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A Prova Cartesiana da Existência da Matéria

(Desmond M. Clark)

No final de 1639, quando tinha quarenta e três anos de idade, Descartes começou a escrever o
que chamou provisoriamente de “discurso”, no qual planejava desenvolver sistematicamente
alguns dos pensamentos sobre a metafísica que ele havia delineado dez anos antes. Este
ensaio apareceu dois anos depois como as Meditações sobre a Primeira Filosofia (1641). No
entanto, esta não foi a primeira vez que Descartes revelou algumas de suas ideias metafísicas
impressas. O Discurso do Método, publicado em francês em 1637, incluiu uma versão sinótica
de seus argumentos sobre Deus e a alma humana (que é o que Descartes quis dizer com o
termo "metafísica"). Em uma reflexão posterior em 1639, ele pensou que seria aconselhável
publicar uma versão mais extensa dos mesmos argumentos em latim e, assim, contribuir para
os objetivos apologéticos da Igreja Católica em defesa de seus dogmas religiosos. Enquanto as
razões precisas para o seu empreendimento público em metafísica nesta fase sua vida
intelectual permanece incerta, é indubitável que ele havia pensado em Deus e na alma
humana durante os anos de 1629-39 e que agora ele estava voltando a esses temas para expor
suas ideias de maneira mais sistemática e completa. Além disso, a escolha do latim tornaria
sua visão acessível para estudantes universitários em toda a Europa.

É igualmente incontestável que, até este ponto, Descartes nunca duvidou da existência do
mundo material e não estava prestes a começar a ter tais dúvidas em 1639. Sua atitude em
relação aos argumentos céticos sobre a existência do mundo físico é bem expressa no
parágrafo final da Meditação VI, onde ele se refere às “dúvidas hiperbólicas dos últimos dias
[que] devem ser rejeitadas como ridículas” (AT vii, 89). Apesar dessa declaração clara, muitos
de seus primeiros leitores ficaram tão impressionados com a declaração cartesiana das
objeções céticas contemporâneas na Meditação I (como muitos leitores desde então) que o
impacto dessas objeções durou muito mais do que o sucesso qualificado de Descartes em
refutá-las.

O desafortunado autor reclamou dessa incompreensão de seu projeto, como ele fez de muitos
outros. Por exemplo, ele havia tentado da melhor maneira possível provar a existência de Deus
e foi recompensado por seus esforços ao ser acusado pelos teólogos calvinistas de ateísmo. Da
mesma forma, ele construiu os melhores argumentos que poderia pensar contra as opiniões
céticas difundidas de sua época, e foi recompensado sendo descrito como um cético, por
filósofos e teólogos. Sua queixa é compreensível, mesmo que as reações de seus leitores
também não sejam completamente infundadas. Havia sinais de exasperação em sua queixa ao
padre Dinet, quando ele implorou que ele contivesse a crítica injustificada do padre Bourdin, a
quem ele considerava um jesuíta particularmente pouco sofisticado. Ele ressaltou que, quando
o mais autoritário entre os autores antigos sobre assuntos médicos, Galeno, discutia as causas
da doença, ninguém achava razoável acusá-lo de dizer às pessoas como ficar doente.
Exatamente da mesma maneira, Descartes afirma: “Eu não propus nenhuma razão para
duvidar com a intenção de ensiná-las, mas, pelo contrário, para refutá-las” (AT vii, 573-4).

Assim, Descartes não foi pessoalmente tentado pelo ceticismo quanto à existência da matéria,
nem foi filosoficamente persuadido da plausibilidade dos argumentos em favor de tal
ceticismo. Na verdade, todo o seu trabalho durante os anos antes de 1639 assumiu como
óbvio que o mundo físico existe e que pode ser observado, manipulado, investigado e, com
orientação apropriada, explicado. Durante estes anos, enquanto vivia nas Províncias Unidas,
Descartes parece ter dedicado quase todo o seu tempo a escrever o livro que pretendia ser um


In: Blackwell Guide to Descarte’ Meditations. Org: GAUKROGER, Stephen. Blackwell Publishing.
Australia, 2006. pp. 160 – 178.

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resumo de tudo o que ele descobriu até agora sobre o universo, e que foi chamado
apropriadamente de O Mundo. No entanto, a condenação de Galileo em 1633, justamente
quando O Mundo em forma de rascunho estava pronto para ser mostrado aos amigos, causou
uma brusca mudança de planos. Foi retido até mesmo dos amigos mais solidários de
Descartes, como seu correspondente dedicado em Paris, Marin Mersenne, ou o político
holandês e homem de letras, Constantijn Huygens. Muitos leitores simpatizantes pediram a
Descartes que liberasse para publicação a teoria geral que fornecia uma base para toda a sua
física e fisiologia. Seus pedidos caíram em ouvidos surdos. Ele se recusou a deixá-los ler o
mundo extraoficialmente. No entanto, esse ato de autocensura não representou uma
mudança de mentalidade de sua parte sobre o conteúdo de O Mundo. Descartes lançou
algumas de suas teorias nos ensaios científicos que foram publicados em 1637, e usou-o
novamente para escrever os Princípios de Filosofia (1644), enquanto continuava a manter sua
decisão de não publicar O Mundo em seu formato original. De fato, permaneceu inédito
durante toda a sua vida e apareceu postumamente somente em 1664.

O Mundo ou, pelo menos, a versão dele que foi editada pelo executor literário de Descartes
após sua morte, contém sua teoria da matéria e a primeira versão das três leis da natureza que
apareceram posteriormente nos Princípios (Parte II). Se alguém deseja saber, portanto, o que
ele estava reivindicando sobre a matéria nas Meditações, ou por que ele estava discutindo
como estava, é preciso primeiro olhar para O Mundo, um livro inacabado que ele guardou ao
longo das duas últimas décadas de sua vida e ao qual ele frequentemente se referiu como sua
"física".

A Matéria em O Mundo

Nós conhecemos as coisas pelas suas propriedades. Este fato aparentemente óbvio camufla
um problema filosófico que se tornou proeminente após Galileu e permaneceu central nas
discussões filosóficas ao longo do século XVII. Esse problema é: como podemos distinguir entre
as propriedades aparentes e reais das coisas, entre como as coisas aparecem para nós e como
elas realmente são na realidade? Poderíamos supor, é claro, que as coisas têm todas as
propriedades que parecem ter, ou que existem características objetivas em cada realidade que
correspondem exatamente ao modo como as experimentamos. O exemplo usado por Galileu
para lançar dúvidas sobre essa suposição, e que foi reutilizado por Descartes com o mesmo
efeito, foi a sensação que experimentamos quando sentimos cócegas. Se alguém passar uma
pena levemente sobre qualquer parte sensível do nosso corpo, temos uma sensação de
cócegas característica que é fácil de reconhecer, mas muito difícil de descrever. Sem tentar
descrever sua sensação qualitativa, denotamos isso com uma palavra que envolve uma causa
externa apropriada; se temos a sensação na ausência de uma causa externa familiar,
geralmente temos motivos para nos preocupar com a nossa saúde.

No entanto, ninguém é tão ingênuo a ponto de supor que exista, por exemplo, alguma
propriedade em penas que corresponda exatamente a essa sensação de cócegas. Assumimos,
antes, que o efeito da pena tocando levemente nossa pele de alguma forma causa uma
percepção definida e reconhecível, que não se parece literalmente com nada na pena ou em
seu movimento. Se passarmos das sensações de cócegas para nossa experiência de luz, cores e
assim por diante, e se perguntarmos quais são as propriedades objetivas da luz que nos levam
a ter as sensações que temos, Descartes tira a conclusão plausível que é sugerida pelo exemplo
das cócegas. “Agora não vejo nada que nos leve a crer que o que está em objetos que dão
origem à sensação de luz seja mais semelhante àquela sensação do que as ações de uma pena
em relação à sensação de cócegas que provoca.” (AT xi, 6).

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Assim, conhecemos as coisas pelas suas propriedades, mas raramente, ou nunca, conhecemos
essas propriedades direta ou imediatamente. Parecemos, ao contrário, saber como as coisas
nos parecem, e temos que inferir, de alguma forma, das aparências à realidade. Isso envolve
uma inferência para a melhor explicação. Nós postulamos que as coisas têm tantas
propriedades quantas forem necessárias para explicar todas as propriedades que elas parecem
ter. Neste exercício, devemos observar as restrições de parcimônia e não postular mais
propriedades do que as exigidas. A necessidade é o fator fundamental aqui; quanto menos
propriedades atribuirmos às coisas, melhor.

Este é um esboço muito breve do primeiro passo na construção cartesiana de uma teoria física
geral no mundo. Ele abandonou muitas das propriedades que os filósofos escolásticos haviam
assumido na matéria - por exemplo, que a matéria tinha uma propriedade distinta de peso – e
concordou em postular apenas quaisquer propriedades que lhe parecessem necessárias para
completar o projeto de explicar todos os fenômenos naturais do universo. Descartes não era
renomado por sua modéstia intelectual.

Consequentemente, ele não percebeu que a ambição de seu plano não poderia ser realizada
com as restrições conceituais extremamente parcimoniosas com as quais operava. Então
aceitou que a matéria era uniforme em todo o universo, que era dividida em partes de vários
tamanhos (ele achava que três tamanhos eram suficientes), e que suas partes se moviam de
várias maneiras e colidiam umas com as outras. Isso significava que ele precisava acrescentar
leis do movimento para explicar (a) por que partes da matéria se movem como fazem e (b) o
que acontece quando colidem umas com as outras em diferentes circunstâncias. Com esses
pressupostos em cena, Descartes iniciou a tarefa de explicar todos os fenômenos naturais que
foram observados até então, incluindo a ação da luz, as cores do arco-íris, a aparente atração
ou repulsão das pedras magnéticas, o fato de os corpos caírem em direção à terra e assim por
diante. Em um nível macro, ele planejou explicar como os planetas do sistema solar foram
formados, por que se movem em suas órbitas características e por que devemos acreditar que
o universo se estende indefinidamente nisso que parece ser espaço vazio.

Avaliando retrospectivamente, não surpreende que Descartes tenha fracassado nesse projeto
extremamente ambicioso ou, pelo menos, que não tenha conseguido progredir tanto quanto
esperava originalmente. Ele permitiu-se muito poucas propriedades na matéria para explicar
muitas das realidades para as quais voltou seu espírito investigativo. Durante as duas décadas
em que repertoriou as propriedades da matéria, não havia compreensão das propriedades
elétricas ou químicas e não havia nem mesmo uma vaga sugestão de estrutura atômica ou de
uma tabela periódica de elementos. No entanto, as razões para a parcimônia cartesiana não
foram simplesmente conceituais. Não era que ele não pudesse pensar ou imaginar outras
propriedades. Tampouco sua relutância em postular propriedades na matéria era devida
simplesmente a uma falta de dados experimentais. Em vez disso, a atitude parcimoniosa do
filósofo inspirada por um conceito de explicação que era essencialmente correto.

Descartes não achava que pudéssemos explicar qualquer fenômeno natural pela alegação de
que foi causado por outra coisa que entendemos ainda menos do que o que tentamos explicar.
Também não podemos esperar explicar nada inventando um termo elegante, geralmente em
latim, que apenas redescreve o que justamente estamos tentando explicar. Por exemplo, é
impossível explicar como as coisas parecem coloridas para nós quando as olhamos, dizendo
que elas têm a “capacidade de se mostrar coloridas”, assim como não podemos explicar por
que as pílulas para dormir funcionam dizendo - igualmente de maneira não-informativa - que
eles têm uma “potência sonífera”. Descartes pensava que podia entender razoavelmente bem
por que os corpos em movimento continuam se movendo e como redistribuem a força de seu
movimento quando colidem com outros corpos. Sua ambição, então, era explicar todos os

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fenômenos naturais complexos em termos de tais realidades prontamente inteligíveis e
familiares e evitar a ilusão de explicar as coisas simplesmente redescrevendo-as em novos
termos aparentemente técnicos.

Assim, as propriedades fundamentais que eram predicadas de todas as partes da matéria


incluíam inicialmente apenas seu tamanho, figura, sua disposição no espaço ou orientação e as
estruturas cujas partes estão relacionadas quando combinadas em corpos maiores. Essas
propriedades foram usualmente limitadas pelos padrões do início do século XVII. Mesmo
Robert Boyle, que fez muito mais progressos no desenvolvimento da química do que Descartes
poderia sonhar, e que publicou a Origem dos Formatos e Qualidades dezesseis anos após a
morte de Descartes, limitou sua descrição da matéria ao seguinte: “cada um dos fragmentos
primitivos (...) deve ter dois atributos, sua própria magnitude, ou melhor, tamanho e sua
própria figura ou seu formato”(Boyle 1999–2000: v, 307). Ele acrescenta mais tarde “postura”
e “ordem” (ibid., 316). Assim como Boyle escreveu sobre “esses dois princípios grandiosos e
católicos de corpos, matéria e movimento” (ibid., 307), Descartes também se baseou na
matéria e no movimento para explicar todos os fenômenos naturais. Um dos problemas
imediatos que requeriam uma abordagem, portanto, era a origem do movimento e os modos
pelos quais se distribui no mundo natural.

Descartes baseou-se em um argumento familiar durante a década de 1630 para distinguir


entre matéria e movimento. Pode-se imaginar um pedaço de matéria que não está em
movimento e, portanto, o movimento não é uma propriedade intrínseca de qualquer porção
particular de matéria. Segue-se que deve ser uma propriedade distinta, que pode ou não ser
encontrada em várias porções de matéria. Isso sugeriu que a moção é acrescentada a qualquer
item específico a partir de algum agenciamento externo. Se a totalidade da matéria for
considerada de maneira semelhante, o movimento ainda deve ser considerado como um
acréscimo, um adicional. Descartes também pensou na totalidade da matéria como uma
substância naturalmente indestrutível. “O corpo, considerado em geral, é uma substância e,
portanto, nunca pode perecer” (AT vii, 14). Como se supunha que Deus fosse o criador da
matéria, era um simples passo atribuir também o movimento a seu agenciamento criativo.

Uma vez acrescentado à matéria, o movimento tinha uma estabilidade ontológica semelhante
à da matéria, no sentido de que não se autodestrói espontaneamente. Descartes assumiu que,
a menos que Deus aniquilasse matéria ou movimento, a matéria continuaria a existir
indefinidamente e o movimento que lhe foi adicionado pelo criador seria constantemente
redistribuído entre suas partes móveis e não móveis. Ele esclareceu este último ponto em uma
carta a Newcastle (março/abril de 1648): “Eu sustento que há uma certa quantidade de
movimento em toda a matéria criada, que nunca aumenta ou diminui. Assim, quando um
corpo faz outro corpo se mover, ele perde tanto de seu próprio movimento quanto contribui
para o do outro corpo”(AT v, 135). Isso vale até mesmo nos casos em que a mudança é
imperceptível. Por exemplo, se uma pequena pedra cair no chão e não ricochetear, ela deve
terá sacudido toda a terra quando perdeu seu movimento, mesmo que o impacto não tenha
sido percebido pelos observadores humanos.

Poder-se-ia levantar questões sobre se, além de estar em movimento ou em repouso, partes
da matéria incluiriam uma realidade distinta chamada “força”. Uma maneira plausível de ler os
textos consiste em supor que, para Descartes, a força é redutível de algum modo ao
movimento (ou repouso) ou às tendências dos corpos em movimento ou em repouso para
permanecer em qualquer condição em que se encontrem. Este ponto é abordado nos
Princípios da Filosofia (Parte II), onde Descartes define movimento como a transferência de
uma porção de matéria da vizinhança dos corpos em seu ambiente imediato para a vizinhança
de outros corpos. Ele distinguiu essa realidade simples - uma transferência de localização - da

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“força ou ação que provoca a transferência, para mostrar que o movimento está sempre no
corpo em movimento, em oposição ao corpo que engendra o movimento” (AT viiiA, 54). Ele
estava obstinado em não introduzir, neste ponto, qualquer entidade misteriosa como uma
possível explicação de movimentos corporais, tal como uma vontade por parte das porções de
matéria de se mover ou resistir ao movimento. Ele argumentou que os tradicionais relatos
sobre a gravidade cometiam esse erro, atribuindo estados intencionais a porções de matéria
ou imaginando cada porção caindo na terra como se fosse impelida por uma alma. Uma vez
rechaçado o erro, no entanto, ele parece não ter feito objeção em pensar em porções de
matéria, em movimento ou em repouso, como dispondo de uma propriedade que resultaria da
condição de movimento ou repouso, notadamente, uma força que poderia fazer com que
corpos se movessem ou resistissem ao movimento.

A função das leis da natureza, nesse contexto, era descrever várias maneiras pelas quais os
corpos se movem como resultado de serem afetados por outros corpos que os atingem. As
leis, portanto, descrevem a direção e a velocidade dos corpos em movimento como resultado
de diferentes tipos de colisão. Descartes oferece três princípios gerais de movimento, que ele
descreve como "leis da natureza," na Parte II dos Princípios, e sete descrições mais detalhadas
de colisões idealizadas entre porções da matéria de tamanhos e velocidades variados, que ele
descreve como “regras”. Esses recursos minimalistas (se fornecidos de uma forma mais
detalhada) esgotam a descrição cartesiana da matéria.

A Extensão como Propriedade da Matéria

A ideia de que a matéria pode ser entendida em termos de uma única propriedade definidora
foi provavelmente herdada por Descartes da tradição escolástica. Seja qual for a sua fonte, ela
apareceu como uma característica central de seu pensamento sobre o mundo físico, desde o
ensaio inacabado que agora é chamado de Regras (isto é, pré-1628), e continuou a dominar
muitas de suas discussões pelo resto da vida.

Há dois aspectos surpreendentes na discussão de Descartes sobre matéria e extensão nas


Regras: (a) primeiro, a análise depende do que pode ser imaginado; e (b) segundo, a alegação
de que, se alguém tenta resolver a questão por um recuso a conceitos, é provável que se
engane pela abstração filosófica. Descartes define “extensão”, neste contexto, como “o que
quer que tenha comprimento, largura e profundidade” (AT x, 442) e nos adverte, então, contra
a imaginação de um espaço estendido completamente vazio. “Alguém pode se convencer de
que não é autocontraditório que a extensão per se exista em si mesma, mesmo que tudo o que
se estende no universo fosse aniquilado” (AT x, 443). No entanto, isso seria um erro, "um juízo
incorreto da mente" se ignorasse o auxílio da imaginação. Descartes prossegue argumentando
que “extensão” e “corpo” denotam a mesma realidade. “Nós não formamos duas ideias
distintas em nossa imaginação, uma de extensão e outra de corpo, mas apenas a ideia única de
um corpo estendido” (AT x, 444).

Estas conclusões provisórias, embora nunca publicadas durante a vida de Descartes,


mantiveram sua validade para ele ao longo de sua carreira. Eles formaram a base de seu
argumento, nos Princípios, de que espaço e corpo são uma e a mesma realidade, de modo que
não faz sentido tentar imaginar algum limite para o universo. Se tentássemos imaginar um
limite para o universo físico, então o espaço além do limite teria as mesmas propriedades de
extensão que o corpo que ele delimita. As implicações teológicas desse argumento foram
contestadas pela rainha Christina da Suécia, em questões enviadas a Descartes dois anos antes
de assumir seus deveres oficiais como seu filósofo em residência. Descartes defendeu sua

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posição alegando que compartilhava dessa visão com o cardeal de Cusa e expôs seu
argumento da maneira mais simples possível.

“Quando examino a natureza dessa matéria, descubro


que consiste apenas em ser estendida em altura,
largura e profundidade, de modo que tudo o que tem
essas três dimensões faz parte dela. Não pode,
portanto, haver um espaço completamente vazio, isto
é, que não contém matéria, porque não poderíamos
conceber tal espaço a menos que o concebêssemos com
essas três dimensões nele e, portanto, como alguma
matéria. Pois se supomos que o mundo é finito,
imaginamos certos espaços além de seus limites que
têm três dimensões e que, portanto, não são puramente
imaginários (...), mas contêm matéria. E uma vez que
essa matéria não pode estar em qualquer outro lugar
senão no mundo, isso mostra que o mundo se estende
além dos limites que se queria atribuir a ele. Já que
não temos razão para provar e nem podemos conceber
que o mundo tem limites, eu o chamo de ‘indefinido’
(AT v, 52).”

Considerações semelhantes persuadiram Descartes a se opor às conclusões de Pascal, em


1647-8, mesmo depois do famoso experimento sobre o Puy-de-Dôme. Descartes concordou
com Pascal, como fizeram muitos outros na época, que uma coluna de mercúrio é suportada
em um tubo de Torricelli não porque a natureza tende a rejeitar o vácuo, mas porque o ar da
atmosfera aplica uma pressão equivalente que é igual ao peso da coluna de mercúrio. No
entanto, ele discordou sobre como descrever o aparente vácuo no topo do tubo. Como esse
"vácuo" tinha dimensões e, como apresentava outras propriedades de um corpo, ele
argumentava que ele deveria ser um corpo de algum tipo, em vez de um espaço
absolutamente vazio.

Essas considerações sobre a relação entre extensão e matéria constituíam parte das
considerações standard de Descartes sobre a matéria, que não apenas antecediam as
Meditações, mas que continuaram a figurar em todas as discussões subsequentes sobre o
problema mente-corpo e nas discussões sobre a natureza do espaço. Teria sido muito
surpreendente se eles desaparecessem repentinamente das Meditações e reaparecessem
repentinamente em escritos posteriores, como nos Princípios.

O “Corpo” nas Meditações

Nas Meditações, no decorrer do desenvolvimento de argumentos em favor dos dois objetivos


mencionados no subtítulo do livro - a saber, demonstrar “a existência de Deus e a distinção
entre a alma humana e o corpo” - Descartes teve ocasião de falar sobre a essência da matéria
e de oferecer um argumento famoso para apoiar sua crença na existência de corpos. Desde
que a conclusão de O Mundo e da publicação dos ensaios científicos de 1637, ele não tinha
dúvidas sobre se o mundo físico realmente existe. Ele deixa isso claro na Sinopse que prefacia
as Meditações. Tendo voltado seus esforços, na Meditação VI, para apresentar todos os
argumentos que permitem ao leitor concluir que as coisas materiais existem, ele acrescenta:

“O grande benefício desses argumentos não é, em minha


opinião, que eles provem o que eles estabelecem - a
saber, que realmente existe um mundo, e que os seres

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humanos têm corpos, e assim por diante - já que
nenhuma pessoa sensata duvidou seriamente dessas
coisas. O ponto é que, ao considerarmos esses
argumentos, percebemos que eles não são tão sólidos
ou transparentes quanto os argumentos que nos levam
ao conhecimento de nossas próprias mentes e de Deus.”
(AT vii, 15-16).

Os objetivos específicos deste ensaio sobre a metafísica eram ajudar os leitores a pensar
coerentemente sobre a natureza da mente humana e, por analogia, sobre a natureza e a
existência de Deus. Estes são normalmente tópicos muito difíceis, e os leitores podem ter
assumido que estamos menos certos sobre eles do que sobre realidades familiares da vida
cotidiana. Descartes queria transformar essa suposição em suas mentes. Queria afirmar que
estamos mais certos sobre alguns aspectos do nosso próprio pensamento e sobre a natureza
da mente humana do que poderíamos geralmente estamos sobre corpos físicos.

Se esse argumento funcionasse, no entanto, não tornaria duvidoso nosso conhecimento do


mundo físico ou, pelo menos, não o tornaria mais duvidoso do que antes. A estrutura do
argumento, nas Meditações, envolve contrastar nosso conhecimento do mundo físico com o
tipo de conhecimento direto e experiencial de nossas próprias mentes que Descartes afirma
ter; e depois argumentar que o último é ainda mais certo do que o primeiro. As duas
características do nosso conhecimento do mundo físico, já mencionadas acima, ou seja, que
nós conhecemos o mundo através de suas propriedades e que o conhecemos indiretamente,
são reutilizadas aqui no interesse dos objetivos primários e polêmicos das Meditações.

Descartes inclui “a essência das coisas materiais” como parte do título da Meditação V. Sua
breve discussão é insatisfatória. Parte da razão disso é que a estrutura do argumento nas
Meditações o impede, antes da Meditação VI, de discutir qualquer coisa além de suas próprias
ideias. Assim, em vez de especular sobre as propriedades da matéria, ele está confinado na
Meditação V a considerar “as ideias dessas coisas [isto é, corpos], na medida em que existem
no meu pensamento ”(AT vii, 63). Esta revisão de ideias revela que ele pode "distintamente
imaginar (...) a extensão de uma coisa quantificada em extensão, amplitude e profundidade"
(AT vii, 63), e que ele tem muitas outras ideias sobre a forma, número, ou movimento de
partes da matéria. Antes de desenvolver essas considerações, contudo, Descartes retrocede a
uma versão do argumento ontológico. Em suas objeções, Pierre Gassendi questionou se se
poderia supor tão prontamente, como os filósofos escolásticos o fizeram, que as coisas têm
essências imutáveis e, por implicação, que a matéria tem uma essência. (AT vii, 318-19). A
resposta de Descartes é tão inútil quanto a objeção original de Gassendi foi considerada
antipática.

No entanto, Descartes já havia dado uma versão mais longa desse argumento na Meditação II.
Assim, a despeito de seu título, a Meditação V pode tratar prioritariamente da essência de
figuras, como triângulos, em vez da propriedade essencial da matéria em geral. Se fosse lida
dessa modo, forneceria uma introdução natural ao argumento ontológico. O argumento
análogo, desenvolvido anteriormente na Meditação II, depende de uma revisão das
propriedades do pedaço de cera. O pedaço de cera, que podemos ver, cheirar, sentir e assim
por diante, é introduzido para contrabalançar a suposição de que tais coisas que são
conhecidas através da sensação são conhecidas de maneira mais confiável do que conhecemos
nossas próprias mentes. O argumento é executado do seguinte modo: se percebermos as
propriedades de um pedaço de cera, seu tamanho, forma, cheiro, cor ou dureza relativa, todas
essas características podem mudar (dentro dos limites) sem que a coisa em questão deixe de
ser cera. Pode derreter quando aquecido, pode expandir em volume, mudar de cor e assim por
diante. Isso sugere que precisamos de uma distinção entre características não essenciais da

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cera - aquelas que podem mudar enquanto o corpo em questão permanece um pedaço de
cera - e suas propriedades essenciais. Se nós, imaginativamente, retiramos, uma a uma, as
várias propriedades não essenciais de um pedaço de cera, e se "tiramos a roupa, por assim
dizer, e a consideramos nua," descobrimos que a única propriedade que não pode deixar de
ter é que é extensa. No contexto da Meditação II, portanto, essa digressão acerca do pedaço
de cera sustenta a conclusão provisória de que até mesmo coisas que julgávamos conhecer
bem, a partir de evidências experimentais, são conhecidas de forma confiável apenas quando
usamos nossos intelectos para discriminar entre suas propriedades observáveis e suas
características essenciais.

Este é um argumento estranho, que falha em reconhecer adequadamente três diferentes


distinções. (1) Uma distinção que está mais no backgound aqui é entre o que mais tarde veio a
ser chamado de qualidades primárias e secundárias, isto é, aquelas características objetivas
das coisas físicas que acreditamos existir independentemente de nossas percepções, e aquelas
características (tais como cor ou cheiro) que os corpos parecem ter e que são em parte uma
função da interação entre corpos e nossas faculdades perceptivas. Esta é a distinção que
resultou da discussão das sensações de cócegas em O Mundo que ainda estava muito na
mente de Descartes ao escrever as Meditações. Descartes ainda a defendia, em 1649, quando
rejeitou sugestões do platonista de Cambridge, Henry More, de que a matéria deveria ser
definida como “substância perceptível, tangível ou impenetrável.” Descartes argumentou: “É
claro que se for definida como substância sensível, então é definida por sua relação com nossos
sentidos. No entanto, sua natureza poderia existir, mesmo que não existissem seres humanos
”(AT v, 268).

(2) Há outra distinção entre aquelas características dos corpos que os distinguem como
pedaços de cera de outros corpos que são, por exemplo, pedaços sólidos de mel. Descartes
havia sido questionado várias vezes, especialmente por seu principal patrono holandês,
Constantijn Huygens, para se envolver em pesquisas em química. Ele se recusou a aceitar o
desafio e a rejeição em abordar tais temas se mostra claramente em seu trabalho. Na ausência
de uma química, mesmo que incipiente, em sua filosofia natural, a teoria da matéria assumida
por Descartes implica que a cera difere do mel simplesmente porque cada uma é composta de
diferentes combinações de pequenas partículas da mesma matéria. Por exemplo, o mel pode
incluir uma proporção maior de partes longas e escorregadias (o que explica sua viscosidade),
enquanto a cera pode ser composta de pequenas partículas mais compactas.

(3) Finalmente, Descartes queria estabelecer uma distinção muito mais geral entre dois tipos
de substância, as coisas materiais e imateriais, e ele supunha que cada tipo poderia ser
caracterizado por uma única propriedade definidora. Ele repete essa ideia em muitos lugares,
incluindo a Parte I dos Princípios da Filosofia, que foi escrita como outra versão das
Meditações em um estilo expositivo diferente.

“Uma substância pode de fato ser conhecida através de


qualquer atributo; mas cada substância tem uma
propriedade principal que constitui sua natureza e
essência e à qual todas as suas outras propriedades
são referidas. Assim, a extensão em comprimento,
largura e profundidade constitui a natureza da
substância corpórea e o pensamento constitui a
natureza da substância pensante. Tudo o mais que pode
ser atribuído ao corpo pressupõe a extensão e é tão
somente um modo de uma coisa extensa; da mesma
maneira que tudo o que encontramos na mente é
simplesmente um dos vários modos de pensar. (AT
viiiA, 25)”

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Não há argumento independente aqui para dar suporte à conclusão de que cada tipo de
substância tem uma propriedade definidora ou para sustentar que todas as substâncias podem
ser classificadas em apenas dois tipos gerais. A discussão da matéria neste texto parece nada
mais do que uma reafirmação do tipo de argumento já esboçado nas Regras. Se tentarmos
imaginar um corpo que não tem extensão, falhamos. Isto sugere que, na medida em que a
imaginação é um guia confiável para saber o que é matéria, ser extensa é uma condição
necessária para ser material. No entanto, isso deixa sem resposta tantas perguntas que é difícil
saber como Descartes poderia ter respondido a elas. Por exemplo, por que as limitações de
nossa imaginação devem decidir acerca da característica essencial da matéria? Essa é uma
análise conceitual que se disfarça como um exercício de uso da imaginação? Até que ponto o
argumento repousa, em última análise, sobre o que sabemos sobre os corpos físicos a partir da
experiência, visto que o que podemos imaginar depende significativamente do que já
experimentamos? A definição de matéria em termos de extensão é parcialmente postulada
(estipulada)?

O conceito de corpo que Descartes assume, nas Meditações, evidentemente não é aquele para
o qual ele fornece um argumento bem desenvolvido. Seu foco, quase exclusivamente, é sobre
os dois tópicos que ele se propôs a discutir, a saber, o estatuto de uma alma humana quando
separada do corpo e a natureza e existência de Deus. Ele quer mostrar aos leitores que temos
conhecimento direto de nosso próprio pensamento, que é mais imediata e diretamente
conhecido do que qualquer outra coisa no universo e que até mesmo objetos familiares como
um pedaço de cera são conhecidos menos diretamente e com menos certeza do que a própria
mente. Para convencer os leitores dessa conclusão, ele só precisa (ele acha) mostrar quão
pouco confiáveis e inferenciais são os nossos conhecimentos do pedaço de cera, sem fornecer
a consideração específica da cera que ele oferece.

Poder-se-ia talvez aceitar essa interpretação das Meditações se as considerações cartesianas


da matéria e da mente não fossem interdependentes, e se os argumentos sobre a natureza da
mente e de Deus não pressupusessem um conceito de matéria já aceito [acordado]. Suas
limitações tornam-se mais evidentes, portanto, quando Descartes precisa abordar o problema
aparentemente insolúvel de como a mente e o corpo interagem no homem.

O Corpo como Não-Mente

Robert Boyle criticou notoriamente a evasão e truques envolvidos em fingir fornecer alguma
informação sobre algo dizendo o que não é (Boyle 1999-2000: xii, 474). Ele argumentou que
fornecemos muito pouca informação sobre o que significa um “espírito” se dissermos a
alguém que não é material, assim como não aprenderíamos quase nada sobre qualquer uma
das linhas curvas estudadas em geometria (incluindo parábolas, círculos, espirais e assim por
diante) se nos dissessem simplesmente que não são linhas retas. Invertendo a distinção entre
espírito e corpo, estaríamos igualmente desinformados sobre os corpos se primeiro
admitíssemos que entendíamos o que são os espíritos e se nos dissessem apenas que os
corpos não são espirituais. Boyle estava refletindo sobre o esforço, experimental e teórico,
envolvido na descoberta de algumas das propriedades físicas e químicas dos corpos. A
alegação de que o corpo não é espiritual parece, em comparação a isso, quase não nos dizer
nada sobre a matéria. Da mesma forma, a alegação de que o espírito é imaterial é igualmente
pouco informativa.

Isso nos dá uma outra perspectiva a partir da qual podemos ver as descrições paralelas de
Descartes sobre matéria e mente. Ele afirma que a mente é conhecida por si mesma, direta e
experimentalmente, e que o corpo é conhecido de alguma maneira menos confiável - que é o

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que o argumento da cera sugere? Ou, antes, ele afirma simplesmente que a mente e o corpo
são conhecidos de maneiras diferentes, e que o mais importante não é confundir as maneiras
de conhecer ou substituir um modo de conhecer pelo outro? Uma discussão detalhada do
relato cartesiano de como cada pessoa adquire conhecimento sobre sua própria mente está
além do escopo deste capítulo. No entanto, uma maneira de ler as Meditações é entendê-las
como um exercício de reflexão sobre o que já é implicitamente conhecido por cada pessoa
sobre si mesma, na medida em que elas pensam. A certeza de “eu penso” depende da
autoconsciência do sujeito. De um modo mais geral, Descartes define o pensamento da
seguinte maneira:

“Pensamento. Eu uso este termo para incluir tudo o


que está dentro de nós de tal forma que estamos
imediatamente conscientes disso. Assim, todas as
operações da vontade, do intelecto, da imaginação e
dos sentidos são pensamentos. Digo ‘imediatamente’
para excluir as consequências dos pensamentos; um
movimento voluntário, por exemplo, origina-se em um
pensamento, mas não é ele mesmo um pensamento”. (AT
vii, 160)

Se concedermos que estamos conscientes de nós mesmos por uma consciência imediata da
atividade do pensamento, como afirma Descartes, então a mente humana ocupa um lugar
privilegiado entre as realidades do mundo de que se tem conhecimento. Descartes afirma que
isso é o que é o traço distintivo da mente, que a atividade do pensamento característica
definidora e que é o meio pelo qual sabemos tudo o que sabemos sobre a mente. Não há
nenhuma sugestão de que cada pessoa possa de alguma forma contornar a atividade de
pensar e coincidir (introspect) diretamente a realidade de sua mente. Pelo contrário, estamos
direta e imediatamente conscientes da atividade de nosso próprio pensamento, que
concebemos como uma atividade ou propriedade de algum sujeito (ou outro). Mesmo no caso
de nossa própria mente, portanto, conhecemos a realidade em questão conhecendo suas
propriedades - ou, neste caso, sua suposta propriedade principal, o ato de pensar.

O mesmo princípio se aplica no caso de coisas físicas ou materiais. Nós as conhecemos por
suas propriedades. Isso fica claro em vários textos das Meditações. Por exemplo, Descartes
respondeu a uma objeção de Hobbes: “em geral, nenhum ato ou acidente pode existir sem
uma substância para ele pertencer. Mas não chegamos a conhecer imediatamente uma
substância, por estarmos conscientes da substância em si; chegamos a conhecê-lo apenas por
ser o sujeito de certos atos ”(AT vii, pp. 175–6). Da mesma forma, em resposta a Arnauld, ele
escreveu: “Não temos conhecimento imediato de substâncias, como observei alhures. Só as
conhecemos percebendo certas formas ou atributos que devem ser inerentes a algo para que
existam; e nós chamamos a coisa a que são inerentes 'substância' ”(AT vii, 222). Este princípio,
do caráter indireto do conhecimento de substâncias, aplica-se igualmente às realidades
mentais ou físicas. A diferença entre os dois, para Descartes, é que devemos ter um
conhecimento direto ou consciência da atividade do pensamento (e, através dele, do sujeito
do qual o pensamento é predicado), ao passo que conhecemos as propriedades das coisas
materiais somente indiretamente (e, portanto, existem dois graus de mediaticidade
[indireticidade] em nosso conhecimento de substâncias materiais). Isso se coaduna com o
relato do conhecimento de fenômenos naturais que havia sido esboçado em O Mundo, não
publicado, e que foi tão bem aproveitado nos ensaios científicos de 1637. Percebemos as
propriedades aparentes das coisas físicas, e então adivinhamos quais são as características
objetivas mais prováveis que poderiam explicar nossas experiências perceptivas. Isto sugere
que o relato cartesiano da matéria deve ser entendido como uma hipótese muito geral sobre o

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substrato (stuff) do universo, que - interagindo com nossos sentidos - nos faz ter a variedade
de percepções que temos dele.

Conceitos Básicos

Há uma consideração alternativa dos limites do conhecimento humano nas respostas de


Descartes às questões levantadas pela princesa Elizabeth, na sequência de sua primeira
pergunta sobre a interação mente-corpo em maio de 1643. Nessa ocasião ela perguntou:
“como pode a alma humana, que é apenas uma substância pensante, determinar o movimento
dos espíritos animais para realizar uma ação voluntária? ”(AT iii, 661). Esta carta iniciou uma
longa correspondência entre Elizabeth e Descartes, que continuou mesmo após a sua partida
de Haia em 1646. Em uma dessas cartas, Descartes tentou responder a sua pergunta
introduzindo uma distinção radical entre: (a) a mente, os tipos de conceitos apropriados à sua
descrição e a faculdade epistêmica apropriada pela qual o conhecimento da mente pode ser
adquirido; e (b) o corpo, os conceitos pelos pode ser descrito e as faculdades pelas quais é
mais provável que o conheçamos com êxito. A implicação dessa distinção radical era que
nunca se deve confundir essas duas áreas que não se sobrepõem, e nada além de confusão
decorre da aplicação incorreta de conceitos básicos a um assunto impróprio.

“Em primeiro lugar, distingui três tipos de ideias ou


noções primitivas, cada uma das quais é conhecida em
seu próprio modo e não em comparação com qualquer uma
das outras: as noções que temos da alma, do corpo e
da união entre alma e corpo (...). A alma é concebida
apenas pelo intelecto puro; o corpo (...) pode
igualmente ser conhecido apenas pelo intelecto, mas
muito melhor pelo intelecto auxiliado pela
imaginação; e finalmente o que pertence à união da
alma e do corpo é conhecido (...) muito claramente
pelos sentidos. (AT iii, 691-2)”

Isso não resolve o problema filosófico subjacente, e sua falha em fazê-lo foi notada
imediatamente pela correspondente real de Descartes. Pois, sem qualquer vestígio de
fundamento, esta resposta simplesmente separa o mundo mental e o mundo físico em dois
setores não sobrepostos, e atribui o “puro intelecto” a um como a faculdade epistêmica
apropriada e o intelecto auxiliado pela imaginação ao outro. A pergunta original de Elizabeth
inqueria por que deveríamos separá-los de maneira tão radical e, especialmente, como
poderíamos explicar sua interação se eles não tivessem propriedades relevantes em comum.

A mesma divisão de funções é invocada nos Princípios, um texto que Descartes redigia ao
mesmo tempo em que escrevia para a princesa Elizabeth. Nesta ocasião, ele combina os
princípios gerais discutidos acima - que as substâncias podem ser conhecidas apenas por meio
de suas propriedades - com a ideia de que existem dois tipos gerais de substância, mental e
física, e que cada tipo tem apenas uma propriedade fundamental.

“Uma substância pode de fato ser conhecida através de


qualquer atributo; mas cada substância tem uma
propriedade principal que constitui sua natureza e
essência, e à qual todas as suas outras propriedades
são referidas. Assim, a extensão em comprimento,
largura e profundidade constitui a natureza da
substância corpórea; e o pensamento constitui a
natureza da substância pensante. Tudo o mais que pode
ser atribuído ao corpo pressupõe extensão, e é

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meramente um modo da coisa extensa; e da mesma forma,
tudo o que encontramos na mente é simplesmente um dos
vários modos de pensar. (AT viiiA, 25)”

Nesse estágio, em 1644, Descartes está simplesmente repetindo as afirmações fundamentais


que o ajudaram a estruturar o modo como pensou sobre mente e corpo por pelo menos
quinze anos. Há uma alusão a um argumento na sugestão de que “tudo que é atribuído ao
corpo pressupõe extensão”. Isso pode ser traduzido, sem confissão, como: não se pode
imaginar ou conceber um corpo que não seja extenso. Em caso afirmativo, esse é o argumento
originalmente usado nas Regras. Da mesma forma, pode-se supor que o pensamento é
adotado como característica definidora da mente, porque a única maneira pela qual a mente é
conhecida é refletindo sobre sua própria atividade de pensar (compreendida no sentido mais
amplo possível, incluindo tudo de que estamos cientes). Estas suposições de fundo ajudam a
explicar a função e a estrutura do argumento introduzido na Meditação VI para “provar” a
existência dos corpos.

Uma Prova da Existência dos Corpos

A estrutura do argumento nas Meditações permite ao cético vetar as afirmações de


conhecimento a respeito de tudo – exceto as ideias na mente do meditador e o que pode ser
deduzido dessas ideias - até a meditação final. A Meditação VI abre, apropriadamente, com a
observação: "resta-me examinar se existem coisas materiais" (AT vii, 71). Os parágrafos de
abertura refletem o dualismo das faculdades cognitivas já mencionado acima, segundo o qual
a mente é conhecida pelo intelecto, enquanto o conhecimento das coisas físicas requer a
aplicação da imaginação. Isso é ilustrado por uma distinção bem conhecida entre conceber um
quiliágono e imaginar a mesma figura. Pode-se conceber tal figura facilmente, sem ser capaz
de imaginá-la claramente, porque o número total de lados é tal que é quase impossível formar
uma imagem estável de um quiliágono na imaginação de uma pessoa e contar seus lados. Isso
sugere a Descartes que talvez a atividade de imaginar seja uma função do corpo que está tão
unido à mente que ambos cooperam na formação da imagem do polígono. O argumento para
a existência de corpos, no entanto, vem mais tarde na mesma meditação (AT vii, 79), quando
Descartes argumenta da seguinte maneira.

1 Tenho consciência de ter uma faculdade passiva de percepção sensível, isto é, “uma
faculdade de receber e reconhecer as ideias de objetos sensíveis”.

2 Essa faculdade passiva seria inútil, a menos que fosse estimulada por "uma faculdade ativa",
que produz essas ideias.

3 A fonte ativa de minhas ideias sensíveis está em minha mente ou em alguma realidade
externa.

4 Não pode estar em minha mente porque (a) não pressupõe nenhum ato intelectual de minha
parte; (b) Eu não sou capaz de controlar se e quando tais ideias sensíveis me ocorrem, de
modo que algumas delas ocorrem mesmo quando eu prefiro o contrário.

5 Portanto, essa fonte ativa de minhas ideias sensíveis é uma realidade distinta da minha
mente.

6 Essa realidade independente é: (a) um corpo; ou (b) Deus; ou (c) alguma outra entidade não
material que é distinta de Deus (como um anjo ou outra mente humana).

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7 Deus não é enganador.

8 Se Deus providenciou que eu receba ideias sensíveis de (b) Deus mesmo ou (c) alguma outra
realidade mental, equivaleria a um ardil de sua parte que ele organizasse coisas dessa maneira,
sem, contudo, me fornecer nenhuma meio de identificar a fonte genuína de tais ideias. De
fato, Deus me deu (através da natureza humana) uma forte inclinação para acreditar que as
ideias sensíveis se originam de coisas físicas externas.

9 Portanto, ideias sensíveis não se originam diretamente de Deus ou indiretamente de alguma


realidade mental que é capaz de fazer parecer a mim que eu percebo coisas que na verdade
não existem na realidade em questão.

10 Segue-se que “existem coisas corpóreas ”(AT vii, 80).

Para aqueles que são tentados pelo ceticismo sobre a existência do mundo físico, este é um
argumento pouco convincente, em parte porque se baseia, numa etapa crucial, na alegação
contenciosa de que Deus existe e não é enganador. Em outras palavras, se alguém aceita a
validade dos argumentos do cético e, em seguida, eleva o patamar de certeza que uma
refutação convincente dessas dúvidas deve alcançar, é provável que o cético permaneça
indiferente a esse argumento. Há outra maneira de lê-lo, no entanto, que faz mais sentido.
Descartes pode ser visto como descrevendo, da perspectiva de um sujeito pensante, os tipos
de pensamento que lhe ocorrem. Alguns são tais que ele é capaz de controlá-los mais ou
menos à vontade. Por exemplo, a menos que esteja obcecado com alguma coisa, ele pode
escolher pensar ou não pensar em algo. Entretanto, há muitas outras experiências às quais ele
está sujeito e que se enquadram na ampla abrangência do termo “pensamento”. Elas são tais
que, em muitos casos, ele não pode evitar ter tais pensamentos, não importa o quanto ele
tente evitá-los. Por exemplo, ele pode sentir dor ou fome, pode ter a sensação de ouvir ruídos
altos ou de ver luzes brilhantes. Ele pode optar por não pensar em um problema matemático,
mas (dependendo das circunstâncias) ele às vezes não pode evitar ter uma sensação de dor.
Descartes pode então perguntar: qual é a explicação mais plausível para o fato de eu ser o
sujeito passivo daquelas experiências que não estão sujeitas ao meu controle voluntário? Sem
apelar para a veracidade de Deus, a resposta mais óbvia é: há realidades externas à minha
mente que me levam a ter tais “ideias”.

Mesmo ao fazer este caso, no entanto, Descartes pode reconhecer a qualificação sobre as
fontes de nossas sensações em que ele havia confiado desde a escrita do mundo. Não há razão
para acreditar que as ideias que experimento se assemelham às causas objetivas - sejam elas
quais forem - que expliquem porque as tenho. Assim, ele acrescenta imediatamente a
conclusão do argumento descrito acima: “eles [i.e. coisas corpóreas] podem não existir de uma
maneira que corresponda exatamente à minha compreensão sensorial delas, pois em muitos
casos a compreensão dos sentidos é muito obscura e confusa”(AT vii, 80). Assim, para
conhecer as propriedades dos objetos materiais que supomos serem as fontes de nossas
experiências sensoriais, somos forçados a especular sobre que tipos de propriedades objetivas
poderiam nos levar a ter experiências subjetivas sobre as quais temos tão pouco controle. Com
esse tipo de especulação, o projeto de construção de uma explicação física dos fenômenos
naturais é relançado. Apesar das objeções dos céticos, Descartes pode justificadamente voltar
ao projeto no qual ele havia feito tanto progresso no mundo.

Limitações Cartesianas

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