Você está na página 1de 113

A arte de viver

Dietrich von Hildebrand , Alice von Hildebrand

Índice
Prefá cio
Nota do editor
Reverê ncia
Fidelidade
Responsabilidade
Veracidade
Bondade
Comunhã o
Ter esperança
Gratidã o

Dietrich e Alice von Hildebrand

A arte de viver
Edição revisada e ampliada

IMPRENSA DO INSTITUTO SOPHIA


Manchester, New Hampshire
"Congregavit nos in unum Christi amor."
Para Madeleine e Lyman

Nota: As citaçõ es do Novo Testamento neste livro foram retiradas da


ediçã o da Confraternity of Christian Doctrine (Paterson, NJ: St. Anthony
Guild Press, 1941). As citaçõ es do Antigo Testamento sã o retiradas da
ediçã o de Douay-Rheims. Quando apropriado, as citaçõ es dos Salmos sã o
cruzadas com a enumeraçã o diferente na Versã o Padrã o Revisada,
usando o seguinte sı́mbolo: (RSV=).

Índice

Prefá cio
Nota do editor
1. Reverê ncia
2. Fidelidade
3. Responsabilidade
4. Veracidade
5. Bondade
6. Comunhã o
7. Esperança
8. Gratidã o
Prefácio
Por Alice von Hildebrand

"Quem é o homem que ama a vida, que deseja o dia para desfrutar das
coisas boas? Guarda a tua língua do mal, e os teus lábios das palavras
enganosas. Afasta-te do mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a."

Nunca na histó ria da humanidade o homem mé dio teve tantos bens
materiais e, no entanto, nunca esteve mais inquieto e infeliz. Todos nó s
conhecemos pessoas que tê m tudo e nã o desfrutam de nada. A
infelicidade permeia todos os aspectos de suas vidas: seus bens
tornaram-se fardos que garantem satisfaçã o imediata, mas nã o os
aproximam nem um centı́metro da felicidade.
Podemos alcançar prazeres; mas nenhum prazer — independentemente
de sua intensidade — pode satisfazer o anseio da alma humana. O
homem foi feito para coisas melhores.
Há algo de paradoxal no fato de que os homens anseiam tã o
profundamente pela felicidade (que Aristó teles a irma ser o bem maior)
e, no entanto, muitas vezes escolhem caminhos que nã o podem levá -los a
esse objetivo. O homem é muitas vezes o artesã o de sua pró pria
perdiçã o, seu pior inimigo.
Hoje, raramente encontramos pessoas cujos rostos irradiam alegria e
paz. Quando eles cruzam nossos caminhos, desejamos arrancar deles o
segredo de sua alegria. Qual é a chave preciosa que eles encontraram,
mas nó s nã o possuı́mos?
A resposta é que eles descobriram o signi icado da existê ncia humana e
dominaram a mais importante e ainda a mais difı́cil de todas as artes, a
arte de viver. Ao escolher viver corretamente, eles foram recompensados
com uma paz "que o mundo nã o pode dar". Este pequeno livro oferece
diretrizes bá sicas sobre como você pode atingir esse objetivo. Um guia
sá bio e prudente, irá ajudá -lo a aprender como viver verdadeiramente e
como, inalmente, ser feliz.
Nota do editor

No inı́cio da dé cada de 1930, Dietrich von Hildebrand deu uma sé rie de
palestras de rá dio na Alemanha explicando as virtudes necessá rias para
uma vida boa e feliz. Como suas palestras foram transmitidas para um
pú blico muito grande, von Hildebrand as escreveu em um estilo
facilmente compreensı́vel por pessoas que nã o tê m formaçã o ilosó ica.
Suas palestras foram tã o bem recebidas que foram publicadas em 1934
sob o tı́tulo Sittliche Grundhaltung ("atitudes morais fundamentais"). Em
1950, Alice von Hildebrand traduziu Sittliche Grundhaltung para o inglê s
e Longmans Green and Company publicou sua traduçã o
como Fundamental Moral Attitudes.
Quinze anos depois (em 1965), Franciscan Herald Press publicou uma
ediçã o ampliada, acrescentando ao livro original dois capı́tulos de
Dietrich von Hildebrand ("Virtue Today" e "The Human Heart") e dois de
Alice von Hildebrand ("Communion" e "Ter esperança"). A ediçã o de
1965 foi intitulada A Arte de Viver.
Esta ediçã o de 1994 da Sophia Institute Press substitui "Virtue Today" e
"The Human Heart" pela primeira traduçã o em inglê s do livreto pó stumo
de Dietrich von Hildebrand "Uber der Dankbarkeit" ("On
Gratitude"). Essa substituiçã o cria um livro mais uni icado, mas també m
é apropriado, porque Dietrich von Hildebrand vê a gratidã o como a
virtude suprema e a chave para a felicidade. Portanto, é apropriado que
as outras virtudes discutidas nesta ediçã o expandida de A Arte de
Viver sejam completadas pela gratidã o como seu capı́tulo culminante.

1
Reverência

Os valores morais sã o os mais altos entre todos os valores
naturais. Bondade, pureza, veracidade e humildade estã o acima do gê nio,
brilho e vitalidade exuberante, acima da beleza da natureza ou da arte, e
acima da estabilidade e poder de um estado.

Os valores morais são os valores naturais mais elevados


Aquilo que se realiza e resplandece num ato de perdã o genuı́no, numa
renú ncia nobre e generosa, num amor ardente e altruı́sta, é mais
signi icativo e mais nobre, mais importante e mais eterno do que todos
os valores culturais. Os valores morais positivos sã o o foco do mundo; os
valores morais negativos sã o o maior mal, pior que o sofrimento, a
doença, a morte ou a desintegraçã o de uma cultura lorescente.
Este fato foi reconhecido por grandes pensadores como Só crates ou
Platã o, que repetiam continuamente que é melhor sofrer injustiça do que
cometê -la. Essa preeminê ncia da esfera moral é , antes de tudo, uma
proposiçã o bá sica do ethos cristã o.

Somente as pessoas podem ter valores morais


Os valores morais sã o sempre valores pessoais. Eles só podem ser
inerentes e realizados pelo homem. Uma coisa material, como uma pedra
ou uma casa, nã o pode ser moralmente boa ou má , assim como a
bondade moral nã o é possı́vel para uma á rvore ou um cachorro. Da
mesma forma, as obras da mente humana (por exemplo, descobertas,
livros cientı́ icos e obras de arte) nã o podem ser consideradas
portadoras de valores morais; eles nã o podem ser ié is, humildes e
amorosos. Eles podem, no má ximo, re letir indiretamente esses valores
como tendo a marca da mente humana. Somente o homem (como um ser
livre, responsá vel por suas açõ es e atitudes, por sua vontade e esforço,
seu amor e seu ó dio, sua alegria e sua tristeza e sua atitude bá sica super-
real) pode ser moralmente bom ou ruim. Pois muito acima de suas
realizaçõ es culturais eleva-se a importâ ncia do pró prio ser do homem:
uma personalidade que irradia valores morais, um homem humilde,
puro, verdadeiro, honesto e amoroso.

A bondade moral vem da resposta correta aos valores


Mas como o homem pode participar desses valores morais? Eles sã o
dados a ele por natureza como a beleza de seu rosto, sua inteligê ncia ou
um temperamento vivo? Nã o, eles só podem crescer a partir de atitudes
conscientes e livres; o pró prio homem deve essencialmente cooperar
para sua realizaçã o. Eles só podem se desenvolver por meio de seu
abandono consciente e livre de si mesmo aos valores genuı́nos. O homem
será rico em valores morais na proporçã o de sua capacidade de
apreender valores, na medida em que ele veja a plenitude do mundo dos
valores com uma visã o clara e fresca, e na medida em que seu abandono
a este mundo seja puro e incondicional.
Enquanto um homem desprezar cegamente os valores morais de outras
pessoas, enquanto nã o distinguir o valor positivo que é inerente à
verdade e o valor negativo que é pró prio do erro, enquanto nã o
compreender o valor positivo que lhe é inerente. na vida do homem e o
valor negativo atribuı́do a uma injustiça, ele será incapaz de bondade
moral. Enquanto ele estiver interessado apenas na questã o de saber se
algo é subjetivamente satisfató rio ou nã o, se é agradá vel para ele ou nã o,
ele nã o pode ser moralmente bom.
A alma de toda atitude moralmente boa é o abandono ao que é
objetivamente importante, é o interesse por uma coisa porque tem
valor. Dois homens sã o, por exemplo, testemunhas de uma injustiça que
está sendo in ligida a uma terceira pessoa. Aquele que em cada situaçã o
pergunta apenas se algo é agradá vel para si mesmo nã o se preocupará
com a injustiça porque calcula que nenhum dano pessoal pode resultar
da lesã o do outro. O segundo homem, pelo contrá rio, está disposto a
assumir o sofrimento em vez de permanecer desinteressado na injustiça
que está prestes a ser feita à terceira pessoa. Para o segundo homem, a
questã o preponderante nã o é se algo lhe agrada ou nã o, mas se
é importante em si mesmo. O segundo homem se comporta moralmente
bem, o primeiro moralmente mal porque ignora indiferentemente a
questã o do valor.
Se uma pessoa escolhe ou rejeita uma coisa agradá vel que é indiferente
do ponto de vista do valor, depende de seu pró prio prazer. Se ele come
ou nã o uma excelente refeiçã o é com ele mesmo. Mas o valor positivo
exige uma a irmaçã o e o valor negativo uma recusa de nossa parte.
Diante disso, a maneira como devemos nos comportar nã o é deixada ao
nosso arbı́trio prazer. Em vez disso, deve ser objeto de preocupaçã o e a
resposta correta deve ser dada, pois o interesse pelos valores e as
respostas adequadas a eles se devem aos valores. Se algué m ajuda ou
nã o outra pessoa necessitada nã o depende de seu prazer arbitrá rio; é
culpado quem ignora esse valor objetivo.
Somente aquele que compreende que existem coisas importantes em si
mesmas, que existem coisas belas e boas em si mesmas, somente o
homem que compreende a exigê ncia sublime dos valores, sua vocaçã o e
o dever de voltar-se para eles e deixar-se ser. formado por sua lei, é
capaz de realizar pessoalmente os valores morais. Só o homem que pode
ver alé m de seu horizonte subjetivo e que, livre de orgulho e
concupiscê ncia, nem sempre pergunta "o que é satisfató rio para
mim?" mas quem, deixando para trá s toda estreiteza, se abandona ao
que é importante em si mesmo — o belo, o bom — e se subordina a isso,
só ele pode se tornar portador de valores morais.

Somente os reverentes dão a resposta adequada aos valores


A capacidade de apreender os valores, a irmá -los e respondê -los é a base
para a realizaçã o dos valores morais do homem.
Agora, essas marcas podem ser encontradas apenas no homem que
possui reverê ncia. A reverê ncia é a atitude que pode ser designada como
a mã e de toda a vida moral, pois nela o homem primeiro toma uma
posiçã o em relaçã o ao mundo que abre seus olhos espirituais e lhe
permite apreender valores. Por isso, nestes capı́tulos que tratam das
atitudes morais (isto é , atitudes que fundamentam toda a vida moral e
sã o pressupostos para esta vida), devemos falar antes de tudo desta
virtude.
O homem irreverente e impertinente é incapaz de qualquer abandono ou
subordinaçã o de si mesmo. Ele é escravo de seu orgulho, desse egoı́smo
constrangedor que o torna prisioneiro de si mesmo, cego aos valores, e o
leva a perguntar repetidamente: "meu prestı́gio será aumentado, minha
pró pria gló ria será aumentada?" Ou ele é um escravo da concupiscê ncia,
algué m para quem tudo no mundo se torna apenas uma ocasiã o para
servir à sua luxú ria. O homem irreverente nunca pode permanecer em
silê ncio interior. Ele nunca dá a situaçõ es, coisas e pessoas a chance de se
desenvolverem em seu pró prio cará ter e valor. Ele aborda tudo de
maneira tã o importuna e sem tato que observa apenas a si mesmo, ouve
apenas a si mesmo e ignora o resto do ser. Ele nã o preserva uma
distâ ncia reverente do mundo.

A irreverência pode estar enraizada no orgulho


A irreverê ncia pode ser dividida em dois tipos, segundo se enraı́za no
orgulho ou na concupiscê ncia. O primeiro tipo é o do homem cuja
irreverê ncia é fruto do seu orgulho, o do impertinente. Ele é o tipo de
homem que aborda tudo com uma superioridade presunçosa e ingida, e
nunca faz nenhum esforço para entender uma coisa por dentro. Ele é o
tipo de mestre-escola "sabe-tudo" que acredita que tudo penetra à
primeira vista e sabe todas as coisas desde o inı́cio. Ele é o homem para
quem nada pode ser maior do que ele mesmo, que nunca vê alé m de seu
pró prio horizonte, de quem o mundo do ser nã o esconde nenhum
segredo. Ele é o homem que Shakespeare tem em mente em Hamlet: "Há
mais coisas no cé u e na terra, Horá cio, do que sonha sua iloso ia".
Ele é o homem dotado de uma incompreensã o fulminante, sem anseios,
como Famulus no Fausto de Goethe que está completamente preenchido
por 'quã o maravilhosamente longe ele foi'. Este homem nada suspeita da
amplitude e profundidade do mundo, das misteriosas profundezas e da
imensurá vel plenitude de valores que sã o revelados por cada raio de sol
e cada planta, e que se revelam no riso inocente de uma criança, també m
como nas lá grimas de arrependimento de um pecador. O mundo se
achata diante de seu olhar impertinente e estú pido; torna-se limitada a
uma dimensã o, super icial e muda. E evidente que tal homem é cego aos
valores. Ele atravessa o mundo com uma incompreensã o devastadora.

A irreverência pode estar enraizada na concupiscência


O outro tipo de homem que carece de reverê ncia – o homem
contundente e concupiscente – é igualmente cego aos valores. Ele limita
seu interesse a apenas uma coisa: se algo lhe é agradá vel ou nã o, se lhe
oferece satisfaçã o, se pode ser de alguma utilidade para ele.
Ele vê em todas as coisas apenas aquela dimensã o que está relacionada
ao seu interesse acidental e imediato. Todo ser é , para ele, apenas um
meio para seu pró prio objetivo egoı́sta. Ele se arrasta eternamente no
cı́rculo de sua estreiteza e nunca consegue sair de si
mesmo. Consequentemente, ele també m nã o conhece a verdadeira e
profunda felicidade que só pode luir do abandono aos verdadeiros
valores, do contato com o que é em si mesmo bom e belo.
Ele nã o aborda o ser como o primeiro tipo de maneira impertinente, mas
está igualmente fechado em si mesmo e nã o preserva essa distâ ncia para
ser exigido pela reverê ncia. Ele ignora todas as coisas e busca apenas o
que é momentaneamente ú til e conveniente para ele.
Da mesma forma, ele nunca pode icar em silê ncio interior, ou abrir seu
eu espiritual à in luê ncia do ser. Ele nunca pode se permitir receber a
alegria que os valores dã o. Ele també m está , por assim dizer, em um
perpé tuo espasmo do ego. Seu olhar recai sobre todas as coisas de forma
plana, de fora, sem compreensã o do verdadeiro signi icado e valor de um
objeto.
Ele també m é mı́ope e se aproxima demais de todas as coisas, de modo
que nã o lhes dá a chance de revelar sua verdadeira essê ncia. Ele nã o
deixa a nenhum ser o "espaço" de que necessita para se desdobrar
plenamente e em seu modo pró prio. Este homem també m é cego aos
valores, e para ele novamente o mundo se recusa a revelar sua
amplitude, profundidade e altura.

O homem reverente vê a realidade como ela é


O homem que possui reverê ncia aborda o mundo de uma maneira
completamente diferente. Ele está livre desse espasmo do ego, do
orgulho e da concupiscê ncia. Ele nã o preenche o mundo com seu pró prio
ego, mas deixa a ser o espaço de que necessita para se desdobrar. Ele
compreende a dignidade e a nobreza do ser como tal, o valor que já
possui em sua oposiçã o ao mero nada. Assim, há um valor inerente a
cada pedra, a uma gota de á gua, a uma folha de grama, precisamente
como ser, como um ente que possui seu pró prio ser, que é tal e nã o
outro. Ao contrá rio de uma fantasia ou de uma simples aparê ncia, o ser é
algo independente da pessoa que o considera e retirado de sua vontade
arbitrá ria. Portanto, cada uma dessas coisas tem o valor geral de
existê ncia.

O homem reverente não vê as coisas como instrumentos


Por causa dessa autonomia, o ser nunca é um mero meio para o homem
reverente e seus objetivos egoı́stas acidentais. O ser nunca é meramente
algo que ele pode usar. Em vez disso, ele o leva a sé rio em si
mesmo; deixa-lhe o espaço necessá rio para o seu adequado
desdobramento. Confrontado com o ser, o homem reverente cala-se para
lhe dar oportunidade de falar.
O homem que possui reverê ncia sabe que o mundo do ser é maior do
que ele, que ele nã o é o Senhor que pode fazer as coisas como Ele gosta,
e que ele deve aprender com o ser, e nã o o contrá rio.
Essa atitude responsiva ao valor do ser é permeada pela disposiçã o de
reconhecer algo superior ao arbitrá rio prazer e à vontade, e estar pronto
para subordinar-se e abandonar-se a isso. Permite ao olho espiritual ver
a natureza mais profunda de cada ser. Deixa a possibilidade de
desvendar sua essê ncia e torna o homem capaz de apreender valores.
A quem se revelará a beleza sublime de um pô r-do-sol ou a Nona
Sinfonia de Beethoven, senã o a quem a aborda com reverê ncia e abre seu
coraçã o a ela?
A quem se revelará em todo o seu esplendor o misté rio que reside na
vida e que se manifesta em cada planta, senã o a quem o contempla com
reverê ncia? Mas aquele que vê nele apenas um meio de subsistê ncia ou
de ganhar dinheiro (isto é , como algo que pode ser usado ou empregado)
nã o descobrirá o signi icado, a estrutura e o signi icado do mundo em
sua beleza e dignidade oculta.

A reverência é pressuposta para o conhecimento dos valores


A reverê ncia é o pressuposto indispensá vel de todo conhecimento
profundo — sobretudo, da capacidade de apreender valores. Toda
capacidade de ser feliz e elevado pelos valores, todo abandono
sancionado aos valores, toda submissã o à sua majestade, pressupõ e
reverê ncia.
Na reverê ncia, a pessoa leva em conta a sublimidade do mundo dos
valores; nele ele encontra aquele olhar para cima para aquele mundo,
aquele respeito pelas exigê ncias objetivas e vá lidas imanentes aos
valores que, independentemente da vontade e vontade arbitrá ria dos
homens, exigem uma resposta adequada.
A reverê ncia é o pressuposto para toda resposta ao valor, todo abandono
a algo importante, e é ao mesmo tempo um elemento essencial de tal
resposta ao valor. Cada vez que nos entregamos ao bom e belo, cada vez
que nos conformamos com a lei interior do valor, está implı́cita a atitude
bá sica de reverê ncia. Isso pode ser veri icado examinando as atitudes
morais nos diferentes nı́veis da vida.

A reverência é um elemento essencial do amor


A atitude fundamental de reverê ncia é a base de toda conduta moral
para com nossos semelhantes e para nó s mesmos. Somente ao homem
que possui reverê ncia é revelada a plena grandeza e profundidade dos
valores inerentes a todo homem como pessoa espiritual. A pessoa
espiritual como um ser consciente e livre, como um ser que, sozinho
entre todas as entidades que conhecemos, é capaz de conhecer e
apreender o resto do ser e tomar uma posiçã o signi icativa em relaçã o a
ele, só pode ser compreendido por um reverente mente. Um ser capaz e
destinado a realizar em si um rico mundo de valores, a tornar-se um
receptá culo de bondade, pureza e humildade - isso é uma pessoa.
Como pode algué m amar realmente outra pessoa, como pode fazer
sacrifı́cios por ela, se nã o sente nada da preciosidade e plenitude que
está potencialmente encerrada na alma do homem, se nã o tem
reverê ncia por esse ser?
A atitude bá sica da reverê ncia é o pressuposto de todo amor verdadeiro
— e, sobretudo, do amor ao pró ximo — porque só a reverê ncia abre
nossos olhos para o valor dos homens como pessoas espirituais e
porque, sem essa consciê ncia, nenhum amor é possı́vel.
A reverê ncia pelo amado també m é um elemento essencial de todo
amor. Dar atençã o ao signi icado e valor especı́ icos de sua
individualidade, demonstrar consideraçã o por ele em vez de forçar
nossos desejos a ele, é em parte reverê ncia.
E da reverê ncia que brota a disposiçã o de um amante de conceder ao
amado o "espaço" espiritual necessá rio para expressar livremente sua
pró pria individualidade. Todos esses elementos de todo amor verdadeiro
luem da reverê ncia.
O que seria o amor materno sem reverê ncia pelo ser em crescimento,
por todas as possibilidades de valores ainda adormecidos, pela
preciosidade da alma da criança?

Justiça pressupõe reverência


Uma reverê ncia semelhante é evidente na justiça para com os outros, na
consideraçã o pelos direitos do outro, pela liberdade de decisã o do outro,
na limitaçã o do pró prio desejo de poder e em toda compreensã o dos
direitos do outro. A reverê ncia pelo pró ximo é a base de toda a
verdadeira vida comunitá ria, da correta abordagem do casamento, da
famı́lia, da naçã o, do Estado, da humanidade, do respeito à autoridade
legı́tima, do cumprimento dos deveres morais para com a comunidade
como um todo e em relaçã o aos membros individuais dela. O homem
irreverente divide e desintegra a comunidade.

Pureza pressupõe reverência


Mas a reverê ncia també m é a alma da atitude correta em outros
domı́nios, como a pureza. A reverê ncia pelo misté rio da uniã o conjugal,
pela profundidade, ternura e validade decisiva e duradoura desse mais
ı́ntimo abandono de si mesmo, é o pressuposto da pureza. Em primeiro
lugar, a reverê ncia assegura a compreensã o desta esfera; mostra-nos
quã o horrı́vel é toda abordagem ilı́cita a este domı́nio misterioso, pois tal
abordagem ilı́cita nos profana e envolve uma grave degradaçã o da nossa
dignidade e a dos outros. A reverê ncia pela maravilha do nascimento de
uma nova vida a partir da mais ı́ntima uniã o de amor de duas pessoas é a
base para o horror de todo ato arti icial e irreverente que destró i esse
vı́nculo misterioso que existe entre o amor e o nascimento de um novo
homens.
Religião pressupõe reverência
Para onde quer que olhemos, vemos que a reverê ncia é a base e, ao
mesmo tempo, um elemento essencial da vida moral e dos valores
morais.
Sem uma atitude fundamental de reverê ncia, nenhum amor verdadeiro,
nenhuma justiça, nenhuma bondade, nenhum autodesenvolvimento,
nenhuma pureza, nenhuma veracidade sã o possı́veis. Acima de tudo, sem
reverê ncia, a dimensã o de profundidade é completamente excluı́da. A
pessoa irreverente é ela mesma plana e super icial, pois nã o consegue
compreender a profundidade do ser, pois para ela nã o há mundo alé m e
acima do que é visivelmente palpá vel. Somente ao homem que possui
reverê ncia o mundo da religiã o se abre; somente para ele o mundo como
um todo revelará seu signi icado e valor. Assim, a reverê ncia como uma
atitude moral bá sica está no inı́cio de toda religiã o. E a base para a
atitude correta dos homens em relaçã o a si mesmos, ao pró ximo, a todos
os nı́veis do ser e, acima de tudo, a Deus.

2
Fidelidade

Entre as atitudes do homem que sã o bá sicas para toda a sua vida moral,
a idelidade é colocada ao lado da reverê ncia. Pode-se falar de idelidade
em sentido estrito e em sentido amplo. Temos em mente o sentido
estrito quando falamos de idelidade para com os homens (como
idelidade a um amigo, idelidade conjugal, idelidade à pá tria ou a si
mesmo).

A idelidade dá continuidade à vida


Esse tipo de idelidade destaca o outro tipo. Re iro-me aqui à
continuidade que primeiro dá à vida de um homem sua consistê ncia
interior, sua unidade interior. A construçã o da personalidade só é
possı́vel se a pessoa se apegar irmemente à s verdades e valores que já
descobriu.
O curso da vida de um homem conté m uma substituiçã o rı́tmica
contı́nua de uma impressã o, um ato, uma decisã o por outra e uma
impressã o, ato ou decisã o diferente. Somos incapazes de ponderar um
pensamento por muito tempo e manter nossa atençã o em um ponto por
muito tempo. Assim como no reino bioló gico fome e saciedade, fadiga e
força renovada se sucedem, també m uma certa mudança rı́tmica é
pró pria do curso de nossa vida espiritual. Assim como as vá rias
impressõ es que nos afetam dã o lugar umas à s outras, e o luxo de
eventos oferece à nossa mente uma grande variedade de objetos, assim
també m nossa atençã o nã o pode permanecer focada em qualquer objeto
com a mesma intensidade. Um movimento de um assunto para outro é ,
portanto, pró prio de nosso pensamento, bem como de nosso sentimento
e vontade. Mesmo no caso de uma experiê ncia muito feliz, como o tã o
desejado encontro com uma pessoa amada, somos incapazes de
permanecer permanentemente nessa experiê ncia alegre. O ritmo de
nossa vida interior nos obriga a deixar a presença plena de uma grande
alegria e voltar nossa atençã o em outra direçã o e registrar experiê ncias
diferentes.

A continuidade profunda é a base da personalidade


Mas – e isso deve ser enfatizado – o mesmo homem tem diferentes nı́veis
de profundidade. A vida psı́quica do homem nã o se restringe ao nı́vel em
que essa mudança contı́nua se desenvolve; nã o se restringe ao nı́vel de
nossa atençã o expressa, de nossa consciê ncia presente. Enquanto
prosseguimos para outra impressã o e damos nossa atençã o a outro
objeto mental, a impressã o ou objeto precedente nã o desaparece, mas,
de acordo com seu signi icado, será retido e continuará a viver em um
nı́vel mais profundo. A memó ria é uma expressã o dessa capacidade da
alma para a vida superatual, e essa continuidade é vista em nossa
capacidade de lembrar, de conectar passado e presente.
Acima de tudo, vemos essa continuidade na sobrevivê ncia superreal de
nossas atitudes em relaçã o ao mundo, em relaçã o à s verdades e valores
fundamentais, que permanecem inalterados, embora nossa atençã o atual
esteja voltada para uma direçã o completamente diferente. Assim, por
exemplo, a alegria causada por algum acontecimento feliz continua a
"viver" no fundo de nossas almas e colore tudo o que fazemos, todas as
nossas tarefas do momento e nossa abordagem de todas as coisas com as
quais estamos expressamente preocupados. Assim també m nosso amor
por uma pessoa amada permanece vivo no fundo de nossas almas,
mesmo que estejamos ocupados com o trabalho, e esse amor constitui
uma espé cie de pano de fundo sobre o qual se desenrolam diversos
acontecimentos. Sem essa capacidade de continuidade, o homem nã o
teria unidade interior; ele seria apenas um feixe de impressõ es e
experiê ncias entrelaçadas. Se uma impressã o apenas tomasse o lugar da
precedente, se o passado desaparecesse indiscriminadamente, a vida
interior do homem seria sem sentido e super icial; qualquer construçã o,
qualquer desenvolvimento seria impossı́vel. Acima de tudo, nã o haveria
personalidade.

Os homens têm diferentes graus de continuidade interna


Embora essa capacidade de reter impressõ es e atitudes de maneira
superatual, sem a qual a vida individual de uma pessoa espiritual seja
uma capacidade comum a todo homem, o grau em que um determinado
indivı́duo possui essa coerê ncia interior contı́nua é muito diferente em
cada caso. Dizemos de muitos homens que eles vivem apenas o
momento; o instante presente tem tanto poder sobre eles que o passado,
ainda que seu conteú do seja mais profundo e importante, desaparece
diante do clamor insistente do presente.
Os homens diferem muito uns dos outros a este respeito. Alguns deles
vivem exclusivamente no nı́vel exterior de sua consciê ncia atual, de
modo que uma experiê ncia segue outra sem qualquer relaçã o com a
anterior. Poderı́amos chamar esses homens de "borboletas". Outros, ao
contrá rio, també m vivem no nı́vel mais profundo de seu ser. Nelas nada
de importante é sacri icado porque nã o está mais presente, mas torna-se
posse inalterá vel do homem, de acordo com seu grau de importâ ncia, e
novas experiê ncias signi icativas se unem organicamente a ela. Só do
ú ltimo tipo pode-se dizer que tem personalidade. Somente neste tipo de
homem pode ser constituı́da uma plenitude espiritual interior.
Homens inconstantes são prisioneiros de impressões imediatas
Quantas pessoas existem que nunca sã o in luenciadas de forma
duradoura por grandes obras de arte, pelo prazer de belas paisagens ou
pelo contato com grandes personalidades. A impressã o momentâ nea
pode ser forte, mas nã o cria raı́zes profundas neles; ela nã o está
irmemente mantida em sua vida superatual, mas desaparece assim que
outra impressã o surge. Esses homens sã o como uma peneira pela qual
tudo corre. Embora possam ser bons, bondosos e honestos, apegam-se a
uma posiçã o infantil e inconsciente; eles nã o tê m profundidade. Eles
escapam ao nosso alcance; eles sã o incapazes de ter relacionamentos
profundos com outras pessoas porque nã o sã o capazes de nenhum
relacionamento permanente com nada. Esses homens nã o conhecem a
responsabilidade porque nã o conhecem vı́nculo duradouro, porque com
eles um dia nã o chega ao pró ximo. Embora suas impressõ es sejam fortes,
essas impressõ es nã o penetram até o nı́vel mais profundo em que
encontramos atitudes que estã o alé m das mudanças do momento. Essas
pessoas prometem honestamente algo em um momento e no pró ximo
isso desapareceu completamente de sua memó ria. Eles fazem resoluçõ es
sob uma forte impressã o, mas a pró xima impressã o os afasta. Eles sã o
tã o impressioná veis que sã o sempre mantidos no nı́vel super icial de sua
consciê ncia atual. Para essas pessoas, peso e valor nã o sã o os fatores
preponderantes que determinam seu interesse pelas coisas, mas apenas
a vivacidade da impressã o criada pela presença real dessas coisas. O que
os impressiona é a vantagem geral da vivacidade que as impressõ es ou
situaçõ es presentes tê m sobre as do passado.

Os homens super iciais são inconstantes


Existem dois tipos de homens inconstantes. No um, nada jamais penetra
verdadeiramente em seu centro mais profundo. Esse centro mais
profundo, por assim dizer, permanece vazio neles; eles conhecem apenas
os estratos da consciê ncia presente. Esses homens sã o ao mesmo tempo
super iciais, privados de vida profunda e de qualquer tipo de irmeza
interior. Sã o como areia movediça que cede sem qualquer resistê ncia. Se
você procura em tais homens um centro permanente no qual possa
depender e con iar, entã o você realmente se agarra ao vazio.
E claro que em um homem saudá vel isso nã o é absoluta e
completamente o caso; um homem que, no sentido literal, fosse
completamente desse cará ter seria um psicopata. Mas muitas vezes
encontramos pessoas cujas vidas, pelo menos até certo ponto, se
desenrolam dessa maneira, embora nã o pudé ssemos chamá -las de
psicó ticas.

Homens mais profundos também podem ser inconstantes


No segundo tipo, temos que lidar com homens que realmente tê m
impressõ es profundas, em cujas camadas mais profundas realmente se
enraı́zam. Sua consciê ncia mais profunda, portanto, nã o é vazia; criaram
em si mesmos um centro irme e duradouro. Mas eles estã o tã o
aprisionados no momento presente que aquilo que está em seus estratos
mais profundos é incapaz de carregar seu verdadeiro peso; nã o pode
manter-se irme contra o poder da impressã o momentâ nea. Somente
quando a impressã o presente e viva se desvanece, o conteú do dos
estratos mais profundos pode voltar à luz. Tais homens poderiam, por
exemplo, muito bem nutrir um amor profundo e duradouro por outra
pessoa, mas uma situaçã o momentâ nea, se for poderosa, vı́vida e
atraente, os capturaria a tal ponto que o amado seria quase
esquecido. Entã o eles dizem e fazem coisas que contradizem o amor
genuı́no e vivo escondido nas profundezas de suas almas. Essas pessoas
estã o continuamente em perigo de se tornarem traidoras de si mesmas
ou dos outros. Para tais pessoas, o indivı́duo que está presente,
simplesmente porque está presente, sempre tem vantagem sobre o
ausente. Este é o caso mesmo quando a pessoa ausente é , em geral, mais
cara para ela e, a longo prazo, desempenha um papel mais
importante. Suponha que eles tenham, por exemplo, recebido uma
impressã o profunda de uma obra de arte; uma relaçã o duradoura com
esta obra de arte se constituiu nas profundezas de suas almas. No
entanto, novas impressõ es poderosas se apoderam deles a tal ponto que
a impressã o anterior nã o se manté m irmemente na nova situaçã o e,
como resultado, nã o se vê vestı́gios da primeira impressã o enquanto a
nova durar. Mais tarde, quando o efeito de imersã o da nova situaçã o se
esvai, a velha, em si mesma mais profunda, reentra na posse de seu
devido lugar e autoridade.

Homens perseverantes são iéis aos valores perenes


Em contraste com esses dois tipos, o homem perseverante se apega a
tudo o que se revelou a ele como um valor genuı́no. A vantagem da
vivacidade, que o presente possui sobre o passado, nã o tem poder sobre
sua vida quando comparada ao peso interior das verdades profundas
que ele reconheceu e dos valores que ele captou. A importâ ncia do papel
desempenhado por uma determinada coisa em sua consciê ncia atual é
determinada exclusivamente pela altura de seu valor, e de modo algum
por sua mera presença.

A idelidade nos protege da tirania da moda


Tais homens sã o, consequentemente, protegidos da tirania da
moda. Uma coisa nunca causa uma impressã o profunda neles apenas
porque é moderna, porque está momentaneamente "no ar", mas apenas
porque tem um valor, porque é bela, boa e verdadeira. Na verdade, essas
pessoas consideram o que é mais importante e tem um valor mais
elevado por si só quanto mais "atualizado". Objetos dotados de valores
nunca envelhecem para eles, mesmo que a existê ncia concreta desses
objetos tenha cessado há muito tempo. A vida desses homens é
signi icativamente integrada e em seu curso re lete a gradaçã o objetiva
de valores. Enquanto o homem inconstante é presa de impressõ es e
situaçõ es acidentais, o homem constante domina suas pró prias
impressõ es. Somente esses homens compreendem a sublime
preeminê ncia dos valores sobre qualquer mera dimensã o do tempo, o
cará ter imutá vel e imutá vel dos valores e da verdade. Eles entendem que
uma verdade importante nã o é menos interessante e menos digna de
preocupaçã o porque a conhecemos há muito tempo. Entendem,
sobretudo, que a obrigaçã o de responder por um bem que possui valor
nã o se limita ao momento em que é apreendido.
Só o homem constante compreende realmente as exigê ncias do mundo
dos valores; só ele é capaz da resposta ao valor que se deve aos valores
objetivos. Uma resposta adequada aos valores é duradoura e independe
do encanto da novidade e da força atrativa representada pela mera
presença de uma coisa. Somente aquele para quem os valores nunca
perdem sua e icá cia e encanto uma vez que lhe foram revelados, e que
nunca deixa cair no esquecimento uma verdade que ele apreendeu, fará
realmente justiça ao cará ter pró prio do mundo da verdade e dos
valores. Só ele é capaz de permanecer iel aos objetos que possuem valor.

A idelidade é essencial para a maturidade moral


Essa constâ ncia ou idelidade no verdadeiro sentido da palavra é , como
vemos, uma atitude moral fundamental do homem. E uma consequê ncia
necessá ria de toda compreensã o verdadeira dos valores, e é um
elemento componente de toda resposta verdadeira aos valores e,
consequentemente, de toda a vida moral.
Apenas a resposta constante aos valores, a resposta que se apega a uma
coisa que possui um valor (quer essa coisa esteja realmente presente ou
nã o), é uma resposta ao valor desenvolvida, moralmente madura e
plenamente consciente. Somente um homem que responde dessa
maneira é verdadeiramente moralmente desperto; só ele é con iá vel. Só
ele se sente responsá vel pelo que fez em outras situaçõ es; só ele é capaz
de verdadeira contriçã o por delitos anteriores. Somente nele todas as
verdadeiras obrigaçõ es dominarã o todas as situaçõ es de sua vida. Só ele
permanecerá irme nas provaçõ es. Pois a luz dos valores brilhará para
ele mesmo nas situaçõ es monó tonas da vida cotidiana – sim, mesmo nos
momentos de tentaçã o.
Isto é assim porque este homem vive das profundezas e domina cada
momento das profundezas. Quanto mais iel, quanto mais constante for o
homem, quanto mais rico e substancial será , tanto mais capaz de se
tornar um receptá culo de valores morais, um ser no qual a pureza, a
justiça, a humildade, o amor e a bondade habitarã o de forma duradoura
e de quem esses valores irã o irradiar para o mundo ao seu redor.

A idelidade é essencial para o crescimento espiritual


Se examiná ssemos os diferentes nı́veis da vida, encontrarı́amos
repetidamente o signi icado bá sico da idelidade nesse sentido mais
amplo. A atitude bá sica de constâ ncia é um pressuposto geral de todo
crescimento espiritual da pessoa e, sobretudo, de todo desenvolvimento
moral e de todo progresso moral. Como pode crescer espiritualmente
um homem que nã o adere irmemente a todos os valores que lhe foram
revelados e para quem esses valores nã o se tornam uma posse
duradoura? Como poderia algué m que é dominado por impressõ es
momentâ neas de curta duraçã o conseguir um desenvolvimento gradual
de sua pró pria estrutura moral?

A inconstância atrapalha o desenvolvimento moral


Quando temos de lidar com o homem radicalmente inconstante que
mencionamos pela primeira vez neste capı́tulo, vemos que nada chega à s
camadas mais profundas de tal pessoa. Tais homens estã o mortos
interiormente; sua personalidade carece de um centro duradouro. Nos
homens do segundo tipo, falta a possibilidade de uma formaçã o real do
curso da vida; pois os valores que outrora apreenderam - e que deveriam
ser uma posse permanente de suas almas - desapareceram de suas
vidas. Eles nã o podem, portanto, moldar novas impressõ es por tais
valores. Para que serve a melhor educaçã o se falta essa constâ ncia? Para
que servem as exortaçõ es mais urgentes, a revelaçã o mais viva dos
valores, se os valores, uma vez apreendidos, permanecem sem raı́zes
permanentes ou se adormecem em nossas almas? Por mais
surpreendente que pareça, as pessoas inconstantes nunca mudam a si
mesmas. Eles retê m os defeitos e as caracterı́sticas que herdaram de sua
natureza, mas nã o adquirem valores morais. Mesmo que eles realmente
reconheçam por um momento suas falhas e formem as melhores
resoluçõ es, sua inconstâ ncia impede qualquer melhoria moral
duradoura. Mesmo quando sua vontade for boa, a educaçã o nã o terá
efeito duradouro sobre eles. Nã o porque se fechem (como o homem que
é vı́tima de um orgulho constrangedor e a quem, portanto, a in luê ncia
dos valores nã o pode penetrar), mas porque dã o muito peso a cada
impressã o fugaz e, portanto, sã o incapazes de reter o que tê m. adquirido.
A inconstância interfere no aprendizado
Toda autoeducaçã o pressupõ e essa atitude de constâ ncia. Só o homem
constante poderá assimilar as impressõ es contraditó rias para extrair de
cada um o que há de bom. Ele aprenderá com cada situaçã o da vida e
crescerá em cada situaçã o, pois nele permanece viva a medida dos
valores genuı́nos. O homem inconstante, por outro lado, cede ora a uma,
ora a outra impressã o, e torna-se tã o inteiramente presa de cada um que,
no fundo de sua alma, tudo passa mais ou menos sem deixar
vestı́gios. Isso gradualmente enfraquece sua compreensã o dos valores e
sua suscetibilidade à in luê ncia deles. Só o homem constante preferirá o
mais importante ao menos importante, o mais valioso ao menos,
enquanto o inconstante responderá , na melhor das hipó teses,
indiscriminadamente a todos os valores, nã o reconhecendo neles
nenhuma hierarquia. De fato, nada é mais importante para o crescimento
moral, para a pró pria vida moral de uma pessoa, do que a consideraçã o
pela hierarquia objetiva dos valores e a capacidade de dar prioridade ao
que é objetivamente superior.

A moral e a religião pressupõem constância


A atitude fundamental de idelidade é també m o pressuposto da
con iabilidade em toda prova moral. Como pode aquele que vive apenas
no momento presente, em quem o passado, presente e futuro nã o
formam uma unidade signi icativa, manter uma promessa ou resistir à
prova em uma batalha de ideias? Como se pode con iar em uma pessoa
tã o inconstante? Só o homem iel pode inspirar aquela con iança que
constitui a base de qualquer comunidade. Só ele possui o alto valor
moral de estabilidade, con iabilidade e con iabilidade.
Mas a constâ ncia é també m uma condiçã o para qualquer con iança por
parte da pró pria pessoa e sobretudo para a fé heró ica. O homem instá vel
nã o é apenas indigno de con iança, mas ele mesmo será incapaz de uma
con iança irme e inabalá vel, seja em outros homens, na verdade, ou no
pró prio Deus.
A tal homem falta a força para nutrir sua alma com um valor uma vez
descoberto. Portanto, quando a noite e a obscuridade o cercam, ou
quando outras fortes impressõ es o assaltam, ele perde a fé . Nã o é por
acaso que em latim a palavra ides signi ica tanto " idelidade" quanto
"fé ". Pois a constâ ncia é um constituinte essencial de toda capacidade de
acreditar e, consequentemente, de toda religiã o.

A idelidade está no coração de todo amor


A eminente importâ ncia da idelidade sobressai de modo especial no
contexto das relaçõ es humanas. (Aqui a idelidade é tomada em seu
sentido estrito, ou seja, " idelidade".) Pois o que é amor sem
idelidade? Em ú ltima aná lise, nã o passa de uma mentira. Pois o
signi icado mais profundo de todo amor - a "palavra" interior
pronunciada no amor - é a orientaçã o interior e a doaçã o de si para o
amado, uma doaçã o que nã o conhece limite de tempo. Nenhuma
lutuaçã o no curso da vida pode destruı́-la. Se for amor verdadeiro,
somente uma mudança profunda na pessoa amada pode afetar nosso
amor se for amor verdadeiro.
Um homem que diria "eu te amo agora, mas quanto tempo vai durar, eu
nã o posso dizer" nã o ama verdadeiramente; ele nem sequer suspeita da
pró pria natureza do amor. A idelidade é tã o essencialmente uma com o
amor, que todos, pelo menos enquanto amam, devem considerar sua
devoçã o uma devoçã o imortal. Isso vale para todo amor, para o amor
paterno e ilial, para a amizade e para o amor conjugal. Quanto mais
profundo um amor, mais impregnado de idelidade.
E precisamente nesta idelidade que encontramos o esplendor moral
especı́ ico, a casta beleza do amor. O elemento especialmente tocante do
amor, expresso de forma tã o singular no Fidelio de Beethoven, está
essencialmente ligado à idelidade. A idelidade inalterá vel do amor de
mã e, a idelidade vitoriosa de um amigo, possuem uma beleza moral
especı́ ica que toca o homem cujo coraçã o está aberto aos valores. A
idelidade está no coraçã o de todo amor verdadeiro e profundo. E
imanente à sua pró pria natureza.
Por outro lado, o que é mais vil ou mais repulsivo do que a in idelidade
declarada, essa oposiçã o radical à idelidade, que é muito pior do que a
mera inconstâ ncia. Que mancha moral hedionda marca o traidor que,
por in idelidade, fere o pró prio coraçã o que se abriu com con iança a ele
e se oferece a ele desprotegido. Aquele que é in iel em suas atitudes
bá sicas é um Judas para o mundo dos valores.

A idelidade é uma resposta livre ao mundo dos valores


Há pessoas a quem a idelidade aparece à luz de uma mera virtude
burguesa, uma mera correçã o, uma lealdade té cnica. Na opiniã o de tais
pessoas, o homem que é grande, altamente talentoso e livre de
convençõ es mesquinhas nã o se preocupa com isso. Este é um mal-
entendido sem sentido da verdadeira natureza da idelidade. E verdade
que uma ê nfase muito forte na pró pria idelidade pode criar uma
impressã o dolorosa. E verdade que é possı́vel dar uma certa imitaçã o de
idelidade inofensiva, bem-humorada e barata. O fato é que a verdadeira
idelidade é um elemento indispensá vel de toda grandeza moral, de toda
profundidade e força de personalidade.
A idelidade se opõ e à mera lealdade burguesa ou a um puro apego ao
há bito. Seria um erro acreditar que a idelidade é o mero resultado de
um temperamento preguiçoso, e a inconstâ ncia o resultado de um
espontâ neo e vivaz. Nã o, esta virtude é uma resposta livre e signi icativa
ao mundo da verdade e dos valores, à importâ ncia imutá vel e intrı́nseca
desse mundo e à s suas reais exigê ncias. Sem essa atitude bá sica de
idelidade, nenhuma cultura, nenhum progresso no conhecimento,
nenhuma comunidade, acima de tudo, nenhuma personalidade moral,
nenhum crescimento moral, nenhuma vida espiritual substancial e
interiormente uni icada, nenhum amor verdadeiro é possı́vel. Esse
signi icado bá sico da idelidade, no sentido mais amplo, deve penetrar
no â mago de todo relacionamento para que nã o seja julgado como um
fracasso.

3
Responsabilidade

Quando chamamos algué m de homem moralmente consciente e outra
pessoa de inconsciente moral , temos em mente uma diferença que é
decisiva do ponto de vista é tico.

O homem moralmente inconsciente é governado pelo impulso


O homem inconsciente vagueia pela vida. E claro que ele apreende certos
valores e responde a eles, mas esse processo se dá de uma maneira
desprovida de uma vigília última e de um cará ter explı́cito. Sua
compreensã o dos valores permanece mais ou menos acidental. Acima de
tudo, sua vida, em geral, nã o é vivida consciente e expressamente sob a
terrı́vel espada do bem e do mal. Mesmo quando, em determinado
momento, ele rejeita algo ruim e a irma algo bom, no fundo essa atitude
é uma a irmaçã o de seu pró prio temperamento, e nã o uma cooperaçã o
realmente esclarecida e uma conformidade com as implacá veis
exigê ncias dos valores.
O homem inconsciente se comporta de acordo com os impulsos de sua
natureza; ele ainda nã o descobriu em si mesmo a capacidade de dirigir-
se livremente para as exigê ncias objetivas do mundo dos valores,
independentemente do que é ou nã o compatı́vel com sua natureza. Ele
nã o tem consciê ncia dessa capacidade de aprovar ou rejeitar livremente
os impulsos que surgem de sua pró pria natureza, conforme sejam ou nã o
conformes ao mundo dos valores.

A excelência moral escapa ao homem moralmente inconsciente


Os homens inconscientes nã o sã o despertados para a prerrogativa
especi icamente moral da pessoa espiritual para aprovar ou repudiar
livremente; eles nã o fazem uso dele.
Consequentemente, eles ignoram a necessidade de esforço consciente
para desenvolver e melhorar sua estatura moral. Em suas vidas nã o
encontramos auto-educaçã o moral. Essa lentidã o moral é um obstá culo à
formaçã o de uma personalidade moral. A consciê ncia moral e a vigı́lia
moral sã o pressupostos indispensá veis para uma compreensã o real dos
valores, para respostas verdadeiras aos valores e, consequentemente,
para a posse de valores morais. O homem moralmente inconsciente pode
ser bom, iel, justo e amigo da verdade, mas apenas no sentido de que é
um pá lido re lexo dessas virtudes. A sua bondade, idelidade, justiça e
veracidade carecem da beleza especı́ ica da excelê ncia moral, uma volta
plena e livre aos valores, uma submissã o à sua majestade soberana e
uma subordinaçã o real à s suas leis eternas. O cará ter acidental das
virtudes de tal homem e o cará ter incompleto de suas respostas privam
essas virtudes de seu verdadeiro nú cleo moral. Sã o virtudes morais cuja
alma é privada de sua vida ú ltima, livre e signi icativa.

O homem moralmente consciente está atento às responsabilidades


A reverê ncia e essa verdadeira idelidade que chamamos
de constância estã o intimamente relacionadas a essa vigı́lia moral. Alé m
disso, eles só podem se desenvolver plenamente em um homem
moralmente consciente. Essa vigı́lia moral é també m a alma da atitude
moral fundamental que chamamos de consciência da responsabilidade.
Só o homem com esta consciê ncia de responsabilidade pode apreciar
com justiça o impacto das exigê ncias do mundo dos valores. Ele
compreende nã o apenas o esplendor, a beleza interior e a majestade do
mundo dos valores, mas també m a soberania sobre nó s que este mundo
possui objetivamente. Ele compreende a seriedade implacá vel de suas
exigê ncias; ele experimenta seu chamado pessoal sobre nó s. Ele percebe
os comandos e as proibiçõ es que emanam dos valores.
Ele possui aquela vigı́lia em relaçã o ao mundo dos valores que coloca sua
vida sob a espada da justiça, que o torna a cada momento consciente de
sua pró pria posiçã o e deveres no cosmos e que o faz perceber
claramente que ele nã o é seu pró prio mestre. Ele sabe que nã o pode agir
livremente de acordo com seu prazer arbitrá rio, que nã o é seu pró prio
juiz, mas que deve prestar contas a Algué m que é superior a ele.

A corrupção é a pior forma de irresponsabilidade moral


O oposto do homem que está consciente de suas respostas é o homem
desatento e irre letido. O tipo mais radical desta categoria é
representado pelo homem que nã o se preocupa minimamente com o
mundo dos valores, mas apenas com o que lhe é subjetivamente
satisfató rio.
Ele é o homem grosseiro, sujeito a seus pró prios desejos, que ignora
cegamente todos os valores e para quem o mundo inteiro oferece apenas
uma ocasiã o para garantir mais prazer. Este é o mesmo tipo de homem
que designamos anteriormente como aquele que carece de
reverê ncia. Ele vive na escuridã o, quase como um animal, e deixa o
mundo dos valores completamente de lado. Ele nã o está preocupado
nem com o bem nem com o mal, e nã o dá atençã o à importâ ncia das
exigê ncias do mundo dos valores ou da espada da justiça que paira sobre
sua cabeça. Embora ele possa perseguir sua busca de prazer e prazer
com notá vel esperteza e cuidado, ele é possuı́do por uma derradeira e
terrı́vel desconsideraçã o. E ó bvio que este homem, que nunca é tocado
por valores, que nã o conhece nenhum abandono a eles, é completamente
irresponsá vel.

A inconsciência moral é uma segunda forma de irresponsabilidade


Completamente diferente desse tipo totalmente corrompido, no qual
nenhum valor moral pode lorescer, é o homem moralmente
inconsciente de quem falamos acima. Este pode, até certo ponto,
apreender valores, ser afetado por eles e, à s vezes, até conformar-se a
eles, mas nã o pode entendê -los plenamente, pois está privado de uma
consciê ncia consciente e explı́cita.
Ele també m está cheio de uma profunda desconsideraçã o, com uma falta
de compreensã o da importâ ncia ú ltima do mundo dos valores e suas
demandas. Ele pode ser bem-humorado, amá vel, generoso, pronto para
ajudar, mas tudo isso sem atingir a excelê ncia moral.
Este homem també m nã o possui uma consciê ncia de
responsabilidade. Nas diversas situaçõ es da vida ele nã o busca uma
decisã o realmente clara e inequı́voca sobre a questã o do valor; para
dizer "sim" ou "nã o", basta que ele tenha uma impressã o aproximada do
que é bom ou mau, do que é belo ou feio.
Isto é incompreensı́vel; pois ele nã o considera a natureza especı́ ica e
objetiva do valor e sua demanda, mas apenas se uma determinada
atitude lhe convé m ou nã o, se está ou nã o em conformidade interior com
seu temperamento. Consequentemente, suas respostas serã o
impensadas, privadas de uma clareza inequı́voca de visã o sobre os
valores em jogo em qualquer situaçã o concreta.

A super icialidade deixa irresponsáveis alguns que buscam o bem


Finalmente, existe um tipo de homem irre letido que faz um esforço
moral consciente, mas que, por uma certa super icialidade e frivolidade
de sua natureza, nã o considera necessá rio para tomar suas decisõ es ter
uma noçã o clara e precisa do valor em questã o. Ele nã o se esforça para
elaborar uma ideia clara de uma questã o de valor em um determinado
caso. Ele tomará decisõ es em casos graves sobre a aparê ncia pura do
bem ou do mal. O que a opiniã o pú blica diz, o que é aconselhado por um
conhecido, o que lhe parece por convençã o como correto, basta para que
ele se posicione em um determinado caso. Ele nã o compreende que,
antes de tomar uma decisã o, a importâ ncia da questã o de saber se foi ou
nã o dada uma resposta adequada aos valores nos obriga
imperativamente a uma compreensã o real e clara das exigê ncias desses
valores. A falta de consideraçã o de tais homens reside no fato de que eles
nã o levam su icientemente a sé rio a questã o do valor; apesar de sua boa
vontade, eles chegam a uma decisã o a irmativa ou negativa sem ter
realmente ouvido a voz dos valores, sem ter se dado ao trabalho de
examinar realmente o que é devido aos valores.
Por causa dessa falta de senso de responsabilidade, a vida de um homem
assim se torna uma espé cie de jogo jogado na superfı́cie. Enquanto essa
atitude for dominante, o homem em questã o permanece imaturo e
infantil. Essa atitude també m é pró pria do homem tipicamente
inconstante, de quem falamos no capı́tulo anterior, que vive apenas o
momento presente e que nã o pode reter as aquisiçõ es de suas
experiê ncias mais profundas por causa da in luê ncia daqueles que estã o
presentes. O homem sem senso de responsabilidade també m responde
rá pido demais, sem se dar ao trabalho de testar novas experiê ncias
contra o pano de fundo das verdades que já descobriu.

A irresponsabilidade em pensamento ou ação é moralmente
negativa
A atitude moralmente negativa dessa falta de senso de responsabilidade
é particularmente marcante quando se trata nã o apenas de uma atitude
interior, mas de uma açã o exterior transitó ria. Obviamente, todo "sim"
ou "nã o" que é proferido em resposta a valores é uma parte da realidade
e, portanto, carrega toda a importâ ncia decisiva da realidade em
oposiçã o à s meras possibilidades que podem se apresentar à nossa
imaginaçã o.
Aqui, novamente, um abismo se abre entre uma tendê ncia que surge em
nó s e o "sim" ou "nã o" interior de uma resposta totalmente
consciente. Em cada decisã o puramente interior que tomamos, em cada
entusiasmo ou indignaçã o livremente sancionados por nó s, há algo que
nã o podemos desfazer.
Mas uma açã o que intervé m no mundo exterior é ainda mais irrevogá vel
se o status ante quo nã o puder ser restabelecido. Pois no caso das
atitudes interiores, por meio de uma revogaçã o interior do passado por
meio de uma contriçã o genuı́na, podemos pelo menos apagar um
elemento essencial do que realmente aconteceu. Mas aquele que
negligenciou uma oportunidade uma vez dada na esfera da açã o externa
nã o pode desfazer o que fez; aquele que falhou em salvar outro homem
cuja vida está em perigo nã o pode ressuscitá -lo.

A irresponsabilidade é uma forma de desrespeito à realidade


Na falta de responsabilidade, na imprudê ncia, també m é evidente a falta
de respeito pela realidade, pela importâ ncia de algo que uma vez foi
trazido à existê ncia. Há també m uma incompreensı́vel falta de
compreensã o do cará ter irrevogá vel e das consequê ncias de qualquer
ato maligno. O poeta alemã o Schiller expressa essa verdade quando
escreve: "Esta é a maldiçã o de todo mal feito / Que, propagando-se
ainda, produz o mal".
O homem irre letido ica assustado quando percebe o que fez. Seu ato
culposo nã o é resultado de má intençã o, mas de uma falta geral e
devastadora da compreensã o da gravidade e importâ ncia da realidade.
A falta de compreensã o da gravidade das exigê ncias dos valores, a falta
de resposta a este aspecto do mundo dos valores, induz nele a uma
incompreensã o da importâ ncia da realidade. E bastante compreensı́vel
que de uma atitude frı́vola em relaçã o à realidade saiam decisõ es
formadas sem su iciente compreensã o das demandas que emanam dos
valores.
Alé m disso, encontramos tal homem desinteressado nas consequê ncias
de uma açã o; sua atitude é considerar apenas o momento presente. E
claro que certas consequê ncias nem sempre devem ser previstas, e
certas exigê ncias de valores sã o tais que eles mesmos, por assim dizer,
assumem a responsabilidade das possı́veis consequê ncias. Mas, na
maioria dos casos, devemos, antes de tomar uma decisã o, examinar se as
consequê ncias de nossa açã o, na medida em que podem ser previstas e
ainda mais se forem inevitá veis, sã o em si boas ou má s. Caso contrá rio,
faltaria um verdadeiro interesse pelos valores.

O homem responsável leva a sério a realidade


O homem que tem consciê ncia de sua responsabilidade, por outro lado,
compreende toda a seriedade do mundo dos valores e suas exigê ncias, e
leva em conta essas exigê ncias. Ele compreende toda a seriedade e o
cará ter irrevogá vel da realidade inerente a cada decisã o. Na medida do
possı́vel em uma dada situaçã o, ele toma uma decisã o e toma sua posiçã o
apenas quando a questã o do valor é inequivocamente clara para ele. Sua
vida traz o selo de vigı́lia, de seriedade em vez de frivolidade, de
masculinidade em vez de infantilidade.

A responsabilidade exige cuidado, não lentidão


Isso nã o signi ica que o homem consciente de suas responsabilidades
deva ser uma pessoa extremamente cautelosa, que hesita e delibera sem
parar antes de tomar uma posiçã o ou tomar uma decisã o. Em uma dada
situaçã o, ele també m pode fazer uma escolha sem mais deliberaçõ es, se
o valor em jogo se revelar à primeira vista com clareza inconfundı́vel. A
questã o de saber se um homem está ciente de sua responsabilidade nã o
depende se a base de sua decisã o é uma intuiçã o imediata do valor ou se
é alcançada por deliberaçã o. O que importa exclusivamente é se o valor é
ou nã o inequivocamente claro para ele.
O que decide a natureza especı́ ica do homem conscientemente desperto
nã o é a diferença entre um temperamento ultracauteloso, hesitante e
lento em oposiçã o a um ené rgico e á gil. Nã o, um homem desperto agirá
cautelosamente ou prontamente conforme, à primeira vista, ele seja ou
nã o inequivocamente claro sobre o valor em jogo. Nã o é seu
temperamento, mas o grau em que os valores ou valores negativos e suas
exigê ncias sã o objetivamente lú cidos para ele que o levará em um caso a
tomar uma posiçã o imediata e aparentemente impulsiva, enquanto em
outro a examinar a situaçã o com preocupaçã o e deliberaçã o. Graças à
sua vigilâ ncia e reverê ncia ao mundo dos valores e à importâ ncia da
realidade, ele entende que antes de tomar uma decisã o é chamado a
obter a maior evidê ncia possı́vel sobre os valores em jogo.

O homem responsável conta com bons conselheiros


O homem que está verdadeira e conscientemente ciente de sua
responsabilidade está , no entanto, longe de depositar teimosa con iança
em sua pró pria percepçã o. Ele nã o tem nada em comum com o chamado
homem orgulhoso e seguro de si, que acredita que deve a si mesmo
basear todas as decisõ es exclusivamente em sua pró pria percepçã o.
O homem que está verdadeira e conscientemente consciente de sua
responsabilidade nã o tem nada desse egoı́smo constrangedor e desse
orgulho moral; ele está , ao contrá rio, exclusivamente preocupado em
cumprir as exigê ncias objetivas do mundo dos valores. Tal homem
també m está ciente dos limites de sua pró pria capacidade e capacidade
de apreender valores. Assim, ele se deixa guiar pela visã o clara de
algué m que ele sabe ser moralmente superior e ter uma compreensã o
mais profunda dos valores, em vez de preferir seguir uma vaga
impressã o que sua pró pria visã o de uma determinada situaçã o lhe dá .
Antes de tudo, ele será guiado pelos mandamentos de uma verdadeira
autoridade. Mas ele pró prio deve primeiro estar convencido, sem
sombra de dú vida, da superioridade de seu conselheiro na compreensã o
de valores moralmente relevantes, e deve compreender claramente a
natureza legı́tima da autoridade desse conselheiro. Ele nã o permitirá
que a sugestã o pura tenha qualquer in luê ncia sobre suas decisõ es. Ele
nã o se deixará convencer de nada nem será blefado por outros. Acima de
tudo, ele nã o permitirá que pessoas que possuam um temperamento
dinâ mico e cuja superioridade nã o esteja na esfera moral imponham
suas idé ias e conselhos sobre ele, o intimidem ou abalem sua decisã o.

Responsabilidade não é auto-importância


A consciê ncia da responsabilidade é um pressuposto indispensá vel para
qualquer vida moral verdadeira. Por meio dessa atitude bá sica de vigı́lia,
tudo no homem assume sua plena importâ ncia, sua verdadeira
profundidade.
Mas nunca se deve confundir essa consciê ncia de responsabilidade com
um sentimento de auto-importâ ncia moral ou com uma superestimaçã o
do pró prio papel no mundo. O homem responsá vel deve estar
completamente inspirado pelo mundo dos valores e suas exigê ncias; ele
deve reverentemente prestar atençã o ao que é objetivamente correto,
bom e belo; ele deve ser interiormente livre para seguir sempre e em
toda parte o chamado dos valores.

A responsabilidade difere essencialmente do escrúpulo


Esta consciê ncia da responsabilidade nada tem a ver com a ansiedade
excessiva das pessoas escrupulosas. O homem escrupuloso examina
constantemente o que é moralmente obrigado a fazer, mas isso nã o
signi ica que seu interesse pelos valores seja extraordiná rio. Nã o, é
porque ele permanece preso dentro de si mesmo. Alé m disso, a pessoa
escrupulosa é incapaz de se deixar levar completamente pela evidê ncia
inquestioná vel dos valores. Ele está sempre buscando uma garantia
maior do que aquela fornecida por sua pró pria percepçã o do valor em
jogo.
O homem que está verdadeiramente desperto para sua responsabilidade,
ao contrá rio, permanece indeciso apenas enquanto sente que nã o
compreende completamente as reivindicaçõ es do valor em jogo. Mas
quando essa certeza é alcançada, ele se sente seguro e livre.

A responsabilidade é uma base necessária para a religião


A consciê ncia da responsabilidade é uma atitude bá sica para uma
concepçã o religiosa do mundo. O homem responsá vel sabe que nã o é
governado apenas por um mundo impessoal de valores, mas també m
por um juiz pessoal que é ao mesmo tempo a Soma de todos os valores e
aquele a quem um dia terá de prestar contas.
Consequentemente, essa atitude, como a reverê ncia, é a base de toda
religiã o. Seu signi icado, como o da reverê ncia, constâ ncia ou idelidade,
estende-se a todos os domı́nios da vida e é necessá rio para todo
conhecimento verdadeiro, para toda vida comunitá ria, para toda
realizaçã o artı́stica, mas acima de tudo para a vida moral, para uma
personalidade moral genuı́na, e para o relacionamento adequado das
criaturas com o Criador. Assim, um dos principais objetivos de toda
educaçã o e formaçã o da personalidade deve ser levar-nos a uma
consciê ncia mais plena de nossa responsabilidade.

4
Veracidade

A veracidade é outro dos pressupostos fundamentais para a vida moral
de uma pessoa. Uma pessoa mentirosa ou mentirosa nã o apenas
incorpora um grande desvalor moral (como o homem avarento ou
intemperante), mas é aleijada em toda a sua personalidade e em toda
a sua vida moral. Tudo nele que é moralmente positivo é ameaçado por
sua falsidade e até se torna duvidoso. Sua posiçã o em relaçã o ao mundo
dos valores como um todo é afetada em sua essê ncia.

A falsidade envolve irreverência em relação à realidade


O homem in iel carece de reverê ncia para com os valores. Ele assume
uma posiçã o senhorial sobre o ser; ele a trata como lhe apraz e a trata
como se fosse uma mera quimera, um joguete de seu prazer
arbitrá rio. Ele nega o reconhecimento e a resposta ao valor inerente ao
ser como tal, à dignidade que o ser possui por sua oposiçã o ao nada. O
in iel nã o cumpre a obrigaçã o fundamental de reconhecer tudo o que
existe em sua realidade, de nã o interpretar preto como branco e de nã o
negar um fato. Ele se comporta em relaçã o ao ser como se ele nã o
existisse. Obviamente, esta atitude implica um elemento de arrogâ ncia,
de irreverê ncia e impertinê ncia. Tratar outra pessoa "como se fosse ar",
agir como se esse homem nã o existisse, talvez seja a maior evidê ncia de
desrespeito e desprezo. A pessoa mentirosa toma essa atitude em
relaçã o ao mundo do ser. Um louco desconsidera o ser como ser porque
nã o o apreende. O in iel compreende-o como tal, mas recusa a resposta
que se deve à dignidade e ao valor do ser simplesmente porque lhe é
inconveniente ou desagradá vel fazê -lo. Seu descaso com o ser é
consciente e culpado.
Até certo ponto, um mentiroso considera o mundo inteiro um
instrumento para seus pró prios ins. Tudo o que existe é apenas um
instrumento para ele; quando ele nã o puder usá -lo, entã o ele o tratará
como inexistente e o colocará nesta categoria.

Mentirosos astutos são os mais cruéis


E preciso distinguir trê s tipos diferentes de falsidade. A primeira é
representada pelo mentiroso astuto que nã o vê nada de errado em
a irmar o contrá rio do que é verdadeiro quando é conveniente para seus
objetivos. Aqui estamos lidando com um homem que clara e
conscientemente engana e trai outros homens para alcançar seus
objetivos, como Iago em Otelo de Shakespeare ou Franz Moor em Ladrões
de Schiller – embora també m encontremos nesses dois homens uma
viciaçã o especı́ ica de intençã o que é nã o necessariamente encontrado
em todo mentiroso. També m existem mentirosos cujos objetivos sã o
menos crué is.

Algumas pessoas praticam o auto-engano
O segundo tipo é o do homem que mente para si mesmo e,
consequentemente, para os outros. Ele é o homem que simplesmente
apaga de sua mente tudo o que é difı́cil ou desagradá vel em sua vida, e
que nã o apenas esconde a cabeça como um avestruz, mas que se
convence de que vai fazer algo quando sabe muito bem que nã o pode
faça. Ele nã o quer reconhecer suas pró prias falhas; ele imediatamente
distorce o signi icado de toda situaçã o que é humilhante ou desagradá vel
para ele, de modo que perde seu aguilhã o.
A diferença que se encontra entre uma pessoa mentirosa desse tipo e o
hipó crita ou o mentiroso astuto é evidente. A pessoa mentirosa desse
tipo pratica seu engano acima de tudo sobre si mesma e apenas
indiretamente sobre os outros.
Ele primeiro engana a si mesmo e depois engana outros homens, metade
de boa fé . Ele nã o possui essa consciê ncia de objetivo, essa clareza que é
pró pria do mentiroso astuto; e, em geral, falta-lhe a maldade e a maldade
astuta do mentiroso astuto. Na maioria dos casos, ele desperta nossa
compaixã o. No entanto, ele nã o está isento de culpa, pois recusa a
resposta devida aos valores e à dignidade do ser, e arroga-se tacitamente
uma soberania injusti icada sobre o pró prio ser.
Claro, ele nã o tem a impertinê ncia especı́ ica em relaçã o à verdade do
primeiro tipo de mentiroso; algum respeito remanescente pela verdade
o impede de negligenciar e distorcer a verdade consciente e
abertamente. Ele tem medo de assumir essa responsabilidade; falta-lhe a
coragem do hipó crita. Pelo autoengano, ele escapa ao con lito entre suas
inclinaçõ es e o respeito pela verdade. Há algo especi icamente covarde e
fraco em sua natureza. Nele, a astú cia e a astú cia consciente do
mentiroso é substituı́da por uma astú cia mais instintiva.
O verdadeiro mentiroso está ciente do fato de que mente. Ele sabe que
está ignorando a realidade. A pessoa in iel, vivendo no auto-engano, nega
a si mesma o pró prio fato de estar ignorando a verdade em
questã o. Porque ele distorce e interpreta mal os fatos, quando mente,
nã o tem consciê ncia de um con lito com a verdade.
Embora uma forma dessa falsidade exista també m no fariseu (que nã o vê
a trave em seu pró prio olho e que é perverso no sentido mais profundo),
esse tipo de mentiroso geralmente é menos responsá vel e geralmente
menos perverso que o mentiroso astuto. No entanto, as consequê ncias
de sua falsidade sã o imensas para toda a sua vida moral. Nã o se pode
mais levar esse tipo de pessoa a sé rio. Sua açã o moral pode ser correta
em casos individuais em que a resposta ao valor nã o envolve con lito
nem com seu orgulho nem com sua concupiscê ncia. Mas assim que algo
desagradá vel for exigido dele, embora ele nã o desa ie conscientemente o
chamado dos valores, ele o eludirá . Ele se refugiará na ilusã o de que, por
uma razã o ou outra, essa demanda nã o vale para ele, ou que a demanda é
apenas aparente, ou que ele já atendeu à sua demanda.
A vida interior de tais homens assemelha-se a areia movediça: nã o se
pode alcançá -los; eles sempre escapam ao nosso alcance. Mesmo que um
mentiroso consciente seja, moralmente falando, ainda mais repreensı́vel,
uma conversã o pode ser realizada mais facilmente nele do que nesses
auto-enganadores. Para estes ú ltimos a vida interior é afetada por uma
doença maior; neles o mal tomou posse de um nı́vel psicologicamente
mais profundo. Eles vivem em um mundo de ilusã o. No entanto, a
falsidade de tais homens carrega sua parcela de culpa; pois poderia ser
abolida por uma conversã o interior bá sica da vontade, nã o recuando
diante do sacrifı́cio e pelo abandono incondicional ao mundo dos
valores.

A falsidade é uma falsidade menos perversa, mas mais profunda


No terceiro tipo de falsidade, a ruptura com a verdade é ainda menos
condená vel, mas talvez ainda mais profunda, e se re lete ainda mais no
pró prio ser de seus perpetradores. Vemos isso naquele tipo de pessoas
nã o genuı́nas cujas personalidades sã o um engano, que sã o incapazes de
experimentar a alegria real, o entusiasmo genuı́no, o amor genuı́no, cujas
atitudes sã o uma farsa e carregam a marca do ingimento. Esses homens
nã o querem enganar e enganar os outros, nem querem enganar a si
mesmos; mas nã o conseguem um contato real e genuı́no com o mundo. A
razã o para isso é que eles estã o fechados em si mesmos, sempre
desviando o olhar para si mesmos, e assim destroem a substâ ncia
interna de suas atitudes. A culpa nã o está em sua distorçã o do ser, em
sua falta de resposta à sua dignidade, mas em um egocentrismo geral
que tira a vida interior de suas respostas e torna sua personalidade uma
farsa.
Esses homens sã o aqueles seres semelhantes a sombras que nã o sã o
genuı́nos; mesmo que sua intençã o seja honesta, suas alegrias e tristezas
sã o arti iciais. Sua falsidade se deve ao fato de que todas as suas atitudes
nã o sã o realmente motivadas pelo objeto e nã o sã o in lamadas pelo
contato com ele, mas sã o estimuladas arti icialmente; tais atitudes
pretendem conformar-se ao objeto, mas na realidade sã o apenas
fantasmas sem substâ ncia.
Essa falta de autenticidade pode se manifestar de diferentes
maneiras; acima de tudo, pode assumir diferentes dimensõ es. Encontra-
se, em primeiro lugar, na pessoa afetada cujo comportamento exterior,
embora nã o realmente simulado, é antinatural, arti icial e
falso. Encontra-se, em segundo lugar, naquelas pessoas facilmente
in luenciadas pela sugestã o, cujas opiniõ es e convicçõ es lhes sã o
impostas por outros, e que apenas rea irmam o que os outros disseram
sem nunca serem verdadeiramente determinados pelo objeto
envolvido. Em terceiro lugar, encontra-se na pessoa exagerada que se
esforça em todas as coisas, em sua dor, em sua alegria, em seu amor, em
seu ó dio e em seu entusiasmo; ele as estimula arti icialmente porque se
deleita com essas atitudes.
A falta de autenticidade encontrada nos trê s ú ltimos tipos mencionados
é ainda menos perversa do que naquele que se engana, mas uma vida
moral nã o pode ser baseada em tal fundamento. Pois tudo — bom e ruim
— é invalidado por uma atitude tã o arti icial. Torna tudo irreal, tudo uma
farsa, um nada. Essa falsidade substancial també m é culpá vel porque
decorre de uma recusa de initiva de se abandonar aos valores, de uma
atitude bá sica de orgulho.

O homem verdadeiro conhece e respeita o ser


O homem que é realmente verdadeiro se opõ e aos trê s tipos de falsidade
mencionados acima. Ele é genuı́no; ele nã o engana nem a si mesmo nem
a outras pessoas. Por causa de sua profunda reverê ncia pela majestade
do ser, ele compreende a exigê ncia bá sica do valor inerente a todo
ser. (Quero dizer com isso exigir a obrigaçã o de prestar homenagem a
tudo o que existe, de se conformar à verdade em todas as nossas
a irmaçõ es e de abster-se de construir um mundo de falsidade e nada.)
Ele leva em conta a situaçã o metafı́sica do homem, que nã o lhe concede
onipotê ncia tal que o ser deve ceder aos seus desejos como se fosse uma
mera quimera. Isto é , ele leva em conta a verdade nã o apenas em relaçã o
à s coisas e condiçõ es individuais que se apresentam à sua mente, mas
també m em relaçã o à sua atitude como homem no mundo. Ele
compreende o valor inerente à verdade e o valor negativo da mentira, da
falsidade e da revolta interior contra o mundo dos valores (e em ú ltima
aná lise contra Deus, o Ser Absoluto, o Senhor de todo o ser) que está
contido no cada inverdade. Ele compreende a responsabilidade que o
homem como pessoa espiritual tem em relaçã o à verdade, e que se
encontra no poder do homem de retratar o ser em uma a irmaçã o feita
por ele. Ele compreende a solenidade inerente a cada a irmaçã o, pois ao
fazer uma a irmaçã o a pessoa é chamada a ser testemunha da verdade.
A pessoa verdadeira coloca as exigê ncias dos valores acima de qualquer
desejo subjetivo motivado pelo seu egoı́smo ou pelo seu conforto. Ele,
consequentemente, abomina todo o auto-engano. Ele vê todo o valor
negativo de uma fuga covarde das exigê ncias objetivas do mundo dos
valores. Ele prefere conhecer a verdade mais amarga do que desfrutar de
uma felicidade imaginá ria. Toda a inutilidade de cada voo para um
mundo de irrealidade é clara aos seus olhos. Ele compreende a completa
inutilidade do autoengano, a futilidade desse tipo de comportamento, o
vazio e a super icialidade de toda inverdade.

O homem verdadeiro responde genuinamente à realidade


Finalmente, o homem verdadeiro, que tem uma relaçã o clássica com o
ser, é o homem que em todas as suas atitudes e açõ es é genuı́no e
verdadeiro. Em sua alma nã o encontramos atitudes simuladas; ele nã o
embeleza e incha as experiê ncias que ele realmente tem; ele nã o volta o
olhar para si mesmo em vez de olhar para o objeto que exige uma
resposta dele.
Ele é o homem genuı́no e direto, o homem objetivo (no sentido mais
elevado dessa palavra). Ele é o homem que possui em sua atitude bá sica
um verdadeiro abandono aos valores e que se manté m livre do orgulho
pessoal, de modo que nã o é levado a se arrogar uma posiçã o no mundo
diferente daquela que lhe é objetivamente devida. Assim, ele nã o falsi ica
a importâ ncia de uma experiê ncia, nem lhe dá outro cará ter alé m do que
possui na realidade.

Somente o homem verdadeiro pode desenvolver-se espiritualmente


A pessoa verdadeira nã o busca compensaçã o por seus complexos de
inferioridade. A relaçã o que encontra sua expressã o nas palavras
"Humildade é verdade", també m pode ser expressa de forma inversa. A
pessoa humilde por si só é realmente verdadeira. A fonte de toda
falsidade e de toda falsidade é encontrada no orgulhoso desejo de ser
algo diferente do que realmente somos. O assentimento mais profundo
dado à verdade, ao ser, é o fundamento de toda genuinidade e
veracidade. Isso é muitas vezes mal compreendido no sentido de que o
pessimista, o cé tico, o homem que se recusa a reconhecer qualquer
realidade superior à palpá vel, ou o fatalista que renuncia a toda
intervençã o no mundo e que desespera de todo progresso e todo
desenvolvimento, sã o considerados sejam pessoas especialmente
verdadeiras.
Aceitar isso seria um completo mal-entendido. Tais pessoas dã o
assentimento apenas a um segmento do ser e nunca ao seu todo. Nã o
reconhecem a exigê ncia do mundo dos valores ou a promessa de
desenvolvimento, mudança e elevaçã o do pró prio ser que reside nessa
exigê ncia. Desprezam o sentido do homem e do mundo que pertence
tanto ao ser quanto a pedra que vemos no chã o e o ar que
respiramos. Conseqü entemente, eles nã o sã o completamente
verdadeiros, pois dã o assentimento apenas aos estratos super iciais do
ser e nã o aos seus estratos mais profundos e importantes. A
transformação moral está sempre ao alcance de cada homem. Mas a
transformaçã o não-moral de que falamos aqui deve ocorrer dentro da
estrutura da pró pria individualidade e capacidade da pessoa: isto é ,
essas formas de crescimento devem ser ontologicamente verdadeiras e
nã o consistir em ilusã o ou fuga para a fantasia.

Mentir não é caridoso e uma revolta contra ser


Existem mú ltiplos elementos no valor negativo especı́ ico de uma
mentira, o exemplo clá ssico de falsidade. Em primeiro lugar, em tal
a irmaçã o há uma revolta contra a dignidade do ser enquanto tal, uma
arrogâ ncia irreverente e um desrespeito à obrigaçã o fundamental de
conformar-se ao ser. Mentir é abusar da qualidade que nos foi con iada
como testemunhas do ser, na fala, na palavra falada ou escrita. Em
segundo lugar, devemos considerar o engano de outros homens que está
ligado à mentira. Enganar outra pessoa implica um desrespeito
fundamental, uma falha em levá -la a sé rio. Ignora o valor inerente a cada
homem como pessoa espiritual e mostra um desrespeito à dignidade do
homem, ao direito elementar que cada pessoa possui de conhecer a
verdade. Mostra, sobretudo, uma profunda falta de caridade e um abuso
da con iança que o outro deposita em nó s. Esses elementos se
encontram em todo engano intencional praticado sobre outrem, mas, de
maneira muito especial, em um engano efetuado por meio de uma
a irmaçã o falsa, por uma mentira. Pois a comunicaçã o por palavras, em
sua pró pria forma, implica uma relaçã o explı́cita eu-tu . Esta
comunicaçã o apela tã o expressamente à con iança bá sica do homem no
homem, que a falta de caridade e a traiçã o da outra pessoa sã o ainda
mais marcantes e mais reveladoras neste caso do que no caso de um
engano por meio de ambiguidade ou comportamento enganoso. .
Agora, há casos em que o engano como tal é permitido – nã o, é
ordenado. Por exemplo, se um criminoso está nos seguindo, é permitido
enganá -lo de uma forma ou de outra sobre nossa morada. O engano é
ordenado quando podemos prejudicar gravemente outra pessoa fı́sica ou
moralmente ao comunicar a verdade.
Neste ú ltimo caso, enganar nã o é falta de caridade; pelo contrá rio, é uma
bondade amorosa. Assim, temos permissã o para enganar outras pessoas
em certos casos; em outros, somos obrigados a fazê -lo. Mas podemos
fazer isso apenas por meio de nossa interpretaçã o de uma dada situaçã o,
nã o por meio de uma mentira direta.

A veracidade é um fundamento para a vida moral e religiosa


Assim como a reverê ncia, a idelidade e a consciê ncia da
responsabilidade, a veracidade é a base de toda a nossa vida
moral. Como essas outras virtudes, ela tem um alto valor em si mesma e
també m é indispensá vel como pressuposto bá sico de uma personalidade
na qual os valores morais genuı́nos podem lorescer em sua plenitude.
Isso se comprova em todos os domı́nios da vida. A veracidade é a base de
toda a verdadeira vida comunitá ria, de toda relaçã o de pessoa a pessoa,
de todo amor verdadeiro, de toda pro issã o, do verdadeiro
conhecimento, da auto-educaçã o e da relaçã o dos homens com
Deus. Sim, um elemento bá sico de veracidade é , de maneira especı́ ica,
sua relaçã o com a Fonte absoluta de todo ser, Deus. Pois, no ú ltimo
relato, falsidade signi ica uma negaçã o de Deus, uma fuga dEle. Uma
educaçã o que nã o enfatiza a veracidade e a veracidade se condena ao
fracasso.

5
Bondade

A bondade é o coraçã o de todo o reino dos valores morais. Nã o é por
acaso que o termo bom signi ica "valor moral como tal" e també m "a
qualidade moral especı́ ica da bondade". Entre os diversos valores
morais nã o há nenhum que incorpore mais completamente todo o reino
dos valores morais do que a bondade; nele encontramos a expressã o
mais pura e tı́pica do cará ter geral da bondade moral como tal.

A bondade é fruto da vida moral


Está no centro de toda moral e ao mesmo tempo é seu fruto mais
sublime. Sua importâ ncia central na esfera moral é , portanto, de um tipo
completamente diferente daquela das atitudes fundamentais
mencionadas anteriormente: reverê ncia, idelidade, consciê ncia da
responsabilidade e veracidade. Pois, alé m de seu pró prio alto valor
moral, essas virtudes sã o aceitas como pressuposto para a vida moral. A
bondade, ao contrá rio, nã o é um pressuposto, mas o fruto da vida
moral. Mas a bondade nã o é um fruto entre outros, como a mansidã o, a
paciê ncia e a generosidade, mas o fruto dos frutos: isto é , aquilo em que
culmina toda a moral de uma maneira especı́ ica. A bondade é a rainha
de todas as virtudes.
O que é bondade? O que queremos dizer quando dizemos que um
homem irradia bondade? Dizemos isso de um homem quando está
disposto a ajudar, quando é bondoso e justo, quando está disposto a
fazer sacrifı́cios pelos outros, quando perdoa as injustiças que lhe foram
feitas, quando é generoso, quando é cheio de compaixã o. Todas essas
qualidades sã o formas e manifestaçõ es especı́ icas de amor. Isso indica a
estreita conexã o que existe entre amor e bondade. O amor é , por assim
dizer, a bondade que lui, e a bondade é o sopro do amor.

O amor é a resposta mais franca ao valor


Vimos no inı́cio que toda a vida moral consiste em respostas
signi icativas a valores que foram apreendidos – respostas como
entusiasmo, admiraçã o, alegria, obediê ncia, amor. Mas o amor é , entre
todas essas respostas aos valores, a mais completa e a mais profunda.
Antes de tudo, é preciso perceber que o amor é sempre uma resposta
aberta ao valor. Quando amamos algué m (seja um amigo, um pai, um
ilho, seja amor conjugal ou amor ao pró ximo), a pessoa amada sempre
está diante de nó s como algo precioso e nobre em si mesmo.
Enquanto algué m for apenas agradá vel para nó s ou apenas ú til para
nossos propó sitos, nã o poderemos amá -lo. Isso nã o signi ica que nos
tornamos cegos para as falhas da pessoa amada. Mas a pessoa como um
todo deve estar diante de nó s como dotada de um valor sublime e cheia
de preciosidade intrı́nseca. Sim, essa individualidade especı́ ica que cada
homem representa como um pensamento ú nico de Deus deve revelar-se
diante de nossos olhos em todo o seu encanto e beleza, se quisermos
amá -lo.
O amor é sempre uma resposta ao valor. No amor, responde-se nã o
apenas com uma palavra especı́ ica, mas com o dom do pró prio coraçã o,
consigo mesmo. No amor, associa-se ao valor mais intimamente e mais
profundamente do que em qualquer outra resposta, como, por exemplo,
reverê ncia ou obediê ncia. No amor, um homem habita os valores da
amada de uma maneira completamente diferente. O amor, em seu
sentido mais pleno e pró prio, dirige-se sempre a pessoas, ou pelo menos
a entidades impessoais que tratamos como pessoais (como, por exemplo,
o pró prio paı́s).
Existem respostas a valores (como alegria, tristeza e entusiasmo) que
sã o direcionadas a coisas, atitudes e eventos, bem como a pessoas. Por
sua pró pria natureza, outras respostas a valores (como veneraçã o,
gratidã o, con iança, obediê ncia e amor) dirigem-se apenas à s pessoas.
Na resposta de amor a outra pessoa manifestam-se dois elementos
fundamentais. A a irmaçã o do ser do ser amado, a resposta de abandono
à sua beleza intrı́nseca, desdobra-se, por um lado, no desejo de
participar de seu ser, de estar unido a ele e, por outro, na vontade de
conceder felicidade nele.
No amor, a pessoa se apressa espiritualmente em direçã o à outra pessoa
para habitar com ela, participar dela e, por outro lado, cobri-la com um
manto de bondade, acalentá -la espiritualmente e protegê -la. Todo amor
que merece o nome de amor possui esses dois elementos, ainda que em
um amor especı́ ico prevaleça um ou outro elemento.

A bondade é uma atitude amorosa para com todos os seres


O segundo elemento é um interesse inal no crescimento e
desenvolvimento do amado, em sua perfeiçã o e felicidade e, em ú ltima
aná lise, em sua salvaçã o. Este envolvimento do amado no amor é , como
já dissemos, pura bondade luindo.
Aqui encontramos a bondade em sua mais pura manifestaçã o. A bondade
sempre pressupõ e uma atitude especial em relaçã o a outras pessoas,
mesmo a seres de ordem inferior que possuam certa analogia com
pessoas, como os animais. Assim, se contradiz da veracidade, que
responde ao valor do ser como tal. A bondade é uma atitude de resposta
ao valor para com as pessoas em geral, pois a bondade de um homem
nã o se limita a intençõ es benevolentes para com uma pessoa particular
que ele ama. Quando dizemos que algué m é bom, queremos dizer que ele
manifesta continuamente essa benevolê ncia aberta, que sua atitude para
com cada homem tem a priori esse cará ter amoroso e generoso. Pois a
bondade, como qualquer outra virtude, nã o se limita a uma determinada
atitude momentâ nea, mas é uma propriedade do homem, uma parte de
seu ser superatual, uma atitude e uma posiçã o bá sicas.

O homem mau odeia a bondade


Existem trê s tipos de homens que encarnam uma antı́tese especı́ ica da
bondade: o homem indiferente e frio; o de coraçã o duro; e o malvado.
Este ú ltimo é o homem que é inimigo dos valores, que é governado por
uma atitude bá sica de orgulho e que vive uma impotente revolta contra o
mundo dos valores. Ele nã o apenas os ignora sem rodeios, como faz o
homem sensual, mas també m os ataca. Ele gostaria de destronar
Deus; ele odeia o mundo da bondade e da beleza, e todo o mundo da luz
(como Alberich no Nibelungenring de Richard Wagner). Ele está cheio de
inveja e rebeliã o contra o mundo dos valores e contra todo homem bom
e feliz. Ele é um homem como Caim, que se alimenta do ó dio. Sua atitude
em relaçã o a outros homens nã o só carece de bondade, mas é
expressamente hostil. Ele quer ferir seus semelhantes e feri-los com o
veneno de seu ó dio.
Nã o me re iro ao misantropo que, desiludido, está em guerra com a
humanidade como um todo e com cada pessoa individual. O misantropo
mais se afastou da humanidade do que se voltou contra ela; este tipo é
mais trá gico do que perverso. Estou pensando antes no homem
malicioso que gostaria de derramar seu veneno por toda parte, como
Iago em Otelo de Shakespeare ou Pizarro em Fidelio de Beethoven. Uma
variedade especı́ ica desse tipo é o homem fundamentalmente cruel, que
gosta dos sofrimentos dos outros. Em vez da harmonia luminosa do bem,
encontramos aqui uma desarmonia sombria. Em vez dos cá lidos raios
difusos da felicidade e da vida irradiados pelo amor, encontra-se o ó dio
virulento e dilacerante; em vez de a irmaçã o clara e livre, encontra-se
uma busca destruidora do nada, um ser aprisionado em um espasmo de
negaçã o.

O homem de coração duro trata todas as coisas com frieza severa


Encontramos outra antı́tese à bondade na pessoa de coraçã o duro. Ele é
o homem severo e frio que nunca é movido pela compaixã o, cujo ouvido
é surdo a todas as petiçõ es, que atropela tudo sem consideraçã o e para
quem os outros homens sã o meras iguras colocadas no tabuleiro de
xadrez de seus planos. Ele nã o é um inimigo deliberado de outras
pessoas, mas completamente duro e sem caridade. De forma alguma esse
tipo leva em conta a natureza de outros homens como pessoas
espirituais, como criaturas sensı́veis e vulnerá veis. Ele ignora seus
direitos e reivindicaçõ es como seres pessoais; ele os trata como se
fossem meros objetos. Ele representa um tipo clá ssico do egoı́sta
puro. Ele nos lembra certos tra icantes de escravos ou Landvogt Gassier
em Guilherme Tell de Schiller.
Em vez da liberdade interior do homem caridoso, encontramos nele uma
compressã o interior e um endurecimento do coraçã o. Em lugar de
abertura e acessibilidade a seus semelhantes, nó s o encontramos
fechado sobre si mesmo e impenetrá vel. Em vez de uma resposta ao
valor positivo da felicidade do outro e ao valor negativo de seu
sofrimento, encontramos a recusa de qualquer resposta. Em vez da
solidariedade com o outro (isto é , a capacidade de transcender a si
mesmo para sofrer e se alegrar com os outros), encontramos o
aprisionamento total em si mesmo, um olhar gelado e brutal para alé m
dos outros. Em vez da superioridade vitoriosa e altruı́sta do homem que
está a serviço de todos, encontramos a inferioridade do super-homem
brutal, e em vez do perdã o generoso das injustiças sofridas, encontramos
a vingança implacá vel.

O homem indiferente é neutro em relação aos valores


Finalmente, a antı́tese do homem bom é o homem frio e indiferente. Ele é
o homem que ignora seus semelhantes com uma total falta de
compreensã o, que vive para seus pró prios confortos e prazeres. Ele
també m é um tı́pico egoı́sta, mas tem uma aparê ncia diferente do
homem de coraçã o duro. Ele nã o é hostil para com os outros nem brutal
e implacavelmente duro, mas está cheio de indiferença para com seus
semelhantes. Ele pode ser tocado por visõ es assustadoras, pode sentir
nojo e horror ao enfrentar uma doença, ou ser incapaz de suportar a
visã o de sangue, mas tudo isso é apenas uma reaçã o nervosa a um objeto
esteticamente chocante. Pois ele foge de visõ es terrı́veis e procura cenas
agradá veis, enquanto o homem bom se apressa em ajudar.
Por outro lado, esse tipo de homem é ainda mais frio do que o homem de
coraçã o duro. O homem de coraçã o duro, é verdade, tem uma frieza
gé lida. Ele nã o conhece a voz do coraçã o; ele é sem coraçã o. No entanto,
ele conhece o fogo do ó dio, o fogo frio da vingança e da raiva. Ele nã o é
indiferente. Ele nã o é invulnerá vel. Ele conhece a irritaçã o causada por
ofensas e humilhaçõ es, mas nã o sabe o que signi ica ser ferido no
coraçã o por falta de caridade, injustiça e, sobretudo, pelos sofrimentos
de nossos semelhantes e outros valores negativos objetivos .
O homem indiferente, ao contrá rio, nã o tem a severidade e a brutalidade
do homem de coraçã o duro. Ele nã o pode nem mesmo ser perfurado por
insultos; só o que é desagradá vel e incô modo o incomoda. Ele nã o é um
super-homem como o homem de coraçã o duro; ele pode até ser um
esteta. Ele é incapaz de compartilhar os sentimentos de outras pessoas,
pois está muito ocupado com suas pró prias preocupaçõ es. Ele nã o é
apenas egoı́sta; acima de tudo, ele é egocê ntrico. Ou seja, ele está
ocupado com seus pró prios sentimentos e humores, e seu olhar está
centrado em si mesmo. O mundo inteiro está lá apenas para sua
satisfaçã o. Ele é , portanto, incapaz de emoçõ es internas mais
profundas; no inal, tudo o deixa indiferente. Em vez do calor e ardor do
homem bom, a neutralidade vazia e a fria indiferença reinam aqui. Nã o
encontramos aqui riqueza interior ou fecundidade interior, apenas
pobreza esté ril e vazio infrutı́fero. Em vez da vigı́lia e abertura do
homem bom, encontramos o homem indiferente circunscrito e cego em
relaçã o aos valores, e em vez da amplitude abrangente do homem bom,
encontramos neste tipo de homem uma mesquinha estreiteza.

A bondade possui grande força


Assim vemos as caracterı́sticas fundamentais da bondade: harmonia
luminosa, liberdade interior e serenidade, a superioridade vitoriosa do
amor (que é o segredo do serviço zeloso e pronto), abertura para a vida
de outros homens, calor, ardor, mansidã o e brandura , amplitude
abrangente, vigı́lia e capacidade de apreender valores. Acima de tudo é
importante compreender que a bondade, embora seja terna e mansa,
possui ao mesmo tempo a maior força. Diante de seu poder irresistı́vel,
de sua segurança e liberdade superiores, a força do super-homem é
apenas uma fraqueza miserá vel e uma pretensã o infantil. Nã o se deve
confundir bondade com entrega fraca, entrega sem resistê ncia. O homem
verdadeiramente bom pode ser inabalá vel quando se tenta desviá -lo do
caminho certo, e quando a salvaçã o do pró ximo exige imperativamente a
severidade. Ele resiste inabalavelmente a todas as seduçõ es e tentaçõ es.
Boa índole não é bondade
Deve-se tomar cuidado para nã o confundir boa ı́ndole com bondade. O
homem de boa ı́ndole é inofensivo e apaziguador; por uma certa lassidã o
e iné rcia de sua natureza, deixa-se maltratar sem perceber. Sua atitude
amá vel tem sua origem em uma tendê ncia completamente inconsciente
de sua natureza. A bondade, ao contrá rio, lui de uma resposta
consciente de amor; é uma vigı́lia ardente e nunca uma lassidã o
inofensiva. E a vida moral mais intensa, e nã o a iné rcia e o
embotamento; é força e nã o fraqueza. O homem bom nã o se deixa servir
porque nã o tem forças para resistir, mas serve livremente e se humilha
de boa vontade.

A bondade é a essência de toda vida verdadeiramente moral


Na bondade brilha uma luz que confere à pessoa boa uma dignidade
intelectual especial. O homem verdadeiramente bom nunca é estú pido e
estreito, mesmo que nã o seja dotado para atividades intelectuais e possa
até ser intelectualmente lento. O homem que nã o é bom em nenhuma
das formas acima mencionadas é , em ú ltima aná lise, sempre limitado e
até estú pido. Isso é verdade mesmo que ele tenha produzido obras de
grande poder intelectual.
A bondade, o sopro e a fragrâ ncia do amor, é a essê ncia de toda vida
verdadeiramente moral – sim, de toda verdadeira vida da
alma. Enquanto as outras atitudes fundamentais (como a reverê ncia, a
idelidade, a responsabilidade e a veracidade) respondem ao mundo dos
valores como um todo, a bondade nã o apenas responde a esse mundo
dos valores, mas é , por assim dizer, o re lexo do mundo inteiro. de
valores na pessoa. A bondade fala na voz e em nome deste mundo de
valores.
O que foi dito sobre o amor també m se aplica à bondade: "Aquele que
nã o ama permanece na morte". Em sua força misteriosa, a bondade
sacode o mundo até seus alicerces; traz na testa o sinal da vitó ria sobre a
maldade e a desordem, sobre todo ó dio e toda grosseria insensı́vel.
6
Comunhão

O grande escritor francê s Leon Bloy escreveu certa vez que "há apenas
uma tristeza real: nã o ser um santo". Por outro lado, Gabriel Marcel diz
que "há apenas uma tristeza: estar sozinho".
A primeira vista, essas duas a irmaçõ es sã o completamente diferentes,
mas se quisermos penetrar mais profundamente no que Gabriel Marcel
tã o apropriadamente chama de "misté rios do Ser", veremos que há uma
ligaçã o profunda, embora sutil, entre elas. E a natureza desse vı́nculo que
examinaremos agora.

O pecado cortou a relação do homem com Deus e com outros


homens
O santo é precisamente aquele que vive em constante e ı́ntima
comunhã o com Deus, aquele que nã o permite que nada nem ningué m o
separe de Deus, aquele que liga vitoriosamente a Deus tudo o que lhe
acontece, doença ou saú de, pobreza ou riqueza, infâ mia ou fama.
O santo é a pessoa que venceu o isolamento que é criado pelo pecado –
ou seja, o Pecado Original, que rompeu a relaçã o existente entre Deus e o
homem e, consequentemente, a relaçã o existente entre o homem e o
homem. Quando Adã o e Eva foram exilados do paraı́so terrestre, eles
foram exilados juntos e, no entanto, essa aparente uniã o nã o deve nos
cegar para seu isolamento um do outro.
O Pecado Original criou um estado de separaçã o entre o homem e Deus,
e toda a obra da redençã o procura consertar esta ruptura e restabelecer
o triunfo da comunhã o.

Comunhão não é fusão


Para esclarecer isso, contemplemos por um momento a natureza do
homem. O homem é a substâ ncia mais perfeita que conhecemos atravé s
da experiê ncia, pois ele é o indivı́duo mais perfeito que conhecemos. O
homem nunca pode deixar de ser ele mesmo e se tornar uma mera parte
de outra coisa.
E perfeitamente concebı́vel que o homem deixe de existir no momento
da morte; mas é completamente inconcebı́vel que ele possa continuar a
existir, enquanto desaparece como um eu individual e é absorvido como
parte em outra realidade maior.
Por outro lado, e precisamente por causa dessa individualidade, o
homem está destinado a entrar em comunhã o com outras pessoas; e é
nessa comunhã o que ele se realiza. Para compreender a natureza dessa
verdade fundamental, devemos nos libertar de um preconceito
profundamente enraizado em certos cı́rculos intelectuais. Esse
preconceito consiste em admitir que a fusã o é o protó tipo da comunhã o.
Nã o podemos insistir su icientemente no abismo que separa os dois:
quando duas gotas de á gua se fundem e se tornam uma, nã o podemos
falar de comunhã o entre elas, porque elas nã o sabem que se uniram. O
conhecimento é o pressuposto essencial da comunhã o.

Conhecimento e amor são as maiores formas de comunhão


Assim, vemos que precisamente porque o homem é uma substâ ncia mais
perfeita do que qualquer outro ser conhecido por nó s atravé s da
experiê ncia, ele é capaz de entrar em comunhã o com outras pessoas. As
duas grandes formas de comunhã o sã o o conhecimento e o amor. No
conhecimento, eu me volto espiritualmente para outra pessoa, e entã o,
por meio de perguntas e respostas, um contato espiritual é estabelecido
entre nó s, o que é impensá vel e impossı́vel no mundo impessoal. O
clı́max da comunhã o entre as pessoas é alcançado no amor, como
veremos mais adiante.
Agora que estamos mais conscientes do chamado do homem para entrar
em comunhã o com outros seres pessoais, estamos prontos para
entender por que o homem sofre quando nã o consegue alcançá -lo. A
angú stia e o desespero que se manifestam em tantos rostos humanos sã o
expressõ es da dor que um ser humano sente quando se descobre
isolado, lançado sobre si mesmo, incapaz de estabelecer uma comunhã o
com o outro. Talvez nã o seja exagerado dizer que o drama da sociedade
em que vivemos reside no fato de que damos o maior peso aos
contatos sociais , enquanto vivemos em um isolamento trá gico.

A solidão assume muitas formas


Examinemos agora brevemente os vá rios tipos de solidã o que podem ser
encontrados na vida humana. Primeiro, há um tipo de solidã o que é
criada pelo fato de eu estar completamente e totalmente sozinho,
isicamente falando. Há situaçõ es em que essa solidã o é sentida como
um alı́vio: por exemplo, quando estou com outras pessoas frias e
distantes de mim. Assim que estou sozinho mais uma vez, sinto que
posso respirar novamente. E claro que estar sozinho em tais
circunstâ ncias é uma bê nçã o, mas nã o devemos inferir erroneamente
que é sempre uma bê nçã o. Recordemos que o con inamento solitá rio é
uma forma tradicional de puniçã o e particularmente re inada, pois lança
o homem de volta sobre si mesmo, obrigando-o, por assim dizer, a bater
a cabeça contra suas pró prias limitaçõ es.
Estar sozinho també m pode estar ligado a um tipo especı́ ico de
ansiedade. Suponha que eu me encontre em grande perigo fı́sico, isolado
no topo de uma montanha. De repente, descubro que há outro homem
compartilhando minha situaçã o. Isso me dá uma sensaçã o de euforia e
alı́vio. Encontraremos alguma saı́da; vamos ajudar uns aos outros. Mas,
alé m da possı́vel ajuda que a presença de outro ser humano pode me dar,
o fato de nã o estar mais sozinho no grande universo frio e impessoal cria
uma situaçã o totalmente nova, uma situaçã o em que a possibilidade de
comunicaçã o, de falar, aquece a fria objetividade de um mundo feito para
a presença humana. De repente, sou transportado para um
espaço intrapessoal . Recordemos o imenso alı́vio de Dante, quando,
depois de uma noite passada em escrú pulos, percebeu Virgı́lio (sem
saber que era ele):
Tenha piedade de mim, implorei, seja você de sombras ou de homens reais.
A solidã o fı́sica també m pode me fazer perceber a transcendê ncia
vitoriosa do meu amor por outra pessoa; pois embora eu esteja separado
daquele que amo, sinto que nenhum poder humano pode realmente
romper o vı́nculo que nos une. Por outro lado, intimamente ligado a essa
experiê ncia de vitó ria está o sofrimento agudo resultante da pró pria
separaçã o; basta recordar as palavras profundas de Keats a sua amiga
Fanny Brawne: "O pró prio ar que respiro é insalubre sem você ".
Mas agora chegamos a outro tipo de solidã o, que é completamente
diferente da primeira; é a solidã o que experimento quando
estou com outras pessoas em algum tipo de reuniã o social. O fato de que
se pode icar totalmente isolado na companhia de outras pessoas é
comprovado por inú meras experiê ncias. A transcendê ncia do homem
sobre os animais, que pode ser demonstrada de muitas maneiras,
també m é evidenciada pelo fato de que os animais se contentam com a
mera presença fı́sica de outros animais. Para o homem, a presença fı́sica
de outros separados de algum tipo de contato espiritual é uma forma
re inada de sofrimento. Ao ler as peças de Gabriel Marcel, icamos
impressionados com o fato de que seus personagens se queixam
de solidão, e que sã o precisamente pessoas casadas vivendo em aparente
comunhã o entre si. Nesses casos, pode-se realmente falar de
uma multidão solitária, de pessoas reunidas enquanto permanecem em
isolamento sem esperança. Alguns coqueté is a que assistimos traziam
todas as marcas dessa comunhã o enganosa, dessa mentira social. Existe
uma forma de cumprimentar as pessoas em que o conteú do das palavras
usadas ("Estou encantado em vê -lo") é formalmente negado pelo tom de
anonimato usado. A pessoa sente muito fortemente que a pessoa
"encantada em vê -lo" nã o se concentrou em você por um ú nico
momento, tratou você como um nú mero, como um objeto, como uma
coisa, e de modo algum como uma pessoa individual.

A reverência torna possível a comunhão entre as pessoas


Devemos perceber que nossa sociedade altamente mecanizada constitui
uma ameaça muito real à s relaçõ es humanas. Cada vez mais estamos nos
acostumando a ver outras pessoas como nú meros em uma multidã o e
nã o como eus reais, como indivı́duos ú nicos e insubstituı́veis. Deste
ponto de vista podemos apreciar a profundidade da observaçã o de
Kierkegaard quando diz que Deus nã o conhece multidõ es; Ele só
conhece indivı́duos.
Certa vez, recebi um elogio que guardo até hoje: algué m disse: "você é a
primeira pessoa que conheci na vida que se dispô s a me ouvir". Essa
observaçã o foi uma surpresa, pois me lembrei de que, depois de ouvir
meu amigo, nã o tinha uma resposta para seu problema. Mas ele nã o
esperava uma resposta; ele só queria saber se havia algué m disposto a
ouvir, disposto a levar seus problemas a sé rio. Graças a essa pessoa,
compreendi a natureza de uma falha fundamental nas relaçõ es humanas:
a falta de reverência com que tendemos a nos aproximar de outras
pessoas. Observei anteriormente que a reverê ncia é a mã e de todas as
virtudes. E també m a mã e de todas as relaçõ es humanas.

Os problemas são essencialmente diferentes dos mistérios


Neste ponto, uma distinçã o emprestada de Gabriel Marcel nos ajudará a
entender um dos grandes perigos que ameaçam a comunhã o. Segundo
Marcel, devemos fazer uma distinçã o fundamental
entre problemas e mistérios. Um problema, ele nos diz, é uma di iculdade
objetiva e tem duas caracterı́sticas ou peculiaridades principais:
primeiro, é totalmente alheio a mim mesmo; é objetivo no sentido
cientı́ ico dado a este termo. Em segundo lugar, pode ser resolvido e,
uma vez resolvido, deixa de ser um problema. E como um nó que foi
desatado.
Um mistério, por outro lado, está intimamente ligado a mim mesmo,
tanto que nã o posso abordá -lo adequadamente sem perceber que eu
mesmo estou envolvido nele.
Alé m disso, um misté rio nunca pode ser resolvido no sentido de deixar
de ser um misté rio. Um exemplo ilustrará este ponto. Há maldade no
mundo. De acordo com Marcel, estamos todos muito propensos a ver o
mal como um acidente acontecendo na complicada má quina do
universo; nó s a interpretamos como uma engrenagem que falta em uma
roda complexa e colocamos a culpa no criador do universo por ter
falhado em projetá -lo adequadamente. Por outro lado, procuramos uma
soluçã o para este problema, e a soluçã o mais ameaçadora que o homem
encontrou até agora é o comunismo, pois o comunismo a irma ser a
soluçã o ú nica e inal para todos os problemas humanos. O comunismo
a irma ter descoberto que a engrenagem que falta é uma compreensã o
adequada da esfera da economia. Uma vez que a riqueza se torne
propriedade exclusiva do Estado, todas as di iculdades humanas serã o
resolvidas, pois cada um receberá de acordo com sua produtividade e
suas necessidades. O problema está resolvido e os resultados sã o
campos de concentraçã o bem organizados.
De fato, o mal nã o é um problema, mas antes um misté rio no qual eu
mesmo estou pessoalmente envolvido; pois é inú til combater o mal no
mundo, seja a injustiça ou a maldade, se eu nã o descobrir as raı́zes da
mesma doença em minha pró pria alma. Devemos, no entanto,
acrescentar a essa distinçã o de Gabriel Marcel a observaçã o de que o
termo mistério pode se aplicar a coisas muito diferentes.

Existem vários tipos de mistérios


Primeiro, há misté rio no sentido religioso; é isso que ultrapassa a esfera
racional como tal, ou seja, a supra-racional que só podemos abraçar na
fé . Exemplos deste tipo de misté rio sã o a Santı́ssima Trindade ou a
transubstanciaçã o na Eucaristia.
Em segundo lugar, há antinomias racionais que nã o podemos resolver
com nossa razã o, como a coexistê ncia do mal com a in inita bondade de
Deus. Eles nã o sã o supraracionais, mas permanecem enigmá ticos para
nossa razã o, pelo menos durante nossa existê ncia terrena.
Terceiro, há coisas que nã o posso resolver na prá tica, coisas que nã o
devem ser mudadas por nenhum plano, por nenhum esforço humano,
como o mal nesta terra. Aqui a tentativa de resolvê -los com regulaçõ es
humanas leva a piorá -los, como acabamos de ver no caso do comunismo,
ou qualquer messianismo terrestre.
Quarto, podemos chamar de "misté rio" algo que, por sua profundidade e
riqueza, é inacessı́vel a uma penetraçã o puramente racional de forma
geomé trica. Nesse sentido, a pessoa humana é um misté rio; amor é um
misté rio; a beleza é um misté rio. Embora nã o sejam supraracionais,
embora nã o contenham de modo algum antinomias, esses misté rios
escapam ao tipo de explicaçã o racional que se encontra na ló gica ou na
matemá tica. Eles també m sã o tã o profundos que nunca podemos esgotá -
los com nosso conhecimento.

Devemos abordar outras pessoas como mistérios


Nesse sentido, a comunhã o com outras pessoas é um misté rio. E este
ú ltimo sentido de misté rio versus problemas que se aplica ao nosso
contexto especı́ ico. Marcel nos diz que os misté rios ilosó icos nã o
podem ser resolvidos, mas podemos esclarecê -los.
Agora, muitas vezes somos tentados a ver as outras pessoas como
problemas, e como devemos conviver com elas, estamos ansiosos para
obter algumas “dicas” de como lidar com elas. Por exemplo, ouvimos que
uma pessoa com quem teremos que trabalhar tem uma ideia muito
elevada de si mesma e de suas realizaçõ es. Deduzimos imediatamente
que, para "entrar no seu lado bom", teremos de lhe fazer elogios.
Ora, nã o é ilegı́timo tentar chegar ao lado bom de algué m, mas torna-se
ilegı́timo no momento em que reduzimos a outra pessoa ao nı́vel de um
quebra-cabeça, sem qualquer reverê ncia ao seu verdadeiro eu; torna-se
ilegı́timo quando o vemos como uma má quina complexa cujo có digo
secreto devemos descobrir. Uma vez que o descobrimos, podemos
trabalhá -lo à vontade e provocar qualquer reaçã o que queiramos.
Nã o é difı́cil perceber que essa atitude é terrivelmente irreverente e nã o
implica o menor traço de respeito pela individualidade do outro.

O isolamento pode ser auto-in ligido


No entanto, també m é possı́vel que algué m seja totalmente responsá vel
por seu pró prio isolamento dos outros. Se eu me izer o centro absoluto
do universo, ver tudo e todos exclusivamente do ponto de vista da
possı́vel vantagem ou desvantagem que eles podem me trazer, eu me
fecho em mim mesmo, e nã o deveria me maravilhar se me encontrar em
total isolamento.
Em sua Divina Comédia , Dante distinguiu as duas formas de isolamento
que acabamos de mencionar. No Inferno, que é a pá tria do isolamento, os
hereges sofrem de absoluta solidã o, cada um deles enterrado na tumba
de seus pró prios erros; enquanto outro tipo de puniçã o consiste na
uniã o sem nenhum amor, onde a pró pria presença de outra pessoa que
te odeia aumenta seus sofrimentos.

A fusão é um obstáculo insuperável à comunhão


Finalmente, podemos falar de um tipo de solidã o criada pelo nã o-
dualismo radical. Esta ú ltima posiçã o é tı́pica de algumas doutrinas
orientais que a irmam que de fato tudo é um; é apenas ilusã o có smica
acreditar que existe multiplicidade. Em ú ltima aná lise, todas as coisas
retornarã o ao ú nico princı́pio metafı́sico imutá vel que é a ú nica
realidade verdadeira. Pode-se argumentar que essa atitude lui de um
desejo ardente, embora inconsciente, de alcançar a comunhã o. Seja como
for, a fusã o metafı́sica absoluta nã o conquista a comunhã o, mas na
verdade a torna impossı́vel. Pois uma parte nã o está e nã o pode estar em
comunhã o com o todo; é absorvido por ele.

A mediocridade egocêntrica é um obstáculo à comunhão


Passemos agora a uma aná lise mais detalhada dos obstá culos que devem
ser superados para que se estabeleça a comunhã o entre duas
pessoas. Mais uma vez, tomemos emprestada uma ideia-chave de Gabriel
Marcel. Ele nos diz em vá rias obras que cada homem tem a tendê ncia de
permanecer preso no estreito cı́rculo de seu interesse pró prio e seu
pró prio egoı́smo mesquinho. Isso constitui o que ele chama de moi, que
pode ser comparado a uma mô nada fechada "sem janelas", para citar
Leibniz. Mas, Gabriel Marcel, nos diz, o homem tem outras
possibilidades; ele també m pode se libertar do egocentrismo de seu
pró prio egoı́smo e abrir-se simultaneamente para uma dimensã o
diferente de seu pró prio ser. Esta é a descoberta do eu em mim mesmo
que enfrenta um tu, isto é , outra pessoa com quem estou em comunhã o.
O nascimento do eu em mim implica uma vitó ria gloriosa sobre minha
pró pria estreiteza e egoı́smo. Esta vitó ria é precedida por uma batalha, e
é precisamente esta batalha contra o pró prio egoı́smo que muitas
pessoas nã o estã o dispostas a empreender. E por isso que muitos
homens preferem o ninho confortá vel de seu pró prio egoı́smo à aventura
de arrombar as portas de seu eu para encontrar outro.
Os homens podem raciocinar, alé m disso, que toda comunhã o implica
um risco e que, ao aceitá -lo, també m abrimos a porta para sofrimentos,
desilusõ es e possı́veis amarguras. Nã o é mais seguro, mais razoá vel
permanecer paci icamente aprisionado em si mesmo? O amor à
mediocridade, tã o profundamente enraizado na natureza do homem,
costuma vestir as vestes da razoabilidade: "O que podemos esperar
alcançar? Os homens nã o podem encontrar-se verdadeiramente. Nã o
desejo expor-me à amargura e à desilusã o. qualquer dano
permanecendo dentro de mim mesmo."
Quanto mais alto algo se classi ica, maior é o risco que isso implica. O
grande dom do livre arbı́trio implica o risco do pecado. Mas sem esse
risco, os valores morais nã o seriam possı́veis. A bondade moral é tã o
elevada aos olhos de Deus que Ele nã o evitou o risco incluı́do na
liberdade.
E verdade que os riscos assumidos por pura ousadia, embora nã o
estejam em jogo valores elevados, sã o uma consequê ncia da
autocon iança. Esses riscos nã o devem ser assumidos. Mas evitar um
grande bem, um grande dom de Deus, apenas porque um risco pode
estar relacionado a ele é completamente errô neo.

Devemos permanecer abertos à comunhão


A comunhã o é um dom e nenhum esforço de minha parte pode alcançá -
la; mas devo estar pronto, "aberto", como diz Gabriel Marcel. Ou seja,
devo ter a prontidã o interior para aceitar a comunhã o se ela me for
oferecida. Se decido, em princı́pio, que recusarei qualquer presente que
me seja concedido, faço uma opçã o inal por minha pró pria
mediocridade e initude. Estabeleço-me na sufocante estreiteza do meu
egoı́smo e rejeito a oferta que me foi feita de entrar num mundo em que,
perdendo o meu moi, me conquisto.
E digno de nota observar que o homem está tã o feito para a comunhã o
que, quando nã o consegue alcançá -la com outros seres humanos, tenta
alcançá -la com os animais. Inú meros casos poderiam ser citados de
pessoas que dã o todo o seu carinho aos animais. Esse "amor" costuma
estar ligado a uma marcada misantropia. Lembro-me de uma senhora
idosa que morou em nosso bairro por muitos anos e cuja afeiçã o por seu
cachorro fez dela o centro de interesse de nosso bairro. Ela costumava
conversar com ele o tempo todo, dizendo coisas como "Você , pelo menos,
nã o vai me abandonar; você vai permanecer iel a mim". Admitindo que a
idelidade de um cã o seja algo notá vel, dado que um cã o nunca o
abandonará ou trairá , nunca devemos esquecer que a idelidade de um
cã o nunca pode ser mais do que a idelidade de um cã o.
Nã o muito tempo atrá s, enquanto navegava pelo Anel de Água
Brilhante, me deparei com uma passagem em que o autor nos diz que
quando sua lontra morreu, ele sentiu mais falta dele do que teria sentido
a maioria das pessoas que ele conhecia, pois ele disse "nã o algué m
con iou em mim tã o totalmente quanto minha lontra. Há um elemento de
tragé dia escondido sob essas palavras.
A comunhã o humana implica um risco porque se baseia na liberdade e
porque nunca podemos ter uma garantia matemá tica exterior de que
nã o conduzirá a desilusõ es. Mas, como vimos, todas as grandes coisas da
vida implicam um risco: a criaçã o de obras de arte, o nascimento, a vida,
a amizade, o casamento.

O funcionalismo ameaça a comunhão


Outra razã o, creio, por que tantas vezes a comunhã o nã o é alcançada em
nossa sociedade se deve à importâ ncia dada ao nosso trabalho, nossa
funçã o na sociedade. Meus alunos me dizem que, desde a juventude,
todo o acento da educaçã o é colocado na questã o: o que você
vai fazer para ganhar a vida? Pouco se diz (se é que se fala) sobre o que
algué m será como pessoa. Pouco a pouco, nos acostumamos a nos ver
como enfermeira, secretá ria, professora, etc., e essa visã o colore
fortemente a formaçã o de nossa personalidade. Costumava haver uma
operadora de telefone tı́pica; ela possuı́a uma polidez notavelmente
vazia. Seu "sinto muito" quando ela lhe deu a conexã o errada foi
impecavelmente correto e notavelmente sem remorso. Ela parecia estar
desempenhando um papel social, e esse papel social parecia ter marcado
sua personalidade de tal forma que, se ela se casasse e queimasse o
jantar, seu "sinto muito" dito ao marido poderia muito bem ter o mesmo
tom que ela tinha ao atender o telefone.
Outro dia algué m me ligou, e apenas seu jeito de cumprimentar revelou a
natureza de sua missã o: ela estava dirigindo uma campanha de
arrecadaçã o de fundos para o hospital e me pediu para dirigir a
campanha em nossa casa. Pareceu-me trá gico que algué m se tornasse
um tipo de "unidade de hospital" que pudesse ser identi icado por sua
pró pria funçã o.
Esse funcionalismo, se assim podemos chamar, é uma grave ameaça à s
relaçõ es interpessoais porque, na verdade, impede a pessoa de se
descobrir e saber quem ela é . Kierkegaard estava ciente desse perigo e
nos lembra eloquentemente que um homem deve ser um homem antes
de ser, digamos, um professor.

Ser é mais importante do que fazer


Nossa sociedade está gravemente ameaçada por esse
impersonalismo. Para combatê -la, devemos tomar consciê ncia da
ameaça que ela constitui em nossa pró pria vida pessoal. Devemos
també m perceber que devemos respeitar a nó s mesmos, a imagem de
Deus em nossas almas. Em nossa sociedade é dada tanta ê nfase à s
realizaçõ es de uma pessoa que somos inalmente levados a ignorar
completamente o que uma pessoa é.
O que tenho em mente é tipi icado na conhecida frase "Ele é um self-
made man", uma frase que nos incita a olhar para a pessoa cujas
performances sã o tã o notá veis que de fato ele conseguiu fazer algo que
nã o pode ser feito: a saber, fazer a si mesmo.
Os complexos de inferioridade surgem principalmente porque fazemos
uma comparaçã o doentia entre as realizaçõ es de outra pessoa e nó s
mesmos. Mas quã o pouca atençã o é dada ao ser da outra pessoa , sua
bondade, generosidade, humildade, paciê ncia? Quanto menos nos
respeitarmos como pessoas feitas à imagem de Deus, mais seremos
levados a nos identi icar com nosso papel social, nosso trabalho, nossas
realizaçõ es, reais ou imaginá rias. Somos levados a acreditar que o
sucesso na vida reside principalmente em nossa capacidade de
trazer credenciais, e ainda assim quem sonharia em dizer a outra pessoa
"Eu te amo porque você é a secretá ria mais e iciente que conheci na
minha vida" ou "porque você é o professor que melhor organiza seu
material"? O amor nã o está preocupado com as realizaçõ es de uma
pessoa; é uma resposta ao ser de uma pessoa.
E por isso que uma palavra tı́pica de amor é dizer "eu te amo, porque
você é como é ". Deus nos amou antes de fazermos qualquer coisa, e esse
mesmo amor torna o homem amá vel. Essa amabilidade, que é nossa sem
que a mereçamos, é algo que devemos aceitar com humildade e que, de
fato, constitui a base indispensá vel para outras realizaçõ es.

O amor de Deus é uma base para a comunhão com os outros


Agora chegamos à parte mais importante do nosso tó pico. A antı́tese
bá sica de todos os tormentos criados pela solidã o é abrigar-se no amor
de Deus, em comunhã o com Cristo. Mas, alé m disso, nossa con iança no
amor de Deus é també m a base de qualquer verdadeira comunhã o com
outras pessoas humanas. Voltaremos ao papel fundamental do abrigo no
amor de Deus pela verdadeira comunhã o com as pessoas humanas mais
tarde. Aqui precisamos apenas enfatizar sua in luê ncia sobre o medo
humano de correr riscos. Poucos sã o aqueles cuja vida se baseia nessa
proteçã o no amor de Deus e, como resultado, as pessoas temem o
encontro com outra pessoa que possa rejeitá -las.

Comunhão é diferente de aceitação social


Isso leva a outra ideia cujo papel em nossa sociedade di icilmente pode
ser superestimado: a ideia de que a coisa mais importante em nosso
relacionamento com outras pessoas é sermos
socialmente aceitos. Admitindo que estar em comunhã o com outras
pessoas é de valor e importâ ncia central na vida humana, devemos ter
cuidado para nã o confundir esta experiê ncia humana profunda com
convı́vio, com um estar junto inofensivo e super icial que, no melhor dos
casos, cria a ilusã o de comunhã o, mas de fato está separado dela por um
abismo. A ê nfase colocada em nossa sociedade nessa uniã o super icial é
tal que uma criança que nã o tem televisã o em casa se sente
envergonhada e excluı́da daqueles que tê m e com quem nã o podem
compartilhar modismos televisivos.
Quantas vezes podemos dizer que o preço a ser pago para ser aceito é
fazer compromissos sé rios, como baixar os padrõ es morais de algué m ou
desistir de ideias centrais que sã o o icialmente rotuladas como
"antiquadas" ou "maricas"? compromissos que uma pessoa pode ter que
fazer para ser aceita, o ponto importante é que a pessoa cujo ideal é ser
aceito veste "roupas" que nã o sã o suas e que provavelmente levarã o a
uma traiçã o total de seus pró prios verdadeiro eu, de sua pró pria
personalidade verdadeira e chamado interior. O lado ridı́culo dessa
tendê ncia lamentá vel reside no fato de que, na verdade, é uma pequena e
dinâ mica minoria que impõ e seus pontos de vista a uma maioria cré dula
e fraca, que se acredita "convencida", quando na verdade apenas cedeu.
E fá cil ver que tal atitude de conformismo super icial na verdade destró i
a base de qualquer comunhã o real entre os seres humanos e alimenta
uma vida tã o arti icial, tã o alheia à s raı́zes profundas do eu, que as
sementes de uma possı́vel comunhã o murcharã o e morrem antes de
terem a chance de lorescer.

Embotamento de espírito é uma ameaça perene à comunhão


Já se falou bastante sobre as di iculdades de alcançar a comunhã o com
outra pessoa humana. Examinemos agora os obstá culos que se colocam
no caminho daqueles a quem foi concedida uma comunhã o real com o
outro. Nã o devemos limitar aos fenô menos fı́sicos o poder exercido pela
lei da gravidade; també m se aplica à nossa vida espiritual. Criamos asas
(para citar Platã o) quando nos apaixonamos e recebemos um contato
profundo com outra pessoa! E como se vı́ssemos o mundo com novos
olhos, como se tivé ssemos despertado de um sono para uma plena
consciê ncia. E, no entanto, depois de um tempo, parece que nos
acostumamos com o incrı́vel presente que nos foi concedido, o dom de
começar a viver de verdade (para citar Gabriel Marcel) em vez de apenas
vegetar. Depois de um tempo, icamos mais absortos no que é
erroneamente chamado de vida real; as preocupaçõ es cotidianas nos
envolvem cada vez mais e, pouco a pouco, voltamos ao nosso velho eu, ao
nosso moi. Quer nos lembremos dos versos de Shakespeare "Os homens
sã o abril quando cortejam; dezembro quando se casam", ou pensemos
na pará bola do Semeador, ou todos apontam para a mesma coisa: o
perigo de voltar a dormir, o perigo de tomar as coisas como certas, e de
esquecer que receber um grande dom implica a responsabilidade de
cuidar dele, de acolhê -lo, de proteger seu crescimento e
desenvolvimento. Este perigo é ainda mais grave porque as pessoas nã o
percebem o quã o perigoso é . Eles raciocinam que o tempo do romance
deve chegar ao im: a lua de mel nã o pode durar para sempre; agora é
hora de voltar para a vida sé ria. O amor é mais sé rio que o trabalho
Esta pode ser a marca mais ameaçadora que caracteriza nossa é poca: a
tendê ncia de ver o amor, o casamento e a amizade como relaxamentos do
trabalho, que é visto como a parte mais sé ria da vida. Infelizmente,
estamos longe de lembrar que o trabalho deveria ser um castigo,
in ligido a Adã o apó s o pecado original. Alé m de nossa relaçã o com Deus,
o casamento e a amizade devem estar no centro de nossas vidas. O
trabalho é uma necessidade, um dever, mas algo cuja importâ ncia nã o se
compara ao valor da vida familiar. E uma perversã o muito sé ria ver o
trabalho pro issional como a parte sé ria da vida e a vida familiar como
um relaxamento. Nã o, o tempo que passo com meus entes queridos nã o é
o momento de relaxar e descansar, mas sim o momento de colocar minha
roupa de festa, o momento de realizar uma verdadeira elevaçã o do meu
coraçã o. E o momento de perceber que meu amor por outra pessoa é ,
humanamente falando, a pé rola preciosa de minha vida, e que devo me
preparar para cada encontro com minha amada com a mesma lembrança
grata que experimentei no momento da primeira queda Ame. Para citar
Keats novamente: "O amor nã o é um brinquedo." E um remanescente do
paraı́so terrestre e deve ser tratado de acordo.
Devemos nos opor à tendê ncia tã o prevalente no mundo moderno que
permite que a vida familiar ique cada vez mais em segundo plano, até
que possamos dizer que nã o há mais famı́lia e nã o há mais vida.

Os parceiros no casamento devem permanecer pessoas


independentes
A mesma preguiça espiritual pode se manifestar em outra direçã o. O
casamento cria uma unidade entre os dois parceiros, que é uma unidade
de almas, mas també m uma unidade de vida. Mas vimos que o tipo de
unidade pró prio da comunhã o pressupõ e que os dois parceiros
permaneçam pessoas independentes. Agora, quando entorpecida pelo
há bito, a vida em comum pode levar a uma falsa identi icação das duas
pessoas. Gabriel Marcel esclareceu a natureza desse perigo sutil em uma
de suas peças intitulada Other People's Hearts. O tema é um casamento
certamente baseado no amor, mas em que o marido cada vez mais
considera sua esposa como parte de si mesmo. Ele nã o considera mais
necessá rio discutir planos com ela ou perguntar sobre seus desejos,
porque, como ele diz, ele sente que pode dar como certo que eles sã o
idê nticos aos seus. Ela sente que está sendo tratada como uma coisa, nã o
como uma pessoa, e sofre profundamente com essa falta de reverê ncia
por parte do marido.
Este perigo é tã o sutil que, em vez de ser visto como uma ameaça à
comunhã o, é interpretado como uma expressã o da uniã o inabalá vel que
existe entre marido e mulher.
Para usar a terminologia de Marcel, em vez de haver uma comunhão real
do nós (que implica o eu e o tu), resta apenas um ego in lado, neste caso
o do marido. Ele trata sua esposa como uma posse, como uma coisa; ele
nã o a trata mais como uma pessoa.

A desilusão é uma ameaça à comunhão


A maior ameaça em relaçã o à comunhã o se encontra nas falhas do ente
querido. Apaixonar-se é essencialmente ter uma visã o da beleza da
individualidade de outra pessoa. Essa visã o nos enche de reverê ncia e
simultaneamente de uma poderosa atraçã o pelo objeto cuja beleza foi
percebida. Literalmente, amar outra pessoa signi ica ver sua beleza,
descobrir o segredo de sua personalidade. Essa visã o, como a chamamos,
é tã o convincente que dizemos: "Nunca a esquecerei".
Infelizmente, a vida cotidiana coloca sua poeira em tudo. As falhas, erros
e imperfeiçõ es do ente querido vê m à tona e muitas vezes obscurecem
minha percepçã o de sua beleza. A grande tentaçã o é dizer entã o: "O
amor me deixou cego. Projetei tantas perfeiçõ es em meu amado, mas
agora que olho novamente para ele, vejo claramente que muito do que
atribuı́ a ele é pura ilusã o. ."

O orgulho nos cega para as falhas de nosso amado


A ideia de que o amor é cego é quase tã o antiga quanto a iloso ia, pois já
a encontramos proposta no Banquete de Platão por um dos convidados
do banquete. Admitindo que é bem possı́vel que uma pessoa ique
totalmente cega para as falhas de uma pessoa amada, a questã o é se é o
amor que a cega.
Dizemos de uma mã e que se recusa obstinadamente a ver os defeitos de
seu ilho que "ela está cega pelo amor". Que a mã e está cega é claro, mas
que é o amor que é responsá vel por sua cegueira é outra questã o. Nã o é
mais correto dizer que é o orgulho que a cega para os erros de seu
ilho? E como se a mã e dissesse a si mesma: "Meu ilho nã o pode ter
esses defeitos, porque é meu ilho; como meu ilho pode fazer uma coisa
dessas?"
Vemos claramente que essa mã e vê seu ilho como algué m com o ego
in lado, e por isso : é insuportá vel para ela ver e admitir os erros do
ilho. Longe de ser o amor que a cega, é antes a pró pria imperfeiçã o de
seu amor que permite que seu orgulho assuma o controle. E como se
essa mã e dissesse a si mesma: "Se realmente minha ilha possui esses
defeitos e de iciê ncias, nã o a amarei mais".

O amor vê claramente o amado


O verdadeiro amor, ao contrá rio, vê com clareza luminosa a imagem do
amado, o que ele é chamado a ser, o que ele é aos olhos de Deus; e
simultaneamente, no pano de fundo dessa visã o da beleza, o amante vê
que sua amada ainda está longe de perceber isso. A pessoa amada está in
statu viae, a caminho de se tornar; ele ainda nã o se realizou.
Agora deve icar claro que o verdadeiro amor vê impiedosamente as
falhas e de iciê ncias da pessoa amada, mas interpreta essas falhas de
maneira diferente. Neste ponto, devo me referir a uma caracterı́stica do
amor elaborada por Dietrich von Hildebrand.

O amor vê o que o amado deve ser


De fato, uma caracterı́stica fundamental do amor é que todas as boas
qualidades do amado sã o consideradas uma expressã o vá lida de seu
verdadeiro eu, enquanto suas faltas sã o interpretadas como uma
in idelidade ao seu verdadeiro eu. Dizer "este nã o é o seu verdadeiro eu",
quando o amado comete alguma falta, é uma palavra tı́pica de amor.
Enquanto geralmente consideramos os valores e os desvalores em uma
pessoa como sendo igualmente caracterı́sticos dela, pertencendo
igualmente a si mesma, é tı́pico do amor, que implica uma resposta à
beleza dessa pessoa individual, considerar todos os desvalores como nã o
caracterı́stica dele, como uma in idelidade para com seu verdadeiro eu,
um fracasso em ser verdadeiramente ele mesmo.
Isso distingue todos os tipos de amor de uma atitude neutra, assim
chamada, "objetiva" em relaçã o a outras pessoas. O psicó logo chamado
como perito no tribunal irá equilibrar ou pesar entre si as qualidades
positivas e negativas do ré u. O amante, ao contrá rio, considerará o
positivo como a expressã o de seu eu real e autê ntico, e o negativo como a
traiçã o de seu verdadeiro eu, uma negaçã o, um afastamento dele.
Este é o crédito que só o amor e o amor dã o ao amado. Este cré dito é
també m uma marca especı́ ica de amor ao pró ximo. Aqui o amor
responde ao valor ontoló gico da pessoa, ao seu cará ter como imagem de
Deus, vendo-o à luz da similitudo Dei, isto é , a santi icaçã o que ele é
chamado a alcançar. Cada falta é assim vista como uma traiçã o de seu
cará ter como imagem de Deus, uma in idelidade, uma apostasia de seu
verdadeiro eu.
Assim, o amor nã o ignora as faltas do amado e de modo algum é cego
para elas; mas o amante os aborda de uma maneira completamente
diferente. Deve-se enfatizar que a abordagem do amor é na realidade
muito mais objetiva, muito mais verdadeira, do que a do observador
neutro. Nã o é apenas mais objetiva, mas é mesmo a ú nica abordagem
objetiva e adequada, porque só ela é iel à natureza da pessoa. Este
cré dito é um grande presente que o amante concede ao amado. Implica
um elemento de esperança que é um conforto e uma ajuda incrı́veis para
o amado.

O amor tem fé na bondade do amado


No entanto, esse nã o é o ú nico cré dito concedido pelo amor. O amor
també m interpreta tudo da melhor maneira, desde que nã o se revele
de initivamente negativo. Há tantas coisas no homem que podem ser
interpretadas de maneiras muito diferentes, tantos atos, atitudes e
palavras que em si nã o sã o nem moralmente bons nem maus, nem belos
nem feios, mas que ganham seu signi icado e caracterı́stica apenas
quando vistos contra o passado desta pessoa especial. Enquanto é uma
marca tı́pica de malevolê ncia e ó dio estar atento aos erros da outra
pessoa e, consequentemente, interpretar tudo nela da pior forma
possı́vel, é um elemento bá sico do amor que se tenha a disponibilidade
de interpretar tudo em a melhor luz possı́vel, desde que nã o seja
univocamente negativa. Este cré dito implica um elemento de acreditar
na outra pessoa.
Pode ser precisamente essa fé que dará ao ente querido a coragem de
lutar contra suas pró prias fragilidades. Na verdade, acreditamos que
certas pessoas nunca reú nem forças para lutar contra seus erros porque
nunca encontraram ningué m disposto a acreditar neles. A fé é um
elemento essencial do amor, e aquele que deixa de amar porque a
verdadeira imagem de seu amado é momentaneamente encoberta, nã o
amou verdadeiramente em primeiro lugar.

A esperança é um elemento essencial no amor


Porque o amor está essencialmente relacionado com a fé , está també m
intimamente ligado à esperança, a esperança de que aquele que amo um
dia se tornará o que sei que ele é chamado a ser. A esperança é
paciente. Enquanto o impaciente estabelece prazos e, quando nã o os
cumpre, se revolta e se desespera, o verdadeiro amante ica impaciente
justamente porque sua esperança é tã o viva que con ia que o que nã o se
cumpre hoje pode e acontecerá amanhã .
O amor está tã o ligado à esperança que nunca forçará outra pessoa a se
tornar o que eu sei que ela deveria se tornar, mas aceitará paciente e
reverentemente o ritmo de desenvolvimento pró prio de outra pessoa,
con iando o tempo todo que ela virá a ser o que eu sei que ele deveria
ser.

A caridade deve permear todo amor


Vemos agora que as trê s virtudes sobrenaturais da fé , esperança e amor
també m nos dã o uma chave para a compreensã o do amor humano
natural. Isso con irma um princı́pio platô nico bá sico: ou seja, só
podemos descobrir o verdadeiro signi icado do mundo em que vivemos
se mantivermos nossos olhos ixos acima desse mundo. No entanto,
devemos ir ainda mais longe. Todas as categorias naturais de amor
(como amor paterno ou ilial, amizade ou amor conjugal) podem
alcançar plenamente o que seu amor aspira somente quando sã o
transformados por Cristo. E somente quando o espı́rito de caridade
permeia a respectiva categoria de amor com seu glorioso sopro de
sublime bondade e heró ica autodoaçã o que o amor pode ser iel à sua
pró pria essê ncia.
Essa transformaçã o nã o apaga de forma alguma o cará ter especı́ ico de
cada tipo de amor. Pelo contrá rio, todas as caracterı́sticas tı́picas da
respectiva categoria de amor serã o mais perfeitamente desdobradas
quando essa transformaçã o tiver ocorrido. O Papa Pio XII a irmou isso
lindamente quando disse que "Deus com Seu amor nã o destró i nem
muda a natureza, mas a aperfeiçoa". Claramente, há apenas uma soluçã o
para a solidã o – o lagelo de nossos tempos – e esta soluçã o é Cristo.

7
Ter esperança

Uma das crı́ticas que Gabriel Marcel faz à iloso ia tradicional é que ela
nã o incluiu em sua de iniçã o do homem a capacidade do homem de se
desesperar. O homem, ele nos diz, é um ser capaz de romper seu vı́nculo
metafı́sico com a existê ncia, seu vı́nculo umbilical com o ser.

Somente seres racionais são capazes de se desesperar


Obviamente, um ser nã o inteligente nã o poderia se desesperar de
nada. Gabriel Marcel parte, portanto, do homem como animal
racional; mas ele desa ia a iloso ia aristoté lica com base no fato de que
ela dá ao homem uma falsa segurança metafı́sica ao chamá -lo de animal
racional. Essa de iniçã o pode levar o homem a se sentir abrigado na
consciê ncia de sua pró pria racionalidade.
O desespero está ligado à consciê ncia de uma vocaçã o metafı́sica, um
destino metafı́sico nã o cumprido. O homem desesperado diz "é tarde
demais", e esse "tarde demais" traz consigo uma negaçã o implı́cita do
poder criador de Deus, um esquecimento de que Aquele que nos criou do
nada nã o nos abandonou e continua sendo um Criador. "Tarde demais"
ignora a eterna renovaçã o da criatividade generosa de Deus.
Sem imortalidade, toda existê ncia humana contemplada como tal deve
terminar em desespero, pois a morte é , visivelmente falando, a ú ltima
palavra. Esse cará ter impiedoso e terminal da morte como a ú ltima
palavra aparente da existê ncia humana é particularmente
impressionante se pensarmos na morte de uma pessoa amada como uma
possı́vel fonte de desespero.

O desespero inconsciente é generalizado


E um dos mé ritos de Kierkegaard ter colocado o dedo no potencial do
homem para o desespero. Antecipando a ê nfase psicanalı́tica sobre o
inconsciente, ele nos diz em Doença para a morte que um dos tipos mais
difundidos de desespero, e um dos mais desesperados, é um desespero
inconsciente de si mesmo. Numerosos sã o os homens que passam a vida
sem saber de onde vê m, sem saber para onde vã o, e que parecem lutuar
pela vida, aparentemente despreocupados com sua origem ou seu
destino.
Claro, eles sabem que um dia terã o que morrer; é claro, eles sabem que a
vida é insegura e incerta. Mas eles permanecem em um nı́vel de
consciê ncia onde essas ameaças metafı́sicas sã o cuidadosamente veladas
em uma abstraçã o e insubstancialidade que as fazem parecer inofensivas
e irreais.
Para se referir a Martin Heidegger, essas pessoas falarã o da morte com a
mesma frieza com que mencionam a lei da gravidade; é claro que "um"
deve morrer, mas esse "um" nunca é identi icado com o eu. Eles tê m
tanto medo de um confronto metafı́sico com a morte que, se tivessem
que fazê -lo, provavelmente cometeriam suicı́dio imediatamente, em vez
de serem forçados a viver com uma perspectiva tã o ameaçadora.
Essas pessoas navegam pela vida, aparentemente satisfeitas,
regozijando-se com cada pequeno prazer que lhes é concedido,
aguardando ansiosamente o que o amanhã trará . E, no entanto, no que
diz respeito a eles, pode nã o haver um amanhã .

Viver por prazer gera desespero


Kierkegaard caracterizou isso como a tragé dia de viver por prazer. Mas o
prazer, ele nos diz, é por sua pró pria natureza limitado ao
tempo. Começa no tempo, atinge seu clı́max e declina. E, em princı́pio,
possı́vel imaginar uma sucessã o eterna de prazeres, um rapidamente
sucedendo ao outro; mas é inconcebı́vel que um prazer seja eterno. Mas
se é da essê ncia do prazer estar no tempo e o tempo lutua constante e
continuamente para a frente, entã o uma vida centrada exclusivamente
nos prazeres é uma vida ameaçada pelo desespero. Pois, para citar
Kierkegaard novamente, "Se o momento é tudo, o momento nã o é nada".
Simultaneamente - e isso é importante - todo prazer, por menor que seja
sua duraçã o, fornece "combustı́vel" su iciente para ansiar pelo pró ximo
prazer. Continua empurrando a pessoa em um estado de inquietaçã o e
tensã o que torna muito difı́cil meditar sobre a desesperança desse
estado.

Prazeres dão menos do que prometem


Santo Agostinho, cujo gê nio antecipou tantas das iloso ias existenciais,
observa incisivamente que, embora seja caracterı́stico dos prazeres
terrenos que eles dã o menos do que prometem, o inverso é verdadeiro
para a bem-aventurança eterna; nossos desejos mais fortes nunca
podem nos dar qualquer antecipaçã o adequada da alegria que nos será
concedida.
Esse "combustı́vel" que toda experiê ncia prazerosa nos proporciona
deve ser analisado com mais precisã o. Ansiamos por um prazer
particular; ela toma conta de nossa atençã o a tal ponto que parece que
nã o nos importamos com mais nada. Aguardamos ansiosamente a sua
fruiçã o que, neste momento, parece tornar-se um "todo". Mas raros sã o
os casos em que o gozo real faz jus à promessa que nos deu.
Muitas vezes, a realizaçã o desse prazer é acompanhada por uma nota de
desilusã o, por menor que seja. Para ilustrar o ponto, precisamos apenas
observar as crianças que desejam desesperadamente obter um
brinquedo. Eles nã o podem falar sobre outra coisa; eles estã o dispostos a
fazer grandes esforços ou sacrifı́cios extraordiná rios para ter seu desejo
realizado. Apó s sua realizaçã o, eles antecipam o cé u; eles esperam uma
mudança total e duradoura em suas vidas. Mas depois de alguns dias de
possessã o febril, seu interesse parece diminuir; o brilho que iluminou
esse objeto particular parece desaparecer e, logo depois, o objeto
outrora tã o apaixonadamente desejado é incapaz de proporcionar ao seu
possuidor qualquer satisfaçã o particular ou notá vel.
O fato interessante, no entanto, é que essa experiê ncia, embora
registrada conscientemente, de forma alguma mudará ou alterará a
antecipaçã o apaixonada do pró ximo objeto de prazer. De fato, se algué m
fosse lembrado da desilusã o vivida no passado, esse lembrete seria
imediatamente afogado em um poderoso turbilhã o de racionalizaçõ es
que explicariam a força dessa objeçã o.

A busca do prazer pode se tornar uma forma de escravidão


Há um desejo profundo dentro do homem de con iar no poder dos
prazeres, de acreditar que, a longo prazo, eles serã o capazes de nos
proporcionar um estado de deleite que pode ser obtido ao pedir e retido
à vontade.
Assim, a pró pria desesperança de encontrar nos prazeres a chave da
felicidade anda de mã os dadas com outra desesperança: a de libertar-se
das cadeias dessa escravizaçã o, pois o gozo de todo prazer está
psicologicamente ligado à promessa de outro prazer.
E importante notar que a pró pria imanê ncia do ciclo dos prazeres leva os
homens a acreditar que nã o há esperança de transcendê ncia para eles, e
isso joga os homens de volta ainda mais brutalmente sobre as migalhas
de satisfaçã o que o prazer pode produzir.
E, creio eu, essa lei imanente do prazer que levou Kierkegaard a dizer
que o homem só pode recuperar sua liberdade por meio de um salto –
isto é , rompendo a prisã o circundante do prazer para outra esfera da
existê ncia humana. , para outra profundidade de suas possibilidades.
Cativeiro ao prazer é uma forma de desespero
Muitos seres humanos se encontram nesse cativeiro, um cativeiro cuja
desesperança é o desespero. E, no entanto, a maioria das pessoas,
enquanto se encontram nesse estado desesperador, nã o tem consciê ncia
de seu pró prio desespero pelas mesmas razõ es que mencionamos acima:
a polı́tica do avestruz de nã o enfrentar o pró prio desespero, de nã o
chamá -lo pelo nome correto e simultaneamente, a promessa sutil
contida em todo prazer de que outro prazer levará a algum tipo de
realizaçã o.
Esses homens que reprimem seu desespero (para usar a terminologia
psicanalı́tica) mergulhando no turbilhã o dos prazeres se comportam
como pessoas cujo casamento é profundamente infeliz. Na superfı́cie,
eles nos parecem indivı́duos satisfeitos e bem-sucedidos; e, de fato, eles
podem caminhar alegremente pelos caminhos da vida, desde que nã o
sejam confrontados com a tragé dia de sua situaçã o, desde que nã o
tenham consciê ncia da distâ ncia abismal entre um casamento
verdadeiramente feliz e sua situaçã o atual. Esse escapismo é um dos
mecanismos de defesa mais sutis que a natureza produziu. Mas esse
mecanismo de defesa é uma faca de dois gumes, pois a pró pria proteçã o
que oferece torna quase impossı́vel para a pessoa em questã o se libertar
e dar o salto para uma esfera mais elevada de existê ncia.
Há uma forma de caridade que consiste em ajudar outra pessoa a nã o
descobrir sua pró pria misé ria, desde que a descoberta da mesma nã o
possa ser acompanhada de seu remé dio. Descartes já observou
sabiamente em seu Discurso que um homem, insatisfeito com sua casa,
esperará pacientemente antes de derrubá -la até que outra casa mais
hospitaleira esteja pronta para recebê -lo. Da mesma forma, é arriscado
tornar outra pessoa consciente de seu desespero, se ela é incapaz de lhe
dar simultaneamente um raio de esperança.
No entanto, deve icar claro que esse tipo de "esconde-esconde"
metafı́sico constitui um estado lamentá vel, cuja tragé dia está na pró pria
traiçã o da possibilidade mais ı́ntima do homem: ele ser feito para
Deus. Citemos as palavras de Santo Agostinho: "Pois Tu nos izeste para
Ti e nossos coraçõ es estã o inquietos até que descansem em Ti."
A própria consciência do desespero pode causar maior desespero
Kierkegaard nos diz que há outro tipo de homem que se conscientizou
da desesperança dos prazeres constantes e do egocentrismo que o
acompanha. Ele atingiu o está gio do desespero consciente, mas a pró pria
consciê ncia de seu desespero o mergulha em um desespero mais
profundo, que pode levá -lo a invejar o homem que nã o sabe quã o infeliz
ele é . A consciê ncia do pró prio desespero constitui uma vantagem real
sobre o que Kierkegaard chamou de "desespero inconsciente", pois essa
consciê ncia é necessá ria para dar o salto que levará a pessoa alé m das
presas do desespero.
Mas de outro ponto de vista, a consciê ncia do pró prio desespero,
juntamente com uma nova forma de desespero sobre o pró prio
desespero, constitui uma situaçã o particularmente cruel. A
peculiaridade dessa forma de desespero está na extrema lucidez em
relaçã o ao passado. A pessoa em questã o vê com impiedosa clareza a
desesperança de sua situaçã o, o beco sem saı́da ao qual necessariamente
conduz uma vida centrada exclusivamente na satisfaçã o meramente
subjetiva. Ele vê , alé m disso, com clareza invejá vel que o homem nã o
precisa se desesperar, que o caminho da transcendê ncia está aberto para
ele. No entanto, simultaneamente por algum tipo de perversã o, ele
a irma que esse caminho, aberto a todos os homens, está fechado
para ele. Ele lhe dirá que se fosse um pouco mais jovem, se as
circunstâ ncias fossem um pouco diferentes, ele poderia ter encontrado o
caminho para a esperança. Mas, dada a sua situaçã o concreta, deve icar
claro que a palavra esperança permanece sem sentido para ele.
O grito desesperado desse homem é "para mim é tarde demais". Ao
perceber os limites impiedosos do tempo, ele declara simultaneamente
que o Criador do tempo nã o pode redimir o tempo em seu caso. A atitude
de tal homem, preservando a aparê ncia de humildade, inverte os papé is
entre o Criador e as criaturas; e em vez de orar com o salmista "As
minhas sortes estã o nas tuas mã os", ele parece dizer " as tuas sortes
estã o nas minhas mã os". Ao mesmo tempo em que reconhece seus
limites como criatura, esse homem ao mesmo tempo se recusa a removê -
los; ele permanece no nı́vel da imanê ncia e, neste caso, no isolamento
tı́pico da imanê ncia. Em vez de con iar seu destino nas mã os de Outro
(veremos que isso constitui a essê ncia da esperança), ele manté m seu
destino em suas pró prias mã os, declarando que nã o pode conservá -lo.

O orgulho prende alguns homens em seu desespero


De acordo com Kierkegaard, há ainda outra forma de desespero, que
constitui de alguma forma o pró prio clı́max do desespero. Este ú ltimo
tipo é plenamente consciente em um duplo sentido: um homem está
consciente de seu pró prio desespero e també m consciente de que existe
uma cura para ele, que pode ser ajudado a sair de seu desespero. Apesar
de tudo isso, ele se contenta com seu desespero, preferindo, por assim
dizer, estar desesperado a ser ajudado por outro. (Agostinho diz que
"infeliz é o homem que é orgulhoso demais, orgulhoso demais para
aceitar misericó rdia.")
Este ú ltimo caso está em completo desa io à razã o. Pode-se imaginar
algo mais irracional do que o caso de um homem que suporta os mais
amargos tormentos do desespero, e ainda assim prefere esse estado
lamentá vel a estender a mã o a outro, implorando por ajuda? Aqui
tocamos uma das profundezas mais misteriosas da pessoa humana, que,
embora tenha o dom da razã o, pode ser levada a odiar a razã o. Este é , de
acordo com Platã o, o maior mal que pode acontecer ao homem. Esse
fator mais misterioso no homem é o de sua liberdade, uma liberdade tã o
abismal que só ela pode escolher sua pró pria ruı́na.

A liberdade agora é erroneamente identi icada com arbitrariedade


Talvez seja oportuno, neste momento, investigar a gê nese da liberdade
humana. Um nascituro constitui um todo harmonioso com sua mã e; mas
simultaneamente, esta harmonia preestabelecida, sendo imposta, nã o
pode pretender possuir os mé ritos de uma união. Esta harmonia é antes
uma promessa simbó lica. Esta etapa é seguida pela do nascimento em
que a criança, por assim dizer, conquista seu cará ter de plena
individualidade; isto é , ele atinge um novo está gio decisivo em seu
cará ter como pessoa individual, plenamente capaz de existir por conta
pró pria. No entanto, seu desenvolvimento como pessoa ainda é tã o
inadequado que a criança se deixa levar pela mã e como se fosse uma
coisa; ela o leva, cuida dele, mima-o à vontade. Essa passividade leva as
pessoas a considerarem a criança como um brinquedo, como uma
boneca com a qual se pode brincar.
Mas à medida que a criança cresce e se desenvolve, ela é lentamente
levada a uma descoberta surpreendente: ela pode dizer "nã o" aos
desejos de sua mã e; ele pode se decidir; ele se torna consciente do
incrı́vel e insuperá vel poder da liberdade humana.
Esta descoberta é simbolizada por uma atitude que todos nó s tivemos a
oportunidade de observar muitas vezes: uma criança chamada pela mã e
olha para ela, parece hesitar por um momento e depois corre o mais
rá pido que suas pernas lhe permitem - em outra direçã o! Ele agora está
desfrutando do poder da independê ncia, e desfrutando-o tã o
completamente que sua satisfaçã o se transformará imediatamente em
uma raiva declarada no exato momento em que, pego por sua mã e, ele é
forçado a desistir de seus pró prios planos de movimento independente.
Esse desejo de independê ncia, de uma distinçã o cada vez mais clara
entre seus desejos e os desejos dos outros, continuará aumentando na
criança ao longo de seu desenvolvimento.
Atingirá seu clı́max na puberdade, a idade caracterizada por uma forte
ê nfase na pró pria independê ncia, uma revolta geral contra todas as leis e
obrigaçõ es e uma constante suspeita de que sua soberania possa ser
violada.
Essa atitude defensiva é tã o fortemente delineada que o "nã o" se torna
sı́mbolo de liberdade autê ntica. A liberdade é vista principalmente como
uma poderosa rejeiçã o de pressõ es e in luê ncias externas, como uma
a irmaçã o do eu contra todos os outros eus e contra o pró prio mundo.
A fraqueza e a impotê ncia desse está gio de desenvolvimento sã o
evidenciadas pelo fato de que um educador consciente dessa atitude em
seu aluno pode facilmente levá -lo a fazer o que ele deseja que ele faça
simplesmente ocultando cuidadosamente seu desejo de que algo seja
feito.
Subjetivamente falando, o adolescente está embriagado com sua pró pria
independê ncia, e ignora totalmente o fato de permanecer escravo; pois
suas atitudes sã o ditadas por reaçõ es, por rejeiçõ es que tê m um poder
determinante sobre ele. Lembro-me de que quando meu irmã o tinha
cerca de quatorze anos, sua principal preocupaçã o era me
persuadir dessa completa e total independê ncia (em todo caso, é um fato
interessante que se tente persuadir os outros), enquanto ao mesmo
tempo ele permanecia um completo presa dos julgamentos dos
outros. Bastava dizer-lhe "Tenho certeza de que você nã o se atreve a
fazer isso ou aquilo" para levá -lo a fazê -lo, ou tentar fazê -lo, na hora.
Nã o há dú vida de que muitos homens permanecem para sempre neste
está gio imperfeito de desenvolvimento. Eles cometem o grave erro de
identi icar a verdadeira liberdade com independê ncia no sentido de
negaçã o e rejeiçã o.
Isso confere à gloriosa possibilidade humana da livre escolha um cará ter
trá gico de arbitrariedade irracional, cuja natureza encontra sua
expressã o mais perfeita e mais paté tica na iloso ia de Jean Paul Sartre.
O fenô meno que acabamos de descrever parece colocar em desacordo
duas faculdades humanas centrais: a saber, a racionalidade e a
liberdade. Grande parte da iloso ia contemporâ nea se conformou com
essa polaridade antagô nica, que é vista como um dilema sem
esperança. O resultado ilosó ico é o que tem sido apropriadamente
chamado em termos contemporâ neos de o homem irracional, o homem
in luenciado por impulsos e necessidades inconscientes, o homem que
vê a razã o como uma maldiçã o e se gloria por ter se libertado de suas
exigê ncias.
Essa tendê ncia se enraizou tã o poderosamente no sé culo XX que
conquistou o domı́nio da arte. Este já nã o sente que é desejá vel seguir
um logos objetivo, colaborar com formas pré -dadas na natureza, mas vê
essas formas como exigê ncias ilegı́timas feitas à arbitrariedade
independente de sua pró pria criatividade.
Uma aná lise mais detalhada nos levaria muito longe de nosso tó pico
atual; mas é importante lembrar que a verdadeira liberdade e a
arbitrariedade total foram casadas nas mentes de muitos pensadores
contemporâ neos.

A liberdade destina-se a libertar-nos do egoísmo


Quã o luminoso e refrescante é o pensamento de Santo Agostinho sobre o
mesmo tema. Embora reconhecendo plenamente o poder de escolha do
homem, reconhecendo plenamente a liberdade como marca da
independê ncia real da pessoa, sinal de sua pró pria dignidade
incompará vel, ele, no entanto, recusa ver nela a rejeiçã o arbitrá ria de
qualquer lei. Em sua obra Sobre o livre-arbítrio, Santo Agostinho deixa
luminosamente claro que devemos distinguir entre o poder de tomar
uma decisã o livre (um poder concedido a todos os homens) e o exercı́cio
adequado desse poder. Em vez de ver a liberdade como um meio de
defesa egocê ntrico contra o mundo e suas exigê ncias, ele a vê como um
meio e iciente de libertaçã o das exigê ncias ilegı́timas do pró prio
egoı́smo. Ser livre, para Santo Agostinho, é in initamente mais do que
possuir independê ncia para fazer o que quiser; é , acima de tudo, uma
libertaçã o da cadeia do orgulho e da concupiscê ncia que me escraviza,
que me permite fazer o que sei ser bom e certo. Em poucas palavras:
"Devo me libertar de minhas amarras para ser livre para as exigê ncias do
mundo dos valores e, em ú ltima aná lise, do pró prio Deus".

A liberdade é o caminho para a união com os outros


Este desvio sobre o tema da liberdade humana nos traz de volta ao nosso
tema central: se o homem deve viver como pessoa no sentido profundo e
verdadeiro deste termo, ele deve transcender o está gio de
desenvolvimento em que se vê como uma mô nada fechada. cuja tarefa
central é viver em alerta por medo de que outras mô nadas possam
infringir sua soberania autocrá tica. Ele vai entender melhor que – para
citar Gabriel Marcel – “ser uma pessoa é estar com”.
O homem nã o é uma mô nada isolada; ele nasce em um universo
estruturado segundo leis morais que sã o dadas a priori e que dã o um
signi icado luminoso a um mundo que nã o teria sentido sem elas.
Essas leis nã o sã o inventadas pelo homem e nã o podem ser de sua
autoria. Ao contrá rio, eles o convidam a consentir, nã o em estado de
passividade preguiçosa, mas com o fervor de uma colaboraçã o gloriosa
que, longe de ser nã o livre, é de fato o á pice da liberdade. Essa
colaboraçã o inclui tanto a liberdade sobre si mesmo quanto uma
resposta livre a algo acima dele, um testemunho de sua transcendê ncia.
Nossas relaçõ es mais profundas com as criaturas humanas con irmam
admiravelmente a natureza da verdadeira liberdade. No amor e no
casamento encontramos tanto a vitó ria sobre o pró prio egoı́smo, a
pró pria imanê ncia, como simultaneamente o encontro de duas
liberdades unidas num só amor. E profundamente signi icativo que, ao
longo da histó ria da Igreja, o casamento tenha sido usado como fonte de
analogias. Enquanto Sartre vê a uniã o sexual como uma conquista brutal
do corpo do outro, como um esforço impotente para conquistar sua
liberdade, o amor é , de fato, uma doaçã o gloriosamente gratuita de si ao
outro e uma aceitaçã o grata de seu pró prio presente a mim.
Vemos agora que a dimensã o mais profunda da liberdade humana nã o se
encontra em decisõ es autocrá ticas e independentes, como o adolescente
tende a acreditar, mas sim uma concertaçã o com a sinfonia de valores
que permeiam o universo. Entrar em diá logo com o outro, apreender sua
estrutura mais ı́ntima, responder à s exigê ncias do mundo dos valores —
longe de limitar a liberdade do homem — só é possı́vel em e por um ato
transcendentemente livre, que só pode brotar do mais profundo do ser
humano. alma de uma pessoa.
Depois desse desvio bastante longo, podemos entender por que o
homem que prefere seu pró prio desespero a ser ajudado a sair dele,
longe de ser livre no sentido mais profundo desse termo, está realmente
preso na cã ibra de um ego que se tornou uma caricatura. de uma imago
Dei. Encolhido em si mesmo, girando incessantemente sobre si mesmo, é
como um homem na prisã o que, em vez de tentar se libertar,
voluntariamente se amarra e amordaça.

O otimismo é uma disposição e não uma resposta


Para ver que a esperança está necessariamente ligada à transcendê ncia
do homem e só é possı́vel se o homem romper o cı́rculo de seus limites,
devemos primeiro separar claramente a esperança de fenô menos
super icialmente semelhantes. O mais ó bvio deles é o otimismo. Por
causa da frouxidã o enganosa de nosso uso das palavras, muitas vezes
somos tentados a dizer que uma pessoa otimista está cheia de
esperança; ele nunca é abatido; e ele continua ansioso por um futuro
despreocupado e agradá vel.
Mas essa atitude nã o tem nada a ver com esperança, pois no otimismo
estamos diante de um traço puramente disposicional, uma tendê ncia
puramente imanente que é totalmente desprovida de cará ter de
resposta. A pessoa otimista será assim sem qualquer motivaçã o
objetiva; ele nã o está respondendo a circunstâ ncias favorá veis nem a um
fator transcendente que possa prescindir de fatos ameaçadores.
O otimismo é essencialmente uma espé cie de dinamismo interior, uma
força propulsora que nos manté m em movimento. Mas o otimismo está
simultaneamente associado a uma espé cie de cegueira, pois a pessoa
otimista nã o vê o cará ter objetivo de uma situaçã o e depois responde
com otimismo, mas é otimista por princı́pio, e essa mesma disposiçã o
precisamente o cega para o cará ter objetivo de uma situaçã o. situaçã o.
O otimismo está tã o enraizado na imanê ncia que é bem possı́vel
imaginar uma pessoa caracterizada por um otimismo inato caindo
repentinamente no poço escuro do desespero no exato momento em que
seu suprimento de otimismo se esgota. O otimismo pode ser comparado
a um combustı́vel, e no exato momento em que uma pessoa ica sem esse
combustı́vel, seu otimismo para de repente e imprevisto.

Pensamento positivo não é esperança
També m devemos evitar confundir esperança com desejo – uma
confusã o com maior probabilidade de ocorrer, pois essas duas
experiê ncias parecem semelhantes. Obviamente, as pessoas lhe dirã o
que esperar que seu amigo se recupere de sua doença equivale a
acreditar que ele o fará porque você o deseja, e esse desejo ganha tanto
ı́mpeto que você é levado a uma convicçã o interior de que será assim.
Admitamos que todo ato de esperança compartilhe com o pensamento
desejoso a caracterı́stica de trazer em si um desejo (isto é , se espero
algo, necessariamente desejo sua realizaçã o). Admitamos ainda que
tanto o desejo quanto a esperança sã o caracterizados por uma convicçã o
interior de que algo acontecerá ou que alguma ameaça será evitada. No
entanto, essas semelhanças nã o devem nos cegar para as diferenças
essenciais entre os dois tipos de experiê ncia.
Na ilusã o, o pró prio dinamismo do meu desejo me cega para a realidade
de certos fatos. Na verdade, nã o os vejo porque me recuso a fazê -lo, ou
imagino que algo exista porque desejo que seja. Na esperança, ao
contrá rio, parece que me foi concedida uma peculiar clareza de visã o
quanto ao drama da situaçã o. Eu nã o tenho ilusã o. Vejo com impiedosa
clareza que, humanamente falando, uma situaçã o é desesperadora. Eu
experimento toda a angú stia inerente a esse desespero, mas con io em
um fator transcendente e, portanto, me recuso a ver a tragédia como a
última palavra. Rompo o cı́rculo das causalidades imanentes e
transcendo a uma esfera na qual o desdobramento impiedoso das leis
imanentes deixa de dominar.

A esperança está fundamentada em Deus


Chegamos agora ao fator decisivo: meta isicamente falando, todo ato de
esperança se fundamenta em Deus. Gabriel Marcel mostrou com notá vel
clareza que a pró pria essê ncia da esperança repousa na esperança . .
Con io que o bem-estar deste ente querido nã o é minha preocupaçã o
exclusiva, mas que o pró prio Deus cuida dele, o ama ainda mais do que
eu o amo.
Na verdade, nesses momentos experimento meu amor como uma
participaçã o no amor in inito de Deus. Apesar da escuridã o desesperada
que me cerca, recuso-me a deixar-me envolver por ela; Recuso-me a
interpretá -la como a ú ltima realidade ú ltima.
O pró prio fato de que a situaçã o em que me encontro é verdadeiramente
desesperadora, o fato de que devo esperar contra a esperança, longe de
torná -lo um ato irracional, me obriga a transcender a esfera racional e a
con iar na luz ofuscante de uma realidade supra-racional na qual minha
esperança está fundamentada.
Isso deve deixar claro que todo ato de esperança é principalmente uma
resposta a Deus, à Sua in inita bondade, à Sua onipotê ncia e ao fato de
que Deus nos ama in initamente. Toda esperança verdadeira de que algo
vai acontecer pressupõ e uma esperança, quer a pessoa que espera
perceba isso ou nã o.
Um ateu teó rico que, quando ameaçado pelo desespero pela grave
doença de sua amada esposa, se recusa a se deixar envolver por essa
escuridã o e até proclama que ainda espera que ela se recupere, está
fazendo um apelo implı́cito à bondade de Deus. Para toda esperança
que pressupõ e essencialmente uma esperança em Algué m, cuja bondade
é a garantia de que minha esperança nã o será em vã o.
O ponto é que um crente conscientemente fundamenta sua esperança
em Deus e, con iando na bondade absoluta de Deus, espera que a ú ltima
palavra da existê ncia humana seja alegria. Isso é admiravelmente
expresso nas palavras do salmista: "Em ti, ó Senhor, eu esperei ( espero
em); que eu nunca seja confundido ( espero que). "
Um ateu teó rico, ao contrá rio, conscientemente espera que um evento
ocorra apesar dos prognó sticos humanos contrá rios; mas ele falha em
perceber que em tais momentos ele se tornou um crente prá tico. Pois em
tais momentos ele acredita implicitamente na bondade de um Ser
in initamente poderoso que pode evitar um mal ou cancelar uma
ameaça.
Nã o é fá cil ser um ateu consistente! Um lı́der militar disse que nunca
conheceu um ateu no campo de batalha. Minhas experiê ncias pessoais
me levaram a uma conclusã o semelhante: muitas pessoas se dizem
ateus, enquanto na verdade estã o rejeitando uma caricatura abominá vel
de Deus imposta a eles por uma educaçã o religiosa desastrosa. Outros,
embora se chamem ateus, falham em diagnosticar adequadamente sua
atitude para com Deus; eles esperam que a fé seja uma convicçã o
racional baseada no conhecimento e, assim, nã o percebem que a fé ,
como uma semente preciosa, já loresceu em suas almas.

Os homens esperam em Deus explícita ou implicitamente


Devemos, portanto, distinguir entre dois tipos muito diferentes de
esperança. No primeiro tipo de esperança – o mais autê ntico – a base de
toda esperança que é a esperança em conscientemente fundamentada em
Deus. Há uma resposta consciente à onipotê ncia e bondade de Deus, da
qual brota nossa esperança .
Nossa situaçã o terrena é muitas vezes tal que Deus parece nã o se
preocupar com assuntos terrestres. Quantas vezes o salmista exclama:
"Levanta-te, por que dormes, ó Senhor?" Mas, na esperança, con io que,
apesar de todas as aparê ncias em contrá rio, Deus em Sua in inita
bondade cuida de Suas criaturas – mais ainda, Ele quer a felicidade delas.
Depois, há o caso de um homem que nã o acredita em Deus. Mas
suponhamos que algué m que ele ama esteja ameaçado por uma terrı́vel
doença e, apesar do cará ter desesperador da situaçã o, ele nos diga que
espera contra a esperança. Conscientemente, ele só espera que essa
pessoa querida se recupere, mas no fundo ele pressupõ e de alguma
forma que alé m do complexo conjunto de causas naturais há um fator,
algo, um Algué m, que pode evitar o perigo.

A morte pode provocar desespero naqueles conscientes da bondade
da vida
A grande ameaça que ameaça a existê ncia humana é a ameaça do
desespero. Assim que se começa a meditar sobre a natureza da
existê ncia temporal e inita, compreende-se que ela leva a um beco sem
saı́da cujo im é o desespero.
No entanto, a ameaça do desespero está tã o pouco relacionada ao
pessimismo quanto a esperança está relacionada ao otimismo. A posiçã o
de Kierkegaard sobre o desespero permanece verdadeira mesmo que se
rejeite seu pessimismo em relaçã o aos bens naturais. Na realidade, a
vida é rica em experiê ncias bem-aventuradas e nos oferece bens
elevados com grandes valores que podem e nos deleitam. Nã o devemos
esquecer as palavras do Sanctus: "O cé u e a terra estã o cheios de sua
gló ria". O pessimismo budista, que iguala existê ncia com sofrimento, nã o
é de forma alguma garantido pela realidade autê ntica. Esta terra nã o é
exclusivamente um vale de lá grimas; també m ressoa com inú meras
mensagens de Deus em todos os valores verdadeiros e grandiosos. Que
presentes nos sã o concedidos em beleza; que bê nçã o é o dom do amor
verdadeiro, de um casamento feliz, de uma amizade profunda; que
prazer se pode encontrar na busca da verdade e em sua contemplaçã o,
uma vez encontrada.
Nã o, o homem cuja visã o nã o é distorcida vê nã o apenas sofrimento e
mal; conhece també m os bens inumerá veis e gloriosos que cantam
objetivamente o louvor de Deus. E, no entanto, a ameaça do desespero
permanece, porque quanto mais bela é a vida, maior é o horror da morte,
mais insuportá vel é o conhecimento de que parecemos condenados a
retornar ao nada. Para um pessimista radical como Leopardi, a morte é
um alı́vio; para o budista, a cessaçã o da existê ncia individual é um
ideal. Mas a morte é precisamente uma fonte de desespero para quem vê
todos os bens gloriosos que nos sã o concedidos na vida.

O tempo histórico pode ser motivo de desespero


As palavras “passou”, “tudo acabou”, “nã o existe mais” sã o tı́picas de
nossa existê ncia terrena e ao mesmo tempo estã o carregadas de
desespero. Qual de nó s nã o experimentou a amargura de voltar a um
lugar onde uma vez experimentamos algo profundo ou belo, apenas para
aprender que isso nunca, nunca voltará ; já passou.
Nã o é por acaso que tantas religiõ es interpretaram o tempo como uma
recorrê ncia cı́clica, evitando assim com cuidado o "nunca mais". E
prová vel que a teoria da reencarnaçã o, tã o difundida em muitas
religiõ es, ateste o mesmo fato: o desejo do homem de escapar do
impiedoso luxo do tempo.
Os historiadores da religiã o concordam que uma das concepçõ es mais
revolucioná rias transmitidas pela Bı́blia é a do tempo histó rico, o que
implica um avanço irreversı́vel. Ao mesmo tempo, é essencial
compreender que , no exato momento em que a possibilidade de
desesperar se revela ao homem em todo o seu horror, a luz da esperança
se difunde no coraçã o humano por referê ncia a uma promessa trans-
histó rica e eterna.
Por meio de um processo de dessacralizaçã o religiosa, o homem
ocidental, embora mantendo a interpretaçã o histó rica do tempo, muitas
vezes rejeitou a possı́vel redençã o do tempo pela eternidade. Ele abriu
assim a porta para o desespero, um desespero que espreita hoje em toda
a vida moderna, apesar da tentativa fú til de substituir a perspectiva
histó rica que conduz à eternidade por um progresso imanente
supostamente levando a um paraı́so terrestre. Quer pensemos na
iloso ia de Heidegger, em seu fascı́nio pela morte como a verdade da
existê ncia do homem, quer pensemos no deleite de Sartre com o absurdo
do mundo, nos encontramos em uma terra de No Exit (o tı́tulo da peça de
Sartre), uma terra de desespero. "Tarde demais", "nã o vale a pena o
jogo", "logo vai acabar de qualquer maneira", e assim por diante sã o
palavras de desespero.
Em Sartre, o inferno nã o é mais interpretado como um castigo eterno
trans-histó rico, mas é "encarnado" na vida presente, no momento
presente. Para ele, o inferno sã o os outros.

A esperança é uma resposta a Deus como criador amoroso


Na esperança autê ntica, ao contrá rio, encontramos uma nã o aceitaçã o
radical de um mal como inal, como a ú ltima palavra, mas essa rejeiçã o
nã o tem nada a ver com uma revolta. Pois na revolta, minha rejeiçã o é
impotente. Eu bato minha cabeça contra uma parede. Na esperança, ao
contrá rio, ao ver que, humanamente falando, uma situaçã o está
condenada, recuso-me a "fechar" o tempo, a "petri icar" a situaçã o, a
"congelá -la" em sua tragé dia.
Na esperança, sempre transcendo a estrutura da initude terrena. Eu me
liberto do fenô meno do "tudo acabou" e con io que essa escuridã o se
transformará em luz, que essa morte é uma passagem para a
ressurreiçã o. De fato, a esperança é uma resposta a Deus como Criador
amoroso; na esperança, con io no poder criativo de Deus que pode "fazer
novas todas as coisas".

A esperança requer nossa colaboração com ela


Devemos agora nos voltar para a questã o decisiva: se somos livres para
esperar ou nã o. Mas a pergunta "Posso dar esperança a mim
mesmo?" nã o pode ser separado de outro, a saber, "Existe
uma razão para os homens terem esperança?" Seria absurdo endossar a
perspectiva metafı́sica de Sartre e depois declarar alegremente "mas
obviamente estamos cheios de esperança".
A esperança é essencialmente uma resposta e, consequentemente,
pressupõ e a consciê ncia de uma realidade capaz de suscitar essa
resposta.
Gabriel Marcel observa, com razã o, que quanto mais algo se relaciona
pessoalmente comigo, menos está em meu poder conquistá -lo. A
felicidade, a fé , a esperança, o amor e a paz, que se relacionam
existencialmente com o pró prio â mago do ser do homem, nã o estã o sob
o controle do homem, mas exigem uma colaboraçã o dialó gica.
Uma das fraquezas marcantes do estoicismo (e do budismo, nesse
sentido) é sua a irmaçã o de que se pode alcançar um estado interior de
contentamento e equanimidade independentemente da situaçã o
objetiva, e se esse contentamento interior é garantido ou nã o.
Como Heidegger opta por ignorar Deus, ele é perfeitamente consistente
ao descrever a vida humana como sendo tecida por ios de angú stia e
ansiedade. Racionalmente falando, o desespero é a ú nica resposta
adequada para um mundo sem Deus. Em uma passagem marcante em
seu Ser e Tempo, Heidegger a irma que a experiê ncia arquitetô nica do
homem é esse "desabrigo", seu ser lançado no mundo, sua insegurança
metafı́sica.
A questã o é se Heidegger nã o tipi ica o terceiro tipo de indivı́duo
descrito por Kierkegaard, aquele que prefere seu pró prio desespero a ser
ajudado a sair dele.
Muito claramente, nã o posso dar esperança a mim mesmo, assim como
nã o posso dar fé ou amor a mim mesmo. Mas longe de terminar neste
ponto, a questã o realmente começa aqui.
Dizer "ou posso dar esperança a mim mesmo por um simples ato de
vontade, ou nã o há nada que eu possa fazer a respeito, absolutamente
nada" é criar uma alternativa falsa. Como muitas pessoas tendem a
identi icar a esperança com um otimismo inato, justi icam seu pró prio
desespero dizendo: "Minha natureza sempre foi inclinada ao desâ nimo.
Eu sou feito assim; nã o posso evitar."
Se, como Marcel apontou, a esperança é uma esperança em algué m, toda
a questã o assume uma natureza notavelmente diferente: uma relaçã o
deve ser estabelecida entre mim e esse algué m, uma comunhã o que será
minha garantia de salvaçã o no exato momento em que eu for ameaçado
pelo desespero.
Marcel comenta que, na esperança, há uma nota profé tica: "Isso será , ou
aquilo nã o será ". Mas isso nã o deve nos fazer ignorar o fato de que a
esperança, assim como a fé , tem um elemento heró ico, porque se
limitarmos nossa visã o ao que é visı́vel e encararmos a morte como o
té rmino da existê ncia humana, o desespero é a ú nica resposta racional.
Embora nos seja dado um motivo de esperança na Revelaçã o cristã ,
contudo a nossa colaboraçã o é plenamente necessá ria, e este facto
distingue claramente a resposta da esperança de qualquer expectativa
baseada no conhecimento natural, pelo qual sentimos sob os nossos pé s
o solo irme da realidade quotidiana. Esse elemento heró ico se aplica
principalmente à esperança em; ainda há uma caracterı́stica paradoxal
na esperança de que.
Embora a esperança esteja relacionada com coisas que estã o alé m do
meu poder, que de modo algum posso comandar, ela exige, no entanto,
minha má xima colaboraçã o. O fato de o resultado inal estar alé m do
meu alcance nã o deve de forma alguma me encorajar a adotar uma
atitude de entorpecimento passivo.
Ao contrá rio, devo fazer com o má ximo cuidado tudo o que posso fazer,
sabendo que meus humildes esforços nã o podem reivindicar uma vitó ria
se Deus nã o intervir, mas con iando que minha colaboraçã o amorosa tem
seu signi icado independentemente de sua e icá cia.
Deste ponto de vista, deve icar claro que a esperança está no pó lo
extremo do fatalismo que diz "o que for, será ; o que posso fazer a
respeito?"

O amor torna a esperança mais fácil
Vemos que a esperança pressupõ e a existê ncia de Deus, mas admitamos
que os ateus possam ter esperança, pois no fundo tê m alguma
consciê ncia de Deus. A esperança revela seu vı́nculo metafı́sico objetivo
com Deus. Como o Padre de Lubac colocou de maneira impressionante
em seu trabalho sobre o conhecimento de Deus, o que precisamos fazer
para levar um homem a crer em Deus nã o é acumular argumentos, mas
sim remover uma crosta de preconceitos e sujeira intelectual que tem
encobriu o vı́nculo metafı́sico do homem com seu Criador.
Quando as experiê ncias humanas mais profundas estã o ameaçadas (por
exemplo, quando a vida de uma pessoa querida está em perigo), os seres
humanos sã o frequentemente levados a descobrir sua capacidade de ter
esperança. E como se a intensidade do amor ajudasse a remover uma
crosta de indiferença egocê ntrica que impede os homens de perceberem
que a esperança é o fundamento de nossa existê ncia humana.
Essa capacidade de esperar é o gesto fundamental do homem quando
está consciente de sua condiçã o de criatura, e é especialmente o caso de
amar. O verdadeiro amante, sacudido de toda segurança medı́ocre,
experimenta sua condiçã o de criatura e, por meio dela, volta-se para o
Criador.

A esperança cristã é baseada em terreno irme


A nossa esperança de cristãos — embora exija, como vimos, a nossa livre
colaboraçã o, embora possua um elemento heró ico e o cará cter de um
salto — assenta numa base irme. E objetivamente devida como uma
resposta à realidade ú ltima revelada a nó s no Apocalipse. Nã o é mais
uma esperança cega, mas lui organicamente da nossa fé .
A nossa esperança que se fundamenta na nossa esperança no Deus que
vive e vê , como diz Santo Agostinho, o Deus que se revelou em
Cristo. Livre de todas as ilusõ es, plenamente consciente da tragé dia da
morte, o verdadeiro cristã o manté m os olhos ixos na realidade ú ltima,
sobrenatural, que dá a todo o universo seu verdadeiro signi icado.
Sã o Paulo diz: "Eu sei em quem acredito." Podemos acrescentar: "Sei em
quem espero". Esperamos em Cristo em quem, como diz o Prefá cio da
Missa pelos Mortos , "nos fez nascer a esperança de uma ressurreiçã o
bem-aventurada, animando com a promessa da imortalidade futura
aqueles de nó s que estã o tristes com a certeza da morte. "

8
Gratidão

A gratidã o pode ser dada a Deus ou pode ser dirigida a outras pessoas
humanas. Neste capı́tulo inal, consideraremos em detalhes o papel que
cada um desses dois "tipos" de gratidã o deve desempenhar em nossas
vidas.

Gratidão a Deus
A gratidã o a Deus é uma das caracterı́sticas fundamentais e bá sicas da
vida religiosa. As palavras "Quem é você e quem sou eu?" encontrados na
oraçã o de Sã o Francisco revelam o confronto fundamental da criatura,
mero "pó e cinzas", com a inatingı́vel e absoluta majestade de Deus
revelada na sagrada humanidade de Cristo: "O misté rio da Encarnaçã o
ilumina aos nossos olhos espirituais o novo luz do teu esplendor de tal
maneira que enquanto percebemos Deus com os nossos olhos, Ele pode
acender em nó s o amor das bê nçã os invisı́veis."
A gratidã o por nossa existê ncia como pessoa també m faz parte de nossa
atitude fundamental para com Deus, assim como a gratidã o por todos os
bens naturais e, sobretudo, por Suas grandes maravilhas ( magalia
Dei), por Suas graças e por Sua in inita misericó rdia. Assim, as oraçõ es
de gratidã o devem ser a peça central da vida de oraçã o.
Balduin Schwarz teve profundos insights sobre a questã o da gratidã o a
Deus. Especi icamente, ele mostrou como dar graças em resposta a um
desfecho favorá vel dos acontecimentos ou por aquela felicidade que nã o
se deve à s açõ es de outras pessoas, só pode signi icar agradecer a Deus,
o que pressupõ e implicitamente a existê ncia de um Deus bom e sua
Providê ncia. Como a esperança, a resposta afetiva de gratidã o implica
uma con iança tá cita na existê ncia de um Deus benevolente e todo-
poderoso, mesmo por aqueles que ainda nã o O encontraram.
A gratidã o é uma resposta bá sica a Deus, profundamente conectada com
a subordinaçã o inal a Ele – o Senhor absoluto – e com o amor adorador
por Ele, o in initamente santo, a quintessê ncia de toda beleza e
majestade. No entanto, a pró pria gratidã o é algo sui generis, redutı́vel a
nada mais, palavra última e insubstituível na relaçã o do homem com
Deus.

Gratidão pressupõe apreensão de valores


Incluı́do nesta palavra primária do homem a Deus está a apreensã o e a
plena compreensã o dos valores inerentes aos bens bené icos para nó s,
com os quais o amor de Deus nos subjuga continuamente. Os valores
constituem o verdadeiro dinamismo do ser, que em nada contradiz a
grandeza inerente ao ser. Todo o entusiasmo pela "dinâ mica" que se
encontra em Hegel e Heidegger, a idolatria do movimento em oposiçã o
ao ser "está tico", perde completamente a verdadeira dinâ mica que está
presente no ser cheio de valor em oposiçã o ao ser nu e indiferente.
Em vá rios de nossos trabalhos apontamos anteriormente a importâ ncia
fundamental da plena apreensã o dos valores. A amplitude, a estatura
espiritual e a riqueza do espı́rito de uma pessoa realmente dependem de
sua compreensã o de valores. A importâ ncia ontoló gica fundamental dos
valores, do ser que é portador de um valor, do valioso em oposiçã o ao
indiferente, torna-se evidente se considerarmos o que signi ica
apreender valores em contraste com ser cego ao valor. Temos uma
premoniçã o do que signi ica o ser ı́gneo dos valores — essa dimensã o
mais elevada do ser; sentimos que nos deparamos com um misté rio
primá rio.
A importâ ncia vital da capacidade de apreensã o de valores torna-se clara
à luz do fato de que o valor é o cerne do ser. Uma pessoa incapaz de
apreender valores e entendê -los como valores nã o é uma pessoa
real. Sem a apreensã o dos valores, o cerne do diá logo entre sujeito e
objeto torna-se impossı́vel e a plena transcendê ncia do conhecimento
torna-se inexistente. Se a capacidade de apreender valores objetivos
fosse tirada do homem, ele seria cortado da vida mais ı́ntima do cosmos
e especialmente de Deus. As palavras de Santo Agostinho "Você nos fez
para si mesmo" nã o teriam mais validade.

A gratidão é uma resposta especí ica aos bens bené icos


A gratidã o para com Deus pressupõ e a percepçã o e compreensã o dos
valores de todos os dons de Deus, mas també m pressupõ e a percepçã o e
compreensã o da natureza dos bens bené icos para a pessoa. A gratidã o é
uma resposta especı́ ica a bens bené icos para a pessoa.
Por exemplo, em gratidã o pelo dom do conhecimento, devo
compreender nã o apenas o valor do conhecimento em si, mas també m o
dom que o conhecimento representa para mim. Com este dom eu agarro
o pró, o gesto do dom enquanto dom que é amigá vel e a irmativo para
mim. A compreensã o deste pro issional está inextricavelmente ligada ao
Deus pessoal, à Sua bondade e amor que se dirigem pessoalmente a
mim.

A gratidão está intimamente relacionada com Deus


Assim, somos tocados por uma dimensã o feliz e ı́ntima da vida religiosa,
a consciê ncia da fonte primá ria de toda felicidade, que é o fato de sermos
amados por Deus. A gratidã o é uma resposta especı́ ica ao amor de Deus
manifestado a nó s por Seus dons maravilhosos. A gratidã o inclui nossa
compreensã o, antes de tudo, do valor desse bem; segundo, do bem
objetivo para mim inerente a esta dá diva; terceiro, da bondade de Deus
em sua beleza inconcebivelmente sagrada; e, inalmente, que a bondade
se destina a mim, que Seu amor me toca pessoalmente. Podemos entã o
supor que a gratidã o é um fator central em nosso relacionamento com
Deus e que alto valor ela tem como resposta a todos esses grandes dons.
Na gratidã o genuı́na para com Deus, o homem se torna belo. Ele emerge
da imanê ncia, dos limites do relacionamento com o ego e entra na bem-
aventurada entrega de si mesmo a Deus, a quintessê ncia de toda gló ria,
no reino da bondade e da verdadeira bondade. Na gratidã o, o homem se
torna grande e expansivo. A liberdade abençoada e vitoriosa loresce em
sua alma.
A gratidã o també m está profundamente ligada à humildade. A pessoa
agradecida está consciente do fato de que é um mendigo diante de Deus
e nã o possui nenhum direito em relaçã o a Deus em que possa insistir,
que tudo é um dom da bondade de Deus e que ele nã o pode reclamar
contra Deus.
Kierkegaard fala maravilhosamente sobre gratidã o e sua relaçã o ı́ntima
com Deus:
E agora que devo falar sobre meu relacionamento com Deus – sobre o
que todos os dias é repetido em minha oraçã o de açã o de graças pelas
coisas indescritı́veis que Ele fez por mim, in initamente muito mais do
que eu poderia esperar – devo falar sobre a experiê ncia que me ensinou
a maravilhar-me, maravilhar-me com Deus, com o seu amor e com o que
a impotê ncia de um homem é capaz com a sua ajuda, sobre o que me
ensinou a desejar a eternidade e nã o temer que possa achá -la cansativa,
pois é exatamente a situaçã o de que preciso para nã o ter mais nada a
fazer a nã o ser agradecer.
A pessoa que está cheia de gratidã o para com Deus, cuja vida é permeada
por essa atitude primá ria de gratidã o, é també m a ú nica pessoa
verdadeiramente desperta. Ele é o oposto da pessoa apá tica e obtusa,
que permanece naquele estado de semi-vigı́lia que é su iciente para a
satisfaçã o das necessidades prá ticas da vida. Ele é o oposto da pessoa
que permanece na periferia e toma tudo como garantido.
Aqui há uma decidida analogia com a esfera do conhecimento. O
Homo sapiens difere do homo faber nã o apenas porque nã o toma como
certa a realidade ao seu redor, investigando-a apenas por razõ es
pragmá ticas, mas també m está cheio de espanto, atento à questã o da
essê ncia e do signi icado das coisas e possui uma compreensã o das
coisas. valores. (Tanto Platã o quanto Aristó teles referem-se
à maravilha como o começo de toda iloso ia.)
Algo aná logo a esse despertar, esse emergir de uma visã o exclusivamente
pragmá tica, ocorre no homem cuja vida é permeada pela verdadeira
gratidã o a Deus. Ele é despertado da apatia e super icialidade de tomar
as coisas como certas para se surpreender com os dons de Deus e o
misté rio inesgotá vel e feliz do in inito amor e misericó rdia de Deus.
O sentimento de gratidã o impele a pessoa à expressã o em um ato de
açã o de graças. Há uma tendê ncia geral no homem de dar expressã o ao
que enche seu coraçã o. "Pois da abundâ ncia do coraçã o fala a boca", diz
Cristo. No entanto, essa tendê ncia geral é atualizada de maneiras muito
diferentes.

Atos de expressão diferem de declarações e atos sociais


Por exemplo, em nossa Meta ísica da Comunidade, descrevemos a
diferença entre uma expressã o pura e espontâ nea daquilo que preenche
nosso coraçã o e uma declaraçã o de amor signi icativa e intencional.
A tendê ncia que nos impele a dar expressã o ao que intensamente
preenche nosso coraçã o torna-se mais evidente naqueles atos sociais em
que essa manifestaçã o pertence essencialmente à realizaçã o do ato
interior, ao seu cará ter interpessoal. Diferentes desses atos de expressã o
sã o os atos sociais como prometer, informar, questionar e julgar.
Mas quando nã o se trata de tais atos sociais, destaca-se claramente a
â nsia de expressã o. Essa expressã o é mais dinâ mica do que intencional,
mas pertence à pró pria natureza do homem. A profunda ligaçã o entre
corpo e alma se revela neste ato. A expressã o normalmente envolve o
corpo, seja em palavras como "de bom grado o esculpi na casca de cada
á rvore" ou no canto ("Cantar é o ato dos amantes"), seja rindo, chorando,
ajoelhando-se ou de pé . Essa forma pura de expressã o é claramente
diferente de declaraçõ es intencionalmente signi icativas (como, por
exemplo, de amor). Pois tal declaraçã o nã o tem apenas uma funçã o
interpessoal, mas é uma intençã o ú nica e signi icativa de enviar o raio de
amor para a consciê ncia do amado, um passo importante no processo de
uniã o com ele, uma realizaçã o da intençã o de uniã o do amor. intentio
unionis).
Mas tal declaraçã o intencional pode també m, e ao mesmo tempo ser
uma expressão, sem que a distinçã o essencial das duas categorias seja
comprometida. Por um lado, o ato de agradecer é antes de tudo
uma declaração de gratidã o. Como a declaraçã o de amor, só pode ser
feita em relaçã o à quele a quem se dirige, em relaçã o à quele a quem se
sente gratidã o. Por outro lado, agradecer també m tem cará ter de ato
social; pois nã o é apenas a declaraçã o de nossa atitude de gratidã o que
damos expressã o, mas també m é direcionada para o dom pelo qual dou
graças. Nesse sentido, agradecer assemelha-se a prometer ou
informar. Nã o apenas outra pessoa constitui o tema (na medida em que
ele é o parceiro a quem me dirijo), mas o presente pelo qual agradeço
també m faz parte desse tema.
Finalmente, há no agradecimento també m a expressã o de
uma afetividade transbordante, à qual Santo Agostinho se refere quando
diz que cantar é tı́pico do amante.

Expressão de gratidão traz integridade


Há uma nova solenidade quando a palavra falada se transforma em
cançã o. Essa nota sublime e totalmente nã o pragmá tica se origina no
desejo de dar expressã o aos nossos sentimentos. Nã o prové m apenas do
já mencionado cará ter dinâ mico da expressã o; brota també m dessa
totalidade que é alcançada quando algo é signi icativamente
concluı́do. Essa totalidade está ausente quando atitudes espirituais
profundamente enraizadas e respostas de valor nã o sã o expressas, mas é
alcançada quando sã o reveladas ao serem expressas atravé s do corpo.
Nã o é por acaso que as oraçõ es de gratidã o ocupam um lugar tã o
importante na Liturgia. Consideremos apenas os trê s hinos ú nicos:
o Benedictus, o Magni icat e o Nunc Dimittis, que celebram a transiçã o do
Antigo para o Novo Testamento. A atitude reverentemente expectante e
esperançosa do Antigo Testamento funde-se com a atitude
transbordante e grata do Novo. De fato, ambas as atitudes estã o unidas
de uma maneira ú nica. Quando Santo Agostinho diz no inal de A Cidade
de Deus: "Lá teremos lazer e veremos; veremos e amaremos; amaremos e
louvaremos", a palavra louvor - junto com a a irmaçã o "nó s louvaremos"
— refere-se à quela dimensã o de expressã o que pertence à consumaçã o,
à quela "que será no im sem im".
Mesmo na eternidade, em que haverá apenas uma realidade
trans igurada, o louvor (e com ele e nele també m o agradecimento
explı́cito) manté m toda a sua importâ ncia.

A gratidão anseia por expressão em ação de graças


Podemos imaginar uma pessoa cujo coraçã o está transbordando de
gratidã o para com Deus, mas que nunca se sente compelido a expressá -la
em sua pró pria oraçã o de gratidã o? Claro que nã o! Tal falta de um
impulso interior para agradecer a Deus em oraçã o falada pelo
recebimento de Seus dons e graças seria uma indicaçã o clara de que a
gratidã o para com Deus ainda nã o ocupa o devido lugar em seu
coraçã o. Os hinos acima mencionados expressam a gratidã o
transbordante pelo recebimento de um grande e fatı́dico dom: Zacarias
dá graças pelo milagre do nascimento de Joã o Batista; a Santı́ssima
Virgem pela graça incompreensı́vel e ú nica de ser escolhida como a
Virgem Mã e do Redentor; Simeã o pela graça de ser permitido antes de
sua morte ver e segurar o Redentor prometido em seus braços. Quã o
essencial, quã o crucial para a verdadeira gratidã o é este ato explı́cito de
agradecer, esta oraçã o de açã o de graças expressa em palavras.
Voltaremos a essa conexã o entre a gratidã o genuı́na e o ato especı́ ico de
açã o de graças ainda mais detalhadamente quando analisarmos a
gratidã o à s pessoas humanas. Mas neste momento precisamos trazer à
tona vá rios outros aspectos da gratidã o a Deus.

A felicidade profunda vem para a pessoa verdadeiramente grata


Em primeiro lugar, queremos discutir a profunda relaçã o entre a
verdadeira felicidade e a gratidã o. Certamente, reconhecer os valores
nos quais a gratidã o se baseia é uma fonte primá ria de felicidade. Acima
de tudo, a consciê ncia do amor e misericó rdia de Deus para conosco, que
está , de fato, incluı́da em nossa compreensã o de um dom de Deus e de
seu cará ter como um bem bené ico para nó s, é claramente a fonte
primá ria de toda felicidade verdadeira e imperecı́vel.
Mas també m devemos enfatizar a felicidade inerente ao sentimento de
gratidã o e ao ato de gratidã o resultante. Esta é a felicidade da liberdade
interior e da humildade inerentemente ligada a ela que pertence à
pessoa agradecida. Basta distinguir claramente entre o homem que dá
por garantida a sua existê ncia como pessoa, os dons que Deus lhe
concedeu, bem como o amor e a amizade dos outros que lhe foram
dados, e o homem que nã o leva nada como certo, mas que reconhece que
tudo é um dom imerecido. Este está dentro da verdade, enquanto o
primeiro está cegamente aprisionado em sua indiferença
obtusa. Claramente a desolaçã o marca a vida da pessoa que nã o
compreende a abundâ ncia e o valor dos dons que recebeu, nem sabe que
sã o dons imerecidos, nem reconhece que neles brilha a bondade, a
misericó rdia e o amor de Deus! Essa comparaçã o ilustra a profunda
felicidade que só pode ser conhecida pela pessoa agradecida.

Cada pessoa recebe uma gama de bens bené icos


Uma hierarquia multifacetada deve ser encontrada dentro dos bens
bené icos para nó s, tanto no que diz respeito ao seu valor inerente como
no que diz respeito ao papel que eles desempenham em nossa
vida. Assim, o dom de Deus de um talento extraordiná rio (seja
intelectual ou artı́stico, criativo ou reprodutivo) tem uma importâ ncia
contı́nua que ressoa por toda a nossa vida, em oposiçã o, por exemplo, ao
dom de uma ú nica e bela jornada. Dá divas ainda mais fundamentais de
Deus incluem nossa capacidade de conhecer valores, nosso potencial
para amar e até mesmo nosso livre-arbı́trio; estes sã o presentes maiores
do que até mesmo o precioso dom de uma grande
amizade. Curiosamente, quanto mais fundamental e formal nos
tornamos menos conscientes de que um bem bené ico para nó s é um
dom de Deus. Estamos mais facilmente cheios de gratidã o a Deus pela
uniã o amorosa com outra pessoa do que por nossa existê ncia como
pessoa, embora esta seja o pressuposto primá rio de tudo o mais, de toda
felicidade e bem-aventurança eterna.
Quantos de nó s temos consciê ncia de nossa existê ncia como um dom
inconcebı́vel? Quantos de nó s aceitamos esse dom fundamental como
garantido?
De mã os dadas com a nossa transformaçã o em Cristo vai uma
consciê ncia crescente contı́nua dos dons de Deus, tanto a apreciaçã o de
seu valor quanto o reconhecimento de sua importâ ncia formal. Possuir
qualquer bem bené ico torna-se menos natural. Tudo é cada vez mais
visto como um dom imerecido; tudo é percebido como motivo de
gratidã o ilimitada para com Deus e o desejo de agradecer-Lhe
expressamente por tudo torna-se cada vez mais forte.

Bens e males exigem, respectivamente, uma resposta diferente


E claro que a vida do homem nã o está apenas repleta dos dons de Deus,
mas també m conté m males objetivos para ele, cruzes de todo tipo. Nesse
aspecto, há grandes diferenças na vida das pessoas. Muitas vezes há uma
vida ricamente abençoada ao lado de uma vida arruinada ou
sobrecarregada com sofrimento, como deformidades ou doenças. Alé m
disso, devemos lembrar nã o apenas que há uma distinçã o entre uma vida
feliz e uma vida cheia de sofrimento, mas també m que toda vida conté m
grandes dons, por um lado, e sofrimentos e cruzes para carregar, por
outro.
Em contraste com o dom insondá vel da existê ncia pessoal e da vida na
terra está a terrı́vel cruz da morte. De mã os dadas com o grande dom da
unidade com o amado vai a preocupaçã o com sua vida, o medo da
separaçã o pela morte, aliá s, até mesmo a possibilidade de que ele possa
deixar de retribuir nosso amor. Embora cantemos "os cé us e a terra estã o
cheios da tua gló ria", a vida do homem, apesar de todos os dons de Deus,
é um vallis lacrimarum, um vale de lá grimas.
Entã o surge a pergunta: que tipo de resposta à s cruzes e sofrimentos
Deus exige de nó s? A nossa resposta a eles també m deve ser de gratidã o,
porque sabemos que até as cruzes e os sofrimentos sã o impostos ou
permitidos pelo amor in inito de Deus?
Tem-se a irmado com frequê ncia que quem ama verdadeiramente a
Cristo e nele se transforma, dá graças també m pelos sofrimentos e pelas
cruzes, porque representam uma comunhã o especial com Cristo – o
carregar com Ele a cruz. De fato, alguns dizem que nã o deve haver
diferença em nossa resposta de gratidã o se Deus concede alegria ou
impõ e sofrimento.
No entanto, por mais verdadeira e profunda que seja a visã o que vê no
sofrimento, na resignaçã o agradecida e no amor abnegado que Deus nos
impõ e o dom de poder partilhar a Cruz de Cristo, nã o se pode negar que
há um profunda diferença entre a gratidã o por um grande bem e a
aceitaçã o submissa e resignada de um grande mal. O Magni icat da
Santı́ssima Virgem é , obviamente, uma resposta diferente da atitude da
Mã e de Deus diante da Cruz. Na Cruz, mantendo-se em seu posto, icou a
mã e triste chorando, perto de Jesus até o ú ltimo.
A essê ncia da gratidã o inclui alegria. A aceitaçã o resignada de uma cruz
em si nã o conté m alegria. Se se trata de uma alegria heró ica no sentido
de gratidã o por poder compartilhar a Cruz de Cristo, isso nã o muda o
fato de que a alegria inerente à gratidã o está intimamente ligada ao
cará ter positivo de um dom.

Os sofrimentos existem por causa da alegria


Para entender que as respostas a um dom positivo e a uma cruz devem
ser diferentes, temos que estar conscientes de que a felicidade tem
prioridade sobre o sofrimento. O misté rio de que a redençã o do homem
ocorreu por meio da paixã o e morte de Cristo na cruz nã o deve permitir
que esqueçamos (como observou Pe. Heribert Holzapfel, OFM) que os
sofrimentos existem apenas por causa da alegria.
O misté rio do sofrimento insondá vel de Cristo, que constitui um
desdobramento misterioso do amor in inito do Deus-homem Jesus Cristo
por Deus Pai e pelos homens, nã o deve encobrir o fato de que a redençã o
constitui o caminho para a santi icaçã o da pessoa individual e para a
resultante glori icaçã o de Deus, e també m abre o portã o para nossa
felicidade eterna. A grandeza e profundidade da paixã o de Cristo nos
leva a orar em adoraçã o: Ferido com todas as suas feridas, Íngreme minha
alma até que desfaleça Em Seu próprio sangue.
Mas esse fato nã o deve obscurecer nosso conhecimento de que a paixã o
de Cristo é o caminho para a felicidade eterna para os redimidos e
transformados em Cristo. Os sofrimentos de Cristo, que nos comovem
até a medula, e Seu amor, no qual Ele derrama Seu sangue por nó s,
intoxicando nosso coraçã o e nos levando a orar "Sangue de Cristo,
inebria-me", nã o devem permitir que esqueçamos que o objetivo eterno
nã o é a participaçã o na Cruz, mas sim a bendita visã o face a face do
Deus-homem Jesus Cristo reinando em gló ria trans igurada na
eternidade. Nó s oramos por esta visã o face a face com as
palavras: Contemplando Sua bela face revelada, Sua glória serei
abençoado por ver.

As distinções objetivas não devem ser borradas
Há um perigo geral para a pessoa profundamente religiosa de cair em
um certo niilismo, que a princı́pio parece ser fruto de um zelo religioso
especial, mas na realidade, como toda confusã o de distinçõ es objetivas,
tem consequê ncias desastrosas. Em vez de niilismo , pode-se dizer
també m uniformidade.
Por um lado, um desejo desordenado (ou equivocado) de unidade está
subjacente a essa tendê ncia – uma necessidade de ignorar diferenças
bá sicas e francas para reduzir tudo a um denominador comum. Esse
impulso levou a incontá veis erros na iloso ia. Alguns acreditam que a
descoberta de um fato importante signi ica que foi encontrada a pedra
ilosofal pela qual tudo pode ser explicado. Outros estendem analogias
em diferentes campos a tal ponto que a essê ncia desse campo é vista sob
uma luz falsa ou até mesmo completamente incompreendida em sua
pró pria natureza. Essa tendê ncia geral vem à tona especialmente quando
um pensador visa construir um "sistema". Devemos evitar essa tentaçã o,
especialmente no â mbito religioso.
O teó logo Ockham, por exemplo, acredita que aumenta a grandeza e a
gló ria absolutas de Deus quando abole a distinçã o decisiva entre os
mandamentos positivos de Deus e Seus mandamentos morais de
Deus. Na realidade, ao negar a distinçã o primá ria do bem e do
indiferente (ou mesmo do bem e do mal), a idé ia da natureza de Deus é
minada, e o Deus in initamente bom e santo é transformado em um
senhor absoluto e arbitrá rio; de fato, a qualidade mais central e essencial
de Deus é negada. E por isso que descrevemos essas tentativas
como niilismo.

Aceitação (não gratidão) é a resposta certa para cruzes


O niilismo també m está subjacente à tentativa, percebida como o maior
heroı́smo, de equiparar a resposta a uma cruz que nos foi imposta com a
resposta a um grande e maravilhoso dom de Deus. Algumas pessoas
dizem, por exemplo,
Tudo é uma emanaçã o do amor in inito de Deus, cuja resposta é o
importante. Portanto, devemos agradecer a Deus da mesma forma por
uma cruz imposta a nó s como por um bem bené ico profundamente
maravilhoso para nó s. Devemos transcender a questã o do que nos faz
felizes ou do que nos a lige profundamente e avançar para o amor de
Deus. Seu amor nã o se manifesta em ambos? Nã o é o amor de Deus por
nó s, a sua vontade misericordiosa de nos atrair para Si e de nos preparar
para a uniã o eterna com Ele, o mais importante em tudo o que nos é
imposto por Deus?
Certamente! Mas é precisamente neste amor misericordioso, que nos
chamou à bem-aventurança eterna, que se exprime plenamente o
primado da bem-aventurança em relaçã o a todo o sofrimento. Ao nos
aproximarmos do amor misericordioso de Deus, vemos claramente que a
realidade e a distinçã o absoluta entre bem-aventurança e tristeza está
incluı́da nesse amor. Alé m disso, está de acordo com os decretos de Deus
que façamos uma distinçã o clara entre um dom bené ico e uma
cruz. Pois, embora tudo seja uma emanaçã o do amor in inito de Deus –
mesmo a permissã o de incompreensı́veis e terrı́veis cruzes, como a
morte de uma pessoa amada – a distinçã o entre um dom maravilhoso e
uma cruz nã o é deixada de lado. Esta diferença radical pertence
essencialmente ao signi icado e funçã o da Providê ncia de Deus. Portanto,
a gratidã o é a resposta a todos os dons positivos e a aceitaçã o submissa e
amorosa é a resposta à s cruzes.
Nã o devemos ignorar as diferentes "faces" da Providê ncia de Deus, por
assim dizer; nã o devemos passar por cima deles e responder a eles como
se nã o houvesse diferença fundamental entre eles. Nã o esqueçamos que
nos dons positivos e sobretudo na graça resplandece um re lexo
longı́nquo da eternidade, que aponta para a bem-aventurança eterna e
conté m mesmo uma espé cie de promessa de bem-aventurança
eterna. Todos os sofrimentos e cruzes, por outro lado, apontam para o
vale de lá grimas e para a condiçã o transitó ria da peregrinaçã o terrena. A
aceitaçã o submissa disso deve nos puri icar e nos unir com o Cristo
sofredor. Mas isso só é possı́vel se as cruzes forem totalmente sofridas,
se nã o forçarmos uma resposta alegre a elas.
A distinçã o entre gratidã o e aceitaçã o submissa també m se torna clara
em sua profundidade quando temos em mente que podemos pedir a
Deus da mesma forma seus dons positivos e evitar sofrimentos e cruzes,
enquanto só podemos pedir para sofrer cruzes se houver uma vocaçã o
especial. Tocamos assim em outro grande perigo que ameaça a vida
religiosa: a excentricidade e a arti icialidade. As coisas que sã o genuı́nas,
impressionantes e belas quando uma vocaçã o especial está presente sã o,
sem tal vocaçã o, excê ntricas e arti iciais.
Mas a transformaçã o em Cristo, à qual todos sã o chamados, inclui o fato
de que nos é permitido pedir dons e graças, bem como evitar cruzes e
sofrimentos. "Salva-nos da doença, da fome e da guerra, ó Senhor", reza a
santa Igreja na Ladainha de Todos os Santos. A oraçã o de Jesus no
Getsê mani é o modelo para a transformaçã o em Cristo. Primeiro, nosso
Senhor ora para evitar o cá lice da mais profunda dor; entã o, nas palavras
inais ("No entanto, nã o se faça a minha vontade, mas a tua") Ele mostra
Sua submissã o inal à vontade de Deus, Sua resignaçã o incondicional.
No entanto, somente à luz do abandono inal a Deus incorporado nas
palavras inais, "Nã o a minha vontade, mas a Tua seja feita", a petiçã o
anterior assume todo o seu impacto; e somente atravé s da petiçã o
anterior as palavras inais assumem sua realidade plena e autê ntica e
sua verdade gloriosa.
Por isso, a gratidã o como resposta a todos os dons positivos deve estar
alicerçada na mesma atitude da aceitaçã o submissa de todos os
sofrimentos e cruzes: na disponibilidade para a aceitaçã o incondicional
daquilo que Deus nos impõ e. Mas esta palavra inal, "Seja feita a tua
vontade", ainda nã o apaga as distinçõ es entre gratidã o, aceitaçã o
amorosa e sofrimento total da cruz, mesmo quando leva ao grito de
abandono: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
E da maior importâ ncia para o relacionamento do homem com Deus,
como Ele pretendia, que os dons positivos nã o sejam esquecidos entre as
provaçõ es e tristezas. A gratidã o e a açã o de graças por todos os dons
positivos devem viver juntamente com a aceitaçã o humilde e amorosa
das cruzes à luz da Paixã o de Cristo.
Há casos especiais em que atos da Providê ncia que sã o dolorosos depois
resultam em um bem para nó s. Esta mudança de aspecto, em que algo
que é em si um mal mais tarde prova trazer bons resultados, é um
misté rio especial no curso de nossas vidas. A maioria das pessoas pode
listar vá rios exemplos de eventos em que as consequê ncias mudaram o
cará ter do bem ou do mal objetivo.

Boas consequências não transformam o mal em bem


Mas primeiro devemos acrescentar que tal mudança nã o signi ica que as
consequê ncias positivas do julgamento imposto revoguem seu status de
mal objetivo para nó s. A mudança de aspecto procede das consequê ncias
— e elas nã o estã o necessariamente ligadas ao mal. Essas consequê ncias
nã o sã o algo que necessariamente decorre do julgamento como tal, mas
sã o parte dessa misteriosa cadeia de causalidade que permeia nossa
vida. Portanto, é totalmente apropriado quando nossa resposta imediata
à provaçã o nã o é gratidã o, mas um submisso e humilde "seja feita a tua
vontade", acompanhado pela crença de que essa provaçã o se tornará
uma manifestaçã o especial do amor de Deus. Se, mais tarde,
acontecerem consequê ncias felizes, podemos agradecer pelas provaçõ es.

A gratidão nunca poderia ser apropriada para algumas cruzes


Em segundo lugar, deve-se enfatizar que há provaçõ es, sofrimentos e
cruzes que sã o tã o terrı́veis, tã o profundos, que nunca podem, por causa
de suas conseqü ê ncias, parecer positivos - por exemplo, a morte da
pessoa mais amada, um cô njuge amado mais do que qualquer outra
pessoa. Mesmo que mais tarde, apó s essa provaçã o, um novo casamento
muito feliz se torne possı́vel, certamente seria terrı́vel agradecer a morte
do primeiro cô njuge amado. Mesmo ignorando o fato de que tal mal afeta
nã o apenas o sobrevivente, mas o mais amado, a cruz é tã o severa que
nunca pode ser vista à luz das consequê ncias felizes.

Devemos ter especial gratidão pela magnalia Dei


Nã o podemos concluir a investigaçã o da gratidã o para com Deus na vida
da pessoa transformada em Cristo sem nos referirmos à gratidã o
pela magnalia Dei no sentido especial desta expressã o (isto é , pelos dons
sobrenaturais de Deus).
Já falamos do dom primordial de nossa vida natural, de nossa existê ncia
como pessoa humana. Agora devemos considerar o dom ainda mais
sublime da graça santi icante, de nascer de novo em Cristo. Em gratidã o
por essas magnalia Dei, uma oraçã o da Missa Tridentina diz: “Deus, Tu
estabeleceste maravilhosamente a dignidade da natureza humana e
ainda mais maravilhosamente a renovaste”. Esses dons divinos especiais
estendem-se desde a revelaçã o do Antigo Testamento até a auto-
revelaçã o de Deus na sagrada humanidade de Jesus Cristo; eles incluem
o misté rio mais central da Encarnaçã o e a redençã o da humanidade
atravé s da morte de Cristo na Cruz. Eles també m incluem o dom da
implantaçã o da vida sobrenatural na alma da pessoa no sacramento do
Batismo, na Eucaristia e em todos os sacramentos. Por meio desses
presentes, chegamos a um tipo inteiramente novo de gratidã o. A gratidã o
pela magnalia Dei é o ponto central da açã o de graças o icial da Santa
Igreja. Isso encontra sua expressã o especial nos prefá cios da Santa
Missa.
Mas a gratidã o pela magnalia Dei també m deve ter o primeiro lugar na
vida privada da pessoa transformada em Cristo. Açã o de graças por eles
deve permear sua vida. Nã o esqueçamos que atravé s da magnalia
Dei també m nossa vida natural e todos os bens naturais ganham um
novo signi icado, uma nova gló ria, e que uma luz trans igurada cai sobre
eles. Atravé s do estabelecimento de todas as coisas em Cristo,
possibilidades inteiramente novas surgem para o homem: nã o apenas a
esperança que penetra tudo, mas també m a capacidade de amar em
Deus e em Jesus, que primeiro dá ao amor dos seres criados a chance de
realizar seu gê nio mais profundo, sua ú ltima intentio unionis (intençã o
de uniã o) e intentio benevolentiae (intençã o de benevolê ncia). As
palavras de Jesus no livro do Apocalipse, "Eis que faço novas todas as
coisas", valem para toda a vida humana e para a trans iguraçã o de todos
os bens naturais elevados em Cristo.
A gratidão a outras pessoas é essencial para a santidade
Tendo assinalado o signi icado fundamental da gratidã o para com Deus e
mostrado que a pessoa transformada em Cristo é aquela que dá graças,
que seu coraçã o deve ser preenchido por essa atitude primá ria de
gratidã o para com Deus e para com o Deus-homem Jesus Cristo, agora
nos voltamos à pergunta: qual é o papel da gratidã o em uma pessoa
transformada em Cristo para com aquelas pessoas a quem deve muito
em muitos aspectos?
A pessoa transformada em Cristo deve també m ser grata a todos aqueles
a quem deve. Ele nã o deve hesitar em agradecer explicitamente por
todos os tipos de benefı́cios. A gratidã o para com os homens nos quais
há uma razã o objetiva de gratidã o é portadora de um alto valor moral. E
uma consequê ncia da humildade, da bondade e da verdadeira
liberdade. Esta virtude é indispensá vel para o transformado em Cristo,
nã o só porque é portadora de um elevado valor moral, mas també m
porque é um componente necessá rio da santidade.
Um homem que reluta em ser grato aos outros, sentindo que isso é uma
dependê ncia pesada, ainda é escravo de seu orgulho. Quem está tã o
aprisionado em si mesmo a ponto de tomar todos os favores como
garantidos carece de verdadeira consciê ncia e liberdade. Seu descaso
com a obrigaçã o de agradecer, sua insensibilidade à generosidade
contida em cada dom, també m mostra que ele mesmo ainda nã o entrou
plenamente no reino do bem.

A gratidão difere de acordo com o relacionamento das pessoas


Para ver tudo isso claramente, devemos começar por distinguir casos
inteiramente diferentes. A primeira diz respeito à gratidã o para com uma
pessoa a quem nenhuma amizade especial ou amor mú tuo me une, mas
que, no entanto, me oferece um grande e tangı́vel benefı́cio, seja apoio
moral em uma dor interior difı́cil ou defesa contra acusaçõ es e
difamaçõ es injustas.
E interessante que neste primeiro caso a natureza do benefı́cio també m
seja um fator. E mais difı́cil ser grato por certos benefı́cios do que por
outros. Algué m pode sentir gratidã o por ajuda inanceira, mas ter
di iculdade em reconhecer sua dı́vida para com os outros em um
respeito espiritual ou até mesmo sentir gratidã o genuı́na por esse
motivo.
O segundo caso levanta a questã o: quã o profunda é a nossa gratidã o por
dá divas de todos os tipos no â mbito de uma relaçã o recı́proca e
profunda, qualquer que seja a categoria desse amor? Quã o
profundamente cada um dos parceiros valoriza a ajuda e os presentes do
outro?
Nesse ponto, a gratidã o exige um tipo diferente de consciê ncia, porque o
perigo de tomar as coisas como certas, de nã o realizar a obrigaçã o de
agradecer explı́cito por um presente, é maior. Isto é particularmente
verdade no casamento, mas també m se aplica quando amigos, irmã os e
irmã s, ou ilhos e pais, vivem juntos. Em suma, estar atento à obrigaçã o
de expressar gratidã o torna-se mais difı́cil quando as pessoas estã o
unidas por um profundo amor mú tuo e també m vivem juntas
compartilhando a vida cotidiana. Alé m disso, nossa resistê ncia à gratidã o
e ao agradecimento explı́cito variará de acordo com a natureza dos
benefı́cios concedidos.
Finalmente, o terceiro caso envolve relacionamentos em que, no amor de
um, a gratidã o para com o outro é um elemento constitutivo. Tais
relacionamentos sã o moldados desde o inı́cio pelo olhar agradecido da
pessoa agradecida para aquele a quem ela é grata.

O orgulho pode gerar ressentimento em vez de gratidão por


presentes
Consideremos agora o primeiro caso, a saber: gratidã o para com algué m
com quem nã o estamos ligados por um relacionamento ı́ntimo. Um
exemplo seria receber assistê ncia inanceira ou ajuda em uma situaçã o
perigosa ou ser defendido por algué m quando somos acusados
injustamente. Se algué m se recusa a reconhecer tal dı́vida de gratidã o e
acha difı́cil admitir essa dependê ncia de outro, isso indica um grau
alarmante de orgulho. Se a generosidade do outro nã o comove e grati ica
o destinatá rio, entã o seu coraçã o ainda está endurecido e preso ao
orgulho.
O orgulho luta contra o vı́nculo que está implı́cito em estar em dı́vida
com o outro. A noçã o de que um deve algo a outro, que pode até ter que
retribuir se uma situaçã o semelhante surgisse para o outro, é sentida
como uma restriçã o à liberdade e à independê ncia. A situaçã o do
amparador em relaçã o a quem ele ajuda inclui claramente uma forma de
ascendê ncia por parte do amparador. E profundamente caracterı́stico do
orgulho que a beleza da generosidade do ajudante seja ignorada e
apenas se sinta um ressentimento contra sua superioridade formal.
Há ainda outras distinçõ es a serem feitas. Por exemplo, o pior tipo de
ingratidã o existe quando a pró pria generosidade do ajudante incorre em
ressentimento. A ajuda é de fato aceita, porque nã o há outra saı́da para a
difı́cil situaçã o, mas já se ofende a superioridade implı́cita no valor moral
do benfeitor. Segue-se o desejo de interpretar mal, reprimir ou negar a
generosidade envolvida.
Em outro caso, o destinatá rio nã o se ressente da generosidade do
benfeitor, mas acha insuportá vel icar em dı́vida com ele. Enquanto a
generosidade do homem se manifestar em bondade para com os outros,
ele nã o se ofenderá com isso e talvez até a exalte. Mas assim que ele for
confrontado com a posiçã o superior do benfeitor, seu orgulho levantará
suas defesas.
Uma terceira pessoa, menos orgulhosa, "engoliria" essa superioridade
formal se nã o a colocasse em obrigaçã o para com o outro. Essa pessoa
nã o é tã o ingrata a ponto de nã o conseguir compreender a dı́vida de
gratidã o que surge de sua aceitaçã o do benefı́cio. Ele sente a realidade
desse vı́nculo. Mas em seu desejo pervertido de liberdade, em sua
necessidade de independê ncia incondicional, sua percepçã o primá ria da
dı́vida de gratidã o é que ela é opressiva. Um ditado hindu expressa
claramente essa forma de resistê ncia contra a gratidã o: "Por que você
está me perseguindo? Eu nunca lhe iz um favor."
Em quarto lugar, uma pessoa pode evitar as consequê ncias da dı́vida de
gratidã o por preguiça. Ele imagina que em um caso correspondente ele
teria que ajudar o benfeitor que, em caso de necessidade, poderia
legitimamente exigir algo dele. O vı́nculo nã o é tanto sentido como
humilhante ou limitador, mas, acima de tudo, como um fardo.
Este tipo prefere sair da di iculdade de qualquer outra forma, sem ajuda
de ningué m. Ele nã o é tã o amoral quanto aquele escravizado pelo
orgulho. Ele até entende que uma dı́vida de gratidã o surgiu do favor e
nã o tenta reprimi-la. Mas deprime-o ter que aceitar a ajuda de um
benfeitor porque quer fugir do vı́nculo oneroso e incô modo.

A humildade se deleita tanto nos presentes quanto no doador


Ao contrá rio de todos aqueles que se apegam ao orgulho, que fazem da
independê ncia um ı́dolo, ou que estã o atolados na preguiça egoı́sta, a
pessoa transformada em Cristo aceita com gratidã o a ajuda do
benfeitor. Ele vê a beleza da bondade do outro e se alegra com isso,
descobrindo que essa generosidade é em si mesma, independentemente
de estar livre de sua di iculdade, fonte de alegria e felicidade. Ele nã o
percebe que estar em dı́vida com algué m seja um fardo. Muito pelo
contrá rio, a superioridade formal do outro é uma alegria para ele, e ele
considera sua vida enriquecida pelo vı́nculo da gratidã o. Ele
experimenta uma felicidade profunda e uma liberdade maravilhosa em
ser grato e no vı́nculo que surge atravé s da bondade do outro.
A pessoa transformada em Cristo prefere receber um bem bené ico
atravé s da bondade de outro do que a irmar sua pretensã o de possuı́-
lo. Enquanto recebe algo que tem o direito de exigir, falta o maravilhoso
elemento de generosidade e bondade do benfeitor. O recebimento de um
dom puro, que nã o temos o direito de exigir, é semelhante aos dons de
Deus mencionados anteriormente. Pois nunca podemos a irmar um
direito diante de Deus; tudo o que recebemos Dele é puro dom.
Mas mesmo a pessoa transformada em Cristo tem uma aversã o
justi icá vel a cair no vı́nculo de uma obrigaçã o de gratidã o para com o
outro, se o "benfeitor" estiver apenas ajudando-o para colocá -lo sob seu
controle. Algumas pessoas usam favores para tornar os outros
dependentes delas; entã o o elemento de bondade está completamente
ausente. O favor só é prestado para forçar o outro a cumprir os desejos
do "benfeitor" atravé s da dependê ncia da gratidã o. Se o "benfeitor" é
desse tipo, entã o somos obrigados a evitar essa dependê ncia. Se isso for
impossı́vel, entã o podemos aceitar o favor, mas nã o devemos conceder a
ele nenhum tipo de poder que nos induza a fazer algo contra nossa
consciê ncia. Nunca devemos pagar o preço de abrir mã o de um direito
concedido por Deus. Nã o podemos realmente ser gratos a tal "benfeitor"
porque, em vez de bondade, há apenas astú cia e engano. Nã o podemos
aceitar qualquer tipo de obrigaçã o, mesmo que tenhamos que aceitar o
benefı́cio, porque este é fruto de uma má disposiçã o, nã o de bondade, e,
portanto, nã o carrega uma obrigaçã o objetivamente verdadeira de
gratidã o.
Uma caracterı́stica da postura moral-religiosa de uma pessoa é se ela
entende que está em dı́vida com o outro e se se alegra com a dı́vida. E um
sinal de vigı́lia espiritual – tã o crucial na vida religiosa – que ele
compreende e vê a beleza da benevolê ncia do outro como um dom e
aceita a demanda de gratidã o que cresce a partir do favor. No momento
em que ele nã o mais assume o ato caritativo e apreende
conscientemente a bondade inerente a ele, ele dá um passo importante
em seu desenvolvimento moral-religioso.
Na gratidã o há tanto uma submissã o sui generis (de sua pró pria espé cie)
quanto uma magnanimidade especı́ ica. Aversã o a essa submissã o, a má
vontade de dar graças é , até certo ponto, aná loga à avareza.

O amor depende da benevolência do amado


Voltando ao caso das dá divas no quadro de uma relaçã o duradoura
fundada na amizade ou no amor mú tuos: veri icamos que nestas
relaçõ es é necessá ria uma vigı́lia ainda maior para compreender a
obrigaçã o da gratidã o e sentir o impulso de agradecer explı́cito . O dom
fundamental do amor que o outro nos mostra, sobre o qual se baseia
toda a relaçã o, é uma dá diva que nã o pode ser comparada com o maior
dos benefı́cios. Esse amor é outro tipo de presente. Nã o é uma efusã o de
compaixã o como é o caso de um ato de ajuda a um estranho em
necessidade. Nã o é uma manifestaçã o de generosidade especial, nã o é
algo que estabeleça uma obrigaçã o de gratidã o ou um
endividamento. Este amor é , por um lado, muito mais do que um
benefı́cio, enquanto, por outro lado, é mais um dom de Deus do que um
dom do outro. Por este amor, seja qual for a sua categoria, agradecemos
principalmente a Deus que o colocou no coraçã o do nosso amado, e nã o
do amado, mesmo porque este amor nã o brota do livre arbı́trio deste,
como um favor a um estranho ou semelhante aquele amor que brota do
amor ao pró ximo.
Este é outro exemplo da ú nica coincidentia oppositorum (coincidê ncia de
opostos). Inerente a todos os tipos de relacionamentos humanos
construı́dos sobre o amor mú tuo está nosso conhecimento e crença na
disposiçã o benevolente do outro em relaçã o a nó s. Nã o esperamos tal
disposiçã o de um estranho; mas em toda relaçã o de amor mú tuo,
contamos com a prontidã o do outro para nos auxiliar se precisarmos. De
fato, é uma parte essencial de nossa preocupaçã o amorosa pela outra
pessoa que acreditemos em sua prontidã o para ajudar. Este é um
elemento necessá rio no amor por nosso parceiro, e icamos magoados e
magoados quando nosso amigo, nossa irmã , nosso ilho nã o con ia nisso.

Gratidão é devida ao amado e por sua benevolência


Como é que uma con iança tã o natural na prontidã o do amado para
ajudar se une à gratidã o explı́cita por cada assistê ncia prestada? O
paradoxo entre nossa expectativa de atos benevolentes como algo
natural e nossa gratidã o por eles, que exclui precisamente tomá -los
como certos, só parece ser contraditó rio. Vimos que em todos esses
relacionamentos a gratidã o se refere principalmente à disposiçã o
amorosa do outro para comigo. Sou grato por algué m ser meu amigo e
por me permitirem ser seu amigo. Sou grato a ele por seu amor, assim
como sou grato a meus pais, meu irmã o e minha irmã por me amarem.
Portanto, já sou grato por poder esperar ajuda em momentos de
necessidade, por poder contar com sua prontidã o para ajudar, em
contraste com o que posso esperar de estranhos. A gratidã o genuı́na por
cada assistê ncia, cada benefı́cio, lui organicamente dos benefı́cios
recebidos que con irmam esse maravilhoso estado de con iança no
amado.
No entanto, considerar o ato de bondade como certo nã o signi ica deixar
de honrar nossa obrigaçã o de ser grato por um favor recebido. També m
nã o é uma a irmaçã o de um direito ao ato de bondade. Obviamente, há
uma diferença radical entre a pessoa que exclama "O que há de tã o
especial nisso a inal? E verdade, ele me ajudou, mas esse é o seu
dever!" e aquele que diz: "Nunca duvidei que ele me ajudaria - ele é tã o
bom e me ama". Contar com esta assistê ncia é , naturalmente, contar com
ele sem hesitaçã o, porque temos plena fé nele. E o oposto da
naturalidade incolor apropriada para coisas sem importâ ncia. A
con iança na prontidã o do outro para ajudar inclui uma resposta de
valor à sua pessoa e ao seu amor por nó s. E o oposto de um cá lculo
neutro; é uma indicaçã o especial do quanto valorizamos esse
relacionamento.

O dom do amor exige profunda gratidão


Portanto, tal amor produz uma obrigaçã o diferentemente constituı́da,
mas ainda mais profunda. Ainda temos uma dı́vida muito mais profunda
com o amado, embora em outro sentido. Por exemplo, nã o podemos
agradecer o su iciente a algué m que nos salvou de um perigo mortal, e
també m nã o podemos retribuir igualmente, a menos que Deus nos
coloque na situaçã o extraordiná ria em que podemos retribuir igual com
igual. Esse ato bene icente, tã o claramente de inido como tal, cria uma
tı́pica dı́vida de gratidã o, mas totalmente diferente da obrigaçã o que
nasce do amor pessoal. No entanto, devemos també m sentir profunda
gratidã o pelo dom ú nico do amor. E uma pedra de toque especial para o
estado moral-religioso do homem se ele responde com gratidã o ao amor
e idelidade demonstrados para com ele. Certamente, ele ama o outro da
mesma maneira. Ele oferece a mesma entrega extraordiná ria de seu
coraçã o ao outro. Claro, estamos falando de um amor mú tuo, seja uma
amizade, amor por irmã os e irmã s, ou amor conjugal. Embora demos o
nosso coraçã o ao outro da mesma forma que ele nos dá o dele, no
entanto, como resposta ao seu amor, uma profunda forma de gratidã o
deve preencher o nosso coraçã o.
Por um lado, em uma relaçã o mú tua de amor existente, há uma espé cie
de direito ao amor do outro na minha entrega a ele. O fato de eu mesmo
ter a mesma atitude interior em relaçã o a ele e de que a atitude seja
fundamentada, de fato exigida, pela natureza do relacionamento, deixa
claro que tenho direito ao seu amor. Eu espero; Eu construo sobre
isso; torna-se uma base da minha vida. E a resposta signi icativa ao meu
amor. Por outro lado, cada um dos dois amantes deve considerar o amor
do outro como um presente pelo qual ele nunca poderá agradecer o
su iciente.
No caso ideal, ambos sentem essa gratidã o, e cada um conhece a forma
ú nica de gratidã o na alma do outro por causa do amor com que se
abraçam. Mas essa gratidã o mú tua leva entã o à gratidã o conjunta
predominante para com Deus pelo amor recı́proco, pela relaçã o mú tua,
que é seu dom.
Percebemos o amor concedido a nó s pelo outro como um presente
maravilhoso, uma aceitaçã o e compreensã o, uma compreensã o profunda
do nosso verdadeiro eu. Sentimos que o outro compreendeu nosso
verdadeiro ser e nã o está envolto em ilusõ es. Ao mesmo tempo, sentimos
que nã o merecemos esse amor, que é um dom imerecido. Como tantas
vezes acontece no â mbito da pessoa transformada em Cristo, voltamos a
nos deparar com um paradoxo, uma coincidê ncia de opostos.
A pessoa humilde, boa e espiritualmente livre sentirá essa gratidã o
especial e profunda pelo amor do outro e saberá que a exigê ncia desse
amor é a retribuiçã o desse amor. Tal pessoa está ciente de que nenhum
tipo de benefı́cio jamais seria su iciente como resposta a esse chamado,
exceto seu amor semelhante, ou seja, o retorno do amor do outro.

A caridade deve permear o amor pelo amado


Qual é a resposta da vontade de Deus para os inú meros dons individuais
prestados por um ao outro por causa desse amor? A medida em que
nosso amor se revela e o modo como nossa boa vontade se manifesta em
inú meras dá divas, no cuidado amoroso pelo outro, em nossa
consideraçã o, em nossa consciê ncia de suas necessidades e do grau de
sua receptividade – todas essas consideraçõ es sã o extremamente
reveladoras da vida moral-religiosa de uma pessoa.
Quem ama se conterá para nã o exigir demais do outro? Existe o perigo,
por um desejo amoroso de dar ao outro alegrias especiais — revelar-lhe
algo bonito, mostrar-lhe uma paisagem ou uma obra de arquitetura
magnı́ ica — de exigir mais do que o amado, segundo sua força fı́sica ou
espiritual. , pode receber neste momento. O amante alerta e desperto
evitará isso.
Tudo isso — nã o apenas assistê ncia especial, presentes e consideraçõ es,
mas també m o desejo de conceder bens bené icos ao amado, desde a
atençã o verdadeiramente importante até a mais insigni icante atençã o à
sua conveniê ncia (como comida e similares) — é uma indicaçã o do
quanto esse amor pelo outro é permeado pela caritas (caridade).
Como foi dito antes, a medida em que o amor pelo outro se manifesta
nessas provas de sua boa vontade é muito caracterı́stico de uma
pessoa. Essa permeaçã o de amor pela caritas se expressa nã o apenas na
disponibilidade para aceitar qualquer sacrifı́cio para bene iciar o amado,
mas també m na renú ncia a essa prestaçã o porque o outro no momento
precisa de descanso.

O hábito e a indiferença ameaçam a gratidão pelo amor


E de especial importâ ncia para o nosso problema particular entender
que també m devemos ser gratos por todos esses atos benevolentes
individuais. Como já mencionado, é muito mais difı́cil apreciar os muitos
presentes e ajudas do amante do que os presentes ou benefı́cios
extraordiná rios por parte de estranhos. Um é muito mais inclinado a
ignorar o primeiro.
Em primeiro lugar, a pessoa se acostuma com eles e os toma como
garantidos por há bito. O há bito é o ú nico grande perigo em nossa vida
moral-religiosa: o perigo de nos tornarmos amortecidos, de nã o mais
apreciar um dom depois de um certo tempo. Como valorizamos algo que
nã o possuı́mos há muito tempo ou que desejamos ardentemente antes
de ser obtido!
Em segundo lugar, há o perigo de tomar todos esses benefı́cios como
garantidos e nã o sentir nenhuma obrigaçã o de gratidã o especial por
causa da atitude que diz: "E claro que ele me ama, ele é tã o devotado a
mim; portanto, é uma questã o de claro que ele quer me fazer todo tipo
de favor."
Uma vez que o amor ao outro nã o é mais entendido como um dom
extraordiná rio e foi, por assim dizer, encaixado nos componentes
comuns da pró pria vida, muito se espera dessa pessoa
naturalmente. Nesses casos, pode-se dizer: "Certamente, isso nã o é nada
de especial, como seria de um estranho; é a consequê ncia ó bvia de seu
amor. Isso lhe dá alegria. Nã o posso ser particularmente grato por
isso." Logo todas as açõ es benevolentes sã o vistas sob essa luz e,
portanto, nã o se sente obrigaçã o de gratidã o. De fato, essas provas de
amor acabam sendo esquecidas e nã o sã o mais experimentadas como
tal.

A gratidão no amor pressupõe mais do que outras formas


Tal ingratidã o surge, entã o, por outros motivos que nã o os discutidos
acima. Nã o é motivado nem por orgulho e ressentimento contra o valor
moral do benfeitor (que em si já bloqueia a resposta de valor à beleza de
sua generosidade), nem por esse orgulho que abomina ser devedor a
outro, nem pela resistê ncia contra a superioridade concedido ao
outro. Nem é causada pela pervertida â nsia de liberdade que nega a
obrigaçã o de gratidã o para com o outro, nem mesmo pela aversã o,
resultante da preguiça ou do egoı́smo, de ter a paz perturbada no futuro
por essa dependê ncia.
Nã o, a ingratidã o pelas provas individuais do amor de meu amigo, de
meu irmã o, de meu pai ou de minha mã e, ou mesmo de meu cô njuge, se
funda primeiro no perigo universal de uma indiferença crescente. E
especialmente a falta de vigı́lia que leva a dar como certo e até mesmo
ignorar essas provas de generosidade e amor. Alé m disso, é uma falta de
amor de nossa parte – nã o apenas uma falta geral de vigı́lia, mas també m
um “adormecer” de nosso amor. Já que nã o estamos mais despertos em
nosso amor, a imagem inteira do outro nã o está mais diante de nó s tã o
radiante, e já nã o apreciamos plenamente o dom de seu amor.
Nesta forma de subestimar todas as belas e preciosas demonstraçõ es de
amor para conosco, há també m um endurecimento do coraçã o, uma
ofensa à virtude fundamental da bondade. Nã o apreciamos mais a beleza
da bondade amorosa de nosso parceiro em todos os seus atos
individuais de carinho. Nó s os tomamos como garantidos, quase como se
tivé ssemos direito a eles. Isso ica claro quando uma pessoa que se
tornou insensı́vel aos atos amorosos de seu parceiro, mas aprecia
plenamente os benefı́cios recebidos de estranhos.
Vemos, portanto, que a plena gratidã o em uma profunda e mú tua uniã o
de coraçõ es pressupõ e mais do que a gratidã o pelos atos de caridade de
estranhos. O primeiro requer uma atitude moral-religiosa mais elevada,
uma maior vigı́lia e bondade, um coraçã o mais profundamente
amolecido. Essa condiçã o do coraçã o só é possı́vel em uma vida in
conspectu Dei (à vista de Deus), que é iluminada pelo lumen Christi (luz
de Cristo).

A gratidão aos outros faz parte da nossa transformação espiritual


Parece evidente que a gratidã o para com as pessoas pertence à nossa
transformaçã o em Cristo. Certamente, a gratidã o pela gentileza de
estranhos, que pode ser prejudicada pelo orgulho, també m é possı́vel
como uma virtude natural. Mas a santidade exclui toda ingratidã o, assim
como exclui qualquer outro comportamento moralmente negativo. Como
todas as virtudes naturais transformadas por meio de Cristo, a gratidã o
sobrenatural recebe um brilho e um cará ter completamente novos em
comparaçã o com a gratidã o puramente natural.
A plena gratidã o em relacionamentos humanos mais profundos só é
possı́vel em e por meio de Cristo. Pressupõ e um coraçã o formado e
abrandado pela gratidã o para com Deus. E um fruto da transformaçã o
em Cristo.
Quã o grandes, quã o inesgotá veis sã o os bens pelos quais podemos ser
devedores a outros homens! Que verdades, que valores eles podem nos
revelar! Obviamente, devemos um agradecimento especial pelos grandes
presentes que recebemos de um amigo, de um cô njuge amado e de
nossos pais. Quanto maior o bem objetivo que devemos, mais uma
resposta de gratidã o é exigida moralmente. Alé m disso, mais gratidã o é
devida por um ato de assistê ncia moral decisiva ou por um profundo
encorajamento intelectual do que por um ato que salvou nossa
vida. Devemos també m ser gratos por tudo o que recebemos atravé s das
obras e livros daqueles que nã o conhecemos pessoalmente, que podem
ter vivido muito antes de nó s. Quanto devemos a Platã o, Santo
Agostinho, Shakespeare, Cervantes, Bach e Beethoven! Quã o gloriosas
sã o as palavras de Kierkegaard sobre Mozart e tudo o que ele deve a
ele! Todos os bens que recebemos de grandes iguras e gê nios pertencem
a um capı́tulo à parte. Em um nı́vel muito mais alto, os dons que os
santos deram e transmitiram à s pessoas de sua sociedade (e ainda mais
aos seus discı́pulos) també m fazem parte desta categoria.
Isso nos leva ao terceiro tipo de gratidã o, a saber, aos relacionamentos
em que o olhar agradecido de uma pessoa para outra é um elemento
constitutivo do relacionamento. Certamente, todo relacionamento tem
em si uma receptividade mú tua; nã o há relaçã o em que a pessoa que
recebe e admira principalmente o doador també m nã o conceda algo a
este. Ser recebido com aceitaçã o con iante já é um dom
incompreensı́vel. Que dom é o desabrochar da alma de uma pessoa
amada, o fruto de tudo o que o doador, pela graça de Deus, pode revelar e
transmitir a ele! Na verdade, esta doaçã o, na qual o que é concedido é
plenamente recebido e produz frutos gloriosos, é ao mesmo tempo o
recebimento de um dom.
Alé m disso, há tudo o que o receptor dá de sua pró pria personalidade, da
beleza de sua individualidade ú nica e, sobretudo, de seu amor.
Essas relaçõ es, em que uma pessoa olha para a outra, sã o, de fato,
totalmente mú tuas, com plena convergê ncia e, sobretudo, um amor
mú tuo – embora haja uma diferença na direçã o dos afetos dos dois
parceiros. Essa diferença de direçã o nã o impede a plena sinergia e
harmonia do amor mú tuo; ao contrá rio, é complementar. Na pessoa que
olha para cima, a gratidã o é um componente essencial de seu amor. Ele
deve e deve estar consciente de tudo o que deve ao doador.
Claro, uma pessoa que é impedida pelo orgulho nã o é capaz de olhar
para cima. Aqueles que nã o foram transformados em Cristo podem, no
inı́cio do relacionamento, ser capazes de tal olhar para cima. No entanto,
com o passar do tempo, uma resistê ncia contra esse olhar respeitoso
para cima e o recebimento agradecido – ou mesmo uma rivalidade –
pode se desenvolver. Quem nã o tem a verdadeira humildade pode cair
em certa rebeliã o e assim perder a verdadeira gratidã o.

Através da gratidão o homem cresce espiritualmente


O homem é um ser receptivo. Ele nã o apenas recebeu todos os dons de
Deus (desde sua pró pria existê ncia até seu livre arbı́trio e sua
capacidade de conhecer e amar); ele també m recebe em um sentido
ainda mais novo tudo o que pode conhecer, tudo o que Deus lhe revela e
os homens podem dar a ele.
Costumamos dizer que uma pessoa é tã o rica quanto sua compreensã o
de valores é abrangente. Mas queremos enfatizar que nã o é apenas
receber, mas també m dar que nos enriquece. Em cada resposta de valor
completa nos tornamos mais ricos, embora toda a nossa atitude seja de
doaçã o. Esta lei misteriosa encontra a sua expressã o suprema nas
palavras de Cristo: "Quem encontra a sua vida vai perdê -la, e quem perde
a sua vida por minha causa a encontrará ". Este é també m o misté rio
primordial do amor: quanto mais algué m ama, mais se abandona, mais
rico e profundo se torna, mais vive plenamente o seu ser pessoal.
O mesmo vale para a gratidã o, que é um completo abandono de si
mesmo, uma autodoaçã o que, de certa forma, constitui a antı́tese de
receber. Nele a pessoa se torna mais rica, nele ela cresce. "E suas
riquezas de fato aumentam a cada vez que ele ora e dá graças", diz
Kierkegaard; e pouco antes: "Como é pobre nã o poder rezar; como é
pobre nã o poder agradecer; como é pobre ter que receber tudo com
ingratidã o!"
Quã o certo Kierkegaard está , quando enfatiza que é decisivo para o
homem estar no lugar certo no cosmos. O homem faz isso quando dá
graças. Dentro da gratidã o vive a verdade, a liberdade, a humildade, a
bondade e a generosidade.
Mesmo em sua forma natural, a gratidã o constitui uma parte essencial da
moralidade natural. Mas em sua forma cristã trans igurada, na alma de
uma pessoa transformada em Cristo, é uma das virtudes centrais e um
dos pilares na relaçã o do homem com Deus.
Mesmo em sua forma natural, a gratidã o leva ao reino da
bondade. Enquanto o coraçã o da pessoa realmente transbordar de
gratidã o, nã o há espaço em sua alma para atitudes má s como inveja,
vingança ou ó dio. Mas para a pessoa transformada em Cristo, isso vale de
uma maneira inteiramente nova em sua gratidã o para com Deus e em
sua gratidã o para com o homem. Na verdadeira gratidã o, a alma brilha
em beleza incompará vel. Assim como amar, louvar e exaltar, dar graças,
pertence à quele "que será no im sem im".
Índice
Prefá cio
Nota do editor
Reverê ncia
Fidelidade
Responsabilidade
Veracidade
Bondade
Comunhã o
Ter esperança
Gratidã o

Você também pode gostar