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INTRODUÇÃO

O período compreendido entre o final do declínio da lógica medieval, por volta


do início do século XVI, e a publicação da Análise Matemática da Lógica de Boole, em
1847, é geralmente visto como um intervalo na história da lógica. Três áreas no
desenvolvimento da lógica nesse período podem ser distinguidas: o desenvolvimento da
semântica, o desenvolvimento de sistemas de inferência dedutiva cada vez mais gerais e
abstratos e o desenvolvimento de concepções sobre a natureza da inferência. No que diz
respeito à semântica, ela é geralmente vista como a área mais frutífera das três nesse
período, embora, em seus aspectos principais, se desenvolva com significativa
independência em relação ao interesse mais geral por questões lógicas – e, de fato,
depois da Lógica Terminista a semântica não será plenamente reintegrada à lógica senão
a partir de Frege. Quanto ao segundo conjunto de interesses, o período representa
verdadeiramente um intervalo, especialmente quando comparado à grande era da lógica
medieval, de meados do século XII a meados do século XV, e aos desenvolvimentos da
lógica que se seguiram desde Frege. E isto a despeito dos esforços de Leibniz, Euler,
Gergonne, Hamilton e outros – esforços que permaneceram isolados do mainstream de
lógica durante o período. O terceiro conjunto de interesses é mais difícil de avaliar. O
que está envolvido nele são questões filosóficas sobre em que consiste a natureza da
inferência, sobre se ela pode ser justificada, explicada ou esclarecida em termos mais
fundamentais, em que sentido a inferência pode ser informativa e assim por diante.
Estes temas foram negligenciados em comparação com os dois primeiros conjuntos de
interesses, havendo uma suposição geral de que nada, ou ao menos nada de
significativo, fora alcançado na durante este intervalo. De fato, o quadro é desolador.
Não apenas parece haver uma incompreensão geral dos objetivos da silogística
aristotélica, tanto por parte dos defensores quanto por parte dos detratores, por exemplo,
como também, em lugar das frequentes, plausíveis e atraentes concepções da
antiguidade, encontramos os aparentemente mais banais e bizarros pontos de vista: o de
que a inferência é simplesmente um processo psicológico (escolástica tardia), que as
verdades lógicas são tais porque Deus escolheu fazê-las assim (Descartes) ou que
raciocínios formais são inúteis (Locke).
Meu interesse neste livro reside no modo como Descartes lida com as questões
filosóficas da inferência. Seu tratamento desta área como um todo foi extremamente
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influente, uma influência exercida não apenas através de seus escritos, tais como o
Discurso do Método, mas também através de versões da concepção cartesiana de lógica
oferecida na Lógica de Port-Royal, de Arnaud e Nicole, e no Ensaio, de Locke. Que a
concepção cartesiana de inferência tenha sido amplamente ignorada nas histórias da
lógica não é, contudo, surpreendente como pode parecer à primeira vista. O problema
(na medida em que os historiadores da lógica dele se ocupam) é, creio, que o contexto
em que questões de inferência são suscitadas não é explicitamente lógico, mas
usualmente dominado pela preocupação com aspectos da descoberta científica, embora
possam também ser suscitadas no contexto de preocupações de teologia, teoria do
conhecimento, pedagogia e assim por diante. Isto acarreta enormes problemas
interpretativos, haja vista que o contexto da argumentação é frequentemente obscuro, e
as perspectivas às quais Descartes se opõe dificilmente identificáveis. Na verdade, devo
dizer que tem sido esta a causa de sérias incompreensões acerca da perspectiva mantida
por Descartes sobre a inferência. Mas mesmo onde se pode identificar precisamente o
contexto relevante da argumentação, a confusão persiste em torno do modo como as
questões são postas, pois o contexto parece frequentemente inteiramente inapropriado. É
muito comum encontrar questões sobre se a conclusão de um argumento nos diz algo
diferente das premissas a partir das quais foi deduzida, por exemplo, sendo postas no
contexto de questões sobre quais formas de investigação ou argumento nos capacita a
descobrir algo (factualmente) novo. Isto ocorre não apenas no século XVII, mas
também na antiguidade e se estende até o século XIX. É relativamente fácil discernir
aqui duas questões distintas, mas bem mais difícil explicar por que foram
persistentemente tratadas como uma única questão por um período tão longo.
A concepção cartesiana de inferência interessa não apenas porque suscita
questões lógicas e cognitivas como também questões sobre em que consiste a inferência
– questões que são constitutivas dos problemas modernos sobre inferência (por
exemplo, sobre como a inferência pode ser informativa), mas que estão amplamente
ausentes em seus predecessores imediatos e que são formuladas de um modo muito
diferente em seus predecessores remotos. Sua perspectiva é, com efeito, mais coerente
do que os comentadores têm, em geral, admitido, e é útil (instrumental) no
desenvolvimento de uma compreensão da inferência que, apesar de suas falhas, é muito
superior àquela que prevaleceu no início do século XVII. Este fato foi negligenciado
porque os comentadores assumiram que a alternativa à concepção de Descartes era
aquela que incorporava a silogística aristotélica. Mas, em primeiro lugar, na medida em
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que Descartes e seus contemporâneos estão às voltas com a silogística aristotélica, eles
lidam com o procedimento de descoberta científica e não com uma discussão acerca de
padrões de inferência válidos ou em torno de em que consiste a inferência. Em segundo
lugar, no âmbito das questões filosóficas sobre em que consiste a inferência, as
preocupações de Descartes se voltam para as concepções ramistas e para aquelas da
Escolástica tardia, e não para as de Aristóteles. Um número significativo de
desenvolvimentos nos pensamentos medieval e renascentista suscitou novos problemas
acerca ‘do que e como conhecemos’ que alteraram radicalmente o modo como as
questões de inferência eram vistas. Esta mudança, do que eu chamo de uma concepção
discursiva da inferência para uma concepção facultativa, preludiou efetivamente uma
solução aristotélica para os problemas.
A silogística aristotélica é o tema do primeiro capítulo, onde abordo desde as
críticas internas da silogística até a época de Descartes. Estas críticas são internas no
sentido em que são destinadas a mostrar que a silogística não pode fazer o que
reivindica (ou pensava reivindicar) ser capaz de realizar. Elas não constituem, contudo,
o escopo da objeção de Descartes à silogística e, de fato, quem quiser detalhes delas
deve buscar suas fontes antes em Sexto Empirico que no século XVII, mas elas são
assumidas por Descartes e nos fornecem uma boa ideia disso que Descartes e outros no
século XVII esperavam da lógica.
O núcleo de sua posição é discutido no segundo capítulo que contém o cerne de
meu próprio argumento. Há duas doutrinas que repercutem na perspectiva de Descartes
sobre a inferência: (1) sua teoria de que a inferência deve ser compreendida como um
intuitus, e a doutrina de que verdades eternas são livremente criadas por Deus. É de
extrema importância aqui ter presente que estas não são parte da mesma doutrina, como
geralmente se supôs. A verdade da primeira é que a inferência é simples e primitiva, que
é, além disso, não analisável e nem, mais importante, redutível a processos psicológicos
ou recursos pedagógicos ou o que quer que seja. Aqui, Descartes é particularmente
desafiador em relação a perspectivas contemporâneas consideráveis. (2) A segunda
doutrina, afirmo, não tem qualquer influência sobre questões lógicas de inferência, mas
tem influência sobre o estatuto cognitivo da inferência, pois, ao contrário do que parece,
capacita Descartes a dissociar nosso processo de raciocínio do modelo divino e, desse
modo, fornece um fundamento para a primitividade e confiabilidade do processo
humano de raciocínio. A interpretação geral da concepção de Descartes da inferência
que ofereço é bastante diferente das que outros propuseram, mas creio que nos capacita
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a assegurar um maior sentido do que, com frequência, se vê em considerações


desconcertantes.
No terceiro e quarto capítulos, examino aparentes divergências entre a
concepção global de inferência de Descartes e seu trabalho em matemática e filosofia
natural respectivamente. Embora Descartes menospreze raciocínios formais, em seu
trabalho matemático ele desenvolve e desdobra o que é o paradigma do raciocínio
formal, a álgebra. Contudo, ele constrói a álgebra como uma resolução de problema
antes que como um processo dedutivo e não faz as conexões entre álgebra, raciocínio
formal e dedução que nós poderíamos esperar. Sua peculiar construção da álgebra
resulta de considerações matemáticas que mostram que a síntese, que ele associa à
dedução, é desnecessária. Eu exploro a base dessas considerações. Isto fornece um
quadro a partir do qual pode-se comparar suas perspectivas sobre a dedução com
aquelas de Leibniz – a segunda parte do capítulo é dedicada a esta comparação. O
problema em filosofia natural, que eu abordo no capítulo IV, é que Descartes parece
adotar diretamente uma abordagem dedutiva (por exemplo, nos Princípios) e rejeitar
explicitamente uma abordagem resolutiva (por exemplo, em sua crítica a Galileu).
Novamente isto poderia ir contra sua concepção geral de inferência e contra sua
abordagem especificamente resolutiva e antidedutivista em matemática, uma área que
supostamente fornece o modelo para suas outras empresas. Mas, de fato, seu
procedimento em filosofia natural é reconciliável com sua rejeição da dedução, desde
que estejamos cuidadosamente atentos ao contexto de suas afirmações. A dificuldade
repousa antes em como conceber o valor epistêmico da dedução, pois Descartes rejeita a
ideia de que a dedução de uma conclusão a partir das premissas possa resultar em um
avanço epistêmico, mas isto é muito contrário à evidência e vai além do que é
necessário defender em sua abordagem experimental e resolutiva.

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