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A pandemia não nos fez pessoas melhores

Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior

Com uma variante do covid-19, batizada de “omícron”, assombrando o mundo, vejo uma
combinação de elementos que lembram o fim de 2019 e começo de 2020. A ameaça surge em
um país que nos parece distante, chega a Europa e nós começamos a esboçar um sinal de
preocupação, muito difuso e tímido. Poderíamos nos apressar em tomar precauções, pois já
temos trágica experiência, mas o que se vê é que não aprendemos nada com o que já
aconteceu até aqui.

A primeira reflexão que precisamos fazer vem do fato de que a variante que agora nos
preocupa aparentemente tem origem no continente africano. Os países pobres da África, bem
como de outras partes do planeta, apresentam menores taxas de vacinação, porque a
indústria farmacêutica privilegiou os ricos. Quem não fugiu das aulas de Biologia já deveria
imaginar que isso proporcionaria terreno fértil para a evolução do vírus, que é sempre muito
rápida. Como ele não conhece essa invenção humana arbitrária chamada fronteira nacional,
chegou à Europa e já está no Brasil. A desigualdade global promovida pelo capitalismo cobra
seu preço: não somos mundos isolados, que se dividem pelas riquezas que possuem; se uns
sofrem com a falta de recursos, em algum momento o preço disso recairá sobre todos.

Isso também serve para as notícias falsas a respeito do uso de máscaras, do lockdown e,
principalmente, sobre as vacinas. Esse fenômeno é global e atingiu também os países centrais
do capitalismo. O grande acesso a várias marcas do imunizante não impediu que os Estados
Unidos, por exemplo, tivesse uma proporção de vacinados (59,4%) ligeiramente menor que a
do Brasil (63,3%, segundo o Our World in Data), considerando não só as diferenças de poder
econômico e político – contamos aqui com uma sistemática política negacionista por parte do
presidente Bolsonaro, além das já convenientemente esquecidas negociações suspeitas
envolvendo vacinas.

Esse aspecto da governança brasileira é muito importante para nós. Com nova ameaça às
portas, vemos o governo federal ser lento em fechar fronteiras e resistir à ideia de exigir a
comprovação do esquema vacinal completo para quem entra no País, mesmo com
recomendações da Anvisa.

Fala-se em cancelamento do carnaval apenas para agradar a grupos conservadores que,


historicamente, não veem com bons olhos a data tão popular, considerando-a mera
“depravação”. Não vemos a mesma mobilização pelo cancelamento de eventos natalinos
públicos, nem de festas de ano-novo, ou shows e rodeios.

Interesses imediatos ou que atendam apenas a um grupo ou outro mais uma vez se
sobressaem aos coletivos. De nada serviram as afirmações de solidariedade, ou de que o
isolamento traria autoconhecimento e fraternidade, como se um mundo melhor fosse surgir
magicamente a partir da catástrofe. Continuamos egoístas, preocupados em competir ou em
sobreviver, porque a sociedade capitalista continua impondo a nós a lógica da posse acima da
vida. Quem já era rico, ficou mais rico ainda; a todo o restante, ficou o desemprego ou o
trabalho precário, com a renda corroída pela inflação e uma sensação de culpa, pois os
aparelhos ideológicos dizem o tempo todo que a penúria é de responsabilidade dos indivíduos,
apenas. Precisamos entender que estamos reféns de um sistema perverso e temos que mudar
isso agora, antes que mais mortes ocorram e que esse modelo social nos reduza a máquinas
que trabalham, comem e tentam dormir.

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