Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ES TÍMU LOS
“Sexo em casa era tabu, ninguém tocava no assunto. Eu só fui adentrar esse universo que hoje
é tão natural pra mim quando comecei a me tocar assistindo pornô. Só ali vi gente como eu, se
relacionando, gozando e sendo feliz”, conta.
Nessa mesma época, o jovem arquiteto começou a buscar no Facebook pessoas que curtiam a
mesma coisa que ele, até que um dia encontrou um grupo na rede social de homens gays e
admiradores de sua cidade. Lá, fez amizade com um rapaz um pouco mais velho e engataram
um romance on-line – embora vivessem a dois bairros de diferença. Quando finalmente se
conheceram, três meses depois de muita conversa, Fernando e o affair transaram. A
experiência, no entanto, não foi tão agradável como ele imaginava e, por isso, decidiu terminar o
caso, a fim de descobrir novas possibilidades em novas pessoas.
“Percebi que namorar, casar e essas coisas não era pra mim. Sempre preferi a minha própria
companhia e me sinto mais à vontade só para transar, mamar, dar uns beijos e ir embora.
Assim, não assumo nenhuma responsabilidade propriamente afetiva e não me sinto mal por ter
criado expectativas ou coisa do tipo. Hoje, de tão recorrente, virou algo natural e escolhi viver
assim.”
Embora não seja debatido de forma escancarada, o Cruising – do inglês cruzeiro –, como é
conhecida a prática sexual anônima, gratuita, com consentimento e geralmente realizada entre
homens em locais públicos (parques, trilhas, praias e estacionamentos) é uma realidade
implícita que vai muito além do sexo.
Segundo Victor Hugo Barreto, doutor e antropólogo nas áreas de sexualidade, gênero, saúde e
conflitos, a história da pegação em locais públicos existe desde que o mundo é mundo, sendo
intensificada conforme as cidades foram se desenvolvendo a partir da urbanização do espaço
público. Pode-se dizer, ainda, que o cruising é um comportamento de resistência, visto que
pessoas LGBTQIA+ sempre tiveram seus espaços – sexuais, físicos e sociais – negados pelas
instituições, ainda que, em alguns períodos da história, tenhamos vivido avanços em relação à
liberdade sexual.
“Sempre tem um certo padrão de uso e reconhecimento do espaço público através dessas
práticas sexuais. Antes, acontecia na rua porque não tinha um lugar específico para essas
pessoas, não tinha uma boate gay, não tinha um lugar para eles. Essas coisas aconteciam no
velho esquema da discrição, do sigilo, porque aquilo não poderia se sobressair, não poderia ser
visível as outras pessoas. Tudo isso acontecia numa troca de códigos e símbolos que eles
conheciam, desde o olhar em que você identifica um semelhante até a cor da gravata
[estratégia de identificação entre homens gays que permitia a representação de sexualidades e
comportamentos dissidentes], citadas por João do Rio em algumas de suas crônicas”, explica.
Cauê Xopô/Ilustração
Riscos
Fernando não está sozinho em suas preferências. Igor*, também iniciou a vida sexual com
pessoas que conheceu na internet por meio das mídias sociais. O motivo, ele explica, é que
tinha medo de se assumir bissexual porque via muito na televisão sobre assassinatos de
pessoas LGBT e temia ser expulso de casa ou até mesmo violentado pela própria família, que
seguia uma doutrina cristã pentecostal, reproduzindo discursos de ódio contra pessoas “do
mundo”, como eles diziam.
Na adolescência, tinha namorado e quase se casou com uma garota da igreja, porém nada
daquilo fazia sentido. Passou a pesquisar mais sobre sexualidade e gênero e, apesar de tudo ao
seu redor lhe provocar contra, não tinha como fugir de quem realmente era. Numa dessas
pesquisas, Igor quis saber como poderia conquistar outros meninos e saber se eles também
“Quando completei 18 anos, instalei o Grindr. Fiquei espantado no começo, mas logo me
adaptei. Ignorava e era ignorado, até que notei que tinha um conhecido lá, um cara que estudou
comigo e trocamos ideia. Quando transamos pela primeira vez, no banheiro do shopping, nunca
me senti tão livre e disposto a me entender como homem (e bissexual)”.
Cauê Xopô/Ilustração
Na escola, assim como Fernando, Igor não teve sua história exemplificada nas cartilhas de
educação sexual e não sabia quase nada sobre como se prevenir da maneira correta, métodos
contraceptivos e sobre as vulnerabilidades a que estava sujeito. Numa foda rápida e sem
grandes pretenções, contraiu sífilis e só soube porque um amigo insistiu para que eles
fizessem um teste rápido em uma campanha de conscientização promovida pelo Centro de
Testagem e Aconselhemento (CTA) de sua cidade. Na hora, seu mundo caiu, mas foi
encaminhado, tratado e aconselhado pelos profissionais, a quem nutre uma grande gratidão.
“Se eu não tivesse recebido o diagnóstico, talvez eu tivesse contraído outras infecções e o pior:
infectado mais e mais pessoas”.
Quando falamos de sexo, também falamos de assumir riscos. Em 2019, segundo dados
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de um milhão de
brasileiros com 18 anos ou mais contraiu algum tipo de Infecção Sexualmente Transmissível
(IST). E mais: temos aproximadamente 74 milhões de mulheres engravidando anualmente em
todo o mundo sem intenção, diz a Organização Mundial da Saúde (OMS). Essas informações
revelam a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas voltadas à prevenção e
conscientização da população, em particular dos mais vulnerabilizados.
No cruising, como tudo é muito rápido e em geral impessoal, é comum vermos casos em que a
pegação rola sem camisinha, apesar de trocas de fluídos entre os parceiros. Para Vinícius
Borges – ou Doutor Maravilha, como é conhecido pela internet e pelos pacientes –, médico
infectologista pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/UFMG)
e especialista em sexualidade, a prática carece de uma das partes mais importantes da
prevenção: a conversa.
Cauê Xopô/Ilustração
E o tema precisa ser discutido sem moralismos: “Para tratar de cruising, de pegação, seja um
lugar público ou em lugar privado, em hotel, na casa, onde for… a gente tem que entender que
as pessoas transam, sempre vão transar e é bom que seja assim. A gente tem que fornecer
essas ferramentas para que ela possa praticar da maneira mais saudável possível”.
“Para tratar de cruising, de pegação, seja um lugar
público ou em lugar privado, a gente tem que
entender que as pessoas transam, sempre vão transar
e é bom que seja assim. Precisamos fornecer
ferramentas para que ela possa praticar da maneira
mais saudável possível”
Vinícius Borges
Outro cuidado importante na hora de decidir praticar ou não o cruising é lembrar que, além de
trazer riscos à saúde de quem o faça, a prática de sexo ao ar livre ou em locais pouco
convencionais é ilegal. O artigo 233 do Código Penal Brasileiro destaca que praticar ato
obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público configura crime que pode levar à
detenção de três meses a um ano. A pena também pode ser pagamento de multa.
Cauê Xopô/Ilustração
Pegação 2.0
Se nos anos 1960 os encontros sexuais eram organizados estrategicamente, fugindo da
repressão sexual – e institucional – que estava instalada no país, atualmente basta um
download e pronto: sexo gratuito onde quer que você esteja. Isso é um reflexo do nascimento
das redes sociais e a febre do uso de aplicativos entre o final da década de 1990 e o início dos
anos 2000.
Para aqueles que procuram encontros casuais, fáceis e rápidos, é impossível deixar de citar a
dupla Grindr e Hornet. Os dois são os aplicativos de putaria mais utilizados, sobretudo por
homens (cis e trans) gays e bissexuais. Porém, a única plataforma com o objetivo de promover
pegação causal, consensual e que até possui um espaço para que os usuários compartilhem
experiências e recomendações é o site Gay-Cruising, presente em diversos países – o Brasil
ocupa o 2º lugar no Top 10 Regiões onde o site é mais acessado.
Cauê Xopô/Ilustração
Nenhuma plataforma compartilhou dados com a Elástica sobre métricas e informações dos
usuários até o fechamento desta reportagem, com exceção do Grindr que, pela privacidade e
segurança dos usuários, alegou que não compartilham status específicos sobre eles baseados
em suas respectivas regiões e países.
Segundo Bruno Puccinelli, cientista social que estuda sobre cidades no diálogo com gênero e
sexualidade, os aplicativos representam um novo momento dessas relações sexuais mais
efêmeras. No entanto, eles não substituíram os parques e banheiros públicos: “Não
necessariamente as pessoas que têm aplicativos no celular vão deixar de fazer pegação porque
têm dinâmicas de desejos e interesses que são diferentes. Acho que a gente pode chamar isso
de Cruising 2.0 com algumas ressalvas, porque a lógica é diferente, né? Os aplicativos estão
inseridos na lógica da escolha de um michê, de um garoto de programa, mesmo que você não
pague, porque tem um monte de coisas que são acertadas antes da efetivação do encontro –
que, no caso do Cruising 1.0, vamos dizer assim, os acertos são muito pontuais, muito inseridos
numa simbologia compartilhada que não é tão falada (olhares, gestos, aproximação) até que
alguma coisa aconteça”.
Ainda que os aplicativos focados em sexo casual tenham revolucionado as transas, a pegação
não deixa de ter (muito) espaço dentro das mídias mais antigas. Lançado em 2006, o Twitter
hoje, além de reunir tuítes e RTs de anônimos e pessoas públicas, é um espaço de
descontração e abrange perfis de atores de vídeos adultos, influenciadores sexuais e contos
eróticos. Além disso, a rede atrai a galera que curte cruising, com contas que revelam
indicações de banheiros públicos – os famosos banheirões – e outros points de pegação pelas
cidades mundo afora. Na Elástica falamos um pouco disso aqui.
Com AndFlix (@AndAndflix), também criador de conteúdo, a história não foi muito diferente. O
jovem tinha muitas fotos e vídeos revelando sua tara em sexo em locais públicos, mas não
sabia o que fazer com aquilo, até que viu na rede do passarinho a oportunidade de fetichizar o
seu cotidiano. “Gosto de lugares livres, de lugares abandonados, de lugares comuns. Quase
nunca vou pra motel, tenho nojo, e na minha conta tem muito encontro, mas não tem muita
gravação, porque a minha intenção com meus vídeos é que eles sejam em lugares diferentes,
né? É muito trivial você foder no conforto do seu lar. Isso é muito comum e eu não gosto do
comum”.
Cauê Xopô/Ilustração
E as mulheres?
Apesar de mais comum entre os homens homo e bissexuais, o cruising não se restringe apenas
a eles, apesar de ser mais comum. No caso das mulheres (cis e transsexuais), a busca por sexo
é feita de forma diferente. É recente a história da mulher com o prazer pelo prazer e do
comportamento sexual de mulheres trans desvinculado da prostituição e da exploração sexual.
Ambas tiveram suas performances e vivências marginalizadas e seus direitos, inclusive aos
próprios sentimentos negados.
Segundo Renan Quinalha, escritor, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e ativista no campo dos direitos humanos, as mulheres sempre foram educadas e
reprimidas para ficarem no espaço privado, do lar, espaço doméstico, fazendo as tarefas de
cuidado. Isso sem dúvida influenciou a maneira como elas vivenciaram também suas
experiências sentimentais, afetivas, sexuais. O professor ainda explica que há muito mais
registros de mulheres lésbicas que tiveram experiências com pessoas próximas numa troca de
intimidade, que frequentavam a própria casa numa troca de intimidade que é muito mais
permitida à mulher do que aos homens.
“Em relação aos homens, tem essa masculinidade que permite ter o prazer, mas não um
vínculo afetivo. Uma pegação casual é muito isso também, né? Vai ali, tem prazer, uma relação
e acabou. Para as mulheres, é diferente. As cidades foram projetadas e pensadas por homens e
para homens, por isso elas nunca tiveram esse espaço nesses pontos também de pegação, e
muito menos em bares reservados às mulheres, o que é comum para homens gays”.
Já no caso das mulheres trans e travestis, diferentemente das mulheres cis-gênero, o grande
desafio é fazer com que elas sejam reconhecidas em seus respectivos afetos, nos seus desejos,
nas suas formas de ser e estar no mundo, para além dos estigmas impostos pela sociedade,
associando-as à marginalização, ao trabalho sexual e a exploraçao sexual dos seus corpos como
objetos e nada mais.
“São ações afirmativas para a inclusão nas universidades, no mercado de trabalho e na política.
São iniciativas de educação – não necessariamente das pessoas trans, mas de educação das
pessoas cisgêneras, das pessoas não-trans para valorização. Não é só aceitação, não é só
tolerância, mas valorização da população trans como companheira, parceira de trabalho, como
aquela que está junto contigo e não é pior ou melhor do que você por causa da sua identidade
de gênero.”
*A pedido dos entrevistados, alguns nomes foram alterados para preservar suas privacidades.
_______________________
As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Cauê Xopô. Confira mais de seu
trabalho aqui.
inscreva-se aqui
TAGS RELACIONADAS
mais de
estímulos
Voltar a se relacionar
Com o aumento gradativo das interações sociais, matamos um
pouco a vontade de transar com mais pessoas. Mas 2021 ainda foi
um ano para repensar relações
Fugindo de bebês
Em um país que proíbe o aborto e tem 55% das gravidezes não
planejadas, falar sobre contraceptivos é fazer o que a saúde pública
não faz
VE R MA IS
a elástica
• manifesto
• artistas
• privacidade
• contas abertas
• newsletter