Você está na página 1de 47

IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BALCÃO DE NEGÓCIOS

Anderson Emanuel Bezerra Nunes


Graduando de História na Universidade Federal de Pernambuco
Lucas Duarte Macena
Graduando de História na Universidade Federal de Pernambuco

RESUMO:

A situação do ensino superior brasileiro encontra-se ilustrada nesse


trabalho através da observação histórica de nossa formação
educacional nas autarquias superiores. O trabalho se construiu
através dos pressupostos marxistas de crítica ao regime incessante
de busca de mais-valor que vem imbricando-se com a educação e
tornando-a uma mercadoria. Assim, o artigo enfatiza a
reorganização do modo de produção capitalista, em tempos de crise
estrutural, visto que, o ideal neoliberal que reorganizou o Estado
brasileiro durante os anos 1990 e 2000 transformou o modo como
fazer educação superior no país: flexibilizando-a, precarizando-a e
podando a autonomia na construção da docência.
Palavras-chave: Educação Superior; neoliberalismo; flexibilização;
precarização.

1
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

INTRODUÇÃO

O remédio para dar seguimento às deficiências e “disfunções” devidas ao


desemprego crônico em todos os países sob o domínio do capital, em
rigorosa conformidade aos parâmetros causais do sistema do capital, é
visto em termos de “maior disciplina do trabalho” e “maior eficiência”,
resultando de fato na redução dos níveis salariais, na crescente
precarização da força de trabalho [...] e no aumento generalizado do
desemprego (MÉSZÁROS, 2002, p. 225)

A afirmação supracitada é de suma importância e deve ser entendida ultrapassando o


limite clássico dos interesses capitalistas, visto que, dentro do saturado processo de extração
de mais-valia e a crise estrutural inerente ao sistema a educação tornou-se uma das válvulas
de escape do sistema para sua alocação mercadológica e busca de lucro. Antes de
adentramos na confluência entre a educação, especialmente a superior, e a lógica mercantil é
necessário compreender melhor o movimento que leva a crescente precarização da força de
trabalho e o posicionamento do Estado, dito “reformista”, como “solucionador” das
“consequências naturais” do desenvolvimento capitalista. Na atualidade, esse Estado,
denominado por Minto (2008), como “Estado Máximo para o Capital”, busca intervir na
economia apenas em auxílio à sede de lucro dos burgueses. Utilizando-se do despotismo do
Capital (MARX, 2013, p. 715) o Estado reformista busca medicar os problemas estruturais do
capitalismo, como o desemprego crônico, através de medidas neoliberais de “enxugamento” do
trato público e a premissa de que o setor privado seria melhor “gestor” destes serviços, outrora
de cuidado estatal.

Assim, a profunda crise estrutural capitalista, que ecoa desde a década de 1970,
acontece em uma perspectiva onde a reestruturação do capital se deu com a substituição dos
processos de base taylorista-fordista por uma crescente utilização de processos de produção
flexíveis, sustentados pelas técnicas de liofilização das empresas, com seu ideário de busca de

2
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

uma indústria “enxuta” e eficaz, além da lógica neoliberal1. Esse trabalho flexível é
caracterizado pela condição de trabalho da mão-de-obra, com tolerância de horários, redução
da carga horária, que aparentemente representam uma melhora na condição de trabalho, mas
que na verdade, com diversos mecanismos coercitivos, acabam por intensificar o processo de
produção a níveis ainda maiores. Isso acontece, principalmente, se observarmos que dentro
dessa reestruturação a flexibilização acaba atingindo, inclusive, os direitos trabalhistas, seus
contratos, garantias e até o trabalho estável, formalizando assim, um forte processo de
precarização da mão-de-obra.

Ideologicamente, o que ocorre com os princípios neoliberais é a falta de valorização


dos aspectos socioculturais e humanos do conhecimento, em oposição à supervalorização de
conhecimentos técnicos, imediatistas, utilitaristas e pragmáticos. Isto é projeto político de uma
elite que não quer ver criticidade em sua massa operária e foi implantado em nosso país sob o
silêncio daqueles que discordavam desse modus operandi. Estamos falando aqui do projeto
político inicialmente burguês e monopolista e, a posteriori, burguês e neoliberal que
metamorfoseou a realidade brasileira nos mais diversos planos organizativos possíveis: uma
espécie de “Revolução” Burguesa. Segundo Florestan Fernandes, “na acepção que tomamos o
conceito, Revolução Burguesa denota um conjunto de transformações econômicas,
tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento
do capitalismo atinge o clímax” (FERNANDES, 2005, p. 239). Estamos falando assim de um
acontecimento histórico que muda diversos fatores sociais, incluindo um de suma importância
para nós aqui: a ideologia. Ainda segundo o mesmo autor, o momento histórico que marca a
plena dominação histórica da burguesia no Brasil – em aliança com setores ultrarreacionários –
é a ditadura empresarial-militar de 1964 (ibid, 2005, p. 256-257), que impôs esses valores,

1
Com o apoio estatal, essas novas empresas enxutas teriam não só uma sustentação ideológica, como
também tenderiam, através do processo de privatizações, a aumentar seus campos de atuação, além
de ter em suas mãos uma massa ainda maior de trabalhadores, para utilizar no processo supracitado de
despotismo do capital. – Ver mais em: Antunes, 2008, p.21.

3
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

gerando uma aparente hegemonia de pensamento, capaz de transformar a mentalidade social,


através de um profundo aparato controlador. Com esse profundo controle cultural, o que foi
ditado, durante todos os anos de Ditadura que vivemos, foi ideologicamente capaz de esconder
a realidade de todos em um pragmatismo tal, que, qualquer ideia que se opusesse a ordem
“natural” da vida seria considerada subversiva. Seria utópica, antinatural, antiprogressista 2,
uma abominação ética. Lembremos:
A capacidade de penumbrar a realidade, de nos “miopizar”, de nos
ensurdecer, que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós aceitar
docilmente o discurso cinicamente fatalista neoliberal que proclama ser o
desemprego no mundo uma desgraça do fim de século. Ou que os sonhos
morreram e que o válido hoje é o “pragmatismo” pedagógico, é o treino
técnico-científico do educando e não sua formação. (FREIRE, 1996, p.
126)

Assim, esse pragmatismo ferrenho e neoliberal gera uma mudança que vai muito além
das estruturais tradicionais de exploração do capitalismo. Ele avança em uma mudança
psicocultural, que nos deixa como trauma, até a atualidade, um juízo de presente contínuo
(HOBSBAWM, 1995, p.11-26). Um juízo em que o passado é subvalorizado em detrimento de
um futuro planejado, teleológico e inevitável. Há, inevitavelmente assim, uma perda de valores
e raízes comunais, reduzindo as necessidades políticas de lutas e resistências e tornado tudo,
cada vez mais, parcializado, individual e porvir.

No ensino superior, esse movimento expressa ainda a junção de duas


premissas deste Estado máximo para o capital. De um lado, a
incapacidade estatal de investir nas IES públicas, já que a lógica é a de
economizar recursos para remunerar o capital financeiro internacional e,
do pouco que resta, privilegiar o ensino básico; de outro, por
consequência, tomar como pressuposto que o desenvolvimento do
mercado educacional é necessário à “democratização” do ensino, uma vez
que o setor privado é considerado mais eficiente na gestão dos recursos e
flexível para adequar-se aos moldes da demanda do setor produtivo e do
mercado em relação à formação. (MINTO, 2008, p. 17)

2
Aqui no sentido de contrário ao progresso econômico e teleológico de uma nação

4
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Nesse excerto, Lalo Watanabe Minto deixa claro que o ideário neoliberal também vem
contaminando o processo educacional superior. O sucateamento e a diminuição dos
investimentos do Estado nas Universidades Federais de Ensino Superior (UFES) é um
processo histórico e vem culminando, na atualidade, com o constante repasse de valorosas
verbas públicas ao setor privado, através de instituições e mecanismos como o Ministério da
Administração e da Reforma do Estado, PROUNI ou o FIES. Essa sistemática de
financiamentos da educação continua na ordem do dia e por isso passa a ser apresentada, a
partir de agora, dentro de uma série histórica, em aspecto global e local.

DESENVOLVIMENTO

No mundo, após Segunda Guerra Mundial, houve aplicação de grandes quantidades de


recursos públicos para reconstruir países devastados. Havia nesse vácuo deixado pela Guerra
um grande mercado de investimento, por isso, os Estados passaram a agir com amplos
programas de assistência social e atendimento público (educação, saúde, direitos
previdenciários e trabalhistas): o conhecido Estado de Bem-Estar-Social. Nos países da
periferia capitalista, esse ideal de Estado nunca atingiu padrão similar aos países europeus e o
Japão. No fim da década de 1960, o Banco Mundial passa a financiar os setores sociais de
diversos países, como medida de alívio e para reduzir a pobreza no Terceiro Mundo. Entre as
diretrizes enfatizadas nos documentos educacionais do Banco mundial há uma criação de
padrões de eficácia para os modelos de ensino e na gestão dos recursos financeiros, firmando
o modus operandi dos países perante o poder do Banco.

A primeira referência ao modo de ensino presente em um documento do Banco Mundial


foi elaborado em 1970, onde é enfatizado a importância da formação de mão-de-obra, capaz
de provocar efeitos, ao longo do tempo, na economia. O segundo documento do Banco, feito
em 1974, introduz mudanças no ensino profissional, visando o privilégio tanto dos setores mais

5
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

novos da economia como os mais antigos: o ensino profissional é encarado como meio indireto
para a promoção dos setores populares ao desenvolvimento, através do aumento da produção.
O foco no desenvolvimento é bastante enfatizado no 3º documento do Banco, realizado na
década de 1980, segundo o qual, a eficiência educacional viria através da autonomia desse
setor. Segundo o regimento estatutário do Banco, todas as nações podem aderir à instituição.
É estabelecido que o Banco não possa interferir e nem influenciar os negócios políticos dos
Estados. Porém, a aceitação dos países-membros funda-se em critérios políticos: adesão
prévia ao Fundo Monetário Internacional (FMI); assim como aceitar o código de regras políticas
da instituição. Embora essa política de financiamento do Banco seja intitulada de “cooperação”
ou “assistência técnica” trata-se, na verdade, de empréstimos custosos, tendo em vista os
pesados encargos, rigidez nas regras.

Os financiamentos do Banco à educação brasileira são um negócio caro para o setor.


Em 1º lugar, o país tem que desembolsar um montante muito maior pra receber esse crédito,
sem contar com os juros e taxas de compromisso. Acrescentam-se ainda despesas com
ajustes de câmbio, que podem acarretar aumento considerável da dívida. Sem contar os gastos
indiretos, como: realização de diagnósticos, utilização de consultorias, viagens de
reconhecimento aos Estados, recepção as missões do Banco. É interessante observar a
prática neoliberal que o Banco praticamente exige de seus países-membros, muitos deles
superdependentes da instituição.

No Brasil, o avanço de políticas educacionais, que culminaram em medidas


liberalizantes, começam a aparecer com a deflagração do golpe de Estado de 1964. As
universidades foram alvos prioritários do regime empresarial-militar, por meio de um grande
aparato repressivo, que se institucionalizaram, legalmente, com o AI-5 e o Decreto Lei 477/69.
A primeira instituição a sofrer sistematicamente com o regime foi a UNB: cerca de 80% dos
docentes da UNB foram afastados direta ou indiretamente pela intervenção do novo regime. A
partir de 1968, a onda de repressão foi agravada com centenas de docentes compulsoriamente

6
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

retirados de suas instituições pelo país. Além disso, quando havia um concurso, o candidato a
vaga de professor tinha de apresentar, no ato da inscrição, um atestado de “bom
comportamento” fornecido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Poucos
encontraram condições mínimas para desenvolver pesquisas que não estivessem em acordo
com as linhas principais dos editais. Mesmo assim, os professores organizados em
associações de docência defendiam a progressão por mérito acadêmico e titulação. A pós-
graduação e a pesquisa foram forjadas durante o regime: a política da ditadura promoveu
grupos, linhas de pesquisa e instituições com professores que, de certa forma, defendiam o
regime “em nome do conhecimento científico”. Assim, acabou surgindo uma nova hierarquia
com poder e prestígio a esses professores nas pós-graduações. Isso persiste até os tempos
atuais, só que esses com privilégios modificados através do prisma do empreendedorismo,
mais pragmático e utilitarista.

Desde o início da década de 80, o ANDES (Associação Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior) visou ao trabalho docente como parte de seu projeto
universitário, sustentando a coexistência do ensino, pesquisa e extensão. Lembrando que 42
mil docentes não tinham uma carreira nacional, havendo grandes diferenças entre as Federais
(autárquicas e fundacionais). Em síntese, as universidades criadas pelo regime ditatorial foram
fundacionais, pois eram mais atraentes em condições salariais, porém com menos direitos
previdenciários e de estabilidade financeira. As fundacionais tinham docentes regidos pelo
CLT, o que facilitaria uma privatização dessas UFES. Por isso, a luta dos professores pela
unificação jurídica das instituições de ensino superior e fortalecimento de uma carreira
unificada colidia com os interesses do governo ditatorial. Após uma extensa greve realizada por
35 mil docentes, fora dos marcos legais – que impediam greves nas áreas públicas – fora
garantido a incorporação de professores colaboradores-contratados, até 1979, nos quadros
efetivos das UFES. Sem dúvidas, isso fortaleceu muitas reivindicações e conquistas da
docência superior durante o regime, o que culminou, em 1987, no PUCRCE (Plano Único de

7
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Classificação e Retribuições de Cargos e Salários) acabando com as diferenças entre os


docentes fundacionais e autárquicos.

Porém, o momento progressista e de conquista dos professores com o fim da Ditadura


sofre forte golpe com a crise capitalista e hiper-inflacionária que o Brasil enfrenta durante fins
dos anos 1980 e início dos 1990. A crise estrutural exige do Brasil “sacrifícios” nos moldes
neoliberais, que sucateiam e diminuem o aparato público, através, principalmente, de
privatizações: estamos falando do governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi durante o
mandato desse presidente que foi criado o Ministério da Administração e da Reforma do
Estado (MARE). Esse Ministério tinha função de praticar as reformas neoliberais nos setores
sociais do Estado, através da privatização e da terceirização destes. Assim, a ideia
mercadológica contamina o Estado que busca exercer uma função apenas fiscalizadora e
avaliadora da educação superior. Dentro dessa mentalidade a educação superior também
passa a ser observada como um mero serviço para a inserção do trabalhador no mercado de
trabalho.

Ainda durante o governo FHC, as políticas macroeconômicas e ideológicas neoliberais,


sustentadas por países centrais capitalistas e organizações internacionais - como o FMI ou o
Banco Mundial - ganham força de lei através das reformas educacionais dos anos 1990 a
2000. Sobretudo, por conta da Medida Provisória nº 1.865-4, de 1999, que trata da “criação” do
Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) - que só virou lei, após
diversas MP’s aglutinadoras, em 12 de Julho de 2001, através do nº 10.260.

O que está em jogo é um processo de privatização cuja lógica é a da


retirada dos gastos sociais da estrutura estatal. Com o neoliberalismo
busca-se construir um Estado máximo para o capital. No seu lugar, impõe-
se um novo tipo de política social de caráter assistencialista, gerida como
atividade privada, que assume um tom de caridade e voluntarismo.
(MINTO, 2008, p. 3)

8
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

O caráter de privatização dos setores sociais é explícito e progressivo, como podemos


observar nesse excerto supracitado toma conta do Estado Nacional com características de
benevolência do poder público sobre as classes menos abastadas. O avanço do petismo ao
governo não mudou essa característica no desenvolvimento de nossa educação superior.
Porém, ao contrário do governo FHC, o lulismo não optou pela privatização, pura e simples, do
aparato público-social, mas sim, preferiu avançar com as terceirizações nos mais diversos
setores da Universidade pública. Além disso, a Medida provisória de nº 213, de 2004, que trata
sobre o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e a Lei federal nº 12.202, de 14 de
Janeiro de 2010, que versa, mais uma vez, sobre o FIES, servem, mais uma vez, aos
interesses do setor privado e ao projeto “assistencialista” que o governo federal propôs a ter
como pauta.

As políticas educacionais do período Lula também têm como características uma


crescente valorização da ideia meritocrática e mercadológica dentro do meio acadêmico. A
criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) passa a ranquear
as UFES nessa lógica, que também serve na alocação dos investimentos públicos,
privilegiando sempre os melhores resultados, negligenciando e punindo os piores. Além disso,
os professores passaram a serem vistos em uma lógica de produção em massa, através da
Medida Provisória nº 208, de 20 de Agosto de 2004, que institui a Gratificação de Estímulo à
Docência (GED). Ainda se pode observar o programa Universidade para Todos fazendo com
que o governo passasse a abdicar dos ganhos fiscais nas instituições de ensino superior
privado em troca de vagas para estudantes com bolsas, totais ou parciais, nessas instituições.
A priorização do aumento de vagas no ensino superior privado é empregado, também, quando
observamos a enorme quantidade dos benefícios de créditos do FIES, “cujos subsídios

9
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

implícitos aumentaram de R$ 0,3 bilhão em 2006 para R$ 11,4 bilhões em 2016”3


(MEIRELLES, 2017, p. 19).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dados de 1933 já apontam a forte presença de IES privadas no Brasil: elas


representavam 64,4% do total das instituições. Todavia, em relação ao número total de alunos,
as IES privadas ainda não tinham superioridade numérica, visto os 43,7% de sua
representação na totalidade de alunos (SAMPAIO, 2000, p. 45). Assim, é interessante observar
o movimento imposto, através da repressão e do silêncio dos discordantes, utilizando-se dos
preceitos liberalizantes da educação, comandado pela ditadura empresarial-militar brasileira:
que com a reforma universitária de 1968 priorizou a demanda de ensino superior com a
expansão do setor privado (TRAINA-CHACON; CALDERÓN, 2014, p. 96). Essa priorização foi
política, também, do Governo FHC que recebeu, do conturbado e curto governo de seus
antecessores, uma educação superior que apresentava, para o setor privado, uma
participação, por matrículas presenciais, de 60% e entregou ao final de seu mandato com uma
participação de quase 70% (INEP, 2003).
O governo Lula manteve posição ambígua nesse debate, promovendo, ao mesmo
tempo, o aumento e melhoramento das UFES através da Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (REUNI) e o repasse de verbas públicas ao setor privado através do
PROUNI. Com essa movimentação política, Lula permitiu ao setor privado abocanhar 73% das
matrículas presenciais (INEP, 2012). Um número que se manteve no governo Dilma Rousseff e
seu enfoque governamental no FIES (INEP, 2016). Não é à toa, também, a cifra bilionária de
R$ 1.029.477.118,70 que o grupo Anhanguera Educacional recebeu somente do FIES no
exercício financeiro de 2016 (CGU).

3
Valor do bilhão de real calculado em referência ao valor da moeda no ano corrente de 2016.

10
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Enquanto para a classe exploradora a educação aparece como um


investimento econômico para aumentar a rentabilidade do capital, através
da formação do capital humano, ela emerge, para as camadas da classe
trabalhadora como uma técnica social [...] de fundamental importância na
luta das camadas da classe popular como forma de superar as condições
que as produzem, que as fazem menos, como afirma Paulo Freire.
(SOUZA, 2004, p. 362)

Como afirmamos anteriormente, a educação em tempos neoliberais passa a atender


uma demanda mercadológica do capitalismo. Toda a premissa supracitada em Souza acaba
sendo negligenciada, estamos falando assim, em um processo reprodutivista de um status quo
excludente e injusto, reforçado erroneamente pela educação. Não é demais relembrar que a
educação básica brasileira, de ordem pública, sofre de um déficit de qualidade crítica
conhecido pela sociedade. A educação superior de ordem privada tende, ao contrário da
pública – ou ao que resta de público em um setor cheio de terceirizações, de professores
substitutos e sobrecarregados – a prezar por ensinamentos pouco crítico-reflexivos, sempre
focando no mercado de trabalho. Mantendo assim a constante reprodução das funções sociais
metabólicas do capital que são fundadas por “uma desumanizante alienação e [...] uma
subversão fetichista do real estado de coisas dentro da consciência” (MÉSZÁROS, 2008, p.
59). É a parcialização do ser, no seu processo de formação individualizante, concorrencial, e
que o estandardiza perante um “Deus mercado” comandante de sua força de trabalho e vida.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, R. Desenhando a nova morfologia do trabalho: As múltiplas formas de degradação do
trabalho. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 83. Coimbra: CES-UC, 2008, p. 19-34.

APPLE, Michael W. et al. Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação.


Petrópolis – RJ: Ed. Vozes, 1995.

CGU. Portal da Transparência. Brasília: Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União,


2016. Disponível em: <http://bit.ly/2x2F1kP>. Acesso em: 19 set. 2017.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.


São Paulo: Globo, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra, 1996.

11
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p.11-26.

INEP. Sinopse Estatística da Educação Superior. Brasília: Inep, 2003;2012;2016. Disponível em:
<http://bit.ly/2xDRuQ2>. Acesso em: 20 set. 2017.

LEHER, Roberto; LOPES, Alessandra. Trabalho docente, carreira, autonomia universitária e


mercantilização da educação. Reformas e políticas: educação superior e pós-graduação no Brasil.
São Paulo: Alínea, 2008. p. 73-96.

MARX, K. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Trad.
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MEIRELLES, Henrique et al. Orçamento de subsídios da União. Brasília: Secretaria de


Acompanhamento Econômica, 2017.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

____________. Para Além do Capital: Rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo César
Castanheira e Sergio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.

MINTO, Lalo Watanabe. Capitalismo e Educação no Brasil – Análise Histórica do Processo de


Reforma do Estado e do Ensino Superior. Anais do VI Seminário do Trabalho: Trabalho Economia e
Educação. Marília, SP: Ed. Gráfica Massoni, 2008. Disponível em: <http://bit.ly/2CBagpX>. Acesso em:
10 jan. 2018.

SAMPAIO, Helena. Ensino superior no Brasil: o setor privado. São Paulo: Hucitec, 2000.

SILVA JUNIOR, João; SGUISSARDI, Valdemar. A nova lei de educação superior. Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro, 2005, n.29, p. 5-27. Disponível em: <http://bit.ly/2x21FyC>. Acesso em: 14
set. 2017.

SOUZA, João Francisco. Pedagogia da Revolução: subsídios. Recife: Bagaço, 2004

TRAINA-CHACON, José; CALDERÓN, Adolfo. A expansão da educação superior privada no Brasil: do


governo de FHC ao governo de Lula. RIES. México, 2014, vol. 6, n.17, p. 78-100. Disponível em:
<http://bit.ly/2yy7v6U>. Acesso em: 15 set. 2017.

12
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

O CARÁTER DESANTROPOMORFIZADOR DO REFLEXO CIENTÍFICO

Thayná Dantas de Omena


Mestranda em Serviço Social pela UFAL

RESUMO:

Este trabalho pretende se aproximar ao complexo de questões que


envolvem o reflexo científico por meio da investigação de seu
aspecto desantropomorfizador, que confere prioridade à realidade
objetiva no processo de conhecimento. Partindo do entendimento de
que o trabalho (enquanto fundante do ser social) é também fundante
do reflexo científico – e que a desantropomorfização que lhe
caracteriza consiste em uma elevação do comportamento que inicia
no trabalho a método de um tipo de reflexo –, acompanharemos a
evolução do pensamento científico até chegar aos obstáculos que
ele enfrenta no capitalismo. Para isso, recorremos a um capítulo da
Estética de Lukács.

Palavras-chave: Reflexo científico; Desantropomorfização; Lukács.

13
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretendemos expor nossa aproximação à questão do reflexo científico.


Dentro desse complexo de questões, neste artigo nos deteremos apenas à questão do caráter
desantropomorfizador do reflexo científico, o qual firma a prioridade da objetividade no
processo de captura do real pelo sujeito.
No capitalismo, a posição metodológica da centralidade do objeto dá lugar à
centralidade do sujeito no processo de conhecimento desembocando em um antropomorfismo,
em detrimento do caráter desantropomorfizador do reflexo científico. Tendo em vista o
predomínio do subjetivismo nas elaborações científicas do presente, o tema do caráter
desantropomorfizador do conhecimento verdadeiramente científico assume grande relevância
para a discussão científica atual.
Para tratar das questões da desantropomorfização do reflexo científico e dos obstáculos
que enfrenta esse tipo de pensamento no capitalismo, recorremos a um dos capítulos da obra
de György Lukács, a Estética (parte I, item 1, cap. 2 – Desantropomorfização do reflexo na
ciência). Durante este texto, acompanharemos a evolução do pensamento cientifico sob a
influência do desenvolvimento social, o qual estabelece uma relação de determinação
recíproca com o pensamento e o reflexo sem perder sua prioridade ontológica.
Antes de tudo, ressaltamos que partimos do entendimento de Marx e de Lukács de que
todo pensamento surge para dominar, modificar, consolidar, etc. a práxis humana em geral e
principalmente o trabalho. Por ser categoria fundante do ser social, o trabalho, sempre em
última instância, é também fundante de todo pensamento, incluindo o pensamento científico.
Ademais, conforme Lukács, a desantropomorfização característica do reflexo científico,
enquanto instrumento de domínio do mundo pelo homem, é uma elevação a método do
comportamento que inicia no trabalho.

14
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

DESENVOLVIMENTO

1. Pensamento científico como uma desantropomorfização

O pensamento e o reflexo científico convivem com outras formas de reflexo e de


pensamento. Dentre elas, estão as tendências mais ingênuas, imediatas e espontâneas do
reflexo e do pensamento: as tendências personificadoras e antropomorfizadoras da
cotidianidade. Há uma espécie de disputa entre elas e o reflexo científico. A luta entre essas
tendências e o pensamento científico evolui de modo desigual, compreende progressos e
retrocessos na evolução do pensamento científico ao longo do desenvolvimento da sociedade
humana.
Especialmente nos estágios mais primitivos da humanidade, essa luta é pouco visível.
Nesses estágios – mas não apenas, como veremos no próximo tópico – o desenvolvimento
social produz formas de reflexo e de pensamento que “põem barreiras ao desenvolvimento do
pensamento científico”. Pois, ocorre que, “em vez de superar[em] radicalmente as formas
ingênuas e espontâneas de personificação e antropomorfização da cotidianidade, reproduzem-
nas a um nível superior” 4 (LUKÁCS, 1966, p. 147).
Isso ocorre porque, nesses estágios primitivos, “o materialismo espontâneo e primitivo
da vida cotidiana não dispõe de defesa alguma contra a penetração e o domínio da
personificação idealista e religiosa”. Nesse contexto, na história do desenvolvimento do
pensamento científico, “o materialismo filosófico5, que já se apresenta a um nível relativamente
alto do desenvolvimento cultural”, desenvolvido na Grécia antiga ganha destaque (LUKÁCS,
1966, p. 155).
O fato de o materialismo filosófico ter se desenvolvido justamente na Grécia daquele
momento tem seus motivos históricos. Lukács destaca que Marx tem na relativa igualdade de

4
Tradução livre do texto original em espanhol. Nesse paper, todas as passagens diretas retiradas da Estética de
Lukács foram também traduzidas de forma livre.
5
Segundo Lukács, esse movimento alcança seu auge com o atomismo de Demócrito e Epicuro, no qual todo o
mundo fenomênico humano se concebe como produto segundo leis e relações e movimentos das partes
elementares da matéria.

15
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

patrimônio – entre os escravistas – o fundamento do florescimento das comunidades gregas.


Nestas surge uma democracia política dos escravistas que se estende à religião e que, por
isso, permite uma “antecipada e ampla emancipação do desenvolvimento da ciência em
relação às necessidades sociais e ideológicas da religião” 6 (LUKÁCS, 1966, p. 149; 150).
Com isto por fim ficam dados os fundamentos sociais da primeira separação
clara entre o reflexo científico da realidade e o da cotidianidade e o da religião. A
independência da ciência, assim estabelecida, faz definitivamente possível o
desenvolvimento paulatino de uma metodologia unitária e uma concepção de
mundo científicas, o reconhecimento das categorias em sua peculiaridade
científica e em sua pureza metodológica, a generalização e a sistematização dos
particulares resultados da prática e da investigação, etc. (LUKÁCS, 1966, p. 150)

É na Grécia antiga que a luta, entre as tendências do pensamento cotidiano e religioso e


as formas de pensamento científico, se torna evidente pela primeira vez, de modo que fica
clara a contraposição entre elas.
Essa contraposição torna possível o estabelecimento de uma metodologia do
pensamento científico. Essa metodologia específica, por sua vez, figurou como condição
necessária “para que este novo tipo de reflexo da realidade, mediante o exercício, o costume, a
tradição, etc., se convertesse em um modo de comportamento humano geral e de
funcionamento permanente” (LUKÁCS, 1966, p. 148).
Caso contrário, pois, segundo Lukács (1966, p. 148),
se o método científico não se generaliza filosoficamente nem se põe em
contraposição em relação às concepções antropomorfizadoras do mundo, seus
resultados soltos [das ciências que decorrem das experiências do trabalho]
podem adaptar-se às diversas concepções gerais mágicas e religiosas, inserir-se
nelas, com o que o efeito do progresso científico dos diversos campos especiais
sobre a vida cotidiana será praticamente nulo.

6
Embora não iremos explorar a questão neste texto, não podemos deixar de mencionar aqui que “as mesmas
tendências evolutivas da sociedade grega que acabamos de descrever produzem, por outro lado, um desprezo
social do trabalho, cujas consequências podem se observar constantemente no curso da historia da ciência e da
filosofia gregas” (LUKÁCS, 1966, p. 150).

16
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

É dessa forma que o pensamento desantropomorfizador eleva a nível superior as


concepções antropomorfizadoras. Portanto, a generalização filosófica do método científico tem
suma importância na evolução do pensamento científico, e, além disso, como enfatiza Lukács
(1966, p. 148), “O decisivo é precisamente esse caráter consciente, universal, de princípio, que
tem a contraposição” entre essas diferentes formas de reflexo e de pensamento.
Nosso autor está seguro de que a filosofia grega pré-socrática7 colocou os fundamentos
metodológicos decisivos do pensamento científico. Tendo em vista que “uma captura
verdadeiramente científica da realidade objetiva apenas é possível mediante uma ruptura
radical com o modo de concepção personificador, antropomorfizador”, temos que
O tipo científico de reflexo da realidade é uma desantropomorfização tanto do
objeto quanto do sujeito do conhecimento: do objeto, ao limpar seu em si de
todos os acréscimos do antropomorfismo (na medida do possível); do sujeito, ao
fazer que o comportamento deste em relação à realidade consista em criticar
constantemente suas próprias intuições, representações e formações
conceituais para evitar a penetração de atitudes antropomorfizadoras que
deformassem a objetividade na captura da realidade (LUKÁCS, 1966, p. 154).

Apesar de limitações existentes na filosofia grega, consoante Lukács (1966, p. 153),


verifica-se que “a tendência principal é a fundação de uma objetividade real do conhecimento,
sua separação do subjetivismo que resulta insuperável no marco da vida cotidiana”. Posto que
em todos os casos o esforço filosófico tende a superar decididamente a
subjetividade humana com seus limites, deficiências e prejuízos e a refletir com
maior fidelidade possível a realidade objetiva tal como é em si, o menos
enturvado possível por acréscimos da consciência humana (LUKÁCS, 1966, p.
154).

Esses esforços metodológicos estabelecidos pela filosofia grega consistem em priorizar,


no processo de captura do real pela subjetividade, o real em si, a objetividade, de modo que o
reflexo da realidade objetiva não se distorça por meio das “ilusões perceptivas”, pelos
“paralogismos” que a “imediaticidade do pensamento cotidiano” produz. Assim que, “desse

7
De Tales a Demócrito-Epicuro.

17
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

ponto de vista, a filosofia grega dos pré-socráticos constitui um ponto de inflexão na história do
pensamento humano” (LUKÁCS, 1966, p. 153).
Desse modo, portanto, podemos afirmar que a filosofia grega antiga pôs o problema
decisivo da especificidade do reflexo científico da realidade: seu caráter desantropomorfizador
em contraposição às formas de pensamento e de reflexo antropomorfizador e personificador do
cotidiano e da religião.

2. As dificuldades que o pensamento científico enfrenta no capitalismo

Se o materialismo espontâneo e primitivo não possuía defesa frente às tendências


idealistas do cotidiano e da religião, o materialismo filosófico grego possibilita a fixação do
reflexo científico como um novo e permanente tipo de reflexo. Isso ocorre graças à formulação
e generalização de uma metodologia científica própria, que se traduz numa
desantropomorfização8 do sujeito e do objeto, e, principalmente, à clara contraposição às
tendências antropomorfizadoras e personificadoras do cotidiano e da religião.
Entretanto, “Como é natural, a liberdade de automovimento assim conseguida para a
ciência não equivale a uma evolução sem conflitos” (LUKÁCS, 1966, p. 150). As conquistas
desantropomorfizadoras da filosofia grega não impediram que elas acabassem ameaçadas por
tendências provenientes dessa mesma filosofia. Em Platão, a duplicação idealista do reflexo
põe em perigo os avanços alcançados pela desantropomorfização do conhecimento, pois
agora não se trata mais de um simples reflexo da realidade, mas de um mundo ideal e do
mundo empírico (LUKÁCS, 1966, p. 160).

8
Vale salientar, aqui, que o pensamento desantropomorfizador só pode se desenvolver com o materialismo
filosófico grego devido ao desenvolvimento social da sociedade grega daquele momento, como vimos no tópico
acima.

18
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Tem-se um “movimento regressivo das tendências desantropomorfizadoras na filosofia


grega” que “tem uma grande importância de principio para os destinos do reflexo científico da
realidade” (LUKÁCS, 1966, p. 170).
O idealismo da Antiguidade, que, em seu mundo ideal, convertia a essência,
separada e independente do mundo fenomênico, em fundamento real da
realidade, não tinha mais saída possível que a de conceber essa causalidade,
assim estatuída, de um modo antropomorfizador, mitologizador, como <processo
de trabalho> da origem, do ser e do devir do mundo, debilitando
consequentemente a extremidade de tudo o que havia conseguido a anterior
filosofia quanto à desantropologização do conhecimento e a sua fundamentação
como ciência (LUKÁCS, 1966, p. 162-3).

Nasce, portanto, um novo e desenvolvido antropomorfismo dentro da própria filosofia


grega, ainda na Antiguidade, que vai desembocar na religião e perdurar por cerca de um
milênio durante a Idade Média.
Apenas na Europa com o Renascimento, as tendências antropomorfizadoras do final da
Antiguidade e que dominaram o essencial do pensamento da Idade Média sofrem outro ataque
(LUKÁCS, 1966, p. 171). No jovem Espinosa – afirma Lukács (1966, p. 203), evidencia-se a
tendência comum à época, manifestada também por Bacon e Galileu:
um afastamento em relação ao pensamento cotidiano, de sua imediaticidade e
seu antropomorfismo, a transformação ou reeducação do sujeito no sentido da
recepção das leis da realidade em si, sem deformações humano-subjetivas, a
reflexão sobre a realidade segundo sua própria natureza, e não segundo efeitos
humanos, e a sistematização do todo.

Ocorre que, com a transição da Idade Média à Idade Moderna, alterações substantivas
nas relações sociais de produção atingem o desenvolvimento do pensamento científico, cujo
“florescimento contraditório” passa a enfrentar novos desafios. Sob o capitalismo, as
dificuldades enfrentadas pelo pensamento científico – o impedimento da generalização do
método científico em forma de concepção de mundo – decorrem de motivos específicos.
O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo – motivado pela nova forma de
riqueza social praticamente ilimitada por si só, o capital – influencia, por um lado, o
desenvolvimento da ciência, a difusão e o aprofundamento do método científico, e ainda

19
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

permite uma influencia dos resultados científicos da cotidianidade e no processo de trabalho.


Não obstante, por outro lado, a nova forma de sociabilidade também funciona como inibidora
do desenvolvimento do espírito científico e o faz através de um meio já conhecido, “a recusa
dos resultados generalizados da ciência, no marco das tendências desantropomorfizadoras, [e]
a causa de sua intolerância [se dá] a partir do ponto de vista do domínio de classe” (LUKÁCS,
1966, p. 175).
Ocorre que
a ciência, nascida graças às forças produtivas que desencadeou essa
sociedade, essa classe dominante, se encontra, se se levam até o final,
metodologicamente e desde o ponto de vista da concepção do mundo, seus
resultados gerais, em contradição com os pressupostos ideológicos daquele
domínio de classe (LUKÁCS, 1966, p. 175).

Esse solo contraditório sobre o qual floresce novamente o pensamento científico, com
suas tendências desantropomorfizadoras, tem ao mesmo tempo o progresso científico como
interesse da classe dominante e a proibição de que os avanços desantropomorfizadores desse
progresso se elevem a concepção de mundo. Isso decorre do caráter “dúplice [da] função
histórico-social da classe dominante”: a burguesia “sob pena de sucumbir, está obrigada a
seguir desenvolvendo as forças produtivas e, consequentemente, a promover a ciência”;
todavia, “não quer tolerar brecha alguma na concepção de mundo que dá fundamento a seu
domínio” (LUKÁCS, 1966, p. 175).
Cada vez mais,
a imagem do mundo que impõe aos homens o reflexo desantropomorfizador da
realidade resulta ser, tal como, para a burguesia e para sua intelectualidade,
imprescindível a partir do ponto de vista prático-econômico, e cada vez menos
tolerável ideologicamente (LUKÁCS, 1966, p. 179).

Dessa forma, a classe dominante vai buscar reagir à renovação do método científico,
aos seus resultados e à recuperação das tendências desantropomorfizadoras desde o
Renascimento, em que o reflexo da realidade objetiva tinha importância central. Os esforços da

20
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

filosofia moderna resultarão em um “idealismo subjetivo de orientação epistemológica”,


diferente de um idealismo objetivo em que se priorizava a imagem objetiva da realidade.
Nesse contexto, ocorre
um declínio autorizado a manipular e dominar ao prazer o mundo dos
fenômenos, uma vez decretado que desse mundo não se podem obter
inferências no tocante ao mundo em si, à realidade objetiva. O idealismo
filosófico, agora já apenas subjetivo se retira a uma posição que consiste na
mera proibição epistemológica de uma imagem objetiva do mundo (LUKÁCS,
1966, p. 176).

O filósofo húngaro afirma que


em todas essas encarnações da filosofia moderna se contrapõe com toda
intenção filosófica a vivência, o vivido, o acréscimo do sujeito, seu modo de
captar imediatamente a realidade, tudo isso como <verdadeira> realidade, como
<autêntica>, à objetividade <morta> do conhecimento científico (LUKÁCS, 1966,
p. 177).

Essa posição não poderia deixar de pressupor a realidade subjetiva – “a vivência, o


vivido, o acréscimo do sujeito” – como a única apreensível e o ser em si como incognoscível.
Nesse contexto, o sujeito passa a construir o objeto alcançado por meios de domínios
intelectuais arbitrários, elencados a partir da sua própria subjetividade. A partir disso, temos por
resultado uma grande variedade de atitudes possíveis diante do real que resultam dessa
posição metodológica – “o âmbito em questão vai desde a simples reconstituição
<epistemológica> das religiões até o ateísmo religioso, desde o pleno agnosticismo dos
positivistas até a livre formação de mitos, etc.” – mas todas elas demonstram o caráter da
antropomorfização, pois, “a crescente importância do subjetivismo nesse processo tem também
que reforçar – consciente ou inconscientemente – as tendências antropomorfizadoras”.
(LUKÁCS, 1966, p. 176-7).
Por fim, concluímos que as dificuldades que o pensamento verdadeiramente cientifico,
desantropomorfizador, tem por solo a contraditória relação que a classe dominante, a
burguesa, estabelece com o pensamento desantropomorfizador. O subjetivismo que daí
decorre acaba desembocando num antropomorfismo, impedindo que os avanços

21
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

desantropomorfizadores interfiram, principalmente, na concepção de mundo e nos


fundamentos metodológicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fundamentos metodológicos da cientificidade, hoje, estão predominantemente


marcados pela posição metodológica que consiste em priorizar subjetivismos em desfavor da
realidade objetiva do objeto. Por isso, para nós, ressaltar o caráter desantropomorfizador do
reflexo verdadeiramente científico assume relevante importância no debate atual acerca da
atividade científica.
Daí, a importância de trazer Lukács para traduzir a evolução do pensamento científico e
de suas características, com seus progressos e recuos, no que se refere aos avanços
desantropomorfizadores. Além disso, a história do pensamento científico permite a apreensão
dos fundamentos sociais que dão suporte ao predomínio subjetivista. Apenas depois de
revelado o solo historicamente determinado pela sociabilidade burguesa sobre o qual se põe
uma desantropomorfização contraditória – que atende ao mesmo tempo aos interesses prático-
econômicos da burguesia e prejudica os interesses ideológicos dessa classe dominante –
podemos compreender a função da posição metodológica do subjetivismo dominante na
atividade científica, qual seja, a de: manter a concepção de mundo que serve ao seu domínio,
mesmo que esta ponha obstáculos à apreensão científica da realidade objetiva.
Dessa forma, revelada a função que cumpre tal posição metodológica, resta esclarecida
a importância de trazer ao debate o caráter desantropomorfizador do reflexo científico – que
busca limpar dos acréscimos subjetivos tanto o objeto quanto o próprio sujeito. E, assim, por
decorrência, a importância de retomar a prioridade do objeto no processo de conhecimento.
Tais considerações acerca dos fundamentos metodológicos da atividade científica revelam-se,
assim, de profunda relevância para aqueles que desejam atingir um conhecimento verdadeiro
sobre o ser existente.

22
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Este conhecimento, por sua vez, revela-se cada vez mais imprescindível para a
apreensão das legalidades naturais e sociais e, por conseguinte, para uma autoconstrução
mais humana do ser social.

REFERÊNCIA

LUKÁCS, Georg. Estética 1: la peculiaridad de lo estético (Volumen 1, cap. 2 – Desantropomorfización


del reflejo en la ciencia). Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966.

23
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Democratização universitária e expansão/interiorização da UPE nos anos 2000: aspectos


políticos e pedagógicos

Maria Eduarda de Moura e Clara Martins

Universidade de Pernambuco

IX Encontro de Estudos e Pesquisas Marxistas

RESUMO:

Este artigo é uma síntese das primeiras aproximações feitas a partir


da pesquisa intitulada “Democratização universitária e
expansão/interiorização da UPE nos anos 2000: aspectos políticos e
pedagógicos” na qual buscou-se compreender o processo de
democratização universitária que se consolidou durante o governo
petista nos anos 2000 e sua influência nas transformações políticas
e pedagógicas das Universidades brasileiras, em especial a
Universidade de Pernambuco. De forma a situar a experiência da
unidade Mata Sul.

Palavras-chave: Democratização, interiorização, universidade,


particularidade.

24
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

INTRODUÇÃO

Este artigo resulta das primeiras aproximações feitas a partir do subprojeto


“Democratização universitária e expansão/interiorização da UPE nos anos 2000: aspectos
políticos e pedagógicos” no qual buscou-se compreender o processo de democratização
universitária que se consolidou durante o governo petista nos anos 2000 e sua influência nas
transformações políticas e pedagógicas das Universidades brasileiras, em especial a
Universidade de Pernambuco, considerando as particularidades da interiorização nas
Universidades estaduais.

O trabalho estruturar-se-á de maneira a apresentar as etapas do desenvolvimento da


pesquisa, à luz da crítica do materialismo histórico e dialético, de maneira que primeiramente
se apreendeu os fundamentos históricos, econômicos e sociais da formação do país. Parte daí
a análise estrutural da educação brasileira com foco no ensino superior, para então trazer a
abordagem crítica da interiorização nas particularidades da Universidade de Pernambuco,
unidade Mata Sul. O artigo é dividido em três pontos principais, nos quais desenvolve-se os
conteúdos citados acima, além da introdução e conclusão.

Num primeiro momento a pesquisa trouxe a apropriação teórica dos aspectos histórico-
econômicos da formação social brasileira, no intuito de compreender o atual modelo de
educação e de Universidade (Romanelli, 1984), e o processo de formação social brasileiro
(Prado, 2000). Nesta oportunidade, constatou-se que o capitalismo brasileiro é arcaico frente
aos avanços inerentes a sua lógica de reprodução social, devido a forma que sempre foi
colonizado e se desenvolvido dentro da visão eurocêntrica de baixo desenvolvimento das
forças produtivas.

Há de se ressaltar aqui as demandas da comunidade acadêmica quanto ao acesso e


permanência das/os estudantes no ensino superior e a direção das respostas dadas pela
instituição. Dessa forma, esta pesquisa não se propõe a abarcar todas estas complexidades,

25
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

mais sim, iniciar uma discussão acerca destas contradições que afetam o cotidiano da
comunidade acadêmica. E que se materializa de forma objetiva e subjetiva na vida dos sujeitos
envolvidos nesse processo de vivencia.

DESENVOLVIMENTO

1. Aspectos históricos do capitalismo brasileiro e as implicações na educação


superior

O Brasil é um país de capitalismo tardio e dependente, onde o nacional sempre foi


pautado à dinâmica do estrangeiro, aspecto arraigado a sua formação social que organizava o
território brasileiro como uma extensão da metrópole. Uma característica que desde sempre
influiu na dinâmica de desenvolvimento autônomo do país, de forma que a elite política da
colônia se dava de forma centralizada, aspecto de matriz ainda muito atual (Romanelli, 1984).

Nas décadas de 1920 e 1930, em plenos vapores da revolução burguesa no país,


vivenciava-se um processo de centralização da educação, destacando-se as reformas de
Francisco Campos e o Movimento renovador, para a educação superior na época, foi um
margo regulador próprio, caracterizando mais uma vez um reordenamento na dinâmica de
centralidade do capitalismo subordinado.

O pós-1930 é marcado também pelo manifesto dos “pioneiros da educação nova” onde
se defendia uma “escola nova”, uma defesa pela escola pública e de obrigatoriedade do
governo federal. Estes e outros percalços na história da educação brasileira como o estatuto
das Universidades brasileiras, logo em seguida a criação da Universidade de São Paulo em
1934, influencia para que pensemos o capitalismo tardio brasileiro e a necessidade do mesmo
se afirmar em bases nacionais, ajuda também compreender a especificidade da Universidade
brasileira e a dicotomia que sempre houve entre o público e o privado, e a disputa de classe e

26
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

o interesse atrelado a educação como uma lógica mercadológica, além de destacar o quão
nova é nossa Universidade.

A partir daí há uma expansão de novas Universidades no país nas décadas de 1940,
1950 no centro das reivindicações nacional-desenvolvimentistas das chamadas ”reformas de
base” da década de 1950, e em 1960 surgem as várias instituições que lhes compõem, além
de serem levantadas bandeiras de universalização da escola pública em todos os níveis e a
sua gratuidade.

O golpe cívico militar de 1964 provocou o “[...] encerramento das possibilidades de


desenvolvimento capitalista autônomo, ensaiadas e expressas por certas frações da burguesia
brasileira e pelas camadas populares” (Minto, 2014, p. 193). Subsequente ao regime de
exceção, houve uma expansão na industrialização e urbanização, caracterizando novos
padrões de desenvolvimento das forças produtivas, emergindo junto a esta uma demanda por
educação, aspecto este que não se deu em todos os níveis e regiões do país.

É nesse período que se inicia o processo de pensar uma reforma para o ensino
superior, Processo que marcou a luta em defesa da diversificação do público universitário, e
que uniu forças de segmentos sociais, em especial a UNE, que realizou vários seminários em
favor da reforma universitária.

Florestan Fernandes vai caracterizar esta reforma com: “reforma consentida”, já que
ela seguiu uma lógica subjacente ao governo dos militares mesmo em seu pleno caráter que

[...] visou romper com o elitismo universitário e combater o distanciamento do


conhecimento produzido nestas Instituições das questões nacionais mais gerais –
promovendo a aproximação da Universidade com as demandas das classes
subalternas, pela via do estreitamento de sua relação com os movimentos sociais
e a garantia da ampliação das vagas nesta modalidade de ensino. (Nascimento,
2013, p.62)

Uma “contrarreforma”, no sentido de que se buscou atender aos conflitos de classe, de


interesses antagônicos, onde tentava-se:

27
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

[...] responder a duas demandas contraditórias: de um lado, a demanda dos


jovens estudantes ou postulantes a estudantes universitários e dos professores
que reivindicavam a abolição da cátedra, a autonomia universitária e mais verbas
e mais vagas para desenvolver pesquisas e ampliar o raio de ação da
Universidade; de outro lado, a demanda dos grupos ligados ao regime instalado
com o golpe militar que buscavam vincular mais fortemente o ensino superior aos
mecanismos de mercado e ao projeto político de modernização em consonância
com os requerimentos do capitalismo internacional (SAVIANI, 2010, p. 9).

Alguns destes avanços foram incorporados a constituição federal de 1988. A reforma


de 1968 vai atender aos setores privados e internacionais, numa incorporação da lógica de
educação mercantil que já se instaurava no país e que se intensifica no processo de
democratização universitária.

A década de 1970 mostra-se ser uma década de grande efervescência no mundo todo,
devido ao reordenamento na estrutura do capital, na chamada era de ouro do capitalismo
mundial, caracterizado pela crise estrutural, inerente ao sistema. No Brasil, o país tem seus
abatimentos no período que ficou conhecido como “milagre econômico” e abertura política,
lembrando que ainda se vivia aqui aspectos do governo militarista.

Os esforços da ideologia neoliberal nas décadas de 1970, 1980 e 1990 reforçam a


ideia de quanto mais qualificação, mais justa a divisão de renda. Uma das maiores
preocupações foram as transformações das Universidades federais, vistas como maiores
produtoras de conhecimento, transplantando-as em Universidades operacionais, aptas no
recebimento de investimentos públicos e privados. Algumas medidas foram de redução de
financiamento público, não realização de concursos públicos para aposentadoria “induzida”,
congelamento de salários, contratação precária de professores substitutos, fomento de
mecanismos de controle dos docentes, cobrança de taxas escolares e até mensalidades de
curso de graduação (Neves e Fernandes, 2002).

Uma outra característica desse processo, foi a abertura do empresariamento da


educação, que se instaura no país desde esse período e que só cresce nos dias atuais, e que,

28
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

nas palavras de Neves e Fernandes (2002) são uma burguesia que “se alimenta das sobras
das lutas dos trabalhadores”. Os anos 2000 foi visto por muito tempo como um período de
recessão das vantagens burguesa não só na sociedade brasileira, mas em toda América
Latina, e o governo petista no Brasil conseguiu trazer algumas vantagens no quesito
“educação”, mas sob grande custo para a classe trabalhadora brasileira.

2. Democratização universitária: aspectos dos anos 2000

A década de 1990 demarca um período de reordenamento dos organismos


internacionais com interfaces nas políticas educacionais da América Latina, é preciso entender
que este movimento impacta o Brasil de forma a intensificar a privatização da educação
superior no país, e apontam diretrizes para uma política de educação superior que inclui
transferência de renda do setor público para o privado, além de trazer o impulsionar da
internacionalização da educação e acirrar o mercado educacional, trazendo à tona uma nova
burguesia empresarial da educação (Neves, 2005).

Se por um lado a reforma de 1968 fomentada pelos movimentos sociais da educação


que lutavam em favor do acesso da classe trabalhadora no ensino superior, no sentido de
democratizar a Universidade pública brasileira, os anos 2000 demarca uma serie de movimento
que permeiam esse debate, e envolve também a bandeira da assistência estudantil, mas sob
uma lógica de reordenamento do investimento público no setor privado.

A democratização universitária situada aqui, diz respeito ao direcionamento que a


Universidade toma com as modificações na relação “Estado, sociedade e Universidade” que se
expande nos anos 2000, dentro da ciranda do capital nas reformas de base do contexto
desenvolvimentista, esta situa-se como uma “continuidade” da reforma universitária já vista
anteriormente, de forma que esta última se situa como uma “contrarreforma”, tendo por base
concepções que dialogam com Florestan Fernandes.

29
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Esta fase se caracteriza pela expansão da Universidade com um modelo tecnicista e


neoprofissional, uma “Universidade moderna” como aponta Chauí (1999), sendo colocada
como uma instituição social, assumindo atuação pautada nos preceitos neoliberais, que
reverbera dentro da dependência dos controles internos da produtividade e flexibilidade na
formação de conhecimento precário, a exemplo desse processo é a expansão da Universidade
enquanto interiorização, que segue uma lógica mercantilista e barateamento do custo aluno-
professor, não como uma forma de universalização da educação superior (Maceno, 2005) à
classe trabalhadora.

A bandeira de luta pelo acesso as Universidades se intensifica, e demandou também


pelas condições das/os estudantes permanecerem nos seus cursos, uma resposta ao problema
da taxa de evasão por parte dos estudantes pobres, no qual o movimento das/os estudantes
levantaram a bandeira de luta de “Quem entrou, quer ficar!”, dando espaço ao debate da
assistência estudantil, que antes nunca havia sido debatida como prioridade para o estudante
universitário. Nos anos 2000 houve a criação do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos
Comunitários e Estudantis (FONAPRACE).

A justificativa de tirar a população brasileira da linha de pobreza por via da educação se


impulsiona com ideia de ampliar o acesso da classe baixa ao ensino superior, para que se
garanta maior capacitação técnica do mercado de trabalho, isso devido as implicações da
flexibilização do mundo do trabalho.

No âmbito da educação houve um aumento na participação de organismos


internacionais nas diretrizes da educação dos países periféricos, e a educação superior é
tratada como nicho de mercado. Há ainda uma preocupação na implementação de programas
como o REUNI, Prouni, FIES e o novo ENEM-SISU, que amplia vagas nas instituições de
ensino superior, mas em compensação não amplia na mesma proporção as condições de
permanência e estrutura nas IES. A educação no século XXI é caracterizada principalmente
pelo caráter massificado e mercantilizado.

30
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

3. Aspectos Políticos e pedagógicos da interiorização na UPE

A UPE é a única Universidade estadual em Pernambuco, originada da Fundação de


Ensino Superior de Pernambuco – FESP, formado por um grupo de unidades de ensino
superior desde 1965. Extinta a FESP, só em 1991, no dia 12 de junho por meio da portaria
ministerial nº 964 a antiga Fundação Universitária de Pernambuco passa a ser a Universidade
de Pernambuco.

Vinculada à Secretaria de Tecnologia do estado, a SECTEC; a UPE conta com


recursos do governo do estado para se manter, ela abarca estudantes do litoral ao sertão
pernambucano. Esta instituição é vista como um dos principais centros de formação
profissional do estado, contendo uma estrutura organizada com unidades multicampi,
espalhadas nas cinco regiões pernambucanas, conta ainda com 3 hospitais, quatro escolas de
ensino fundamental e médio e uma reitoria, sendo ainda composta por órgãos de apoio como o
Núcleo de comunicação e tecnologia da informação (NCTI), e a Procuradoria Jurídica
(PROJUR), conta ainda com órgãos complementares como por exemplo o NAE: Núcleo de
Apoio ao Estudante que trata de assuntos relacionados a assistência estudantil.

Diante dessa dimensão, a pesquisa buscou contribuir na apreensão de alguns fatores


inerentes à intensificação da expansão das Universidades no período do governo petista. No
caso da UPE, que já “nasce interiorizada”, as contradições podem se apresentar de forma mais
latente no que diz respeito ao processo de interiorização, intensificado ainda mais em 2008,
quando a UPE lança nota que está recebendo investimentos destinados a reestruturação de
campus já existentes e a criação de outros, espalhados em cidades estratégicas, atreladas a
ideia de desenvolvimento local e regional para o estado. Algo que, que sem dúvidas, impacta
na organização política e pedagógica da instituição, levando em consideração a dinâmica dos
PPC’s e PDI institucional, que atua frente aos rearranjos da política interiorana.

31
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Empiricamente, a vivência no curso de Serviço Social, Campus Mata Sul/Palmares,


enquanto discente, e inserção no movimento estudantil, aproxima as contradições da
interiorização na UPE. Estas se expressam na estrutura precária e díspares na realidade dos
campi espalhados pelo estado. Ademais, destaca-se a exigência da produtividade por parte do
corpo docente, condicionada à aprovação de editais de fomento e, principalmente, a
insuficiência de ações no âmbito da assistência estudantil.

A partir do desenvolvimento deste subprojeto identificamos avanços no âmbito da


expansão das Universidades, conduzindo assim a educação superior a um grande nível de
popularização vivenciada nos anos 2000. Contudo, qualitativamente, este crescimento ainda
significa um empasse para os estudantes negros/as, indígenas, quilombolas e LGBT (há muito
tempo excluída das Universidades, pelo seu “caráter elitista” (FERNANDES, 1975), e
considerando a precariedade da interiorização.

Nesta direção, recoloca-se o um desafio do movimento estudantil e segmentos da


sociedade que defendem uma educação gratuita e de qualidade, a luta pelo financiamento das
Universidades estaduais.

A UPE não possui uma política de assistência estudantil estruturada e condicionada ao


Programa Nacional de Assistência Estudantil/PNAES. Este tema foi, inclusive, uma das
principais bandeiras das ocupações de 2016. Neste processo, o movimento estudantil junto a
demais seguimentos que aderiram à greve na instituição estadual, conseguiram após muita
resistência abrir um fórum de debate permanente para tratar de assuntos estudantis e debater
a reestruturação do Plano estadual de assistência que abrangesse os estudantes de
Pernambuco (visto que as bolsas e auxílio na Universidade não alcançam 5% dos seus
estudantes).

Os estudantes interioranos convivem diariamente com os deslocamentos para a


Universidade o que implica em exorbitantes gastos com transporte, moradia, alimentação,

32
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

agua, gás, energia e, ainda, com as taxas cobradas por serviços da escolaridade e os
deslocamentos para o cumprimento do estágio obrigatório.

As unidades e cursos foram espalhadas pelo estado estrategicamente e a Universidade


assume uma postura de atuar nos interiores levando desenvolvimento social para
determinadas regiões. É de se notar que as estratégias dos cursos em trabalhar pesquisa e
extensão de forma intensificada nos campos interioranos advém também de uma ótica de
produtividade incumbida dos arranjos nacionais que coloca a educação e o
desenvolvimentismo numa linha tênue. Por muitas vezes esse tipo de estratégia esbarra com
as políticas locais, de forma a dificultar a atuação da Universidade nos espaços sociais.

A interiorização nos remete a pensar as novas necessidades que o novo público


universitário tem apresentado. É preciso se pensar uma política de financiamento estadual que
dê conta das particularidades vivenciadas pelos jovens estudantes de todo o estado. Pois o
estudante da UPE demanda de problemas particulares a sua região, uma demanda posta
historicamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerou-se na pesquisa um panorama significativo das políticas educacionais nesse


período. A tocante democratização ao acesso fez decorrer dele o quesito da permanência dos
estudantes no ensino superior, mas a ampliação do processo de interiorização das IES se
intensifica, numa lógica contraditória frente ao projeto classista.

O projeto corroborou com a lógica mercadológica nos limites do projeto educacional


dominante, no discurso da democratização ao acesso disseminado pelo Estado, e, sobretudo,
utilizado como instrumental para garantir a produtividade das Universidades, sejam elas
federais ou estaduais, mas que seguiu sem dar prioridade a qualidade estrutural do ensino

33
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

A pesquisa tratada propiciou, portanto, resgatar um pouco do histórico da instituição


UPE (Universidade de Pernambuco), engendrando um pouco de suas particularidades no que
diz respeito ao processo de interiorização e as suas contradições latentes. Sendo esta, uma
instituição estadual, (característica que acirra ainda mais os problemas oriundos do processo
contrarreformista) que segue uma lógica de gestão e avaliação institucional pautada na lógica
empresarial de avaliação e produtividade, por acompanhar as tendências do contexto nacional
– ainda que de forma particular.

Portanto, ajudou na compreensão da intensificação da interiorização/expansão do


ensino superior nos anos 2000, e as interfaces deste processo na Universidade de
Pernambuco – num processo que vai desde a reestruturação de campi e abertura de novas
unidades no interior do estado de Pernambuco, apontando para uma nova fase de expansão
das universidades, em especial as estaduais. Um processo que em segundo plano mostra
melhor as interfaces do sucateamento do ensino superior no âmbito nacional.

REFERÊNCIAS

ANDES-SN/ Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior. As novas
faces da reforma universitária do governo Lula e os impactos do PDE sobre a educação
superior. Caderno ANDES 25. Brasília: 2007.
LIMA, Kátia Regina de Souza. Reforma da educação superior nos anos de contra-revolução
neoliberal: de Fernando Henrique Cardoso à Luís Inácio Lula da Silva. Tese de doutoramento.
Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense,
UFF. Niterói, 2005.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. Apresentação de Paul Singer; tradução de Carlos
Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo. 2 ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1985.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

34
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

MINTO, Lalo Watanabe. A educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior


no Brasil. 1 ed. – São Paulo: Outras Expressões, 2014.
MOTA, Ana Elisabete ET AL. O novo desenvolvimentismo e as políticas sociais na America
latina. In: As ideologias da contrarreforma. Recife: Ed. Universitaria da UFPE, 2010.
NETTO, José Paulo. A questão social na América Latina. In: Temporális, Ano 9, N° 18.
Brasília: ABEPSS, 2007.
NEVES, L. e FERNANDES, R. Política neoliberal e educação superior, in: NEVES, L. (org.) O
empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990.
São Paulo: Xamã, 2002, p. 21-40.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense;
Publifolha, 2000.
ROMANELLI, Otaíza. História da educação no Brasil (1930/1973). 6ª ed. Petrópolis: Vozes,
1984.

35
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA NO INTERIOR DO SERVIÇO


SOCIAL BRASILEIRO: TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Everton Melo da Silva


(Mestre em Serviço Social/UFAL)

Clarissa Andrade Carvalho


(Doutora em Serviço Social/PUC-SP)

Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos


(Mestre em Serviço Social/UFS)

Gláucia Farias Melo


(Discente em Serviço Social/UFS)

Mayara Conceição Reis Santana


(Discente em Serviço Social/UFS)

Débora Santana.
(Discente em Serviço Social/UFS)

RESUMO: O presente artigo abrange dois objetivos: primeiro,


compreender as categorias emancipação política e emancipação
humana no pensamento marxiano e marxista; segundo, como esses
fundamentos são discutidos pelo Serviço Social em seu projeto
profissional, que tem como horizonte a defesa da emancipação
política e como estratégia na sociabilidade capitalista a defesa da
emancipação humana. O artigo é resultado da pesquisa bibliográfica
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),
desenvolvida no Departamento de Serviço Social (DSS) da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) 2016/2017. As reflexões
desenvolvidas neste artigo são embasadas em Marx e em autores
marxistas.

Palavras-chave: Emancipação Humana. Emancipação Política.


Serviço Social. Estado.

36
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

INTRODUÇÃO

O Serviço Social adentra a década de 1990 com um projeto profissional, fruto de um


processo de amadurecimento teórico, metodológico, prático e ético-político, fundamentado no
pensamento marxiano (IAMAMOTO, 2008, 2011; NETTO, 2005, 2001a; BARROCO, 1996).
Este projeto está materializado no aparato legal da profissão, quais sejam: o Código de Ética
Profissional de 1993, a Lei de Regulamentação da Profissão nº 8662/93 e as Diretrizes
Curriculares do curso de Serviço Social da ABEPSS de 1996.
A discussão aqui apresentada é resultado da pesquisa bibliográfica do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), desenvolvida no Departamento de
Serviço Social/UFS a qual teve como objetivo discutir os principais fundamentos da
emancipação política e da emancipação humana no Serviço Social brasileiro, estudando-os a
partir da obra de Karl Marx “A questão judaica” de 1844. Fez-se necessário também detectar as
principais produções bibliográficas relacionadas a esse tema nos periódicos do Serviço Social,
identificando as consonâncias e as dissonâncias dessas produções bibliográficas com os
fundamentos marxianos, além de identificar as principais contribuições desta discussão para o
Serviço Social brasileiro.
A investigação teve como fonte as produções bibliográficas do Serviço Social. O
universo da pesquisa foram os artigos científicos (impressos e online) dos periódicos “Serviço
Social e Sociedade” e “Temporalis” no período de 1990 a 2015. A escolha destas revistas como
fonte de pesquisa se deu por serem as revistas de maior representatividade do Serviço Social
brasileiro. O recorte temporal (1990-2015) justifica-se pelo momento de amadurecimento
intelectual da categoria profissional a partir dos anos 1990 com a consolidação da tradição
marxista e do início de desenvolvimento de estudos de categorias marxianas.

37
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

DESENVOLVIMENTO

APONTAMENTOS SOBRE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA NA


OBRA “A QUESTÃO JUDAICA” DE KARL MARX

Karl Marx (1818-1883) desenvolveu, no conjunto de suas obras, uma teoria social que
contribui no processo de desvelamento do real, na crítica à sociabilidade burguesa e na
reflexão de categorias concretas e históricas que fundamentam nossa sociabilidade. Os seus
primeiros escritos refletem seu pensamento filosófico-ontológico, em que ele procura entender
a ontologia do ser social a partir do trabalho, elemento fundante da sociabilidade humana; do
mesmo modo, concebe a história como processo ativo na vida dos homens.
Marx se dedica sobre a discussão da emancipação política e emancipação humana em
seu ensaio “A questão judaica”, escrito em 1843 e publicado em 1844 nos Anais Franco-
Alemães. Na polêmica – e ruptura – com Bruno Bauer sobre a questão da emancipação política
dos judeus na Alemanha, Marx realiza um profícuo debate sobre a relação entre Religião e
Estado moderno9 e os direitos do homem e do cidadão, além de problematizar a real
emancipação dos homens através da radicalização da propriedade privada, o que Marx chama
da verdadeira emancipação humana.
Segundo Netto (2009), “A questão judaica” diz respeito a condição cívico-política dos
judeus na Alemanha, onde se encontravam restringidos e constrangidos passando a ter
reivindicações com base liberal. “A questão determinada era, precisamente, a ‘questão judaica’.
Ela dizia respeito a um problema que estava medularmente vinculado à miséria alemã: a
condição cívico-política dos judeus na Alemanha.” (NETTO, 2009, p. 22).
Até determinado momento a discussão sobre ser favorável ou não aos judeus não tinha

9
“A partir da divisão da sociedade entre classes com interesses antagônicos, foi necessária a criação de uma
instituição social que protegesse o interesse da classe dominante, que protegesse a propriedade privada. O
Estado nasceu com esse objetivo. Em sua essência, ele pertence à classe econômica dominante, que, por deter
os meios de produção e a propriedade privada, tornou-se também a classe politicamente dominante. A razão de
ser do Estado é esta: manter o domínio de uma classe sobre a outra através do poder político da classe
economicamente dominante”. (SILVA, 2016, p. 6).

38
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

sido levantada. Mas, eles eram um grupo que estava se destacando devido ao
desenvolvimento adquirido através do comércio, ou seja, possuíam um determinado poder
econômico.
Mesmo sendo possuidor de poder econômico, o judeu era impedido de exercer os seus
direitos civis, e essa restrição se dava somente pelo fato de serem judeus, ou seja, eles
detinham poder econômico, mas não detinham o poder político. Com isso, os judeus buscavam
se emanciparem políticamente. Dito de outro modo, aos judeus era vedado o direito de exercer
direitos civis que qualquer outro cidadão cristão possuía, além de ficarem impedidos também
de exercer qualquer função pública em toda a Confederação; aos judeus era vedada a
emancipação política (NETTO, 2009).
Conforme Mehring (2014), os judeus exigiam a emancipação política para o judaísmo,
mas não queriam perder a posição privilegiada que tinham. Essa reivindicação fez com que
Feuerbach classificasse o judaísmo como uma religião egoísta. Bruno Bauer fez uma análise
semelhante a essa, mas os dois teóricos analisaram por vias diferentes. Enquanto Feuerbach
explicou o caráter da religião judaica, através das características dos judeus, Bauer via a
mesma questão judaica como exclusiva da teologia.

Assim como os cristãos, declarou, os judeus podem chegar à liberdade apenas


superando sua religião. Devido a seu próprio caráter, o Estado cristão é incapaz
de emancipar os judeus, Ao mesmo tempo, os judeus não podem se emancipar
devido ao seu próprio caráter religioso. Cristãos e judeus devem parar de serem
cristãos e judeus se querem ser livres. (MEHRING, 2014, p. 91).

Sobre tal questão, Marx foi o teórico a fazer uma crítica radical. Para ele, a discussão
não deveria concentrar-se somente em quem seria emancipado e em quem deveria emancipar,
mas que tipo de emancipação se tratava, se era uma emancipação política ou humana. E mais,
ele nos chama a atenção para a existência de uma diferença entre as duas emancipações,
argumentando que em alguns Estados, cristãos e judeus já tinham adquirindo a emancipação
política, mas ainda não detinha a emancipação humana.

39
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Bauer e Marx tinham fundamentos diferentes. Para o primeiro, a emancipação não é


uma escolha perspicaz em um Estado cristão, pois o próprio caráter religioso deste Estado não
permitia alcança-la (NETTO, 2009). Assim, Bauer considerava inconveniente a reivindicação
dos judeus.

Para Bauer, a reivindicação dos judeus para que o Estado abra mão de sua
exigência e condição religiosa só teria legitimidade e sentido se os judeus,
previamente, abrissem mão de sua própria exigência e condição religiosa.
Ademais, na medida em que se conservam como judeus, os judeus se excluem
da comunidade humana: auto isolam-se na escala em que se consideram e que
se identificam como um povo eleito, privilegiado. (NETTO, 2009, p. 23).

Netto (2009) afirma que, para Bauer o cristianismo era uma religião universal, então,
seria mais viável o povo cristão alcançar a emancipação ao invés dos judeus, pois ao
contrário do cristianismo, o judaísmo detinha um caráter particular. Em outras palavras, para
ele o judeu é menos digno de ser emancipado do que o cristão.
Inegavelmente, Bauer analisava o judaísmo através do caráter religioso, já Marx
analisava através das características próprias dos homens. Para Marx, a emancipação
política não estava atrelada ao desligamento do homem com a religião, ou seja, para se tornar
emancipado, o judeu não precisaria deixar de ser judeu nem o cristão deixar de ser cristão, a
emancipação política estava ligada ao Estado, assim, este deveria ser laico, sem religião.

Marx não hipoteca a conquista da emancipação política dos judeus à renuncia


deles à sua religião e à sua cultura: afirma que podem se emancipar
politicamente sem abdicar delas; mas a emancipação política (na medida em
que não é emancipação humana) não os tornará humanamente livres – eles
continuaram submetidos a um constrangimento que não é só deles, é o
constrangimento geral que pesa sobre todos os membros da sociedade civil e do
seu Estado (NETTO, 2009, p. 27).

A emancipação política era a causa do Estado Moderno, pois para se emancipar


politicamente era preciso se livrar das amarras da religião, por isso, o antigo Estado, àquele

40
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

que era essencialmente cristão, caracterizava-se um Estado ultrapassado, que ainda não tinha
se desenvolvido plenamente (MEHRING, 2014). O novo Estado, ou Estado Moderno, tornou-se
novo justamente por ter atingindo o desenvolvimento pleno, e nele nem cristãos, nem judeus
precisariam deixar de serem cristãos ou judeus, pois somente o Estado deveria perder o
caráter teológico (MEHRING, 2014). Assim, a partir do Estado moderno foi acrescentado a
religão o caráter particular (âmbito privado).

A emancipação política dos judeus, dos cristãos, dos homens religiosos em


geral, era a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e da religião
em geral. O Estado pode se livrar dessa trava sem que o homem, como tal, se
veja livre dela, e aí está o limite da emancipação política. (MEHRING, 2014, p.
92).

Mehring (2014) continua explicando essa lógica do Estado político, afirmando que todos
os conflitos que existiam na sociedade, fossem eles por questões materiais ou ideológicas,
tinham uma única causa, o Estado político e sociedade burguesa. E existia um jogo no qual,
os homens ganhavam liberdade religiosa, mas não eram libertos da religião, ganhavam
liberdade à propriedade, mas não eram libertos dela. Essas contradições eram a essência
deste Estado moderno e, logo, a essência da emancipação política. Por outro lado, Marx
(2010, p. 34) afirma que “[...] o Estado cristão, por sua própria essência, não pode emancipar
o judeu, mas arremata Bauer, o judeu, por sua própria essência, não pode ser emancipado.
Enquanto o Estado for cristão e o judeu for judaico, ambos serão igualmente incapazes,
tanto de conceder quanto de receber a emancipação”.
A emancipação humana, dentro desses padrões de sociedade, se faz impossível. Para
ela se faz necessário que o homem individual se reconheça em sua totalidade, enquanto ente
genérico. Marx (1983 apud Mehring, 2014, p. 93-94, grifos originais) faz a distinção entre
emancipação política e emancipação humana da seguinte forma:

A emancipação política é a recuperação do homem, por um lado, a membro da

41
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

sociedade burguesa, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral. Mas a


emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem
individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornando ente
genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu
trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver
reconhecido e organizado seus “forces propres” como forças sociais e, em
consequência não mais separar de si mesmo a força social na forma da força
política.

Dessa forma, Marx chegou a um ponto essencial na discussão indo até as raízes da
relação entre a sociedade e o Estado. Apontou que o Estado existia para atuar sobre as lutas
do indivíduo com ele mesmo e com os outros indivíduos e suas particularidades, e que a
questão religiosa possuía um caráter puramente social. Ressaltou também que os indivíduos
apesar de parecerem livres ainda eram presos e alienados. Eram alienados à propriedade, à
indústria e à religião. Eram alienados ao que parecia conduzi-los à própria liberdade.

RELAÇÃO ENTRE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E HUMANA E O SERVIÇO SOCIAL

No presente tópico explicitaremos brevemente a análise dos fundamentos da


emancipação política e da emancipação humana no Serviço Social brasileiro tratadas em 05
artigos10, que integram o universo da pesquisa, nos quais, se fez possível perceber que, a
concepção dos autores convergem com a problematização extensiva do caráter do Estado
burguês, especificamente o Estado neoliberal, explicitada por Mészáros, principalmente em
sua obra “Para além do capital”, utilizada para abordar o desafio indicado por Lessa (1998, p.
136, grifos nossos): como articular a intervenção profissional desenvolvida no espaço
privilegiado do Serviço Social, o Estado burguês e suas políticas sociais, instituído para dar

10
Cabe ressaltar que do universo total da pesquisa identificamos, através dos critérios metodológicos, apenas 05
artigos que fazem relação entre a emancipação política e a emancipação humana e o Serviço Social, quais sejam:
Lessa (1998), Lessa (2003), Paniago (2003), Stampa (2011) e Lacerda (2014). Foram traçados dois objetivos
específicos: identificar as consonâncias e dissonâncias das produções bibliográficas do Serviço Social com os
fundamentos marxianos; e identificar as principais contribuições desta discussão para o Serviço Social brasileiro.

42
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

sustentação à propriedade privada e onde só é possível o alcance da emancipação política


(cidadania), “com uma atuação, cujo projeto profissional, adota por horizonte a emancipação
humana” que requer, por sua vez, a superação da propriedade privada e a realização do
trabalho como fonte de liberdade?
Essa é a questão central que se coloca da relação entre emancipação (política e
humana) e o Serviço Social na sociabilidade burguesa contemporânea. Nesse sentido, Lessa
(1998, p. 136) nos alerta que:

É no espaço estatal, predominantemente, que o Serviço Social vai se


desenvolver e atuar com maior expressão, o que coloca para o conjunto da
profissão o difícil – e, em certo sentido, rico – problema de como articular, numa
práxis socialmente viável, o Estado e suas políticas públicas com uma atuação
que adota por horizonte a emancipação humana. A convivência quotidiana com
essa questão faz do Serviço Social um palco privilegiado para a discussão do
papel do Estado na sociedade contemporânea, da relação possível do Estado
com os projetos emancipatórios e, por fim, do caráter do espaço porventura
existente no interior do Estado para a acumulação de forças sociais visando uma
transformação revolucionária da sociedade.

Assim como Marx em “A questão judaica”, os autores dos artigos analisados dissertam
sobre os limites da emancipação política e com base em Mészáros ressaltam a impossibilidade
de o Estado burguês incidir sobre a desigualdade, sobre a exploração entre as classes; até
porque o Estado surge para defender a propriedade privada e a exploração do homem pelo
homem, conformando as relações antagônicas das classes fundamentais (classe explorada x
classe exploradora), esse é seu caráter econômico e político11.
Neste sentido, Lacerda (2014, p. 13-14) afirma que:

Não cabe ao Estado, muito menos ao Estado burguês em plena crise estrutural
do capital (Mészáros, 2009), emancipar os indivíduos de suas penúrias. Antes,

11
É fundamental alertar aqui, com base nos fundamentos marxianos, que compreendemos a economia enquanto
produção e reprodução social.

43
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

esta situação é condição para a existência daquele, e a superação dos dramas


humanos não se dará pela exclusiva via política. Não há decisão política, lei ou
norma que irá refrear o processo de acumulação capitalista que torna natural a
esta sociedade a fome, a violência, o desemprego, em suma, a desrealização
humana. A superação das mazelas humanas só se torna possível com a
alternação da forma de produção da vida (economia) desta sociedade.

A categoria profissional do Serviço Social aponta a emancipação humana em seu


caráter teleológico, ou seja, compreende a emancipação humana como uma projeção a ser
alcançada coletivamente, fruto da luta em conjunto com a classe trabalhadora, como podemos
observar em Stampa (2011, p. 187):

Tais desafios projetam a necessidade de um Serviço Social que esteja atento


aos interesses da classe trabalhadora, que não perca de vista o compromisso
ético-político assumido em seu projeto profissional e esteja antenado ao
movimento consciente de se vincular a outros movimentos – locais, regionais,
nacionais e ao redor do mundo – como forma de sonhar novos mundos e o ideal
emancipatório.

Essa é a direção social do projeto profissional que a categoria do Serviço Social assumiu
nos anos 1990, como podemos observar no primeiro princípio do Código de Ética de 1993:
“reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas e a ela
inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais.” (CFESS, 2012,
p. 23). Além disso, o Serviço Social vincula seu projeto profissional “[...] ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e
gênero.” (CFESS, 2012, p. 24).
Os autores Lessa (1998; 2003), Paniago (2003), Stampa (2011) e Lacerda (2014)
reconhecem a necessidade de objetivação dessa teleologia, bem como os desafios históricos
para tal objetivação, contudo, destoam ao delinearem as estratégias políticas para a sua
materialização.

44
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

Apesar disso, por mais limitadas que sejam as condições materiais para se viver
a vida e fazer história, ao ser humano sempre cabe escolha entre alternativas
que são construídas mediante ações, limitadas a contextos históricos, mas que
materializam valores e rumos diferentes para a humanidade. Queremos chamar
a atenção para o fato de que o exercício profissional individual de cada
profissional dá materialidade a valores éticos e coloca a sociedade em
movimento. Isto porque cada ação individual determina a totalidade das
relações, e estas influenciam as ações individuais. Por isso é preciso pensarmos
de forma mais clara e menos leviana a direção social de nossa prática. Não só
porque trabalhamos especialmente na mediação dominados/dominação, mas
também porque parece que a leitura da realidade complexa que vivemos hoje e
o avenir são tarefas difíceis, assim como a escolha dos processos e das
estratégias de ação. (LACERDA, 2014, p.13-14).

Stampa (2011) e Lacerda (2014), por exemplo, compreendem, na nossa análise, que a
viabilização dos direitos do cidadão como mediação para alcance da emancipação humana, ou
seja, vislumbram o Estado como um espaço de disputa entre as classes sociais, configurando-
se, assim, em uma luta institucionalizada por via do Estado. Em nossa compreensão, o Estado
é um espaço essencial da classe dominante, e, desse modo, lutar e conquistar direitos, seja na
consolidação ou ampliação, não nos permite desvencilhar deste patamar de sociabilidade.

A estratégia de radicalizar a emancipação política para superar a “sociedade


burguesa” derrota-se a si própria. A radicalização da emancipação política
conduzirá a nada mais que uma sociedade mais radicalmente emancipada
politicamente, o que significa, sem maiores delongas, em uma regência mais
radical da propriedade privada burguesa sobre a reprodução social. A
emancipação humana não é a radicalização da emancipação política, mas sua
negação mais pura e frontal, sua negação mais radical possível na história: sua
superação. (LESSA, 2007, p. 50).

Desse modo, Lessa (2007) afirma que a luta contra a destruição dos direitos não é por
meio do Estado, mas sim a luta por uma sociabilidade na qual os direitos e a propriedade
privada serão superados, bem como o Estado. Com base neste mesmo raciocínio, trazemos as
seguintes questões para reflexão: podem os direitos fazer recuar a exploração a ponto de
eliminar a exploração entre as classes? (PANIAGO, 2003); na luta por direitos humanos

45
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

podemos “acumular forças” para transformar a sociedade capitalista? (LESSA, 2007); em qual
campo o Serviço Social deve se colocar na estratégia política? quais as estratégias políticas
que o Serviço Social pode adotar para a superação da propriedade privada?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exame da discussão dos fundamentos da emancipação política e da emancipação
humana no Serviço Social brasileiro, viabilizou a compreensão dos determinantes da realidade
social, principalmente, em seu cenário contemporâneo, bem como entender que a
emancipação política reduz o homem a membro-cidadão da sociedade burguesa, enquanto a
emancipação humana possibilita ao homem se reconhecer enquanto humano-genérico por
meio da radicalização da propriedade privada na vida dos homens. A análise dos dados
coletados possibilitou identificar os desafios do projeto profissional frente a conjuntura
contemporânea, principalmente em tempos de crise estrutural do capital, que atinge a esfera
política e social, processos que configuram uma conformação social com a ordem vigente,
endossando ainda mais o período contrarrevolucionário que vivemos.
Nessa direção, o projeto ético-político profissional do Serviço Social tem como valor
ético central a liberdade e ratifica o compromisso da profissão com a defesa dos direitos
humanos. Entretanto, não deixa de empreender o olhar crítico à ação dos direitos humanos
para responder os desafios da sociabilidade contemporânea cujos problemas não podem ser
solucionados nos marcos da sociedade burguesa, devido as suas bases materiais estarem
assentadas na apropriação privada dos produtos produzidos coletivamente.

REFERÊNCIAS
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de ética do/a assistente social. Lei
8.662/93 de Regulamentação da profissão. 10 ed. Brasília: CFESS, 2012.

46
IX ENCONTRO DE GRUPOS DE ESTUDOS E PESQUISAS MARXISTAS

LESSA, S. O revolucionário e o estudo: por que não estudamos? São Paulo: Instituto Lukács,
2014. p. 67-78.
MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MEHRING, F. Karl Marx – A história de sua vida. 2 ed. São Paulo: José Luís e Rosa
Sundermann, 2014. p. 79-109.
NETTO, J. Prólogo à edição brasileira. In: KARL, Marx. Para a questão judaica. São Paulo:
Expressão Popular, 2009. p. 09-38
SILVA, E. M. “Vale a pena escravizar e explorar os homens”. In: I Seminário Internacional
sobre trabalho e reprodução social: crise contemporânea, desafios do conhecimento e lutas
sociais. Maceió, AL. 2016.
REFERÊNCIAS DOS ARTIGOS ANALISADOS
LACERDA, L, E, P. Exercício profissional do assistente social: da imetiacidade às
possibilidades históricas. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n. 117, jan/mar,
2014.
LESSA, S. Beyond Capital: Estado e capital. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez,
ano XIX, n.56, mar, 1998.
______. A emancipação política e a defesa dos direitos. Serviço Social e Sociedade. São
Paulo: Cortez, ano XXVIII, n. 90, jun, 2007.
PANIAGO, M, C, S. As lutas defensivas do trabalho: contribuições problemáticas à
emancipação. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, ano XXIV, n.76, nov, 2003.
STAMPA, I. Compromisso de classe por uma sociedade emancipada- notas para reflexão.
Temporalis, n. 22, 2011.

47

Você também pode gostar