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Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894), uma das mentes brilhantes da chamada
geração de 70, proclamava-se orgulhosamente caturra, fóssil e bárbaro em matérias
respeitantes à mulher, seus direitos e sua emancipação. É muito provável que
pretendesse ser irónico quando se atribuía esses qualificativos, fazendo-o em jeito de
provocação, como quem nos dias de hoje se gaba de ser politicamente incorrecto, mas
sem nunca admitir ser realmente incorrecto.
Ditas ou escritas hoje, algumas teses e frases lapidares de Oliveira Martins sobre as
mulheres soariam de forma afrontosa, sendo por isso mesmo regularmente citadas em
livros e teses académicas como documentos da existência de uma mentalidade eivada de
patriarcalismo na elite intelectual do final de oitocentos. Aparentemente, ninguém se
tem interrogado sobre o lugar dessas ideias no sistema de pensamento oliveiriano ou no
quadro mental da época, eventualmente em paralelo com o pensamento de outras
figuras intelectuais da sua geração, como Antero, Eça, Ramalho e Junqueiro, para citar
apenas os seus companheiros do Cenáculo e dos Vencidos.
Na síntese que faz do niilismo russo, Oliveira Martins presta uma atenção especial ao
papel de figuras revolucionárias femininas, como Vera Zassulitch e Sofia Perovskaia,
observando depois que “os rapazes e os velhos, de mãos dadas com as mulheres [...] são
hoje o grande propulsor do niilismo russo” (pp. 118-119). A observação é curiosa,
porque só fica de fora o segmento dos homens no vigor da idade, e mentirosa, porque
não seria difícil elaborar uma longa lista de narodniki, democratas revolucionários e
terroristas místicos russos desse grupo etário masculino, incluindo o próprio Stepniak, já
trintenário. Mas Oliveira Martins vê na participação feminina em organizações
revolucionárias, que considera aberrante, um sinal particularmente significativo e grave
do que se estava a passar não só na Rússia, como um pouco por toda a Europa.
A culpa desse descalabro russo e, bem vistas as coisas, universal seria do naturalismo,
que “invade os costumes das classes cultas, destruindo a fixidez do matrimónio,
atacando o carácter, pondo na família a libertinagem e, no governo, a corrupção venal”;
e também da “fúria de saber”, essa curiosidade doentia que desorganiza o
desenvolvimento intelectual (p. 117).
Oliveira Martins suspeita que sob o pseudónimo de Cordelia se esconde uma mulher
não casada (p. 149), com tudo o que para ele ficava implícito nessa situação. Na
verdade, Virginia Tedeschi Treves (Verona, 1849 - Milão, 1916), de quem este foi o
primeiro de uma longa série de romances assinados pelo mesmo pseudónimo, era
casada com um conhecido editor italiano, de quem tinha pelo menos uma filha. Ora, em
O Reino da Mulher¸ Cordelia defendia o lar doméstico como lugar de eleição da
mulher, conservadora mensagem que manteria em toda a sua obra, o que torna ainda
mais incompreensível a suspeita de Oliveira Martins.
Uma mulher romancista era, claramente, um assunto deprimente para Oliveira Martins,
que não via com bons olhos que as mulheres lessem romances, muito menos que os
escrevessem. Censura aquelas esposas “tolinhas” que, apenas casadas (e nunca antes,
presume-se), ambicionam ler “o romance mais moderno”. Nos romances, assim em
geral, diz ele, só há “paixões podres e devoradoras”. E remata: “Platão expulsava os
poetas da República; eu punha fora do reino da mulher todos os romances.” (p. 151).
Oliveira Martins cita repetidamente neste artigo a Carta de Guia de Casados, obra que
também designa abreviadamente como “o Guia”, uma espécie de bíblia (pp. 149-151,
153-154). Se o seiscentista Francisco Manuel de Melo é a grande fonte portuguesa do
patriarcalismo e do antifeminismo de Oliveira Martins, entre os estrangeiros inspirou-se
em Schopenhauer, Michelet e Proudhon, como veremos.
Oliveira Martins discorre também sobre o divórcio, que não existia ainda em Portugal:
“Como é deplorável que se considere o divórcio ‘um passo no caminho da liberdade’ e a
emancipação da mulher – ó abismo da toleima! – um ideal do prrogrresso
mooderrnno...” (carregando nos rr). Reconhece, todavia, que num Portugal ainda
resguardado da abominação do divórcio, nem tudo são rosas: “Vivemos, é verdade, num
regime de monogamia temperada pelo adultério e pela prostituição.” E qual seria o
remédio para esses “temperos” da monogamia? O divórcio não o é, porque talvez seja
bom para combater o adultério, mas conduz irremediavelmente à promiscuidade,
sinónimo de prostituição: “Contra o adultério propõem o divórcio – e contra a
prostituição? Pois a promiscuidade é o destino aonde o divórcio conduz.” (p. 159). Mas
onde terá visto Oliveira Martins a defesa do divórcio? Não se sabe, mas no romance de
Cordelia é que não foi.
Maria Amália Vaz de Carvalho – Branco e Negro, n.º 18, 2 de agosto de 1896. Hemeroteca Digital.
“Educação da mulher”, A Província, Porto, 17 de julho de 1886.
É uma recensão do livro Cartas a Luísa de Maria Amália Vaz de Carvalho. Casada com
o poeta Gonçalves Crespo, a escritora, que viveu de 1847 a 1921, foi a primeira mulher
a ingressar na Academia de Ciências de Lisboa. Além de poesias e crónicas, publicou
contos, romances, ensaios e memórias. A sua casa funcionou como um salão literário,
frequentado por numerosas figuras do mundo das letras e das artes.
Numa destas cartas a Luísa, Maria Amália – em quem nunca veríamos uma feminista,
mesmo do género mais conservador – defende a submissão da mulher ao marido e
condena o seu envolvimento na política, mundo que acha reservado aos homens.
Oliveira Martins diz que o livro de Maria Amália é bom e são, “sem ser profundo” (p.
145). E mais adiante, sobre a autora e a sua obra: “Maria Amália prova ser mulher até à
raiz dos cabelos, prova que tem essa faculdade feminina de sentimentalizar tudo, até as
cousas mais áridas e custosas, como o dever e a abnegação.” Compreende-se que a
profundidade lhe estivesse vedada: é coisa de homens que, como se sabe, são alheios a
sentimentalismos.
É a primeira parte de um texto que continuará no dia seguinte no mesmo jornal lisboeta,
O Repórter, que Oliveira Martins em 1888 chegou brevemente a dirigir ao mesmo
tempo que A Província, no Porto. Note-se que Oliveira Martins era um autodidata, não
tendo frequentado a universidade nem sequer acabado o liceu, devido à morte do pai
quando tinha apenas 12 anos. Viria a tornar-se um crítico feroz do ensino liceal
(masculino) então existente em Portugal.
Os dois artigos de Oliveira Martins no Repórter de Julho de 1888 são a sua reacção ao
projecto de lei do ministro José Luciano de Castro que promovia a criação de liceus
femininos em Lisboa, Porto e Coimbra. O projecto fora inspirado pelo deputado
regenerador Bernardino Machado, então o grande entusiasta do ensino secundário
feminino em Portugal. Diga-se que Bernardino Machado publicaria dali a semanas, no
mesmo Repórter (3 de Agosto), uma defesa dos “liceus para mulheres”.
Neste primeiro artigo, cujo título entra logo a matar, Oliveira Martins fala do “sintoma
revelador” que foi a decisão do governo de criar liceus de raparigas. Considera que com
o ensino secundário oficial “se estragam já correntemente as gerações masculinas”.
Mandar as raparigas para os liceus seria contribuir para “fazer das mulheres homens.”
(p. 163). E continua: “...essas raparigas parece a muitos necessário e indispensável fazê-
las doutoras e fazê-las médicas, fazê-las pedagogas e fazê-las advogadas. A criação de
uma burguesia de fêmeas é a cousa mais triste e desoladora desta nossa civilização.” (p.
164). Atente-se neste conceito, burguesia de fêmeas, verdadeiro pesadelo oliveirino.
A mulher, lá por ser instruída e poder até ter um curso superior, não seria mais liberta:
“A mulher doutora não é afinal menos serva do que a mulher que na rudeza dos estados
primitivos lavra o campo, enquanto, refastelado ao sol, de papo para o ar, o homem
contempla ociosamente os espaços. Pobres criaturas fracas, infelizes menores do género
humano, a quem a natureza deu a suave e encantadora missão de nos engrinaldarem
com rosas de carinho e amor a vida atormentada!” (pp. 164-165). Dos trilos de 1882,
passamos assim, em 1888, às grinaldas de rosas. Retenha-se a singular periodização
implícita da história feminina: servidão primitiva da mulher, libertação pelo casamento
e pelo patriarcado, retorno à servidão pela instrução.
Oliveira Martins jacta-se, uma vez mais, de ser antiquado em matéria feminina: “neste
nosso modo de ver fóssil e bárbaro” – diz de si próprio, deleitadamente. Em 1882 tinha-
se gabado de ser “caturra”. Hoje declarar-se-ia certamente politicamente incorrecto, o
termo em voga para quem se jacta de ser caturra, bárbaro ou fóssil. “Em vez de se
fazerem doutoras, neste nosso modo de ver fóssil e bárbaro, era melhor fazerem-se
caixeiras, fazerem-se compositoras [tipográficas], fazerem-se boticárias, fazerem-se
tudo, menos essa ridícula contrafacção de homens. O trabalho não afeia a mulher – nem
o homem. O que a afeia, o que dá cabo dessa missão suprema da mulher que é encantar-
nos, o que destrói o seu cunho natural e inevitável – é a paródia da virilidade.” (pp. 165-
166). Curiosamente, o sindicalismo tipográfico da época lutou contra a feminização do
trabalho de composição – que Oliveira Martins aqui admite como um dos poucos
trabalhos adequados para mulheres – com o argumento de que o trabalho feminino, tal
como o infantil, visava o abaixamento geral dos salários, pela concorrência desleal.
Não obstante, a 9 de agosto de 1888 a lei dos liceus femininos foi mesmo publicada. Só
em 1890 se lhe seguiu o “Regulamento dos liceus femininos”, enfim publicado no
Diário do Governo. Mas ficou tudo letra morta: a verba orçamentada em 1890 para a
criação dos liceus femininos foi, inclusive, eliminada em 1892 por um governo de José
Dias Ferreira – por sinal bisavô de uma mulher emancipada que, no início do séc. XXI,
foi ministra das Finanças, dirigente partidária e candidata a primeira-ministra de
Portugal, Manuela Ferreira Leite. José Dias Ferreira justificaria a medida alegando que
os liceus femininos “ainda não foram aceites pela opinião e podem dispensar-se por
agora” (Borges Grainha, A Instrução secundária de ambos os sexos no estrangeiro e em
Portugal, Lisboa, 1905, p. 321). O ministro da Fazenda desse governo que em 1892
eliminou a verba consignada aos liceus femininos chamava-se, note-se bem, Joaquim
Pedro Oliveira Martins e há todas as razões para pensar que terá sido ele o inspirador da
medida. O primeiro liceu feminino em Portugal, o Liceu Maria Pia, só seria criado em
1906, em Lisboa, na Alfama, sendo em 1911 transferido para o Largo do Carmo. Este
liceu mudaria de nome em 1919, para Almeida Garrett, mas em 1926 voltaria a ostentar
um nome feminino – o de Maria Amália Vaz de Carvalho.
A coisa não seria novidade absoluta no mundo, embora mais lhe parecesse uma
anormalidade francesa: “Houve sempre, em todos os tempos, mulheres a quem o
histerismo congénito ao sexo fez Hipácias ou Madames de Staël, Joanas d’Arc ou
Théroignes de Méricourt; e para prova de quanto isto vem de uma disposição mórbida,
basta dizer que é a França, o país nervoso por excelência, que principalmente contribui
para estas extravagâncias.” (p. 160). Repare-se aqui nas expressões “histerismo
congénito” e “países nervosos por excelência”, exemplos dos saborosos psicologismos
oitocentescos com que Oliveira Martins e outras figuras da geração de 70 por vezes
engalanavam o seu preconceito.
Não é que Oliveira Martins defenda as mulheres ociosas, sabendo pelo provérbio e
suspeitando pela observação que a ociosidade engendra o vício. Honra seja feita, pois,
às mulheres que preferem ganhar a vida trabalhando, porque “a defesa do pudor, o
orgulho da virtude, o nojo pela vida airada são um merecimento”. Proíba-se-lhes,
porém, a doutorice e a politiquice: “Mas as que fazem da doutorice e da politiquice uma
reivindicação, nunca! Mas as que pregam a igualdade dos sexos, os direitos da mulher e
outras patetices crónicas nas sociedades caducas; para essas íamos a pedir dois açoites
com toda a meiguice, com todo o carinho, se a Índia não tivesse dito não batas numa
mulher, nem com uma flor!” (p. 160).
A mulher que estuda achar-se-á com capacidade ou direito para votar, receia bem o
sociólogo Oliveira Martins, mas o pior de tudo virá na sequência disso: “E desde que
tenham a faculdade da escolha pelo voto, não se compreende também porque é que,
sendo eleitoras, deixarão de ser elegíveis.” E assim, “num futuro mais ou menos
distante”, chegar-se-ia à suprema abjecção de “parlamentos mistos” (p. 161). As
mulheres contaminadas pela verborreia política! A visão do horror... Mas para lá se
caminhava, pois tudo o que se passava em Paris era logo macaqueado em Lisboa.
Precisamente, estava anunciado na capital francesa, para 1889, “um congresso
internacional de emancipadoras”. Como essas extravagâncias se alastram infalivelmente
às “cidades excêntricas” por efeito de macaqueação, “é natural que daqui por pouco
tenhamos também as mulheres [portuguesas] a pedirem voto, agora que já têm liceu.”
(pp. 161-162). Liceus femininos ainda não havia em Portugal, nem haveria tão cedo,
mas Oliveira Martins não se enganava, a prazo, quanto à reivindicação do voto.
Na hipótese de isso acontecer, diz Martins, seria quase motivo para fazer a essas
feministas uma “surriada estrondosa”, pois elas “vêm reclamar o que nós desdenhamos,
e querem o direito eleitoral, quando nós o desprezamos, como se vê das abstenções
sempre crescentes” (p. 162). Assim pensava o sociólogo organicista que desprezava o
voto “inorgânico”, opondo-lhe a representação corporativista dos interesses sociais, que
supostamente haveria de temperar o sistema partidarista.
Note-se que o artigo “Feminismo”, mas sem o seu título original, foi republicado no dia
seguinte, 13 de julho, no jornal portuense A Província, juntamente com dois artigos de
outros autores, transcritos de jornais lisboetas, todos sob o título comum de “Instrução
Feminina”. A 14 de Julho, o mesmo diário portuense publicou, ainda a propósito da
“criação dos liceus para raparigas” e sob o título “A mulher”, um excerto do célebre
ensaio “Sobre as mulheres” do filósofo misógino Arthur Schopenhauer (publicado em
1851 na sua miscelânea de ensaios Parerga und Paralipomena). Suspeita-se da mão
escondida de Oliveira Martins, ainda director d’A Província. O jornal, ainda assim,
adverte em preâmbulo que o filósofo alemão “tinha a sua pontinha de telha”, mas que
isso “não lhe invalidava, na maioria dos casos, o bom senso prático e o profundo
conhecimento das cousas e das pessoas.”
*
Em jeito de balanço, podemos observar que o feroz antifeminismo que Oliveira Martins
evidencia nestes textos era muito mais do tipo preventivo do que reactivo, num país em
que o movimento feminista praticamente ainda não tinha posto o pé, a instrução pública
da mulher dava os primeiros passos, o divórcio ainda tardaria mais de vinte anos a ser
legalizado e a chamada emancipação não passava de sonho utópico de uma escassa elite
feminina urbana e letrada. Certamente que, aterrado com a “doutorice” e a “politiquice”
femininas que começavam a surgir por essa Europa, Oliveira Martins desejava alertar as
consciências nacionais, no interesse de se poupar Portugal a semelhantes extravagâncias
ou, ao menos, retardá-las o mais possível, caso fossem inevitáveis (ele não achava que o
fossem). Não deixa, contudo, de ser intrigante a fúria com que o sociólogo arremetia
contra qualquer tímido desejo de melhoria da condição social feminina, que ele via
como um plano inclinado para a libertinagem. Oliveira Martins morreu jovem, em 1894,
com 49 anos. Se tivesse vivido até aos 60 ou 70 anos, não teria certamente deixado de
trovejar contra as suffragettes inglesas do início do séc. XX ou contra as primeiras
organizações feministas que surgiram em Portugal, a legislação republicana de família,
a lei do divórcio ou a reivindicação de voto feminino. Em 1911, teria assistido ao
desolador primeiro voto de uma “doutora” em eleições portuguesas, quando a médica
Beatriz Ângelo conseguiu em tribunal conquistar o seu direito de voto, que a lei não
concedia expressamente às mulheres, mas ainda não lhes negava.
Influenciado por vários pensadores antifeministas, Oliveira Martins foi dos primeiros a
escrever sobre o feminismo em Portugal, ao tempo do aparecimento desse neologismo
no panorama nacional. Os cinco artigos aqui passados em revista, escritos na plena
maturidade do autor, foram, todavia, precedidos por muitas outras considerações,
dispersas pela sua vasta obra, sobre a família, a questão feminina, a libertação ou
emancipação da mulher e a alegada decadência do casamento. Veja-se a sua posição
sobre alguns desses temas já em 1873, com 28 anos de idade, na polémica que manteve
com Júlio de Vilhena (editada postumamente em livro com o título A Idade Média na
História da Civilização, em 1925), em que Oliveira Martins culpava o “feminismo
cristão” de ter destruído as estruturas, para ele modelares, da antiga família romana. Dez
anos depois, no atrás já citado Quadro das Instituições Primitivas, Oliveira Martins
aborda de modo mais sistemático esses tópicos (veja-se o livro I, intitulado “A família”,
muito em particular os capítulos “Sagração da esposa”, “O templo doméstico” e as
“Conclusões”). O que ressalta de todos estes textos é como as posições de Oliveira
Martins sobre a família e o papel nela da mulher e do homem casam perfeitamente com
a sua filosofia política organicista, as suas ideias corporativistas e a sua defesa das
tradições nacionais, do autoritarismo e da ditadura.
Para além da influência das leituras dos mestres, que outras motivações, eventualmente
enraizadas na sua personalidade, educação e vivência pessoal, terão levado Oliveira
Martins a assumir posições tão extremas, singulares mesmo na sua geração e no seu
meio, contra a alegada ameaça da emancipação feminina? Aqui só poderíamos
embrenhar-nos em conjecturas, que contemplariam a hipotética idealização pelo jovem
Oliveira Martins de um modelo de feminilidade decalcado sobre o paradigma da sua
mãe, a quem se sabe que foi sempre fortemente ligado, mais ainda, presumivelmente,
quando ela enviuvou cedo. Consideraríamos também traços do seu carácter fortemente
autodisciplinado e sisudo (“não era pessoa de risos, desde pequeno”, segundo uma
cronista da família), dotado de um exacerbado sentido do dever e, sobretudo, de
“vigorosos instintos morais”, nas palavras de Moniz Barreto em Oliveira Martins:
Estudo de Psicologia (1892). Marcou-o, no começo da adolescência, o facto de ter
ficado órfão de pai e de ser compelido a abandonar o liceu e ir trabalhar, cultivando-se
por si próprio e fazendo-se precocemente adulto e marido (casou com 19 anos). Na
concepção oliveiriana do amor só entravam, segundo o citado Moniz Barreto, dois
elementos: o instinto animal (algo de “inferior”) e a compaixão. Oliveira Martins
entronizava esta última, que decorria da sua visão da mulher como “um ente digno de
piedade e necessitado de protecção”. E Moniz Barreto observa aqui, sem carregar muito
nas tintas: “Alguma coisa de viril e triste caracteriza esta concepção”.
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José Barreto, “Oliveira Martins contra a emancipação feminina”, 2016. Acessível em:
https://www.academia.edu/36693109/Oliveira_Martins_contra_a_emancipação_feminina