhos, bebia e matutava, e por vezes ficava meio doente no dia
seguinte. Nesse estado, por dezenas de vezes um tamanho
sentimento de tristeza atroz e de asco me fazia jurar não beber
nunca mais. Mas eu voltava a beber. Pouco a pouco passei a
diferenciar os vinhos e seus efeitos e os apreciava com um tipo de
consciência que ainda se mantinha suficientemente ingênua e
natural. Por fim, encontrei um porto seguro no tinto Veltliner. No
primeiro copo, seu gosto era seco e excitante, depois ele me
obnubilava os pensamentos até que passassem a ser devaneios
silenciosos, constantes, para então passar a encantar, criar,
escrever a própria poesia. Todas as paisagens que um dia me
agradaram pareciam então me envolver, imersas numa iluminação
agradável, e eu caminhava dentro delas, cantava, sonhava e sentia
correr em mim uma vida maior, mais quente. E terminava numa
tristeza absolutamente confortável, como se ouvisse um violino
tocando canções populares e soubesse ter passado ao largo de
uma grande felicidade, algures, a qual havia perdido.
Aconteceu de eu estar cada vez menos sozinho no bar, e mais
na companhia de todo tipo de gente. Assim que me via rodeado de
pessoas, o efeito do vinho em mim se modificava. Eu me tornava
falante, mas não excitado, estranhamente febril. Um lado meu até
então quase desconhecido florescia de repente, como se fosse mais
afim dos cardos e das urtigas do que das flores de jardim e
daquelas ornamentais. Pois a verborragia vinha acompanhada da
mente fria e arguta, tornando-me seguro, superior, crítico e
engraçado. Se houvesse pessoas cuja presença me incomodava,
logo as ridicularizava e perturbava ora com elegância e astúcia ora
com grosseria e tenacidade, por tanto tempo que acabavam indo
embora. Aliás, desde a infância nunca achei os seres humanos
especialmente amáveis ou necessários, e começava a observá-los
de maneira crítica e irônica. Adorava inventar e contar pequenas
histórias, em que as relações pessoais eram apresentadas
satiricamente como secas e de evidente objetividade, para então
ironizá-las com amargura. Nem eu próprio sabia de onde vinha esse
tom desdenhoso; ele surgia como uma pústula madura de dentro de
mim e dele não me livrei por anos.
Entrementes, se eu passasse a noite sentado sozinho, sonhava
com montanhas, estrelas e música triste.
Nessas semanas, fiz uma série de observações sobre a
sociedade, a cultura e a arte de nosso tempo, um livrinho perverso,
cujo berço foram minhas conversas na taberna. E meus esforçados
e alentados estudos históricos acresciam ao todo algum material
específico, conferindo às minhas sátiras uma espécie de base
sólida.
Por causa desse trabalho, tornei-me colaborador fixo de um
jornal de grande circulação, algo que quase garantia meu sustento.
Logo em seguida, as crônicas foram publicadas também como
livrinho independente e fizeram algum sucesso. Foi então que
abandonei definitivamente a filologia. Já cursava os semestres
finais, e os vínculos com revistas alemãs que começavam a ser
criados me tiravam da obscuridade e da pobreza de até então para
me erguer ao círculo dos consagrados. Ganhando meu pão,
renunciei à bolsa fastidiosa e desfraldei as velas rumo à desprezível
vida de um pequeno autor profissional. E apesar do sucesso e de
minha vaidade, e apesar das sátiras e de minhas decepções
amorosas, pairava sobre mim o brilho cálido da juventude na forma
de contentamento e melancolia. Apesar de toda ironia e da pequena
e inocente arrogância, eu sempre vislumbrava em sonhos meu
objetivo — uma felicidade, uma realização. Não sabia qual, apenas
pressentia que a vida deveria uma vez lançar a meus pés uma
felicidade especialmente risonha, uma fama, talvez um amor, uma
satisfação de meu desejo e uma elevação de minha pessoa. Eu
continuava como o pajem que sonha com as damas nobres e o
título de cavaleiro.
Acreditava estar no início de uma via ascendente. Não sabia que
tudo o que havia vivido até então eram apenas casualidades e que
eu carecia, assim como minha vida, de um tom básico, pessoal. Eu
não sabia que sofria de um anseio que não se limita nem se satisfaz
pelo amor ou pela fama.
E eis que desfrutava do meu discreto renome com todo o prazer
juvenil. Me fazia bem sentar em meio a pessoas inteligentes e
espirituosas, com um bom vinho, e quando eu começava a falar
notava seus rostos atentos e ávidos voltados para mim.
Por vezes eu percebia o quanto essas almas de nossos dias
ansiavam por redenção e os caminhos estranhos que esse anseio
as fazia trilhar. Acreditar em Deus era considerado burrice e quase
indecoroso, mas se acreditava em inúmeros ensinamentos e nomes,
em Schopenhauer, em Buda, em Zaratustra e muitos outros. Havia
poetas jovens, obscuros, que prestavam reverências solenes diante
de estátuas e pinturas de casas elegantes. Eles tinham vergonha de
se ajoelhar diante de Deus, mas não diante de Zeus de Otricoli.
Havia ascetas que se torturavam com a abstinência e cujo asseio
bradava aos céus. Seu Deus se chamava Tolstói ou Buda. Havia
artistas que eram estimulados a estados de espírito distintos por
meio de bem escolhidos e bem combinados papéis de parede,
músicas, comidas, vinhos, perfumes ou cigarros. Era de hábito falar
com uma naturalidade artificial de linhas musicais, arranjos
cromáticos e coisas semelhantes, e eles estavam o tempo todo à
procura do “toque pessoal”, que em geral era um pequeno e
inofensivo autoengano ou maluquice. No fundo, eu achava essa
comédia forçada divertida e ridícula, mas me arrepiava pelo tanto de
desejo verdadeiro e de autêntica força espiritual que ardia e se
apagava nisso.
De todos os fantásticos poetas, artistas e filósofos da moda que,
com espanto e satisfação, conheci, não sei de nenhum que tenha se
notabilizado. Entre eles, havia um alemão do norte da Alemanha
que regulava comigo em idade, uma figura simpática, delicada,
amável e sensível em tudo que se referia ao mundo artístico. Era
considerado um dos futuros grandes poetas, e algumas vezes
assisti a leituras de seus poemas que, na minha lembrança, ainda
carregam algo de incrivelmente arejado, de uma grande beleza
espiritual. Talvez fosse o único entre nós que poderia realmente se
transformar em poeta. Mais tarde, por acaso, descobri sua breve
história. Tendo se tornado arredio devido a um fracasso literário, o
supersensível retirou-se de toda e qualquer vida pública e caiu nas
mãos de um mecenas desgraçado, que, em vez de incentivá-lo e
fazê-lo voltar à razão, apressou seu fim definitivo. Ele mantinha
conversas insossas sobre estética com as senhoras nervosas
presentes nas mansões do ricaço, imaginava-se um herói
desvalorizado e, como resultado da condução desastrada, foi
sistematicamente perdendo a razão devido a muita música de
Chopin e êxtases pré-rafaelitas.
Só consigo me lembrar com arrepio e comiseração de tal bando
de poetas e belas almas vestidos e penteados de maneira
excêntrica, visto que percebi o perigo de sua companhia apenas
mais tarde. Minha herança camponesa de gente das montanhas me
impedia de participar dessa confusão.
A amizade, porém, trazia consigo mais nobreza e felicidade do
que a fama e o vinho, o amor e a sabedoria. Afinal, era a única coisa
que fazia frente contra o meu pessimismo congênito e que mantinha
o frescor e o brilho dos meus anos de juventude. Até hoje, não
conheço nada mais incrível no mundo do que uma amizade honesta
e verdadeira entre homens; por vezes, quando sinto saudades dos
meus anos de mocidade, então é apenas das amizades da época
dos estudos.
Desde que me apaixonei por Erminia, eu abandonei um pouco
Richard. No início, foi inconsciente; depois de algumas semanas,
porém, confessei-lhe meus remorsos. Ele me revelou que tinha,
infelizmente, antevisto o início e o desenrolar dessa infelicidade, e
novamente me juntei a ele de coração e com apreço. Naquela
época, tudo o que aprendi sobre as pequenas artes da vida,
animadas e livres, veio por seu intermédio. Richard era bonito e
vivaz, tanto de corpo quanto de alma, e para ele a vida não parecia
ter sombras. Inteligente e sagaz, ele certamente conhecia as
paixões e os desencantos da época, mas a eles era imune e não
saía machucado. Seu andar, sua fala e sua pessoa como um todo
eram elegantes, harmônicos e adoráveis. Ah, e suas risadas!
Richard não dava muita importância aos meus estudos sobre o
vinho. Às vezes me acompanhava, mas dois copos eram seu limite.
Ao observar meu consumo, muito maior que o seu, ingenuamente
se espantava. Mas quando notava que eu estava sofrendo, indefeso
frente ao desânimo, tocávamos música juntos, ele lia em voz alta ou
me levava a passear. Em nossas pequenas excursões, nos
comportávamos de maneira tão relaxada quanto dois garotinhos.
Certa vez, descansamos em um vale arborizado por volta de um
meio-dia quente, fizemos guerra de pinhas e cantamos versos de A
piedosa Helena no ritmo de melodias sentimentais. O riacho célere
e cristalino, sedutoramente fresco, rumorejou tanto nas nossas
orelhas que tiramos as roupas e entramos na água fria. Então veio a
ideia de encenar uma comédia. Ele se sentou numa rocha coberta
de musgo e era a Lorelei,5 e eu passava na sua frente como
marinheiro num pequeno barco. Seu papel de donzela tão pudica,
cheio de caretas, foi tão bom que eu, que deveria fazer o grande
sofredor, quase não consegui parar de rir. De repente ouvimos
vozes, um grupo de turistas apareceu na trilha e tivemos
rapidamente de esconder nossa nudez na margem inclinada e sem
vegetação. Quando a turma passou por nós, Richard emitiu todo
tipo de sons estranhos, guinchou, zuniu e grunhiu. As pessoas
pararam, olharam ao redor, caíram na água e por pouco não nos
descobriram. Foi então que meu amigo ergueu-se de seu
esconderijo, apenas seu tronco visível, olhou para o grupo indignado
e falou com voz grossa e gesticulação de padre: “Vão na paz!”. Logo
em seguida, tornou a desaparecer, beliscou meu braço e disse: “Foi
uma charada”.
“Como assim?”, perguntei.
“Pan assusta alguns pastores”, ele riu. “Mas infelizmente havia
algumas mulheres entre eles.”
Ele não se interessava muito pelos meus estudos de história.
Mas logo dividiu comigo minha quase apaixonada predileção por
Francisco de Assis, embora fizesse algumas piadas sobre ele que
me magoavam. Enxergávamos o abençoado sofredor caminhando
pela paisagem da Úmbria, satisfeito e feliz como uma amorosa
criança crescida, tomado de júbilo por seu Deus e cheio de amor
singelo por todos os seres humanos. Líamos juntos seu imortal
Cântico ao Sol e o sabíamos quase de cor. Num barco a vapor no
lago, certa vez, ao voltarmos de um passeio com o vento do
entardecer movimentando a água dourada, ele perguntou em voz
baixa: “Ei, o que o santo diz para isso?”. E eu citei:
“Laudato si, misignore, per frate vento e per aere e nubilo e
sereno et onne tempo!”6
Quando brigávamos e nos dizíamos coisas infames, ele — feito
um garoto de escola — me chamava por tantos apelidos
engraçados que eu logo caía na risada e a desavença murchava.
Meu caro amigo era relativamente sério apenas quando escutava ou
tocava suas músicas prediletas. Mesmo então ele podia parar tudo a
fim de fazer alguma graça. Apesar disso, seu amor à arte era de
uma entrega pura, afetuosa, e seu sentimento pelo autêntico e pelo
significativo me parecia certeiro.
Ele dominava maravilhosamente a delicada e terna arte do
consolo, do apoio ou do estímulo quando um de seus amigos se
encontrava em apuros. Quando eu ficava mal-humorado, ele sabia
contar inúmeras pequenas anedotas encantadoramente grotescas;
o tom de sua voz tinha algo de calmante e estimulador a que eu
raramente conseguia resistir.
Eu lhe impunha um pouco de respeito, visto que era mais sério
do que ele; entretanto, minha força física o impressionava ainda
mais. Richard a valorizava diante de outros e tinha orgulho do amigo
que poderia estrangulá-lo com uma só mão. Ele dava muito valor às
capacidades e habilidades físicas, me ensinou a jogar tênis, remava
e nadava comigo, me levava para andar a cavalo e não descansou
até eu me sair tão bem no bilhar quanto ele. Era seu jogo predileto,
e ele não apenas o praticava com arte e maestria, mas sempre
estava muito animado, divertido e alegre durante as partidas.
Frequentemente batizava as três bolas com os nomes de pessoas
conhecidas e a cada tacada construía — a partir da posição,
proximidade e distância das bolas — histórias inteiras cheias de
piadas, insinuações e comparações caricatas. Entretanto, jogava
com tranquilidade, leveza e absoluta elegância, e era um prazer
observá-lo.
Ele valorizava minha atividade literária tanto quanto eu mesmo.
Certa vez, me disse: “Veja, sempre achei você um poeta e ainda
acho, não por causa dos seus folhetins, mas porque sinto que há
algo bonito e profundo dentro de você e que mais dia menos dia virá
à luz. E daí será poesia de verdade”. Enquanto isso, os semestres
passavam como pequenas moedas que escorregam pelos nossos
dedos, e de repente chegou a hora em que Richard teve de pensar
em voltar para casa. Aproveitamos as semanas que corriam com
uma leveza um tanto artificial e, ao final, chegamos à conclusão de
que um evento brilhante e festivo deveria encerrar de maneira
alegre e auspiciosa esses belos anos antes da despedida amarga.
Sugeri uma excursão de férias pelos Alpes de Berna, mas ainda não
era primavera e estávamos muito adiantados para as montanhas.
Enquanto eu quebrava a cabeça para achar outras ideias, Richard
escreveu ao pai e me preparou secretamente uma grande e alegre
surpresa. Um dia ele chegou com um cheque vultoso e me convidou
a acompanhá-lo, na condição de guia, ao norte da Itália.
Meu coração batia temeroso e exultante. Um desejo ardente,
cultivado desde os tempos de garoto e milhares de vezes sonhado
iria se concretizar. Febrilmente fui atrás de meus pequenos
preparativos, ensinei algumas palavras de italiano ao meu amigo,
achando — até o último dia — que tudo poderia malograr.
Nossa bagagem tinha sido despachada antecipadamente,
estávamos sentados no vagão, campos e colinas verdes passavam
rápidos, chegamos aos lagos Uri e Gotthard, dali aos vilarejos de
montanha, riachos, encostas de cascalho e picos nevados do
Tessino e depois às primeiras casas de pedra escura em vinhedos
planos, e à aguardada viagem rumo aos lagos e através da fértil
Lombardia, até a animada e barulhenta Milão, estranhamente
sedutora e repulsiva.
Richard nunca havia visto o domo de Milão, sabia apenas que
era uma construção grande e famosa. Foi divertidíssimo
acompanhar sua indignada decepção. Depois de ter superado o
primeiro susto e recobrado o humor, ele mesmo sugeriu subir ao
telhado e circular entre a maravilhosa barafunda de estátuas de
pedra. Descobrimos, com alguma satisfação, que não era preciso se
lamentar pelas centenas de infelizes estátuas largadas ali, pois, via
de regra, as mais novas eram feitas em série e sem maiores
qualidades. Ficamos encostados por quase duas horas sobre as
largas placas de mármore inclinadas que um luminoso dia de abril
havia aquecido ligeiramente. Satisfeito, Richard me confessou:
“Sabe, no fundo não tenho nada contra passar por outras
decepções como essa da catedral maluca. Durante toda a viagem
tive um pouco de medo de todas as coisas maravilhosas que
veríamos e que nos deprimiriam. Mas a coisa começa de um jeito
tão simpático, tão ridiculamente humano!”. A coleção de
personagens, em cujo centro nos encontrávamos, ensejava-lhe toda
sorte de fantasias barrocas.
“Acho”, ele disse, “que o maior e mais distinto santo está na torre
do coro, que é o ponto mais alto. Visto que não é nada agradável
ficar eternamente se segurando nessas torrezinhas pontudas feito
um equilibrista de pedra, é bem provável que de tempos em tempos
o santo mais santo seja rendido e levado ao céu. Imagine o
espetáculo a cada vez! Pois é evidente que todos os outros santos
como que avançam uma casa, seguindo exatamente a hierarquia, e
todos têm de dar um grande salto até o nicho do antecessor, sempre
muito rápido e todos invejosos de todos que estão à sua frente.”
Independentemente das vezes que passei por Milão, aquela
tarde sempre retornou à minha mente e, com um sorriso
melancólico, eu enxergava as centenas de santos de mármore
dando seus saltos audazes.
Em Gênova, ganhei um novo amor. Era um dia claro, cheio de
vento, pouco depois do meio-dia. Tinha apoiado os braços numa
amurada larga, atrás de mim estava a colorida Gênova; embaixo, a
grande massa de água azul crescia, cheia de vida. O mar. Com um
bramir obscuro e desejo incompreendido, o eterno e o imutável se
lançavam contra mim, e senti como algo meu se ligava, para a vida
e para a morte, com essa água azul e cheia de espuma.
O vasto horizonte do mar me impactou igualmente. Mais uma
vez, enxerguei — como nos tempos de criança — o diáfano azul
longínquo como um portão aberto a me esperar. E mais uma vez fui
tomado pela sensação de não ter nascido para a vida ordinária entre
as pessoas, em cidades e apartamentos, mas para transitar por
regiões estrangeiras e viajar sem destino pelos mares. Aflorou-me
novamente, com um ímpeto sombrio, o desejo antigo e melancólico
de me atirar ao peito de Deus e de unir fraternalmente minha
insignificante vida ao infinito e eterno.
Em Rapallo, nadando, lutei com a correnteza pela primeira vez,
experimentei a adstringente água salgada e senti a força dos
vagalhões. Ao redor, límpidas ondas azuis, rochas litorâneas
amarronzadas, o tranquilo céu profundo e o grande eterno marulho.
Eu me encantava a cada vez com a visão dos navios que
deslizavam ao longe, dos mastros pretos e das velas claras, ou com
a pequena trilha de fumaça de um vapor ainda mais distante. À
exceção de minhas adoradas nuvens nômades, não conheço
imagem mais bonita nem mais profunda da nostalgia e da
peregrinação do que a de um navio a grande distância e que,
afastando-se, fica cada vez menor até sumir no horizonte aberto que
o aguarda.
E chegamos a Florença. A cidade se apresentou como eu a
conhecia de centenas de fotos e milhares de sonhos — arejada,
ampla, convidativa, atravessada por um rio verde, cheio de pontes,
e circundada por colinas claras. A torre divertida do Palazzo Vecchio
espetava, audaciosa, o céu aberto, a bela Fiesole despontava no
alto, alva e aquecida pelo sol, e as flores das árvores frutíferas
pintavam de branco e vermelho-rosado todas as colinas. A vida
toscana, animada e agitada, inocente, se revelou para mim feito um
milagre e quase me senti mais aclimatado do que em minha própria
terra. Passávamos os dias percorrendo igrejas, praças, vielas,
loggie e mercados; as noites, sonhando nos jardins das colinas,
onde os limões já amadureciam, ou bebendo e conversando em
pequenos bares de chianti. Nos intervalos, as ricas horas que
traziam felicidade nas galerias e no museu Bargello, nos conventos,
bibliotecas e sacristias, as tardes em Fiesole, San Miniato,
Settignano, Prato.
De acordo com o que havíamos combinado antes da partida,
deixei Richard sozinho por uma semana e desfrutei da caminhada
mais nobre e adorável da minha juventude pelo relevo verde e
ondulante da Úmbria. Percorri as trilhas de são Francisco e em
algumas horas sentia-o caminhando ao meu lado, a alma
preenchida por um amor insondável, cumprimentando cada
passarinho, cada fonte e cada arbusto de roseira-brava com
gratidão e alegria. Eu colhia e chupava limões em encostas
radiantes, ensolaradas, passava a noite em pequenas vilas, cantava
e declamava poemas para mim mesmo e festejei a Páscoa em
Assis, na igreja do meu santo.
Ainda acho que esses oito dias de caminhada pela Úmbria foram
o ápice e o belo crepúsculo de meus dias de juventude. Fontes
brotavam dentro de mim todos os dias, e eu enxergava a paisagem
de primavera, festiva e luminosa, como se pelos bondosos olhos de
Deus.
Na Úmbria, acompanhei Francisco, o “jogral de Deus”, com
veneração; em Florença, deliciei-me com a constante representação
da vida no Quattrocento. Afinal, em casa eu já havia escrito sátiras a
respeito das formas de vida atuais. Mas foi em Florença que senti,
pela primeira vez, todo o ridículo sórdido da cultura moderna. Foi lá
que tive a noção de que eu sempre seria um estranho em nossa
sociedade e foi lá que despertou em mim, pela primeira vez, o
desejo de tocar a vida fora dessa sociedade e, se possível, no sul
da Europa. Aqui eu poderia conviver com as pessoas, aqui eu me
alegrava o tempo todo pela naturalidade descomplicada da vida,
enobrecida e refinada pela tradição da cultura clássica e da história
que a recobria.
As belas semanas passaram voando, belas e encantadoras;
também nunca havia visto Richard assim tão arrebatado. Alegres e
animados, esvaziamos os cálices da beleza e do prazer. Fomos
conhecer vilarejos mais afastados, nas colinas; fizemos amizade
com taberneiros, monges, moças do campo e párocos locais
modestos e satisfeitos; escutamos serenatas ingênuas; demos pão
e frutas a belas crianças morenas; e do alto das montanhas
ensolaradas avistamos a Toscana, imersa no brilho da primavera, e,
mais ao longe, o faiscante mar da Ligúria. E ambos dividimos a forte
sensação de estarmos diante de uma nova vida, rica, merecedores
de nossa felicidade. Trabalho, luta, prazer e fama estavam tão
próximos e certos à nossa frente que usufruímos sem pressa dos
dias felizes. Também a separação iminente parecia leve e
transitória, pois sabíamos, com mais certeza que nunca, que um era
indispensável ao outro e por toda a vida.

Eis a história da minha juventude. Quando penso nela, me parece


breve feito uma noite de verão. Um pouco de música, um pouco de
intelecto, um pouco de amor, um pouco de vaidade — mas foi
bonita, rica e colorida como as festas eleusínias.
E feito uma chama ao vento, ela se apagou rápida e
desoladoramente.
Richard se despediu em Zurique. Desceu duas vezes do vagão
para me beijar e acenou com delicadeza da janela, longamente.
Duas semanas mais tarde, ele se afogou enquanto nadava num
ridículo riacho no sul da Alemanha. Não o vi mais, eu não estava
presente quando ele foi enterrado, soube de tudo apenas alguns
dias mais tarde quando ele já estava no esquife e debaixo da terra.
Fiquei estirado no chão de meu pequeno quarto, praguejando contra
Deus e a vida com blasfêmias injustas e vulgares, chorei e
esperneei. Até então, não tinha imaginado que minha única posse
garantida nesses anos fora essa amizade. E isso tinha acabado.
Não aguentei mais muito tempo na cidade, onde diariamente
uma porção de lembranças se agarravam a mim, roubando-me o ar.
O futuro me era indiferente; estava doente bem no fundo da alma e
tudo que tinha vida me aterrorizava. Na época, era pouca a
perspectiva de meu ser destruído se aprumar de novo, conduzindo-
me com novas velas à felicidade acre da idade adulta. Deus quis
que eu tivesse dado o melhor de mim a uma amizade pura e alegre.
Como dois barcos rápidos, nós avançamos juntos, e a embarcação
de Richard era a colorida, leve, feliz, amada, à qual meu olhar
estava preso e na qual eu confiava para me conduzir a destinos
gloriosos. Ele submergiu com um grito apenas e fiquei à deriva na
água subitamente lúgubre. Talvez eu devesse superar a árdua prova
de me orientar pelas estrelas e, numa nova viagem, perseguir e
batalhar pela coroa da vida. Eu acreditara na amizade, no amor das
mulheres, na juventude. Depois que tudo me havia sido tirado, um a
um, por que eu não acreditava em Deus e não me entregava à sua
mão forte? Sempre fui indeciso e teimoso como uma criança e
sempre esperei pela verdadeira vida, que me tomaria de assalto
numa tempestade, que me tornaria inteligente e rico, e que me
carregaria sobre suas asas largas à felicidade madura. Mas a vida
sábia e frugal calou-se e me deixou vagar. Não me enviou
tempestades nem estrelas, porém esperou até que eu tivesse me
tornado novamente pequeno e paciente e que minha teimosia se
quebrasse. Ela me deixou encenar minha comédia do orgulho e da
presunção, não lhe deu importância e aguardou até que a criança
perdida reencontrasse a mãe.
5

Agora é a vez do tempo de minha vida que parece ter sido mais
movimentado e colorido do que nunca e que daria um romance
pequeno daqueles que estão em voga. Eu deveria contar como um
jornal alemão me nomeou redator. Como dei liberdade excessiva à
pena e à língua ferina, recebendo em troca escárnio e
doutrinamento. Como conquistei a fama de bêbado e, por fim,
depois de contendas mordazes, me desliguei do cargo e pedi para
ser enviado a Paris como correspondente. Como vivi feito cigano
nesse lugar amaldiçoado, matando o tempo e participando de
malandragens em diversos setores.
Não satisfazer os sórdidos de plantão entre meus leitores e omitir
aqui esse breve período está longe de ser covardia. Reconheço que
trilhei descaminhos em série, vi toda espécie de sujeira e fiquei
preso nela. Desde então, desapareceu-me o gosto pelo romantismo
da boemia, e vocês hão de permitir que eu me mantenha no que é
puro e bom, que também existiu em minha vida, e deixar perdido e
descartado aquele tempo perdido.
Certa noite, estava sentado sozinho no Bois de Boulogne,
pensando se deveria deixar Paris ou até mesmo a vida. Depois de
muito tempo, essa foi a primeira vez que a revisitei em pensamentos
e calculei não ter muito a perder.
Mas então me veio a lembrança cristalina de um dia há muito
passado e esquecido — uma manhã de verão, em casa nas
montanhas, e eu me vi ajoelhado junto a uma cama; nela estava
minha mãe, moribunda.
Levei um susto e me envergonhei por aquela manhã ter sumido
de minha memória por tanto tempo. Os pensamentos de morte
tinham desaparecido. Pois acredito que nenhum ser humano sério e
não totalmente fora dos eixos é capaz do suicídio se um dia viu uma
vida saudável e boa fenecer. Revi a morte de minha mãe. Revi em
seu rosto o trabalho silencioso e circunspecto da morte que o
enobrecia. A morte parecia rude, mas também tão forte e bondosa
quanto um pai zeloso que conduz o filho perdido de volta para casa.
De repente, soube novamente que a morte é nossa irmã
inteligente e boa, que conhece a hora certa e na qual podemos
confiar com segurança. E comecei a compreender também que o
sofrimento, as decepções e a melancolia não existem para nos
irritar, desvalorizar e desonrar, mas para nos amadurecer e alentar.
Oito dias mais tarde minhas bagagens tinham sido despachadas
para a Basileia e atravessei a pé uma região bonita do sul da
França. A cada dia que passava, sentia que os infelizes tempos
parisienses, cujas lembranças me seguiam como um rastro
fedorento, se desfocavam e dissolviam no ar. Assisti a uma cour
d’amour. Pernoitei em castelos, moinhos, celeiros e tomei vinho
ensolarado e quente com rapazes morenos e falantes.
Molambento, magro, queimado do sol e mudado internamente,
depois de dois meses cheguei à Basileia. Foi minha primeira grande
peregrinação, a primeira de muitas. Há poucos lugares entre
Locarno e Verona, entre a Basileia e Brig, entre Florença e Perugia
que não percorri por duas ou três vezes com minhas botas
empoeiradas — atrás de sonhos dos quais nenhum ainda se
concretizou.

Na Basileia, aluguei um apartamento nos arredores da cidade,


desempacotei minhas coisas e comecei a trabalhar; gostava de
viver numa cidade sossegada, onde ninguém me conhecia. Alguns
jornais e revistas ainda encomendavam coisas e eu tinha de
trabalhar e tocar a vida. As primeiras semanas foram boas e
tranquilas, mas aos poucos a antiga tristeza retornou, permaneceu
por dias, semanas e não passava nem durante o trabalho. Quem
não sentiu na própria pele a melancolia não faz ideia do que se
trata. Como descrevê-la? Eu tinha a sensação de uma solidão
terrível. Havia um abismo constante entre mim, os outros e o mundo
da cidade, das praças, casas e ruas. Uma grande tragédia
aconteceu, os jornais traziam coisas importantes, mas nada me
comovia. Festas eram promovidas, mortos eram enterrados,
negócios eram fechados, concertos eram dados — para quê?, por
quê? Saí de casa, fui caminhar por florestas, colinas e estradas, e
ao meu redor campos, árvores, plantações calavam-se num lamento
mudo, me olhavam sem nada dizer, suplicantes, ansiosos por me
falar alguma coisa, vir ao meu encontro, me cumprimentar. Mas
estavam ali e não conseguiam dizer nada; compreendi seu
sofrimento e dele compartilhei, pois não podia libertá-los.
Fui ao médico, levei anotações detalhadas, tentei descrever
minha enfermidade. Ele leu, fez perguntas, me examinou.
“Sua saúde é invejável”, ele elogiou, “fisicamente não lhe falta
nada. Tente se animar com leituras ou com música.”
“Por força da profissão, leio diariamente uma porção de coisas
novas.”
“E exercite-se também ao ar livre.”
“Caminho de três a quatro horas por dia, nas férias é pelo menos
o dobro.”
“Então você precisa se forçar a conviver com as pessoas. Afinal,
corre o perigo de se tornar seriamente introvertido.”
“Tem problema?”
“Tem muito problema. Quanto maior seu desapreço pelo
convívio, mais difícil será se misturar às pessoas. Você ainda não
está doente e não me parece inspirar preocupação; mas se não
parar de ficar tão passivo, chegará o momento em que perderá o
equilíbrio.”
O médico era um profissional sensato e bem-intencionado.
Estava com pena de mim. Recomendou-me a um homem culto que
abria sua casa para muitas pessoas, na qual havia um tanto de vida
literária e intelectual. Fui lá. Sabiam o meu nome, foram amáveis,
quase demais, e eu voltei várias outras vezes.
Uma dessas oportunidades foi durante uma noitinha fria do final
do outono. Encontrei por lá um jovem historiador e uma moça
morena, muito magra; não havia outros convidados. A moça se
ocupava do chá, falava bastante e tratava o historiador com
sarcasmo. Depois, ela tocou um pouco de piano. Em seguida, disse
que já tinha lido minhas sátiras, mas que não gostara delas. Ela me
pareceu sagaz, talvez em demasia, e logo fui para casa.
Nesse meio-tempo, passou a circular a notícia de que eu
passava muito tempo nos bares e que, na verdade, era um beberrão
dissimulado. Não me espantei, pois a bisbilhotice estava em alta no
meio acadêmico, entre homens e mulheres. A descoberta
vergonhosa não atrapalhou meu convívio social e me colocou sob
holofotes, pois era época de se enaltecer a temperança. Senhoras e
senhores participavam de comitês de redução do consumo de álcool
e gostavam de todo e qualquer pecador que lhes caísse nas mãos.
Certo dia se deu o primeiro ataque, educado. Pediram-me que eu
refletisse sobre a vida nos bares, a maldição do alcoolismo, sempre
sob o ponto de vista sanitário, ético e social; também fui convidado a
participar de um evento dessa agremiação. Fiquei espantadíssimo,
pois nunca tinha nem sequer ouvido falar desses grupos.
As reuniões e a música de caráter religioso eram
constrangedoramente cômicas e não dissimulei minha opinião.
Durante semanas, fui alvo de uma incômoda pressão amistosa — a
coisa se tornou chata e, certa noite, depois de ouvir a mesma
cantilena e saber que minha conversão era ansiosamente
aguardada, fiquei desesperado e pedi de maneira incisiva que me
poupassem daquele falatório. A moça estava de volta. Ela me ouviu
com atenção e depois exclamou, simpática: “Bravo!”. Mas eu estava
transtornado demais para prestar atenção.
Então foi com um prazer ainda maior que assisti a um incidente
pequeno e engraçado que ocorreu durante uma grande festa dos
abstêmios. Os inúmeros membros da agremiação se reuniram na
sua sede, comeram, ouviram palestras, fizeram novas amizades,
cantaram em coro e saudaram o progresso de sua boa intenção
com cânticos de louvor. Um daqueles que tinha como tarefa
carregar a bandeira ficou entediado com as falas sem álcool e saiu
de fininho até um bar. Quando o desfile festivo que percorreria as
ruas estava para começar, pecadores se deleitavam com a
desgraça alheia daquela divertida encenação: na dianteira da horda
satisfeita havia um porta-bandeira embriagado, alegre, e em seus
braços podia-se ver o estandarte com a cruz azul vacilando feito um
mastro de navio prestes a naufragar.
O sujeito bêbado foi afastado; mas não se deu cabo da fuzarca
resultante das mais humanas vaidades, ciumeiras e intrigas que
haviam se instaurado nas agremiações e comissões concorrentes e
que só fazia aumentar. O movimento se dividiu, alguns membros
mais ambiciosos quiseram ficar com a fama e saíram achincalhando
todo e qualquer beberrão que não havia se convertido sob suas
asas; empregados decentes e altruístas, sem nenhum senão, foram
espoliados sem dó e logo todos que estavam por perto tiveram a
oportunidade de ver como nasce, mesmo sob uma ética idealista,
todo tipo de imundície humana. Descobri essa comédia por
intermédio de terceiros, fiquei intimamente satisfeito e, na volta para
casa depois de algumas bebedeiras noturnas, pensava: vejam que,
nós, os bárbaros, ainda somos melhores do que vocês.
Eu estudava e matutava bastante no meu pequenino cômodo,
alto e com vista para o Reno. Estava inconsolável pela vida
escorrendo entre meus dedos: nenhuma correnteza me puxava,
nenhuma paixão ou interesse esquentava meu sangue e me tirava
do sonho sem graça. Apesar disso, eu me ocupava — em paralelo
às atividades prementes do dia a dia — com os preparativos de um
livro sobre a vida dos primeiros Irmãos Menores. Ainda não era uma
criação propriamente dita, apenas uma contínua e despretensiosa
compilação, que não me satisfazia. Ao me recordar de Zurique,
Berlim e Paris, comecei a destacar os principais desejos, paixões e
ideais de homens contemporâneos. Um trabalhava no sentido de
tornar obsoletos os móveis, papéis de parede e roupas de então e
acostumar as pessoas a ambientes mais livres, mais belos. Outro se
dedicava a divulgar o monismo de Haeckel em textos e palestras
acessíveis. Outros consideravam válido lutar pela paz mundial
eterna. E mais outro batalhava e discursava em prol da construção e
da abertura de teatros e de museus para o povo. E, na Basileia, o
álcool era combatido.
Todos esses empreendimentos continham vida, ímpeto e
movimento; mas nenhum deles me parecia importante e necessário,
e minha vida não seria afetada caso esses objetivos fossem
alcançados em sua totalidade. Desanimado, afundei na cadeira,
afastei livros e papéis da minha frente e me pus a pensar, pensar.
Foi então que escutei, através da janela, o Reno fluir e o vento
soprar. Fiquei prestando atenção nessa linguagem de melancolia e
nostalgia muito intensas, à espreita de tudo. Vi as pálidas nuvens
noturnas voando pelo céu em grandes bandos feito pássaros
assustados, escutei o rio em movimento e pensei na morte da minha
mãe, em são Francisco, na minha terra nas montanhas nevadas e
em Richard, afogado. Me vi escalando rochas, arrancando uma rosa
alpina para Rösi Girtanner, me vi em Zurique excitando-me com
livros, músicas e conversas, me vi com a Aglietti remando o barco à
noite, me vi desesperando-me pela morte de Richard, viajando e
regressando, recomposto e depois triste de novo. Para quê? Por
quê? Oh, Deus, tudo isso não passou de uma brincadeira, um
acaso, uma mera pintura? Eu já não tinha lutado e me torturado pelo
espírito, pela sabedoria, pela amizade, pela beleza, pela verdade e
pelo amor? E tudo em vão, só me machucando, não satisfazendo
ninguém!
Daí estava pronto para o bar. Apaguei a luminária, desci tateando
a velha escada e cheguei a uma taberna que servia o Veltliner ou o
vinho do Vaud. Na qualidade de bom cliente, fui recebido com
respeito, embora costumasse ser arrogante e, às vezes,
absolutamente rude. Lia Simplizissimus,7 que me irritava a cada
vez, bebia meu vinho e esperava até ele me consolar. E o Deus do
vinho me tocava com sua mão doce e macia, fazia pesar de maneira
agradável meus braços e pernas e conduzia minha alma confusa à
terra dos sonhos belos.
Às vezes, eu próprio me espantava com o jeito rude com que
tratava as pessoas e com o prazer que sentia em irritá-las. Nas
tabernas em que era mais assíduo, as garçonetes tinham medo de
mim e me desdenhavam como se eu fosse um homem estúpido e
ranzinza, que só fazia reclamar. Caso entabulasse uma conversa
com outros clientes, eu era sardônico e tosco; evidentemente o
troco vinha na mesma moeda. Apesar disso, havia alguns outros
frequentadores das tabernas, todos já beberrões mais velhos e
incuráveis, com quem passava a noite na mesa e tinha certo
relacionamento. Havia entre eles um idoso rabugento,
autodenominado desenhista, misógino, misantropo e pinguço de
primeira. À noite, quando o encontrava sozinho em alguma taberna,
o resultado era sempre um porre colossal. Primeiro vinha a
conversa, depois as gozações e, ao mesmo tempo, entornávamos
uma garrafinha de vinho tinto. Aos poucos, a bebida ganhava
protagonismo, a conversa adormecia, ficávamos frente a frente,
mudos, cada um com seu Brissago e cada um esvaziando sua
garrafa. Nessa hora, não tínhamos diferenças: pedíamos novas
doses na mesma hora e observávamos um ao outro com um misto
de respeito e desprezo. Na época da vindima, no fim do outono,
certa vez percorremos juntos alguns vilarejos na região de Markgraf
e o velhote me contou a história de sua vida na Taberna do Cervo,
em Kirchen. Acho que era interessante e bizarra, mas infelizmente
já não me recordo dela. Restou apenas a descrição de uma
bebedeira ocorrida quando ele já estava entrado em anos. Foi em
algum lugar no interior durante uma festividade local. Na condição
de convidado na mesa de honra, ele incentivou tanto o padre como
o prefeito a iniciarem precocemente os trabalhos etílicos. O padre,
entretanto, ainda tinha de fazer um discurso. Depois de ter sido
arrastado com dificuldade ao palco, ele disparou frases sem pé nem
cabeça e teve de ser tirado de lá — o prefeito tomou seu lugar. De
início ele discursou com veemência, mas começou a se sentir mal
por causa da própria agitação e encerrou seu discurso de maneira
não convencional nem educada.
Mais tarde, eu bem que gostaria de ter ouvido essas e outras
histórias de novo. Porém, acabamos nos engalfinhando na festa dos
atiradores, um puxou a barba do outro e nos separamos, irados.
Desde então, aconteceu de nós, inimigos, nos encontrarmos na
mesma taberna, evidentemente que cada um numa mesa; mas
devido ao velho hábito, observávamos um ao outro, em silêncio,
bebíamos no mesmo ritmo e íamos ficando até o fim, para então
sermos convidados a nos retirar. Nunca chegamos a uma
reconciliação.
A reflexão constante sobre as causas da minha tristeza e
incapacidade de lidar com a vida era infrutífera e exaustiva. Além do
mais, eu não tinha a sensação de ter gastado todos meus
cartuchos, estava cheio de desejos obscuros e acreditava que na
hora oportuna alguma coisa acabaria dando certo para mim — a
criação de algo profundo e de qualidade, trazendo à dura vida ao
menos um punhado de felicidade. Mas será que essa hora oportuna
chegaria mesmo? Com amargura, eu pensava naqueles homens
modernos, nervosos, que se atreviam ao trabalho artístico movidos
por milhares de estímulos artificiais, enquanto minhas forças
permaneciam apáticas e intocadas. E voltava a matutar: que tipo de
obstáculo ou demônio tinha se apossado da minha alma nesse
corpo exuberantemente forte, debilitando-a mais e mais? Além
disso, eu também tinha a curiosa autopercepção de ser uma pessoa
especial, que de alguma maneira tinha sido prejudicada e cujos
sofrimentos ninguém conhecia, entendia ou compartilhava. O mais
diabólico na depressão é exatamente isto: ela não apenas deixa a
pessoa doente, como também presunçosa e míope, quase
orgulhosa. A pessoa deprimida se sente como o desafortunado
Atlas de Heine,8 que carrega sozinho nos ombros toda a dor e os
enigmas do mundo, como se não houvesse outros milhares sentindo
a mesma coisa, vagando no mesmo labirinto. No meu isolamento,
longe de casa, também não conseguia perceber que a maioria de
minhas qualidades e características não era exclusivamente minha,
mas antes era um dom ou uma maldição dos Camenzind.
A cada duas semanas eu retornava à casa daquele hospitaleiro
erudito. Pouco a pouco, passei a conhecer todos que frequentavam
o lugar. Eram, via de regra, jovens acadêmicos, entre eles muitos
alemães, de todas as faculdades, além de alguns pintores, músicos
e outros tantos burgueses com esposas e namoradas. Olhava com
espanto para essa gente que me cumprimentava como convidado
bissexto e da qual eu sabia que se viam outras tantas vezes durante
a semana. O que conversavam entre si, o que os ocupava? A
maioria tinha o estereótipo do homo socialis, e todos me pareciam
ser aparentados em algum grau graças a um espírito afável e
nivelador de que somente eu não dispunha. Havia algumas pessoas
finas e importantes ali, cuja sociabilidade constante não diminuía em
nada ou muito pouco seu frescor e sua força pessoal. Eu conseguia
manter conversas longas e interessantes com algumas. Mas me era
impossível ir de pessoa a pessoa, ficar junto dela durante um
minuto, tentando dizer galanteios às mulheres, dividindo minha
atenção simultaneamente entre uma xícara de chá, duas conversas
e uma peça para piano. Eu achava terrível ter de discorrer sobre
literatura ou arte. Percebia que nessas áreas havia pouca reflexão e
muita mentira, pelo menos muita bisbilhotice. Então também
participava das mentiras, mas não achava graça; eu considerava o
falatório monótono e desonroso. Preferia ficar ouvindo uma mulher
discorrer sobre os filhos ou começava a relatar minhas próprias
viagens, pequenos acontecimentos diários e outras situações reais.
Nessas horas, por vezes eu conseguia me sentir íntimo dos ouvintes
e quase ficar feliz. No fim dessas noitadas, geralmente eu ia até
uma taberna e afogava a secura da garganta e o tédio preguiçoso
com vinho.
Numa dessas reuniões, revi a moça morena. Havia uma porção
de gente jovem no lugar tocando música e fazendo sua balbúrdia
habitual, enquanto eu estava sentado num canto com um álbum de
imagens. Tratava-se de vistas da Toscana, não as habituais,
aquelas imagenzinhas batidas, divulgadas mil vezes, mas versões
mais íntimas, paisagens ricas em detalhes desenhadas por
amadores, em geral presentes de companheiros de viagem e
amigos do dono da casa. Eu tinha acabado de achar o desenho de
uma casinha de pedra e janelas estreitas no solitário vale de San
Clemente, que eu conhecia, pois em algumas de minhas
caminhadas passei por ali. O vale fica bem perto de Fiesole, mas a
maioria dos viajantes não o visita porque não há antiguidades por lá.
Trata-se de um vale de beleza rústica e peculiar, seco e pouco
habitado, apertado entre montanhas altas, sem vegetação e
íngremes, apartadas do mundo, melancólicas e intactas.
A moça se aproximou e olhou por sobre meu ombro.
“Por que você está sempre tão sozinho, Camenzind?”
Fiquei irritado. Ela se sente desprezada pelos outros homens e
por isso vem falar comigo, pensei.
“Vou receber uma resposta?”
“Perdão, senhorita, mas o que devo responder? Estou sozinho
porque gosto.”
“Então estou atrapalhando?”
“Você é engraçada.”
“Obrigada. E a recíproca é verdadeira.”
E ela se sentou. Teimoso, continuei segurando a folha com o
desenho.
“Você vem das montanhas”, ela disse. “Gostaria de ouvir suas
histórias. Meu irmão diz que no seu vilarejo há apenas um
sobrenome, uma porção de Camenzind. É verdade?”
“Quase”, resmunguei. “Mas também tem um padeiro que se
chama Füßli. E um taberneiro chamado Nydegger.”
“E mais nada além de Camenzind! E vocês são todos parentes?”
“Mais ou menos.”
Estendi-lhe o desenho. Ela pegou a folha e percebi que ela sabia
como manipular uma coisa dessas. Disse-lhe isso.
“Você está me elogiando”, ela riu, “mas como um professor de
escola.”
“Você não quer ver a folha?”, perguntei, rude. “Senão vou
guardá-la.”
“O que tem aí?”
“San Clemente.”
“Onde?”
“Em Fiesole.”
“Já esteve lá?”
“Sim, diversas vezes.”
“Como é o vale? Aqui tem apenas um recorte.”
Pensei um pouco. A paisagem rústica, de beleza outonal,
apareceu diante dos meus olhos e semicerrei os olhos para fixá-la.
Demorou um tempo até eu começar a falar e foi bom ela ter se
mantido em silêncio, esperando. Ela compreendera que eu estava
refletindo.
E descrevi San Clemente plácida, agreste e grandiosa, banhada
pelo calor de uma tarde de verão. Na vizinha Fiesole há
movimentação industrial, produção de chapéus de palha e cestos de
vime, venda de suvenires e laranjas; viajantes são alvo de logros ou
da ação de pedintes. Mais para baixo, está Florença com seu fluxo
de vidas antigas e novas. Mas ambas não são vistas de San
Clemente, que não foi lugar de trabalho de pintores nem de
construções romanas, e a história se esqueceu do pobre vale. Mas
lá o sol e a chuva lutam com a terra, os pinheiros tortos se agarram
com força à vida, e os poucos ciprestes fariscam o ar com as folhas
estreitas para saber se uma tempestade inimiga que podará sua
vida miserável, à qual se ligam com raízes sedentas, se aproxima.
Por vezes passa um carro de boi das grandes propriedades vizinhas
ou uma família de camponeses caminha em direção a Fiesole, mas
se trata de convidados eventuais, e as saias vermelhas das
camponesas, que em geral parecem ser tão leves e divertidas, aqui
estorvam e ninguém sente sua falta.
E lhe contei das minhas caminhadas quando jovem naquela
região, na companhia de um amigo; que nos deitamos aos pés dos
ciprestes e recostamos em seus troncos finos; e como o encanto da
solidão desse vale especial, triste e belo, me trazia à lembrança as
bocainas da minha terra.
Ficamos em silêncio por um tempo.
“Você tem muito lirismo”, a moça disse.
Fiz uma careta.
“No bom sentido”, ela continuou. “Não porque escreva novelas e
coisas assim. Mas porque compreende e gosta da natureza. Os
outros se importam quando uma árvore farfalha ou uma montanha
brilha sob o sol? Na sua opinião, porém, há vida ali e dela você
participa.”
Respondi que ninguém “compreende a natureza” e que toda
procura e tentativa de entendimento gera enigmas e traz tristeza.
Uma árvore banhada pelo sol, uma rocha desgastada pelas
intempéries, um animal, uma montanha — eles têm história, vivem,
sofrem, resistem, desfrutam, morrem, mas nós não os
compreendemos.
Enquanto eu falava, feliz com sua atenção paciente e silenciosa,
comecei a observá-la. Seu olhar focava meu rosto e dele não se
afastava. Seu semblante estava absolutamente tranquilo, entregue e
ligeiramente tensionado pela atenção. Como se fosse uma criança a
me ouvir. Não, como um adulto que se esquece de si e, sem
perceber, arregala olhos de criança. E durante a observação fui
percebendo aos poucos, com ingênua alegria de descobridor, que
ela era muito bonita.
Quando parei de falar, a moça também ficou em silêncio. Daí ela
se assustou e a luz da lâmpada a fez piscar.
“Qual é mesmo seu nome?”, perguntei sem segundas intenções.
“Elisabeth.”
Ela se afastou e logo alguém lhe pediu que tocasse piano.
Tocava bem. Mas quando me aproximei, notei que não era mais tão
bonita.
Ao descer a escada antiga, confortável, a fim de voltar para casa,
entreouvi algumas palavras da conversa de dois pintores que
estavam no corredor, vestindo os casacos.
“Bem, ele ficou a noite inteira ocupado com a bela Lisbeth”, disse
um e riu.
“Danado!”, retrucou o outro. “Não foi das piores escolhas.”
Então os vivaldinos já estavam na bisbilhotice. Subitamente me
dei conta de que eu, quase sem querer, tinha revelado a essa
estranha jovem lembranças íntimas e uma grande parte da minha
vida. Como cheguei a tanto? E já o falatório! Canalhas!
Afastei-me e durante meses não pisei mais na casa. Quis o
acaso que um daqueles dois pintores fosse o primeiro a me
perguntar a respeito, na rua.
“Por que você não vai mais lá?”
“Porque não suporto as malditas bisbilhotices.”
“É, nossas mulheres!”, o sujeito riu.
“Não”, respondi, “me refiro aos homens, em especial aos
pintores.”
Nesses meses, vi Elisabeth pouquíssimas vezes na rua, uma vez
numa loja e outra vez na galeria de arte. Como sempre, estava
arrumada, mas não bonita. Os movimentos de seu corpo muito
magro tinham algo de especial que embelezavam e diferenciavam a
moça, mas também podiam parecer um tanto exagerados e
inautênticos. Ela não me viu. Não me aproximei e me mantive
tranquilo, folheando catálogos. Ela estava perto de mim, parada
diante de um Segantini, hipnotizada pelo quadro. Era a
representação de duas jovens camponesas trabalhando num campo
árido, com montanhas pontiagudas ao fundo, lembrando talvez a
cadeia de Stockhorn, e no alto de um céu fresco, aberto, havia uma
nuvem cor de marfim, pintada com incrível genialidade. Numa
primeira mirada, ela surpreendia por sua massa curiosamente
emaranhada, retorcida; dava para ver que acabara de ser formada e
modelada pelo vento e começava a subir, afastando-se lentamente.
Elisabeth parecia compreender essa nuvem, pois estava totalmente
absorta na sua observação. E mais uma vez sua alma,
habitualmente oculta, estampava-se em seu rosto — ela riu baixinho
com os olhos arregalados, a boca estreita se tornou macia feito a de
uma criança, e a ruga da testa que denotava grande perspicácia e
severidade foi aplainada entre as sobrancelhas. A beleza e a
autenticidade de uma grande obra de arte obrigavam sua alma a se
expor igualmente bela, autêntica e sem anteparos.
Eu estava ao seu lado, em silêncio, observando a bela nuvem de
Segantini e a bela moça por ela encantada. Em seguida, fiquei com
receio de ela se virar, olhar para mim e, ao entabular uma conversa,
perder novamente sua beleza; por isso, deixei a sala rápida e
silenciosamente.
Por aquela época, meu prazer pela natureza muda e minha
relação com ela começaram a se transformar. Eu passeava com
constância pelas cercanias maravilhosas da cidade, de preferência
adentrando a região do Jura. Toda vez que via as florestas e as
montanhas, os campos, as árvores frutíferas e os arbustos, tinha a
impressão de que estavam à espera de algo. Talvez de mim; sem
dúvida, do amor.
E foi assim que comecei a amar essas coisas. Sua beleza
plácida correspondia a um desejo interior meu, intenso e sedento. E
vida e nostalgia profundas faziam força para irromper à procura de
consciência, de compreensão, de amor.
Muitos dizem “amar a natureza”. Quer dizer, essas pessoas se
permitem seduzir, de tempos em tempos, pelos encantos que lhes
são oferecidos. Elas saem ao ar livre e alegram-se com a beleza da
terra, pisoteiam os gramados e, por fim, arrancam uma porção de
flores e ramos, para logo em seguida jogá-los fora ou deixá-los
murchar em casa. É assim que amam a natureza. Lembram-se
desse amor aos domingos, quando o tempo está agradável, e ficam
tocados pelo seu bom coração. Afinal, não teriam necessidade
disso, pois “o ser humano é a coroação da natureza”. Ah, sim, a
coroação!
Passei então a olhar com crescente avidez o âmago das coisas.
Escutei o vento soar seus múltiplos tons nas copas das árvores,
escutei riachos borbulhando entre desfiladeiros, e leves correntes
silenciosas percorrendo a planície, e eu sabia que esses sons eram
a língua de Deus e que compreender essa língua obscura,
primordialmente bela, seria como reencontrar o Paraíso. Os livros
sabem pouco a respeito, apenas a Bíblia menciona o “suspiro
indizível” da criatura. Mas eu supunha ter havido, em todos os
tempos, seres humanos igualmente tocados por essa
incompreensão, que deixaram sua faina diária e procuraram o
silêncio para escutar a música da criação, observar o desfilar das
nuvens e, num desejo incessante, esticar os braços em oração ao
Eterno: ermitãos, penitentes e santos.
Você já esteve em Pisa, em Camposanto? Lá as paredes são
ornadas com quadros esmaecidos pelos séculos e um deles mostra
a vida dos ermitãos no deserto da Tebaida. Ainda hoje, a imagem
ingênua com suas cores plácidas emana uma paz tão serena,
encantadora, fazendo-nos sentir uma dor repentina e a necessidade
de expiar pecados e impurezas num longínquo lugar santo e nunca
mais regressar. Inúmeros artistas procuraram expressar sua
nostalgia em quadros extáticos, e qualquer das adoráveis pinturas
de crianças feita por Ludwig Richter entoa a mesma canção que os
afrescos de Pisa. Por que Ticiano, o amigo do concreto e do
corpóreo, deu por vezes a seus quadros claros e objetivos aquele
cenário do mais doce anil? É apenas um traço de cor quente,
profundamente azul, não é possível saber se ele queria representar
montanhas longínquas ou apenas o universo infinito. Ticiano, o
realista, também não sabia. Ele não agia, como os historiadores da
arte afirmam saber, motivado pela harmonia das cores, mas esse
era seu tributo ao sentimento inefável, que vivia oculto também na
alma desse indivíduo alegre e feliz. Na minha opinião, a arte sempre
se esforçou em oferecer uma linguagem ao desejo mudo pelo divino
que habita dentro de nós.
São Francisco deu voz a isso de maneira mais madura, mais bela
e, ainda assim, mais infantil. Foi então que, pela primeira vez,
compreendi-o totalmente. Na medida em que ele abarcava a Terra
como um todo — plantas, astros, animais, vento e água — em seu
amor, ele antecipou a Idade Média, inclusive Dante, e encontrou a
linguagem daquilo que é atemporal no homem. Ele considera todas
as forças e manifestações da natureza como seus caros irmãos e
irmãs. Já entrado em anos, quando os médicos prescrevem que se
lhe queime a fronte com um ferro em brasa, ele, em meio ao terror
do doente terminal e torturado, saúda nesse ferro terrível “seu
querido irmão, o fogo”.
Quando comecei a amar a natureza como a uma pessoa, a ouvi-
la como a um colega ou companheiro de viagem que fala uma
língua estrangeira, minha melancolia não se curou, mas foi
enobrecida e purificada. Olhos e ouvidos aguçaram-se, aprendi a
distinguir discretas nuances e diferenças de tons e ansiava por me
aproximar cada vez mais da pulsação de tudo que é vivo, ouvi-la
com mais clareza e talvez um dia vir a compreendê-la; ansiava por
possuir o dom de expressar tal pulsação com palavras poéticas,
para que também outros pudessem se aproximar e visitar com maior
compreensão as fontes de todo refrigério, pureza e inocência. Por
enquanto tratava-se apenas de um desejo, um sonho… que eu não
sabia se algum dia seria concretizado, e me dediquei ao que estava
mais próximo, oferecendo amor a todas as coisas visíveis e me
acostumando a nunca mais olhar nada com indiferença ou desdém.
Não posso explicar o efeito renovador e consolador disso em
minha vida sombria! Não há nada mais nobre e mais satisfatório no
mundo do que um amor incondicional, constante, desapaixonado, e
meu maior desejo é que uns tantos — ou apenas um ou dois — que
leiam minhas palavras se iniciem nessa arte pura e venturosa por
meu estímulo. Alguns já a possuem por natureza e a exercitam
durante toda a vida, inconscientemente; trata-se dos eleitos de
Deus, os seres humanos bons e que se mantêm crianças. Alguns
aprenderam-na a duras penas — já viram, entre os aleijados e os
miseráveis, aqueles de olhos superiores, calmos, brilhantes? Se não
quiserem dar ouvidos nem a mim nem a minhas palavras, procurem
aqueles que superaram e transformaram o sofrimento por meio de
um amor desinteressado.
Essa perfeição que reverenciei em alguns pobres sofredores
lamentavelmente ainda está longe de mim. Mas durante esses anos,
foram poucas as vezes que duvidei da fé consoladora de estar no
caminho certo.
Não posso dizer que o trilhei o tempo todo, pois me sentei em
todos os bancos durante o percurso e não evitei alguns desvios
perigosos. Duas tendências egoístas e poderosas constantemente
lutavam dentro de mim contra o amor autêntico. Fui beberrão e fui
tímido. Embora tenha diminuído minha cota de álcool de maneira
significativa, a cada duas semanas a divindade melíflua me
convencia a cair em seus braços. Raramente fiquei largado nas
sarjetas à noite ou cometi semelhantes barbaridades, pois o vinho
me ama e me seduz apenas até o ponto em que seus espíritos
permanecem conversando animadamente com os meus. De todo
modo, durante muito tempo fui acometido pela consciência pesada
depois de cada bebedeira. Afinal, eu não podia negar meu amor
justo ao vinho, herança recebida de meu pai. Durante anos cultivei
de maneira esmerada e indulgente esse legado, dele me
apropriando integralmente; dessa maneira, resolvi chegar a um
acordo meio sério, meio zombeteiro, entre meu desejo e minha
consciência. Resolvi incluir entre os cânticos de louvor de são
Francisco de Assis “meu caro irmão, o vinho”.
6

Minha outra mácula era muito pior. O convívio com as pessoas não
me trazia alegria, eu levava a vida de maneira solitária e as coisas
humanas eram por mim tratadas com zombaria e desdém.
No início da minha nova vida, eu ainda não pensava nisso.
Achava correto deixar as pessoas entregues a si mesmas e dedicar
meu carinho, minha atenção e minha simpatia à vida secreta da
natureza, que, no início, me preenchia por completo.
À noite, quando queria me deitar, lembrava subitamente de uma
colina, da franja de uma floresta, de uma árvore predileta que havia
muito eu não visitara. Ela estava entregue ao vento da noite,
sonhando, talvez até meio adormecida, gemendo e esticando os
galhos. Qual seu aspecto? E eu saía de casa, procurava a árvore e
percebia sua forma indefinida na escuridão, observava-a com terno
espanto e retornava, carregando sua imagem imprecisa.
Vocês dão risada. Talvez esse amor fosse errado, mas não
desperdiçado. Mas como eu haveria de encontrar a partir dali o
caminho que conduz ao amor pelos seres humanos?
Bem, depois do primeiro passo, coisas boas acontecem
naturalmente. A ideia de minha grande obra poética me parecia
cada vez mais próxima e possível. E se minha benquerença alguma
vez me levasse a falar poeticamente a língua das florestas e dos
rios, quem seriam os ouvintes? Não apenas os objetos de meu
afeto, mas principalmente os seres humanos — dos quais eu queria,
nas questões do amor, ser líder e professor. Mas com os seres
humanos eu era rude, desdenhoso e antipático. Senti a contradição
e a necessidade de combater a hostilidade afrontosa e de estender
minha fraternidade igualmente às pessoas. E isso era penoso, pois
o isolamento e os golpes do destino tinham me tornado duro e mau
exatamente nesse ponto. Não era suficiente que eu me esforçasse,
em casa e na taberna, para ser menos rude, ou que
cumprimentasse com um aceno de cabeça aqueles que passavam.
Aliás, já nisso eu percebia o quanto havia comprometido a relação
com as pessoas, pois minhas tentativas de ser simpático eram
vistas com desconfiança e frieza ou consideradas zombaria. O pior
é que eu tinha evitado por quase um ano a casa daquele intelectual,
o único entre meus conhecidos, e percebi que voltar lá era prioritário
para eu encontrar um caminho qualquer à sociabilidade desse lugar.
E foi quando minha própria natureza humana, da qual eu tanto
desdenhava, veio em meu auxílio. Bastou eu pensar naquela casa
de novo para, ato contínuo, Elisabeth me voltar à mente, bela diante
da nuvem de Segantini, e de súbito notei o quanto minha nostalgia e
melancolia estavam impregnadas dela. E pela primeira vez pensei
seriamente em me casar. Até então eu tinha estado tão convencido
de minha incapacidade ao casamento que uma ácida ironia
acompanhava meus pensamentos a respeito. Eu era poeta,
caminhante, beberrão, solitário! E eis que parecia reconhecer que o
destino queria construir minha ponte para o mundo através de um
casamento por amor. Tudo parecia tão sedutor e seguro! Eu tinha
sentido e constatado que Elisabeth me dava atenção e que também
possuía uma natureza sensível e nobre. Recordei-me de como sua
beleza tinha se acendido na conversa sobre San Clemente, e mais
tarde, em frente ao Segantini. Havia anos eu armazenara, através
da arte e da natureza, um rico lado interior; ela aprenderia comigo a
enxergar a beleza que se esconde em todos os lugares, e eu a
envolveria com o que é belo e autêntico, de modo que seu rosto e
sua alma se esqueceriam de todas as preocupações, e seus
atributos desabrochariam. Curiosamente não percebi o risível de
minha súbita transformação. Eu, solitário e estranho, tinha me
transformado da noite para o dia num sujeito apaixonado que sonha
com a felicidade do casamento e do estabelecimento do próprio lar.
Fui até a hospitaleira casa o mais rapidamente possível, tendo
sido recebido com simpáticas reprimendas. Voltei mais outras tantas
vezes e depois de algumas visitas reencontrei Elisabeth. Oh, ela era
bonita! Parecia-se com a imagem que eu fizera dela como minha
amada: bela e contente. E desfrutei durante toda uma hora a beleza
alegre de sua presença. Ela me cumprimentou de maneira
simpática, até afetuosa, expressão de uma amizade íntima que me
deixou feliz.

Vocês ainda se recordam da noite no lago, no bote, a noite com as


luminárias de papel vermelho, com a música, com minha declaração
de amor sufocada ainda na garganta? Foi a história triste e risível de
um jovem apaixonado.
A história do homem apaixonado Peter Camenzind é ainda mais
triste e mais risível.
Soube, casualmente, que Elisabeth estava noiva havia pouco.
Parabenizei-a, conheci o noivo que veio buscá-la e parabenizei-o
também. Durante toda a noite mantive um sorriso benevolente que
me incomodava e se parecia a uma máscara. Depois, não fui nem
para a floresta nem para a taberna, mas fiquei sentado na cama,
surpreso e petrificado, com o olhar fixo na luminária até sua chama
enfraquecer e se apagar e minha consciência despertar novamente.
Mais uma vez, a dor e o desespero abriram suas asas negras sobre
mim, deitado ali, pequeno, fraco e sofrido, soluçando feito menino.
Em seguida, arrumei a mochila, fui pela manhã até a estação de
trem e viajei de volta para casa. Queria escalar o Sennalpstock,
pensar na minha infância e verificar se meu pai ainda estava vivo.
Tínhamos nos tornado dois estranhos. Meu pai estava
completamente grisalho, um pouco curvado e um pouco abatido. Ele
me tratou com suavidade e timidez, não perguntou por nada, quis
ceder a cama para mim e parecia estar tão constrangido quanto
surpreso com minha visita. Ele ainda possuía a casinha, mas havia
vendido o pasto e os animais, recebia uma modesta pensão e fazia
pequenos serviços aqui e acolá.
Quando me deixou sozinho, fui até o lugar onde antes ficava a
cama de minha mãe e vi na minha frente o passado correndo feito
um rio largo e calmo. Eu não era mais um jovem e pensei no quão
rapidamente os anos continuariam passando e eu seria um
homenzinho curvado e grisalho, deitando-me para a morte amarga.
No quarto quase intacto, pobre, onde fui criança, onde aprendi latim
e assisti à morte da minha mãe, esses pensamentos tinham uma
naturalidade apaziguadora. Agradecido, lembrei-me da riqueza da
minha juventude, e o poema de Lorenzo de Medici, que havia
aprendido em Florença, voltou-me à mente:

Quant’ è bella giovinezza,


Ma si fugge tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
Di doman non c’è certezza 9

E, ao mesmo tempo, espantei-me por trazer lembranças da Itália, da


história e do vasto reino do espírito a esse antigo quarto de casa.
Em seguida, dei a meu pai um pouco de dinheiro. À noite, fomos
à taberna e lá tudo estava como antes, só que era eu quem pagava
o vinho, e meu pai, quando falava do vinho da espuma estrelada e
do champanhe, me invocava; agora também eu tinha mais
resistência do que ele. Perguntei pelo camponês velho, sobre cuja
careca eu havia despejado vinho. Ele tinha sido um sujeito
engraçado e astuto, mas estava morto fazia tempo e suas histórias
começavam a desaparecer. Bebi um vinho da região do Vaud,
prestei atenção em conversas, contei algumas coisas, e visto que o
brilho da lua iluminava nosso caminho de volta e que meu pai, em
sua embriaguez, não parava de falar e de gesticular, eu me sentia
tão incrivelmente encantado como havia tempos não acontecia. As
imagens do passado me envolviam sem parar, o tio Konrad, Rösi
Girtanner, minha mãe, Richard e Erminia Aglietti, e eu as vi como
um belo álbum ilustrado, no qual nos admiramos com o quão belas
e perfeitas são todas as coisas ali estampadas e que, na realidade,
têm apenas metade desse encanto. Tudo aquilo havia passado por
mim, ficado para trás, quase esquecido, embora estivesse retido em
meu íntimo, de maneira nítida e perfeita: metade de uma vida,
guardada à revelia na memória.
Voltei a pensar em Elisabeth apenas quando chegamos em casa,
mais tarde, no momento em que meu pai emudeceu e dormiu. Ainda
ontem ela tinha me cumprimentado, eu a admirei e desejei
felicidades a seu noivo. Um longo tempo parecia ter se passado
desde então. Mas a dor acordou, misturou-se com a torrente das
lembranças revividas e sacudiu meu coração egoísta e mal
protegido como o vento föhn fustiga um chalé instável e deteriorado.
Não aguentei ficar em casa. Passei pela janela baixa, atravessei o
pequeno jardim junto ao lago, soltei o barco abandonado e remei em
silêncio noite pálida adentro. As montanhas envoltas por névoa
prateada faziam um silêncio solene ao meu redor, a lua quase cheia
decorava a noite azulada e por pouco não era alcançada pelo pico
do Schwarzen­stock. O silêncio era tamanho que eu conseguia ouvir
um leve marulhar da queda-d’água do distante Sennalpstock. Os
espíritos da terra natal e os espíritos da minha juventude se
tocavam com suas asas descoradas, preenchiam minha pequena
canoa e pressagiavam fervorosamente com mãos esticadas e
gestos dolorosos, incompreensíveis.
Qual tinha sido o significado da minha vida e qual o sentido de
tantas alegrias e tantas dores? Por que eu tivera sede pela verdade
e pelo belo, embora continuasse sequioso? Por que amei, com
teimosia e lágrimas, aquelas mulheres admiráveis, e por elas
sofri — eu, que hoje novamente curvo a cabeça com vergonha e
lágrimas por um amor triste? E por que Deus, inescrutável, me
marcou o coração com o ardente desejo por amor, uma vez que
determinou que eu vivesse solitário e pouco amado?
A água marulhava na proa e gotas prateadas pingavam dos
remos, as montanhas ao redor estavam próximas e silenciosas, a
fresca luz da lua vagava sobre a neblina dos desfiladeiros.
E os espíritos da minha juventude estavam ao meu redor, mudos,
me olhando questionadores. Para mim, era como se eu visse entre
eles também a bela Elisabeth, e ela teria me amado e teria sido
minha se eu tivesse chegado na hora certa.
Também tive a impressão de que o melhor a fazer
seria submergir em silêncio no lago pálido e ninguém perguntaria
por mim. Entretanto, remei mais rápido quando percebi que o bote
velho, estragado, estava furado. Fiquei com frio de repente e
apressei-me a voltar para casa e me deitar na cama. Fiquei lá,
cansado e desperto, refletindo sobre a vida, tentando encontrar o
que me faltava e o que seria necessário para viver de maneira mais
feliz, mais autêntica e para chegar mais perto do coração dos vivos.
Certamente eu sabia que a bondade e a alegria são a semente
do amor e que eu deveria começar a gostar de verdade das
pessoas, apesar da minha dor recente por Elisabeth. Mas como? E
de quem?
Foi então que me lembrei de meu velho pai, e percebi pela
primeira vez que nunca havia gostado dele da maneira correta.
Quando criança, atazanava sua vida; depois, fui embora; também o
deixei sozinho após a morte da minha mãe; me irritei muitas vezes
com ele, para finalmente quase esquecê-lo por completo. Imaginei-o
em seu leito de morte e eu, sozinho ao seu lado, órfão, assistindo a
sua alma voar para longe, aquela que sempre me foi estranha e por
cujo amor nunca me esforcei.
Dessa maneira comecei a difícil e doce arte de aprender não
junto de uma mulher bela e admirada, mas de um velho e estouvado
beberrão. Deixei de lhe dar respostas rudes, comecei a cuidar dele
na medida do possível, lia histórias de almanaques em voz alta e
contava sobre os vinhos que são cultivados e bebidos na França e
na Itália. Não pude desobrigá-lo do pouco de trabalho que fazia para
que não ficasse à míngua. Também não consegui acostumá-lo a
beber o trago da noite comigo em casa e não no bar. Tentamos
algumas vezes. Eu buscava o vinho e cigarros e me esforçava em
distrair o velho. Na quarta ou quinta noite, ele estava silencioso e
emburrado e, por fim, reclamou quando lhe perguntei o que era:
“Acho que você não quer mais deixar seu pai ir à taberna”.
“Nada disso”, respondi. “Você é o pai, e eu sou o filho, e é sua a
decisão do que fazer.”
Ele piscou para mim, tentando checar se era verdade, e então
pegou animado seu boné e fomos caminhando lado a lado até a
taberna.
Era evidente que meu pai se rebelaria contra uma companhia
mais prolongada, embora ele não dissesse nada a respeito. Eu
também senti vontade de aguardar distante dali o serenar de meu
conturbado estado de espírito. “O que você acha de eu sair em
viagem por esses dias de novo?”, perguntei ao velho. Ele coçou a
cabeça, ergueu os ombros tornados magros e deu um sorriso
maroto, esperando para ver minha reação: “Faça como quiser!”.
Antes de viajar, procurei alguns vizinhos e gente do convento e lhes
pedi que ficassem de olho nele. Também aproveitei um dia bonito
para subir o Sennalpstock. De seu pico semicircular e largo, pude
avistar montanhas e vales verdes, águas claras e a neblina de
cidades distantes. Quando jovem, tudo isso me trazia um forte
desejo, eu havia saído de casa para conquistar o belo e vasto
mundo, e agora ele estava novamente exposto diante de mim, tão
belo e tão estranho como nunca, e eu estava disposto a ir até ele
mais uma vez, a procurar pela terra da fortuna mais uma vez.
Para o bem dos meus estudos, havia muito eu me decidira ficar
em Assis por um período mais longo. Primeiro retornei à Basileia,
comprei o necessário, arrumei minhas poucas coisas e despachei-
as para Perúgia. Já eu fui apenas até Florença, e de lá caminhei
devagar e confortavelmente em direção ao Sul. No Sul, não é
preciso dominar arte nenhuma para conviver amistosamente com o
povo; a vida dessa gente está sempre escancarada e é tão simples,
livre e ingênua, que de cidadezinha em cidadezinha angaria-se uma
porção de amigos. Senti-me novamente acolhido e em casa, e
decidi que, mais tarde, na Basileia, procuraria pelo calor humano
não mais na alta sociedade, mas entre o povo simples.
Em Perúgia e Assis, meu trabalho histórico retomou interesse e
vida. Visto que a existência cotidiana ali era um prazer, meu ser
machucado logo começou a sarar e a criar novas pontes com a
vida. Minha senhoria em Assis, uma quitandeira falante e devotada,
ofereceu-me uma amizade calorosa depois de algumas conversas
sobre o santo e me considerou um católico fervoroso. Apesar de
injustificada, essa honra me trouxe a vantagem de poder conviver
de maneira mais próxima com as pessoas, pois estava livre da
suspeita da heresia, algo que se aplica a todos os forasteiros. A
mulher se chamava Annunziata Nardini, tinha trinta e quatro anos de
idade e era viúva, com medidas corporais vastíssimas e muito boa
educação. Aos domingos, trajando um vestido florido de cores
alegres, ela parecia a encarnação de um feriado, pois, além dos
brincos, usava também um colar dourado sobre o peito, com uma
série de medalhas de latão a tilintar e brilhar. Ela também carregava
um breviário com uma capa gravada em prata — difícil de usar, se o
quisesse — e um belo crucifixo preto e branco com correntinha de
prata, que ela conseguia manipular com mais agilidade. Quando se
sentava na loggetta, entre duas idas à igreja, desfiando para as
vizinhas espantadas os pecados das amigas ausentes, seu rosto
redondo e crente estampava a expressão comovedora de uma alma
em paz com Deus.
Visto que pronunciar meu nome era impossível, fui chamado
simplesmente de signor Pietro. Nas noitinhas belas, douradas,
sentávamos juntos na minúscula loggetta — vizinhos mais crianças
e gatos — ou na venda entre frutas, cestos de verduras, caixas de
sementes e linguiças defumadas expostas, contando uns aos outros
nossas experiências, discutindo perspectivas de colheita, fumando
um cigarro ou até comendo fatias de melão. Contei de são
Francisco, da história da porciúncula e da igreja do santo, de santa
Clara e dos Primeiros Irmãos. Ouviam-me com atenção, faziam
milhares de perguntas breves, enalteciam os santos e passavam a
falar dos acontecimentos sensacionais, das histórias de ladrões e
rusgas políticas, entre os assuntos preferidos. Gatos, crianças e
filhotes de cachorro brincavam e brigavam em meio a nós. De
vontade própria e para manter minha reputação em alta, vasculhei a
lenda à procura de histórias edificantes e comoventes, alegrando-
me por ter trazido, entre meus poucos livros, o Vida dos Patriarcas e
de outras pessoas santas, de Arnold, cujas anedotas inocentes eu
traduzia com pequenas variações a um italiano vulgar. Passantes
ficavam parados por um tempinho, escutavam, entravam na
conversa, e muitas vezes o grupo se reconfigurava três ou quatro
vezes durante a noite, apenas a sra. Nardini e eu erámos fixos e
nunca faltávamos. Eu mantinha meu vinho tinto no fiasco ao lado e
impressionava as pessoas pobres e que viviam modestamente com
meu potente consumo da bebida. Pouco a pouco, também as
meninas tímidas da vizinhança se tornaram mais confiantes e
participavam da conversa a partir da soleira da porta, aceitavam
santinhos de presente e começavam a acreditar na minha pureza, já
que eu não fazia piadas impróprias nem parecia estar me
importando com suas intimidades. Entre elas havia algumas de
olhos grandes, belezas de sonho, que pareciam ter saído de
quadros de Perugino. Eu gostava de todas elas e me alegrava com
sua presença brincalhona e bondosa, mas nunca estive apaixonado
por nenhuma, pois as belas eram tão semelhantes entre si que sua
beleza me parecia apenas um traço genético e não pessoal. Muitas
vezes Matteo Spinelli também participava, um rapaz jovem, filho do
padeiro, sujeito inteligente e divertido. Ele sabia imitar uma porção
de animais, tinha conhecimento de todos os escândalos e era
prodigalíssimo em ações atrevidas e espertas. Quando eu discorria
sobre lendas, ele prestava atenção com veneração e humildade
sem igual, mas, em seguida, divertia-se fazendo perguntas
maldosas, comparações e suposições sobre os santos padres num
tom aparentemente ingênuo, para decepção da quitandeira e franco
deleite dos meus espectadores.
Muitas vezes eu também ficava sentado sozinho com a sra.
Nardini, escutava suas falas edificantes e alegrava-me
despudoradamente com suas inúmeras fraquezas humanas. Não
lhe escapava nenhum erro ou pecado de seus próximos e, além de
desdenhá-los minuciosamente, de antemão indicava seus lugares
no Purgatório. Mas ela se afeiçoara a mim e me confiava mesmo as
menores experiências e observações, de maneira aberta e direta.
Após cada pequena compra que eu fazia, ela me perguntava o
quanto havia gastado e prestava atenção para que eu não fosse
prejudicado. Ela queria ouvir a história de vida dos santos e me
introduziu nos segredos da compra de frutas, do comércio de
verduras e hortaliças, e da cozinha. Certa noite, estávamos
sentados na pérgula decaída. Para o deleite das crianças e moças,
eu havia entoado uma canção suíça e soltado um iodelei. Elas
riram, imitaram o som da língua estrangeira e me mostraram como
meu pomo de adão subia e descia enquanto eu cantava. Foi então
que alguém começou a falar de amor. As moças deram risadinhas, a
sra. Nardini revirou os olhos e suspirou, sentimental, e por fim fui
compelido a narrar minhas próprias histórias. Não falei nada sobre
Elisabeth, mas contei sobre o passeio de canoa com Erminia Aglietti
e minha desastrada declaração de amor. Era estranho revelar essa
história que eu não havia dividido com ninguém, exceto com
Richard, para meu curioso grupo da Úmbria, diante das estreitas
vielas meridionais de pedra e das colinas, sobre as quais reluzia o
anoitecer vermelho e dourado. Falei sem muito refletir, segundo o
estilo das antigas novelas, mas meu coração estava ali e fiquei com
receio, secretamente, de que os espectadores fossem rir e zombar
de mim.
Ao terminar, porém, todos os olhos estavam fixos em mim,
condoídos.
“Um homem tão bonito”, exclamou uma moça, animadamente.
“Um homem tão bonito, com um amor infeliz.”
A sra. Nardini, entretanto, passou a mão macia e redonda sobre
o cabelo e disse: “Poverino!”.
Outra moça me ofereceu uma pera grande, e como eu lhe pedi
que desse a primeira mordida, ela o fez enquanto me olhava com
seriedade. Mas quando eu quis entregar a fruta para que as outras
também a mordessem, ela não deixou. “Não, coma você! É seu
presente, porque nos contou sua história triste.”
“Mas você certamente está amando outra”, disse um vinicultor
moreno.
“Não”, retruquei.
“Ah, você ainda ama essa Erminia malvada?”
“Agora amo são Francisco, e ele me ensinou a amar todas as
pessoas, vocês e a gente de Perúgia e todas as crianças aqui, e até
o amante de Erminia.”
Essa existência idílica foi sacudida por certo embaraço e perigo,
quando descobri que a boa signora Nardini nutria o ardente desejo
de que eu ficasse definitivamente por lá e me casasse com ela. O
pequeno caso me transformou num diplomata astuto, pois não era
nada fácil destruir esses sonhos sem estragar a harmonia e trincar a
adorável amizade. E eu também tinha de pensar no outro lado. Se
não fosse o sonho de minha escrita futura e o vazio ameaçador de
meus bolsos, eu teria permanecido. Talvez tivesse me casado com a
Nardini, por causa dos mesmos bolsos vazios. Mas não, o que me
impedia era a dor ainda não cicatrizada que sentia por Elisabeth e o
desejo de revê-la.
A rechonchuda viúva, ao contrário do esperado, aceitou a
situação. Quando parti, a despedida foi talvez mais difícil para mim
do que para ela. Larguei para trás muito mais do que tinha deixado
em casa, e minha mão nunca foi tantas vezes apertada por pessoas
tão queridas e de maneira tão calorosa do que quando disse adeus.
Elas me deram frutas, vinho, aguardente doce, pão e uma linguiça
para levar na carroça, e fiquei com a sensação rara de me separar
de amigos que não eram indiferentes à minha partida. Na hora, a
sra. Annunziata Nardini, com lágrimas nos olhos, me deu um beijo
em cada bochecha.
Antigamente eu acreditava que ser amado sem amar era um
prazer especial. Descobri então como esse amor oferecido, ao qual
não podemos retribuir, é constrangedor. Apesar disso, estava um
tantinho orgulhoso pelo fato de uma mulher estranha me amar e me
desejar por marido.
Essa pequena vaidade já fazia com que me recuperasse um
pouco. A sra. Nardini me dava pena, entretanto não desgostei da
coisa. Aos poucos, também fui percebendo que a felicidade tem
pouca relação com a concretização de desejos exteriores, e que os
sofrimentos de um jovem apaixonado, apesar de tão penosos, não
carregam nada de trágico. Sim, doía eu não ficar com Elisabeth.
Mas minha vida, minha liberdade, meu trabalho e meu modo de
pensar permaneceram intactos, e eu podia amá-la à distância com a
mesma intensidade de antes, a meu bel-prazer. Essas reflexões e,
mais ainda, a ingênua animação da minha vida durante os meses na
Úmbria tinham sido benfazejas. Sempre prestei atenção nas coisas
ridículas e engraçadas da vida, mas lhes estraguei a alegria com
meu sarcasmo. Gradualmente passei a ver o humor das coisas e
pareceu-me cada vez mais possível e fácil fazer as pazes com
minhas estrelas e degustar uma ou outra iguaria da vida.
Em geral é assim que as pessoas se sentem quando regressam
da Itália. Desdenhamos de princípios e preconceitos, sorrimos
tolerantes, andamos com as mãos nos bolsos e nos sentimos como
alguém que sabe viver muito bem a vida. Por um tempo, estivemos
em meio à calorosa e acolhedora vida popular do Sul e pensamos
que as coisas deveriam continuar assim em casa. Aconteceu o
mesmo comigo quando retornei da Itália, e naquela época, de
maneira muito intensa. Quando cheguei à Basileia e reencontrei a
vida antiga, dura, sem estar remoçada ou modificada, desci um
degrau da minha animação, desconcertado e irritado. Mas algo do
que eu havia ganhado renasceu, e desde então meu barquinho
nunca mais navegou por águas claras nem turvas sem ao menos
içar, atrevido e confiante, uma bandeirola colorida.
Minhas ideias também se modificaram aos poucos. Deixei os
anos de juventude sem maior pesar e senti-me amadurecer no
tempo em que aprendemos a vislumbrar a própria vida como um
pequeno percurso e a nós mesmos como peregrinos, cujas
caminhadas e cujo desaparecimento, no final, não sacodem a terra.
Mantemos em vista um objetivo de vida, um sonho preferido, mas
nunca mais nos sentimos indispensáveis e, nesse meio-tempo, nos
permitimos o ócio com alguma frequência, para — sem peso na
consciência — deixar de lado a jornada do dia, deitar na grama,
assobiar uma melodia e apreciar o presente sem segundas
intenções. Até então, sem nunca ter rezado para Zaratustra, eu
tinha sido um super-homem e nunca deixara de me autoglorificar e
de desdenhar dos inferiores. Passei a enxergar cada vez melhor
que não há limites rígidos e que a vida entre os pequenos,
oprimidos e pobres não apenas é igualmente diversificada, como
geralmente também mais calorosa, verdadeira e exemplar do que
aquela dos privilegiados e notáveis.
Aliás, cheguei à Basileia justo a tempo de participar da primeira
reunião noturna no lar da então casada Elisabeth. Eu estava
contente, ainda radiante e bronzeado da viagem, e trazia uma
porção de pequenas recordações divertidas. A bela mulher me
agraciou com uma elegante intimidade e passei a noite inteira
desfrutando da minha felicidade por ter sido poupado do vexame de
uma corte fora de hora. A despeito da minha experiência italiana, eu
ainda nutria uma leve desconfiança pelas mulheres, como se elas
se alegrassem macabramente pelos desesperançados sofrimentos
dos homens por elas apaixonados. A mais clara exposição de um
estado tão desonroso e constrangedor me foi dada por uma
pequena história da vida escolar infantil, que ouvi da boca de um
menino de cinco anos. O jardim de infância que frequentava prezava
o seguinte costume estranho e simbólico: se um garoto tivesse feito
uma travessura especialmente repreensível e devesse levar umas
palmadas, seis meninas eram designadas para segurar o garoto na
embaraçosa posição sobre um banco a fim de que ele recebesse
seu castigo. Visto que tal permissão para segurá-lo era considerada
um divertimento e um grande privilégio, apenas as meninas mais
comportadas — como encarnações temporárias da virtude —
participavam do deleite macabro. A história infantil me fez pensar e
chegou a se infiltrar algumas vezes em meus sonhos; ao menos
assim sei como o coração se sente infeliz numa situação dessas.
7

Como no passado, eu não respeitava minhas escrevinhações.


Conseguia viver do meu trabalho, economizar um pouco e vez ou
outra mandar algum dinheiro para o meu pai. Ele o levava animado
até a taberna, me enaltecia ali de todas as maneiras e pensava até
em retribuir a ação. É que certa vez eu lhe havia dito que costumava
ganhar meu pão com artigos de jornal. Ele me considerava redator
ou repórter, como aqueles que os diários locais costumam
empregar, e então ditou três cartas paternais a mim, nas quais me
informava de eventos que lhe pareciam importantes e os quais ele
acreditava que me renderiam matérias e dinheiro. Uma vez foi o
incêndio de um celeiro, depois a queda de dois turistas na
montanha, e a terceira, o resultado de uma eleição na escola. Essas
informações já vinham redigidas num grotesco estilo supostamente
jornalístico e me alegraram de verdade, pois eram sinais de uma
ligação simpática entre nós e as primeiras cartas que eu recebia de
casa havia anos. Elas me divertiram também como zombaria
involuntária da minha escrita; pois mês a mês eu comentava alguns
livros cuja publicação tinha menos importância e consequências do
que aqueles acontecimentos do campo.
Naquela época, foram lançados dois livros cujos autores,
extravagantes jovens poetas, eu conhecera em Zurique. Um deles
tinha passado a viver em Berlim e sabia contar muitas coisas
condenáveis de cafés e bordéis da cidade grande. O segundo tinha
construído para si uma luxuosa eremitagem nos arredores de
Munique e oscilava, de maneira desdenhosa e desesperançada,
entre auto-observações neurastênicas e ideias espíritas. Tive de
resenhar os livros e, claro, trocei inocentemente de ambos. Do
neurastênico recebi apenas uma carta arrogante de estilo
verdadeiramente empolado. O berlinense, porém, armou escândalo
numa revista, achou-se incompreendido em suas sérias intenções,
apoiou-se em Zola e transformou minha crítica insensível numa
reprimenda não apenas contra mim, mas contra o espírito
presunçoso e prosaico dos suíços. O homem talvez tivesse tido em
Zurique, naquela época, o único tempo mais ou menos saudável e
honrado de sua vida literária.
Eu nunca havia sido especialmente patriota, mas a coisa me
pareceu berlinense demais, e respondi ao insatisfeito com uma
longa epístola, na qual não ocultei meu desdém pela incensada
modernidade da metrópole.
A briga me fez bem e me obrigou a refletir mais uma vez sobre
minha concepção da moderna vida cultural. O trabalho foi cansativo
e tedioso, revelando poucos resultados edificantes. Meu livrinho não
perde nada se eu me calar a seu respeito.
Ao mesmo tempo, essas considerações me compeliam a pensar
de maneira mais insistente sobre mim e sobre a obra da minha vida,
longamente planejada.
Como é sabido, o meu desejo era aproximar, por meio de uma
lírica grandiosa, a vida muda da natureza do homem
contemporâneo e fazê-lo apreciar essa vida. Eu queria ensiná-lo a
escutar a pulsação da terra, a participar da vida do todo e não
esquecer, no fluxo de suas pequenas histórias, que não somos
deuses nem criamos a nós mesmos, mas somos filhos e parte da
Terra e do todo cósmico. Eu queria lembrar que, assim como as
odes dos poetas e os sonhos de nossas noites, também as marés,
os mares, as nuvens em movimento e as tempestades são símbolos
e depositários da nostalgia que abre suas asas entre o céu e a terra
e cujo objetivo é a certeza indubitável do direito à vida e da
imortalidade de tudo que é vivo. O núcleo mais interno de todo ser
está seguro desses direitos, é filho de Deus e descansa sem medo
no colo da eternidade. Mas aquilo que carregamos de ruim, doente,
pervertido dentro de nós contesta a vida e acredita na morte.
Mas eu também queria ensinar aos seres humanos a encontrar,
no amor fraterno pela natureza, as fontes da alegria e os fluxos da
vida; eu queria pregar a arte da observação, da peregrinação e do
desfrute, o prazer pelo presente. Eu queria fazer com que
montanhas, mares, ilhas verdes falassem a vocês numa vigorosa e
sedutora linguagem e queria obrigá-los a ver a vida
imensuravelmente múltipla e vibrante florescer dia após dia fora de
suas casas e de suas cidades. Eu queria que vocês se
envergonhassem de saber mais sobre guerras estrangeiras, moda,
bisbilhotices, literatura e artes do que da primavera que desabrocha
sua atividade irrefreável, do que do rio que corre por baixo de suas
pontes, e do que das florestas e maravilhosos prados que sua
ferrovia atravessa. Eu queria lhes contar sobre a corrente dourada
de prazeres inesquecíveis que, solitário e melancólico, encontrei
neste mundo, e queria que vocês — que talvez sejam mais felizes e
animados do que eu — descobrissem este mundo com uma alegria
ainda maior.
E acima de tudo, eu queria colocar o belo segredo do amor em
seus corações. Eu esperava ensiná-los a se tornarem irmãos de
todos os viventes justos, e que de tão insuflados de amor não
temessem mais o sofrimento nem a morte, mas os recebessem
grave e fraternalmente quando fosse a hora.
Esperava dizer tudo isso não em hinos e elaboradas canções,
mas de maneira simples, verdadeira e objetiva, com seriedade e
graça, como um viajante que retorna à casa e conta o que viu para
os seus.
Eu queria — desejava — esperava: tudo isso soa engraçado.
Ainda aguardo o dia em que muitos quereres se transformem num
plano e numa estratégia. Mas ao menos eu havia reunido muitas
coisas. Não apenas na cabeça, mas também numa porção de
cadernetas fininhas, que carregava na bolsa durante as viagens e
caminhadas, e das quais uma era completamente preenchida a
cada duas semanas. Foi assim que tomei notas breves sobre tudo o
que me foi visível no mundo, sem refletir nem estabelecer relações.
Eram cadernetas de esboços como as de um desenhista e
continham em poucas palavras uma porção de coisas reais:
imagens de vielas e paisagens; silhuetas de montanhas e de
cidades; conversas entreouvidas de camponeses, jovens
aprendizes, mulheres do mercado; e também previsões do tempo;
notas sobre luminosidades, ventos, chuvas, rochas, plantas,
animais, voos de pássaros, formações de ondas, variações
cromáticas do mar e formas das nuvens. Vez ou outra criei e
publiquei alguns contos a partir disso, como estudos da natureza e
das peregrinações, mas sem nenhuma relação com as coisas
humanas. Para mim, a história de uma árvore, de uma vida animal
ou do percurso de uma nuvem era interessante o suficiente, mesmo
sem interferência humana.
Embora eu estivesse consciente do fato de que uma criação
poética maior, na qual nenhum ser humano aparece, era uma
aberração, durante anos fiquei preso a esse ideal e nutri a sombria
esperança de que talvez uma grande inspiração viesse a superar
essa impossibilidade. Depois aceitei, definitivamente, que tinha de
povoar minhas belas paisagens com pessoas e que essas jamais
seriam representadas de maneira suficientemente natural e fiel.
Havia muita coisa a ser trabalhada nesse sentido, e continuo
tentando. Até então, as pessoas em geral eram um todo único e, no
fundo, estranhas para mim. Há pouco aprendi que, em vez de
conhecer uma humanidade abstrata, vale muito mais a pena
conhecer e estudar os indivíduos, e minhas cadernetas e minha
memória se preencheram com imagens totalmente novas.
O início desse estudo foi muito animador. Saí de minha
indiferença ingênua, e meu interesse por algumas pessoas foi
despertado. Vi quantos aspectos evidentes tinham permanecido
estranhos a mim e vi também o quanto as muitas peregrinações e
observações tinham aberto meus olhos, os tornando mais afiados. E
como desde sempre tive uma predileção por crianças, gostava de
ficar entre elas e o fazia amiúde.
De todo modo, observar nuvens e ondas foi mais prazeroso do
que estudar pessoas. Percebi, com assombro, que o ser humano se
diferencia do restante da natureza principalmente por uma
deplorável trama de mentiras que o envolve e protege. Em pouco
tempo observei o mesmo fenômeno em todos os meus conhecidos,
pois todos precisam apresentar uma personalidade bem definida,
embora ninguém conheça exatamente o próprio ser. E com
sentimentos estranhos percebi a mesma coisa em mim e larguei
mão de querer chegar ao âmago das pessoas. Para a maioria, a
trama era muito mais importante. Encontrei-a já nas crianças, muitas
das quais, de maneira consciente ou inconsciente, preferiam
mimetizar um papel a se revelar de maneira totalmente franca e
instintiva.
Depois de algum tempo, fiquei com a impressão de que não
estava fazendo mais progressos e que me perdia em minúcias
insignificantes. Primeiro, procurei o erro em mim, mas logo não pude
mais esconder que estava decepcionado e que ao meu redor não
havia as pessoas que procurava. Eu não precisava de detalhes
interessantes, mas de tipos — que não encontrava nem entre os
acadêmicos nem nas pessoas da sociedade. Com nostalgia, pensei
na Itália e nos poucos amigos e acompanhantes de minhas muitas
peregrinações, os jovens aprendizes.10 Eu havia caminhado muito
em sua companhia, encontrando entre eles muitos garotos incríveis.
Não valia a pena ir atrás de albergues ou de algumas
espeluncas. A porção de desordeiros em trânsito não me
interessava. Portanto, fiquei novamente um tempo sem saber o que
fazer, me acerquei das crianças e estudei bastante nos bares, onde
naturalmente também não havia nada de útil. Passaram-se algumas
semanas tristes, pois eu duvidava de mim mesmo, considerava
minhas esperanças e meus desejos ridiculamente exagerados, vivia
muito tempo fora de casa e metade das noites mergulhado no vinho.
Naquela época, algumas pilhas de livros voltaram a se formar
sobre minhas mesas. Gostaria de mantê-los, em vez de levá-los ao
sebo, mas não havia mais espaço em meus armários. Para
finalmente dar um jeito nisso, procurei uma pequena marcenaria e
pedi ao encarregado que viesse tirar medidas para fazer uma
prateleira na minha casa.
Ele veio — um homem pequeno, lento, de modos corretos; ele,
que fedia um pouco a cola, mediu o cômodo, ajoelhou-se no chão,
esticou a trena até o teto e anotou um número após o outro,
cuidadosamente, com algarismos bem desenhados em seu bloco de
notas. Enquanto trabalhava, aconteceu de trombar sem querer com
uma poltrona cheia de livros. Alguns volumes caíram e ele se
abaixou para levantá-los. Entre eles havia um pequeno dicionário de
bolso do jargão dos jovens aprendizes. É possível encontrar a
pequena brochura em quase todos albergues de artesãos, um
livrinho bem-feito e gracioso.
O marceneiro, quando viu o título tão seu conhecido, olhou
curioso para mim, meio divertido e meio desconfiado.
“O que foi?”, perguntei.
“Perdão, é que estou vendo um livro que também conheço. O
senhor realmente estudou isso?”
“Aprendi a linguagem na estrada”, respondi, “mas às vezes é
preciso conferir uma expressão.”
“Verdade”, exclamou ele. “O senhor já pegou alguma vez no
batente?”
“Não do jeito que você está pensando. Mas já peregrinei bastante
por aí e passei noites em algumas espeluncas.”
Enquanto isso, ele tinha reempilhado os livros e estava prestes a
ir embora.
“E por onde o senhor viajava nessa época?”, perguntei a ele.
“Fui daqui a Koblenz e mais tarde desci até Genebra. Não foi
minha pior época.”
“O senhor também esteve preso algumas vezes?”
“Só uma vez, em Durlach.”
“Precisa contar isso para mim, se quiser. Vamos nos ver mais
uma vez e tomar uma cerveja?”
“Melhor não, senhor. Mas se passar por minha casa em algum
momento depois do expediente e nos cumprimentar, então sim.
Espero que o senhor não esteja querendo brincar comigo.”
Alguns dias mais tarde, era noite de portas abertas na casa de
Elisabeth e fiquei parado na rua pensando se não seria melhor
visitar meu marceneiro. Dei meia-volta, deixei em casa o casaco de
sair e fui até lá. A oficina já estava fechada e escura, percorri aos
tropeços um corredor escuro e um pátio estreito, subi e desci as
escadas do prédio dos fundos e achei por fim uma plaquinha com o
nome do artesão presa a uma das portas. Entrando, caí direto numa
cozinha exígua, onde uma mulher magra preparava o jantar e ao
mesmo tempo tomava conta de três crianças, que davam vida ao
lugar e faziam bastante barulho. Espantada, a mulher me levou ao
próximo cômodo, onde o marceneiro estava sentado junto à janela,
na penumbra, com o jornal. Ele resmungou, pensativo, visto que no
escuro me tomou por um cliente inoportuno, daí me reconheceu e
me estendeu a mão.
Visto que ele estava espantado e constrangido, dirigi-me às
crianças; elas fugiram de mim em direção à cozinha e fui atrás.
Quando vi a mulher preparando um prato com arroz, lembranças da
cozinha da minha padrona úmbrica foram despertadas, e eu a
acabei ajudando. Em geral, é nosso costume cozinhar demais o
precioso arroz até ele se tornar uma espécie de papa, sem gosto de
nada e pastoso, desagradável de comer. O infortúnio já estava em
marcha também naquela cozinha, mas consegui salvar a comida no
último minuto ao pegar a panela e a escumadeira e tomar a frente
do preparo. A mulher se resignou e ficou admirada, o arroz deu
certo, nós o servimos, acendemos a lâmpada e também fui servido.
Naquela noite, a mulher do marceneiro entabulou comigo
conversas tão detalhadas sobre questões culinárias que o marido
quase não conseguiu falar e tivemos de adiar para outra ocasião as
histórias sobre suas aventuras de jovem aprendiz. Aliás, essas
pessoas simples logo perceberam que eu era alguém de outra
classe social apenas exteriormente; na verdade, eu era apenas filho
de um camponês e de um povo pobre. Dessa maneira, já na
primeira noite ficamos amigos e confidentes. Pois da mesma
maneira que enxergavam em mim seu igual, eu sentia no lar
modesto a atmosfera caseira da gente simples. As pessoas ali não
tinham tempo para firulas, poses, comédias. Para eles, a vida dura,
pobre, era boa e bastante satisfatória mesmo sem o pequeno manto
da educação formal e dos interesses elevados, não precisando ser
enfeitada com belos discursos.
Comecei a visitá-los cada vez com mais frequência, e na casa do
marceneiro eu me esquecia não só das misérias da sociedade como
também de minha tristeza e necessidades. Era como se eu
encontrasse ali guardado um pedaço da minha infância,
prosseguindo a vida que, em sua época, tinha sido interrompida
pelos padres quando me enviaram à escola.
Curvado sobre um mapa de estilo antigo, já danificado e
amarelado, o marceneiro acompanhava comigo as suas e as
minhas viagens, e nos alegrávamos com cada portão de cidade e
cada viela que ambos conhecíamos, recitávamos piadas de jovens
aprendizes e às vezes cantávamos várias das canções joviais dos
artesãos viajantes. Discutimos sobre as preocupações com o
trabalho, a casa, os filhos, as coisas terrenas, e gradualmente
aconteceu de o marceneiro e eu trocarmos os papéis
delicadamente; eu me tornava o agradecido, e ele, o doador e
professor. Era um alívio o fato de eu estar rodeado ali não pela
atmosfera dos salões, mas pela realidade.
Entre seus filhos, a menina de cinco anos chamava a atenção
por sua delicadeza. Chamava-se Agnes, mas atendia por Agi, era
loira, pálida e tinha membros finos, tímidos olhos grandes e um
delicado acanhamento no seu jeito de ser. Certo domingo, quando
eu quis buscar a família para um passeio, Agi estava doente. A mãe
ficou com ela e nós saímos caminhando devagar em direção à
cidade. Atrás da igreja de Santa Margarete, nos sentamos num
banco, as crianças foram colecionar pedras, flores e besouros, e
nós, homens, observávamos os gramados do verão, o cemitério e o
perfil belo e azulado das cordilheiras do Jura. O marceneiro estava
cansado, abatido e parecia preocupado.
“Qual o problema, mestre?”, perguntei, quando as crianças
estavam longe o suficiente. Ele me encarou com uma expressão
perdida e triste.
“Você não está vendo?”, ele começou. “A Agi vai morrer. Já sei
faz tempo e me espantei por ter durado tanto tempo. Ela sempre
teve a morte nos olhos. Mas agora temos de enfrentar isso.”
Comecei a consolá-lo, mas logo decidi parar.
“Veja”, ele sorriu, triste. “Você também não acredita que a menina
vai sobreviver. Não sou nenhum carola, sabe, e também só vou à
igreja umas poucas vezes por ano, mas estou pressentindo que
Deus quer dar uma palavrinha comigo agora. Ela é somente uma
menina, nunca foi saudável, mas, sabe-se lá o motivo, sempre foi
minha preferida.”
As crianças voltaram correndo, aos gritos e cheias de pequenas
perguntas. Elas me rodearam, quiseram saber o nome das flores e
das folhas e, por fim, ouvir histórias. Contei-lhes sobre as flores,
árvores e arbustos que, como as crianças, têm alma e um anjo. O
pai também prestou atenção, sorriu e de vez em quando confirmou
silenciosamente o relato. Vimos as montanhas se tornarem mais
azuis, escutamos os sinos ao entardecer e voltamos para casa. Um
orvalho vermelho deitava-se sobre os gramados, as longínquas
torres da catedral, pequenas e finas, espetavam o ar quente; no
céu, o azul do verão se transmutava em lindos tons de verde e
dourado; as árvores produziam sombras compridas. Os pequenos
estavam cansados e tinham silenciado. Pensavam nos anjos dos
botões de papoulas, cravos e campânulas, enquanto nós, adultos,
pensávamos na pequena Agi, cuja alma já estava pronta a ganhar
asas e deixar nosso pequeno e amedrontado grupo.
Nas duas semanas seguintes, tudo correu bem. A menina
parecia se recuperar, conseguia deixar a cama por algumas horas e
parecia mais linda e divertida que nunca em meio a seus
travesseiros frescos. Depois vieram algumas noites febris e
passamos a ver — sem falar mais a respeito — que a criança seria
nossa hóspede por apenas mais algumas semanas ou dias.
Somente uma vez seu pai resolveu tocar no assunto. Ele estava na
oficina. Eu o vi remexer no estoque de madeiras e soube de
imediato que ele estava à procura de tábuas para fazer um caixão
infantil.
“Afinal, deve acontecer daqui a pouco”, ele disse. “E assim,
prefiro trabalhar nisso sozinho, depois do expediente.”
Eu estava sentado numa mesa, enquanto ele trabalhava em
outra. Depois de aplainar meticulosamente as madeiras, ele as
apresentou para mim com uma espécie de orgulho. Tratava-se de
uma madeira de pinho bonita, de crescimento saudável e imaculada.
“Não quero meter pregos, mas encaixar direitinho as partes a fim
de fazer uma peça boa e durável. Mas por hoje é suficiente, vamos
até minha mulher.”
Os dias se passaram, quentes, maravilhosos dias de alto verão,
e a cada vez eu ficava uma ou duas horas em companhia da
pequena Agi contando-lhe dos belos gramados e das belas
florestas, tomava sua mãozinha de criança, leve e estreita, na minha
mão larga, aspirando com a alma o encanto amoroso, límpido, que a
envolveu até o último dia.
Depois, observamos, amedrontados e tristes, o corpinho magro
reunir forças mais uma vez para lutar contra a poderosa morte, que
a dominou rápida e facilmente. A mãe se manteve em silêncio e
forte, o pai estava curvado sobre a cabeceira da cama e se
despediu centenas de vezes, acariciou o cabelo loiro e beijou sua
preferida, morta.
Houve a cerimônia do enterro, breve e discreta, e as noites
penosas, em que as crianças choravam nas suas camas. Houve as
belas caminhadas no cemitério, onde plantamos flores no túmulo
recente e, sem conversar, nos sentávamos lado a lado no banco dos
jardins frescos e pensávamos em Agi e observávamos com olhos
que não os de costume a terra onde nossa querida estava
enterrada, e as árvores e o gramado que cresciam por cima, e os
pássaros, cujas brincadeiras soavam livres e alegres através do
silencioso cemitério.
Em paralelo, o rígido dia de trabalho seguia seu curso, as
crianças voltaram a cantar, se estapeavam, riam e queriam escutar
histórias e, sem perceber, nos acostumamos a não ver nunca mais
nossa Agi e a saber de um pequeno e belo anjo no céu.
Por causa disso tudo, não fruí mais da companhia do professor e
poucas vezes visitei a casa de Elisabeth, sentindo-me
estranhamente perdido e angustiado na torrente barulhenta das
conversas. Fui visitar as duas casas e encontrei, em ambas, as
portas fechadas, visto que há tempos todos estavam no campo. Foi
apenas então que percebi, com espanto, que devido à amizade com
o marceneiro e à doença da menina, eu havia me esquecido
totalmente da estação quente do ano e do período de férias.
Antigamente, teria sido absolutamente impossível para mim passar
julho e agosto na cidade.
Despedi-me por um breve período e iniciei uma caminhada pela
Floresta Negra, por Bergstraße e Odenwald. No meio do percurso,
senti um prazer incomum em enviar cartões-postais de lugares
bonitos aos filhos do marceneiro da Basileia; em todos esses
lugares, eu ficava imaginando tudo aquilo que mais tarde eu lhes
contaria, e ao seu pai, sobre a viagem.
Em Frankfurt, decidi me permitir mais alguns dias de viagem. Em
Aschaffenburg, Nuremberg, Munique e Ulm desfrutei com renovado
prazer das obras da arte antiga e, por fim, fiz uma parada totalmente
inocente em Zurique. Até aquele momento, durante todos os anos,
eu havia evitado a cidade como se fosse um túmulo, mas então
percorri as ruas conhecidas, fui rever os velhos bares e jardins, e
consegui relembrar sem dor dos belos anos do passado. A pintora
Erminia Aglietti tinha se casado e me deram seu endereço. Fui
visitá-la no fim da tarde, li o nome do marido na porta de entrada,
olhei para as janelas no alto e hesitei entrar. Nesse instante, os
tempos de outrora reavivaram-se em mim e, com uma leve dor, meu
amor juvenil voltou a despertar de seu sono. Dei meia-volta e não
estraguei a bela imagem da amada mulher italiana com um
reencontro inútil. Continuando a caminhar, fui até os jardins do lago
onde os artistas haviam organizado sua festa de verão, também
ergui o olhar para a casinha em cuja mansarda eu passara três anos
bons, e entre todas as lembranças o nome de Elisabeth se formou
sem querer em meus lábios. O novo amor era ainda mais forte do
que o antigo. Mas também era mais tranquilo, discreto e agradecido.
Para manter minha boa disposição, peguei um bote e remei bem
lentamente no lago quente e claro. A noite estava caindo e no céu
havia uma única nuvem, alvíssima. Eu não a perdia de vista e a
saudei com um aceno de cabeça, pensando no amor às nuvens da
minha meninice, em Elisabeth e também naquela nuvem pintada por
Segantini, diante da qual um dia vi Elisabeth tão bela e devotada. O
amor por ela — intocado por palavra e comportamento impuros —
nunca tinha sido tão prazeroso e purificador como então, ao
vislumbrar a nuvem, quando repassei com tranquilidade e gratidão
todas as coisas boas da minha vida e, no lugar dos transtornos e
paixões do passado, senti apenas a antiga nostalgia da infância,
também ela mais madura e tranquila.
Sempre fui acostumado a cantarolar alguma coisa junto ao ritmo
suave das remadas. Comecei a cantar em voz baixa e apenas então
percebi que eram versos. Eles ficaram na minha memória e os
anotei em casa, como recordação da bela noite no lago em Zurique.

Tal a nuvem branca


que paira no céu profundo,
leve e bela e distante
és tu, Elisabeth.

A nuvem corre e passa


mal a contestas
mas em meio ao teu sonho
reaparece em noites funestas.

Corre e passa tão feliz


que então sem ansiedade
por uma nuvem branca
embalas doce saudade.11

Na Basileia, encontrei uma carta de Assis esperando por mim. Era


da sra. Annunziata Nardini, e cheia de notícias alegres. Ela tinha
encontrado por fim um segundo marido! Aliás, o melhor a fazer é
apresentá-la integralmente.

Mui honrado e estimado sr. Peter!

Permita a sua fiel amiga a liberdade de lhe escrever esta carta.


Deus houve por bem me ofertar uma grande felicidade e eu
quero convidá-lo para meu casamento em doze de outubro. Ele
se chama Menotti e, embora tenha pouco dinheiro, é carinhoso
comigo e já trabalhou com frutas no passado. Ele é bonito,
embora não tão alto nem tão bonito quanto o senhor! Ele venderá
frutas na piazza, enquanto eu ficarei na loja. A bela Marietta, do
vizinho, também vai se casar, mas apenas com um pedreiro de
fora.
Pensei no senhor todos os dias e contei a seu respeito para
muitas pessoas. Gosto muito do senhor e também do Altíssimo, a
quem ofertei quatro velas em sua memória. Menotti também
ficará muito contente se o senhor vier ao casamento. Vou proibi-
lo de ser antipático consigo. Infelizmente se mostrou que o
pequeno Matteo Spinelli é realmente malvado, como sempre
falei. Ele me roubou limões. Agora o levaram daqui porque
roubou doze liras do pai, o padeiro, e porque envenenou o
cachorro do mendigo Giangiacomo.
Que Deus, nosso Senhor, o abençoe. Tenho muitas saudades
suas.

Sua devotada e fiel amiga,


Annunziata Nardini

Pós-escrito

Nossa colheita foi mediana. As uvas estavam muito ruins, as


peras também não deram o suficiente, mas os limões foram
muito abundantes, apenas tivemos de vendê-los barato.
Aconteceu um acidente horrível em Spello. Um jovem matou o
irmão com um ancinho, não se sabe o motivo, mas certamente
tinha inveja do outro, embora fosse seu próprio irmão.

Infelizmente não pude aceitar o convite sedutor. Redigi minhas


felicitações e manifestei a intenção de fazer uma visita no início do
ano seguinte. Em seguida, fui com a carta e um presente trazido de
Nuremberg para as crianças até meu mestre marceneiro.
Lá chegando, encontrei uma grande e inesperada mudança.
Longe da mesa, diante da janela, uma figura grotesca, torta, estava
encarapitada sobre uma cadeira, com uma bandeja ajeitada na
frente do peito, como um cadeirão de criança. Tratava-se de Boppi,
irmão da mulher do marceneiro, um adulto semiparalítico, que não
havia encontrado lugar nenhum para ficar após a morte da velha
mãe. Contrariado, o marceneiro acolheu-o, e a presença constante
do inválido doente aterrorizava a casa abalada. Ninguém havia se
acostumado a ele; as crianças o temiam, a mãe sentia pena, estava
constrangida e abatida, o pai manifestava abertamente o mau
humor.
Sobre a feia corcunda dupla e sem pescoço, Boppi tinha a
cabeça grande, de traços fortes, testa larga, nariz grande e a boca
bonita, sofredora. Os olhos eram claros, mas parados e um pouco
ansiosos, e as mãos pequenas e curiosamente delicadas ficavam o
tempo todo apoiadas, brancas e imóveis, sobre a estreita bandeja.
Eu também fiquei incomodado e confuso com o pobre intruso e, ao
mesmo tempo, senti vergonha em ter de ouvir o marceneiro me
contar a curta história do doente, enquanto este estava ali ao lado,
olhando para as mãos, sem que ninguém lhe dirigisse a palavra.
Embora fosse deficiente desde o nascimento, tinha conseguido
frequentar o ensino básico e durante muitos anos trabalhara um
pouco no ofício da cestaria, até que repetidos ataques de gota o
paralisaram parcialmente. Havia anos ele se mantinha somente
acamado ou ficava sentado em sua cadeira especial, preso entre
almofadas. A mulher sabia que no passado ele cantara muito e bem
para si mesmo, mas havia anos não o ouvia e naquela casa também
nunca tinha soltado a voz. E enquanto tudo isso era relatado e
debatido, ele ficou sentado lá, olhando para a frente. Não me senti
bem, fui embora logo depois e permaneci distante da casa nos dias
seguintes.
Durante toda a minha vida fui forte e saudável, nunca acometido
por nenhuma doença séria, e sempre considerei os sofredores, ou
seja, os inválidos, com pena, mas também com ligeiro desdém;
naquele instante eu não estava gostando nada que meu confortável
e alegre convívio na família do artesão fosse atrapalhado pela
desagradável carga dessa miserável existência. Por isso, fui
adiando uma segunda visita dia após dia e fiquei pensando, em vão,
em como conseguir tirar o paralítico Boppi daquela casa. Deveria
haver alguma possibilidade de interná-lo, com custos reduzidos,
num hospital ou numa instituição de caridade. Por diversas vezes
fiquei com vontade de discutir com o marceneiro a respeito, mas me
envergonhava de tocar no assunto sem ter sido solicitado e tinha um
medo infantil de topar com o doente. A cada vez sentia repugnância
em vê-lo, em dar a mão a ele.
Assim, faltei num domingo. No segundo domingo, eu já estava
prestes a sair para a cordilheira do Jura com um trem matinal, mas
acabei constrangido por minha própria covardia; fiquei em casa e
depois do almoço segui até o marceneiro.
Cumprimentei Boppi com aversão. O marceneiro, irritado, propôs
um passeio; ele estava, como me disse, farto da tragédia constante
e eu pude relatar minhas sugestões. A mulher não queria sair, mas
o deficiente pediu que ela nos acompanhasse, visto que ficava bem
sozinho. Disse que, se ele tivesse um livro e um copo de vinho ao
seu lado, tudo bem que o trancássemos e o deixássemos para trás,
sem maiores preocupações.
E nós, que nos considerávamos todos gente absolutamente
razoável e de bom coração, trancamos Boppi e fomos passear!
Felizes, nos divertimos com as crianças, nos alegramos com o belo
sol dourado do outono e não sentimos vergonha, e o coração de
ninguém estava partido por termos deixado o paralítico em casa
sozinho! Estávamos, sim, aliviados pela sua ausência temporária e
respirávamos aliviados o ar claro e aquecido pelo sol, passando a
impressão de uma família agradecida e honesta, que aproveita o
domingo sagrado com sensatez e gratidão.
Apenas quando paramos num mirante para tomar um copo de
vinho à mesa do jardim do restaurante é que o marceneiro se referiu
a Boppi. Ele reclamou da visita incômoda, lamentou a falta de
espaço e o aumento das despesas da casa e encerrou a conversa
sorrindo, com a observação: “Bem, aqui pelo menos a gente pode
se divertir por mais uma hora sem que ninguém nos perturbe”.
Enquanto eu ouvia essas palavras impensadas, vi subitamente
diante de mim o pobre doente, suplicando e sofrendo, ele, que não
amávamos, que pensávamos em colocar para fora e que agora
estava abandonado por nós, trancado dentro da casa à tardinha,
solitário e triste. Lembrei-me que o dia logo começaria a escurecer e
que ele não teria como acender uma luz ou se aproximar da janela.
Portanto, deixaria o livro de lado e ficaria sentado a sós no lusco-
fusco, sem nenhuma conversa para passar o tempo, enquanto
estávamos ali tomando vinho, rindo e nos divertindo. E me lembrei
de quando contei aos vizinhos de Assis sobre são Francisco e de
como alardeei que ele havia me ensinado a amar todos os seres
humanos. Para que eu tinha estudado a vida do santo, aprendido de
cor sua maravilhosa canção do amor e procurado suas pistas nas
colinas da Úmbria, se naquele instante um homem desamparado
encontrava-se à mercê e tinha de sofrer, embora eu estivesse ciente
disso e pudesse consolá-lo?
A mão de um poderoso ser invisível pousou sobre meu coração,
apertou-o e preencheu-o com tanta vergonha e dor que tremi e me
senti derrotado. Sabia que Deus estava querendo dar uma palavra
comigo naquele instante.
“Você, poeta”, ele disse, “você, discípulo do úmbrico; você,
profeta, que quer ensinar o amor aos homens e torná-los felizes!
Você, sonhador, que quer ouvir minha voz nos ventos e nas águas!
Você gosta de uma casa”, prosseguiu, “que lhe é simpática, onde
passa horas agradáveis! E no mesmo dia que honro essa casa com
meu retorno, você foge e pensa em me enxotar! Grande santo!
Grande profeta! Grande poeta!”
Era como se eu estivesse sentado diante de um espelho límpido,
fidelíssimo, enxergando-me ali como um mentiroso, um embusteiro,
um covarde — alguém que não cumpre com a palavra empenhada.
Isso dói, é amargo, torturante e terrível; mas aquilo que se
estilhaçou dentro de mim naquele instante foi torturado e se curvou
de dor, era digno de ser estilhaçado e derrotado.
Despedi-me de maneira brusca e apressada, deixei o vinho no
copo e o pão partido sobre a mesa e voltei à cidade. Devido ao meu
nervosismo, fui supliciado por uma ansiedade insuportável de que
poderia ter havido uma fatalidade. Um incêndio, Boppi poderia ter
caído da cadeira e estar agora estatelado no chão, machucado ou
morto. Vi-o deitado, acreditei estar ao seu lado e ter de aguentar a
silenciosa repreensão no olhar do paralítico.
Cheguei à cidade e à casa sem fôlego, fui correndo na direção da
escada e só então me dei conta de que estava diante da porta
trancada e que não tinha chave. Mas logo minha angústia se
aplacou. Pois antes de chegar à porta da cozinha, ouvi uma cantoria
vindo de dentro. Foi um momento especial. Com o coração
martelando e arfando muito, fiquei na extremidade escura da escada
ouvindo, acalmando-me lentamente, seguindo a cantoria do
paralítico ali preso. Ele entoava uma canção popular com voz baixa,
suave e com um leve queixume: “Florzinha branca e vermelha”. Eu
sabia que havia tempos ele não cantava e fiquei comovido ao saber
como usava o tempo tranquilo para, à sua maneira, ser um
pouquinho feliz.
Assim são as coisas: a vida se compraz em colocar o engraçado
ao lado de eventos sérios e de sentimentos profundos. Pois foi
assim que tomei consciência do quanto minha situação era ridícula
e vergonhosa. Em minha súbita ansiedade, havia corrido por uma
hora pelos campos para aparecer sem chave diante da porta da
cozinha. Ou ia embora novamente ou informava aos gritos para o
paralítico, através de duas portas fechadas, as minhas boas
intenções. Estava na escada a fim de consolar o coitado, mostrar-
lhe empatia e lhe encurtar as horas, e ele estava lá dentro, alheio a
isso, cantando, e sem dúvida apenas se assustaria se eu me fizesse
notar aos gritos ou batendo à porta.
Não me restou outra coisa a fazer senão partir novamente. Fiquei
perambulando por uma hora pelas ruas cheias da animação
domingueira; em seguida, a família retornou. Dessa vez, não me foi
difícil dar a mão a Boppi. Sentei-me ao seu lado, iniciei uma
conversa e perguntei o que ele tinha lido. Era fácil para mim sugerir
leituras e ele ficou grato por isso. Quando lhe sugeri Jeremias
Gotthelf, ficou claro que ele tinha familiaridade com quase todos
seus textos. Gottfried Keller, entretanto, ainda lhe era desconhecido
e eu prometi emprestar seus livros.
No dia seguinte, ao trazer os livros, fiquei a sós com ele, visto
que a mulher queria sair e o marido estava na oficina. Então lhe
disse o quanto tinha ficado envergonhado por tê-lo deixado sozinho
no dia anterior, e o quanto me alegraria sentar a seu lado de vez em
quando e ser seu amigo.
O pequeno paralítico virou ligeiramente a cabeça grande em
minha direção, olhou para mim e disse: “Muito obrigado”. Foi tudo.
Mas virar a cabeça tinha lhe custado esforço e tinha o mesmo valor
de dez abraços de um homem saudável. Seu olhar estava tão
límpido e belo como o de uma criança e, de tão encabulado, corei.
Ainda faltava o mais difícil, que era falar com o marceneiro. Achei
que o melhor a fazer seria confessar sem rodeios a angústia e a
vergonha passadas no dia anterior. Ele infelizmente não me
compreendeu, mas aceitou conversar a respeito. Concordou em
manter o doente como hóspede de ambos, de modo que
dividiríamos os pequenos custos de sua manutenção, e permitiu que
eu entrasse e saísse à vontade para ficar com Boppi e o tratasse
como a um irmão.
O outono foi bonito e quente durante um tempo prolongado, o
que é incomum. Por isso, a primeira coisa que fiz foi arranjar uma
cadeira de rodas para Boppi e levá-lo diariamente para passear, em
geral na companhia das crianças.
8

Meu destino foi sempre o de receber mais da vida e dos amigos do


que eu lhes podia retribuir. Tinha sido assim com Richard, com
Elisabeth, com a sra. Nardini e com o marceneiro, e agora eu
passava pela experiência de, na maturidade e com uma autoestima
bastante satisfatória, me tornar o admirado e agradecido aluno de
um paralítico miserável. Se algum dia realmente eu conseguir
terminar minha escrita e publicá-la, então do que for bom ali haverá
muito pouco que eu não tenha aprendido de Boppi. Começou um
tempo valioso e feliz para mim, do qual haverei de aproveitar
ricamente durante toda a minha vida. Tive a oportunidade de olhar
com clareza e profundidade para uma fantástica alma humana,
sobre a qual doença, solidão, pobreza e maus-tratos passaram
apenas como pequenas nuvens esparsas.
Todos os pequenos aborrecimentos com os quais estragamos a
vida, curta e bela — a raiva, a impaciência, a desconfiança, a
mentira, todas essas úlceras desagradáveis, purulentas, que nos
deformam —, tinham sido dolorosamente extintos nesse ser
humano devido a um sofrimento longo e profundo. Ele não era sábio
nem anjo, mas era alguém cheio de compreensão e entrega, que
por meio de sofrimentos e de privações grandes e terríveis tinha
aprendido a não ter vergonha de se sentir fraco e se entregar à mão
de Deus.
Certa vez lhe perguntei como conseguia se conformar o tempo
todo com o corpo dolorido e sem forças.
“Muito simples”, ele sorriu com alegria. “Trata-se de uma guerra
eterna entre mim e a doença. Venço uma batalha, em seguida perco
outra, e assim vamos nos engalfinhando; por vezes, também,
ambos estamos quietos, selamos um cessar-fogo, cuidamos um do
outro e ficamos atentos até que um de nós volte a ser atrevido e
nossa guerra recomece.”
Até então eu sempre acreditei ter um faro certeiro e ser um bom
observador. Mesmo nisso Boppi se tornou meu admirado professor.
Visto que ele tinha muito apreço pela natureza, principalmente pelos
animais, eu o levava com frequência ao jardim zoológico. Passamos
horas deliciosas ali. Depois de algum tempo, Boppi conhecia cada
um dos animais e, visto que sempre trazíamos pão e açúcar, alguns
animais também passaram a nos conhecer, e fizemos todo tipo de
amizades. Tínhamos uma predileção toda especial pela anta, cuja
única virtude era uma limpeza não habitual na sua espécie. No
mais, achávamos que ela era metida, pouco inteligente, antipática,
ingrata e muito esfomeada. Outros animais, por exemplo, o elefante,
os cervos e as cabras-montesas, até o bisão peludo, sempre
mostravam certa gratidão pelo açúcar que recebiam, fosse olhando
para nós com alguma confiança, fosse permitindo que os
acariciássemos. Não era o caso da anta. No instante em que nos
aproximávamos, ela vinha até as grades e comia lentamente o que
trazíamos, sem deixar restos. E quando via que não haveria mais
nada a ser oferecido, ia embora sem mais. Achamos que se tratava
de um sinal de orgulho e caráter, e já que o animal nem pedia nem
agradecia seu quinhão, mas o aceitava como um tributo
absolutamente natural, lhe demos o apelido de “inspetora
alfandegária”. Como Boppi não conseguia alimentar os animais por
conta própria, vez ou outra começava uma discussão sobre se a
anta já tinha comido o suficiente ou se ganharia mais um
torrãozinho. Decidíamos isso com objetividade e avaliação imediata,
como se fosse assunto de Estado. Certa vez, já havíamos passado
pela anta quando Boppi disse que devíamos ter lhe dado mais um
torrão de açúcar. Demos meia-volta, a anta que havia retornado ao
seu monte de feno piscou para nós, altiva, e não se aproximou da
grade. “Por favor, nos perdoe, inspetora”, Boppi exclamou para ela,
“mas acho que nos enganamos por um torrão de açúcar.” E
seguimos em frente até o elefante, que já dava seus passinhos de lá
para cá na expectativa, esticando a tromba quente e maleável em
nossa direção. Boppi conseguia alimentá-lo e observava com uma
alegria infantil o gigante curvar a tromba flexível, pegar o pão de sua
mão espalmada e nos mirar com inteligência e bondade com seus
alegres olhinhos minúsculos.
Combinei com um vigia a possibilidade de Boppi ficar com sua
cadeira no zoológico nas vezes em que não teria tempo de
acompanhá-lo, de modo que ele tivesse oportunidade de ficar ao sol
e observar os animais. Depois, ele me contava tudo o que tinha
visto. Ele se impressionava especialmente com a cortesia do leão
ao tratar sua fêmea. Assim que ela se deitava para descansar, ele
orientava sua marcha incansável numa direção que não a
perturbava e não encostava nela. Na opinião de Boppi, porém, o
animal mais divertido era a lontra. Ele não se cansava de observar
as habilidades de natação e ginástica do animal tão flexível,
enquanto ele próprio estava imobilizado na cadeira, tendo de se
esforçar muito para fazer qualquer movimento com a cabeça e os
braços.
Foi num dos dias mais bonitos daquele outono que contei minhas
duas histórias de amor a Boppi. Tínhamos ficado tão íntimos que
não podia mais esconder dele essas experiências nada alegres ou
louváveis. Ele as escutou com simpatia e seriedade, sem dizer
nada. Mais tarde, confessou que tinha desejo de conhecer
Elisabeth, a nuvem branca, e me pediu para eu me lembrar disso se
algum dia casualmente topássemos com ela na rua.
Visto que isso nunca aconteceria e que os dias começavam a
ficar frios, fui até Elisabeth e pedi que desse esse gosto ao pobre
corcunda. Ela foi bondosa e aceitou o pedido, e no dia combinado
eu a busquei e a acompanhei até o jardim zoológico, onde Boppi
esperava na cadeira de rodas. Quando a bela dama, bem-vestida e
fina, deu a mão ao paralítico e se debruçou um pouco em sua
direção, e quando o pobre Boppi abriu os olhos grandes e bondosos
de maneira quase carinhosa no rosto radiante de felicidade, eu não
soube escolher qual dos dois, naquele instante, era mais bonito e
estava mais próximo do meu coração. A dama falou algumas
palavras amáveis, o paralítico não tirava dela o olhar radiante, e eu
estava ali presente, admirado por ver, juntas diante de mim, as duas
pessoas que eu mais amava e cujas vidas eram separadas por um
largo abismo. Boppi passou a tarde inteira falando apenas de
Elisabeth, elogiou sua beleza, sua elegância, sua bondade, suas
roupas, luvas amarelas e sapatos verdes, o modo como andava e
seu olhar, sua voz e seu belo chapéu, enquanto me parecia
doloroso e engraçado ter assistido a minha amada dar uma esmola
ao meu amigo do coração.
Nesse meio-tempo, Boppi tinha lido O verde Henrique e A gente
de Seldvila12 e tinha ficado tão íntimo do mundo desses dois livros
que dividíamos as amizades de Schmoller Pankranz, Albertus
Zwiehan e dos probos fabricantes de pentes. Por um tempo fiquei
na dúvida se deveria dar a ele também alguns livros de Conrad
Ferdinand Meyer, mas achei mais provável que ele não apreciasse a
concisão quase latina de sua linguagem muito sintética, e também
hesitei revelar a catástrofe da história para esses olhos calorosos e
tranquilos. Em vez disso, contei a ele sobre são Francisco e lhe dei
os contos de Mörike para ler. Achei curiosa sua confissão de que
não teria apreciado grande parte da história da bela Lau caso não
estivesse junto do tanque da lontra durante tanto tempo, entregue a
todo tipo de fabulosas fantasias aquáticas.
Foi engraçado como gradualmente começamos a nos tratar com
mais intimidade. Eu nunca havia sugerido que Boppi deixasse de
me chamar de “senhor”, pois ele não teria aceitado. Mas o trato
informal foi acontecendo naturalmente e, no dia em que percebemos
isso, demos boas risadas e assim ficou.
Quando a proximidade do inverno impossibilitou nossas saídas e
passei a atravessar as noites novamente na sala do cunhado de
Boppi, percebi que minha nova amizade também tinha seus
inconvenientes. É que o marceneiro permanecia o tempo todo
emburrado, antipático e silencioso. No decorrer do tempo, tanto a
presença inoportuna daquela boca improdutiva a mais quanto o meu
relacionamento com Boppi passaram a incomodá-lo. Uma vez,
aconteceu de eu ficar a noite inteira conversando com o paralítico,
enquanto o dono da casa permaneceu sentado ao lado, irritado,
lendo seu jornal. Ele brigava também com a mulher,
excepcionalmente paciente, pois ela sempre defendia seu desejo de
modo ferrenho e dizia que não toleraria se Boppi fosse viver em
outro lugar. Várias vezes tentei animá-lo ou fazer sugestões, mas
não tinha jeito. Ele começou a ficar mordaz, desdenhando da minha
amizade com o paralítico e perturbando a vida deste último.
Claramente a casa apertada se ressentia tanto do doente quando da
minha presença quase diária por ali, mas eu ainda tinha a
esperança de que o marceneiro se juntasse a nós e passasse a
gostar de Boppi. Por fim, entendi que me era impossível fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, pois ou bem eu magoaria o
marceneiro, ou prejudicaria Boppi. Como detesto todas as decisões
rápidas e obrigatórias — na época em Zurique, Richard havia me
batizado de Petrus Cunctator —,13 esperei por semanas e fiquei o
tempo todo com medo de perder a amizade de um ou de outro ou
talvez até de ambos.
O crescente desconforto desses relacionamentos indefinidos me
empurrou de volta aos bares. Certa noite, depois dessa história
muito ter me irritado mais uma vez, fui até um lugar onde serviam
vinhos do Vaud e tentei afogar as mágoas com vários litros. Pela
primeira vez em dois anos, senti dificuldade em voltar caminhando
em linha reta para casa. No dia seguinte, como acontece depois de
uma forte bebedeira e com a mente fria, tomei coragem e procurei o
marceneiro para finalmente dar um fim àquela comédia. Sugeri-lhe
que deixasse Boppi totalmente aos meus cuidados, e ele não se
mostrou reticente; depois de alguns dias de reflexão, acabou
concordando.
Logo em seguida, mudei-me com meu pobre corcunda para um
apartamento recém-alugado. Sentia-me como se tivesse me
casado, visto que em vez da casa de solteiro tinha agora de gerir
um pequeno lar de verdade para os dois. Mas deu certo, mesmo
que no começo eu tenha cometido algumas infelizes experiências
administrativas. Uma faxineira vinha fazer a arrumação e lavar as
roupas, pedíamos para entregar a comida e logo começamos a
gostar da vida assim compartilhada. A necessidade de abrir mão
das minhas despreocupadas caminhadas, grandes e pequenas, não
me incomodou a princípio. Durante o trabalho, achei que a
proximidade silenciosa do amigo trazia tranquilidade e incentivo. Os
pequenos serviços de enfermagem eram novos para mim e no
começo pouco agradáveis, quer dizer, pôr e tirar a roupa; mas meu
amigo era tão paciente e grato que eu ficava com vergonha e me
esforçava para servi-lo adequadamente.

Passei a visitar meu professor menos vezes e, com mais frequência,


Elisabeth, cuja casa, apesar de tudo, continuava a exercer seu
encanto sobre mim. Eu ficava sentado lá, tomava chá ou um copo
de vinho, a observava fazendo as vezes de anfitriã e em algumas
ocasiões eu tinha recaídas sentimentais, embora lutasse contra
todos os possíveis sentimentos wertherianos com um desdém
contínuo. Entretanto, o suave egoísmo amoroso, juvenil, tinha
definitivamente me abandonado. A relação certa entre nós era um
sutil e íntimo estado de guerra, e raramente nos encontrávamos
sem brigar da maneira mais amistosa possível. A mente volúvel e,
segundo o caráter feminino, um pouco mimada da inteligente mulher
harmonizava bastante bem com meu temperamento ao mesmo
tempo apaixonado e brusco, e como no fundo tínhamos grande
respeito mútuo, podíamos discutir energicamente sobre toda e
qualquer picuinha. Para mim, era especialmente engraçado
defender o celibato contra a mulher que havia pouco eu queria dar a
vida para desposar. Eu podia inclusive troçar dela com seu marido,
que era um bom sujeito e orgulhoso da mulher inteligente.
Em silêncio, o antigo amor continuava a arder dentro de mim, só
que não eram mais os exuberantes fogos de artifício que mantinham
o coração jovem, mas uma boa brasa, contínua, na qual os dedos
de um solteirão empedernido podiam se aquecer vez ou outra em
noites de inverno. Desde que Boppi passou a estar muito próximo a
mim e a me envolver com a certeza de uma benquerença constante
e honesta, eu podia permitir que meu amor vivesse dentro de mim
como um pedaço de juventude e poesia.
Aliás, com suas malícias tipicamente femininas, de quando em
quando Elisabeth dava oportunidade de resfriar essa brasa e eu me
alegrava, de verdade, de minha solteirice.
Desde que o pobre Boppi passara a dividir a casa comigo,
gradualmente deixei a casa de Elisabeth em segundo plano. Com
Boppi, eu lia livros, folheava álbuns de viagem e diários, jogava
dominó; para nossa alegria, compramos um poodle, observávamos
o início do inverno da janela e conversávamos diariamente sobre
muitas coisas inteligentes e outras tantas tolas. O doente tinha
conquistado uma visão de mundo diferenciada, objetiva e
reconfortada pelo bom humor, com a qual eu aprendia diariamente.
Quando começaram as nevascas fortes e o inverno mostrou sua
beleza pura através da janela, nos sentávamos junto ao fogão e
com um prazer juvenil criávamos um idílio doméstico. Foi nessa
ocasião que acabei aprendendo com Boppi a arte de observar os
seres humanos, atrás da qual havia gastado em vão muita sola de
sapato durante toda a minha vida. Como observador silencioso e
arguto, Boppi carregava inúmeras histórias de sua vida passada e
bastava começar para narrá-las maravilhosamente. O paralítico não
tinha sido apresentado nem a trinta pessoas durante toda a vida,
nem tinha nadado na grande correnteza, e apesar disso conhecia a
vida muito melhor do que eu, pois estava acostumado a prestar
atenção aos detalhes e a considerar cada pessoa um manancial de
vivências, alegrias e conhecimento.
Nossa diversão predileta era, como antes, a alegria despertada
pelo mundo animal. Inventávamos histórias e fábulas de todos os
tipos sobre os animais do jardim zoológico que não conseguíamos
mais visitar. A maior parte delas não era formada por narrativas,
mas sim por diálogos improvisados. Por exemplo, uma declaração
de amor entre dois papagaios, conflitos familiares entre os bisões,
conversas noturnas dos porcos selvagens.
“Como vão as coisas, sr. Arminho?”
“Estão indo, sr. Lobo, estão indo. Sabe, perdi minha querida
esposa ao ser capturado. Ela se chamava Rabo de Pincel, como já
tive o prazer de lhe dizer. Uma pérola, eu lhe asseguro, uma...”
“Ah, pare com essas histórias do passado, sr. Vizinho. Se não me
engano, o senhor já me falou várias vezes da pérola. Céus! Só
vivemos uma vez e não podemos estragar o pouco de diversão de
que dispomos.”
“Ora, sr. Lobo, se tivesse conhecido a minha senhora iria me
compreender melhor.”
“Certamente, certamente. Então ela se chamava Rabo de Pincel,
não é? Nome bonito, algo para fazer carícias. Mas sobre o assunto
que eu queria tratar… o senhor notou como a praga dos pardais
está aumentado de novo? Tenho um pequeno plano a respeito.”
“Contra os pardais?”
“Contra os pardais. Veja, pensei no seguinte: colocamos pão
diante da grade, nos deitamos em silêncio e esperamos os danados.
Duvido não conseguir pegar um passarinho desses. Qual sua
opinião?”
“Perfeito, sr. Vizinho.”
“Então tenha a bondade de colocar algum pão. Ah, ótimo! Mas
talvez empurre mais para a direita, daí dá para nós dois. É que no
momento estou sem fundos. Assim está ótimo. Hora de prestar
atenção! Vamos nos deitar, fechar os olhos… psiu, lá vem um
voando!” (Pausa.)
“E aí, sr. Lobo, ainda nada?”
“Como o senhor é impaciente! Parece que é a primeira vez que
está caçando! Um caçador tem de saber esperar, esperar e esperar
mais um pouco. Vamos lá, mais uma vez!”
“Mas onde foi parar o pão?”
“Não entendi.”
“O pão sumiu.”
“Não é possível. O pão? Ora, é mesmo… desapareceu! Que
droga! Foi o maldito vento mais uma vez.”
“Bem, tenho lá minhas desconfianças. Fiquei com a impressão
de que o senhor estava comendo alguma coisa há pouco.”
“O quê? Eu comendo alguma coisa? O que seria?”
“Acho que o pão.”
“Suas suposições são muito diretas e ofensivas, sr. Arminho. É
certo que a gente precisa suportar algumas coisas dos vizinhos,
mas isso é demais. Isso é demais, estou dizendo. O senhor me
entendeu? Então eu devo ter comido o pão! O que passa na sua
cabeça? Primeiro tenho de ouvir pela milésima vez a aborrecida
história de sua pérola, daí tenho a ótima ideia de colocar o pão do
lado de fora…”
“Eu! Fui eu que dei o pão.”
“… nós colocamos o pão do lado de fora, eu me deito e fico
prestando atenção, tudo vai bem, daí vem o senhor com sua
conversinha. Os pardais é claro que desapareceram, a caçada foi
posta a perder e agora eu sou acusado de ter comido o pão! Ora,
espere até a gente se encontrar de novo.”
Dessa maneira, tardes e noites passavam de maneira rápida e
descontraída. Eu estava muito bem-humorado, trabalhava com
prazer, era produtivo e me espantava com o fato de ter sido tão
apático, enfadado e pessimista no passado. Os melhores tempos na
companhia de Richard não tinham sido melhores do que esses dias
calmos, animados, nos quais os flocos de neve dançavam do lado
de fora enquanto nós dois e o poodle nos aconchegávamos ao lado
do fogão.
E foi então que Boppi teve de fazer sua primeira e última idiotice!
Minha satisfação não me permitia ver que ele estava sofrendo mais
do que de costume. Mas ele, de tanta modéstia e amor, fazia de
conta estar mais divertido que nunca, não se queixava, não me
proibia nem de fumar, e à noite, deitado, sofria e tossia, lastimando-
se baixinho. Totalmente por acaso — certa vez fiquei escrevendo
noite adentro na sala, contígua ao seu quarto, e ele achava que eu
já havia me deitado fazia tempo —, escutei-o gemer. O pobre sujeito
ficou assustadíssimo e perplexo quando entrei com a luminária em
seu quarto. Coloquei a lâmpada de lado, sentei-me na sua cama e
comecei com as perguntas. Ele ficou muito tempo tentando se
esquivar do inquérito, mas finalmente veio à tona.
“Não é tão grave”, ele falou, calmo. “Tenho uma sensação de
aperto no coração apenas durante alguns movimentos e às vezes
também ao respirar.”
Ele se desculpou, como se adoecer fosse um crime!
Pela manhã, fui até um médico. Era um dia bonito, gelado e
claro; no meio do caminho, fui me sentindo mais aliviado e
despreocupado, pensei até no Natal e em como poderia alegrar
Boppi. O médico ainda estava em casa e, atendendo ao meu pedido
insistente, me acompanhou. Fomos no seu carro confortável,
subimos a escada, chegamos ao quarto de Boppi, uma série de
apalpadelas e auscultas teve início. Ao mesmo tempo que o médico
se tornava um pouco menos sério e sua voz soava mais bondosa,
toda minha alegria desmoronava.
Gota, coração fraco, caso sério — prestei atenção, anotei tudo e
fiquei espantado comigo mesmo por não me opor quando o médico
sugeriu uma transferência ao hospital.
A ambulância veio à tarde. Ao voltar do hospital, senti-me muito
mal em casa, o cachorro se acercava de mim, a grande cadeira do
doente estava posta num canto e o ambiente parecia vazio.
É assim o amor. Ele traz dores, e sofri muito nos tempos
seguintes. Mas o que importa se estamos sofrendo ou não, contanto
que haja uma convivência forte, contanto que percebamos o vínculo
íntimo, vivo, que nos liga a tudo que tem vida, contanto que o amor
não arrefeça? Eu daria todos os dias felizes que passei, mais todas
as paixões e todos meus planos literários, se pudesse olhar
profundamente mais uma vez para o que há de mais sagrado, como
fiz nessa época. Isso machuca amargamente os olhos e o coração;
o orgulho e a vaidade são golpeados, mas depois ficamos tão
tranquilos, tão modestos, interiormente tão mais maduros e mais
vivos que nunca!
Uma parte do meu antigo ser já tinha morrido no passado, com a
loirinha Agi. Agora via meu corcunda, a quem dera todo meu amor e
com quem teria dividido toda minha vida, sofrer e morrer
lentamente. Eu dividia seu sofrimento diariamente e participava dos
horrores e do sagrado da morte. Eu ainda era um iniciante na ars
amandi e tinha de me haver logo com o primeiro capítulo da ars
moriendi. Não silencio sobre esse tempo assim como silenciei sobre
Paris. Quero falar dele em voz alta como uma mulher fala de seu
tempo de noiva e como um velho fala de seus anos de juventude.
Vi morrer um ser humano cuja vida tinha se resumido a
sofrimento e amor. Escutei-o gracejar feito uma criança enquanto
percebia o trabalho da morte dentro de si. Vi como seu olhar me
procurava em meio à dor profunda, não para me suplicar algo, mas
para me animar e me mostrar que essas tensões e sofrimentos
tinham deixado intacto o que havia de melhor nele. Nessas horas,
seus olhos ficavam grandes e não se enxergava mais seu rosto
envelhecido, apenas o brilho dos olhos grandes.
“Posso fazer algo por você, Boppi?”
“Me conte uma história. Talvez da anta.”
Eu contava da anta, ele fechava os olhos e eu me esforçava para
falar como de costume, pois estava quase sempre à beira das
lágrimas. E quando achava que ele não me ouvia mais ou que
estava dormindo, emudecia imediatamente. Daí ele reabria os olhos.
“E como continua?”
E eu prosseguia a contar, da anta, do cachorro, do meu pai, do
pequeno maldoso Matteo Spinelli, de Elisabeth.
“Sim, ela se casou com um idiota. É a vida, Peter!”
Muitas vezes ele começava subitamente a falar da morte.
“Não é prazeroso, Peter. Nem o trabalho mais árduo é tão difícil
quanto morrer. Mas a gente consegue.”
Ou: “Quando essa tortura tiver terminado, vou poder sorrir. No
meu caso, morrer vale a pena, vou perder uma corcunda, uma
perna curta e um quadril paralisado. No seu caso será um
desperdício, com seus ombros largos e as pernas bonitas e
saudáveis”.
E certa vez, num dos últimos dias, ele acordou de uma soneca
breve e disse bem alto:
“O céu não é como o padre nos diz. O céu é muito mais bonito.
Muito mais bonito.”
A mulher do marceneiro vinha visitá-lo com frequência e era hábil
em se mostrar empática e prestativa. Lamentavelmente, o
marceneiro não apareceu nem uma vez.
“O que você acha”, perguntei a Boppi, certa vez. “Será que
existem antas no céu?”
“Ah, sim”, respondeu ele, reforçando com um movimento de
cabeça. “Lá se encontram todos os tipos de animais, inclusive
cabras-montesas.”
Chegou a época do Natal e fizemos uma pequena festa junto à
sua cama. Estava muito frio, a umidade congelou, e neve nova caiu
sobre o gelo escorregadio, mas não percebi nada. Soube que
Elisabeth tinha dado à luz um menino e me esqueci da notícia de
novo. Chegou uma carta engraçada da sra. Nardini, que li
rapidamente e deixei de lado. Eu realizava meu trabalho de maneira
acelerada, sabendo que ele roubava horas minhas com o doente.
Depois seguia apressado e impaciente até o hospital, onde havia
uma serenidade alegre. Eu ficava meia hora sentado ao lado da
cama de Boppi, envolto por uma paz divina e profunda.
Pouco antes do fim, ele ainda passou alguns dias melhores. Foi
curioso como o passado recente parecia apagado de sua memória,
e ele só se recordava dos anos muito precoces. Durante dois dias,
ele não falou de outra coisa senão da mãe. Ele não conseguia falar
por muito tempo, mas era possível notar que mesmo em pausas de
horas ele estava pensando nela.
“Contei muito pouco dela para você”, ele se queixou, “você não
pode se esquecer de nada relacionado a ela, senão daqui a pouco
não haverá ninguém que a conheça e que lhe seja grato. Seria bom,
Peter, se todas as pessoas tivessem uma mãe como essa. Ela não
me colocou no asilo quando não pude mais trabalhar.”
Ele ficava deitado, respirando com dificuldade. Passava-se mais
uma hora e recomeçava:
“Eu era o preferido entre todos seus filhos e ela ficou comigo até
morrer. Meus irmãos emigraram e minha irmã se casou com o
marceneiro, mas eu fiquei em casa e, apesar de ser paupérrima, ela
nunca me renegou. Você não pode se esquecer da minha mãe,
Peter. Ela era bem pequenina, talvez menor do que eu. Quando me
dava a mão, parecia que um passarinho minúsculo tinha pousado
ali. Quando ela morreu, o vizinho Rütimann disse que um caixão de
criança foi suficiente.”
Um caixão infantil também seria suficiente para ele, tão mirrado
em sua limpa cama de hospital. Suas mãos se pareciam com mãos
femininas doentes, longas, finas, brancas e um tanto tortas. Quando
parava de sonhar com a mãe, era a minha vez. Ele falava de mim
como se eu não estivesse sentado ali ao lado.
“Ele é um azarado, certamente, mas isso não lhe fez mal. Sua
mãe morreu cedo demais.”
“Você ainda me conhece, Boppi?”, eu perguntava.
“Sim, sr. Camenzind”, ele dizia gracejando e ria baixinho.
“Ah, se eu pudesse cantar”, ele emendava.
No último dia, ele ainda perguntou: “Ei, esse hospital é caro?
Poderia ficar caro demais”.
Mas ele não esperou pela resposta. Um leve rubor tomou-lhe as
faces brancas, ele cerrou os olhos e por um instante pareceu estar
muito feliz.
“Ele está indo embora”, disse a enfermeira.
Mas Boppi ainda abriu os olhos mais uma vez, olhou
maliciosamente para mim e mexeu as sobrancelhas como a me dar
um sinal. Levantei-me, coloquei a mão sobre seu ombro esquerdo e
ergui-o um pouquinho com suavidade, coisa de que ele sempre
gostava. Deitado assim sobre minha mão, ele voltou a contrair
rapidamente os lábios de dor, depois virou a cabeça um pouco e
tremeu, como se de repente sentisse frio. Assim foi o passamento.
“Está confortável, Boppi?”, ainda perguntei. Mas ele já estava
livre de seus sofrimentos e esfriava em minha mão. Era sete de
janeiro, uma hora após o meio-dia. Ao anoitecer, arrumamos tudo, e
o corpo pequeno, adulto, estava deitado em paz e limpo, sem
maiores deformações, esperando chegar a hora de ser levado e
enterrado. Durante esses dois dias, fiquei espantado por eu não
estar nem especialmente triste nem desconcertado, nem com
vontade de chorar. Eu havia vivenciado a separação e a despedida
de maneira tão intensa durante a doença que pouco havia restado;
mais leve, o prato da balança que continha minha dor começou a
subir devagar.
Apesar disso, achei que era hora de deixar a cidade sem fazer
alarde e descansar em algum lugar, de preferência no Sul, a fim de
esticar de maneira séria os fios da minha escrita, apenas
toscamente ajeitados no tear. Eu tinha um pouco de dinheiro
sobrando, então deixei as obrigações literárias de lado e me
organizei para fazer as malas e partir logo no início da primavera.
Primeiro para Assis, onde a quitandeira aguardava minha visita,
depois rumo ao trabalho intenso, se possível num lugar tranquilo
nas montanhas. Estava com a impressão de ter visto suficiente da
vida e da morte para fazer os outros escutarem minhas reflexões a
respeito. Numa impaciência agradável, esperei até março e de
antemão meu ouvido já estava cheio de palavras de ordem em
italiano e, no nariz, de um aroma picante de risoto, laranjas e vinho
chianti.
O plano era perfeito e quanto mais eu pensava a respeito, mais
me animava. Fiz bem em me alegrar com o chianti de antemão,
porque tudo aconteceu de um jeito bem diferente.
Uma carta comovente, rebuscadíssima, do taberneiro Nydegger
me anunciou em fevereiro que havia muita neve e que animais e
pessoas enfrentavam problemas na vila; mais especificamente, meu
pai não estava passando bem e seria bom se eu pudesse mandar
dinheiro ou visitá-lo. Visto que não gostei da ideia de mandar
dinheiro e o velho realmente me preocupava, tive de viajar. Cheguei
num dia de intempéries; neve e vento impediam a visão das casas e
das montanhas, e foi uma sorte eu saber o caminho de cor.
Contrariando minha suposição, o velho Camenzind não estava
deitado na cama, mas sentado encolhido e desanimado ao canto do
fogão, sendo cuidado por uma vizinha que lhe trouxera leite e que o
repreendia, demorada e gravemente, pela terrível guinada de sua
vida. Minha entrada não a perturbou.
“Veja, o Peter está aí”, disse o velho pecador, piscando para mim
com o olho esquerdo.
Indiferente, ela continuou com sua pregação. Sentei-me numa
cadeira esperando seu amor ao próximo se esgotar e acabei por
ouvir coisas que também me foram proveitosas. Ao mesmo tempo,
eu observava como a neve do meu sobretudo e de minhas botas
derretia, formando primeiro uma mancha úmida ao redor da minha
cadeira e depois um laguinho. Apenas depois de a mulher terminar
seu sermão é que aconteceu o reencontro oficial, do qual ela
participou muito a gosto.
Meu pai estava bem enfraquecido. Lembrei-me novamente da
minha tentativa passada de cuidar dele. Minha partida na época não
o tinha ajudado em nada, e agora era mais do que necessário
reassumir essa tarefa.
Afinal, não dá para exigir que um velho camponês turrão, que
mesmo em seus bons tempos não tinha sido exemplo de virtude, se
torne dócil na época das doenças senis e participe com sentimento
da encenação do amor filial. Assim sendo, meu pai não fez isso de
modo algum. Quanto mais doente, mais rebelde ficou, me pagando
de volta tudo aquilo que eu usara para torturá-lo — se não com
juros, de maneira objetiva e bem calculada. Entretanto, ele era
econômico e cuidadoso com as palavras ao se dirigir a mim, embora
dispusesse de uma porção de meios drásticos para mostrar sua
insatisfação e para ser amargo e grosseiro sem fazer uso delas. Às
vezes eu ficava imaginando se com a idade me tornaria um sujeito
igualmente desagradável e controverso. As bebedeiras eram águas
passadas; ele tomava de cara amarrada o copo de um bom vinho do
Sul que lhe era servido duas vezes por dia, pois eu sempre fechava
a garrafa depois e a levava ao porão vazio, cuja chave nunca
entregava a ele.
Apenas lá pelo final de fevereiro chegaram aquelas semanas
límpidas, que tornam o inverno na alta montanha tão maravilhoso.
As montanhas altas e recortadas destacavam-se nitidamente do céu
azul anil e, naquela atmosfera transparente, pareciam
improvavelmente próximas. Prados e declives estavam recobertos
pela neve, a neve do inverno de montanha, que no vale nunca é tão
branca, cristalina ou aromática. Ao meio-dia, a luz do sol promove
festas reluzentes em pequenas depressões na terra, sombras azuis
estendem-se sobre grotas e encostas. Após semanas de neve, o ar
está tão limpo que respirar sob o sol é um prazer. Os jovens
aproveitam para andar de trenó nas encostas mais baixas e logo
depois do almoço vemos velhos nas ruas tomando o sol que lhes
faz bem, enquanto à noite os caibros rangem por causa da geada.
No meio dos campos brancos pela neve o lago, que nunca congela,
fica calmo e azul, mais belo do que no verão. Todos os dias antes
do almoço, eu ajudava meu pai a chegar até a frente da porta e
observava-o esticar os dedos morenos e nodosos sob o calor do sol.
Depois de um tempo, ele começava a tossir e a se queixar do frio.
Essa era uma de suas estratégias inocentes para ganhar um trago,
pois nem a tosse nem o frio eram para ser levados a sério. Então
meu pai recebia um copinho de aguardente de genciana ou um
pouco de absinto, sua tosse diminuía numa gradação artística e ele
ficava contente em ter me enganado pelas costas. Depois da
refeição, eu o deixava sozinho, calçava as polainas e caminhava
algumas horas na direção das montanhas, o mais distante possível,
e percorria o caminho de volta com um saco de frutas que trazia
comigo fazendo as vezes de trenó, para escorregar pelos campos
de neve.
Quando chegou a época em que eu queria ter ido a Assis, ainda
havia um metro de neve. As chuvas começaram apenas em abril e
nossa cidade foi alvo de um rápido e perigoso degelo vindo do alto,
como há muitos anos não se via acontecer. Ouvíamos o vento föhn
uivar dia e noite, o estalar de avalanches longínquas e o bramir
amargurado das correntezas, que traziam grandes pedaços de
rochas e árvores despedaçadas e os lançavam sobre nossos pobres
e estreitos terrenos e pomares. A febre do vento föhn não me deixou
dormir, noite após noite ouvi, amedrontado e tenso, os queixumes
das tempestades, o trovejar das avalanches e o bater do lago
mexido nas margens. Nesse tempo de exaltados combates de
primavera, a paixão já superada me tomou mais uma vez de
maneira tão assoladora que eu me levantava à noite, deitava junto à
janela e, sob dores amargas, exclamava para as intempéries
palavras de amor para Elisabeth. Desde a cálida noite de Zurique,
quando corri por amor através da colina que ficava acima da casa
da pintora italiana, a paixão nunca mais tinha me dominado de
maneira tão tenebrosa e irresistível. Muitas vezes senti como se a
bela mulher estivesse bem próxima, sorrindo para mim, mas
desviasse de cada passo que eu dava em sua direção. Meus
pensamentos, independentemente de sua origem, voltavam todos a
essa imagem e, feito alguém ferido, eu não conseguia deixar de
coçar o machucado. Eu me envergonhava de mim mesmo, maldizia
o föhn e, para além de todas as dores, tinha um sentimento oculto
de prazer, quente, como nos tempos de juventude, quando pensava
na bela Rösi e uma onda cálida e escura me inundava.
Compreendi que não havia remédio para aquela doença e tentei
pelo menos trabalhar um pouco. Resolvi me dedicar ao
planejamento da minha obra, fiz alguns estudos e logo percebi que
não era o momento apropriado. Por esses dias, de todos os lados
surgiam relatos terríveis sobre os ventos föhn; nos vilarejos, havia
gente demais passando necessidade. As barragens dos rios
estavam semidestruídas, algumas casas, silos e estábulos foram
muito danificados, várias pessoas sem ter onde morar chegavam de
vilarejos vizinhos, queixas e problemas surgiam de todos os lados,
mas nenhum dinheiro. Foi quando, para minha sorte, o prefeito
pediu para seu funcionário me buscar e me perguntou se eu tinha
vontade de participar de um comitê em auxílio dos flagelados.
Confiaram a mim a representação da questão da comunidade junto
ao cantão e, por intermédio dos jornais, a mobilização do país para
angariar ajuda e colaboração financeira. A oferta veio a propósito,
pois assim conseguiria me esquecer do inútil sofrimento pessoal
através de algo mais sério e honroso, e me lancei à causa. Na
Basileia, depois de enviar cartas, rapidamente consegui alguns
apoiadores. Como sabíamos previamente, o cantão não tinha
dinheiro e só poderia disponibilizar alguns trabalhadores como
reforço. Em seguida, dirigi-me aos jornais com conclamações e
relatos; o resultado foram cartas, donativos e consultas — e ao lado
da atividade da escrita eu tinha de mediar a negociação entre a
diretoria da comunidade e os teimosos camponeses.
Aquelas semanas de trabalho duro, incansável, me fizeram bem.
Quando a situação foi entrando gradualmente nos eixos e me tornei
menos indispensável, a terra voltou a se pintar de verde, e o lago
tranquilo, sob o sol, refletia de volta o azul às encostas livres de
neve. Meu pai passava por dias suportáveis e minhas dores de
amor tinham desaparecido, escorrendo feito os restos sujos da
enxurrada. Antigamente, nessa época, meu pai envernizava seu
barco, minha mãe o observava do jardim e eu ficava de olho nos
procedimentos do velho, nas nuvens de seu cachimbo e nas
borboletas amarelas. Dessa vez não havia mais nenhum barco a ser
pintado, minha mãe tinha morrido fazia tempo e meu pai estava
macambúzio dentro da casa malcuidada. Lembrei-me também do tio
Konrad. Naquela época por muitas vezes levava para ele — sem
meu pai saber — um pequeno copo de vinho e escutava-o falar,
com um sorriso bondoso e não sem orgulho, de seus muitos
projetos. Ele já não maquinava novos projetos, e a velhice tinha
deixado marcas fundas, mas sua expressão e seu sorriso traziam
sempre um traço de menino ou de jovem e que me fazia bem.
Muitas vezes ele era meu consolo e meu passatempo quando eu
não aguentava mais ficar em casa com meu pai. Quando lhe levava
vinho, ele trotava rápido ao meu lado e se esforçava, angustiado,
em acompanhar meu passo com suas pernas agora tortas e
magras.
“É hora de içar velas, tio Konrad”, eu o incentivava e, a partir
disso, sempre acabávamos conversando sobre nosso velho barco,
que não existia mais e cuja perda o desolava feito a de um ente
querido. Como eu também gostava do barco e ele me fazia falta,
rememorávamos suas histórias até os mínimos detalhes.
O lago estava azul como nunca e o sol não menos festivo e
quente, e eu, adulto, me punha a observar as mariposas amarelas,
com a sensação de que, no fundo, pouca coisa havia mudado.
Talvez fosse possível eu me deitar de novo no gramado e tecer
sonhos de menino. Mas na hora de me lavar, quando levantava da
bacia enferrujada de lata a cabeça com o nariz pronunciado e a
boca amargurada, percebia que esse não era o caso e que boa
parte dos meus anos tinha sido consumida para nunca mais voltar.
O Camenzind sênior era uma ajuda melhor ainda para eu não me
iludir com a passagem do tempo, e quando queria voltar totalmente
ao presente, bastava abrir o tampo da escrivaninha do meu quarto
onde repousava minha obra futura, composta de um pacote de
esboços de anos atrás e seis ou sete rascunhos em folhas de
caderno. Mas raramente abro esse lugar.
Ao lado dos cuidados do velho, a manutenção de nossa casa
decrépita me ocupava o suficiente. Abismos se abriam no piso;
forno e fogão estavam defeituosos, soltavam fumaça e fediam; as
portas não fechavam; e a escada de abrir, antigo palco dos castigos
paternos, representava um perigo mortal. Antes que alguma coisa
pudesse ser feita a respeito, era preciso afiar o machado, consertar
os serrotes, pegar emprestado um martelo, procurar pelos pregos,
para em seguida escolher no resto do estoque de madeira, em
putrefação, os pedaços em condições de uso. Na hora de consertar
as ferramentas e usar a pedra de amolar, o tio Konrad me deu uma
mão, mas estava velho e encurvado demais para ser de real valia.
Então desgastei as macias mãos de escritor na madeira dura,
acionei com os pés o rebolo capenga, caminhei pelo telhado com
goteiras por toda parte, preguei, martelei, revesti e entalhei, e meu
corpo bem cevado verteu algumas gotas de suor. Vez ou outra,
durante o trabalho de remendar o telhado, eu parava no meio de
uma martelada, sentava direito, voltava a acender o cigarro já meio
apagado, olhava para o profundo azul do céu e aproveitava minha
indolência com a alegre consciência de que meu pai nunca mais
poderia me obrigar nem me repreender. Quando os vizinhos
passavam, mulheres, homens idosos e crianças em idade escolar,
eu iniciava conversas amistosas com eles a fim de proteger meu
ócio, e pouco a pouco fui ganhando a fama de ser alguém com
quem valia trocar algumas palavras.
“Está quente hoje, Lisbeth?”
“Com certeza, Peter. O que você está fazendo?”
“Consertando o telhado.”
“Nunca é demais, e faz tempo que estava precisando.”
“Isso mesmo.”
“Como vai o seu velho? Ele deve estar fácil com uns setenta,
não?”
“Oitenta, Lisbeth, oitenta. E o que será de nós quando
chegarmos a essa idade também? Não é fácil.”
“Não mesmo, Peter, mas tenho de ir andando, o marido quer sua
comida. Cuide-se!”
“Tchau, Lisbeth.”
E enquanto ela continuava em seu caminho com a panela
embalada no pano, eu soprava nuvens no ar, observando-a;
pensando em como as pessoas cumpriam com suas tarefas de
maneira tão diligente enquanto eu estava havia dois dias inteiros
martelando a mesma tábua. Por fim, o telhado ficou pronto. Meu pai
interessou-se excepcionalmente pelo assunto e, como era
impossível carregá-lo até o telhado, tive de lhe descrever tudo em
minúcias, prestando contas de cada caibro — algo de que eu não
gostava, à exceção de me exibir um pouco.
“Muito bem”, ele aceitou, “muito bem, mas eu não acreditava que
você conseguiria terminar ainda neste ano.”

Agora quando olho em retrospecto para minhas viagens e tentativas


de me inserir na vida, fico contente e irritado por ter sentido na
própria pele a antiga sabedoria de que os peixes são da água e os
camponeses são do campo e de que, apesar de todos os
malabarismos, não é possível transformar um Camenzind de
Nimikon em um cidadão urbano do mundo. Estou me acostumando
a concordar com isso e fico aliviado pelo fato de minha desastrada
caça pela felicidade do mundo ter me trazido de volta, mesmo que a
contragosto, ao antigo cantinho entre lago e montanhas, que é meu
lugar e onde minhas virtudes e falhas, mas especialmente as falhas,
são corriqueiras e naturais. Longe, eu tinha me esquecido da minha
terra e estava prestes a me considerar uma planta rara e curiosa;
agora vejo novamente que se tratava apenas do espírito de Nimikon
que agia em mim e que não conseguia se curvar aos hábitos do
restante do mundo. Aqui, não passa pela cabeça de ninguém me
achar um sujeito estranho, e quando vejo meu pai idoso e o tio
Konrad, acho que me saí bem como filho e sobrinho. Meus dois
voos conturbados ao reino do espírito e da chamada formação
podem ser comparados, com razão, à famosa viagem de barco a
vela do meu tio, só que eles me custaram caro em termos de
dinheiro, esforços e bons anos. E também quanto à aparência,
desde que meu primo Kuoni começou a me cortar a barba e desde
que voltei a usar calças com cintos e a andar em mangas de
camisa, me tornei novamente um perfeito local e, algum dia, quando
me tornar grisalho e velho, assumirei sem alarde o lugar de meu pai
e seu pequeno papel na vida comunitária. As pessoas sabem
apenas que estive fora durante anos e não lhes revelo o trabalho
miserável que realizei por lá nem em quantas poças chafurdei;
senão, receberia logo uma dose de desdém e apelidos. Todas as
vezes em que falo da Alemanha, da Itália ou de Paris, abrilhanto um
pouco minha pessoa e mesmo nos trechos mais sinceros por vezes
duvido de minha própria autenticidade.
E qual o resultado de tantas cabeçadas e anos perdidos?
A mulher que amei e ainda amo cria dois filhos bonitos na Basileia.
A outra, que me amava, achou um consolo e continua
comercializando frutas, verduras e sementes. Meu pai, motivo pelo
qual voltei para casa, não morreu nem convalesceu, mas está
sentado à minha frente em sua caminha confortável, olha para mim
e me inveja pela posse da chave do porão.
Mas isso não é tudo. Tenho, morando no céu, além da minha
mãe e do amigo de juventude afogado, a bela Agi e meu pequeno e
deficiente Boppi. E vi como as casas voltaram a ser consertadas no
vilarejo, e ambos os diques de pedra, reformados. Se quisesse, faria
parte do conselho da cidade. Entretanto, já há Camenzind o
bastante por lá.
Há pouco, uma nova perspectiva se abriu. O taberneiro
Nydegger, em cujo estabelecimento meu pai e eu bebemos muitos
litros de Veltliner, vinhos do Valais ou do Vaud, está começando a
degringolar rapidamente e perdeu o encanto pelo seu negócio. Por
esses dias, ele me falou de sua infelicidade. Disse que o pior era
que, se não encontrasse ninguém da região, uma cervejaria de fora
compraria o empreendimento e isso seria o fim, não teríamos mais
um cantinho agradável em Nimikon. Um gerente qualquer seria
arregimentado — que vai preferir vender cerveja a vinho, claro —, e
a boa adega de Nydegger iria para o vinagre, envenenada. Desde
que soube disso, não descansei. Ainda tenho um pouco de dinheiro
no banco, na Basileia; o velho Nydegger não me acharia um mau
sucessor. O problema é que enquanto meu pai estiver vivo não
quero ser dono de taberna. Pois, de um lado, não conseguiria mais
manter o velho longe das garrafas; além disso, ele iria desdenhar
dizendo que com todo meu latim e meus estudos acabei sendo
taberneiro em Nimikon e nada mais. Não admito isso, então começo
gradualmente a aguardar pelo apagar do velho, não com
impaciência, mas apenas pelo bem da questão.
Depois de anos indolente, a avidez do tio Konrad por fazer coisas
voltou a toda, o que não me agrada. Ele fica o tempo todo com o
dedo indicador na boca e a testa enrugada a pensar, caminhando
pela casa com passinhos apressados e, quando o clima está bom,
olha durante bastante tempo para a água. “Eu diria que ele está com
vontade de construir um barquinho de novo”, disse sua velha
Cenzine, e ele parece ficar realmente tão animado e audaz como há
anos, e seu rosto estampa uma expressão tão inteligente, superior,
como se agora ele soubesse exatamente o que fazer. Acredito,
porém, que não vai dar em nada e é apenas sua alma cansada que
agora pede por asas para logo voltar para casa. É hora de içar
velas, velho tio! Mas quando estiver na sua hora, os cidadãos de
Nimikon vivenciarão algo inédito. Pois me decidi a falar algumas
palavras junto ao seu túmulo depois do padre, o que nunca
acontece por aqui. Vou me lembrar do meu tio como alguém bem-
aventurado e amado por Deus, e depois dessa parte edificante
lançarei uma boa porção de verdades para os queridos entes
enlutados, que não me esquecerão nem perdoarão muito cedo.
Espero que meu pai ainda consiga ser testemunha disso.
E na escrivaninha estão os inícios de meu grande livro. “A obra
de minha vida”, poderia dizer. Mas é patético demais e prefiro não o
dizer, pois tenho de reconhecer que tanto seu desenrolar quanto seu
término estão longe de ser consistentes. Talvez ainda chegue o
tempo em que eu recomece, prossiga e termine; nesse caso, minha
aspiração juvenil será confirmada e acabarei me tornando escritor.
Para mim, isso seria tanto ou mais importante do que os diques
da cidade ou a participação no conselho da cidade. Mas nunca teria
o peso do passado que ainda está presente com as lembranças das
pessoas queridas, desde a esguia Rösi Girtanner até o pobre Boppi.
A tradução desta obra foi apoiada por um subsídio do Instituto
Goethe.
Notas

1 O vento föhn ocorre quando uma camada profunda de vento é forçada a subir uma
montanha. Muitas lendas cercam o föhn, que supostamente provoca comportamentos
esquisitos nas pessoas. [Esta e as demais notas são da tradutora.]
[ «« ]
2 Os Fugger foram uma família de importantes banqueiros e mercadores de Augsburgo do
final do século xv ao início do xvii.
[ «« ]
3 Wilhelm Busch (1832-1908), poeta, pintor e caricaturista alemão. Juca e Chico, talvez
seus personagens mais famosos, são meninos travessos que infernizam a vida dos
moradores de seu vilarejo.
[ «« ]
4 “Dies Wort drang ihm in die Natur/ So dass er schleunigst Bessrung schwur”: trecho da
obra A piedosa Helena, de Wilhelm Busch.
[ «« ]
5 A lendária Lorelei é uma espécie de sereia que, sentada num penhasco junto ao Reno,
penteia seus cabelos dourados e distrai os marinheiros com sua beleza e música,
causando acidentes.
[ «« ]
6 “Louvado seja, ó meu Senhor, pelo irmão vento e pelo ar, e nuvens, e sereno, e todo o
tempo.”
[ «« ]
7 Semanário satírico, publicado entre 1896 e 1944.
[ «« ]
8 Referência ao primeiro verso do poema “O Atlas” de Heine, musicado por Schubert: “Ich,
unglückselger Atlas!” [Eu, desafortunado Atlas!].
[ «« ]
9 “Quanto é bela a mocidade/ que se escapa tão andeja!/ Aí seja alegre quem seja:/ de
amanhã nada se sabe.” Tradução de Jorge de Sena, em Poesia do século xx (Coimbra:
Fora do Texto, 1994).
[ «« ]
10 Trata-se de jovens artesãos aprendizes que tradicionalmente circulavam entre as
cidades em busca de oportunidades de trabalho e aprimoramento de suas técnicas; para
muitas corporações de ofícios, essa peregrinação “profissional” era precondição para se
conseguir o título de mestre.
[ «« ]
11 “Wie eine weiße Wolke/ Am hohen Himmel steht,/ So licht und schön und ferne/ Bist du,
Elisabeth.// Die Wolke geht und wandert/ Kaum hast du ihrer acht,/ Und doch durch deine
Träume/ Geht sie bei dunkler Nacht.// Geht und erglänzt so selig,/ Dass fortan ohne Rast/
Du nach der weißen Wolke/ Ein süßes Heimweh hast.”
[ «« ]
12 Obras de Gottfried Keller (1819-90).
[ «« ]
13 Cunctator, palavra latina, dá origem ao adjetivo “cuntatório”, “aquele que adia”.
[ «« ]
Gret Widmann © Martin Hesse Erben

Hermann Hesse nasceu em Cawl, na Alemanha, em 1877.


Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1946, é autor de obras
como Sidarta e Narciso e Goldmund. Morreu em 1962, na Suíça.
Dele, a Todavia já publicou Knulp e O lobo e outros contos.
Peter Camenzind: Erzählung © Hermann Hesse, Montagnola, 1953.
Todos os direitos reservados e controlados por Suhrkamp Verlag.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Luciana Facchini
ilustração de capa
Juan Narowé
preparação
Nina Schipper
revisão
Eloah Pina
Fernanda Alvares
versão digital
Booknando
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Hesse, Hermann (1877-1962)


Peter Camenzind / Hermann Hesse ; tradução Claudia Abeling. — 1. ed. — São Paulo :
Todavia, 2022.

Título original: Peter Camenzind : Erzählung


ISBN 978-65-5692-368-0

1. Literatura alemã. 2. Romance. I. Abeling, Claudia. II . Título.

CDD 833.9

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura alemã : Romance 833.9

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/ 2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
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XX. A ambivalência do ser humano, os duelos internos entre instinto
e espírito, liberdade e piedade, estão em cada narrativa e em seus
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poeta Gabriel. Inicialmente tímida, a aproximação entre ambos aos
poucos embaralha certezas intelectuais, morais e afetivas —
revelando um mundo que se insurge contra o "espírito da queda" ao
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palavra, esteja ela escrita no papel ou "jogada no vento", como diz
um de seus mais conhecidos poemas. "Vidapoesia" é o exato
neologismo usado pelo autor para descrever uma relação situada
nos limites da linguagem e da existência — dinâmica incomum que,
numa bem-vinda aproximação com a prosa, recebe neste livro
contornos afetivos específicos.
Mas as memórias que compõem este volume não são apenas
reminiscências. Vão além do memorialismo, injetando novas
tensões ao gênero que outros grandes poetas brasileiros, como
Manuel Bandeira e Murilo Mendes, praticaram em seus anos de
maturidade. Descrevendo desde os primeiros contatos com as
letras, ainda criança em Belo Horizonte, a lembrança puxa a crítica,
desvela o comentário, anuncia rápidos arranjos ensaísticos e abre
alas para a poesia. A prosa memorialística de Aleixo, híbrida por si
só, deixa evidente uma inseparável ligação sua com as bordas da
literatura, numa constante reinvenção do passado pela palavra
escrita e avoada, a todo tempo distendida.
Não por acaso, suas lembranças também são testemunhos da
afirmação contra os privilégios, a condescendência e o preconceito
que atravessam a trajetória de um artista que faz desses temas
motivos recorrentes em sua obra.

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provinciana Porto Alegre. De bonde ou a pé, Naziazeno atravessa
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de desencontros e rejeições reforça o cenário de vulnerabilidades,
tanto sociais quanto psicológicas, que servem de motor para o
romance. Publicado em 1935, Os ratos só foi instigar a crítica
algumas décadas depois.

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