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ENSINO MÉDIO INTEGRADO AO TÉCNICO

1º Ano – Estudos sobre o Trabalho – Prof. Guilherme Arduini

POR FAVOR, NÃO ESCREVA NESSA FOLHA!


ALBERT CAMUS E O MITO DE SÍSIFO1

Na mitologia grega, Sísifo, filho Éolo e Enarete, foi considerado o mais astuto dos mortais, um dos
primeiros a dominar a escrita. Mas por que Albert Camus escolheu Sísifo para personificar sua filosofia?
Ora, em um dos mitos diz-se que ele trocou favores com Ásopo, um deus-rio, para prover água às pessoas de
sua cidade. Zeus ficou enfurecido e mandou Tânato – a morte ela mesma – para levar Sísifo ao mundo
subterrâneo. Ao encontrar-se com a morte, Sísifo a presenteia com um colar e elogia sua beleza. O colar na
verdade era uma coleira e, assim, ele aprisiona Tânato. Por algum tempo, ninguém morreu.
Hades, deus dos mortos, foi quem se enfureceu desta vez. Libertou Tânato e mandou-o novamente atrás de
Sísifo. Antes de seguir com a morte para encontrar Hades, Sísifo pediu secretamente à sua esposa, Mérope,
que não enterrasse seu corpo. Quando encontrou Hades, contou-lhe que não podia aceitar tamanha desonra.
Precisava voltar para ordenar que lhe enterrassem o corpo. E assim, enganou a morte pela segunda vez.
Quando Sísifo finalmente morreu, foi de velhice. Então, Zeus e Hades consideraram Sísifo um revoltado e o
sentenciaram a uma eternidade de punição.

“Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde
tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o
trabalho inútil e sem esperança.”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.137

Camus escolhe Sísifo pela sua audácia em enfrentar a morte, pela revolta consciente que fez de sua vida uma
criação autêntica, digna de se estar presente. A astúcia de Sísifo é a de negar os deuses e aceitar seu destino.
A liberdade de Sísifo é sua escolha em encarar o absurdo sem nostalgia, salto ou apelo. A grandeza de Sísifo
é sua intenção de esgotamento, seu desejo de ir até o fundo da existência conhecendo todos os riscos. É a
própria negação da morte personificada na revolta que interessa Camus.

Sísifo é o herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos
deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se
empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões dessa terra.”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.138

Os mitos dos mortais são os que mais interessam. A finitude como condição básica da vida e a
impossibilidade de tornar-se deus, nos colocam num mesmo plano que esses homens. Essas estórias são
alegorias de nossa própria condição. Muito mais do que os conflitos no Olimpo, a morada dos deuses. Essa
condição, marcada pelo absurdo, é o plano de toda a filosofia de Camus. A necessidade da morte e a
impossibilidade de ter um conhecimento verdadeiro nos arremessam ao mundo como a um imenso rochedo.
Ao punir Sísifo, os deuses na verdade só intensificaram sua condição, esquecendo-se que ele, o revoltado,
estava já bem acostumado ao absurdo.

Só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma
ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um
ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança
totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço
sem céu e pelo tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em

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Texto retirado de:
https://razaoinadequada.com/2018/04/18/camus-o-mito-de-sisifo/ (Acesso em 18/02/2019)
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alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta a
planície”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.138

Temos então uma eternidade num ciclo dividido em alguns momentos. Fazer a pedra subir, vê-la cair, descer
e tornar a subi-la. São bastante diferentes. Ao subir, Sísifo é tal qual pedra, seu rosto confunde-se com a
rocha, seus pensamentos são minerais, seus desejos são puro instinto. Por acaso essa mecânica nos espanta?
Que fazemos em nossa vida senão subir pedregulhos cotidianamente? Somos todos um pouco minerais, hoje
talvez um pouco feitos de silício. Estamos imersos em processos automáticos onde mal sobra tempo para
pensar, tampouco viver. Queiramos nós ter a força de Sísifo ao carregar sua pedra, não podemos nos
desvencilhar delas!

Esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria sua pena se a esperança de triunfar o
sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse
destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo,
proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa
nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua
vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo.”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.139

O segundo momento, ver a pedra rolar montanha abaixo, dinâmica, necessidade, movimento. Não é possível
criar nada sem esse eterno rolar pedras. Existe uma cota de sacrifício em toda construção. A crueldade
consigo é vital para as grandes almas. Perceber o caos em sua capacidade infinita de desmontar e também
reconhecer que somos filhos dele. A consciência dessa desmesura entre nós e o mundo é fundamental.
Coragem é precisamente o que existe para além de tudo isso, seguir apostando na vida apesar das chances.
O último momento é o auge. Sísifo desce a montanha, sente o vento bater em seu rosto, o sol já próximo do
horizonte preenche a ilha deserta de tons alaranjados. A pedra parece tão pequena de longe. Cada descida é a
experimentação de uma nova maneira de sentir. Descer a montanha é ter um bom encontro com as forças da
gravidade, é ser um pouco de vento. A boa disposição de si mesmo faz de Sísifo um criador. Ele já não é
pedra.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma
forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. No universo
que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da terra.”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.140

A filosofia trágica encontra a estética e uma ética solar surge. O absurdo abre a possibilidade de criação. A
revolta dá sua porção de sentido. A eternidade nada mais é do que um destino certo. A liberdade é uma
condenação à presença. A criação é a atualização das forças em mais capacidade de existir e afirmar.

Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a
felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este
universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento
mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume
basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”
– Camus, O Mito de Sísifo, p.141

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