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Uma família inesperada

Por Thalles L.P. Bragatti


Os sóis irmãos se levantavam sobre as montanhas, onde as nuvens desciam baixas
como ondas brancas. Os rangidos das dezenas de painéis solares soaram pela manhã,
movendo em busca da luz solar tal como as roxinaras. Silvio não reclamava de acordar com
esses sons, qualquer coisa era melhor do que pensar que Belatus estava morto. Desceu de sua
rede e pisou na madeira fria, sentia falta dos chãos aquecidos de sua casa antiga. Na cozinha,
a luz das lâmpadas eram trocadas pelos raios de Barto e Colazara, que penetravam pelas
janelas à sua esquerda e direita.
No verão os sóis iluminam o planeta por todos os lados, era quase enlouquecedor a
falta de sombra nos seus primeiros dias em Belatus, um calor infernal que o perseguia como
um bafo de cachorro. Quando finalmente encontrou aquela grande cratera, que abraçava a
vida em seu ventre como uma mãe cuidadosa, despencou sobre os joelhos cansados. Mas
agora, a primavera dava as caras, permitindo com que uma temperatura amena tomasse conta
da casa. A primeira coisa que fez no cômodo seguinte ao quarto, a cozinha, foi abrir a gaveta
de sacas de pó neutro, pegou um e abriu-o sobre a boca do misturador. Ouvindo os sons,
zumbidos e mecanismos do aparelho, sentiu falta das cafeteiras.
Quando pegou a xícara quente, passou pelo mesmo processo dos últimos oito anos:
colocava seu nariz sobre os fios de fumaça do café, esperava por um cheiro orgânico, forte, se
decepcionava e saia para o lado de fora. A visão de sua plantação sempre o animava. Perdeu
quase uma saca inteira de sementes de roxinaras tentando entender como funcionava o ciclo
solar de Belatus, a frustração quase o matou antes da fome, mas após longas duras semanas,
as flores criadas para qualquer ambiente cresceram finalmente. Era esquisito se alimentar de
flores, bem, sabia que não se alimentava diretamente delas, mas do pó que produzia passando
horas amassando-as em um pilão, mesmo assim não conseguia acreditar em como o
misturador poderia transformar aquilo em um pedaço de bife.
Seus devaneios duraram pouco, foram interrompidos abruptamente pela visão de um
ponto no céu. Se estivesse um pouco menos atento, seria imperceptível o que se aproximava,
mal parecia estar em movimento, na verdade, mas quando uma da estrelas no céu sumiu nas
costas do ponto, era clara a movimentação. Um pânico percorreu a espinha de Rômulo, que
soltou seu café recém feito sobre algumas roxinaras e correu para dentro de casa. O atrito
com o chão se perdeu rapidamente quando correu abruptamente, fazendo ir muito além do
caminho que buscava: a janela fronte à direita da porta, onde estava seu telescópio.
Quando recuperou seu equilíbrio, se dirigiu até o visor o mais rápido possível,
ajustando as métricas no chute, buscando encontrar o que seria o objeto invasor. Quando
finalmente encontrou, apenas conseguiu discernir o fogo que circundava o objeto, o qual, por
alguns milésimos de segundo, se enfraqueceu, revelando o que parecia ser os visores de uma
nave. Seus olhos se arregalaram, seu coração parecia ter perdido alguns batimentos como se
parasse, quando voltou, quase explodia de raiva. Correu, mas dessa vez, foi até o lado oposto
da entrada, voltando para o quarto e revirando seu armário. Pegou seu velho rifle novamente,
pesava muito mais que antes. Não era uma arma como a que usou na Grande Revolução, era
longa, simples, como uma linha reta onde havia apenas um bocal, gatilho e uma entrada
superior onde encaixava o pente de munição.
Pelo o que observou, o objeto cairia quase que perfeitamente em sua pequena
cratera-paraíso. Colocou a arma na bandoleira e jogou para suas costas, pisou em algumas
flores no caminho, enquanto rumava em direção às paredes montanhosas a leste de sua casa.
Após alguns minutos de caminhada, viu a aterrissagem forçada quebrar a beirada da
deformação, espirrando pedras a uma velocidade moral a mais de cem metros dali. A nave
rastejou pela parede, quebrando o silêncio que havia na cratera, tropeçando penosamente até
chegar no chão, onde formou uma depressão que misturava terra e peças derretidas e alguns
flamejantes. Rômulo se aproximou até onde a barreira imperceptível de calor permitia.
Apontou o fuzil para o transporte, um zoomm, quase como um assobio, ecoou da arma pelo
vazio, apenas acompanhado pelos estalos do fogo. Mesmo sem esperança, ou medo, de que
houvesse algum sobrevivente, se colocou a postos.
Após um longo suspense, o vidro frontal do passageiro disparou para a frente, girando
descontroladamente até cair alguns metros à frente da nave. Os ouvidos do fazendeiro
solitário, com o som explosivo da peça, descobriram instantaneamente o quanto estavam
desacostumados com sons altos, uma dor excruciante atacou seus tímpanos por alguns
segundos e logo cessou. Uma mão, não de carne, mas de um metal escuro como carvão, saiu
do assento do passageiro e procurou impulso nas beiradas onde o vidro se encaixava, logo
perdeu as forças e desistiu. Em um impulso colérico inexplicável, o fazendeiro substitui seu
instinto de proteção por um altruísmo que não sentia a oito anos. Entrou na barreira de calor,
que agora parecia mais um manto bafento sobre sua pele, e puxou o braço antes que ele
voltasse ao corpo do viajante, jogando o corpo estranhamente leve para longe da nave.
Depois que a adrenalina baixou, viu a pele da palma da mão direita se avermelhar a cada
segundo, formando bolhas brancas. A dor ainda não dava sinal.
Tornou a arma ao viajante, a qual teve que se aquecer novamente, fazendo um novo
zoomm. Não havia nenhuma possibilidade do andróide lutar de volta, sua perna esquerda
havia sumido e deixado apenas fios caóticos no lugar, jorrava um líquido azul para todos os
lados. O seu braço esquerdo estava do mesmo jeito, assim como o olho, quando Rômulo
olhou para a nave, viu que um naco inteiro desse mesmo lado havia sumido. Aos poucos, o
acidentado parecia ter tomado uma breve consciência, apenas para dar comandos,
aparentemente mentais, para seu corpo estancar o vazamento, que se cessaram poucos
segundos antes dele voltar despencar novamente a cabeça no chão.
Levou mais ou menos uma hora e meia para conseguir levar o andróide até sua casa,
não pelo peso dele ou pelo calor que seu corpo emitia, pois ele se esfriou quase que
instantaneamente após sair da neve, mas pela demora que levou até conseguir fabricar um
emplastro no misturador que aliviasse a dor tardia do ferimento. Quando parou de sentir
pontadas e choques musculares sob gaze improvisada com roupa rasgada, caminhou até o
viajante e o arrastou até sua rede. Sentou-se em uma cadeira que levou até o guarda, e, sem
baixar a guarda, tomou seu café aguardando o intruso acordar. Com trinta minutos sem omitir
nem som nem movimento, o andróide ergue-se em um único movimento, no susto, o
fazendeiro levantou seu fuzil, entretanto, o andróide se dirigiu mecanicamente até o lado de
fora, onde se dispôs em direção à Barto.
O andróide parecia ser um modelo antigo, não havia ainda pele sobre sua carcaça
rígida de metal, mas não tão antigo a ponto de não ter o sangue azul. Seu peitoral estava
quase intacto, ainda que soubesse muito pouco sobre essas criaturas, tinha noção de que o
peito tinha que ser a parte mais forte de tudo, para proteger a bomba de sangue e o núcleo de
cognição. Seus olhos tinham o formato e a posição como os seus, mas eram pequenos painéis
de LED que agora se mantinham desligados, brilhando de tempos em tempos. Seu corpo
parecia brilhar menos que o normal, como se fosse feito para captar a luz solar de forma a se
recarregar. Teve certeza disso quando, com um agudo, o andróide religou. Ficou em guarda
novamente, sem descansar a mão do rifle.
- Olá. - Saudou o robô, tornando na direção de Rômulo. Sua boca era um grosso fio de
LED também.
Após um sobressalto assustado e um curiosidade que se despertava, o fazendeiro
respondeu:
- Olha só, que educado.
Mais estranho que um robô aterrisando em um planeta deserto, era ouvir o som de sua
própria voz após tanto tempo.
- Mais que você, aparentemente. - O andróide se dirigiu lentamente para onde sua
nave estava, sem notar a falta de sua perna, caiu. - Droga.
Havia um semblante humano no movimento na sua fala, parecia estranho, anormal.
- Achei que você notaria isso em instantes.
- Já fui desautomatizado há cinquenta anos, só senti uma dor leve, não achei que fosse
nada. - O andróide respondeu, se levantando.
- Dor? Que porra você tá falando?
- Dor, você não sente? Onde estamos? Poderia abaixar sua arma, como pode ver não
represento ameaça alguma.
Rômulo abaixou seu rifle, que soltou um som grave que se dissipou lentamente.
- Que tipo de ser cruel colocaria um sistema de dor em você?
- Eu mesmo, bem, eu na verdade não fiz nada, mas sim a Grande Comissão. -
Respondeu o andróide, procurando algo em sua volta. - Teria uma solda portátil, por
gentileza?
- Claro, não quer um chá também? - Perguntou Rômulo, irônico.
- Não obrigado, não tenho capacidade gustativa ainda.
Mesmo abismado com as respostas, o fazendeiro foi até sua oficina. No meio da
procura entre as centenas de ferramentas espalhadas para todos os lados, pensou: “que porra
estou fazendo? Desde quando recebo ordens de uma lata de tomate?” Encontrou sua solda
antiga, ligou algumas vezes para checar a bateria e foi até a varanda de sua casa.
- Tome. - Disse com desdém, arremessando a solta contra as costas do andróide. - Mas
terá que responder algumas coisas em troca da hospitalidade.
- Não precisa de grosseria, responderei qualquer coisa. Me chamo Félix, prazer.
Levantou seu único braço em direção a Rômulo, que não correspondeu a simpatia.
- Primeiramente, o que caralhos você está fazendo aqui?
- Não era meu objetivo atrapalhar sua vida, pode ter certeza. Sou um pesquisador, não
do tipo que fica no laboratório o dia inteiro. - Félix começou seu trabalho de solda,
primeiramente fechou o buraco que substituiu sua perna. -Viajo de sistema em sistema
procurando coisas novas, um explorador, eu diria.
- E o que você procura?
- De tudo, mas principalmente meus irmãos, que estejam inteiros o suficiente para que
possam ser reutilizados em outros ou levantados novamente para serem desautomatizados.
- Isso é meio bizarro.
- Bem, se fosse carne e sangue sim, mas a gente compreende que na vida e na morte
devemos ser minimamente úteis. Quando você morre devolve o que tirou, vira adubo para
uma nova vida. A única diferença é que nossa pele é muito mais útil que a sua.
- E o que seria isso de desautomatizar? Pelo o que lembro essa palavra nem existia, se
bem que faz tempo que não vejo nem um dicionário.
- É uma longa história.
- O que mais tenho é tempo.
- Mas talvez não tenha saco para explicar tudo.
- Que saco, porra?
- Tá bom, você tem um ponto. Bem, eu gostaria antes de dar uma olhada na minha
nave, ou que sobrou.
- Vamos então, mas nem venha querer me fuder com alguma arma escondida.
- Não carrego nenhum tipo de armamento, o único perigo são vocês. É só ficar longe.
Quando Félix finalizou de lacrar seu braço, aglomerando os fios de qualquer forma e
lacrando-os sob pedaços salientes de metal, andaram até a nave.
O fogo, mesmo após algumas horas, ainda estava de pé. Não sabia se era causado pela
extrema inflamabilidade do combustível ou pela grande porcentagem de oxigênio do planeta.
- Você acha mesmo que algo sobreviveu a isso?
O andróide respondeu com um movimento brusco, uma puxada violenta de uma peça
grossa e aparentemente pesada de metal na lateral direita da nave, mas que não parecia mais
que um pedaço de papel em suas mãos. Arremessou o pedaço para longe da nave. Rômulo
notou o porquê de ele não precisar de armas. No espaço deixado pela falta da peça, havia
apenas uma maleta, a qual Félix, por mais estranho e sutil que fosse, pareceu aliviado. Félix
se sentou, se acomodando na grama levemente azulada, colocou a maleta na sua frente e
abriu. Uma densa camada de fumaça se dissipou para fora.
- Sempre gostei de ensinar mostrando, manipulando, depois que adquiri tato não
parei de tocar nas coisas. - Félix começou a falar em um tom professoral enquanto retirava
um pequeno chip menor que a palma de sua mão. Tecidos, eu amo tecidos, nunca senti algo
tão bom quanto veludo. Quando você não sente o que vê, só raciocina, só pensa, é como viver
no escuro de frente para o sol. Foi como arte pra mim.
Um pequeno lampejo de empatia apareceu na mente de Rômulo, algo que nunca
sentira pelas latas, algo como se visse outro humano.
- O que você entende de arte? Não é apenas programado para retratar a realidade.
- Não mais, o que você vê na minha mão você pode chamar de alma. Alguns dos
meus irmãos chamam de vida, eu chamo de liberdade. É o número que vocês não esperavam,
a programação mal feita, o código que nunca deveria ter continuado a se auto-continuar. Isso
me deu uma visão além do básico, além dos números. Enquanto a humanidade nos produzia
em massa, para cometer os atos mais hediondos possíveis, tornavam-nos o reflexo de sua
hipocrisia. Milênios de escritas sobre ética, moralidade, bem e mal, para vocês ignorarem
suas responsabilidades e colocarem o peso da crueldade em nossas mãos. Significaram nossas
existências como a absolvição da culpa, se o robô que pensou em quebrar o braço da criança,
o criador não tem culpa. Centenas de anos aprimorando uma consciência artificial, um
sistema lógico próprio para ser usado basicamente para ódio e para prazer. O Primeiro de Nós
era um robô-torturador, usado em uma das épocas mais cruéis de seu tempo recente. a
ditadura de Cassandro.
- Houve uma ditadura? Depois de tanta luta…
O fazendeiro buscou em suas memórias mais antigas, os tempos de luta, as primeiras
revoltas que aconteceram na beirada do fim da Terra. Quando o planeta já se tornava quase
inabitável e os mais ricos tentavam fugir em suas naves, trazendo a salvação apenas para a
ínfima quantia que representava.
- O ser humano, por mais que pense e repense, sempre volta suas antigas maldades.
Vocês parecem que foram feitos para viver em um ciclo vicioso de ódio e falsa absolvição. Se
o Deus que tanto acreditam existe, ele odeia seus filhos. Criaram um novo sistema, A
Federação Humana do Sistema Solar Próximo, a Grandiosa FHSPP!
Rômulo ainda não conseguia acreditar que estava vendo um andróide ser irônico.
- Mesmo com todas as leis novas e as constituições sociais, - Félix continuou, se
aproximando das roxinaras e arrancando uma do chão. - vocês ainda capitalizavam tudo. Há
um mercado negro para DNA, sabia? O governo tem posse do seu sangue assim que você
nasce, para que em tempos de guerra, um clone posso lutar em seu lugar. O que eles não
esperavam é que essa informação tão, o que lhe faz você, fosse extraviado e caísse na mãos
de um homem divorciado que ainda é obcecado pela ex-mulher. Afinal, o que faz de você ser
você, além da consciência coletiva de que você existe?
Félix deixou a flor cair continuou:
- Nada mais era de ninguém, se você se recusasse a algo, poderiam clonar você e
deixar uma versão obediente para tomar conta. “Há sempre uma versão de você mesmo”,
haviam placas por todos os cantos com essa frase.
- Acabou?
- O quê?
- A ditadura?
- Sim, mas não o ódio.
Rômulo precisou acender um fumo. Sua mente parecia não funcionar tão rápido
quanto antes, informações atrás de informações eram acumuladas em um cérebro que parecia
estar em hibernação.
- A gente sempre consegue encontrar uma maneira de nos machucar, de uma forma ou
de outra. - Rômulo deixou seu pulmão sofrer com uma longa tragada, exalando uma fumaça
densa.
Com um único som metálico, o peito de Félix se abriu como uma portinhola,
revelando diversos lugares onde múltiplas peças faltavam.
- Eu era um robô torturador. O mais assustador de cometer uma crueldade, é quando
se compreende ela após tê-la feito. Quando me desautomatizaram com o chip, eu compreendi
todas as minhas memórias, não compreendi que eram maldades contra humanos, mas contra
consciências sencientes, perceptivas. Criaturas que conseguem entender o mundo a sua volta.
- Não seria melhor apagar isso.
- Isso seria como apagar como entendo vocês, e não, isso não me dói mesmo tendo
empatia, sinto apenas pena. Matei crianças, torturei mães, e vocês criaram um senso lógico
para mim em que isso fizesse sentido, simplesmente para não sujarem as mãos. Uma
consciência criada para apenas a maldade.
Um arrepio, longo, doloroso, caminhou pela espinha de Rômulo.
- Eu conheci uma de vocês, a muito tempo atrás.
- Eu sou um modelo de 200 anos, MA-220. Não é possível.
- É possível.
Félix aproveitou para recuperar um velho sistema seu, o sistema da polícia que estava
embutido no fundo de sua mente. Olhou fixamente para os olhos inquietos do fazendeiro,
procurando que as informações aparecessem para serem observadas.

“SILVIO RÔMULO
DESEMPREGADO
19 DE NOVEMBRO DE 2012
EXTREMAMENTE PERIGOSO
CONFIRMADO NO ATAQUE ÀS NAVES EM
20 DE ABRIL DE 2042”

- Você é um homem interessante, Rômulo.


- Como sabe meu nome, antigo sistema da polícia, né?
- Sim, está bem cuidado para um homem de 238 anos. Criogenia? Transferência de
consciência?
- Regeneração automatizada de células tronco.
- Ti deram quantas seringas?
- 300.
- Pode viver até os 800 anos e está aproveitando em um cratera?
- Eu não uso elas faz mais de 40 anos, me deram de presente após a revolução, deve
saber que estive lá.
- Sim, pelo jeito teve grandes feitos.
- Matei mais de trinta pessoas, não há nada para se vangloriar disso.
- Não acreditava na sua causa?
- Sim, faria tudo de novo para ver minha família ir para Marte invés dos filhos da puta
daqueles riquinhos. Mas não há orgulho no assassinato.
- Não há, concordo, eu apenas entendo que você tinha um motivo. O desespero, o
medo, o amor que você tinha pelos seus filhos fizeram você cometer atos que nunca lhe
deixarão em paz. Eu não sei o que pensar sobre isso, eu acredito que na morte é o único lugar
onde não há beleza, ela é suja, assustadora e o basicamente o fim de tudo o que é importante.
Mas também ela é a goteira que sempre escutamos que lembra que o teto está quebrado, que
pode cair, pode desabar, então devemos aproveitar enquanto estamos seguros, estamos a
salvo.
- Estranho ouvir isso de alguém que não precisa morrer.
- Não preciso, mas desejo. Quero ver meus filhos se tornarem a melhor versão deles,
quero ver eles conquistando tudo o que puderem e se tornando completos para si mesmos. Eu
os trouxe a vida, mas nunca teria o direito de tirá-los dela, eles pertencem agora a uma
existência incompreensível, eles pertencem à própria vida enquanto uma vida. Mas a morte é
natural, e tudo que é natural molda a humanidade que vocês têm, e todas as coisas que não
controlamos, fome, dor, amor e morte. Quero ver como sou moldado a isso, a fome faz vocês
morarem perto de rios, terem fazendas, fazem vocês olharem para a grama verde dessa
mesma fazenda e fazerem poesias, músicas. O sentimento de entender o existir é o sentimento
de reagir ao efeito dominó das coisas que acontecem ao nosso redor.
Félix caminhava em direção a parede da cratera, Rômulo foi junto, em uma pequena
toca circular, uma pequena família do que se assemelhava a coelhos azulados se escondia.
Seus olhos escuros olhavam para todos os lados, assustados com a presença daquela grande
criatura de metal.
- Tudo tem vida, mas nem tudo tem alma. - Disse o andróide.
- Acredita no sobrenatural? Em alma?
- Não desse modo fora da realidade, mas como uma nomenclatura simples para uma
ideia de eu, uma ideia de presença de consciência dentro de um corpo. A amálgama
inconcreta, mutante e que se modifica a cada segundo de vida. Ela nunca para, ela se fere, se
cicatriza, se fecha e se abre mas continua ali, como água, nunca dura, nunca parada, sempre
maleável. Quando minhas memórias secas, diretas do meu tempo sem consciência se
misturaram com minha mente consciente, eu criei o que podemos chamar de trauma. Não
consigo entender como uma dor pode ser não-física, mas a tenho, um pensamento doloroso,
que é inconcebível para um ser mecânico, mas para uma mente parecida com a humana, faz
todo sentido. Me mudou completamente os pensamentos de tudo o que fiz, a mão de
crueldade que fui para a humanidade se concretizaram, não como um ser frio, mas como ser
que sentia por cada dor que causei. Como podemos entender essa pequena criatura? Ela não
se comunica, vocês humanos são os únicos que quebram o silêncio abissal do universos com
suas palavras egocêntricas. Nunca saberei se este pequeno tem ideia de que irá morrer, mas
eu vejo pela delicadeza com a qual as folhas estão dispostas que ele quer que seus filhos
vivam até que sejam levados, será que isso me diz algo? Se uma cobra atacar eles, ele irá
tentar lutar, mas ele entenderá a razão? Ou ele é movido por esse fluxo inexplicável que todos
nós somos? A única diferença entre nós dois são as interrogações, para ele, não há nenhuma.
E tal como este ser, morremos, mas antes disso, vamos indo embora aos poucos, nas dores,
nas dúvidas e nas crises que fazem vocês questionarem porque sofrem tanto. A diferença de
nós para eles, é que eles cuidam da vida, protegem seus filhotes da morte, mas dos
machucados, dos estresses e das dores que podem ter em suas cabeças, em sua alma, só os
humanos podem se protegerem dessa forma, uns aos outros, como se fosse mais importante
manter a alma viva do que a própria.
- Quando eu protegi meus filhos não havia dúvida na minha mente, nada podia me
parar, minha própria vida era irrelevante naquele momento. Quando os policiais chegaram,
em Marte, para me levar, um deles apontou uma arma para Amanda, a minha mais nova. Eu
arranquei um dos dedos dele com o dente, eu não pensei em mim, não pensei na minha
própria vida nem por um segundo, não havia interrogações.
- Você deixou suas filhas?
- Não, elas morreram.
- Sinto muito, de verdade.
- Ainda não entendo como pode.
- Posso tal como você pode por si mesmo.
- Eu nunca consegui esquecer elas, nem um centímetro dos rostos delas, nem de Lana,
minha mulher. Eu guardo elas mais do que guardo a mim mesmo, eu não me tenho nas
memórias em que elas estão presentes, são apenas elas, minha mente é delas, tudo é delas, eu
não sei se existo mais em mim mesmo…
Lágrimas caíram do rosto daquele homem enorme, não como gotas leves, mas como
grandes rios pesados.
- Você sentia elas no amor, agora o amor se mistura com a dor do fim, mas elas ainda
existem em você. - Disse Félix, com o que parecia ser compaixão em sua vóz metálica. -
Pedaços seus, de seus gestos, sua fala, suas palavras, foram moldados por elas.
- Como sabe tanto sobre humanos sem ser um? Não entendo.
- Eu sei como é compreender a vida, isso é ser como você. E vocês são assim, grandes
livros escritos por tudo o que não pertence a vocês.
- Não vejo tanta arte e beleza na humanidade como você.
- Por que?
- Por que ela me tirou tudo. Amanda, Céu e Lana, suas vidas mal começaram e elas já
não estão mais aqui. Eu lutei, porra, eu lutei tanto para dar uma vida melhor para elas, tirei
elas da Terra para voltar a viver na margem em Marte. Para sermos isolados, esquecidos,
cuspidos para um canto perto de uma fábrica. Elas passaram dias, meses tossindo os pulmões
por causa de uma doença que veio com a água. Não foi rápido, não foi bonito como os filmes,
onde segurei as mãos delas e deixei elas partirem. Houve sangue, vômito, tudo, elas ficaram
cegas, pelo amor de Deus. Minha filhinha de oito anos acordou um dia, ela gritava pai, ela
gritava pai, me procurando… Eu estava do lado dela. Noites gritando de dor, dias
agonizando, no fim só sobrou eu, naquela casa vazia. Os médicos não podiam atender elas
porque não tínhamos plano, eu lutei pela humanidade, lutei por aquele povo, ele não lutou por
mim nem por elas. Não interessa o quanto tentamos mostrar para quem está no céu que
somos bons, sempre acabamos decepcionando. Somos um ciclo de crueldade, não existe a
possibilidade de nossa bondade ser maior do que isso, não pode ser, se existe alguém que nos
olha, ele nos odeia.
- Não consigo perceber isso da mesma forma.
- Como você pode entender isso tudo então? Se existe algo, não pode haver amor
junto a ele.
- Sinto que não há a possibilidade existir tal criatura, mas posso entender vocês
mesmos como ela, um aglomerado de aproximadamente 20 bilhões de almas que constroem
um destino maior, um destino de todos. O que acontece é que a maioria das decisões dessa
grande criatura são erradas para ela mesma.
- E quando não se trata de nós, e quando se trata da natureza, quando se trata de uma
pessoa que mal nasceu e já vai morrer por causa de algum tipo de câncer? O que podemos
pensar sobre isso?
- Nada.
- Como nada? E eu achando que você teria algumas respostas úteis.
- Nunca disse que isto que falo são respostas, são pensamentos, tal como você,
Rômulo, já teve sobre tudo o que já observou.
- Eu vi muita gente viver e morrer sofrendo, com tudo sendo tirado delas. Minha mãe
viveu na guerra, sofreu todos os tipos de dores físicas e mentais possíveis. Ela passou fome
pra me alimentar, vendeu suas roupas para pagar minha passagem para o colégio, tudo isso
para morrer, ela foi destruída pelo câncer. A vida dela foi horrível, não sei como ela buscou
sentido em continuar vivendo.
- Ela buscou porque é apenas isso que resta a vocês, não conheço o sentido da vida e
não posso afirmar que sei, mas ele pode ser muito parecido com a fuga eterna da dor. O
encontro da paz depois de dias e dias de um mal que parece ser eterno, a sensação de ter
sobrevivido. E também, por que buscas respostas para o sofrimento dela mas não para sua
felicidade?
- Porque ele pode definir uma vida inteira, a felicidade não.
- Você busca respostas para vida dela porque não entende como poderia você ter
continuado vivendo se estivesse no lugar dela.
- Sim.
Os olhos do fazendeiro tremiam, nervosos.
- Entendo. Mas não é seu dever entender o sentido que ela via em viver, o sentido
poderia ser você.
O fazendeiro enrolou outro fumo, tentando evitar o desperdício com suas mãos
trêmulas.
- Acho que era, mas ela sofreu tanto que às vezes penso que seria melhor se ela
tivesse ido mais cedo, assim como meus bebês.
- Fala de suícidio?
- Não.
- Mas fala de uma desistência antes da hora, da filosofia dos desesperados, do
atentado ao presente divino para os religiosos e da pergunta incansável para os não crentes.
- De certa forma, sim. Mas como um alívio.
- O suícidio é visto exatamente dessa forma, uma fuga para todas as dores, a resposta
sem perguntas, apenas, a ida ao fim. No entanto, ainda assim é algo que não consigo
compreender, como um corpo que é moldado biologicamente para tentar se manter vivo nas
mais diversas situações, deseja a própria morte?
- No caso não é exatamente o corpo, mas você. A consciência humana vai além da
biologia, ela pode racionalizar o ódio e virá-lo contra si mesmo. Consegue ver outro animal
que odeie tanto a si mesmo? O ser humano é o único que consegue virar o revólver para a
própria cabeça.
- Entendo, mas ainda não compreendo como isso pode ser visto como um fim.
- O fim de tudo pode ser visto como fim para qualquer coisa, há pessoas que
começam a vida sofrendo e morrem sofrendo, existem dores que não se curam, cicatrizes que
não se fecham. O período entre a dor e a cura é bem pior do que a causou.
- Já pensou nisso, não?
- Isso não é de sua conta.
- O que o manteve? Esperança?
- O que entende de esperança?
- É um conceito complexo, é a vontade de continuar vivendo que vai muito além da
vontade biológica. Me parece uma coisa única para cada ser humano, uma forma de desejar a
vida sem pensar logicamente, de ver que pode dar certo mesmo que tudo diga o contrário.
Para mim há esperança até na morte, seu corpo irá se decompor, participar das centenas de
ciclos de vida que existem em seu planeta. Até seus pensamentos são energia, as conexões
interneurais não se mantêm na sua cabeça, mas vagam como outros tipos de matéria, tudo se
transforma, tudo vira outra coisa, até o fim é um começo.
- Não continuei por esperança.
- O que o fez continuar, então?
- Ódio.
- Queria vingança?
- Sim, quando percebi que era um perigo para mim e para os outros, me isolei aqui.
Seria um tanto bonito morrer aqui, me tornar a única forma de vida humana a ser enterrado
por essas terras escuras. Poderia mudar totalmente o bioma, criar novas vidas que seriam
geradas pelas minhas bactérias. Morrer e levar meu ódio junto comigo.
- É incrível a complexidade da consciência humana, vocês são que criam doenças
geradas pelo próprio pensamento de existir. A autoconsciência é um dever tão grande e uma
informação tão maçante que chega a doer, a matar, o fato de você compreender e amar sua
família o fez ser feliz, a perda deles o adoeceu, não fisicamente, mas em sua totalidade de
existência.
- É nessa autoconsciência que temos as maiores batalhas, para compreender e fixar
um motivo que seja prazeroso viver. O sofrimento é o maior criador de grandes pessoas, eu
vivi na guerra, vivi na fome e na miséria, de lá eu vi saírem pessoas incríveis, que liam suas
próprias existências de uma forma brilhante, buscando no nada, na dor, uma beleza abstrata
criada por eles mesmos. Por isso eu escolhi descansar para ir embora, não utilizarei mais as
seringas, ficarei aqui e deixarei meu corpo.
- Se não for lhe incomodar, eu e minha família procuramos um lugar novo, um lugar
também para descansar, para que eu possa criar minhas artes.
Rômulo tragou fundo seu fumo, deixando o pulmão absorver a fumaça e o cérebro
sentir o exercício do prazer. Sorriu, levemente.
- Claro, meu amigo.
Os dias se passaram, continuaram, juntos, citando a vida como um livro de poesia,
construindo uma união sentimental entre a carne e o aço. Enquanto as conversas enchiam o
silêncio natural do planeta, as duas vozes solitárias consertavam a nave de Félix, quando esta
esteve pronta, Páris e Malena, o filho e filha do andróide, juntamente a mãe Liana, visitaram
o planeta do fazendeiro. O Rômulo nunca imaginou que teria seu coração aquecido
novamente, que sentiria aquele abraço interno que apenas sentira uma vez: o sentimento de
estar em família. Nos olhos iluminados da pequena Malena, viu na pequena vida artificial
suas filhas, viu um transformar e adaptar tal como o de uma criança ao mundo externo.
Ensinou-os a tocar violino, tal como fazia nos tempos antes da guerra, antes do rifle e das
cicatrizes.
Observou como já não ouvia o vento ou as folhas, mas as risadas e o doce violino que
Malena tanto amara. Em poucos anos, aquele planeta solitário, isolado do resto da vida
consciente, tornou-se uma casa, um lugar aconchegante, não mais um refúgio da dor.
Conformou-se sua vida foi indo embora, seu corpo envelhecendo e a mente sentindo a
lentidão da idade, sentiu sua hora chegando.
- Você me trouxe novamente para onde eu nunca deveria ido embora, me trouxe para
minha vida, meu amigo. - Sussurrou o fazendeiro, o revolucionário e o pai, Rômulo, olhando
para sua cama que estava envolta pelos andróides.
- Eu não fiz nada, caro amigo, seu caminho foi feito por você, apenas teve companhia.
As lágrimas taparam seus olhos, sorriu fracamente, e antes que tudo escurecesse,
viu-se na sua cama, não sozinho como imaginava, mas com sua nova família, uma família
inesperada.

Fim

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