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Platáo

PARMENIDES
Tradução de
MARIA IO SÉ
FIGUEIREDO

Filosofia UFPB 2013


Digitalizado por A.F.A.O
Platáo
PARMENIDES
Tradução de
MARIA JO SÉ
FIGUEIREDO
1. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DO ESPÍRITO 21. INTRODUÇÃO À LEITURA
Pascal Engel DO SER E TEM PO DE MARTIN HEIDEGGER
I . RELER DESCARTES Hervé Pasqua
Alexis Pbilonenko 22. SENSO COMUM E MODERNIDADE
3. A FILOSOFIA NATURAL D E DESCARTES EM HANNAH ARENDT
Michio Kobayashi Anne-Marie Roviello
4. D E SC A R T E S-A FÁBULA DO MUNDO 23. DESCOBRINDO A EXISTÊNCIA
Jean-Pierre Cavaillé COM H USSERL E HEIDEGGER
5. FUNDAM ENTOS NATURAIS DA ÉTICA Emmanuel Levinas
Direcção de Jean-Pietre Changeux 24. A VOCAÇÃO MODERNA
6. A TEO RIA DO SISTEM A GERAL Judith Schianger
Jean-Louis Le Moigne 25. A POÉTICA DO POSSÍVEL
7. OS SISTEM AS AUTÓNOMOS Richard Kearney
Jacques Lorigny 26. O FUNDAMENTO EM H EIDEGG ER
8. SOBRE A ONTOLOGIA CINZENTA Mafalda Faria Blanc
D E DESCARTES 27. H EIDEGG ER E O PROBLEMA DO ESPAÇO
Jean-Luc Marion Didier Franck
9. O LUGAR DO HOMEM NA NATUREZA 28. DA METAFÍSICA À MORAL
P. Teilhari de Chardin Paul Ricouer
10. O JU S T O OU A ESSÊNCIA DA JU STIÇ A 29. A SOMBRA D EST E PENSAMENTO
Paul Ricoeur Dominique Janicaud
I I . PAUL R IC O E U R -A PROMESSA E A REGRA 30. O REALISMO D E ROSTO HUMANO
OlivierAbel Hilaiy Putnam
12. H EID EG G ER E A ESSÊNCIA DO HOMEM 31. A D M D A IMPENSADA
Michel Haar Marlene Zarader
13. O CO N CEITO D E AMOR EM SANTO 32. LABIRINTOS
AGOSTINHO Richard Wolin
Hannah Arendt
33. MARTIN H EIDEGG ER
14. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA
E A PO LÍTICA PÓS-MODERNA
EM PAUL FEYERABEND
Porfírio Silva Leslie Paul Thiele
15. H EID EG G ER E A QUESTÃO DO TEM PO 34. H EIDEGG ER E A É T IC A
Françoise Dastur Joanna Hodge
16. INTRODUÇÃO À ONTOLOGIA 35. INTRODUÇÃO A HEIDEGGER
Mafalda de Faria Blanc
Gianni Vattimo
17. INTRODUÇÃO À METAFÍSICA
36. DESM ITIFICANDO HEIDEGGER
Martin Heidegger
18. H EID EG G ER E O S E U SÉCULO John D. Caputo
Jeffrey Andrew Barash 3 7. PAUL RICOEUR - AS FRONTEIRAS
19. H EID EG G ER E AS PALAVRAS DA ORIGEM DA FILOSOFIA
Marlene Zarader OlivierMongin
20. II ANNAH ARENDT, 38. POLÍTICA DO SER - O PENSAMENTO
POLÍTICA E ACONTECIMENTO PO LÍTICO DE MARTIN I 1EIDEGGER
Anne Amiel Richard Wolin
39. RENOVARA FILOSOFIA 55. M EDITAÇÕES FILOSÓFICAS - VOL. II
llilm y Putnam PEQUENO MANUAL D E IN ESTÉTICA
40. POLIEDRO H EID EG G ER Alain Badiou
DirafSo de Charles Guignon 56. MEDITAÇÕES FILOSÓFICAS - VOL. III
41. TRATADO DA EFICÁCIA COMPÊNDIO D EM ETA PO LÍTIC A
François Jullien Alain Badiou
42. CONSEQUÊNCIAS DO PRAGMATISMO 57. O Q U E É A FILOSOFIA?
Richard Rorty Jean P iem Faye
43. SERENIDADE 58. LEITURAS D E ONTOLOGIA
Martin Heidegger FUNDAMENTAL
44. VERDADE E LIBERDADE Jacques Taminiaux
EM MARTIN H EID EG G ER 59. O PRINCÍPIO DO FUNDAMENTO
Carlos Monijäo Martin Heidegger
45. LIÇÕES PLATÓNICAS 60. A VIDA DO ESPÍRITO - VOL. I - PENSAR
Alexis Philmenko Hannah Arendt
46. A FILOSOFIA D E PAUL RICOEUR 61. A VIDA DO E S P ÍR I T O - V O L . I I - Q U E R E R
Editor Lewis E. Hahn Hannah Arendt
47. D IRE IT O E MORAL 62. HABITAR A TERRA
Jürgen Habermas Bruce V. Foltz
48. AERA DO INDIVÍDUO 63. A CILADA
Alain Renaut Jean-Pierre Faye
49. ENSAIOS SOBRE H EID EG G ER E OU TRO S 64. CATEGORIAS
Richard Rortj Aristóteles
50. A METAFÍSICA DO TEM PO 65. O E N T E E A ESSÊNCIA
Mafalda Varia Blanc São Tomás de Aquino
51. T E X T O S E C O N TEXTO S 66. O HOMEM E O MAL
Jürgen Habermas Andrejacob
52. COM ENTÁRIOS À ÉTICA DO DISCURSO 67. VOO PARA O CORAÇÃO DA TEM PESTAD E
Jürgen Habermas António Duarte Henriques Lopes
53. H EID EG G ER E «O SJU D EU S» 68. A FILOSOFIA E A FELICIDADE
Jcan-François Lyotard Philippe van den Bosch
54. M EDITAÇÕES FILOSÓFICAS - VOL. I 69. AS FILOSOFIAS DA HUMANIDADE
BREVE TRATADO D E ONTOLOGIA Miehcl Malherbe, Philippe Gaudin
TRANSITÓRIA 70. PARMÉNIDES
Alain Badiou Platão
PARMENIDES
T ít u l o o r ig in a l:
Parménides
A u to r :
Platão
C o le c ç ã o :
Pensamento e Filosofia
D ir e c ç ã o d e A n t ó n i o O l i v e i r a C r u z
T rad u çã o :
Maria Josc Figueiredo
R e v is ã o c ie n tíf ic a :
Maria José Figueiredo
C apa:
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ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor.
PARMENIDES

PLATÃO

Introdução de JosÉ T r in d a d e S a n to s
Tradução e notas de M a r ia JosÉ FIGUEIREDO

INSTITUTO
PIAGET

Digitalizado Por A.F.A.O


INTRODUÇÃO

ESTRUTURA DO DIÁLOGO: PERSONAGENS

O Parménides narra um acontecimento fictício, mas que bem


poderia ter ocorrido: o debate que opôs o jovem Sócrates a Zenão
e ao seu mestre Parménides. Os dois Eleatas teriam vindo a
Atenas para assistirem às Panateneias, o mais velho com cerca de
65 anos, o mais novo rondando os 40. Se fixarmos a data do
encontro antes de 449 a. C., Sócrates (469-399) teria menos de
20 anos.
Platão envolve o acontecimento numa tripla narrativa. Uma
testemunha presencial - Pitodoro - narrou o confronto a Antifonte
(meio irmão de Gláucon, de Adimanto e de Platão), que o memori­
zou. Muitos anos mais tarde, o mesmo Antifonte recebe em Atenas
a visita de um grupo de filósofos de Clazómenas, que lhe pedem que
faça o relato da conversa. E esse relato que um deles, Céfalo, repro­
duz aos ouvintes ou leitores.
O debate, que constitui o fulcro da narrativa, desenrola-se em
duas partes, a primeira dividida em duas conversas. Na primeira
conversa (127d-130a), Sócrates critica Zenão pela tese defendida
no seu livro, que acabara de ler. Na segunda (130a-136c), inter-

9
vem o próprio Parménides, que questiona Sócrates sobre alguns
aspectos da teoria das Formas.
Após um curto interlúdio (136c-137c), instado por todos os
circunstantes, Parménides entrega-se, na segunda parte do diá­
logo, à demonstração exaustiva das consequências resultantes
primeiro da afirmação, depois da negação da hipótese do uno
(137c-166c). A demonstração termina na declaração de aporia.
O final do diálogo, com a conclusão aporética das duas hipóte­
ses, deixa a estrutura narrativa em aberto. Essa abertura insere
cada leitor do diálogo na cadeia narrativa. A sua interpretação
constitui-se como mais uma versão da narrativa original, cujo
sentido se perdeu há muito, mas que em contrapartida se recons­
titui a cada nova leitura.
Tal constatação é profundamente irónica, se pensarmos no
fosso que, ao longo dos séculos, se cavou entre as interpretações
que hoje competem como leituras do diálogo «original», algumas
com pretensões de abrirem para interpretações globais da filosofia
platónica.

DIFICULDADES DE INTERPRETAÇÃO:
UNIDADE DO DIÁLOGO

É na relacionação destas duas partes, de dimensões muito


diferentes, que reside a principal dificuldade de interpretação do
diálogo. Vejamos como está organizada a primeira.
E fácil perceber o alcance das críticas de Sócrates a Zenão. Se
aceitarmos a hipótese de que o mundo sensível é regulado por
Formas inteligíveis, é claro que todos os sensíveis serão simulta­
neamente semelhantes (na medida em que participem da mesma,
ou das mesmas Formas) e dissemelhantes (pelo facto de diferirem
uns dos outros). Para Sócrates, este facto não põe qualquer pro­
blema, inconcebível é que as próprias Formas possam ser objecto
dessa crítica.

10
/Vs/r ponto de t’i:.hi, lyjiiiliiiculc claro é o sentido das criticas
de Parménides a Sócrates. A aceitação da hipótese das Formas
obriga ao esclarecimento das relações que estas mantêm com o sen­
sível. Um primeiro problema tem a ver com a extensão das
Formas: haverá Formas para tudo, mesmo os entes mais despre­
zíveis1? Sócrates responde que não, sem explicar as razões da sua
reserva2.
O segundo problema é o da participação, que liga os sensíveis
às Formas. Será essa participação no todo ou em parte da Forma
(exemplos do dia, ou da vela3)? Como se poderá explicar a unidade
dessa propriedade comum à Forma e ao sensível que dela parti­
cipa? Não será necessário postular uma infinidade de Formas para
explicar a comunidade entre os três elementos da ontologia plató­
nica: indivíduos, classes e propriedades4?

1 A República X 596a afirma (tradução Rocha Pereira, Lisboa, 1994): «estamos


habituados a admitir uma certa ideia (sempre uma só) em relação a cada
grupo de coisas particulares, a que pomos um mesmo nome.»
2 Cometendo um erro grave, pois negar que haja uma Forma para cada plu­
ralidade (no sentido referido na R. X 596a) é deixar sem explicação o facto
de lhes ser atribuído um único nome, que «universalmente» as unifica. Para
além disso, limitar arbitrariamente a extensão das Formas é deixar secções
do sensível sem qualquer causa ou explicação, de acordo com a leitura do
Fédon 72-77,100-105.
3 O objectivo do questionamento de Parménides é destruir a alegada
unidade das Formas. Como podem ser unas, se participam em vários indi­
víduos distintos? Reciprocamente, os indivíduos participam no todo das
Formas, ou apenas em parte delas?
Note-se que, na relação entre Formas participantes e indivíduos partici­
pados, há um elaborado equívoco entre dois sentidos de «participação»
(expresso pelas expressões «ter F» e «ser F»): ver N. Fujisawa «Echein,
metechein, and Idioms of Paradeigmatism in Plato's Theory of Forms», in
Phronesis 1974, pp. 30-58.
4 Não é evidente que as Formas possam ser encaradas como «classes», dado
manterem a sua identidade individual. Também não é claro que «a Forma no
sensível» (o que significa «ter F») possa ser encarada como uma propriedade.
Tal leitura das críticas eleáticas a Sócrates é desenvolvida pela «interpre­
tação analítica» (ver adiante, nota 7) do Parménides, para a qual concorreram

11
Urna solução para estas objecções residiria em considerar as
Formas puras estruturas mentais, pensamentos. Mas então - ter­
ceiro problema - esse pensamento não terá de ser de alguma coisa
real, que «existe» nos entes considerados? Ou será que a realidade
não é mais que pensamento?
Também para estas dificuldades Sócrates imagina uma resposta.
As Formas seriam paradigmas inteligíveis, de que os sensíveis
seriam cópias. Mas então - quarto problema - , se há semelhança
entre umas e outros, não se tornará necessário postular outra e
outra Forma, até ao infinito, para explicar tal semelhança5?
Mas não é tudo, pois - e o quinto é o mais difícil dos proble­
mas apresentados por Parménides - como poderá essa dupla
natureza das Formas e das coisas, inteligível e sensível, ser comu-
nicante? Não o sendo, as Formas serão incognoscíveis para os
homens e este mundo será incognoscível para Deus? Ou seja,
distinguir inteligível e sensível não implica postular dois conhe­
cimentos6?
Pesando no seu todo o alcance das críticas de Parménides, não
é claro que delas decorra a inviabilidade da teoria das Formas.
Delas resulta apenas a necessidade de apoiar a defesa da hipótese
das Formas na capacidade de desenvolvimento do raciocínio
dialéctico. E é para apresentar um exemplo dessa prática que
Parménides se vai entregar à dedução exaustiva das consequên­
cias da aceitação e rejeição da hipótese do uno.

o estudo de G. Ryle «Plato's Parmenides» (1939), in Studies in Plato's Meta­


physics, R. E. Allen (org.), Londres 1965, pp. 149-184, bem como a série de
estudos de G. Vlastos sobre o argumento do «terceiro homem», e ainda a
longa série de respostas a que deu origem (ver nota 7).
5 Esta é a segunda versão do problema do «terceiro homem», que difere da
anterior por se articular especificamente sobre a noção de «semelhante».
6 O alcance da argumentação do Eleata, da terceira à quinta objecções, é a
imputação da separação às Formas. Poderá aceitar-se a alegação de existência
separada, em relação aos indivíduos que delas participam, porém, não a preço
da incomunicabilidade total de participantes e participados, no limite resul­
tante na incognoscibilidade recíproca de cada um dos mundos separados.

12
Será então i'ssu e cru 1 1 1 / 1 1 1 ijiic quiTÍamos chegar 1 1 Jiiinli
iluilc desta secunda c mm:· lon^u parle do diálogo? Ou seja, as
duas hipóteses - «se 0 uno c» c "se 0 uno nuo é» - e os argumen­
tos a que dão origem, constituem um mero exercício dialéctico,
destituído de qualquer outro alcance filosófico?
E precisamente esta admissão que a tradição dos comentadores
(a despeito da aceitação de alguns) se recusa afazer, pois ela impli­
caria negar a unidade do diálogo7. Tal admissão, note-se, equivale
a uma desistência, pois nada se ganha rejeitando qualquer relação
entre, por um lado, as críticas de Sócrates a Zenão e as objecções
que Parménides lhes apresenta e, por outro, os problemas dialécti­
cos que se manifestam ao longo dos diversos argumentos (os quais
redundam na impossibilidade tanto da afirmação, quanto da
rejeição, da hipótese do uno). Sublinhe-se ainda que tal admissão
se revela particularmente danosa para qualquer dos pensadores
envolvidos no debate, dado que nem a hipótese do uno8, nem a das
Formas, poderão sobreviver-lhe.

INTERPRETAÇÕES DA SEGUNDA PARTE


DO DIÁLOGO

A mais famosa e antiga tentativa de defender a unidade do diálogo


é de origem neo-platónica e consiste na leitura de toda a segunda parte
como uma enumeração e descrição dos graus do ser, procedentes do

7 Vide M. M. McCabe «Unity in the Parmenides: The Unity of the Parmenides»


in Form and Argument in Late Plato, C. Gill & M. M. McCabe (orgs.), Oxford,
1996, pp. 5-48.
8 Na sua original análise do Parménides, G. Casertano recusa-se a encarar o
Eleata como o defensar de um monismo «exclusivo de qualquer forma de plu­
ralidade», encarando a crítica daquele a Sócrates como indicativa de «que o
mundo, na totalidade dos seus aspectos múltiplos, na singularidade, na plu­
ralidade dos seus fenómenos, constitui um único cosmo, um cosmo que é tudo
e que, portanto, não pode ser senão uno» (II nome delia cosa, Nápoles, 1996,15).

13
iniu, sendo todo o esquema investido de natureza divina9. Nela en­
tronca recentemente a interpretação avançada pela teoria das «doutri­
nas não escritas», que vê no Parménides o esboço de uma doutrina
dos princípios, a qual teria sido objecto do ensino oral de Platão e de
que se colhem sinais apenas na tradição indirecta.10.
Nestes últimos anos, têm sido feitas outras tentativas que
visam a elucidação dos nexos lógicos entre as duas partes, em par­
ticular mostrando como a argumentação desenvolvida na segunda
parte, bem como a aporia final, decorrem de admissões feitas por
Sócrates na primeira parte, as quais, uma vez corrigidas (será esse
o sentido da exigência de «treino dialéctico»), não conduziriam à
consequência negativa com que o diálogo termina11.
Resta ainda referir duas outras interpretações. A primeira é a
já mencionada «interpretação analítica», segundo a qual as For­
mas seriam assimiladas a conceitos, podendo, portanto, a análise
da participação ser levada a cabo pela lógica da predicação12.
A segunda explora de uma perspectiva histórica as teses e objec-
ções de Zenão e Parménides. Estas são interpretadas no contexto
das suas concepções sobre o universo, sendo elas que justificariam
a tentativa platónica de separar as Formas do sensível13.

9 Podemos vê-la resumida historicamente no anexo i de Platon, Parménide, tra­


dução inédita, introdução e notas por Luc Brisson, Paris, 1994, pp. 285-291.
10 Vide M. Migliori, Dialetticn e Verità Commentario filosofico al Parmenide di
Platone, Milão, 1990, onde se encontrará toda a bibliografia relevante para
essa interpretação.
11 Essa intenção, notável nas edições recentes do Parménides, é particularmente
sublinhada a partir da publicação de Plato's Parmenides, translation and analysis
by R. E. Allen, Oxford, 1983. Neste mesmo sentido, embora por outra via, irá
a leitura de S. Scolnicov, Plato's Parmenides, Introduction, Translation and
Commentary, University of California Press, Berkeley (em curso de publicação).
Aproveitamos para agradecer ao autor desta obra a gentileza de nos ter pro­
porcionado conhecimento do manuscrito, antes ainda do seu aparecimento.
12 Uma referência circunstanciada às teses desta interpretação acha-se no
anexos ii e m de L. Brisson, op. cit., pp. 293-308.
13 E esse o sentido da interpretação de L. Brisson, op. cit. (vide acima nota 3).
Além dos anexos acima mencionados, nesta obra acha-se ainda referida a
extensa bibliografia sobre o Parménides.

14
ARGUMENTO 0 0 DIÁLOGO
PRIMEIRA PARTE, PRIMEIRA CONVERSA (127D-130A)

Zenão defende-se da crítica de Sócrates à tese em que atribui ao


sensível a semelhança e a dissemelhança, declarando que o seu
objectivo era mostrar que, por muitas que fossem as contradições
decorrentes da afirmação da tese do uno, muitas outras decorreriam
da afirmação da tese da pluralidade. Mas Sócrates aprofunda a
crítica, alegando a trivialidade da argumentação de Zenão, se res­
trita ao sensível, pois os sensíveis são, na verdade, semelhantes e
dissemelhantes (etc., ou seja, objecto de predicação contraditória).
As Formas inteligíveis é que, pelo contrário, não serão. E parece de
toda a conveniência reter esta alegação, pois é ela que abre a porta
para a compreensão da segunda parte do diálogou .

PRIMEIRA PARTE, SEGUNDA CONVERSA (130A-136C)

Uma vez que a resposta de Sócrates exige um conhecimento


assaz preciso da natureza do inteligível, é sobre ela que Parménides
inicia o seu questionamento da concepção socrática das Formas.
A pergunta - «de que é que há Formas?» - Sócrates não con­
segue responder no modo decidido com que tinha enfrentado
Zenão. E a hesitação, que decerto se não manifestaria se o objecto
da pergunta fossem puros inteligíveis (o Bem, o Belo, a Justiça, etc.),
resvala para a negativa, perante o caso de naturezas «ridículas» e
desprezíveis, como o lixo, a lama e o cabelo. E, no entanto - este
será um segundo ponto a reter - também esta admissão se reve­
lará merecedora de reflexão, como vimos atrás (nota 2).

14 Zenão condena a multiplicidade à pluralidade indefinida, mostrando como


cada um dos muitos é ele próprio plural, na medida em que é sujeito a
predicação contraditória. Sócrates aceita a indefinida pluralidade dos
muitos, contendo-a porém, através da participação destes na unidade da
Forma. E mais, nega enfaticamente que esta possa ser objecto de múltipla e
contraditória predicação.

15
O debate volta-se então para o esclarecimento da natureza da
participação. Como poderá uma Forma manter-se inteira e sepa­
rada e, ao mesmo tempo, disseminar-se por uma multiplicidade de
entes? Sócrates responde com o exemplo do dia. Mas Parménides
ignora a saída e prefere o de uma vela para caracterizar o «um
sobre muitos»15. A pergunta sobre o modo de participação - no
todo ou na parte - Sócrates opta pela parte, sem antever os absur­
dos a que vai dar origem. No caso da grandeza em si, sendo a parte
por definição mais pequena que o todo, daí resulta que os diversos
grandes o serão e terão esse nome por «uma parte da grandeza
mais pequena que a Grandeza em si», o que é absurdo; não menos
absurda sendo a participação «em nós» do Pequeno em si, que
ficaria sendo maior que ele próprio.
Outra dificuldade resulta, se buscarmos a característica
comum a todos os objectos que participam da Forma. Se é a par­
ticipação que explica essa comunidade, outra Forma será neces­
sária para explicar a comunidade dos comuns à própria Forma e
outra e outra, até ao infinito.
Uma alternativa para evitar esse infinito regresso seria encarar
cada Forma como um pensamento. Mas então de «que coisa» seria
esse pensamento? Sócrates não pode deixar de responder que é «de
algo»: nomeadamente aquilo que é idêntico numa comunidade
de coisas e que «existe» como tal, com a insustentável consequên­
cia de que «ou tudo é a partir de pensamentos e tudo pensa, ou as
coisas são pensamentos que não pensam».

A saída de Sócrates é a esperada: as Formas são paradigmas,


exemplares perfeitos «na natureza», aos quais as coisas se asseme­
lham e de que são cópias, nisto consistindo a participação. Mas

15 A proposta de Sócrates é inadequada, pois, se tomada no sentido temporal,


é espacialmente irrelevante (o tempo «aqui» não é o tempo «ali»); e, se tomada
no sentido físico da «luz do dia», é incorrecta, pois a luz que ilumina um lugar
não é a que ilumina outro (como se pode perceber durante um eclipse).
A contraproposta de Parménides é, pelo contrário, perfeitamente adequada.

16
enliio, se a parlicípa^U) m' i \i>litn pai emiti unia delas se asseme
lliar às outras, sen) nen^sária uma outra Forma, c outra, c outra
ainda, até ao infinito, para explicar esta semelhança.
E, pior ainda. Na medida em que cada Forma é em si, não é
«em nós», e inversamente, daqui resulta a impossibilidade da par­
ticipação quer como eponímia16, quer como causação, pelo menos
entre o inteligível (a «natureza» a que Sócrates se referira atrás)
e o sensível. Poderá haver senhores e escravos, mas o senhor, em
si, será apenas senhor do escravo, em si, sem que qualquer relação
se possa estabelecer entre estes dois modos incomunicantes de ser:
o em si e o relativo.
Daqui resulta serem as Formas, em si, incognoscíveis para
nós, tal como os deuses não poderão conhecer-nos ou às coisas
deste nosso mundo, pois se há um saber em si, ele não poderá ser
de nós, tal como o nosso saber nunca poderá ser o saber em si.
Ver no final o esquema da argumentação da 1- parte.17

INTERLÚDIO

E, no entanto, por inaceitáveis que sejam as consequências de


todas as críticas atrás apontadas, elas não redundam na neces­
sidade de abandonar a hipótese das Formas, mas, pelo contrário, na
obrigação de a fortalecer através do treino dialéctico. Significa esta
intenção que, do ponto de vista do próprio Parménides, as dificul­
dades levantadas não serão intransponíveis. Significa ainda, e
acima de tudo, que a aceitação da hipótese não pode ser posta em
causa, se se quiser preservar a possibilidade do diálogo (135c2); ou
«o poder da dialéctica», se quisermos repetir a tradução mais fre­
quente para a famosa fórmula da República (532d8).

16 Ou seja, a tese de que as coisas sensíveis recebem o seu nome das Formas que
as causam, pelas quais são como são (o mesmo se afirma no Fédon 102a-b).
17 Adaptado de S. Scolnicov, op. cit.

17

E, pois, por esta razão que Parménides aceita entregar-se ao
laborioso exercício, que consistirá da enumeração exaustiva das
consequências decorrentes quer da aceitação, quer da rejeição da
hipótese do uno, que será objecto da segunda parte do diálogo.

SEGUNDA PARTE (137C-166C)

Esta secção do diálogo é constituída por um longo raciocínio


que examina a hipótese do uno, primeiro, afirmando-a e deduzindo
as consequências dela resultantes, para o imo e para os outros;
depois, negando-a e deduzindo igualmente as consequências resul­
tantes dessa negação para o uno e para os outros.
Todo este vasto esquema se articula numa teia de argumentos
subordinados, cada um dos quais se subdivide em subargumentos
(uns restritivos, expondo as consequências «negativas» da hipó­
tese, os outros explorando as consequências «positivas», até daí
resultar a indefinição). A semelhança do que fizemos para a
primeira parte, do todo será apresentado um esquema no final.
1.- hipótese - «Se o uno é» (uno)'8.
1 ° argumento: «se o imo é»: consequências para ele próprio,
em relação a si próprio.
Não é muitos; não tem partes e não é um todo; não tem limite
nem form a; não é envolvente nem envolvido; não está em lugar
algum, nem em si, nem noutro; não se move nem se altera; não
roda, porque não tem centro; não tem translação, porque esta seria
por partes.
Mas também não está em repouso, porque não persiste no
mesmo. Não é idêntico ou diferente de si ou de outro; nem seme­
lhante nem dissemelhante; nem igual nem desigual; nem da
mesma idade, nem mais velho, nem mais novo que ele próprio ou

18 G. Casertano, op. cit., pp. 42-53, encara esta primeira hipótese «se o uno é
uno» com o autónoma e distinta da seguinte: «se o uno é». Considera assim
haver três e não duas hipóteses nesta parte do diálogo.

18
outro. Não participa do tempo; nem devém, nem deveio, nem
devirá, Não participa do ser, nem do ser uno. Não é, nem para
outro, nem para si próprio, não tem nome, definição; dele não há
saber, sensação ou opinião.
2 ° argumento: «se o uno é»: consequências para ele próprio,
em relação aos outros.
Participa do ser e é uno porque participa de ser uno, logo é um
todo do qual o ser e o uno são partes: «o que é» é uno, «o que é
uno» é. Se tem partes é ilimitado, tendo forma e limite pelas
partes; logo, é número, limite e ilimitado; logo, infinita multipli­
cidade, limite e figura, inclusão em si e noutro, movimento e imo­
bilidade, semelhança e dissemelhança, contacto e não contacto,
consigo e com os outros, igualdade e desigualdade. No tempo, será
e devirá, sendo da mesma idade, mais velho e mais novo que os
outros. Tendo determinação própria, dele haverá saber, opinião e
sensação, bem como nome e definição.

APÊNDICE: A GERAÇÃO E A CORRUPÇÃO

É uno e múltiplo, nem uno nem múltiplo; participa e não par­


ticipa no tempo. Logo nasce e perece (nasce como uno e perece como
múltiplo e vice-versa). Logo separa-se e reúne-se; torna-se seme­
lhante e dissemelhante; maior, mais pequeno e igual, crescendo e
decrescendo e tornando-se igual. Move-se e imobiliza-se, estando
em movimento e depois em repouso, logo, mudando (só estaria
imóvel no tempo num momento).
Sendo uno, é imóvel e move-se, logo muda (e é no momento
que muda). Logo é no momento em que muda que não é uno nem
múltiplo, que não se divide nem reúne. O mesmo ocorrerá na pas­
sagem do semelhante ao dissemelhante, do grande ao igual, ou
inversamente.
3 ° argumento: «Se o uno é»: consequências para os outros, em
relação aos outros.

19
Sendo outros, os outros não serão o uno. Mas não estão pri­
vados dele, logo são partes. Ora, só o que tem partes é um todo.
Mas o todo é unidade saída do múltiplo, de que os outros são
partes. Por outro lado, a parte só é parte de algo que é mais que
ela. Logo é parte de uma forma única, unidade do conjunto das
partes. Então, se têm partes, também os outros participam do uno,
mas como outros além do uno, este, em si. Nessa medida, os par­
ticipantes do uno não diferem dele. Portanto, são múltiplos.
Serão então infinita multiplicidade, embora participem do
uno. Multiplicidade da qual o uno se acha ausente. De modo que
a ínfima parcela do uno será multiplicidade e não uno, estranha à
forma. Quando, porém, se torna parte, é limitada pelas outras.
Pelo que, como todos e partes, cada parte é ilimitada e participa do
limite. E também é semelhante e dissemelhante. Os outros serão,
portanto, idênticos e diferentes, imóveis e movidos, bem como
todos os outros contrários.
4 ° argumento: «Se o uno é»: consequências para os outros, em
relação a eles próprios.
Oposto aos outros, o uno será aparte deles e eles dele. Logo, os
outros não serão nem idênticos nem diferentes, nem nascendo
nem perecendo, nem móveis nem imóveis, nem maiores, iguais, ou
mais pequenos. E assim o uno é todos e nem sequer é um, relati­
vamente a si próprio e aos outros.
2.- hipótese - «Se o uno não é»
5 ° argumento: «Se o uno não é»: consequências para ele
próprio, em relação aos outros».
Se o uno difere dos outros, falar dele é falar de algo que é
cognoscível e diferente dos outros, e é ou não é, pois o que se diz
não ser é conhecido e distinto dos outros. Logo, há saber do uno.
E nada se poderá dizer se se disser que o uno não é. Nem que os
outros são diferentes dele, porque ele tem o saber e a diferença e em
tudo - «isto», «de qualquer coisa», etc. - o uno que não é participa.
Seria, pois, impossível falar, dizer, quer do uno, quer dos outros,
se o uno não fosse.

20
Sendo dissemelhante dos outros, é semelhante a si. U não é
igual a eles, pois, se fosse igual, seria. Logo, os outros são desi­
guais. Logo, o uno participa na desigualdade. Logo, tem grandeza
e pequenez. Logo, tem o termo médio, que é a igualdade. E tem ser
e não ser, pois no uno «que não é» o ser e o não ser aparecem.
Logo, não muda, não se desloca, não tem rotação, nem
translação, nem alteração, em relação a si. Logo, o uno «que não
é» é imóvel e movido. E nasce e perece e não nasce e não perece.
6 ° argumento: «Se o uno não é»: consequências para ele
próprio, em relação a si próprio.
«Não é» significa a ausência do ser: a fórmula tem sentido
absoluto. O que não é não nasce nem perece, não entra em parti­
cipação, não se altera, não se move nem está imóvel. Não tem
grandeza, nem pequenez, nem igualdade. Não é semelhante nem
dissemelhante aos outros. Dele não há saber, opinião, sensação ou
nome. Dele nada ê.
7 ° argumento: «Se o uno não é»: consequências para os outros,
em relação aos outros.
Os outros são diferentes do uno: outros relativamente a outro,
mas não ao uno (que não é). Logo, são outros em relação uns aos
outros, cada um deles sendo uma infinita pluralidade, em massas.
Não têm número, cada massa igual aos múltiplos pequenos, sem
começo, meio ou fim. E apreendido como uma massa sem nada de
uno. Cada massa dos outros é limitada e ilimitada, una e múlti­
pla, semelhante e dissemelhante, idêntica e diferente, em contacto
e separada, movida e imóvel, submetida e subtraída ao nascimento
e à morte, bem como a todas as oposições.
8.Qargumento: «Se o uno não é»: consequências para os outros,
em relação a si próprio.
Os outros não serão uno nem múltiplo. Não têm comunidade.
Deles não há opinião nem simulacro. Nem os outros serão: um ou
muitos, semelhantes ou dissemelhantes, idênticos ou diferentes,
em contacto ou separados, tudo o que atrás se disse. Se o uno não
é, nada é.

27
CONCLUSÃO DAS DUAS HIPÓTESES

Se o uno é ou não é, ele e os outros, em relação a si mesmos e


uns aos outros, são e parecem tudo e nada.
Ver no final esquema de argumentação da 2 .- parte.19

INTERPRETAÇÃO DO DIÁLOGO

Como dissemos atrás, a tentativa de apresentação de uma


interpretação do Parménides constitui um enigma persistente
na filosofia ocidental, desde o século iv d. C. Enigma tanto mais
importante, quanto dele poderá depender a concepção de toda a
filosofia platónica.
Das três linhas que persistem no século xx, na realidade, só
duas nos interessam, pois uma delas manifesta-se indiferente à
questão da unidade do diálogo, encarando a segunda parte como
um mero exercício dialéctico, que, a bem dizer, poderia não fazer
parte dele, visto nada ter a ver com a primeira.
As outras duas interpretações concordam na defesa da unidade
do diálogo. Opõem-se, porém, na identificação do nexo que as liga.
A interpretação neoplatónica, com a leitura mística que a suporta,
poderia persistir hoje como uma mera curiosidade, se Hegel não a
tivesse adoptado como fulcro da sua avaliação de Platão, dela
tendo retirado uma ontologia positiva, explorada na sua própria
construção dialéctica20.
Pelo seu lado, a interpretação segundo a qual Platão teria desen­
volvido uma metafísica dos princípios no sistema das «doutrinas
19 Adaptado de S. Scolnicov, op. cit.
20 G. W . F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, Zweiter Band,
Drittes Kapitel A. Plato 240-247. Recorremos à edição bilingue Hegel Platone,
a cura di Vincenzo Cicero, Milão, 1998, pp. 213-225 (que reproduz a
1.- edição de K. L. Michelet, incorporando referências à edição crítica de
Garniron-Jaeschke G. W. F. Hegel Vorlesungen, Ausgewãhlte Nachschriften
und Manuskripte, Band V III1996).

22
não escritas» talapla esta concepção hegeliana às exigências ilo aulo-
proclamado «novo paradigma» interpretaiivo do platonismo.
Começa por defender:
«uma espécie de curto circuito entre a proposta hermenêu­
tica e a natureza objectiva do sistema a interpretar»21,

para acabar por se referir


«...a uma estrutura piramidal, cujos termos operam no
plano vertical, no qual o que é superior, o Todo, não é
nunca reconduzível à soma das partes, para a qual há um
plus ou minus ôntico, que nada tem a ver com a relação
física das partes constitutivas dos muitos»22.

Se excluirmos esta forte defesa de uma concepção ontológica do


real, a coincidência com algumas interpretações de cariz analítico
é possível. Ambos aceitam que o diálogo se concentra na definição
de uma ontologia. Mas, enquanto, para uns, Platão analisa dialec-
ticamente as condições que devem ser verificadas por qualquer
ontologia (examinando a noção de «uno»: ou seja, o que significa
«ser uma coisa»), para outros, ele propõe dogmaticamente essa
ontologia, talvez não no diálogo, mas na construção oral de uma
dialéctica dos princípios, uma «Protologia»23.
Ou seja, aquilo que para uma interpretação são aporias que se
dissolvem pela defesa de uma doutrina ontológica positiva, para a
outra, manifesta-se nessas mesmas aporias como indícios de uma

21 M. Migliori, op. cit., p. 495.


22 ld„ M d., p. 506.
23 Reconstruindo «um sistema platónico, ou seja, encarando a unidade do seu
pensamento, já não refazendo-se em perspectivas teoréticas estranhas ao
p latonism o,... mas antes numa tradição que remonta à viva voz de Platão,
ou seja, na dimensão da oralidade dialéctica, à qual ele confiou a sua men­
sagem conclusiva». G. Reale, Per una nuova interpretazione di PIntoiie.
Rilettura delia metafísica dei grandi dialoghi alia luce delle «Dottrine non scritte»,
Milão, 1984 (1987,1989), p. 86.

23
problemática tjtie a investigação dialéctica deve sei capaz de
resolver, melhor, se propõe fazê-lo24. E então à enumeração dessa
aporias que passaremos para finalizar, percorrendo de novo cada
um dos argumentos das duas hipóteses.

ENUMERAÇÃO SINTÉTICA DAS PRINCIPAIS APORIAS


DOS ARGUMENTOS E SUA SOLUÇÃO

V ARGUMENTO

O argumento - que se encontra na base de muitos passos dos


outros - pode dividir-se em duas partes. Na primeira (137c-d), é
proposta uma concepção de uno que exclui toda a multiplicidade,
ontológica ou predicativa. A segunda (142b-143a) opera sobre a
radical diferença entre sujeito («o uno») e predicado («é»), decom­
pondo a afirmação em duas entidades distintas, impossivelmente
coincidentes. No fundo, cada uma destas reforça a outra25.
Esta aporia é identificada (251 a-c26; vide 245a ss.) e resolvida
no Sofista (251 d ss.) pela defesa da possibilidade de participação
parcial dos géneros uns nos outros.

2.-ARGUMENTO

Esta mesma aporia manifesta-se no início do 2 ° argumento


(142b-c). A í dá origem a outra: a que reduz «todo» e «partes» a

24 E que o próprio Platão terá resolvido, ou tentado resolver, noutros diálo­


gos, com o tentaremos mostrar a seguir.
25 Em causa está aqui a ambiguidade do «uno», ou a competição entre os
vários sentidos da noção, que o argumento explora de forma equívoca:
a saber, 1) cada uno (no sentido de «unidade»); 2) cada grupo de «unos»
(a classe); 3) a unidade da classe (aquilo que é «ser uno»: o uno como pro­
priedade do que tem propriedades).
26 Pela restrição da predicação à identidade. E costume atribuir esta tese a
Antístenes (que seria o visado pelo escárnio do Estrangeiro em 251b-c).

24
mim disjunção exclusiva, que opõe o «em si» no «indefinido». Mus
ii noção de «parte» introduz a aporia da sua natureza relacional:
a «diferença» é assim por sua vez introduzida (143b).
Esta aporia é resolvida no Sofista 254b ss., pela definição
da natureza do Outro em relação aos restantes Sumos Géneros.
A disjunção entre «todo» e «partes» é também resolvida no Sofista
256a ss. pela recondução da contradição à alteridade, tal como à
definição da relação do Movimento e do Repouso com os outros
Géneros.
Outra aporia introduzida adiante (152a ss.) é a que assenta na
confusão entre estado («ser novo», «velho») e processo («envelhe­
cer», etc.), mas aqui Platão aponta a necessidade de revisão da
concepção puramente estática de ser, defendida por Parménides
(Sofista 248e-249d; a questão é resolvida pela definição do ser
como o activo e o passivo: 247d-e ss.).

3.-°ARGUMENTO

O argumento volta à relação todo/parte (1 ° argumento). Um


problema parece ser o da oscilação entre as noções física e metafí­
sica de «parte». Mas a questão complica-se com a introdução do
equívoco entre dois sentidos do uno, como sujeito e predicado
(vide 1 ° argumento).

4.s ARGUMENTO

Aberto o fosso que separa o uno dos outros, nota-se a impos­


sibilidade de comunicarem. O par semelhança/dissemelhança é
oferecido como paradigma de todas as afecções. Se os outros são
diferentes do uno, não podem ser sujeito de atribuição. Segue a
aporia (160b), pela composição de diversos sentidos do uno, nos
argumentos anteriores.
Aspectos desta falácia são corrigidos pelo tratamento da
natureza do Outro, no Sofista 256d ss.

25
5.eARGUMENTO

Contraste do uso incompleto de «ser» («ser isto ou aquilo»)


com o uso completo (por exemplo, «existir»27).
Este equívoco é corrigido pela distinção dos sentidos de «ser»
no Sofista, moldados sobre os Sumos Géneros, uma vez aceite a
possibilidade de participação de uns nos outros. Todo o argumento
(especialmente a conclusão: 161e-162b) é iluminado pela expli­
cação da natureza do Outro, no Sofista 256d ss., associada à do
Movimento.

6° ARGUMENTO

Regresso ao sentido absoluto da negação, expressa na fusão da


impossibilidade da predicação e da existência.
Esta leitura é corrigida pela reinterpretação da negação como
alteridade (Sofista 257c-d).

7.°-ARGUMENTO

O argumento elabora a indeterminação do não ser (concedida


pela natureza do não ser, no Sofista 257c-258b).

8.BARGUMENTO E CONCLUSÃO

Regresso ao sentido absoluto de não ser. Toda a predicação


e compreensão são tornadas impossíveis. Aceite a dependên­
cia dos outros em relação ao uno, segue a aporia final.

27 Como muitos a partir de C. E. Kahn («The Greek Verb 'To Be' and the
Concept of Being», Foundations of Langiiage, 1966, pp. 245-265; além de
outras obras e artigos sobre o mesmo tema), negamos que a questão da
existência venha a emergir de forma autónoma na obra platónica e antes.
Deste modo, não nos parece que o sentido existencial do verbo grego tenha
de se manifestar sempre que ele é usado na sua forma completa.

26
lista lalacia í* corrigida pcln Inludlção do nik) ser, no
sentido absoluto (sustentada ,i sua não confusão com a
leitura do não ser como alteridade) 1 1 0 Sofista 258b-c.

PARA UMA LEITURA DO PARMÉNIDES

Significa isto que 0 Parménides deve ser lido como mais uma
introdução aporética ao Sofista? De modo nenhum, pois se assim
fosse, a aporia final - que conclui sobre a impossibilidade do uno
e do múltiplo - teria ficado perfeitamente resolvida. A conclusão a
que pretendemos chegar é a de que, mais do que a sua impossibi­
lidade, a própria formulação da aporia contém a lição positiva a
extrair do diálogo.
Podemos simplesmente enunciá-la na tese de que qualquer
leitura, restritiva ou concessiva, do uno ê impossível sem 0 seu
complemento. Significa isto que qualquer ontologia, bem como a
dialéctica nela assente, necessariamente se desenvolve em dois
sentidos complementares, explorados pela perfeita articulação de
um com 0 outro. E essa leitura que cada um dos argumentos faz
das duas hipóteses. O resultado só é aporético se as duas hipóteses
e os argumentos que as lêem forem assumidos independentemente
uns dos outros. Ou seja, «uno» e «outros», «ser» e «não ser», «em
si» e «em relação uns aos outros», «tudo» e «nada» são pares inter­
dependentes, que entre si mantêm uma relação de alteridade.

J o s é T r in d a d e S a n t o s
Esquem a da argum entação da 1.- parte

U n o e m ú ltip lo

o n to lo g ia o n to lo g ia
hom ogén ea h e te r o g é n e a

p a r tic ip a ç ã o
I
p a r tic ip a ç ã o p o s t e r io r a n t e r io r
to ta l p ard al

h e te ro g é n e a hom ogénea hom ogénea h e te ro g é n e a

to 1. 1.1 1. 1.2 1.2 I b is . 1.1 I b i s . 1 .2


Oo « O d ia » «A v e la » A u to p r e d ic a ç ã o « O T e rc e iro P e n s a m e n to s
I b is . 2 H- (a ) - (d )
P a r a d ig m a s S ep aração
H om em » T o ta l
1 3 1 b 3 -6 1 3 1 b 6 -c ll 1 3 1 c l2 -e 2 1 3 1 e 9 -1 3 2 b 2 1 3 2 b 3 -c ll 1 3 2 c l2 -1 3 3 a 7 1 3 3 a 8 -1 3 4 e 8

Esquema da argum entação da 2.- parte

Uno
I

c o n s e q u e n c ia s c o n s e q u e n c ia s c o n s e q u e n c ia s c o n s e q u e n c ia s
p ara o u n o p a r a o m ú ltip lo p ara o u n o p a r a o m ú ltip lo

I------- 1------- ! I 1 I .
r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te r e la tiv a m e n te
a si p r ó p r io a o s o u tr o s ao u n o a s i p r ó p r io s a o s o u tr o s a si p r ó p r io ao u n o a s i p r ó p r io s

m IV V VI V II vni
to

A p ê n d ic e s o b r e a
p a r tic ip a ç ã o n o te m p o
n .lO .A p .
PARMENIDES *

1 - Céfalo - Quando chegámos a Atenas, vindos de nossa 1 26 a

casa, em Clazómenas, encontrámos Adimanto e Gláucon no


mercado. Pegando-me na mão, Adimanto disse:
- Sê bem-vindo, Céfalo, e se houver alguma coisa que
possamos fazer por ti, diz.
- Mas justamente - disse eu - estou aqui por isso mesmo,
para vos pedir uma coisa.
- Então diz - respondeu ele - o que queres pedir.
E eu disse: b
- Como era o nome do vosso meio-irmão por parte da
mãe? Já não me lembro. Pouco mais era que uma criança
quando cá estive pela última vez; já foi há muito tempo.
Julgo que o nome do pai dele era Pirilampo.
- Era, de facto - retorquiu ele.
- E ele, como é que se chamava?
- Antifonte. Mas afinal por que perguntas?
- Estes meus concidadãos - disse eu - , que são grandes
amantes do saber, ouviram dizer que esse Antifonte se

* Tradução feita a partir da edição de Auguste Diès, Paris, Belles-Lettres, 1923.

37
dava muito bem com um certo Pitodoro, que costumava
c encontrar-se com Zenão, e que se recorda de uma conversa
entre Sócrates, Zenão e Parménides, que ouviu Pitodoro
narrar por diversas vezes.
- E verdade - disse ele.
- Nesse caso - retorqui eu - , gostaríamos de a ouvir.
- Mas isso não é difícil - disse ele quando era mais
novo, ele estudou-a muitas vezes e com grande atenção,
ainda que actualm ente dedique a maior parte do seu
tempo aos cavalos, seguindo o exemplo do avô, seu ho­
mónimo. Mas, se é isso que desejas, vamos ter com ele.
Partiu agora mesmo para casa e vive muito perto daqui,
em Mélita.
12 7 a Dizendo isto, partimos e encontrámos Antifonte em sua
casa, dando ordens a um ferreiro para que fizesse um freio.
Quando terminou, os irmãos disseram-lhe ao que tínha­
mos vindo; ele recordou-se de mim, da minha anterior
estadia, e cumprimentou-me cordialmente. Quando lhe
pedimos que nos expusesse a conversa, a princípio hesitou
- dizendo que era um grande trabalho - , mas depois assim
fez. Antifonte disse então que Pitodoro contava que Zenão
b e Parménides tinham vindo às Grandes Panateneias. Que
Parménides já era muito velho, teria cerca de 65 anos, o
cabelo todo branco, mas um aspecto muito elegante e dis­
tinto; Zenão teria na altura 40 anos, era alto e tinha boa
figura; e dizia-se que tinha sido amante de Parménides.
Contou que tinham ficado alojados em casa de Pitodoro,
c fora de muralhas, no Cerâmico; e que Sócrates tinha ido ter
com eles, acompanhado de muitos outros, que desejavam
ouvir ler os escritos de Zenão; de facto, era a primeira vez
que os traziam consigo. Nessa altura, Sócrates era muito
novo. Foi Zenão em pessoa quem lhos leu, num momento
em que Parménides não estava em casa; e estando a leitura
dos escritos quase a terminar, disse Pitodoro, ele próprio

32
entrou em casa, acompanhado de Parménides e de Aris- d
tóteles1, que viria a ser um dos Trinta, por isso só ouviram
uma parte muito pequena dos escritos; mas já anterior­
mente ele os ouvira ler a Zenão.

2 - Terminada a leitura, Sócrates pediu-lhe que lesse


novamente a primeira hipótese do primeiro argumento e,
tendo sido lida, disse:
- O que afirmas tu aí, Zenão? Que, se os entes2 são e
múltiplos, então têm de ser semelhantes e dissemelhantes,
o que é impossível? Porque as coisas3 dissemelhantes não
podem ser semelhantes, nem as semelhantes disseme­
lhantes? E isso que queres dizer?
- E isso - disse Zenão.
- Então, se é impossível que as coisas dissemelhantes
sejam semelhantes, e que as coisas semelhantes sejam
dissemelhantes, é impossível que haja muitas coisas; pois,
se houvesse muitas coisas, encontrar-se-iam numa situação
impossível. Será isso que pretendem os teus argumentos,
não mais do que sustentar energicamente, contra todas
as afirmações, que não há muitas coisas4? E supões que
cada um dos teus argumentos é uma prova disso, tal como
pensas que todos os argumentos que escreveste fornecem
outras tantas provas de que não há muitas coisas? E isso
que dizes ou fui eu que não percebi bem? i2 8 n

1 Não se trata do filósofo grego, que teria muito provavelmente uns 17 anos
no m om ento em que este diálogo foi escrito (ver Guthrie, A History of Greek
Philosophy, vol. v, Cambridge University Press, 1978, p. 36).
2 Ta onta.
3 Na ausência, em português, de um neutro que permita traduzir os neutros
plurais, decidi optar pelo habitual «coisas» (um dos substantivos mais neu­
tros da nossa língua); assim, «coisas dissemelhantes» traduz ta anomoia, tal
como «muitas coisas» traduz ta polia.
4 Hôs ou polia cs ti.

33
n - Não - respondeu Zenão - percebeste bem o conteúdo
geral dos escritos.
- Estou a ver, Parménides - disse Sócrates que aqui o
Zenão não deseja apenas estar intimimamente unido a ti
na amizade, mas também através da sua obra. E que ele
escreveu, de certa maneira, o mesmo que tu; mas, virando-o
ao contrário, tenta enganar-nos completamente, levando-
-nos a pensar que está a dizer uma coisa diferente. De facto,
nos teus poemas, tu afirmas que o todo5 é uno e forneces
b muitas e excelentes provas disso mesmo. Ele, por seu lado,
diz que não há muitas coisas, e também apresenta provas
numerosas e magníficas disso. Um de vós diz que o todo é
uno e o outro que não há muitas coisas; e assim, dizendo
cada um de vós quase o mesmo que o outro mas parecendo
dizer coisas totalmente diferentes, parece-nos que aquilo
que dizeis nos confunde.
- Sim, Sócrates - respondeu Zenão -. Mas tu não com­
preendeste toda a verdade acerca dos meus escritos; de
c facto, corres atrás dos argumentos e segues a sua pista como
um cão da Lacónia; mas, em primeiro lugar, não te apercebes
de que não foi de modo nenhum minha intenção, ao escre­
ver as minhas obras, poder gabar-me de esconder aos ho­
mens aquilo que eles mais se esforçam por encontrar; aquilo
que referiste é apenas um acidente, pois a verdade é que
estes escritos pretendem ir ao encontro do argumento de
Parménides contra aqueles que empreendem fazer dele
d uma comédia, dizendo que, se o uno é, se seguem dessa afir­
mação muitas coisas risíveis e o seu contrário. Por isso, este

5 To pan. L. Brisson (Platon, Parménide, Paris, GF-Flammarion, 1994, ad loc.):


«l'univers», com a justificação de que se trata de «tout ce qui est» (p. 257,
n. 48); G. R. Echandia (Platon: Parmenides, Madrid, Alianza Editorial, 19983,
ad loc.): «el Todo»; H. N. Fowler (Plato, Cratylus, Parmenides, Greater Hippias,
Lesser Hippias, Cambridge Mass., Harvard University Press/London, William
Heinemann, 1977, ad loc.): «the ail».

34
escrito opõe-se ao argumento <l<*■. i|uc atirmam que há
muitas coisas, e responde II ws c o m i .1 mesma moeda e ainda
com juros, e pretende mostrar o seguinte: que da hipótese
deles, de que há muitas coisas, se fosse suficientemente
desenvolvida, se seguiriam consequências ainda mais
risíveis do que da hipótese de que o uno é. Era por causa
desse amor pela controvérsia que eu escrevia quando era
novo; mas alguém me roubou o que escrevi, por isso nem e
sequer pude decidir se devia publicá-lo ou não. Porém, tu
não conheces estes factos, Sócrates, e pensas que isto não foi
escrito por causa do amor pela controvérsia de um homem
novo, mas para satisfazer a ambição de um homem maduro;
no entanto, tal como te disse, não percebeste mal.

3 - Estou a compreender - disse Sócrates - , e aceito que


seja como dizes. Mas explica-me uma coisa6: não consideras
que há uma forma7 em si e por si da semelhança, e outra que
é o contrário desta, e que é a dissemelhança? E que tu e eu e 1 2 9 a
as demais coisas a que chamamos múltiplas participam destas
duas entidades8; e que aquelas que participam na semelhança
se tornam semelhantes por via disso e durante todo o tempo
em que participam, e as que participam na dissemelhança se
tornam dissemelhantes, e as que participam de ambas se tor­
nam ambas? E se todas as coisas participarem de ambas as
entidades contrárias e se, por via da participação em ambas,
forem semelhantes e dissemelhantes, o que haverá de espan- b
toso nisso? Pois se alguém mostrasse que as próprias coisas
semelhantes se tornam dissemelhantes ou que as coisas dis­
semelhantes se tornam semelhantes, julgo que isso seria

6 Introdução da hipótese das Formas, da teoria da participação e análise das


dificuldades por elas colocadas.
7 Para evitar as confusões psicologistas e manter a relação ocular, traduzire­
mos eidos e idea sempre por forma.
8 Toutoin duoitt ontoin.

35
monstruoso; mas se se provar que, através da participarão em
ambas, são afectadas por ambas, julgo que isso não sera
estranho, Zenão. Nem se alguém mostrar que todas as coisas
são unas pela participação no uno e que as mesmas coisas são
múltiplas por participarem na multiplicidade; mas se
mostrasse que aquilo que é o uno9, isso mesmo é múltiplo e,
por outro lado, que as muitas coisas também são o uno, eu
c ficaria espantado com isso. E o mesmo se aplica a todas as
outras coisas; se me mostrassem que os próprios géneros e
as próprias formas, em si próprios, são afectados por esses
estados contrários, isso seria digno de espanto; mas se me
mostrarem que eu, sendo uma certa entidade, sou uno e
múltiplo, o que haverá de espantoso nisso? Quando quiserem
mostrar que sou múltiplo, dirão que há em mim umas partes
à direita e outras partes à esquerda, e umas partes à frente e
outras partes atrás, e também umas partes em cima e outras
partes em baixo; com efeito, julgo participar da multiplici-
d dade. E, quando quiserem mostrar que sou uno, dirão que,
sendo nós sete, eu sou um único homem, que participa da
unidade. E assim mostrarão a verdade de ambas as afir­
mações. Portanto, se alguém empreender mostrar que estas
coisas são múltiplas e unas, isto é, uma pedra e um pau, e ou­
tras coisas assim, diremos que nos fez ver que são de facto
múltiplas e unas, mas não que o uno é múltiplo nem que o
múltiplo é uno; e não dirá nada de espantoso, mas fará afir­
mações com que todos concordamos. Contudo, se alguém,
como eu dizia agora mesmo, começasse por distinguir sepa­
radamente10 as formas em si e por si, como a semelhança e a

9 Ho estin hen.
10 Chôris. Como se sabe, o problema da separação das Formas é uma das cruzes
da interpretação do pensamento platónico, e particularmente um dos pro­
blemas discutidos no Parménides. Tal como acontece relativamente a grande
parte do vocabulário filosófico utilizado por Platão, nem sempre é fácil dis­
tinguir as ocorrências técnicas das ocorrências vulgares de chôris.

36
dissemelhança, a pluralidade e a unidade, o repouso e o o
movimento e todas estas formas, e em seguida mostrasse que
elas podem, em si próprias, ser misturadas e separadas, eu
ficaria verdadeiramente perplexo e espantado, Zenão - disse
ele -. Penso que discorreste sobre estas coisas de forma per­
feitamente viril; mas, como já disse, ficaria realmente perplexo
se alguém pudesse entrever esta mesma dificuldade de todas
as maneiras nas próprias formas e, tal como a descreveste nas i30a
coisas visíveis, assim também a pudesse mostrar nas coisas a
que chegamos através do raciocínio.

4 - Enquanto Sócrates dizia estas coisas, contou Pitodoro


que estava constantemente a pensar que Parménides e
Zenão iam achá-lo importuno, mas eles estiveram sempre
muito atentos, olhavam frequentemente um para o outro
e sorriam, como se estivessem encantados com Sócrates.
E, quando ele se calou, Parménides disse:
- Sócrates, és muito digno de louvor pelo ardor dos teus
argumentos. Mas diz-me, és tu próprio quem assim dis- b
tingue, separando para um lado as formas e para outro as
coisas que nelas participam? E parece-te que há uma seme­
lhança em si, separada da semelhança que temos em nós, e
também o uno e o múltiplo e todas as coisas de que ouviste
Zenão falar agora mesmo11?
- Parece-me - disse Sócrates.
- E também - prosseguiu Parménides - uma forma em si
e por si do justo e do belo e do bem e todas as coisas assim?
- Sim - respondeu Sócrates.
- E que tal uma forma de homem separada de nós, e de c
todos quantos são como nós, uma forma em si de homem
e de fogo e de água?

11 Apresentação e discussão da dificuldade colocada pela hipótese das


Formas: de que é que há Formas?

37
- Muitas vezes me tenho encontrado em dificuldades a
esse respeito, Parménides - disse ele - , sem saber se devo
dizer o mesmo sobre elas, se não.
- E acerca daquelas coisas, ó Sócrates, que podem pare­
cer risíveis, como o cabelo, a lama e o lixo, ou outras coisas
perfeitamente indignas e desprezíveis, não te encontras
também em dificuldades, sem saberes se deves dizer que
d há uma forma separada de cada uma destas coisas, que é
diferente daquelas outras que nós manejamos?
- De maneira nenhuma - disse Sócrates - , essas coisas que
nós vemos são como as vemos; pensar que há uma forma
dessas coisas seria excessivamente absurdo. E contudo, já
muitas vezes me senti perturbado com a possibilidade de ter
de dizer a mesma coisa acerca de todas12; porém, sempre que
penso nisso, desato a fugir, com medo de cair num abismo de
palavreado vão e de ser destruído. Por isso, regresso àquelas
coisas que dizíamos agora mesmo que tinham formas e passo
o meus tempo ocupado com elas.
e - E que ainda és novo, Sócrates - disse Parménides - , e
por isso a filosofia ainda não se apoderou de ti como, na
minha opinião, há-de apoderar-se quando não desprezares
nenhuma dessas coisas; por enquanto, ainda consideras as
opiniões dos homens, por causa da tua idade.

5 - Mas diz-me uma coisa13. Parece-te, segundo dizes


que há algumas formas, por participação nas quais as res-
131a tantes coisas recebem os seus nomes, como as coisas seme­
lhantes por participação na semelhança ou as coisas grandes
por participação na grandeza, e que as coisas se tornam
belas e justas por participarem na beleza e na justiça?

12 I. e., já muitas vezes pensei na necessidade de admitir que não há Formas


de coisa nenhuma.
13 Enumeração das dificuldades colocadas pela teoria da participação.

38
- Exactamente - disse Sócrates.
- Mas então, cada uma das coisas que participam par­
ticipa de toda a forma ou apenas de uma parte dela? Ou
poderá haver outra maneira de participarem, para além
destas?
- Como poderia ser assim?
- Pensas então que a forma, sendo uma14, está toda pre­
sente em cada uma das coisas que são múltiplas, ou o que
te parece?
- De facto, o que a impede de estar nelas, Parménides?
- perguntou Sócrates.
- Nesse caso, sendo uma e a mesma, e estando toda b
simultaneamente em muitas coisas separadas15, ela própria
estará separada de si própria.
- Não será assim - replicou - , se for como o dia16 que,
sendo um e o mesmo, está simultaneamente em muitos
sítios, e nem por isso está separado de si próprio; se assim
for, cada uma das formas, sendo uma, estará simultanea­
mente em todas as coisas, continuando a ser ela própria.
- É agradável, ó Sócrates - observou Parménides - , a
maneira como fazes com que o uno e o mesmo esteja
simultaneamente em muitos sítios, como se cobrisses
muitos homens com a vela de um navio e dissesses que é
algo uno que está todo sobre muitos17. Ou não é isto que c
queres dizer?
- Talvez - respondeu Sócrates.
- Nesse caso, a vela estaria toda sobre cada homem, ou
estaria uma parte dela sobre cada um?
- Uma parte.

14 Hen on: sendo uma e una; o mesmo se aplica a toda a passagem.


15 Chôris. Brisson, ad l o c «distinctes»; Echandía, ad loc.: «separadas»; Fowler,
aã loc.: «separate».
16 Primeira alternativa: a participação é como o dia.
17 Segunda alternativa: a participação é como a vela de um navio.

39
- Mas então, as formas também estão divididas em
partes, Sócrates - disse Parménides - , e cada uma das
coisas que participam delas só participa de uma parte, e de
modo nenhum estão todas em cada coisa que delas parti­
cipa, mas apenas estará uma parte em cada uma.
- Parece ser assim.
- Estarias então disposto a afirmar, ó Sócrates, que, em­
bora uma forma esteja, entre nós, dividida em partes, ainda
assim é una?
- De modo nenhum - respondeu Sócrates.
- Então pensa no seguinte - disse Parménides se
d dividires a grandeza em si em partes, e se cada uma das
muitas coisas grandes for grande por via duma parte da
grandeza que é mais pequena do que a grandeza em si, isso
não te parece absurdo?
- Certamente que sim - disse ele.
- Por outro lado, se cada coisa tiver uma pequena parte
da igualdade, poderá essa coisa, tendo uma parte da igual­
dade que é menor que a própria igualdade, ser igual a
outra coisa?
- E impossível.
- Mas, se algum de nós tiver uma parte do pequeno, o
pequeno em si será maior do que ela, dado que isso é uma
parte dele; portanto, o pequeno em si será maior; mas aquilo
a que se acrescentar a parte que foi retirada será mais pe-
e queno e não maior do que anteriormente.
- Mas isso não pode ser - disse Sócrates.
- Mas então, Sócrates - perguntou Parménides - , como é
que as outras coisas hão-de participar dessas tuas formas18,
se não podem participar nem como partes nem como todos?
- Por Zeus - respondeu Sócrates - , não me parece nada
fácil determinar como será.

18 Tôn eidôn soi.

40
Nesse caso, o que dizes do seguinte?
- De quê?
- Parece-me que consideras que cada forma é uma pelo
seguinte: quando te parece que muitas coisas são grandes
e olhas para elas como um todo, julgas talvez que há nelas
uma e a mesma forma, o que te leva a pensar que o grande
é uno19.
s

- E isso mesmo - replicou Sócrates.


- E quando consideras o grande em si e as outras coisas
grandes, como um todo na tua alma20, não te aparece em
seguida outro grande, também uno, por via do qual todas
estas coisas te parecem necessariamente grandes21?
- Assim parece.
- Há-de então surgir outra forma de grandeza, para
além do grande em si e das coisas que nele participam;
e por cima de todas essas ainda outra, pela qual todas essas
são grandes. E assim, nenhuma das tuas formas será uma,
antes será uma pluralidade sem limites.

6 - Mas Parménides22 - respondeu Sócrates - , talvez


cada uma destas formas seja apenas um pensamento, não
podendo de modo nenhum vir a ser noutro sítio para além
das almas; se assim for, cada uma delas será una, sem ser
afectada pelas coisas que agora mesmo referiste.
- Mas diz-me cá - perguntou Parménides - , cada um
desses pensamentos é uno, mas é um pensamento de coisa
nenhuma?
- Isso é impossível - respondeu Sócrates.

19 Regresso à discussão relativa à natureza das Formas.


20 Nesta e em todas as outras ocorrências do termo, fala-se da alma como sede
das faculdades cognitivas.
21 Introdução do argumento do terceiro homem.
22 Introdução de uma das hipóteses mais capazes de complicar a teoria: as
Formas nada mais são do que conceitos.

41
- Então é um pensamento de alguma coisa?
- Sim.
- Que é ou que não é?
- Que é.
- De uma coisa una, que o pensamento pensa estar sobre
todas as coisas, embora continue a ser uma certa forma?
- Sim.
- E isso que é pensado como sendo uno, e como algo
que é sempre e que é o mesmo sobre todas as coisas, não
será isso a forma?
- Parece que é necessariamente assim.
- Mas então - prosseguiu Parménides - , se dizes que todas
as outras coisas participam das formas, não parece necessário
que, ou cada coisa seja feita de pensamentos e todas as coisas
pensem, ou que sejam pensamentos mas não pensem?
- Mas isso também não é razoável, Parménides - decla­
rou Sócrates parece-me antes o seguinte: estas formas
permanecem na Natureza como modelos23, e as outras
coisas parecem-se com elas e são semelhanças24 delas; e a
participação das outras coisas nas formas não é senão
assimilarem-se a elas25.
- Nesse caso, se uma certa coisa - disse Parménides - se
parece com uma forma, como pode essa forma ser disseme­
lhante daquilo que se parece com ela, na medida em que isso
foi copiado dela? Ou haverá algum engenho pelo qual o
semelhante não seja semelhante àquilo a que é semelhante26?

23 Paradeigmata. Regresso a uma das hipóteses mais clássicas: as Formas como


modelos das instâncias.
24 Homoiômata. Brisson, ad l o c «copies»; Echandía, ad loc.: «copias»; Fowler, ad
loc.: «imitations».
25 Eikasthênai autois. Brisson, ad loc.: «elles en sont des images»; Echandía, ad
loc.: «un estar hechas a su imagen»; Fowler, ad loc.: «assimilation to them».
26 Regresso à discussão sobre a participação; segunda versão do argumento
do terceiro homem.

42
- Não há.
- E não será totalmente necessário que o semelhante
participe com o seu semelhante de uma forma que seja una e
e a mesma?
- E necessário.
- Então, aquilo por participação no qual as coisas seme­
lhantes são semelhantes, isso não será a própria forma?
- Mas certamente que sim.
- Por conseguinte, algo não pode ser semelhante à forma,
nem a forma semelhante a outra coisa; é que, se assim for,
surgirá sempre outra forma para além da forma, e se essa for
semelhante a alguma coisa, surgirá depois outra, e nunca
mais haverá descanso para esta geração de formas, se a 1 3 3 a
forma for semelhante àquilo que participa dela.
- O que dizes é a maior das verdades.
- Nesse caso, não é por via da semelhança que as
restantes coisas participam nas formas, mas é necessário
procurar outra coisa por via da qual participem.
- Assim parece.
- Vês então, Sócrates - prosseguiu Parménides - , como
é grande a dificuldade de alguém que declare que as for­
mas são em si e por si?
s

- E mesmo grande.
- Mas deves compreender - declarou Parménides - que,
digamos assim, de maneira nenhuma atingiste toda a b
grandeza da dificuldade resultante de afirmares que há
uma forma de cada um dos entes, que permanece separada
deles.
- Por que dizes isso? - perguntou Sócrates.
- As dificuldades são muitas e variadas - disse Parmé­
nides - , mas a maior de todas é esta: se alguém dissesse que
não lhes convém serem conhecidas, sendo elas aquilo que
dizemos que as formas têm de ser, ninguém poderia provar
a quem tal afirmasse que estava errado, a não ser que lhe

43
calhasse ser um homem experiente em controvérsias e com
dotes naturais, e que gostasse de prosseguir uma discussão
c passando muitas vezes por todos os pormenores; mas
aquele que declara que elas não são cognoscíveis seria per­
suasivo.
- Porquê, Parménides? - disse Sócrates.
- Porque, Sócrates, parece-me que tu e qualquer outra
pessoa, que estabeleça que há uma certa entidade27 em si
por si de cada coisa, terá de admitir, antes de mais, que
nenhuma delas está em nós28.
- De facto, se assim fosse, como poderia ser em si e por
si? - perguntou Sócrates.
- Dizes bem - retorquiu Parménides - . Deste modo,
todas aquelas formas que são aquilo que são umas em
relação às outras têm a sua entidade em relação a si
próprias, e não relativamente às coisas que estão do nosso
d lado29, sejam semelhanças, ou outra coisa qualquer, e das
quais nós, participando de cada uma, recebemos o nome;
por outro lado, as coisas que há do nosso lado, embora
sendo homónimas daquelas, são relativas a si próprias e
não às formas, e por isso são nomeadas a partir de si
próprias e não delas.
- O que estás tu a dizer? - perguntou Sócrates.
- Por exemplo - disse Parménides - , se algum de nós for
senhor de um escravo, esse escravo não é escravo daquele
e senhor que é o senhor em si, nem o senhor é senhor da­
quele escravo que é o escravo em si, mas, sendo ambos
homens, serão senhores e escravos de outro homem; por
seu lado, o senhorio em si é senhorio da escravatura em si,

27 Ousia. Respeitando o texto platónico, traduzirei assim todas as ocorrências


de ousia.
28 En hêmin.
29 Par'hemin, i. e., do lado da multiplicidade. Brisson, ad loc.: «dans notre
monde»; Echandía, ad loc.: «entre nosotros»; Fowler, ad loc.: «amongst us».

44
da mesma maneira que <i escravatura em si é escravatura
do senhorio em si. E os que estão do nosso lado não têm
poder relativamente àqueles nem aqueles relativamente a
nós. Mas, tal como atrás dissemos, as formas pertencem a si
próprias e são relativas a si próprias, da mesma maneira 134a

que as coisas que estão do nosso lado estão relacionadas


entre si. Ou não compreendes aquilo que eu digo30?
- Mas com certeza que compreendo - disse Sócrates.

7 - Assim sendo, também o saber - prosseguiu Parmé-


nides - aquele saber que é em si, será saber daquela ver­
dade que é em si.
- Completamente.
- E, por outro lado, cada um dos ramos do saber, da­
quele saber que é, será saber de cada um dos entes que são;
ou não?
- Será.
- E o saber que está do nosso lado não será acerca da
verdade que está do nosso lado, da mesma maneira que
cada um dos ramos do saber que estão do nosso lado será b
saber de cada um dos entes que estão do nosso lado?
- Necessariamente.
- Concordas então que nós não temos as próprias for­
mas, nem é possível que elas estejam do nosso lado.
- Como não?
- E cada um dos próprios géneros31 que são é conhecido
pela própria forma do saber?
- Sim.
- Que nós não temos do nosso lado.
- De facto, não.

30 Não há comunicação possível entre as Formas e as instâncias; este argu­


mento elimina a possibilidade da participação, minando as bases da teoria
das Formas.
31 Gcnê.

45
- Assim, nenhuma das formas será conhecida por nós,
dado que não participamos no próprio saber.
- Aparentemente não.
- Então, o belo em si e o bem em si e todas aquelas
c coisas que concebemos como formas em si são desconhe­
cidas para nós.
- Arrisca-se a ser assim.
- Mas presta atenção a uma coisa ainda mais terrível.
- O quê?
- Dirias certamente que, se há um género em si do
saber, ele será muito mais rigoroso do que o saber que está
do nosso lado, e o mesmo se aplica ao belo e a todas as
coisas que são assim.
- Sim.
- Mas então, se alguma coisa participa do saber em si,
não te parece que só um deus pode possuir o saber mais
preciso de todos?
- Necessariamente.
d - E achas que esse deus pode conhecer as coisas que
estão do nosso lado, já que tem o saber em si?
- Como não?
- E que - disse Parménides - nós concordámos, ó
Sócrates, que nem as formas têm poder sobre as coisas que
estão do nosso lado, nem as coisas que estão do nosso lado
têm poder sobre as formas, mas cada uma32 só tem poder
sobre o seu próprio domínio.
- De facto, concordámos.
- Então, se senhorio em si, que tem a máxima perfeição,
e o saber que tem a máxima precisão estão do lado do deus,
nem esse senhorio poderá exercer-se sobre nós, nem o
e saber poderá conhecer-nos, nem a nada que esteja do

32 I. e., cada conjunto de entidades, as Formas, por um lado, e a multiplici­


dade, por outro.

46
nosso lado; e, da mesma maneira, nós não temos domínio
sobre eles com o senhorio que está do nosso lado, nem
conhecemos com o nosso saber nada daquilo que é divino;
e, pelo mesmo raciocínio, eles, sendo deuses, não são nos­
sos senhores nem conhecem os assuntos humanos.
- Mas não será um argumento perfeitamente espantoso
- perguntou Sócrates - , alguém privar o deus do saber?
- No entanto, Sócrates - disse Parménides - , as formas
têm necessariamente estas dificuldades, e ainda muitas
outras para além destas, se de facto estabelecermos que há
formas em si dos entes e determinarmos que cada uma é
uma forma em si. Por isso, aquele que nos ouve sente-se
perplexo e contesta que haja essas formas, ou declara que,
se houver, é totalmente necessário que sejam incognos-
cíveis pela natureza humana. E, ao dizer essas coisas, julga
ter razão e, como atrás dissemos, será espantosamente difí­
cil de dissuadir. Pois só um homem com excelentes dotes
naturais seria capaz de compreender que há um género de
cada coisa e uma entidade em si e por si, e ainda seria mais
espantoso aquele que, tendo estudado estes problemas, b
pudesse ensinar outro a distinguir e a examinar todas estas
coisas.
- Concordo contigo, Parménides - disse Sócrates - ,
porque dizes coisas muito próximas daquilo que eu penso.
- Mas, por outro lado - prosseguiu Parménides - , se
alguém, tendo em conta todas estas dificuldades que agora
enumerámos e muitas outras, renunciasse às formas dos
entes, não distinguindo uma forma de cada coisa, essa pes­
soa não saberia para onde voltar o seu pensamento, pois
não admitiria que há, para cada um dos entes, uma forma c
que é sempre a mesma; e assim, ficaria totalmente destruída
a possibilidade de se dedicar à dialéctica.
- O que dizes é verdade - respondeu Sócrates.

47
8 - E que farás tu relativamente à filosofia? Para onde te
voltarás, se estas coisas forem desconhecidas?
- Não estou a ver, pelo menos de momento.
- De facto, Sócrates, tentaste definir cedo demais - disse
Parménides - o belo, o justo, o bem e cada uma das formas;
ainda não te tinhas exercitado o suficiente. Percebi isso
d antes de ontem, quando te ouvi falar aqui com Aristóteles
neste mesmo sítio. Fica a saber que o impulso com que
desejas os argumentos é belo e divino; mas é necessário
que pratiques e te exercites mais frequentemente, enquanto
és ainda novo, nessas argumentações que parecem inúteis
e a que muitos chamam subtilezas engenhosas; de outro
modo, a verdade escapar-te-á.
- E de que modo devo exercitar-me, Parménides - per­
guntou Sócrates.
- Do modo que ouviste a Zenão - respondeu Parmé-
e nides - . Mas houve uma coisa que fiquei encantado por te
ouvir dizer: que não te entregas à investigação nas coisas
visíveis nem às errâncias que lhes dizem respeito, mas te
orientas para aquelas que podem ser captadas pelo racio­
cínio e que são as formas.
- E que me parece - respondeu Sócrates - que, dessa
maneira33, não será difícil mostrar que os entes são seme­
lhantes e dissemelhantes e outras coisas assim.
- E parece-te bem - disse Parménides - . Mas é neces­
sário fazer mais alguma coisa relativamente a isso; não só
pôr como hipótese que cada coisa é e investigar aquilo que
136a se segue dessa hipótese, mas também pôr como hipótese
que não é, se verdadeiramente queres exercitar-te.
- O que queres dizer? - perguntou Sócrates.
- Toma como exemplo - disse Parménides - , se quiseres,
aquela hipótese que Zenão apresentou: se há muitas coisas,

33 I. e., ficando pelas coisas visíveis.

48
I

é necessário investigar o que acontece a essas coisas múlti­


plas, em si próprias e relativamente ao uno, e ao uno em si
próprio e relativamente a essas coisas múltiplas; por outro
lado, se não há muitas coisas, é novamente preciso investi­
gar o que acontece relativamente ao uno e ao múltiplo,
tanto em si próprios, como na sua relação um com o outro, b
E ainda: se há a semelhança ou se não há, o que acontece no
caso de se verificar cada uma dessas hipóteses, tanto no que
diz respeito ao seu conteúdo como às outras coisas, em si
próprias e umas em relação às outras. E o mesmo quanto ao
dissemelhante, ao movimento e ao repouso, à geração e à
corrupção, e ao próprio ser e ao não ser. Em suma, acerca de
tudo aquilo que se ponha como hipótese que é ou que não
é, ou que é afectado por qualquer outra afecção, é neces­
sário investigar o que acontece, em si próprio e relativa- c
mente às restantes coisas que escolheres investigar, depois
em relação a muitas coisas, e por fim em relação a todas;
e também tens de investigar as outras coisas, quer em si
próprias, quer em relação a qualquer outra coisa que tenhas
escolhido, quer tenhas posto a hipótese de que aquilo que
supuseste é ou que não é, se quiseres treinar-te até ao fim
para vires a contemplar a verdade na sua simplicidade.
- Falas de um trabalho prodigioso, Parménides - disse
Sócrates - , que eu não compreendo assim muito bem. E se
tu próprio colocasses uma hipótese e a percorresses, para
que eu entendesse melhor?
- Grande obra - respondeu Parménides - prescreves a d
um homem com a minha idade, Sócrates.
- E tu, Zenão - disse Sócrates - , por que não percorres
uma hipótese?
E contou que Zenão disse, a rir:
- Peçamo-lo ao próprio Parménides, Sócrates. Pois aquilo
que ele diz não é insignificante. Ou não te apercebes do
trabalho que prescreves? Se fôssemos muitos, não seria

49
digno pedir-lho; pois é inconveniente falar desl.is coisas
diante de muitos, ainda mais com a idade dele; de facto, a
e multidão não sabe que, sem este percurso errante por
todas as coisas, é impossível à mente encontrar a verdade.
Por isso, Parménides, uno o meu pedido ao de Sócrates,
para que eu próprio te escute, ao fim de tanto tempo.

9 - E Antifonte dizia que Pitodoro lhe tinha contado qu


tendo Zenão dito estas coisas, ele próprio e Aristóteles e os
restantes suplicaram a Parménides que lhes mostrasse o que
queria dizer e que não se recusasse. Então, Parménides disse:
137 a - Pois bem, será necessário que o faça. Mas sinto que me
acontece o mesmo que ao cavalo de Ibico que, sendo já velho
e estando a ser atrelado a um carro de corridas, se inquietava
com temor da prova que se aproximava, que bem conhecia
por experiência; comparando-se com o cavalo, dizia Ibico que
também ele, sendo já velho, era ainda assim obrigado a dese­
jar o amor. Quanto a mim, recordando-me deste episódio,
tenho grande receio quando penso que, com esta idade, terei
de atravessar a nado este imenso mar de argumentos. Ainda
assim, devo satisfazer-vos, ainda mais porque, como disse
b Zenão, estamos sozinhos. Então, por onde quereis começar
e qual será a nossa primeira hipótese? Ou preferis, já que
parece que vamos jogar este jogo que mais se assemelha
a um trabalho, que comece por mim e pela minha própria
hipótese, pondo a minha hipótese acerca do uno, se é ou se
não é , e verificando o que acontece34?

34 Inicia-se aqui formalmente a segunda parte do diálogo, onde se procederá


à discussão da hipótese de Parménides: se o uno é, bem como à da sua
negação: se o uno não é, que Luc Brisson (op. cit., pp. 43-44) identifica com
a hipótese de Zenão, considerando assim que Platão põe na boca das per­
sonagens deste diálogo opiniões que foram efectivamente defendidas pelos
seus homónimos históricos.
Seguimos o mesmo Brisson na sua divisão esquemática desta segunda
parte do diálogo.

50
- Com certeza respondeu Zenão.
- Nesse caso - perguntou Parménides - quem me res­
ponderá? Será o mais novo? Seria menos propenso a fazer
muitas perguntas e responderia mais directamente aquilo
que pensa; ao mesmo tempo, as suas respostas seriam para
mim ocasião de repouso.
- Estou preparado para isso, Parménides - disse Aristó- c
teles - , pois é de mim que falas quando falas do mais novo.
Mas pergunta que eu te responderei.

10 - Muito bem - disse Parménides - se o uno é35,36 o


uno não poderá ser muitas coisas37, pois não38?
- Como poderia?
- Consequentemente, não poderá ter partes nem ele
próprio ser um todo39?
- Por quê?
- Cada parte é uma parte de um todo?
-É .
- E o que é o todo? Não é aquilo a que não falta ne­
nhuma parte, para que seja o todo?
- Certamente.
- Desse modo, quer fosse um todo, quer tivesse partes,
em ambos os casos, o uno seria composto por partes.
- Necessariamente. d

35 Ei hen estin: «se o uno é» ou «se [algo] é uno»; ambiguidade inextricável, que
estará presente em todas as versões da hipótese; Brisson, ad loc: «supposons
qu'il soit un» (tradução que mantém a conflacção dos sentidos existencial e
predicativo); Echandía, ad loc.: «si el Uno es»; Fowler, ad loc.: «if the one
exists».
36 1. Primeira afirmação da hipótese: se o uno é (que consequências se seguem
para o uno?).
37 Ver atrás, nota 3. Neste caso, «muitas coisas» traduz polia, tal como, adiante,
«outras coisas» traduzirá alia.
38 1.1. Primeira consequência: o uno não é múltiplo.
39 1.2. Segunda consequência: o uno não tem partes nem é um todo.

51
- Assim sendo, em ambas as circunstâncias, este uno
seria múltiplo, e não uno.
- E verdade.
- Porém, é necessário que ele não seja múltiplo, mas uno.
- Assim é.
- Portanto, se o uno for uno, não pode ser um todo nem
ter partes.
- De facto, não.
- E, se não tem partes, não terá princípio, nem fim, nem
meio, porque seriam partes suas40.
- Correcto.
- Ora, o fim e o princípio são os limites de cada coisa.
- Como não?
- Mas então, o uno será ilimitado, dado que não tem
princípio nem fim.
- Será ilimitado.
- Por conseguinte, não terá figura, pois não participa do
e circular nem do recto41.
- Como é isso?
- O circular é aquele cujas extremidades estão todas a
igual distância do centro.
- Sim.
- Por seu lado, o recto é aquele cujo meio barra o cami­
nho de ambas as extremidades.
- Assim é.
- Portanto, se tivesse uma figura recta ou circular, o uno
teria partes e seria múltiplo.
- Certamente.
- Não é, pois, nem recto nem circular, uma vez que não
tem partes.
138a - Correcto.

40 1.3. Terceira consequência: o uno não é limitado.


41 1.4. Quarta consequência: o uno é desprovido de figura.

52
Mas, sendo assim, náo estará em lado nenhum; j.í que
não está noutra coisa nem em si próprio42.
- Mas como é isso?
- Se estivesse noutra coisa, estaria rodeado, como por
um círculo, por aquilo em que estivesse, com o qual estaria
em contacto em muitos pontos e de muitas maneiras; mas
é impossível que aquilo que é uno, desprovido de partes e
não participa na circularidade esteja em contacto com um
círculo em muitos pontos.
- É impossível.
- Por outro lado, estando em si próprio, estaria rodeado
por si próprio e por nada mais do que si próprio, se de facto
estivesse em si próprio; pois é impossível que uma coisa b
esteja noutra sem estar rodeada por ela.
- De facto, é impossível.
- Portanto, uma coisa seria aquilo que rodeia e outra
aquilo que é rodeado; porque um todo não pode, simul­
taneamente, sofrer e produzir43; e, nesse caso, o uno já não
seria um, mas dois.
- Como não, efectivamente?
- Logo, o uno não está em lugar nenhum, nem em si
próprio nem noutra coisa.
- Não está.

11 - Mas pensa agora se, nesse caso, poderá estar em


repouso ou em movimento44.
- Por que não?
- Porque, se estivesse em movimento, deslocar-se-ia ou c
alterar-se-ia, uma vez que esses são os únicos movimentos
possíveis.

42 1.5. Quinta consequência: o uno não está localizado, nem em si próprio


nem em outra coisa.
43 Ou seja, ser agente e paciente, simultaneamente e em relação à mesma coisa.
44 1.6. Sexta consequência: o uno não está em repouso nem em movimento.

53
- Pois.
- Mas, se se alterasse em si próprio, o uno não poderia
continuar a ser uno.
- Era impossível.
- Portanto, o seu movimento não é de alteração.
- Parece que não.
- Então está em movimento, deslocando-se?
- Talvez.
- Mas se o uno se deslocasse, teria de andar em círculos
no mesmo sítio ou de mudar de um lugar para outro.
- Necessariamente.
- Ora, se andasse em círculos, teria necessariamente de
se apoiar num centro, e de ter outras partes que andassem
d à volta do centro. Mas através de que engenho poderá
aquilo que não tem centro nem partes ser levado a girar à
volta de um centro?
- De nenhum.
- Por outro lado, se mudasse de lugar, não estaria ora
aqui ora ali, estando assim em movimento?
- Se se movesse, sim.
- Mas não vimos já que é impossível que ele esteja
noutra coisa?
- Vimos.
- Então ainda é mais impossível que venha a ser.
- Não compreendo por quê.
- Se alguma coisa vem a ser em alguma coisa, não será
necessário que, enquanto vem a ser, não esteja ainda nela,
mas também não esteja inteiramente fora dela, visto que já
vem a ser?
- E necessário que assim seja.
e - Por conseguinte, se algo é afectado desse modo45, só
pode sê-lo aquilo que tem partes; porque uma parte estaria
já na outra coisa, ao mesmo tempo que outra estaria fora

45 I. e., se é capaz de vir a ser em alguma coisa.

54
dela; mas aquilo que não tem parles não pode de maneira
nenhuma estar simultaneamente e como um todo dentro e
fora de outra coisa.
- Isso é verdade.
- Mas não será ainda mais impossível que aquilo que
não tem partes nem é como um todo venha a ser em alguma
coisa, já que não vem a ser, nem segundo as partes, nem
segundo o todo?
- Assim parece.
- Portanto, não se desloca vindo a ser em outra coisa, i 3 <jn
nem alterando a sua posição, nem andando em círculos
sobre si próprio nem alterando-se.
- Parece que não.
- Logo, o uno é imóvel relativamente a todos os movi­
mentos.
- E imóvel.
- Mas também dissemos que era impossível que ele
estivesse em alguma coisa.
- Dissemos de facto.
- Por conseguinte, não pode estar na mesma coisa.
- Como é isso?
- Porque já estaria naquela mesma coisa em que ele
próprio está.
- Com certeza.
- Mas não lhe é possível estar, nem em si próprio, nem
em outra coisa.
- De facto, não.
- Então, o uno nunca estará na mesma coisa. b
- Parece que não.
- Mas o que nunca está na mesma coisa não está em
repouso nem está imóvel.
- De facto, não pode.
- Nesse caso, parece que o uno não está imóvel nem em
movimento.

55
- Parece que não.
- Mas também não será idêntico a um diferente'1" nem a
si próprio, nem será diferente de si próprio nem de um
diferente47.
- Como?
- Se fosse diferente de si próprio, seria diferente do uno
e não seria o uno.
- Isso é verdade.
- Mas, se fosse idêntico a um diferente, seria esse dife-
c rente, e não seria ele próprio; e assim, não seria aquilo que
é, o uno, mas seria algo diferente do uno.
- De facto, não.
- Portanto, não será idêntico a um diferente nem dife­
rente de si próprio.
- Pois não.
- Mas, sendo uno, também não será diferente de um dife­
rente; pois não pertence ao uno ser diferente de certa coisa,
mas apenas pertence ao diferente ser diferente, e a mais nada.
- Correcto.
- Portanto, não será diferente por via de ser uno; não
achas?
- Pois não.
- E se não for por via disso, não o será por si próprio; e, se
não for por si próprio, também ele próprio não o será; mas,
d se de modo nenhum é diferente, não será diferente de nada.

46 Há em toda a passagem que se segue uma identificação da alteridade com


a diferença, por via da utilização de heteron, que pode ter um e outro sen­
tido, e parece ser efectivamente utilizado com ambos os sentidos. Com vista
à uniformização do vocabulário, e também à transparência possível, relati­
vam ente ao grego, optámos por traduzir todas as ocorrências de heteron por
«diferente», mas não é óbvio que, por exemplo, em 139c2-3, Parménides
esteja a dizer «não será idêntico a um diferente nem diferente de si
próprio» e não «não será idêntico a um outro nem diferente de si próprio»
(ou vice-versa). Os diversos tradutores optam pelas várias alternativas.
47 1.7. Sétima consequência: o uno não é idêntico nem diferente, nem de si
próprio nem das outras coisas.

56
- Correcto.
- Mas também nao si*rá idêntico a si mesmo.
- Como é isso?
- Certamente que a natureza48 do uno não é a mesma
que a do idêntico.
- Por quê?
- Porque, quando uma coisa se torna idêntica a outra,
nem por isso se torna una.
- Mas por quê?
- Porque aquilo que se torna idêntico a muitas coisas,
torna-se necessariamente múltiplo, e não uno.
- E verdade.
- Mas se o uno e o idêntico não diferissem de maneira
nenhuma, tudo aquilo que se tornasse idêntico tornar-se-ia
sempre uno, e tudo aquilo que se tornasse uno tornar-se-
-ia idêntico.
- Sem dúvida.
- Por conseguinte, se o uno for idêntico a si próprio, não
será uno consigo mesmo; e assim, sendo uno, não será uno; o
mas isto é impossível. Portanto, é impossível que o uno
seja, quer diferente de um diferente, quer idêntico a si
próprio.
- E impossível.
- Assim sendo, o uno não será nem diferente nem idên­
tico, nem a si próprio nem a outro.
- De facto, não.
- Mas também não será semelhante a alguma coisa, nem
dissemelhante, nem de si próprio nem de um diferente49.
- Por quê?
- Porque o semelhante é de certa maneira idêntico.

48 Physis.
49 1.8. Oitava consequência: o uno não é semelhante nem dissemelhante, nem
de si próprio nem das outras coisas.

57
- Pois é.
- Mas já vimos que a natureza do uno era diferente da
natureza do idêntico.
- Vimos, de facto.
uoa - Ora, se o uno fosse afectado por algo diferente50 de ser
uno, seria, por essa afecção, mais do que uno, e isso é
impossível.
- Pois é.
- Por isso, o uno não pode de maneira nenhuma ser
afectado pelo idêntico, nem relativamente a outro, nem a si
próprio.
- Parece que não.
- E, da mesma maneira, também não é possível que seja
semelhante, nem a outro, nem a si próprio.
- Aparentemente não.
- Mas o uno também não pode ser afectado pelo dife­
rente51; porque assim seria afectado de tal maneira que
seria mais do que um.
- Seria mais, de facto.
- Mas aquele que é afectado de maneira diferente, quer
b de si próprio quer de outro, deve ser dissemelhante, quer de
si próprio, quer de outro, já que aquilo que é afectado pelo
idêntico é semelhante.
- Correcto.
- Ora, parece que o uno, nunca sendo de maneira ne­
nhuma afectado de forma diferente, não é de maneira nenhu­
ma dissemelhante, nem de si próprio, nem do diferente52.

50 Chôris, tal como na linha anterior (e não heteron, como na passagem que ante­
cede); ou seja, «se o uno fosse afectado por algo separado/distinto de ser uno».
51 Heteron, de novo. Parménides coloca o semelhante a par do idêntico e, da
mesma maneira, o dissemelhante a par do diferente, deduzindo esta con­
sequência da anterior.
52 E provável que, nesta linha e na seguinte, heteron tenha o sentido de
«outro» e não de «diferente» (assim entenderam Brisson, Echandía e
Fowler, ad loc.). No entanto, dado que em toda a passagem 140a, e mesmo

58
- Com efeito, não.
- Consequentemente, o uno não será semelhante nem
dissemelhante, nem do diferente, nem de si próprio.
- Aparentemente, não.
- Mas, sendo assim, também não é igual nem desigual,
nem de si próprio nem de outra coisa53.
- Por quê?
- Se fosse igual, teria as mesmas medidas que aquele a
que é igual.
- Sim.
- E, se fosse maior ou menor, relativamente às coisas
com as quais é comensurável54, teria mais medidas do que
as mais pequenas do que ele e menos medidas do que as
maiores do que ele.
- Pois teria.
- E, relativamente às coisas com as quais não é comen­
surável, teria medidas mais pequenas do que umas e
maiores do que outras.
- Como não?
- Mas então, não será impossível que aquele que não
participa no idêntico tenha medidas idênticas ou qualquer
outra coisa que seja idêntica?
- E impossível.
- Consequentemente, não será igual a si mesmo nem a
outro, já que não tem medidas idênticas.
- Parece que não.
- Mas, se tivesse mais ou menos medidas, teria tantas
partes quantas medidas tivesse; e assim, de modo nenhum
seria uno, mas seria tantos quantas as medidas que tivesse.

em b l, o termo usado para outro foi allon, decidimos manter a tradução de


heteron por «diferente».
53 1.9. Nona consequência: o uno não é igual nem desigual, nem de si próprio,
nem de outra coisa.
54 Summetron, ou seja, as coisas que se medem com a mesma unidade com que
se m ede o uno.
- Correcto.
- Porém, se apenas tivesse uma meciida, viria a ser igual
a essa medida; mas já mostrámos que era impossível que
ele fosse igual a qualquer coisa.
- Mostrámos efectivamente.
- Assim sendo, ele não participará, nem de uma me­
dida, nem de muitas, nem de poucas, nem participará de
maneira alguma do idêntico, nem será, aparentemente,
igual a si próprio nem a outro; nem será maior nem menor,
nem do que si próprio, nem do que o diferente.
- É precisamente assim.

e 12 - Mas diz-me uma coisa. Alguém achará possível que


o uno seja mais velho ou mais novo ou que tenha a mesma
idade55?
- Por que não?
- Porque, se tiver a mesma idade que si próprio ou que
outro, participará da igualdade e da semelhança relativa­
mente ao tempo, e já dissemos que o uno não participa,
nem da semelhança, nem da igualdade.
- Dissemos isso, de facto.
- Mas também dissemos que não participa da disseme-
lhança nem da desigualdade.
- Completamente.
141 a - Mas, sendo assim, como pode ser mais velho ou mais
novo ou da mesma idade do que qualquer outra coisa?
- Não pode.
- Então, o uno não será mais novo nem mais velho nem
terá a mesma idade do que si próprio nem do que outra coisa.
- Parece que não.
- Mas, se o uno é assim, também não pode de maneira
nenhuma estar no tempo; pois não será necessário que

55 1.10. Décima consequência: o uno não é mais velho nem mais novo do que
si próprio nem do que outra coisa.

60
cujuilo i]ue v no tempo esteja sempre a tornar-se mais vellio
do que si próprio?
- É necessário.
- Ora, aquele que é mais velho é sempre mais velho do
que aquele que é mais novo.
- Claro.
- Por conseguinte, aquele que se torna mais velho b
do que si próprio torna-se, ao mesmo tempo, mais novo do
que si próprio, dado que tem de haver algo relativamente
ao qual se torna mais velho.
- O que queres dizer?
- O seguinte: sendo uma coisa diferente de outra56, não
tem de tornar-se diferente daquilo de que já é diferente, mas
já é diferente daquilo de que já é diferente, tornou-se dife­
rente daquilo de que se tornou diferente, virá a ser diferente
daquilo de que será diferente; mas não pode ter sido, nem
pode vir a ser, nem pode ser diferente daquilo que está a
tornar-se diferente; apenas pode tornar-se diferente, e é tudo.
- Necessariamente.
- Mas o ser mais velho é uma diferença relativamente c
ao ser mais novo e nada mais.
- É de facto.
- Por conseguinte, aquele que está a tornar-se mais
velho do que si próprio tem necessariamente de se tornar,
ao mesmo tempo, mais novo do que si próprio.
- Parece que sim.
- Mas não pode tornar-se, nem durante mais tempo, nem
durante menos tempo do que si próprio, antes terá de tornar-
-se e de ser e de vir a ser no mesmo tempo que si próprio57.
- Também é necessário que seja assim.

56 Diaphoron heteron heterou.


57 L. Brisson, op. cit., p. 136: «C'est dans un laps de temps qui est ni plus grand
ni plus petit que l'âge qui est le sien, un laps de temps qui est donc égal à
cet âge, qu'il lui faut et devenir et être, et avoir été et devoir être.»

61
Nosso case), pároco que ó lambem necessário i|uo Iodas
as coisas que são no tempo e que participam dele tenham a
d mesma idade do que si próprias, ao mesmo tempo que se
tornam mais velhas e mais novas do que si próprias.
- Arrisca-se a ser assim.
- Mas nenhuma destas afecções é transportada para o uno.
- Nenhuma delas é transportada.
- Consequentemente, ele não participa no tempo nem é
em nenhum tempo.
- De facto não, como mostra o argumento.
- E não te parece que «foi», «tornou-se» e «está a tornar-
-se» significam uma participação no tempo passado58?
e - Claramente.
- E «será», «virá a ser» e «terá vindo a ser» não signifi­
cam uma participação no futuro, no que está para vir?
- Sim.
- E «é» e «torna-se» significam uma participação no tempo
presente?
- Como não?
- Consequentemente, se o uno não participa de ma­
neira nenhuma no tempo, nem tem sido, nem foi, nem era,
nem se tornou, nem está a tornar-se, nem é, e ainda não
virá a ser, nem terá vindo a ser, nem será.
- Não há nada mais verdadeiro.
- Mas haverá outra maneira de participar da entidade59
do que através destes?
- Não há.

58 1.10. Décima consequência: o uno não participa na entidade.


59 Fowler traduz esta ocorrência de ousia, bem como as seguintes, até 142a,
por «being», no que é seguido por Echandía («Ser») e por Brisson («être»).
Pela nossa parte, preferimos, por razões de uniformidade vocabular,
traduzir ousia por «entidade». Seja como for, é curiosa a relação que
Parménides estabelece nesta passagem (bem como na passagem paralela
de 155c-d) entre o ser e o tempo.

62
l’o r conseguinte, o nui) 11,10 participa tic· modo nenluim
da entidade.
- Parece que não.
- Mas então o uno não é de modo nenhum.
- Parece que não.
- Ora, sendo assim, também não é enquanto uno; pois,
se fosse, já seria e participaria na entidade; mas parece que
o uno nem é uno nem é, se fizermos fé neste argumento.
- Arrisca-se a ser assim. 142

- E aquilo que não é, pelo próprio facto de não ser,


poderá ter algo em si ou de si?
- Como poderia?
- Mas então, não tem nome, nem definição60 nem qual­
quer saber, nem percepção nem opinião61.
- Parece que não.
- Nesse caso, não poderá ser nomeado nem definido,
nem haverá sobre ele opinião nem conhecimento, nem
será percepcionado por nenhum dos entes?
- Aparentemente, é assim.
- Mas será possível que todas estas coisas aconteçam ao
uno?
- Não me parece.

13 - Queres então que regressemos de novo à hipótese


para vermos se, regressando a ela, se revela algo diferente? b
- Quero, naturalmente.
- Dizemos então que, se o uno é62, teremos de convir
com todas as coisas que se seguem para ele, quaisquer que
sejam; não dizemos?

60 Logos. Brisson, ad loc: «définition»; Echandía, ad loc.: «razón»; Fowler, ad loc.:


«description».
61 1.11. Décima primeira consequência: o uno não é conhecido nem nomeado.
62 2. Segunda afirmação da hipótese: se o uno é (que consequências se
seguem para o uno?).

63
- Sim.
- Observa então desde o princípio: se o uno é, será pos­
sível que seja sem participar da entidade63?
- Não é possível.
- Portanto, a entidade do uno não será idêntica ao que
é o ser para o uno; pois, de outro modo, nem aquela seria
c a entidade daquele, nem este uno participaria daquela,
mas seria o mesmo alguém dizer «o uno é» e «o uno é uno»;
ora, a nossa hipótese não era: se o uno é uno, que coisas se
seguem necessariamente; mas: se o uno é, o que se segue
necessariamente. Não é assim64?
- Com certeza.
- Então, ser significa uma coisa e uno significa outra?
- Necessariamente.
- Mas não significará que o uno participa da entidade?
Não será isso que está a dizer alguém que diga que o uno é?
- E mesmo.
- Esclareçamos novamente, se o uno é, que coisas se
seguem; investiga, pois, se não será necessário que esta
hipótese signifique que o uno é tal, que tem de ter partes65?
- Como?
d - Do seguinte modo: se é se diz do uno que é, e se o uno
se diz do ser que é uno, e se a entidade e o uno não são
o mesmo, mas pertencem àquilo mesmo que pusemos como
hipótese, que o uno é, não será necessário que o ser e o uno
sejam um mesmo todo, de que o uno e o ser serão partes?
- É necessário.
- E havemos de chamar a cada uma destas partes ape­
nas parte ou, sendo partes, terão de ser chamadas partes do
todo?

63 Brisson, ad l o c «être»; Echandía, ad loc.: «Ser»; Fowler, ad loc.: «being».


64 Conflacção dos sentidos identitativo («o uno é uno») e existencial («o uno
é») do verbo «ser».
65 2.1. Primeira consequência: o uno tem partes.

64
- Chamar-se-ão partes do todo.
- Mas, nesse caso, aquilo que é uno é um todo e tem partes.
- Certamente.
- E poderá cada uma destas partes do uno que é, o uno
e o ser, abandonar a outra, quer a parte do uno abandonar o
o ser, quer a parte do ser abandonar o uno66?
- De modo nenhum.
- Portanto, cada uma destas partes possui o uno e o ser,
e a mais pequena das partes terá sempre estas duas partes
e, de acordo com o mesmo raciocínio, qualquer parte que
se gere terá sempre estas duas partes; de facto, o uno tem
sempre ser e o ser tem sempre uno; de maneira que se 143a
geram sempre necessariamente dois e nunca um.
- E mesmo assim.
- Segue-se então que, se o uno é, será uma multiplici­
dade ilimitada.
- Parece que sim.
- Mas pensa ainda no seguinte.
- Em quê?
- Dizemos que o uno participa da entidade, e que por
isso é.
- Pois dizemos.
- E foi por isso que o uno nos pareceu ser muitos67.
- Foi, de facto.
- Mas diremos então que o próprio uno - que, segundo
dissemos, participava na entidade - , enquanto é captado
exclusivamente através do pensamento, em si próprio e
por si próprio, sem aquilo de que dizemos que participa,
é apenas uno ou que também é múltiplo?
- Eu diria que é uno. b

66 2.2. Segunda consequência: o uno é limitado e ilimitado (mas a discussão só


termina adiante, em 145a).
67 2.3. Terceira consequência: o uno acolhe a multiplicidade.

65
- Mas então vejamos; a sua entidade terá necessaria­
mente de ser uma coisa diferente dele próprio, já que o uno
não é a entidade, mas participa na entidade.
- Necessariamente.
- Nesse caso, se a entidade é uma coisa e o uno é
outra68, não é por via de ser uno que o uno é diferente da
entidade, nem é por via de ser entidade que a entidade é
outra relativamente ao uno69, mas são diferentes entre si
por via do diferente e do outro.
- Certamente.
- E assim, o diferente não é idêntico, nem ao uno, nem
à entidade.
- Como poderia ser?
- Mas então, se seleccionarmos entre eles, quer a enti-
c dade e o diferente, se quiseres, quer a entidade e o uno,
quer o uno e o diferente, não teremos escolhido em cada
caso algo a que podemos adequadamente chamar «par»?
- Como é isso?
- Da seguinte maneira: podemos dizer «entidade».
- Podemos.
- E também podemos dizer «uno».
- Também.
- O que significa que falámos de cada um dos dois?
- Pois fálamos.
- E, quando falamos da entidade e do uno, não falamos
de ambos?
- Certamente.
- E, quando falo da entidade e do diferente ou do diferente
e do uno, não estou a falar, em todos os casos, de um par?
d - Sim.
- Mas, se são correctamente chamados pares, será pos­
sível que, sendo um par, não sejam dois?

68 Heteron hê ousia, heteron to hen.


69 Tou henos alio.

66
- Não é possível.
- Ora, sendo dois, haverá algum engenho pelo qual cada
um deles não seja um?
- Não há.
- Por conseguinte, embora aconteça que estão empare­
lhados, cada um deles é um.
- Parece que sim.
- Mas, se cada um deles é um, pela soma de um deles a
qualquer par, o total não será três?
- Será.
- Mas três é ímpar e dois é par.
- Como não?
- Nesse caso, não é necessário que, havendo dois, haja u
duas vezes e que, havendo três, haja três vezes, já que o dois
é formado por duas vezes um e o três por três vezes um?
- E necessário.
- Mas, havendo dois e duas vezes, não será necessário
que haja duas vezes dois? E, havendo três e três vezes, não
é também necessário que haja três vezes três?
- Como não?
- Mas então, havendo três e duas vezes e havendo dois
e três vezes, não é necessário que haja três vezes dois e
dois vezes três?
- Certamente que sim.
- Consequentemente, haverá um número par de vezes
pares, um número ímpar de vezes ímpares, um número 144h
par de vezes ímpares e um número ímpar de vezes pares.
- Assim é.
- Mas então, se essas coisas são assim, parece-te que fica
para trás algum número, cuja necessidade não esteja esta­
belecida70?

70 De acordo com L. Brisson, esta generalização indica claramente que o zero


não existe e que todos os números são obtidos por adição ou por multipli­
cação (op. cit., p. 267, n. 229).

67
- De modo nenhum.
- Portanto, se o uno é, o número também será neces­
sariamente?
- Necessariamente.
- Mas, havendo o número, também haverá muitas
coisas, e mesmo uma pluralidade ilimitada de entes. Ou
não será o número que assim se gera uma pluralidade ilimi­
tada, que participa na entidade71?
- Com certeza.
- Então, se todos os números participam da entidade,
também participará dela cada parte do número, ou não?
- Sim.

b 14 - Consequentemente, a entidade está distribuída por


todos os entes, que são muitos, e não está ausente de ne­
nhum dos entes, nem do menor nem do maior. Ou será
absurdo fazer esta pergunta? Pois como poderia a entidade
estar ausente de qualquer dos entes?
- De modo nenhum.
- Por conseguinte, estará dividida pelos menores e pelos
maiores e por todos os entes, e estará muito dividida por
c todos, de maneira que as partes da entidade serão ilimitadas.
- Assim é.
- Nesse caso, terá o maior número de partes.
- Terá realmente o maior número de partes.
- E haverá alguma delas que seja uma parte da enti­
dade, mas não seja parte nenhuma?
- Como é que isso podia ser?
- Parece-me pois que, se o for, e enquanto for, será
necessariamente um certo uno, pois é impossível que não
seja coisa nenhuma.

71 Ver atrás, nota 59. Repare-se contudo que, a partir de 144d8, hê ousia e to on
são utilizados intermutavelmente e com o mesmo sentido.

68
- Necessariamente.
- Mas então o uno pertence a todas e a cada uma das
partes da entidade, e não abandona, nem a parte mais
pequena, nem a maior, nem nenhuma outra.
- Assim é. b
- E poderá o uno que é estar todo simultaneamente pre­
sente em toda a parte? Pensa nisso.
- Já pensei, e parece-me impossível.
- Nesse caso, se não está como um todo, estará dividido
em partes; pois de nenhum outro modo poderia estar
simultaneamente presente em todas as partes da entidade,
a não ser estando dividido em partes.
- Pois é.
- Mas aquilo que está dividido em partes será neces­
sariamente tão numeroso como as partes que houver.
- Necessariamente.
- Ora, se assim é, não dissemos a verdade ao dizer que
a entidade está dividida no maior número de partes. Pois
não serão mais numerosas do que aquelas em que está divi­
dido o uno, mas serão aparentemente iguais ao número de o
partes do uno. E que nem o ser abandona o uno nem o uno
o ser, mas, sendo dois, são sempre igualados em todas as
coisas.
- Parece ser completamente assim.
- Por conseguinte, o próprio uno, dividido em partes
pela entidade, será múltiplo e uma multiplicidade ilimi­
tada.
- É o que parece.
- Mas então, não é só o ser que, sendo uno, é múltiplo,
mas também o próprio uno que, dividido em partes pela
entidade, terá necessariamente de ser múltiplo.
- Não há dúvida nenhuma.

69
15 - E, dado que as partes são partes de um todo, o uno
será limitado enquanto todo. Ou não estarão as partes con-
145a tidas no todo72?
- Estão necessariamente.
- Mas aquilo que contém será limite.
- Como não?
- Nesse caso, o uno que é tem de ser uno e múltiplo,
todo e partes, limitado e em número ilimitado.
- Assim parece.
- Ora, se é limitado, também terá de ter extremidades,
ou não?
- Necessariamente.
- Mas então, se é um todo, não terá um princípio, um
meio e um fim? Ou será possível que alguma coisa seja
um todo sem estes três? E, se algum deles estivesse
ausente, poderia ainda aspirar e ser um todo?
- Não poderia.
b - Então parece que o uno tem um começo, um meio e
um fim.
- Pois tem.
- Mas o meio está a igual distância das extremidades;
pois de outra maneira não seria meio.
- De facto, não.
- Sendo assim, parece que o uno participa de uma certa
figura, seja ela recta ou circular, ou qualquer mistura de
ambas.
- Participa, de facto.
- Por conseguinte, tem de estar em si mesmo e noutro73?
- Como é isso?
- Cada uma das suas partes está no todo e nenhuma
está fora do todo.

72 2.4. Quarta consequência: o uno tem figura.


73 2.5. Quinta consequência: o uno está em si próprio e noutra coisa.

70
- Assim é.
- E todas as partes estão incluídas no todo? o
- Estão.
- E o uno é constituído por todas as suas partes, nem
mais nem menos do que todas elas.
- Efectivamente.
- Mas o todo é uno, não é?
- Como não?
- Então, se todas as partes estão no todo, e se o uno é
todas as suas partes e o próprio todo, e se todas elas estão
contidas no todo, o uno estará incluído no uno, e assim o
próprio uno estará já em si próprio.
- Parece que sim.
- Mas a verdade é que o todo não está nas suas partes,
nem em todas, nem em algumas; pois, se estivesse em d
todas as suas partes, estaria necessariamente numa delas;
mas, se não estivesse em alguma delas, também não podia
estar em todas; pois, se esta é uma entre todas, e se o todo
não está nesta, como poderá estar em todas?
- De modo nenhum.
- Mas também não poderá estar em algumas das suas
partes, pois se o todo estivesse em algumas das suas partes,
o mais estaria no menos, o que é impossível.
- É de facto impossível.
- Mas, não estando o todo em muitas, nem em uma,
nem em todas as suas partes, não será necessário que esteja
em algo diferente ou que não esteja em lado nenhum?
- É necessário. e
- E, se não estivesse em lado nenhum, não seria nada;
mas, sendo o todo, se não está em si próprio, tem neces­
sariamente de estar noutra coisa.
- Com certeza.
- Por conseguinte, enquanto todo, o uno está noutro;
mas, relativamente à totalidade das suas partes, está em si

72
próprio; e assim, o próprio uno tem necessariamente de
estar em si próprio e em algo diferente.
- Necessariamente.
- Sendo esta a natureza do uno, não será necessário que
esteja em movimento e em repouso74?
- Por quê?
- Estará em repouso se estiver em si próprio; pois,
146a estando em certo lugar e não saindo daí, permanecerá no
mesmo lugar, em si próprio75.
- De facto, assim é.
- E parece-me que o que está sempre no mesmo lugar
deverá necessariamente estar sempre em repouso.
- Com certeza.
- Mas então, aquele que está sempre em lugar diferente
não deverá, pelo contrário, não estar nunca no mesmo
lugar e, não estando nunca no mesmo lugar, não estar em
repouso e, não em estando em repouso, estar em movi­
mento?
- Pois deverá.
- Então, é necessário que o uno, estando sempre em si
próprio e num lugar diferente, esteja sempre em movi­
mento e em repouso.
- Parece que sim.
- Mas terá de ser idêntico a si próprio e diferente de si
b próprio e, da mesma maneira, idêntico às outras coisas e
diferente delas76, se for afectado como dissemos?
- Como é isso?
74 2.6. Sexta consequência: o uno está em movimento e em repouso.
75 As expressões são en autôi/en heterôi. Echandía alterna as traduções: «en un
lugar» (146al) e «lo que está en otro» (a4), no que é seguido por Brisson:
«dans le même endroit» e «en quelque chose de différent», respectiva­
mente. Pela nossa parte, e procurando manter a uniformidade, preferimos
traduzir por «no mesmo lugar» e «em lugar diferente».
76 2.7. Sétima consequência: o uno é idêntico e diferente de si próprio e das
outras coisas.

72
- Todas as coisas são relativamente .1 Indo como se
segue: ou são idênticas ou diferentes; ou, se não forem
idênticas nem diferentes, são uma parte daquilo relativa­
mente ao qual são idênticas ou diferentes ou são um todo
relativamente a uma parte.
- Parece que sim.
- Mas será o uno uma parte de si próprio?
- De modo nenhum.
- Nesse caso, também não pode ser, relativamente a si
próprio, como um todo relativamente a uma parte, pois
seria uma parte relativamente a si próprio.
- Isso não é possível.
- Mas o uno não é diferente do uno?
- Com certeza que não. c
- Portanto, não pode ser diferente de si próprio?
- Não pode, de facto.
- E isto? Se não é diferente, nem é o todo, nem é uma
parte, relativamente a si próprio, não será necessário que
seja idêntico a si próprio?
- E necessário que o seja.
- Mas então não é necessário que aquilo que está fora de
si próprio, embora estando em si próprio, seja diferente
de si próprio, já que está fora de si próprio?
- Parece-me que sim.
- Ora, já vimos que o uno era assim, pois estava em si
próprio e simultaneamente em lugar diferente77.
-V im o s, efectivamente.
- Por conseguinte, segundo parece, o uno é diferente de
si próprio.
- Parece que sim. d
- Mas então, se algo é diferente de algo, não será dife­
rente daquilo de que é diferente?
- Sê-lo-á necessariamente.

77 Ver atrás, nota 75.

73
16 - Nesse caso, aquelas coisas que não são o uno são
todas, sem excepção, diferentes do uno, e o uno é diferente
das coisas que não são o uno78.
- Como não?
- Por conseguinte, o uno será diferente das outras
coisas.
- Será diferente delas.
- Então considera o seguinte: o idêntico em si próprio e
o diferente em si próprio não são contrários um do outro?
- Como não haviam de sê-lo?
- Sendo assim, poderá o idêntico estar no diferente ou
o diferente no idêntico?
- Não pode.
- Então, se o diferente não pode de maneira nenhuma
estar no idêntico, não há nenhum ser no qual o diferente
e permaneça durante um certo tempo; pois se estivesse em
algum ser, o diferente estaria no idêntico durante esse
tempo. Ou não é assim?
- E assim.
- Mas, se o diferente nunca está no mesmo, também
nunca poderá estar em nenhum dos entes.
- Isso é verdade.
- Desse modo, o diferente não estará, nem nas coisas
que não são o uno, nem no uno.
- Pois não.
- Nesse caso, não é por via do diferente que o uno é
diferente das coisas que não são o uno; nem que as coisas
que não são o uno são diferentes do uno.
- Não é, de facto.
- Mas também não será por via de si próprias que serão
diferentes umas das outras, uma vez que não participam
do diferente.

78 Ou «do que não é uno»: tôn mê hen. Ver também adiante, 146e.

74
- Como poderiam sê-lo?
- Ora, se não é por via de si próprias nem por via do
diferente que são diferentes, não fugirão de todas as
maneiras de ser diferentes umas das outras?
- Fugirão.
- Mas as coisas que não são o uno também não podem
participar do uno; pois, nesse caso, não seriam não uno,
mas seriam, de certa maneira, o uno.
- E verdade.
- E ainda, as coisas que não são o uno não terão número;
pois, nesse caso, ao possuírem um número, não poderiam
de maneira nenhuma ser não uno.
- De facto.
- Mas as coisas que não são o uno não serão partes do
uno? E assim, as coisas que não são o uno não participam
do uno?
- Participam.
- Nesse caso, se temos por um lado aquilo que é total- b
mente uno, e por outro lado as coisas que não são o uno, o
uno não pode ser uma parte das coisas que não são o uno,
nem um todo de que elas sejam partes; nem as coisas que
não são o uno podem ser partes do uno, nem todos de
que o uno seja uma parte.
- De facto, não.
- Mas já dissemos que aquelas coisas que não são, nem
partes, nem todos relativamente umas às outras, nem dife­
rentes umas das outras, devem ser idênticas umas às outras.
- Dissemos, de facto.
- Diremos então agora que, sendo o uno o que é, relati­
vamente às coisas que não são o uno, é o mesmo que elas?
- Diremos.
- Nesse caso, parece que o uno é diferente das outras
coisas e de si próprio e é idêntico a elas e a si próprio.
- Arrisca-se a ser isso que o argumento prova. c

75
- Mas será também semelhante e dissemelhante, de si
próprio e das outras coisas79?
- Talvez.
- J á que se nos mostrou diferente das outras coisas, tam­
bém as outras coisas devem ser diferentes dele.
- Certamente.
- Portanto, será diferente das outras coisas da mesma
maneira que as outras coisas são diferentes dele, nem mais,
nem menos?
- Com certeza.
- Mas, se não é mais nem menos, é de forma seme­
lhante80.
- Sim.
- Mas, se é afectado de tal maneira que é diferente das
outras coisas e se as outras coisas são afectadas da mesma
maneira, sendo diferentes dele, serão afectados de maneira
d idêntica, quer o uno relativamente às outras coisas, quer as
outras coisas relativamente ao uno.
- O que dizes?
- O seguinte: chamas a cada coisa um nome?
- Chamo.
- E podes dizer o mesmo nome muitas vezes ou uma só
vez?
- Pois posso.
- E, quando o dizes uma vez designas aquilo que tem
esse nome, mas quando o dizes muitas vezes, já não? Ou,
quer o digas uma vez só, quer o digas muitas vezes, terás
necessariamente de dizer sempre a mesma coisa?
- Com certeza.
- Ora, «diferente» não é o nome de alguma coisa?

79 2.8. Oitava consequência: o uno é semelhante e dissemelhante de si próprio


e das outras coisas.
80 Homoiôs; o advérbio repete os adjectivos das linhas anteriores.

76
- Certamente que sim.
- Então, quando o dizes, seja uma vez só, seja muitas
vezes, não designas outra coisa, nem nomeias outra coisa, o

senão aquilo de que é o nome.


- Necessariamente.
- Assim sendo, quando dizemos que as outras coisas são
diferentes do uno, e que o uno é diferente das outras
coisas, ao dizermos duas vezes «diferente» não designamos
nada que seja diferente daquela mesma natureza de que é
o nome.
- Certamente que não.
- Por conseguinte, sendo o uno diferente das outras i48n
coisas e as outras coisas do uno, o uno e as outras coisas
não serão afectados por coisas diferentes, mas será a
mesma coisa que afectará o uno e as outras coisas. E aquilo
que é afectado por uma coisa idêntica é semelhante, não é?
-É .
- Então, na medida em que o uno é afectado pelo dife­
rente relativamente às outras coisas, nessa medida, será de
todas as maneiras semelhante a todas elas; pois todo ele é
diferente de todas as coisas.
- Assim parece.

17 - Mas o semelhante é o contrário do dissemelhante.


-É .
- E, da mesma maneira, o diferente é o contrário do
idêntico.
- Pois é.
- Mas isto também foi mostrado, que o uno é idêntico às
outras coisas.
- De facto, ficou mostrado. b
- Ora, ser idêntico às outras coisas é uma afecção con­
trária a ser diferente das outras coisas.
- Certamente que é.

77
- Mas, na medida em que é diferente, mostrou ser
semelhante.
- Sim.
- Portanto, na medida em que idêntico, será disseme­
lhante, pois será afectado pela afecção contrária ao seme­
lhante, pois era o diferente que o tornava semelhante.
- Sim.
- Então, o idêntico torna-lo-á dissemelhante, ou então
não será o contrário do diferente.
c - Assim parece.
- Por conseguinte, o uno será semelhante e disseme­
lhante das outras coisas, semelhante na medida em que é
diferente, e dissemelhante na medida em que é idêntico.
- Sim, o argumento parece estabelecer isso.
- Mas também o seguinte.
- O quê?
- Na medida em que é afectado pelo idêntico, não será
afectado de outra maneira81; não sendo afectado de outra
maneira, não será dissemelhante; e, não sendo disseme­
lhante, será semelhante. Em contrapartida, na medida em
que é afectado de outra maneira, será outro e, sendo afec­
tado de outra maneira, será dissemelhante.
- Dizes a verdade.
- Assim, sendo idêntico às outras coisas e porque é dife­
rente, tanto por ambas as coisas, como por cada uma delas,
d o uno será semelhante e dissemelhante das outras coisas.
- Certamente.
- E da mesma maneira em si próprio, uma vez que
mostrámos que é diferente de si próprio e idêntico a si
próprio, tanto por ambas as coisas, como por cada uma
delas, será semelhante e dissemelhante.
- Necessariamente.

81 Mc alloion peponthenai, tal como a seguir.

78
- investiga agora se o uno está em contacto consigo
próprio e com as outras coisas ou não está em contacto con­
sigo próprio e com as outras coisas82.
- Investigarei.
- Mostrámos que o uno estava em si próprio como um
todo.
- Correcto.
- Mas então também está nas outras coisas.
- Sim.
- Nesse caso, na medida em que está nas outras coisas,
estará em contacto com as outras coisas; na medida em que u
está em si próprio, estará afastado do contacto com as outras
coisas mas, estando em si próprio, estará em contacto consigo.
- Parece que sim.
- Assim sendo, o uno estará em contacto consigo pró­
prio e com as outras coisas.
- Pois estará.
- Mas não será necessário que tudo aquilo que venha a
estar em contacto com alguma coisa esteja colocado perto
daquilo com que virá a estar em contacto, ocupando o
lugar imediatamente a seguir àquele em que se encontra
aquilo com que está em contacto?
- É necessário.
- Consequentemente, para que o uno venha a estar em
contacto consigo próprio, tem de estar colocado perto de si
próprio e de ocupar o lugar a seguir àquele em que se
encontra?
- Terá necessariamente.
- Ora, o uno só poderia vir a fazer isso se fosse dois e 149a
estivesse em dois lugares simultaneamente; mas, enquanto
for um, não poderá fazê-lo.

82 2.9. Nona consequência (ausente da primeira série): o uno está e não está
em contacto consigo próprio e com as outras coisas.

79
- Não poderá, efectivamente.
- Mas é a mesma necessidade que impede o uno de ser
dois e de estar em contacto consigo próprio.
- E a mesma.
- E também não estará em contacto com as outras
coisas.
- Por quê?
- Porque, tal como dissemos, aquilo que vier a estar em
contacto consigo próprio tem de estar separado e de estar
ao lado daquilo com que virá a estar em contacto, e não
poderá haver uma terceira coisa entre eles.
- E verdade.
- Por isso, para que haja contacto, tem de haver, no mí­
nimo, duas coisas.
- Pois é.
b - Mas, se a essas duas coisas que estão em contacto se
acrescentar a seguir uma terceira, haverá três coisas e dois
contactos.
- Sim.
- E assim, sempre que se acrescenta uma coisa, acres-
centa-se também um contacto, sendo o número dos con­
tactos inferior em um ao das coisas. Pois as duas primeiras
coisas superam o número dos contactos, sendo já em
número superior a eles, e da mesma maneira o número das
coisas superará o número dos contactos. De facto, sempre
c que se acrescenta um ao número das coisas, acrescenta-se
um contacto ao número dos contactos.
- Correcto.
- Assim, qualquer que seja o número das coisas, os con­
tactos serão sempre um a menos do que elas.
- E verdade.
- Mas, se apenas houver uma coisa, e não duas, não
poderá haver contacto.
- Como poderia?

80
- Então, conforme dissemos, as coisas que são outras
que o uno83 não são o uno nem participam do uno, uma
vez que são outras.
- De facto, não.
- Mas então, não há número nas outras coisas, uma vez
que o uno não está nelas.
- Como poderia haver?
- Consequentemente, as outras coisas não são um nem d
dois, nem recebem o nome de nenhum outro número.
- Não.
- Por conseguinte, só o uno é uno, e não haverá o dois.
- Parece que não.
- Mas, não havendo duas coisas, não pode haver contacto.
- Pois não.
- Nesse caso, se não há contacto, o uno não estará em
contacto com as outras coisas, nem as outras coisas com o
uno.
- Não estará, de facto.
- Assim sendo, e com base em tudo o que foi dito, o uno
está e não está em contacto consigo próprio e com as outras
coisas.
- Parece que sim.

18 - E será o uno igual e desigual de si próprio e das


outras coisas84?
- Como?
- Se o uno fosse maior ou menor do que as outras e
coisas, ou as outras coisas maiores ou menores do que o
uno, não seria por via de o uno ser uno e de as outras coisas
serem outras relativamente ao uno que seriam maiores ou

83 Talla tou henos. Optámos pela deselegância da expressão portuguesa, a fim de


nos mantermos, tanto quanto possível, próximos da designação em grego.
84 2.10. Décima consequência: o uno é igual e desigual de si próprio e das outras
coisas.

81
m enores uns do que os outros, no que diz respeito às suas
entidades85; mas se, para além destas, cada um possuísse
a igualdade, seriam iguais uns aos outros; e se as outras
coisas possuíssem a grandeza e o uno a pequenez, ou o uno
a grandeza e as outras coisas a pequenez, aquela forma86 a
que se acrescentasse a grandeza seria maior, e aquela a que
se acrescentasse a pequenez, mais pequena.
- Necessariamente.
- Mas há estas duas formas, a grandeza e a pequenez,
não é verdade? Pois, se não houvesse, não poderiam ser
contrárias uma da outra nem poderiam gerar-se nos entes.
- Não duvido.
150 a - Então, se a pequenez se gerar no uno, estará em todo
o uno ou numa parte dele.
- Necessariamente.
- E se se gerar no todo? Ou se estenderá de igual ma­
neira por todo o uno ou envolvê-lo-á, não é verdade?
- E claro.
- Ora, se a pequenez se estender de igual maneira pelo
uno, será igual a ele; mas, se o envolver será maior do que ele.
- Como não?
- Mas é possível que a pequenez seja igual a alguma
coisa ou maior do que alguma coisa, cumprindo as funções
da grandeza e da igualdade, mas não as suas?
b - Isso é impossível.
- Então, a pequenez não estará em todo o uno, mas
antes somente numa parte.
- Sim.
- Mas também não pode estar em toda essa parte; cle
contrário, aconteceria o mesmo que acontece com o todo:
seria sempre igual ou maior do que a parte em que estivesse.

85 Brisson, ad loc.: «essence»; Echandía, ad loc.: «esendas»; Fowler, ad loc.: «natures».


86 Eidos.

82
- N ecessariam ente.
- Então, a pequenez nunca estará em nenhum dos
entes, pois não pode gerar-se nem na parte nem no todo;
nem haverá nada que seja pequeno, para além da própria
pequenez.
- Parece que não.
- Mas a grandeza também não estará presente no uno;
pois aquilo em que a grandeza estivesse presente seria c
maior do que a própria grandeza e outro relativamente a
ela e, sendo grande, não seria pequeno, nem seria neces­
sariamente excedido por ela. Mas isto é impossível, porque
a pequenez não está presente em parte alguma.
- Isso é verdade.
- Assim sendo, a própria grandeza não é maior do que
nenhum a outra coisa, para além da própria pequenez, nem
a própria pequenez é mais pequena do que nenhuma outra
coisa, para além da própria grandeza87.
- De facto, não.
- Então, as outras coisas não são maiores nem menores do
que o uno, uma vez que não têm grandeza nem pequenez,
nem estas têm, relativamente ao uno, o poder de o exceder d
ou de serem excedidas por ele, mas só uma relativamente à
outra; por sua vez, o uno também não pode ser maior nem
menor do que nenhuma destas duas, nem do que as outras
coisas, uma vez que não tem grandeza nem pequenez.
- Parece ser assim mesmo.
- Ora, se o uno não é maior nem menor do que as outras
coisas, é necessário que não as exceda nem seja excedido
por elas.
- É necessário.
- Nesse caso, é mesmo necessário que aquele que não
excede nem é excedido esteja em situação de igualdade e
que, estando em situação de igualdade, seja igual.

87 Auto megethos e autê smikrotês.

83
- Como não?
e - Mas o uno em si também terá a mesma relação con­
sigo próprio; não tendo em si próprio, nem grandeza nem
pequenez, não se excederá a si próprio nem será excedido
por si próprio mas, estando em situação de igualdade, será
igual a si próprio.
- Completamente.
- Então, o uno será igual a si próprio e às outras coisas.
- Parece que sim.
- No entanto, estando em si próprio, também deve estar
à volta de si próprio a partir de fora; de modo que, con­
tendo-se si próprio, será maior do que si próprio e, sendo
151a contido por si próprio, será menor do que si próprio; e
assim, o uno em si será maior e menor do que si próprio.
- Pois será.
- Mas não é necessário que não haja nada fora do uno e
das outras coisas?
- Como não?
- E também é forçoso que aquilo que é esteja sempre em
algum lugar.
- Sim.
- Mas aquilo que está em algum lugar não será menor
do que aquilo no qual está, que será maior? É que não há
outra maneira de uma coisa estar num lugar diferente de si,
pois não88?
- De facto, não.
- Mas, visto que não há nada para além89 das outras
coisas e do uno, e que estes têm de estar em algum lugar,
não será necessário que estejam uns nos outros, as outras
b coisas no uno e o. uno nas outras coisas, ou então em parte
alguma?

88 Ver atrás, nota 74.


89 Ouden heteron chôris: nada outro separado.

84
- Parece que sim.
- E que, se o uno estiver nas outras coisas, as outras
coisas sejam maiores do que o uno, uma vez que o contêm,
e o uno menor do que as outras coisas, já que é contido por
elas? E que, se as outras coisas estão no uno, o uno seja,
pela mesma razão, maior do que as outras coisas, e as
outras coisas menores do que o uno?
- Assim parece.
- Então, o uno será igual, maior e menor do que si
próprio e do que as outras coisas.
- É óbvio.
- Mas, se é maior, menor e igual, terá medidas iguais,
maiores e menores do que si próprio e do que as outras
coisas, e se tem medidas, também terá partes.
- Como não?
- E, tendo medidas iguais e maiores e menores, será
numericamente maior e menor do que si próprio e do que
as outras coisas, bem como numericamente igual a si
próprio e às outras coisas.
- Como?
- Se for maior do que outras coisas, terá medidas maio­
res do que elas; e terá tantas partes quantas medidas tem;
e, se for menor, acontece a mesma coisa; e se for igual,
outro tanto.
- E assim.
- Então, sendo maior, menor e igual a si próprio, terá
medidas maiores e menores do que si próprio, e se tem
medidas também tem partes.
- Como não?
- E, se tiver um número de partes igual a si próprio, será
igual a si próprio segundo o número; se tiver um número
maior, será numericamente maior, e se tiver um número me­
nor será numericamente menor do que si próprio.
- Parece que sim.
- E terá o uno a mesma relação com as outras coisas?
E que, se parece ser maior do que elas, também é necessário
que seja numericamente maior do que elas; se for menor,
terá de ser numericamente menor; e, se tiver uma gran­
deza igual, será igual às outras coisas segundo o número.
- Necessariamente.
e - Sendo assim, parece que o uno será numericamente
igual, maior e menor do que si próprio e do que as outras
coisas.
- Pois será.

19 - E o uno participará do tempo90? E, participando


do tempo, é e torna-se mais novo e mais velho do que si
próprio e do que as outras coisas, ou nem se torna mais
novo nem mais velho do que si próprio nem do que as
outras coisas?
- Como é isso?
- Se o uno é, por essa razão, o ser pertence-lhe.
- Sim.
- Mas o «ser» não é outra coisa, senão a participação na
152 a entidade com o tempo presente, tal como o «era» é a par­
ticipação na entidade com o tempo passado e o «será» uma
partilha da entidade com o futuro, não é assim?
- E, de facto.
- Portanto, o uno participa no tempo, uma vez que par­
ticipa no ser.
- Com certeza.
- Ou seja, no tempo que passa?
- Sim.
- Logo, está sempre a tornar-se mais velho do que si
próprio, uma vez que passa com o tempo.

90 2.11. Décima primeira consequência: o uno é mais velho e mais novo do


que si próprio e do que as outras coisas.

86
Necessariamente.
- Mas convém recordar que aquilo que é mais velho se
torna mais velho do que aquele que se torna mais novo.
- Recordemo-lo, pois.
- Portanto, se o uno se torna mais velho do que si pró­
prio, não se tornará mais velho do que si próprio, tornan- b
do-se mais novo?
- Necessariamente.
- Torna-se assim mais velho e mais novo do que si pró­
prio.
- Sim.
- E não é verdade que é mais velho quando, ao tornar-
-se mais velho, está no tempo de agora, entre o era e o será?
De facto, não evita o agora ao passar do antes para o depois.
- Pois não.
- Nesse caso, não deixa de se tornar mais velho quando
está no agora e deixou de se tornar outra coisa, pois já é c
mais velho. É que, ao avançar, nunca será apanhado pelo
agora; de facto, aquilo que assim avança aproxima-se de
ambos, do agora e do depois, deixando ir o agora e apode­
rando-se do depois e gerando-se entre ambos, o depois e o
agora.
- É verdade.
- Mas, se é necessário que tudo aquilo que se gera não
evite o agora, sempre que isso acontece, deixa de se tornar d
e é aquilo que acontece estar a tornar-se.
- Parece que sim.
-.N e sse caso, quando, ao tornar-se mais velho o uno
chega ao presente, deixa de se tornar e, nesse momento, já
é mais velho.
- Completamente.
- Portanto, estava a tornar-se mais velho do que aquilo
que o é; estava a tornar-se mais velho do que si próprio.
Sim.

87

j
- E aquilo que é mais velho é mais velho do que aquilo
que é mais novo?
- É, de facto.
- Consequentemente, o uno também é mais novo do
que si próprio quando, ao tornar-se mais velho, chega ao
agora?
e - Necessariamente.
- Mas o agora está sempre presente no uno, em todo o
seu ser; porque, quando é, é sempre agora.
- Como não?
- Segue-se que o uno é sempre e está sempre a tornar-
-se mais velho e mais novo do que si próprio.
- Parece que sim.
- Mas é ou torna-se em mais tempo do que si próprio ou
em tempo igual?
- Em tempo igual.
- Ora, aquilo que se torna ou que é em tempo igual tem
a mesma idade.
- Como não?
- E o que tem a mesma idade não é mais velho nem
mais novo.
- De facto, não.
- Consequentem ente, o uno, que se torna e é no mesmo
tempo que si próprio não é nem se torna mais novo nem
mais velho do que si próprio.
- Parece-me que não.
- E que as outras coisas?
153a - Não te posso dizer.
- Mas podes certamente dizer isto: que as coisas que são
outras que o uno, sendo diferentes e não diferente, são mais
do que uma91; pois, se fosse diferente, seria uma; mas, sendo
diferentes, são mais do que uma e são uma multiplicidade.

91 Pleiô estin henos: são mais do que uma/são mais numerosas do que o uno.

88
- São, de facto.
- Sendo uma multiplicidade, participarão num número
maior do que o uno.
- Como não?
- E achas que foram os números maiores que foram
gerados primeiro, ou os números menores?
- Os menores.
- Assim sendo, o menor de todos será o primeiro; e esse
é o uno; ou não?
- Sim.
- Consequentemente, de entre todas as coisas que têm
número, o uno foi o primeiro a gerar-se; mas todas as
outras coisas também têm número, dado que são outras
coisas e não outra coisa.
- Têm, de facto.
- Ora, tendo sido o primeiro a gerar-se, segundo penso,
o uno gerou-se primeiro e as outras coisas depois; mas as
coisas que se geram depois são mais novas do que aquelas
que se geram primeiro; e assim, as outras coisas serão mais
novas do que o uno, e este será mais velho do que as outras
coisas.
- Será realmente.

20 - E quanto ao seguinte? Poderá o uno gerar-se contra


a sua própria natureza, ou isso é impossível?
- E impossível.
- Mas já mostrámos que o uno tem partes, e se tem par­
tes tem um princípio, um fim e um meio?
- Pois mostrámos.
- E o princípio não é, em todas as coisas, o primeiro a ser
gerado, tanto no próprio uno como em cada uma das
outras coisas, e depois do princípio todas as outras coisas,
até ao fim?
- E então?

89

- E diremos que todas as outras coisas nSo sflo mais do


que partes do todo e do uno, o qual chega a ser uno e todo
simultaneamente com o fim?
- Diremos, de facto.
- Mas o fim, julgo eu, é o último a gerar-se; e, simul­
taneam ente com ele, gera-se o uno por natureza; e deste
d modo, se o uno em si não pode necessariamente gerar-se
contra a sua natureza, tendo-se gerado simultaneamente
com o fim, deverá gerar-se por natureza depois de todos as
outras coisas.
- Assim parece.
- Nesse caso, o uno é mais novo do que as outras coisas
e as outras coisas são mais velhas do que o uno.
- Parece-me que sim.
- Mas então, o princípio ou qualquer outra parte do uno
ou de qualquer outra coisa, sendo uma parte e não partes,
não será necessariamente uno, já que é uma parte?
- Sê-lo-á necessariamente.
- Portanto, o uno gera-se simultaneamente com a pri-
e meira coisa que se gera, e simultaneamente com a segunda,
e não faltará a nenhum a das outras coisas que se geram,
seja qual for a parte que as precede, até que, tendo chegado
à última, se torna um todo92, de maneira que não falta ao
meio, nem ao primeiro, nem ao último, nem a nenhum dos
outros que se geram.
- É verdade.
- Assim, o uno terá a mesma idade que todas as outras
coisas; de tal modo que, se o próprio uno não for contra a
sua natureza, não se terá gerado nem antes nem depois das
154 a outras coisas, mas ao mesmo tempo que elas. E, segundo
este argumento, o uno não será mais velho nem mais novo
do que as outras coisas, nem as outras coisas do que o uno;

92 Holon hen.

90
mas, de acordo com o argumento anterior, era mais velho e
mais novo do que as outras coisas, e da mesma maneira as
outras coisas eram mais velhas e mais novas do que ele.
- Completamente.
- E é assim que ele é e que se gera. Mas, por outro lado,
o que diremos acerca de ele se tornar mais velho e mais
novo do que as outras coisas, e as outras coisas do que o
uno, e de não se tornar mais novo nem mais velho do que
elas? Acontecerá com o tornar-se como acontece com o ser,
ou de outra maneira?
- Não sei dizer. b
- Pois eu digo o seguinte: se uma coisa é mais velha do
que outra, não pode tornar-se ainda mais velha senão pela
diferença de idade que tinha ao princípio; por outro lado,
se for mais nova, não se pode tornar ainda mais nova; pois
a adição de iguais a desiguais, seja no tempo ou em qual­
quer outra coisa, faz com que a diferença seja sempre a
mesma que era ao princípio.
- Como não?
- Portanto, aquilo que é não pode tornar-se mais velho
nem mais novo do que aquilo que é, se a diferença de c
idades perm anecer igual; é e tornou-se mais velho, ou
então mais novo, mas não se tornará ainda mais velho
ou mais novo.
- Isso é verdade.
- Consequentemente, o uno que é não se torna mais
velho nem mais novo do que as outras coisas.
- De facto, não.
- Mas considera se elas se podem tornar mais velhas ou
mais novas da seguinte maneira.
- Como?
- Assim: o uno mostrou ser mais velho do que as outras
coisas e as outras coisas mais velhas do que o uno.
- E então?

91
d - Se o uno é mais velho do que as outras coisas, e por­
que se gerou há mais tempo do que as outras coisas.
- Pois é.
- Mas investiga novamente: se adicionarmos um tempo
igual a um tempo mais longo e a um tempo mais curto, o
tempo maior tornar-se-á diferente do tempo menor pela
mesma parte ou por uma parte mais pequena93?
- Por uma parte mais pequena.
- Nesse caso, a diferença inicial de idades do uno relati­
vam ente às outras coisas não será a mesma que depois;
pois, ao adicionar-se um tempo igual, a diferença de idades
relativamente às outras coisas será menor do que anterior­
mente; ou não?
- Sim.
e - Mas aquilo que difere de outro em idade por menos
tempo do que antes não se tornará mais novo do que era
antes em relação àquelas coisas relativamente às quais
era anteriorm ente mais velho?
- Tornar-se-á mais novo.
- E, se esse se torna mais novo, não se tornarão as outras
coisas, por sua vez, mais velhas do que antes relativamente
ao uno?
- Completamente.
- Desse modo, aquele que foi gerado mais novo torna-
-se mais velho relativamente àquele que se gerou anterior­
m ente, que é mais velho; contudo, de modo nenhum é
mais velho, mas está sempre a tornar-se mais velho do que
aquele; esse tende para ser mais novo, enquanto o outro
155 a tende para ser mais velho; por seu lado, o mais velho tarn-

93 De acordo com Brisson (op. cit., p. 273, nn. 345-6), esta passagem refere uma
relação do tipo (a + x) / (b + x) < a / b. Trata-se, pois, de uma relação
geom étrica (e não aritmética), em que (a + x) / (b + x) diminui constante­
m ente, tendendo para 1, à medida que o valor de x aumenta.

92
bém está a lornar-se mais novo do que o mais novo; pois,
movendo-se em sentido contrário, estão a tornar-se o con­
trário um do outro, o mais novo, mais velho do que o mais
velho, e o mais velho, mais novo do que o mais novo. Mas
nunca acabarão de se tornar mais velhos nem mais novos;
pois, se acabassem, deixariam de se tornar, e seriam. Agora
estão a tornar-se mais velhos e mais novos um que o outro;
pois o uno torna-se mais novo do que as outras coisas,
porque mostrou que é mais velho e que foi gerado pri­
meiro, e as outras coisas tornam-se mais velhas do que b
o uno, porque foram geradas depois. De acordo com o
mesmo argumento, as outras coisas têm a mesma relação
com o uno, já que se tornou claro que eram mais velhas do
que ele e que foram geradas primeiro.
- Parece de facto ser assim.
- Nesse caso, uma vez que nenhuma coisa se torna mais
velha nem mais nova do que outra, já que diferem sempre
uma da outra por um número igual de anos, nem o uno se
torna mais velho nem mais novo do que as outras coisas,
nem as outras coisas do que o uno; por outro lado, como as
coisas que se geraram primeiro diferem necessariamente c
das que se geraram depois por uma parte sempre dife­
rente, e as que se geraram depois das que se geraram
primeiro, o uno e as outras coisas estarão necessariamente
a tornar-se mais velhos e mais novos uns do que os outros.
- Completamente.
- De acordo com todos estes argumentos, o uno em si é
e torna-se mais velho e mais novo do que si próprio e do
que as outras coisas, e nem é nem se torna mais velho nem
mais novo do que si próprio nem do que as outras coisas.
- Não há dúvida.
- Mas, uma vez que o uno participa no tempo e no
tornar-se mais velho e mais novo, não será necessário que

93
d participe também no antes, no depois e no agora, j.i que
participa do tem po94?
- E necessário.
- Nesse caso, o uno era, é, será, e gerou-se e gera-se e
gerar-se-á.
- Certamente.
- E houve, há e haverá alguma coisa relativa a ele e
própria dele95.
- Completamente.
- E haverá saber, opinião e sensação dele, uma vez que
nós próprios estamos neste momento a fazer todas estas
coisas relativamente a ele.
- Dizes bem.
- E haverá um nome e uma definição96 para ele, e será
e nomeado e definido; e todas as outras coisas semelhantes
que se encontram nos restantes entes também se encon­
tram no uno.
- Assim é, sem dúvida nenhuma.

21 - Mas digamos pela terceira vez97: se o uno é como o


descrevemos, não será necessário que seja uno e múltiplo98,
e nem uno nem múltiplo, e que participe do tempo e que
ora participe na entidade, dado que é uno, ora não parti­
cipe na entidade, dado que não é uno?
- Necessariamente.

94 2.12. Décima segunda consequência: o uno participa da entidade (ou do


ser).
95 2.13. Décima terceira consequência: o uno é conhecido e nomeado.
96 Logos; Echandía, ad loc.: «razón própia»; Fowler, ad l o c «definition».
97 A passagem que se segue, até 157b, é considerada por Brisson um corolário
da segunda série de deduções, e não uma terceira série (ver op. cit., pp. 273-4,
nota 355).
98 Ou «muitas coisas»: polia; preferimos a tradução por «múltiplo», por facili­
tar a leitura da passagem.

94
- Mas será possível que participe da entidade quando não
participa nela, e que não participe na entidade quando par­
ticipa?
- Não é possível.
- Nesse caso, participa num certo tempo e não participa
noutro tempo; pois só assim poderá participar e não par­
ticipar na mesma coisa. 1 blln

- Correcto.
- Consequentemente, também há um certo tempo em
que recebe o ser e outro em que se afasta dele; pois como
poderia, ora tê-lo, ora não o ter, se não houvesse um mo­
mento em que o recebe e outro em que o deixa?
- Não poderia de modo nenhum.
- E como chamarias a receber a entidade senão tornar-
-se?
- Isso mesmo.
- E afastar-se da entidade, senão perecer?
- Completamente.
- Nesse caso, parece que o uno se torna e perece ao
receber a entidade e ao deixá-la.
- Necessariamente. b
- E, sendo uno e múltiplo, e tornando-se e perecendo,
não acontecerá que, quando se torna uno, o ser múltiplo
perece e, quando se torna múltiplo, o ser uno perece?
- E mesmo assim.
- Mas, tornando-se uno e múltiplo, não será necessário
que se divida e se reúna?
- Inteiramente.
- E que, quando se torna dissemelhante e semelhante,
se assemelhe e desassemelhe?
- Sim.
- E que, quando se torna maior, menor ou igual, que
aumente, diminua e se iguale? c
- É assim.

95
- E quando, estando em movimento, passa .1 esl.ir em
repouso e quando, estando em repouso, passa a estar em mo­
vim ento, não será necessário que ele próprio não se encon­
tre em nenhum período de tempo?
- Como é isso?
- Se primeiro está em repouso e depois se move, ou
primeiro se move e depois está em repouso, não será afec­
tado por estas coisas sem mudar.
- Como poderia?
- Mas não há nenhum período de tempo em que uma
coisa não esteja, simultaneamente, nem em movimento
nem em repouso.
- Não, não há.
- E, todavia, não pode mudar sem mudar.
- Parece que não.
- E quando é que muda? Pois não será enquanto está
em repouso, nem enquanto está em movimento, nem en­
quanto está no tempo.
d - De facto, não.
- Mas não será algo desconcertante", isso em que está
quando muda?
- E o que é?
- E o instante. De facto, o instante parece significar algo
a partir do qual se muda de uma coisa para outra; pois é
óbvio que não se muda a partir do repouso quando se está
em repouso, nem se muda a partir do movimento quando
se está em movimento. Mas a desconcertante natureza do
próprio instante100, que reside entre o movimento e o
e repouso, que não está em nenhum período de tempo, é
aquilo para o qual e a partir do qual muda para o repouso

99 Atopon: desconcertante, por não ter lugar próprio, por ser a-topos.
100 Ou «a natureza do próprio instante, que não tem lugar próprio»: hê exaiph-
nês hautê physis atopos (ver nota anterior).

96
aquilo que está em movimento e para o movimento aquilo
que está em repouso.
- Arrisca-se a ser assim.
- E, desse modo, também o uno, dado que está em movi­
mento e em repouso, deverá mudar para um e para outro;
pois só assim poderá fazer ambas as coisas. Mas, ao mudar,
muda no instante e, enquanto muda, não está em nenhum
período de tempo, nem está em movimento nem em repouso.
- De fa'cto, não.
- E não acontecerá o mesmo com as outras mudanças,
quando muda do ser para o perecer, ou do não ser para o 157a
tornar-se101, não estará num certo meio102, entre o movi­
mento e o repouso, de maneira que nem é nem deixa de
ser, nem se torna nem perece?
- Aparentemente, é assim.
- Então, segundo o mesmo argumento, quando passa do
uno para o múltiplo e do múltiplo para o uno, não é uno
nem múltiplo, nem se divide nem se reúne. E, quando passa
do semelhante para o dissemelhante e do dissemelhante para
o semelhante, não é semelhante nem dissemelhante, nem se
assemelha nem desassemelha. E, quando passa do pequeno
para o grande, para igual e o contrário, não é pequeno, nem b
grande, nem igual, nem aumenta, nem diminui nem se
iguala.
- Parece que não.
- Mas, se é, o uno é afectado por todas estas afecções?
- Como não?

22 - E não conviria agora examinar aquilo que acontece


às outras coisas, se o uno é103?

101 Ou seja, quando começa a ser.


102 Metaxu, que é o instante.
103 3. Terceira afirmação da hipótese: se o uno é (que consequências se
seguem para as outras coisas?).

97
- Convém fazê-lo.
- Diremos então o que deve acontecer às coisas ou Iras
que o uno, se o uno é?
- Digamos pois.
- Bem, se elas são outras que o uno, as outras coisas não
são o uno; pois, de outro modo, não seriam outras que o
uno.
- Correcto.
- Mas as outras coisas também não estão totalmente pri­
vadas do uno, mas participam de certo modo dele.
- Como?
- Porque as outras coisas são outras que o uno pelo facto
de terem partes104; pois, se não tivessem partes, seriam
totalmente unas105.
- Correcto.
- Mas dizemos que o que tem partes é aquilo que é um
todo.
- Dizemos, de facto.
- Ora, é necessário que o todo uno seja feito a partir de
muitos106, do qual as partes são partes. Pois cada uma das
partes tem de ser uma parte, não de uma multiplicidade,
mas de um todo.
- Como é isso?
- Se uma coisa é uma parte de muitas coisas, às quais ela
própria pertence, será também uma parte de si própria, o
que é impossível, e de cada uma das outras coisas, já que é
uma parte de todas as coisas; pois, se não for uma parte de
uma delas, será uma parte das outras coisas, à excepção
dessa; e assim não será uma parte de cada uma delas e, não

104 3.1. Primeira consequência: as outras coisas são unas e têm partes.
105 Ou melhor, totalmente uno: pantellôs hen. Confusão entre o uso substan­
tivo e adjectivo de «uno»: uma coisa que não tem partes é una; sendo una,
é o uno.
106 Hen ek pollôn.
sendo lima parte de cada uma das coisas, não será uma
parte de nenhuma das muitas coisas. Mas, ao não ser uma
parte de nenhuma delas, é impossível que seja uma parte
ou qualquer outra coisa de todas elas, de nenhuma das
quais será coisa nenhuma.
- Parece ser assim, de facto.
- Deste modo, a parte não é uma parte das muitas coisas
nem de todas as coisas, mas de uma certa forma e de um
certo uno, ao qual chamamos todo, um uno perfeito que se e
gera a partir de todas as partes, e do qual a parte é uma parte.
- De todas as maneiras.
- Portanto, se as outras coisas têm partes, hão-de parti­
cipar do todo e do uno.
- Completamente.
- E as coisas outras que o uno têm necessariamente de
ser um todo perfeito com partes.
- Necessariamente.
- O mesmo argumento se aplica a cada uma das partes;
pois é necessário que estas participem do uno; de facto, se
cada uma delas é uma parte, o «cada uma» significa sem 150a
dúvida que é una107, separada das outras e em si própria, se
de facto é «cada uma».
- Correcto.
- Mas, ao participar no uno, é claro que é outra que o
uno; pois, se assim não fosse, não participaria no uno, mas
seria o próprio uno; ora, parece-me que é impossível que
algo seja uno, para além do próprio uno.
- E impossível.
- Mas é necessário que tanto o todo como a parte par­
ticipem do uno; pois o uno será um todo, de que as partes
são partes; por outro lado, enquanto partes do todo, cada
uma delas será uma parte do todo.

107 I. e., uma e una.

99
- Assim é.
b - Portanto, as coisas que participam do uno, <1 0 partici­
parem, são diferentes do uno.
- Como não?
- Mas as coisas que são diferentes do uno serão múlti­
plas; pois, se não fossem o uno nem mais do que o uno, as
coisas outras que o uno não seriam nada.
- Pois não.
- Mas, dado que aquelas coisas que participam de uma
parte do uno e de todo o uno são mais numerosas do que
o uno, não será necessário que aquelas coisas que tomam
parte no uno sejam uma pluralidade ilimitada108?
- Como?
- Vejamos então: quando tomam parte no uno, tomam
parte nele, mas não são o uno nem participam do uno.
c - Aparentemente.
- Portanto, são uma multiplicidade, na qual o uno não
está presente109.
- São de facto uma multiplicidade.
- Mas então, se quisermos separar através do pensa­
mento a parte mais pequena desta pluralidade, não será
necessário que aquilo que foi separado seja múltiplo e não
uno, uma vez que não participa do uno?
- E necessário.
- Portanto, sempre que assim consideramos, em si e por
si, a natureza que é diferente da forma110, tudo aquilo que
vemos dela é sempre uma multiplicidade ilimitada.
- Completamente.

108 3.2. Segunda consequência: as outras coisas são ilimitadas.


109 3.3. Terceira consequência: as outras coisas são múltiplas.
110 Brisson, ad loc.: «en examinant, en elle-même, la nature qui est différente
de cette espèce»; Echandia, ad loc.: «siempre que consideremos en y por si
misma la naturaleza de lo otro que la Idea»; Fowler, ad loc.: «when w e con­
sider the nature of the class, which makes it other than one».

100
- li ainda, quando cada parte se torna uma parte, passa
a ter limites relativamente às outras partes e em relação ao d
todo, e o mesmo acontece com o todo em relação às partes.
- Sem dúvida.
- Segue-se, pois, que, para as coisas outras que o uno,
parece gerar-se nelas, a partir do uno e da sua união com
ele, uma coisa diferente, que lhes proporciona um limite
umas em relação às outras; mas, em si próprias, e pela sua
própria natureza, elas são ilimitadas.
- Parece que sim.
- Nesse caso, as coisas outras que o uno, quer enquanto
todos, quer enquanto partes, são ilimitadas e participam do
limite.
- Completamente.
- Então, serão também semelhantes e dissemelhantes e
umas das outras e de si próprias111?
- Por quê?
- Porque, se são todas ilimitadas pela sua própria natu­
reza, são afectadas pela mesma coisa.
- Completamente.
- Por outro lado, se todas elas participam do limite, tam­
bém são todas afectadas dessa maneira.
- Como não?
- E, se são afectadas de tal maneira que são limitadas e
não têm limites, essas afecções que as afectam serão afec­
ções contrárias umas às outras.
- Sim. 159a
- Ora, as coisas contrárias são as mais dissemelhantes
de todas.
- Certamente.
- Portanto, segundo cada uma destas afecções, serão
semelhantes a si próprias e umas às outras mas, segundo

111 3.4. Quarta consequência: as outras coisas são semelhantes e disseme­


lhantes umas das outras e de si próprias.

101
ambas as afecções consideradas em conjunto, serão total­
mente contrárias e dissemelhantes.
- Arrisca-se a ser assim.
- Assim, pois, as outras coisas serão semelhantes e disse­
melhantes de si próprias e das outras coisas.
- Serão de facto.
- E também serão idênticas e diferentes umas das ou­
tras, estarão em movimento e em repouso, e não seria nada
difícil descobrir todas estas afecções contrárias nas coisas
b outras que o uno, uma vez que ficou mostrado que são
afectadas por estas coisas112.
- Dizes bem.

23 - E se abandonássemos estas coisas, considerando-as


clarificadas, e voltássemos à nossa investigação? Se o uno
é113, não terão as coisas outras que o uno de ser assim, não
podendo ser de outra maneira?
- Certamente.
- Digamos desde o princípio: se o uno é, como terão de
ser afectadas as coisas outras que o uno?
- Digamos então.
- O uno não está separado114 das outras coisas e as
outras coisas separadas do uno115?
- Por quê?
- Porque nada mais há que esteja para além e seja dife-
c rente delas, isto é, que seja outro que o uno e outro que as
outras coisas; pois quando dizemos «o uno e as outras
coisas», já dissemos tudo.

112 Ou seja, encadeando-se estas deduções sucessivamente, como vimos


acontecer nas duas cadeias anteriores, também será possível deduzir estas
conclusões.
113 4. Quarta afirmação da hipótese: se o uno é (que consequências se seguem
para as outras coisas?).
114 Chôris, tal como nas ocorrências seguintes.
115 4.1. Primeira consequência: as outras coisas não são unas nem múltiplas.

102
- Dissemos tudo, de facto.
- Então, não há nada diferente delas, no qual possam
estar, tanto o uno como as outras coisas.
- Efectivamente, não há.
- Segue-se portanto que o uno e as outras coisas de
modo nenhum estão no mesmo.
- Parece que não.
- Portanto, estão separados.
- Sim.
- Mas também dissemos que aquilo que é verdadeira­
mente uno não tem partes.
- Como poderia tê-las?
- Ora, se está separado das outras coisas e não tem par­
tes, o uno não pode estar nas outras coisas como um todo,
nem pode ser uma parte de si próprio.
- Como poderia sê-lo?
- Então, as outras coisas não participam do uno de ma­
neira nenhuma, já que não participam, nem segundo a
parte, nem segundo o todo.
- Parece que não.
- Nesse caso, as outras coisas não são unas116, nem têm
em si mesmas nenhuma unidade117.
- De facto, não.
- Por conseguinte, as outras coisas também não são múl­
tiplas; porque, se fossem múltiplas, cada uma delas seria
uma parte do todo118; portanto, as coisas outras que o uno
não são unas nem múltiplas, nem um todo nem partes119, já
que de maneira nenhuma participam dele.

116 Isto é, não são o uno, ver atrás, nota 105.


117 Hen ouden: nenhum uno.
118 Brisson, ad loc.: «Chacune d'elles serait un au titre de partir d'un tout»; ver
atrás, nota 105.
119 4.2. Segunda consequência (breve alusão): as outras coisas não são todos
nem partes.
- Correcto.
- Mas as outras coisas também não são dois nem três
nem elas próprias, nem o dois e o três estão nelas, uma vez
que estão totalmente privadas do uno.
e - Assim é.
- Mas as outras coisas também não são, elas próprias,
semelhantes nem dissemelhantes do uno, nem há nelas
semelhança ou dissemelhança; pois, se elas próprias fos­
sem semelhantes ou dissemelhantes ou tivessem em si
próprias semelhança e dissemelhança, as coisas outras que
o uno teriam em si mesmas duas formas contrárias uma à
outra120.
- Parece que sim.
- Mas é impossível que participe de duas coisas aquilo
que nem sequer participa de uma.
- E impossível.
- Nesse caso, as outras coisas não são semelhantes nem
160a dissemelhantes nem ambas as coisas. Porque, se fossem
semelhantes ou dissemelhantes, participariam numa das
duas formas, e se fossem ambas as coisas, participariam dos
dois contrários; e já mostrámos que isto é impossível.
- E verdade.
- Portanto, nem são idênticas nem diferentes, nem estão
em movimento nem em repouso, nem se geram nem pere­
cem, nem são maiores nem menores nem iguais; nem são
afectadas por nenhuma outra destas coisas. De facto, se as
outras coisas fossem afectadas por alguma destas coisas,
participariam no uno, no dois, no três, no par e no ímpar,
b nos quais ficou claro que era impossível que participassem,
uma vez que estão privadas do uno totalmente e de todas
as maneiras.

120 4.3. Terceira consequência: as outras coisas não são semelhantes nem
dissemelhantes.

104
Isso v int('11 .! 1 1 u■1 1 1 verdade.
- Portanto, st- o uno é, o uno é todas as coisas e coisa
nenhuma, tanto em relação a si próprio como em relação às
outras coisas.
- Completamente.

24 - Bem. E se o uno não é, que coisas se seguem neces­


sariamente? Não será de investigar isto121?
- Convém de facto investigá-lo.
- Mas que hipótese é esta: se o uno não é? Será diferente
desta: se o não uno não é?
- Com certeza que é diferente.
- Mas dizer se o uno não é será apenas diferente ou é
totalmente o contrário de dizer: se o não uno não é? c
- E totalmente o contrário.
- Então se alguém disser: se a grandeza não é, ou se a
pequenez não é ou qualquer outra coisa destas, não estará
a mostrar que, em cada caso, «não é» se refere a uma coisa
diferente?
- Completamente.
- Nesse caso, não está a mostrar agora que, quando diz
se o uno não é, «não é» quer dizer algo diferente das outras
coisas, e nós percebemos o que quer dizer?
- Percebemos sim.
- Assim sendo, primeiro está a falar de algo que é conhe­
cido, e depois, que é diferente das outras coisas quando, ao
falar do uno, acrescenta, quer o ser, quer o não ser. Porque
aquilo que dizemos não ser e que sabemos que é diferente d
das outras coisas em nada é menos conhecido; ou não é
assim?
- Necessariamente.

121 Segue-se um interlúdio que faz a transição entre as quatro afirmações da


hipótese e as suas quatro negações, a partir de 160d3.

105
- Mas então, digamos desde o princípio: se o uno 1 1 , 1 0
é122, o que tem de acontecer? Parece que a primeira coisa
que tem de acontecer é que há saber acerca dele, ou então
não seria possível saber o que se estava a dizer, quando se
dissesse: se o uno não é123.
- E verdade.
- Portanto, também que as outras coisas são diferentes
dele, ou não se deve dizer que ele é diferente das outras
coisas124?
- Completamente.
- Então, para além do saber, também lhe pertence a dife­
rença125. Pois, quando se diz que o uno é diferente das
e outras coisas, não é da diferença das outras coisas que se
está a falar, mas da diferença do uno.
- Parece que sim.
- Além disso, o uno que não é participa do aquilo, do
algo, do isto, do relativamente a estes, do estes e de todas
as outras coisas assim. Pois não se poderia falar do uno,
nem das coisas que são diferentes do uno, nem daquilo que
é relativamente a ele, nem dele, nem se poderia dizer coisa
alguma, se ele não participasse no algo nem nas outras
coisas assim.
- Correcto.
- Efectivamente, não é possível para o uno ser, já que
1 61 a não é , mas nada impede que participe em muitas coisas;
pelo contrário, é necessário que assim seja, se é esse uno
que não é, e não outra coisa. Mas, se nem o uno, nem aque­
le, não são, e o argumento é sobre outra coisa, então não se
pode dizer nada; mas se é este uno e não outra coisa que

122 5. Primeira negação da hipótese: se o uno não é (que consequências se


seguem para o uno?).
123 5.1. Primeira consequência: sobre o não uno há saber.
124 5.2. Segunda consequência: o não uno é idêntico e diferente das outras coisas.
125 Heteroiotês.

106
recebe o não ser, então é necessário que participe daquele e
de muitas outras coisas.
- Completamente.
- Portanto, também lhe pertencerá a dissemelhança rela­
tivamente às outras coisas126; porque as coisas outras que o
uno, sendo diferentes, serão de um tipo diferente127.
- Sim.
- Mas as coisas que são de um tipo diferente não são de
natureza dissemelhante128?
- Como não?
- E as coisas que são de natureza dissemelhante não são
dissemelhantes?
- Certamente que são dissemelhantes. b
- Então, se são dissemelhantes do uno, é claro que as
coisas dissemelhantes serão dissemelhantes por via do dis­
semelhante.
- E claro que sim.
- Então, o uno também possuirá dissemelhança, relati­
vamente à qual as outras coisas são dissemelhantes dele.
- Parece que sim.
- Mas, se possui a dissemelhança das outras coisas, não
será necessário que possua também dissemelhança de si
próprio?
- Como?
- Se o uno possui dissemelhança do uno, este nosso
argumento não será sobre algo como o uno, nem a hipótese
será acerca do uno, mas acerca de algo outro que o uno.
- Certamente.
- Mas não pode ser assim. c
- De facto, não.

126 5.3. Terceira consequência: o não uno é dissemelhante das outras coisas e
semelhante a si próprio.
127 Alloia.
128 Anomoia.

107
- Então, o uno tem de possuir semelhança de si próprio.
- Pois tem.
- Mas também não é igual às outras coisas129. Pois, se
fosse igual, já seria130 e seria semelhante a elas por via cla
igualdade; mas ambas as coisas são impossíveis se o uno
não é.
- São impossíveis, de facto
- Mas, se não é igual às outras coisas, não será neces­
sário que as outras coisas também não sejam iguais a ele?
- Será necessário.
- E as coisas que não são iguais não são desiguais?
- São.
- Ora, as coisas que são desiguais são desiguais por via
do desigual.
- Como não?
- Então, o uno participa da desigualdade, relativamente
à qual as outras coisas são desiguais dele.
d - Participa.
- Mas a grandeza e a pequenez fazem parte da desi­
gualdade.
- Pois fazem.
- Portanto, haverá grandeza e pequenez nesse uno.
- Arrisca-se a ser assim.
- Mas a grandeza e a pequenez são sempre intoleráveis
uma à outra.
- Completamente.
- Por conseguinte, há sempre alguma coisa entre elas.
- Sempre.
- E poderás dizer-me que outra coisa há entre elas, para
além da igualdade?
- Nada mais, para além dela.

129 5.4. Quarta consequência: o não uno é igual e desigual das outras coisas.
130 Contrariando a hipótese.

108
- Porlanto, aquilo que tem grandeza e pequenez tam­
bém tem igualdade, que está entre estas duas.
- Parece que sim.
- Nesse caso, parece que o uno que não é participa da u
igualdade e da grandeza e da pequenez.
- Parece que sim.
- Mas também terá de participar, de algum modo, na
entidade131.
- Como?
- Terá de ser como dissemos; pois, se não fosse assim,
não diríamos a verdade ao dizer que o uno não é; e, se dize­
mos a verdade, é evidente que dizemos coisas que são. Ou
não é assim132?
- É de facto assim.
- E, uma vez que afirmamos que estamos a dizer a ver­
dade, também é necessário que afirmemos que estamos a 1 6 2 »
dizer o que é.
- E necessário.
- E assim, segundo parece, o uno que não é é; porque,
se o não ser não é, mas passa algo do ser para o não ser,
imediatamente se torna ser133.
- Completamente.
- Assim sendo, é necessário que tenha uma ligação ao
não ser pelo ser do não ser, se tem de não ser, da mesma
maneira que o ser tem de ter o não ser do não ser para ser
de forma completa. E assim, o ser será de forma eminente
e o não ser não será; o ser, participando na entidade do ser
que é e na não entidade do não ser que não é, para ser de b
forma completa; e o não ser participando da não entidade

131 5.5. Quinta consequência: o não uno participa na entidade.


132 Identificação, tipicamente parmenídea, entre a verdade e a realidade.
133 Ou seja, o não ser perde algo do seu não ser para o ser; e, desse modo,
passa a ser; ~ (~ se r) = ser.

109
do não ser que é e da entidade do não ser que não é, para
não ser de forma completa.
- É inteiramente verdade.
- Portanto, se o que é participa do não ser e o que não é
participa do ser, também é necessário que o uno, uma vez
que não é, participe do ser em direcção ao não ser.
- É necessário.
- E assim, a entidade aparece ao uno, se não é.
- Aparece.
- E também a não entidade, já que não é.
- Como não?
- Será possível que o que é de determinada maneira não
seja dessa maneira, sem mudar desse estado134?
- Não é possível.
- Consequentemente, tudo o que é assim, sendo de
c determinada maneira e não sendo dessa maneira, significa
mudança?
- Como não?
- Mas a mudança é movimento; ou o que diremos que é?
- Que é movimento.
- E também ficou claro que o uno é e não é.
- Pois ficou.
- Nesse caso, parece que é e não é de determinada
maneira.
- Parece que sim.
- E o uno que não é mostrou estar em movimento, já
que muda do ser para o não ser.
- Arrisca-se a ser assim.
- Mas, se não é nenhum dos entes, não sendo, porque
não é, nunca mudará de um sítio para outro.
- Pois não.
- Portanto, também não estará em movimento mudando
de lugar.

134 5.6. Sexta consequência: o não uno está em movimento e em repouso.

110
- De facto, não.
- Nem girando no mesmo lugar, porque em ponto
nenhum está em contacto com o idêntico; de facto, o idên- d
tico é um ente, e é impossível que o que não é se encontre
em algum dos entes.
- Com efeito, é impossível.
- Portanto, o uno, não sendo, não poderá girar naquilo
no qual não está.
- Certamente que não.
- Mas o uno também não se torna outro relativamente
a si próprio, quer seja, quer não seja; porque, se se tivesse
tornado outro relativamente a si próprio, já este argumento
não seria sobre o uno, mas sobre qualquer outra coisa.
- Correcto.
- Mas, se não se torna outro, nem gira em si próprio,
nem muda de lugar, como é que, apesar disso, se move? 0
- De facto, como?
- Pois bem, é necessário que aquilo que não se move
esteja parado, e que o que está parado esteja em repouso.
- É necessário que assim seja.
- Mas então parece que o uno que não é está em
repouso e em movimento.
- Parece que sim.
- Mas, se está em movimento, é absolutamente neces­
sário que se torne outro; pois, se alguma coisa se move i63a
de certa maneira, na medida em que assim se move deixa
de estar como estava e passa a estar de maneira diferente.
- Assim é.
- Portanto, ao estar em movimento, o uno torna-se
outro.
- Torna-se, de facto.
- Mas, se de modo nenhum está em movimento, de
modo nenhum se torna outro.
- Pois não.

111
- Consequentemente, na medida em que esta em movi
mento, o uno que não é torna-se outro; e, na medida em
que não está em movimento, não se torna outro.
- De facto.
- E aásim, o uno que não é torna-se outro e não se torna
outro.
- Parece que sim.
- Mas não será necessário que aquilo que se torna outro
se torne algo diferente do anterior, e que pereça a partir do
b seu estado anterior; enquanto aquilo que não se torna
outro nem se torna algo diferente, nem perece?
- E necessário.
- Então, quando se torna outro, o uno que não é torna-
-se uma coisa diferente e perece; mas, quando não se torna
outro, nem se torna uma coisa diferente nem perece.
E assim, o uno que não é torna-se uma coisa diferente e
perece, e nem se torna uma coisa diferente nem perece.
- De facto, não.

25 - Mas voltemos de novo ao princípio, para vermos se


aquelas coisas nos aparecem como agora, ou de maneira
diferente.
- Muito bem.
- Se o uno não é135, dissemos nós, que coisas se seguem
c necessariamente acerca dele.
- Sim.
- Mas esse «não é» de que falámos significa outra coisa
senão a ausência de entidade naquilo que dizemos que não
é136?
- Não significa senão isso.

135 6. Segunda negação da hipótese: se o uno não é (que consequências se


seguem para o uno?)
136 6.1. Primeira consequência: o não uno não participa na entidade.

112
- Nesse caso, quando dizemos que uma coisa não é esta
mos a dizer que de certo modo é e de certo modo não é? Ou
quando dizemos «não é» estaremos a significar exclusiva­
mente que aquilo que não é de modo nenhum também não
participa na entidade por nenhum motivo e em nenhum
sentido?
- Estamos a dizer exclusivamente isso.
- Portanto, aquilo que não é não pode ser nem pode par­
ticipar na entidade de nenhuma outra maneira. d
- De facto, não.
- Mas o ser gerado e o perecer não são outra coisa senão
receber a entidade137 e perder a entidade.
- Não são outra coisa.
- Mas aquilo que de modo nenhum participa nela não
poderá recebê-la nem perdê-la.
- Como poderia?
- Assim sendo, o uno, já que não é de maneira ne­
nhuma, não pode ter, nem perder, nem receber a entidade
em nenhum aspecto.
- Isso é razoável.
- Consequentemente, o uno que não é nem perece nem
se gera, uma vez que de modo nenhum participa na enti­
dade.
- Parece que não.
- Nem se torna outro em nenhum aspecto; pois, se fosse e
afectado dessa maneira, já se gerava e perecia.
- Isso é verdade.
- E, se não se torna outro, necessariamente também não
se move138.

137 A tradução mais natural seria neste caso «ser», ou mesmo «existência»;
mantemos a tradução de ousia por «entidade» por uma questão de uni­
formidade.
138 6.2. Segunda consequência: o não uno não está em movimento nem em
repouso.

113
- Necessariamente.
- Contudo, também não podemos dizer que aquilo que
não está em parte alguma está em repouso. Pois o que está
em repouso tem de estar em certo lugar, que é sempre o
mesmo.
- Tem de estar no mesmo lugar; como poderia ser de
outra maneira?
- E assim, diremos acerca do que não é que não está
nem em repouso, nem em movimento.
- Não está, de facto.
- E que não há nele nada que seja; com efeito, se parti­
cipasse no ser, participaria na entidade.
164a - E claro.
- Logo, não há nele grandeza, nem pequenez, nem igual­
dade139.
- Não há, de facto.
- Nem há nele semelhança nem diferença, nem relati­
vamente a si próprio, nem relativamente às outras coisas140.
- Parece que não.
- Mas então, as outras coisas poderão de alguma ma­
neira estar nele, se nada está nele?
- Não poderão.
- E as outras coisas também não poderão ser semelhantes
nem dissemelhantes, nem idênticas nem diferentes dele.
- Com efeito, não.
- Nesse caso, poderão aplicar-se ao que não é termos como
b «aquilo» ou «àquilo», «algo», «este» ou «deste», «de outro» ou
«a outro», ou «antes», «depois» ou «agora», «saber», «opinião»
ou «sensação», «definição» ou «nome» ou qualquer outra das
coisas que são?

139 6.3. Terceira consequência: o não uno não é desigual nem igual.
140 6.4. Quarta consequência: o não uno não é semelhante nem disseme­
lhante, nem de si próprio nem das outras coisas.

114
Não poderão aplicar-se-lhe.
- Então, o uno que não é não pode ser de modo nenhum.
- Pois parece que não pode ser de modo nenhum.

26 - Mas digamos ainda, se o uno não é141, de que


maneira serão necessariamente afectadas as outras coisas.
- Digamos então.
- Terão de algum modo de ser outras; pois, se não fos­
sem outras, não era possível falar das outras coisas.
- Pois é.
- Mas, se há um argumento acerca das outras coisas, as
outras coisas são diferentes. Ou não é o mesmo chamar­
mos-lhes outras e diferentes?
- Julgo que sim.
- E dizemos que o diferente é diferente do diferente e
que o outro é outro relativamente ao outro.
- Sim.
- Mas relativamente às outras coisas, se elas têm de ser
outras, também haverá alguma coisa relativamente à qual
são outras.
- Necessariamente.
- E o que poderá ser isso? E que não podem ser outras
relativamente ao uno, já que o uno não é142.
- Pois não.
- Mas, nesse caso, serão outras relativamente umas às
outras; pois resta-lhes isso, ou então serem outras relativa­
mente a nada.
- Correcto.
- Mas então serão outras relativamente umas às outras
segundo cada multiplicidade143; de facto, não podem sê-lo

141 7. Terceira negação da hipótese: se o uno não é (que consequências se


seguem para as outras coisas?)
142 Por hipótese.
143 7.1. Primeira consequência: as outras coisas são unas e múltiplas.

115

segundo a unidade, uma vez que o uno não é; nuis pareci*


d que cada massa dessas coisas é uma pluralidade ilimitada,
mesmo que se tome aquilo que parece ser a mais pequena
de todas; subitamente, como acontece quando estamos a
dormir e a sonhar, em lugar da unidade, aparece uma mul­
tiplicidade e, em vez da mais pequena coisa, uma coisa
enorme, em comparação com aquilo que nela foi recortado.
- E mesmo assim.
- Então, as outras coisas serão outras relativamente umas
às outras por via dessas massas, já que elas são, mas o uno
não é.
- Com certeza.
- Portanto, haverá muitas massas, cada uma das quais
parece uma, mas não o é, já que o uno não é.
- Assim é.
e - E até parece que possuem o número, dado que cada
uma é uma e que são muitas.
- Completamente.
- E que umas são pares e outras ímpares, mas isso não é
verdade, uma vez que o uno não é.
- Não é verdade, de facto.
- E também dizemos que há-de parecer que há nelas a
mais pequena de todas; mas ela parecerá múltipla e grande
relativamente a cada um dos múltiplos que são pequenos.
165a -C o m o não?
- E cada massa será considerada igual aos múltiplos e
pequenos; pois não há-de parecer que passa do maior para
o menor sem parecer que passa pelo intermédio; e isso será
uma imagem144 da igualdade145.
- E razoável.

144 Phantasma. Brisson, ad loc.: «simulacre»; Echandía, ad loc.: «aparência»;


Fowler, ad loc.: «appearance».
145 7.2. Segunda consequência: as outras coisas são iguais e desiguais.

116
Logo, lendo embora um limite relativamente a outra
massa, ela própria não tem, relativamente a si própria, nem
princípio, nem limite, nem meio146.
- Como é isso?
- É que, sempre que alguém concebe, através do pensa­
mento, que alguma destas coisas pertence a estas massas,
aparece sempre outro princípio para além do princípio, e
depois do fim outro fim que o deixa para trás, e no meio b
outros meios ainda mais no meio do que o meio, e menores
do que ele, porque não é possível captar cada um deles
como uno, uma vez que o uno não é.
- Isso é inteiramente verdade.
- Parece-me, pois, que todos os entes que alguém possa
conceber através do pensamento serão necessariamente
divididos ao serem separados em pequenos pedaços; pois
serão sempre concebidos como uma massa sem unidade.
- Completamente.
- Nesse caso, vistos de longe e sem precisão, têm neces­
sariamente de parecer unos mas, vistos ao perto e com pre- c
cisão, cada um deles mostrará ser uma pluralidade ilimi­
tada, já que está privada do uno, que não é.
- Isso é absolutamente necessário.
- Portanto, cada uma das outras coisas tem de parecer
ilimitada e limitada e una e múltipla, uma vez que o uno
não é e que há coisas que são outras relativamente ao uno.
- Tem, de facto.
- Consequentemente, hão-de parecer semelhantes e disse­
melhantes147.
- Como?

146 7.3. Terceira consequência: as outras coisas são limitadas e ilimitadas.


147 7.4. Quarta consequência: as outras coisas são semelhantes e disseme­
lhantes.

117
- Como quem vê à distância desenhos na sombra, i|iu‘
parecem ser todos a mesma coisa e ser idênticos148 e afecta­
dos pela semelhança.
d - Completamente.
- Mas quem se aproximar verá que são múltiplos e
diferentes e, por via desta imagem de diferença, que são
coisas diferentes e dissemelhantes umas das outras.
- Assim é.
- Mas também é necessário que estas massas pareçam
semelhantes e dissemelhantes, relativamente a si próprias
e umas às outras.
- Completamente.
- Por conseguinte, essas massas serão as mesmas e dife­
rentes umas das outras, estarão em contacto e separadas
umas das outras149, mover-se-ão com todo o tipo de movi­
mentos e estarão totalmente em repouso150, gerar-se-ão e
perecerão e nem hão-de gerar-se nem perecer, e possuirão
todas essas coisas, que nos seria fácil enumerar, se o uno
e não for, mas houver muitas coisas.
- Isso é completamente verdade.

27 - Mas voltemos uma vez mais ao princípio e diga­


mos, se o uno não é151, o que terão de ser as outras coisas
que o uno.
- Digamos, pois.
- Certamente que essas coisas não serão unas152.
- Como poderiam ser?

148 7.5. Quinta consequência: as outras coisas são idênticas e diferentes.


149 7.6. Sexta consequência: as outras coisas estão separadas e em contacto
umas com as outras.
150 7.7. Sétima consequência: as outras coisas estão em movimento e em
repouso.
151 8. Quarta negação da hipótese: se o uno não é (que consequências se
seguem para as outras coisas?).
152 Ou não serão o uno. Ver atrás, nota 105.

118
- Mas também não serão múltiplas153; pois, se fossem
múltiplas, o uno estaria contido nelas; e, se nenhuma delas
é una, na sua totalidade serão nada154, de maneira que não
podem ser múltiplas.
- Isso é verdade.
- Mas, se o uno não está nas outras coisas, as outras
coisas não poderão ser, nem múltiplas, nem unas.
- Não poderão, de facto.
- Mas também não hão-de parecer unas nem múltiplas.
- Por quê?
- Porque as outras coisas não têm absolutamente nada
em comum com as coisas que não são, de maneira nenhuma
e em nenhum sentido, e nenhuma das coisas que não são
está nas outras coisas; pois as coisas que não são não têm
nenhuma parte.
- Isso é verdade.
- Por conseguinte, acerca das outras coisas não haverá
opinião nem imagem daquilo que não é, nem poderá o que
não é vir a ser, de maneira nenhuma e em nenhum sentido,
objecto de opinião155 relativamente às outras coisas.
- Não poderá, de facto.
- Mas então, se o uno não é, não se poderá opinar156
acerca de nenhuma das outras coisas que é una ou múlti­
pla; pois é impossível opinar que é múltipla sem o uno.
- É impossível, de facto.
- Se o uno não é, as outras coisas, nem são, nem se pode
opinar que são unas ou múltiplas.
- Parece que não.

153 8.1. Primeira consequência: as outras coisas não são unas nem múltiplas.
154 «Se nenhuma (mêden) delas é una/o uno (hen), na sua totalidade serão nada
(iouden)»>.
155 Doxazetai. Brisson, ad loc.: «être objet d'opinion»; Echandía, ad loc.: «pare
cer»; Fowler, ad loc.,: «be conceived».
156 Doxazetai. Brisson, ad loc.: «imaginer».

119
- Nem que são semelhantes nem dissemelhantes1''7.
- Não, de facto.
- Nem que são idênticas nem diferentes158, nem que
estão em contacto nem separadas159, nem nenhuma das
outras coisas que nos pareceram anteriormente; as outras
coisas não são nem parecem nenhuma dessas coisas, se o
uno não é.
c - Isso é verdade.
- Portanto, se disséssemos de forma resumida que, se o
uno não é, nada é, estaríamos a ser correctos?
- Completamente e sem dúvida nenhuma.
- Digamos então também isto: segundo parece, quer o
uno seja, quer não seja, ele e as outras coisas, relativamente
a si próprios e relativamente uns aos outros, são e não são
todos de todas as maneiras, e parecem e não parecem.
- Isso é muito verdade.

157 8.2. Segunda consequência: as outras coisas não são semelhantes nem
dissemelhantes.
158 8.3. Terceira consequência: as outras coisas não são idênticas nem dife­
rentes.
159 8.4. Quarta consequência: as outras coisas nem estão separadas nem em
contacto.

120

Filosofia UFPB 2013 - Digitalizado Por A.F.A.O


ÍNDICE

IN T R O D U Ç Ã O .......................................................................................................... 9

P A R M É N ID E S ........................................................................................................... 31
P a rm é n id e s narra um acontecimento
rovalvelmente fictício, mas náo
E istoricamente impossível: um debate que opõe
o jovem Sócrates a Zenão e ao mestre deste,
Parménides.
A discussão desenrola-se em três conversas
sucessivas; na primeira, entre Sócrates e Zenão,
faz-se referência ao escrito deste último;
nas duas conversas seguintes, entre Sócrates
e Parménides, discutem-se, respectivamente,
algumas das questões mais relevantes
da orgânica das formas colocadas em todo
o cot p u s platónico e, por fim, as consequências
resultantes da hipótese parmenídea do uno.
0 diálogo termina na declaração da aporia.
0 P a rm é n id e s é consensualmente tido como
um diálogo do último período do platonismo
e inaugura, por assim dizer, um conjunto de obras
de reflexão crítica sobre a teoria das formas.

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