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Doutorado em Educação
Itatiba
2021
GILMAR LOPES DIAS – RA: 002201701067
Itatiba
2021
37.057.22 Dias, Gilmar Lopes.
D532e Emergência da educação do campo no Brasil: as tramas
da subjetivação do educador do campo em SP / Gilmar
Lopes Dias. – Itatiba, 2021.
237p.
Ao encerrar essa longa e difícil etapa de pesquisa, que fica materializada com o texto
da presente tese, sinto-me profundamente agradecido:
Inicialmente a Deus, por ter me concedido o dom da vida e, sobretudo, por ter
colocado no meu caminho as pessoas certas e necessárias ao meu desenvolvimento,
verdadeiras fontes de luz e de inspiração.
Aos meus pais: Hermílio e Izolete; pessoas abençoadas que literalmente me trouxeram
à luz e que me ensinaram a caminhar, durante os primeiros passos segurando minha mão,
guiando-me na direção à autonomia. Pelo amor, pelo carinho com que me educaram e
basearam seus preceitos, que são contemporaneamente raros: a ética, a humildade e o respeito
ao próximo. Essa vitória também é de vocês, pois os vejo como verdadeiros guerreiros que,
mesmo diante das inúmeras limitações materiais e financeiras, jamais deixaram de acreditar
no poder libertador da educação, incentivando-me no prosseguimento dos estudos.
Aos meus irmãos: Gilberto e Alice; pela oportunidade da companhia fraterna de vocês
que, mesmo distante, posso dividir esse momento de imensa alegria.
Ao Professor Doutor Carlos Roberto da Silveira, pela dedicação e paciência na leitura
dos meus escritos, que tantas vezes necessitou da sua pertinente correção e indicação de
fontes bibliográficas, assim como pela elegância no apontamento das eventuais lacunas e
incorreções.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade São
Francisco, pelos momentos de aprendizado que vivemos juntos e pela amizade construída
durante as aulas das disciplinas presenciais.
Especial gratidão especial aos amigos e doutores: Osmir Cruz e Marcelo Vincentin;
assim como à Prof. Dra. Márcia Aparecida Mascia que, desde os primeiros passos dessa
pesquisa, realizados ainda na condição de projeto, acompanharam e deram relevantes
sugestões sobre o desenvolvimento da escrita que ora apresentamos.
Aos membros das bancas de qualificação e de defesa, pelas relevantes observações e
contribuições, que se materializam no texto final da tese. Especial gratidão à Professora
Doutora Edna Chamon, pela sabedoria e ternura nas orientações, com que pude contar desde o
curso de mestrado.
Aos funcionários da Universidade São Francisco, principalmente à nossa secretária do
Programa, a Sra. Wanderléia Pereira, pela presteza nas informações e pela ajuda com a
documentação e com os processos, que se fizeram necessários ao desenvolvimento e à
conclusão do curso.
A todos aqueles com quem, de uma maneira ou de outra, pude contar com o apoio,
naqueles momentos mais difíceis dessa etapa de escrita acadêmica. Agradeço-lhes e peço as
minhas humildes desculpas, por não poder ajudar com a mesma frequência com que fui
socorrido, por conta das ausências que esse momento me impôs.
De que valeria a obstinação do saber se ele
assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e
tanto quanto possível o descaminho daquele
que conhece?
Michel Foucualt, 2017b, p.13
DIAS, Gilmar Lopes. Emergência da educação no campo no Brasil: As tramas da
subjetivação do educador no Procampo em SP. Tese (Doutorado em Educação). 2021.
232p. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco,
Itatiba/SP.
RESUMO
O presente estudo foi financiado pela CAPES1 e teve o projeto inicial avaliado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da USF, que emitiu o recebeu parecer favorável, conforme consta no
anexo. Inseriu-se na linha de pesquisa Educação, Linguagem e Processos Interativos, cujo
objetivo foi investigar o processo de emergência da Educação do Campo no Brasil, sob a
perspectiva teórica da governamentalidade, bem como da subjetivação do educador do campo,
no contexto de um curso de formação de professores do campo. Caracterizou-se como um
estudo discursivo, de abordagem exploratória e qualitativa, inédito pelo contexto de pesquisa,
assim pela análise da Educação do Campo a partir de ferramentas conceituais
arquegenealógicas. A emergência da Educação do Campo foi examinada por meio da análise
do discurso, utilizando-se excertos de textos de conferência e pareceres oficiais, que
marcaram o surgimento dos enunciados acerca dessa modalidade de educação. Efetuou-se
também a análise dos documentos oficiais (Projeto Político Pedagógico e Edital de
Convocação) do curso Procampo/UNITAU que, em conjunto com os demais registros
textuais, nos permitiram constatar que a Educação do Campo surgiu como um contraponto ao
modelo de educação rural, instalado no país a partir dos anos trinta, do século passado.
Verificamos que o discurso original, posto em funcionamento pelos movimentos sociais e
sindicais do campo, sofreu adaptações, inclusões e desvios, quando da sua recepção no
interior da razão de governo, no momento em que se transformou em política pública
nacional. Essas transformações no discurso original, muito mais do que representar um
avanço político para os movimentos de resistência, configurou-se como uma estratégia de
inclusão, que pôs e funcionamento a dimensão totalizante da razão de governo, por meio da
qual se construiu a noção, ampla e geral, de população camponesa. A partir desse ponto,
investigamos o processo de subjetivação do educador do campo, por meio do discurso
gravado e transcrito, de dois docentes e três alunos do curso. Verificamos que a
institucionalização do discurso oficial e a sua inserção no interior do dispositivo pedagógico,
produziram as condições necessárias à reprodução da dimensão individualizante do poder
governamental. Desse modo, o processo de subjetivação ocorreu a partir da apreensão de
individualidades da roça, no interior de um dispositivo de mediação, destinado a produzir o
sujeito educador do campo, por intermédio das práticas pedagógicas. As ferramentas
analíticas do presente estudo nos permitiram reconhecer o processo de formação, como uma
necessidade da razão governamental, cuja produção de sujeitos se caracterizou enquanto ação
política, indispensável à reprodução de sua trama discursiva. O educador do campo se
caracteriza como uma espécie de nó dessa trama, por meio do qual é possível a reprodução do
jogo da verdade, que mantém em funcionamento o saber e o poder acerca da educação do
campo, assim como a própria forma de reprodução da vida camponesa, no interior de uma
lógica neoliberal de governamento de si.
1
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) - código de financiamento 001.
DIAS, Gilmar Lopes. Emergence of field education in Brazil: The plots of the educator's
subjectivity in Procampo in SP. Thesis (Doctorate in Education). 2020. 232p. Stricto Sensu
Graduate Program in Education. São Francisco University, Itatiba/SP.
ABSTRACT
The present study was funded by CAPES2 and the initial project evaluated by the Rechearch
Ethics Committee of the USF, which issued and received a favorable opinion, as shown in the
annex. It was inserted in the line of research Education, Language and Interactive Processes,
whose objective was to investigate the emergence process of Field Education in Brazil, under
the theoretical perspective of governmentality, as well as the subjectivity of the rural educator,
in the context of a training course for field teachers. It was characterized as a discursive study,
with an exploratory and qualitative approach, unprecedented by the research context, as well
as by the analysis of Field Education based on archegenealogical conceptual tools. The
emergence of Field Education was examined through discourse analysis, using excerpts from
conference texts and official opinions, which marked the emergence of statements about this
type of education. The official documents (Pedagogical Political Project and Call Notice) of
the Procampo / UNITAU course were also analyzed, which, together with the other textual
records, allowed us to verify that Rural Education emerged as a counterpoint to the rural
education model, installed in the country from the thirties, of the last century. We verified that
the original discourse, put into operation by the social and union movements in the
countryside, suffered adaptations, inclusions and deviations, when it was received within the
reason of government, at the moment when it became national public policy. These
transformations in the original discourse, much more than representing a political advance for
the resistance movements, were configured as an inclusion strategy, which put into operation
the totalizing dimension of the reason for government, through which the notion was
constructed, broad and general, of peasant population. From this point on, we investigated the
subjectivation process of the field educator, through the recorded and transcribed discourse, of
two teachers and three students of the course. We verified that the institutionalization of the
official discourse and its insertion within the pedagogical device, produced the necessary
conditions for the reproduction of the individualizing dimension of the governmental power.
In this way, the process of subjectification occurred from the apprehension of individualities
in the countryside, within a mediation device, designed to produce the educating subject of
the field, through pedagogical practices. The analytical tools of the present study allowed us
to recognize the formation process, as a necessity of governmental reason, whose production
of subjects was characterized as a political action, indispensable for the reproduction of its
discursive plot. The educator of the field is characterized as a kind of knot of this plot,
through which it is possible to reproduce the game of truth, which keeps the knowledge and
power about the education of the field in operation, as well as the very form of reproduction
of the field. peasant life, within a neoliberal logic of self-governance.
2
This work was carried out with the support of the Coordination for the Improvement of Higher Education
Personnel - Brazil (CAPES) - financing code 001.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 24
ANEXO
Parecer Consubstanciado do CEP nº 2.909.119
13
Meu nome é Gilmar Lopes Dias, nasci no verão de 1976, exatamente às quatro horas e
trinta minutos do dia 19 de fevereiro, no município de Sapucaia do Sul, região metropolitana
de Porto Alegre-RS, onde residi até os meus oito anos de idade. No início do ano de 1984,
minha família se mudou para um município da região central do Estado, cuja população, na
época, era de pouco mais de 20 mil habitantes, denominado de São Sepé, onde passamos a
habitar um bairro periférico da zona rural. Residi nesse mesmo local até os meus 18 anos,
quando precisei sair de casa para trabalhar numa cidade próxima, que hoje muitas pessoas
certamente já ouviram falar, devido à sua fama mundial, adquirida tragicamente após um
incêndio de uma boate no início do ano de 2013: Santa Maria/RS.
Como filho mais novo de uma família humilde, sempre segui os exemplos de vida e
de esforço de meus pais e escutei seus sábios conselhos, de que deveria estudar para tentar
“ser alguém na vida”. Meu pai, que viveu toda sua infância e adolescência, até
aproximadamente seus 18 anos de idade, na zona rural, não tendo muitas oportunidades de
estudo, cursando até o segundo ano do ensino fundamental, acabou por se dedicar,
profissionalmente, às atividades de pedreiro e carpinteiro. Minha mãe sempre foi um exemplo
de superação para mim, pois mesmo com as sequelas deixadas pela paralisia infantil, que foi
acometida e que lhe ocasionou grandes limitações físicas e motoras, jamais se abalou e
sempre me mostrou que era possível vencer na vida. Do mesmo modo que meu pai, minha
mãe residiu toda sua infância e juventude na zona rural, tendo oportunidade de cursar somente
até a terceira série do ensino fundamental. Como a brava guerreira que sempre foi, após o
matrimônio com meu pai, minha mãe conciliou as tarefas domésticas com o ofício de
costureira, ajudando no orçamento doméstico.
Cursei toda minha educação básica em escola pública, estudando, até a quarta série do
ensino fundamental, numa pequena escola rural multisseriada, que se localizava no bairro
rural próximo à minha casa. Uma escola onde o prédio possuía apenas quatro dependências:
duas salas de aula, uma pequena cozinha e a biblioteca, que servia também como secretaria e
diretoria. Em cada turno da escola, apenas duas professoras davam conta de todas as
14
pública estava restrita ao ensino fundamental, sendo que o ensino médio era de
responsabilidade do governo estadual. Reconheço que, nessa época de estudos no ensino
médio (segundo grau naquela época), foram grandes as dificuldades enfrentadas pelos meus
pais, devido aos escassos recursos financeiros que minha família possuía na época. A partir do
momento que não contávamos mais com o apoio de transporte, por parte da prefeitura, meus
pais é que passaram a investir uma parcela considerável de suas escassas receitas com o
custeio de meu transporte, para que eu pudesse dar continuidade os estudos no ensino médio.
Sou-lhes extremamente agradecido pela abdicação e pelo esforço financeiro que
fizeram nessa época, dedicando muitas horas de suas vidas no trabalho, para que pudessem
garantir a conclusão do ensino médio. Sou particularmente grato ao meu único irmão, quatro
anos mais velho do que eu, que se privou da vida estudantil muito cedo para ajudar no
sustento da casa e para que eu pudesse dar continuidade aos meus estudos.
Concluí o ensino médio aos dezessete anos, com o mérito de jamais ter reprovado um
ano sequer, pois sempre fui muito dedicado aos estudos, tendo sempre levado comigo, como
se fosse uma espécie de mantra, as sábias palavras de meu pai: “somos pobres, estude meu
filho”. Lembro que, tanto ele como minha mãe, sempre me apoiaram muito para estudar e não
se cansavam de me aconselhar, para que eu não desistisse dos estudos, que buscasse “ser
alguém na vida”. Hoje entendo perfeitamente o significado dessa fala: “ser alguém na vida”;
pois não se tratava de um conselho para eu me tornar uma pessoa de muitas posses materiais,
mas que eu pudesse ter a dignidade de um dia olhar para trás e perceber que, para crescemos e
“sermos esse alguém”, não é preciso passar por cima de outros, tampouco de causar
infelicidade a qualquer pessoa que seja.
Compreendo que a preocupação de meus pais, porque, num país tão desigual como o
nosso, inúmeras são as dificuldades de se obter um crescimento pessoal, de uma maneira
digna e ética, pois isso tudo exige muito esforço e investimento em estudo. Trata-se de uma
dificuldade ainda maior quando se precisa enfrentar, de maneira constante e diária, um ciclo
de pobreza econômica, algo como se fosse aquele eterno retorno de que nos falava Nietzsche,
que nos fica incessantemente instigando a desistir.
16
também era de família financeiramente humilde, descobriu que seria possível solicitar uma
isenção da taxa de inscrição.
Viajamos para Santa Maria, localizada no centro do Estado do Rio Grande do Sul e
distante aproximadamente 60 quilômetros de onde morávamos, e fizemos a solicitação da
isenção do pagamento da taxa de inscrição para o vestibular. Dias depois, recebemos a
confirmação do deferimento de nossa solicitação e, com um sentimento que misturava receio
e felicidade, acabamos por nos inscrever para o vestibular naquele ano. No meu caso, como
na época era totalmente apaixonado pela química, decidi me inscrever para o curso de
Química Industrial, sendo que meu colega optou por se inscrever para o curso de Zootecnia.
Ambos estávamos cientes de que, mesmo que viéssemos ser aprovados no concurso, não
haveria possibilidade de cursar a faculdade, pois nossas famílias não possuíam recursos
financeiros suficientes para nos manter fora de casa estudando, diferentemente das famílias
mais abastadas da cidade, nas quais era comum enviar os filhos para estudar fora.
Quando saiu a publicação do resultado do exame vestibular, lembro muito bem de que
se tratava do “Vestibular UFSM/2004”, para nossa surpresa, ambos os nomes estavam na lista
dos aprovados. Foi um momento de alegria indescritível, pois era muito difícil de obter
aprovação naquele vestibular, visto que todos os cursos dessa universidade, já naquela época,
eram extremamente concorridos. Foi uma alegria que, no meu caso em particular, não durou
muito tempo, pois acabei não efetuando a matrícula. Meu colega chegou a iniciar o curso, mas
sua família não conseguiu arcar com as despesas e, ainda no segundo ano da faculdade, ele
acabou desistindo da sua tão sonhada graduação.
Mesmo não cursando a faculdade, o simples fato de ser aprovado numa universidade
pública, logo após o término do ensino médio, aos 17 anos de idade, foi motivo de muito
orgulho para meus pais, meus professores e meus amigos. Isso também serviu para mostrar-
me que seria possível obter a aprovação em outro concurso público, algo que permitisse a
minha inserção no mercado de trabalho. Seguir uma carreira na área pública, foi algo que meu
pai sempre me aconselhou, sendo esta uma das inúmeras recomendações que ele sempre me
deu, como aquela de jamais desistir de estudar. Ainda hoje lembro perfeitamente as suas
palavras que, embora na simplicidade de seu vocabulário gauchesco, em muito me serviram
de estímulo, para buscar a segurança de um emprego público. Eram simples palavras que meu
pai sempre utilizava para me aconselhar: “Guri! Te agarra com o governo!”.
E foi essa a saída que encontrei para romper com o ciclo de limitações financeiras que
me impediam de continuar um projeto de vida tão sonhado pelos meus pais e que eu via ser
necessário também: o de buscar uma posição no mercado de trabalho, para “ser alguém na
18
vida”. Acabei me direcionando para a área militar, pois percebi que essa era uma das
oportunidades que poderiam me garantir certa estabilidade financeira para, futuramente, dar
continuidade aos meus estudos. No ano seguinte, já no em 1995, prestei um concurso público
para Soldado Especialista da Força Aérea Brasileira (FAB), no qual fui aprovado, e, ainda no
mês de julho daquele mesmo ano, tomei posse, e iniciei minha vida profissional como militar
das Forças Armadas. Servi à FAB durante três anos como militar do quadro temporário e
percebia que precisava fazer outro concurso, desta vez para um cargo efetivo, que garantisse
minha estabilidade profissional e financeira.
O fato de não ter um emprego estável me incomodava, sem falar das condições
financeiras, que também não eram das melhores, pois o cargo de baixa hierarquia que eu
ocupava na FAB servia de estímulo e me fazia pensar em estudar cada vez mais para prestar
outro concurso. No ano seguinte fiz cursinho preparatório para as escolas militares, o que me
possibilitou ampliar minha base de conhecimentos adquiridos nos anos de escolarização. No
ano de 1997, obtive a aprovação no concurso público para Sargento de carreira do Exército
Brasileiro.
A aprovação nesse concurso me possibilitou uma primeira saída do Rio Grande do
Sul, pois o curso de formação de sargentos foi realizado na cidade de Três Corações, no
Estado de Minas Gerais. Foi praticamente um ano de curso intensivo, num regime total de
disciplina e de internamento institucional, no qual pude aprender diversas técnicas e táticas
militares de combate, necessárias às atividades profissionais que viria a desenvolver
futuramente, assim como sentir na própria pele as ações do poder disciplinar. Esse foi um dos
períodos mais difíceis da minha vida, pois precisei me submeter a um regime constante de
extrema hierarquia e disciplina, um ano em que pude perceber, no meu próprio corpo, os
efeitos subjetivantes de se viver no interior de um dispositivo panóptico 3.
No final do ano de 1998 retornei ao meu Estado de origem, o Rio Grande do Sul, pois,
após minha formatura na Escola de Sargentos das Armas (ESA), fui transferido para uma
unidade militar localizada na cidade de São Gabriel. Permaneci nessa cidade por
aproximadamente oito anos, onde obtive muitas conquistas pessoais, acadêmicas, financeiras
e fiz muitas amizades. No ano de 2000, conheci uma moça da cidade, que cursava a faculdade
de Educação Física, e acabamos por nos envolver afetivamente e, posteriormente, iniciamos
um empreendimento na área do fitness, quando abrimos em sociedade uma academia de
ginástica.
3
O dispositivo panóptico foi objeto de estudo de Michel Foucault, em sua obra que recebeu o título Vigiar e
punir: nascimento da prisão.
19
Considerações finais
Ainda nos dias de hoje sinto aquela necessidade de sempre conhecer mais, que vi
nascer em mim durante as aulas de química do ensino médio e que jamais se apagou durante o
meu percurso acadêmico. Hoje consigo perceber que não se tratava de uma simples paixão
pela química orgânica ou pela biologia, mas de algo muito mais intenso, como que um
espírito inquieto de descoberta, isto é, um espírito de cientista que havia brotado em mim. Um
23
espírito que se desenvolveu durante o curso de mestrado, que aprimorei, aprofundei e pude
dar um maior rigor teórico e metodológico, cursando o doutorado em educação.
Espero que tenha dado conta do objetivo estabelecido no início da escrita do presente
memorial, discorrendo e interpretando os principais acontecimentos da minha vida pessoal,
profissional e acadêmica. Certamente muitos não ditos ficaram nas entrelinhas deste texto,
pois é uma tarefa árdua olharmos para o nosso próprio passado e reinterpretá-lo com um olhar
do presente. Tarefa difícil, porém, ao mesmo tempo gratificante, uma vez que materializa na
própria escrita a nossa vida, que se caracteriza como uma espécie de exercício espiritual que
nos faz sentirmos mais aliviados após esse trabalho4.
Fazendo uma breve análise, observando de onde eu iniciei meu percurso acadêmico,
as dificuldades encontradas durante o caminho percorrido, os obstáculos que muitas vezes
quase me fizeram desistir, posso ter a certeza de que valeu a pena e que faria tudo novamente,
embora com algumas pequenas mudanças. É muito recompensador olhar para trás e perceber
que todo o esforço valeu à pena, mas o que temos de mais gratificante é, ao olhar para trás,
percebermos que o presente poderia ser diferente, e podermos nos revoltar com esse nosso
presente, no sentido de vislumbrarmos as possibilidades de se fazer um futuro melhor.
4
A noção de exercício espiritual foi desenvolvida durante o curso, ministrado por Michel nos anos de 1981 e
1982, no Collège de France Foucault, cujas transcrições foram posteriormente transformadas na obra intitulada:
A hermenêutica do sujeito.
24
INTRODUÇÃO
discussões tiveram início no final da década de 1990, a partir da insatisfação de certos grupos
sociais, com modelo precário de educação rural oferecido até aquele momento.
Após longos debates conceituais e políticos, a proposta inicial de Educação do Campo
foi adaptada e transformada em política educacional, colocada em prática a partir do início da
década de 2000, como parte de um amplo projeto internacional de erradicação do
analfabetismo e, consequentemente, de redução das desigualdades econômicas e sociais.
Dessa maneira, esse projeto pretendia expandir a oferta da educação básica, como forma de
garantir que toda a população tivesse condições de acesso ao processo de educação formal e
escolarizada. A transformação das reivindicações em políticas públicas, que garantiriam o
acesso à educação aos povos do campo, foi vista pelos movimentos sociais como uma vitória
política e uma importante conquista. Isto porque, para o movimento, que exercia a resistência
política e cultural ao modelo econômico vigente, a educação era vista como um meio
necessário para se colocar em prática seu projeto revolucionário.
A transformação da Educação do Campo em política pública nacional demandou um
incremento no investimento econômico em políticas de formação docente, a fim de preparar
um maior quantitativo de professores, de modo a cumprir as exigências impostas pela
legislação. Uma das condições impostas legalmente, quando houve a incorporação da
Educação do Campo às políticas nacionais, foi a obrigatoriedade de os professores do campo
também possuírem formação superior, assim como a determinação de que esses sujeitos-
professores possuíssem vínculos culturais com o meio rural. A formação de professores do
campo constitui-se no contexto específico de estudo da presente tese, concebido a partir da
criação do curso de formação docente da Universidade de Taubaté (UNITAU), sob o subsídio
do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo
(Procampo).
O curso de formação de professores do Procampo/UNITAU se caracterizou como uma
iniciativa inédita no Estado de São Paulo, tendo a especificidade de formar apenas uma turma.
Desse modo, tendo em vista a originalidade e a especificidade desse curso, assim como o fato
de atualmente existir, no Estado de São Paulo, um número reduzido de professores formados
pelo referido programa, identificamos uma oportunidade ímpar de estudar as tramas da
subjetivação do Educador do Campo em SP, a partir dos sujeitos-professores formados no
Procampo/UNITAU.
Com a realização da presente pesquisa, buscamos adentrar nesse complexo universo
discursivo da Educação do Campo, para puxarmos os fios que formam a sua emaranhada
trama, no intuito de revelarmos os jogos de saber-poder que sustentam essa modalidade de
26
mas enquanto ampliação de espaços da rede de saber/poder, por onde circulam a razão
governamental.
Para realizarmos esse aprofundamento em nossas análises, primeiramente efetuamos
um levantamento das pesquisas brasileiras, empenhadas no estudo da Educação do Campo,
que se utilizaram dessa noção de razão governamental, expressa pelo termo
governamentalidade. Esse levantamento inicial teve como objetivo, verificar o interesse atual
das pesquisas acadêmicas sobre a educação do campo, por meio da identificação da
quantidade de pesquisas que abordaram esse objeto, utilizando a ferramenta foucaultiana da
governamentalidade. Para elaborar esse breve estado da arte 5, buscamos identificar os
trabalhos de pós-graduação Stricto Sensu, disponibilizados eletronicamente para consulta
pública, no portal de teses e dissertações da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES); nos trabalhos de domínio público, disponíveis para consulta no sítio
eletrônico da internet, que recebe esse mesmo nome; bem como na base eletrônica de artigos
acadêmicos, denominada Scientific Library on Line (SciELO).
Por meio do descritor “governamentalidade” no portal de teses e dissertações da
CAPES, encontramos um total de 232 relatórios de pesquisa, desenvolvidas pelos estudantes
brasileiros de pós-graduação, correspondendo a 150 dissertações e 82 teses. Ao se examinar o
objeto de estudo de cada uma destas pesquisas, por meio da leitura dos seus títulos, verificou-
se que apenas uma destas pesquisas abrangia a análise, não exatamente da Educação do
Campo, mas da Educação Rural6. Da mesma maneira, realizou-se uma nova busca no portal
de teses e dissertações da CAPES, porém, utilizando-se o descritor “biopoder”. Foram
encontrados 140 registros para esse descritor, sendo 102 dissertações e 38 teses. Por meio da
leitura de cada um dos títulos desses 140 trabalhos encontrados, comprovou-se que nenhum
deles tratava diretamente do objeto de interesse deste estudo.
Todo o procedimento anteriormente descrito foi realizado novamente com ambos os
descritores, no portal denominado “Domínio Público”. Selecionou-se “texto” para o tipo de
mídia a ser pesquisada e, na caixa denominada “título”, inseriu-se os descritores de busca, um
de cada vez. Para o descritor “governamentalidade” foram encontrados nove trabalhos, sendo
eles: sete teses e duas dissertações. Por meio do descritor “biopoder”, foram localizadas seis
5
O levantamento sobre o estado da arte da Educação do Campo, nas pesquisas que se utilizaram do referencial
foucaultiano da governamentalidade, foi publicado originalmente como capítulo de livro, pela Atena Editora, sob
o título A governamentalidade da Educação do Campo: breve estado da arte a partir de bases digitais.
6
Tratava-se de uma tese de doutoramento, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por Noeli Valentina Weschenfelder, no ano de 2003, que possui o
seguinte título: Uma história de governamento e de verdades – Educação Rural no RS 1950/1970.
28
7
Tratava-se do artigo publicado no ano de 2013, pela Revista Educação e Pesquisa, cujo título era: Programa
Escola Ativa: escolas multisseriadas do campo e educação matemática, elaborado por Gesa Knijnik e Fernanda
Wanderer.
8
Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15 de outubro de 1926 e veio a óbito em 25 de junho de
1984.
29
um gravador portátil. Os áudios das entrevistas gravadas foram transcritos e analisados sob a
perspectiva da análise foucaultiana do discurso, cujos fundamentos “é fazer com que
desapareçam e reapareçam as contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é
manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia
aparência” (FOUCAULT, 2015a, p.186).
As entrevistas foram realizadas no próprio município de residência dos sujeitos
participantes, no período de 18 a 29 de junho de 2018, após o prévio agendamento com os
mesmos, nos locais e horários que foram indicados respectivamente por cada um desses
colaboradores. A transcodificação dos áudios das entrevistas para texto escrito, para a
construção do corpus discursivo de análise, foi realizada nos meses de julho e agosto de 2018,
de forma manual, ou seja, por meio da escuta direta de cada uma das entrevistas gravadas e da
transcrição da fala dos participantes. Após a transcrição foi realizada mais uma escuta dos
áudios das entrevistas, acompanhando a leitura de sua transcrição, de modo a retificar alguma
incorreção ou imprecisão inicial.
Seguindo os critérios éticos de pesquisa com seres humanos, visando evitar uma
possível identificação dos sujeitos participantes da presente pesquisa, optamos por atribuir um
código alfanumérico, para cada uma das entrevistas. Desta maneira, para identificar a fala dos
docentes do programa, atribuímos ao texto a sigla SD, que identifica o participante
simplesmente como Sujeito Professor, seguida de um número sequencial: 01 ou 02; de forma
a garantir uma diferenciação entre as entrevistas. Da mesma forma, entre os professores
formados no programa, adotamos uma sigla que os identifica como Sujeito da Roça: SR9;
seguida por uma sequência numérica: 01, 02 e 02; para assegurar a individualidade das falas
dos sujeitos. Desse modo, para identificar os docentes do programa Procampo/UNITAU,
utilizamos os códigos SD01 e SD02; assim como os códigos SR01, SR02 e SR03 identificam
os sujeitos formados nesse programa de formação docente.
As entrevistas foram posteriormente analisadas, tomando-se como base dois eixos
principais. No primeiro eixo de análise buscamos concentrar os fragmentos de discurso, que
se relacionavam aos aspectos formativos do curso e que nos permitiram investigar o processo
de construção discursiva do sujeito, ou seja, tratava-se do eixo da objetivação do sujeito-
professor do campo. No segundo eixo de análise selecionamos os excertos dos discursos, que
9
Optamos por atribuir o código SR aos professores formados no curso do PROCAMPO/UNITAU, pelo fato de
que o próprio discurso desses sujeitos, recolhido nas entrevistas, não os identifica como sujeitos do campo, pois
os participantes se autodenominam Sujeitos da Roça.
31
Tendo em vista que o presente estudo tem como base teórica e metodológica o
pensamento arqueogenealógico de Michel Foucaultt, no presente capítulo efetuamos uma
síntese de sua fundamentação acerca da análise do discurso. Inicialmente apresentamos a
concepção foucaultiana de história acontecimentalizada, por meio da qual se abre a
possibilidade de analisar a história sob um prisma diferente, cuja percepção de tempo perde a
sua linearidade e a sua continuidade, assim como o princípio da causalidade deixa de ser
considerado o seu motor. A partir dessa noção particular de história, percorremos o
entendimento foucaultiano acerca dos regimes de verdade, de maneira a nos aproximarmos da
compreensão de como ela (a história acontecimentalizada) é construída no interior de regimes
de poder. É por meio dessa caracterização das verdades, como algo construído
discursivamente no interior de um regime específico de poder, nos permitirá compreender o
que o autor denomina como acontecimento, algo que emerge num determinado tempo e lugar.
Verificamos, então, que são acontecimentos históricos que põem em circulação um
conjunto finito e raro de unidades discursivas, as quais Foucault denominou de enunciados,
que servem de elementos de significação aos discursos. No final do presente capítulo,
apresentamos de uma maneira sintetizada, a concepção de discurso e seus respectivos
elementos de limitação e de exclusão. Por meio dessa opção teórico/metodológica, não
trataremos os fenômenos concretamente como fatos históricos, mas os consideraremos
simplesmente como efeitos discursivos, que se vêem surgir no espaço e no tempo, formando
essa superfície que os estudos foucaultianos denominam de atualidade ou simplesmente como
o presente.
Na introdução de seu livro intitulado Arqueologia do Saber, Michel Foucault faz uma
crítica ao modo tradicional de se fazer história, ou seja, àquela noção em que se busca a
reconstrução da unidade interna, para encontrar o princípio material ou espiritual de uma
determinada sociedade e, dessa maneira, recompor a significação comum do conjunto de
33
exato em que ocorreu o seu surgimento na linha contínua da história. O que a história geral
pretende é interrogar as condições contingentes e imanentes de produção do que é a
atualidade, considerando que aquilo que está sendo agora (a atualidade do objeto), nem
sempre foi assim e, por esse mesmo motivo, poderia ter se constituído de outra maneira
(FOUCAULT, 2015a).
Cabe aqui outro parêntese explicativo, para esclarecer o que Foucault (2015a) entende
por atualidade. Por esse termo, o autor não designa simplesmente o presente, o que está
estabelecido num momento temporal exato, pois, caso fosse assim concebida, essa palavra se
confundiria com a definição de fato, tão caro à história global. Por atualidade, Foucault
pretende designar as bordas do tempo, propriamente o devir em sua manifestação, o que está
acontecendo, o efeito próprio de uma superfície em contínua transformação, consistindo na
própria imanência10 em ação.
Sendo a atualidade essa borda do tempo que está em constante renovação e
produzindo efeitos de superfície, não podemos considerá-la como uma substância ou como
uma coisa em si mesma, mas a própria vontade de verdade, como uma espécie de verbo que
se conjuga no gerúndio e que põe em movimento saberes e práticas. De acordo com Judith
Revel (2005, p. 21):
Por conseguinte, o que Foucault (2015a) propõe, por meio de seus estudos
arquegenealógicos, é libertar a história das estruturas fixas, dissociando-a de toda uma
metafísica teleológica, por meio da qual se procura descobrir sempre as origens ou a
finalidade para o próprio devir histórico. Uma tentativa de libertar a história das
metanarrativas, de desvencilhar o devir das estruturas fixas que buscam fixar e limitar o seu
poder de transformação, criando aquilo que Deleuze e Guattari (2012) denomina de linhas de
10
Num sentido geral, imanência se caracteriza como um termo filosófico, que indica a totalidade daquilo que,
“[...] fazendo parte da substância de uma coisa, não subsiste fora dessa coisa”(ABBAGNANO, 2007, p. 623).
Especificamente, numa perspectiva foucaultiana, a imanência assume um caráter de mudança, de diferença e de
singularidade histórica do ser humano, o que, de certa maneira, rompe com a tradição filosófica na qual se
considera a essência ou a identidade do homem e do sujeito. Dessa maneira, a ontologia foucaultiana rompe com
a ideia da transcendência do sujeito e admite o primado da diferença e da imanência histórica, no interior da qual
o próprio ser humano se produz enquanto singularidade.
35
11
A expressão “homem cartesiano” designa uma adjetivação ao homem concebido por René Descartes (1596-
1650), que a partir da sua própria razão pode justificar a sua existência real, uma ontologia que se baseia na
crença da razão: cogito, ergo sum (penso, logo existo).
12
A noção de sujeito epistêmico foi desenvolvida por Jean Piaget (1896-1980), a partir de seus estudos nos
campos da biologia, da psicologia e da filosofia, que lhe permitiram elaborar um conceito de sujeito universal,
que representa a capacidade de certa forma comum, que todo ser humano possui para aprender e para construir
saberes.
13
A frase “homem como medida para todas as coisas” foi formulada pelo filósofo Protágoras de Abdera (490
a.C.-415 a.C.), para designa um princípio em que as coisas não são absolutas em si mesmas, mas são concebidas
de maneira particular e muito pessoal, por cada indivíduo. Esse princípio filosófico foi resgatado pelo
pensamento humanista e renascentista da Idade Média, como contraponto ao teocentrismo, pondo o homem
como o centro de todas as análises, marcando uma virada no pensamento ocidental, que influenciou o
desenvolvimento das artes, das ciências, da política e de toda a filosofia moderna.
36
estranheza própria e singular que, devido à sua incomum emergência, possui um elevado
potencial disruptivo e de produção da novidade.
Por esse motivo, Foucault (2012a, p.339) afirma que procura “[...] trabalhar no sentido
de uma ‘acontecimentalização’”, que se opera mediante a desmultiplicação causal, por meio
da qual se realizam duas funções. A primeira dessas funções seria propriamente a ruptura com
as evidências, essas manifestações de verdade, que são utilizadas como apoio para a produção
de consentimentos e de práticas. Como função secundária, a acontecimentalização da história
“[...] consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de
força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará
como evidência, universalidade, necessidade” (FOUCAULT, 2012a, p.339).
Por meio de sua história acontecimentalizada, Michel Foucault operou uma ruptura no
interior da própria evidência da realidade, ao efetuar uma espécie de desconstrução da noção
clássica de verdade. No subitem a seguir, abordaremos a concepção foucaultiana de verdade,
no qual se verá que esse termo não designa algo dado, ou um fato incontestável que se
inscreve na própria realidade e que, aos moldes do fato social durkheimiano, aparecem ao
indivíduo com todo o seu poder coercitivo.
pois se trata de uma potência que anima todas as forças da natureza. É justamente esse querer
interno que se produz como a potência da vontade, como o poder que anima toda e qualquer
força e a faz desejar sempre ser mais, querer a realização da sua autossuperação. Por esse
motivo, para Nietzsche, a vontade não é algo que pode ser conceituado separadamente, pois
há nela uma potência que a anima e, sendo assim, a vontade só pode ser: vontade de potência.
Da mesma forma, a noção de verdade utilizada por Foucault é tributária da filosofia de
Nietzsche, assumindo que, aquilo que se designa por verdade, não passa de uma ilusão própria
do intelecto humano, pois ela se forma a partir de um processo duplo de metaforização. Na
apresentação de um texto póstumo de Nietzsche, Noeli Correia de Melo Sobrinho aponta que
“o processo de metaforização se dá no salto indevido de um impulso nervoso a uma imagem e
do salto indevido dessa mesma imagem, ao som” (SOBRINHO, 2001, p.6-7).
Nesse sentido, a verdade seria um processo de dupla abstração humana, pois,
inicialmente, aprendemos a realidade à nossa volta por meio de nossos sentidos que captam
essa realidade na forma de impulsos nervosos, os quais são transformados em imagens. A
partir dessas imagens metafóricas criadas pelo nosso aparato cognitivo, ocorre uma nova
transformação, desta vez para um som verbal, que servirá como meio, para comunicar a outro
indivíduo, as características dessa realidade percebida (SOBRINHO, 2001).
O homem é considerado por Nietzsche, como o gênio da arquitetura, aquele ser que
busca, em seu próprio intelecto, a matéria prima de que precisa para construir
linguisticamente suas próprias verdades. Muito diferente dos outros animais, como a abelha,
por exemplo, que constrói sua casa com cera, retirando da própria natureza a matéria prima
para a sua construção. É justamente por meio da linguagem e de seu intelecto que, para
Nietzsche, o homem se torna o mais habilidoso dos animais, quando pretende se conservar no
interior de um rebanho ou de uma sociedade (NIETZSCHE, 2001).
Nietzsche pergunta: “o que é a verdade?” e ele mesmo trata de dar uma resposta à sua
pergunta:
Seria, então, por um instinto de conservação, que o homem abdica do seu estado de
natureza, para viver em sociedade, pois precisa superar o estado de luta de todos contra todos
hobbesiano e utilizar a sua própria inteligência para dissimular. Nessa condição, deseja
somente os resultados favoráveis da verdade, as consequências que possam lhe conservar a
vida, mas se mostra indiferente diante do conhecimento puro, que não produz efeitos e, se
mostra até mesmo hostil para como aquelas verdades que podem lhe ser danosas e destrutivas
(NIETZSCHE, 2001).
Por meio de suas escavações arqueológicas no terreno da loucura, por exemplo,
Foucault (2014e) constatou que, determinados fenômenos considerados pela história
tradicional como fatos, constituíam-se como efeitos de superfície, que se sustentavam nas
verdades discursivas próprias de um determinado tempo histórico. Verificou em seus estudos
que, o objeto da loucura havia se constituído de maneiras diversas, em diferentes épocas e no
interior de variadas instituições, como efeitos de verdades produzidas pelos seus próprios
discursos.
Seus estudos tendo como objeto a loucura, as práticas médicas, a delinquência e a
sexualidade, revelaram que a verdade não se origina no sujeito e, tampouco, na natureza, pois
é produzida no interior das instituições. Ao contrário do que preconiza o pensamento
instituído a partir da Modernidade, não são os sujeitos que descobrem uma verdade, a qual se
acharia encoberta na natureza, mas um processo que se daria no sentido inverso. São os
discursos que produzem, tanto as verdades como os próprios sujeitos com quem elas se
relacionam. Seguindo então a genealogia nietzscheana, assim como o caráter perspectivo da
filosofia do martelo14, Foucault propõe as noções de vontade de verdade e de regimes de
verdade, pois não se trata de interrogar o que a verdade é, mas interpelar as condições de sua
produção, ou seja, o seu caráter propriamente histórico (FOUCAULT, 2014f).
Nessas condições, o ser humano possui uma potência conservadora, um querer interno
que aspira à verdade, mas como nos adverte Deleuze (2018, p. 124) “se alguém quer a
verdade, não é em nome do que o mundo é, mas em nome do que o mundo não é”. Por não
suportar a imanência do mundo, o devir que lhe é próprio e as suas forças destrutivas, o ser
humano inventa, cria, fabrica outra realidade, que passa a assumir como uma verdade, que
pode ser utilizada em defesa de sua autopreservação.
14
A filosofia do martelo é um termo utilizado para se referir ao modo como Friedrich Nietzsche (1844-1900)
produziu seu pensamento, ou seja, o filósofo demonstrou que as bases de sustentação moral cristã, sobre a qual
se erguem os ídolos, que são tão frágeis quanto os pés de um gigante feito de barro, que não resistiam às
“marteladas” de sua filosofia.
39
Por esse mesmo ângulo de análise, Revel (2005) acrescenta que, regime de verdade se
caracteriza pelos discursos que as sociedades fazem funcionar como verdadeiros, ou ainda
“[...] os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou
falsos, a maneira como sanciona uns e outros” (FOUCAULT, 2014f, p. 52). É nesse sentido
que, para Michel Foucault, saber e poder forma um conjunto complexo e interrelacionado, no
qual poder produz saber e este é o que dá a sustentação para aquele. São os discursos que,
uma vez colocados em circulação e aceitos por uma comunidade ou sociedade como
verdadeiros, produzem tantos os objetos como sujeitos enquanto efeitos de superfície, ou seja,
por meio dos discursos emergem os acontecimentos. É justamente a noção de acontecimento
que trataremos no próximo tópico.
Nesse mesmo sentido, Paul Veyne (2014, p. 46) afirma que “os acontecimentos não
são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos livremente na
realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e produzem substâncias em
interação, homens e coisas”. Não sendo da ordem dos corpos e, tampouco, das substâncias, os
acontecimentos não possuem uma realidade em si mesma e, desta maneira, considerados
incorporais, não podem afetar diretamente coisa em si, pois eles são simplesmente um
exprimível na forma verbal, aquilo que se diz sobre os corpos, mas que não podem lhes
modificar nem afetar suas qualidades (DELEUZE, 2018).
Segundo Foucault (2015a), o acontecimento é algo que paira sobre a superfície dos
corpos, ou seja, habita-lhes a superfície e integra o universo dos efeitos incorporais, dos
efeitos exteriores aos corpos e que tornam a linguagem possível. Desta maneira, o
acontecimento se relaciona com estados de coisas, como um atributo lógico desses mesmos
estados, mas completamente diferente de suas qualidades físicas. É aquilo que somente pode
possuir existência na linguagem mesma que o manifesta, nas proposições que o tornam
possível como um exprimível, uma existência que somente se torna possível no conteúdo
expresso dos discursos.
Para Foucault (2008c, p. 267), o corpo se constitui numa “[...] superfície de inscrição
dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dissociação do Eu (ao qual ele tenta atribuir a ilusão de uma unidade substancial), volume em
perpétua pulverização”. O acontecimento se instala entre os enunciados e as práticas que os
corpos realizam, práticas essas que pressupõem a existência de uma materialidade, que pode
ser apreendida pelo discurso, como uma verdade.
Sendo os acontecimentos da ordem a linguagem e das proposições, numa perspectiva
nietzschiana, Foucault (2015a) parte do princípio que não são as coisas que criam os
discursos, pois o processo ocorre num sentido inverso, ou seja, são os discursos que produzem
as condições conceituais para que os objetos sejam fabricados a posteriori, ou seja, as coisas
são produzidas conforme uma vontade de verdade. A emergência seria, então, o ponto de
irrupção, o princípio e a lei singular de um acontecimento, situando-se no momento exato em
que ocorre uma alteração da correlação das forças, forças essas que se encontram envolvidas
numa perpétua agonística para determinar seus próprios conteúdos de verdade.
É nesse sentido que Foucault (2015a) orienta seus estudos, na direção de uma história
geral, serial ou acontecimentalizada, pois afirma que “ali onde se estaria bastante tentado a se
referir a uma constante histórica, ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma
evidência se impondo da mesma maneira para todos, trata-se de fazer surgir uma
42
singularidade” (FOUCAULT, 2010, p. 339). Por fim, cabe salientar que o acontecimento não
se constitui como algo isolado, pois a sua irrupção imiscui-se com uma multiplicidade de
outros acontecimentos que emergem da mistura dos corpos. Nessa perspectiva, Veyne (2014,
p. 34) sustenta que “um acontecimento só tem sentido dentro de uma série, o número de séries
é indefinido, elas não se ordenam hierarquicamente e veremos que também não convergem
para um geometral de todas as perspectivas”.
Diante do exposto, este será o caminho que percorreremos, para analisar a emergência
da Educação do Campo, não como um fato histórico, mas como um acontecimento que surge
em meio a tantos outros, na atualidade própria de seu aparecimento, enquanto discurso de
verdade. Discursos verdadeiros que põem em circulação uma série de enunciados que lhe
oferecerem um regime de materialidade repetível, capaz de reproduzi-lo e de criar os seus
próprios objetos. É sobre a noção de enunciado e sua respectiva materialidade repetível,
constituída pela formação discursiva, que trataremos no próximo subitem.
Embora Foucault (2015a) não tenha formulado uma definição exata para o termo
enunciado, traçou uma série de diferenciações, na tentativa de não o confundirmos com as
frases, as proposições ou os atos de fala. Para ele, o enunciado é uma unidade do discurso, que
não é da mesma ordem gramatical, lógica ou pragmática dessas unidades das quais buscou
assinalar sua diferença. Trata-se de “[...] uma função que possibilita que um conjunto de
signos, formando unidade lógica ou gramatical, se relacione com um domínio de objetos,
receba um sujeito possível, coordene-se com outros enunciados e apareça como um objeto,
isto é, como materialidade repetível” (MACHADO, 2006, p. 152).
O enunciado é, assim, uma função de existência que se exerce verticalmente, cruzando
um domínio de estruturas e de unidades possíveis, e possibilitando a emergência de
acontecimentos discursivos. Diferentemente dos acontecimentos que possuem uma
localização espaço/temporal, o enunciado atravessa o espaço e o tempo e se estabelece numa
outra ordem, que é a da instituição. Ele exerce uma função que faz aparecer um jogo de
posições possíveis para um sujeito, que se relaciona discursivamente com um domínio, no
qual determinados objetos podem aparecer (FOUCAULT, 2015a).
43
Por meio dessa função enunciativa, que se exerce verticalmente sobre as estruturas e
as unidades possíveis, o enunciado faz com que objetos apareçam no tempo e no espaço
enquanto acontecimentos discursivos. Embora seja dependente das frases e das proposições
para sua circulação, o enunciado não é algo imediatamente visível, mas ao mesmo tempo, não
está oculto nessa mesma unidade. Nesse sentido, Foucault (2015a) adverte que os enunciados
são raros e poucas coisas podem ser ditas em suma e, talvez, seja justamente pelo fato de ser o
enunciado raro e tão conhecido, que não pode ser percebido instantaneamente como algo que
se manifesta, pois ele se dissimula nas próprias frases e proposições.
Sendo uma função de existência e dependente dos signos que cruzam verticalmente,
tanto a estrutura (corpo) como o acontecimento (o incorporal), o enunciado se caracteriza por
quatro elementos: um referente, um sujeito, um campo associado e uma materialidade
repetível. Primeiramente, o enunciado necessita de um referente, ou seja, um princípio de
diferenciação “[...] dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são
postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de
delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade” (FOUCAULT,
2015a, p. 11).
O segundo elemento que caracteriza um enunciado é uma posição sujeito, isto é, uma
posição vazia a ser ocupada ou uma função que pode ser exercida indiferentemente por
indivíduos diferentes, a partir do momento em que formulam o enunciado e o aceitam como
sua própria lei. Não é porque houve alguém para proferir uma frase, uma proposição ou um
conjunto de signos que existe um enunciado, mas porque é possível assinalar a sua posição
sujeito, na medida em que é possível determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo
o indivíduo para ser seu sujeito (FOUCAULT, 2015a).
A terceira característica do enunciado diz respeito a sua existência enquanto função,
que só pode ser exercida mediante a coexistência num campo adjacente, isto é, num espaço
colateral povoado por outros enunciados. Como assegura Foucault (2015a, p. 152) “todo
enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa,
mas que tem o poder de se reorganizar e de redistribuir segundo relações novas”. Em outras
palavras, “[...] não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros
enunciados” e, sendo assim, “[...] uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se
estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular”
(FOUCAULT, 2015a, p. 120).
Finalmente, a quarta e última característica da função enunciativa, exige uma estrutura
de registro para os signos, ou seja, há a necessidade de um suporte substancial no qual a
44
que o enunciado produz seus efeitos de verdade. Por esse motivo, embora a análise dos
enunciados e da formação discursiva se estabeleça correlativamente, ambas se abrem em
direções inteiramente opostas.
Enquanto a análise da formação discursiva determina um princípio de raridade, pois
faz aparecer os únicos conjuntos de significantes possíveis, uma vez que, no interior de cada
um dos campos discursivos nem tudo pode ser dito, da mesma maneira, no íntimo mesmo da
formação discursiva, os enunciados são utilizados como instância de exclusão, que os separa
dos demais significantes possíveis. Dito de outra maneira, o princípio de raridade é que
permite o uso dos enunciados no interior de uma dada formação discursiva, é o que possibilita
determinar a posição singular ocupada por ele. O modo como ele é isolado na dispersão geral,
tanto em relação aos demais enunciados com quem mantém vínculo, como em relação ao seu
próprio uso heterogêneo no interior de outras formações discursivas possíveis é que lhe dão
significações diversas (FOUCAULT, 2015a).
Os enunciados, por sua vez, pelo fato de serem raros e de não serem totalmente
transparentes, possuem uma capacidade de circulação e de transformação, de serem
apropriados por múltiplas formações discursivas, adquirindo funções de sentido e de produção
de verdades que, até mesmo podem ser opostas. Por esse motivo, Foucault (2015a, p. 147)
garante que “interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensá-la pela
multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir dela e apesar dela”, pois “[...] analisar
uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-lhe a forma
específica”.
Por esse motivo, a interpretação deve ser realizada nos interstícios, nos espaços vazios
de significado deixados pelos enunciados, quando apreendidos em uma determinada formação
discursiva, pois são esses intervalos que lhe escapam ao controle pleno e deixam transparecer
outros efeitos de sentido possíveis. Dito de outro modo, pelo fato dos enunciados serem
heterogêneos, ou seja, por eles possuírem efeitos de sentido abundantes e de participarem de
múltiplas formações discursivas, eles não podem ser apreendidos por completo em cada uma
dessas formações que o envolvem.
Sobram invariavelmente significações, que sempre deixam escapar algo a mais, que
remetem os efeitos de sentido para além desse campo discursivo específico, e, assim sendo,
nos lembra Foucault (2015a), de que é esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso
descrever. É desse mais, que escapa ao controle de um campo discursivo, que a análise do
discurso faz aparecer e, busca descrever.
46
inaugural, Foucault (2014a) evidenciou os rumos que tomariam suas pesquisas a partir de
então, além de demarcar claramente importância dada ao discurso.
Foucault (2014a) detecta socialmente um temor acerca dos poderes que os discursos
estão investidos, que se traduzem numa disputa histórica constante pelo privilégio político de
quem pode utilizá-lo livremente. Em outros termos, pelo fato do discurso se caracterizar como
uma prática social, algo que se realiza politicamente e que está investido de efeitos de
verdade, por meio do qual se produzem tanto os objetos como os sujeitos dos quais se fala, há
uma preocupação de manter seus poderes políticos sob um controle jurídico rígido.
Por meio desse conflito, advindo da limitação do direito de uso do discurso, são
criados grandes sistemas de exclusão e procedimentos internos que dominam seus poderes,
conjuram seus acasos, limitam e controlam a sua aparição, bem como definem a sua utilização
pelos sujeitos, estabelecendo quem pode e quem está excluído dessa prerrogativa de utilizá-lo
livremente. Dentre os grandes sistemas de exclusão, que atingem o discurso e se apóiam num
suporte institucional, podemos citar os seguintes: a interdição da palavra, a separação e
rejeição (segregação) e a oposição entre o verdadeiro e o falso (FOUCAULT, 2014a).
A interdição diz respeito ao fato de que não é qualquer sujeito que está autorizado a
falar, sobre qualquer objeto, em qualquer circunstância, isto é, há um direito privilegiado de
uso do discurso, cuja prerrogativa de se pronunciar sobre determinados temas, assuntos e
objetos é atribuída apenas a alguns sujeitos ou a grupos sociais determinados. Essa
prerrogativa de somente determinados sujeitos estarem autorizados a pronunciar seus
discursos sobre determinados temas e objetos, Foucault (2014a) denomina de tabu do objeto.
De maneira complementar, mas ainda dentro desse primeiro sistema de exclusão que opera
por meio da interdição da palavra, o respeito à restrição, à limitação ao controle das condições
em que determinados discursos podem ser pronunciados, constituindo o que o autor denomina
de ritual da circunstância.
A separação e a rejeição se constituem no segundo grande sistema de exclusão, por
meio do qual se estabelecem oposições, de modo a permitir que objetos e/ou sujeitos sejam
incluídos ou excluídos do discurso. Foucault estudou esse grande sistema de exclusão na obra
História da loucura, na qual demonstrou o nítido processo de segregação da loucura que,
desde a Idade Média, operou socialmente por meio de uma separação entre a razão e o seu
oposto: a não-razão ou loucura. Por meio da separação, entre o que se considera razão e
loucura (desrazão), foi possível não apenas rejeitar a palavra do louco, mas de reconhecê-lo
como tal, identificando-se um sujeito que proferia um discurso considerado ininteligível,
irracional (FOUCAULT, 2014a).
48
15
Gregor Johann Mendel (1822-1884) nasceu numa família de camponeses austríacos, em Heinzendorf, no dia
22 de julho de 1822, estudou ciências naturais e após 1854 se dedicou ao estudo científico do cruzamento de
espécies diferentes de ervilhas (hibridação). A partir desses estudos formulou duas leis fundamentais para o
49
Outra forma de controle é a realizada pelos grupos doutrinários, como é o caso dos
movimentos sociais e sindicais, no interior dos quais se partilha um único e mesmo conjunto
de discursos e que, diferentemente das sociedades do discurso, há um número infinito de
indivíduos, que definem a sua pertença recíproca por meio de um reconhecimento das
mesmas verdades e da aceitação de certas regras comuns. Assim, “a doutrina realiza uma
dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos
virtual, dos indivíduos que falam” (FOUCAULT, 2014a, p.41). Em outras palavras, no
interior dos grupos doutrinários, os indivíduos estão vinculados a certos tipos de enunciação e
proibidos de outros, sendo que é justamente esse grupo de enunciados que os une ao grupo de
pertença, diferenciando-os de outros grupos (FOUCAULT, 2014a).
Finalmente, o quarto e último procedimento de controle e sujeição dos discursos que,
numa escala muito mais ampla, diz respeito às apropriações sociais. Embora esse seja um dos
raros momentos, em toda a obra de Michel Foucault, que trata especificamente de temas
ligados à educação, o autor adverte que, o sistema educacional ocupa um espaço particular no
processo de apropriação social dos discursos. Embora a educação seja um direito de todos, ou
seja, um instrumento legal por meio do qual todos os indivíduos podem acessar as mais
diversas modalidades discursivas, ela segue linhas de distribuição, que são marcadas tanto
pelas distâncias e oposições, como pelas lutas sociais. Nessa perspectiva, “todo sistema de
educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com
os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2014a, p. 41).
Dessa maneira, podemos dizer que o discurso é uma prática social, que se produz de
maneiras diversas, conforme o contexto histórico no qual está inserido, apoia-se numa
materialidade específica que é a linguagem, cujo suporte corpóreo é o sujeito. Para manter a
sua regularidade no interior de uma formação discursiva específica, o próprio discurso
estabelece procedimentos internos e externos de exclusão e de controle, que reduzem o perigo
de seu surgimento aleatório e conjura seus poderes. Poderes esses que, devido à raridade e à
heterogeneidade dos enunciados, possibilitam o seu surgimento no interior de formações
discursivas múltiplas, que permitem a criação de unidades de sentido muito diversas e, com
isso, a produção histórica dos próprios objetos e sujeitos que põem em circulação.
Nesse capítulo realizamos uma breve síntese dos fundamentos teórico/metodológicos
de um tipo específico de análise do discurso, que é a análise arquegenealógica do discurso
elaborada por Michel Foucault. O próximo capítulo será dedicado ao estudo da história
acontecimentalizada das diferentes formas de governo que, desde a Antiguidade, conduzem as
ações individuais para um ou outro determinado fim. Ao final desse capítulo será possível
51
entender os modos como, em cada uma das diferentes razões de governo, que se assumiu ao
longo da História Ocidental, foi possível criar os próprios sujeitos governáveis.
52
essa arte racionalmente desenvolvida para governar da melhor maneira possível a população,
pelo termo governamentalidade.
O primeiro estudo sobre a emergência dessa nova razão de governo foi realizado num
dos cursos, ministrados no Collège de France, o qual recebeu a denominação de Sécurité,
territoire, population. As aulas desse curso foram gravadas, transcritas e, posteriormente
editadas, na França, na forma de livro, cuja primeira edição brasileira foi organizada somente
no ano de 2008, pela editora Martins Fontes e recebeu o título de Segurança, território,
população.
Esse curso foi organizado nos moldes das aulas que Michel Foucault desenvolvia, ou
seja, na forma de seminários que ocorriam uma vez por semana, às quartas-feiras, nessa
universidade francesa. O início desse curso ocorreu no dia 11 de janeiro de 1978 e o seu
término se deu no dia 5 de abril do mesmo ano. Em cada uma dessas aulas, o autor buscou
desenvolver toda uma genealogia do Estado moderno, partindo de uma história da
racionalização da prática governamental e dos seus diferentes aparelhos, formas,
configurações utilizadas para garantir a soberania política. Nesse curso o autor estudou em
profundidade o conjunto heterogêneo de transformações e similitudes dos vários campos da
arte de governo, desde a Antiguidade hebraica e grega, passando pelo poder pastoral e
absolutista da Idade Média, para analisar os modos como configurou essa nova razão de
governo, que denominou de govenamentalidade.
16
A palavra “economia” tem sua origem grega no termo oikonomía, que se forma pela junção de dois léxicos:
oikos, que significa casa, família; e nomein (ou nómos), que significa gerenciar, governar, dirigir, (ou lei,
norma). Desta maneira, quando esses dois léxicos são utilizados juntos, formando a palavra oikonomía, significa
“[...] o sábio do de governo da casa para o bem da família” (FOUCAULT, 2014, p. 413).
55
A ruptura com a tradição medieval funda uma nova razão de governo, uma razão que
não mais se fundamentará na ordem natural e cosmo-teológica, mas numa razão interna ao
próprio governo, que estabelecerá uma artificialidade disciplinar, a ser imposta no interior da
organização do Estado. Nessa nova razão governamental, que desse momento em diante
passou a ser uma razão de Estado, ocorreu uma espécie de continuidade no uso de certos
elementos essenciais ao poder pastoral. A partir de então, – embora ainda não se pudesse
utilizar adequadamente o termo população, pois ele ainda se encontrava bloqueado pelo
modelo de economia baseado na gestão familiar – será todo esse conjunto, formado pelos
indivíduos e suas famílias, que deverá ser salvo e, para que todos pudessem ser preservados,
era preciso cuidar para que cada indivíduo também se salvasse.
Há, entretanto, uma diferença quanto ao tipo de salvação que a razão de Estado
buscará alcançar, não sendo mais aquela salvação que o poder pastoral cristão perseguia, uma
salvação futura, numa outra dimensão, num mundo divino que não é esse no qual se vive. A
salvação de que razão de Estado se ocupava, era uma salvação terrena que deveria ocorrer em
sua própria atualidade; não uma salvação espiritual, mas uma salvação material e econômica
do próprio Estado, que dependia da salvação do conjunto total, formado por todos os homens
e suas famílias e, por consequência, da salvação material de cada um dos homens que
habitavam o território governado.
De acordo com Foucault (2008b, p. 6) “governar segundo o princípio da razão de
Estado é fazer que o Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar rico, que
possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-lo”. Para tanto, para que essa salvação
econômica e material do Estado ocorresse em sua totalidade absoluta, para que o Estado se
tornasse sólido e permanente, deveria cuidar para que toda a população se tornasse cada vez
mais forte e, para que isso ocorresse, haveria de impulsionar o crescimento individual de cada
homem.
Dessa forma, para que todos se salvem, para que o próprio Estado se torne soberano e
sobreviva, para que se desenvolva economicamente de maneira a poder competir com os
outros Estados, foi necessário investir individualmente nas forças produtivas de cada homem,
fazendo com que cada indivíduo crescesse e se tornasse mais forte. Pode-se verificar nesse
ponto, com a emergência da razão de Estado, a operação de uma inversão na dinâmica da
ação do poder, pois enquanto o soberano exercia um poder eminentemente negativo e
repressor sobre seus súditos, a prática governamental da razão de Estado exercerá sobre os
indivíduos e suas famílias, um poder positivo. Ao contrário do poder repressivo do soberano,
57
com a emergência de uma arte de governo, o exercício de poder se torna algo que faz
produzir, que incita a criação, suscita o crescimento.
A ação produtiva dessa arte de governar suscitou um investimento produtivo
individual e um desenvolvimento econômico das famílias, de forma que o próprio Estado se
torne mais forte, produtivo e competitivo, garantindo a sua própria soberania enquanto nação
independente. É nesse sentido que Foucault (2008b, p. 6) afirma ser essa razão governamental
a própria fundadora do Estado moderno, pois “[...] precisamente uma prática, ou antes, uma
racionalização de uma prática que vai se situar entre um Estado apresentado como dado e um
Estado apresentado como a construir e a edificar”. Para edificar esse Estado soberano que se
formava, a razão governamental precisou estabelecer uma nova ordem interna, não mais
alinhada com a ordem natural e divina das coisas, mas à necessidade de aumentar, mesmo que
artificialmente, a força, a potência produtiva de cada indivíduo.
Por meio dessa razão de governo, tratou-se de criar, no interior do Estado, um
conjunto de disciplinas e regulamentos para a condução e a manipulação artificial de suas
próprias forças internas. Essas práticas disciplinares e regulamentares tiveram um objetivo
estratégico, que foi o de manter, redistribuir e estabelecer, de forma mais eficiente, as relações
políticas e comerciais num espaço de concorrência interestatal. Em outras palavras, o objetivo
final dessa manipulação de forças, era criar as condições necessárias para o crescimento
competitivo do próprio Estado, de maneira a comercializar com outras nações, obtendo o
máximo de lucro possível em cada transação (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
Como já mencionado anteriormente, o Estado necessitou estabelecer suas condições
artificiais internas, para garantir o crescimento de sua própria força competitiva, força essa
que se constituía e aumentava a partir da atividade humana de fabricação, circulação e troca
de mercadorias. Foi nesse contexto que se constata a emergência de uma instituição, inédita
até então, que ficará incumbida do disciplinamento da população, da regulamentação de todo
esse fluxo de forças e da interação dessas forças responsáveis pela produção e
comercialização de mercadorias e serviços. Essa instituição, que nasceu no século XVII e que
se ocupou, a partir de então, da disciplina e da racionalização política das forças promotoras
do crescimento do Estado, assim como de sua ordem interna, denominou-se de polícia.
No sentido geral do termo, como foi empregado nos séculos XVII e XVIII, polícia era
um conjunto institucional, cujos poderes eram ilimitados e que se encarregava de toda a
regulamentação mercantil e, também, do disciplinamento político das forças produtivas do
Estado. Dessa maneira, a polícia se ocupava de fazer funcionar os dispositivos de segurança,
necessários ao incremento produtivo de cada indivíduo e do conjunto total desses indivíduos e
58
famílias, de forma a garantir o bom comércio do Estado. Em outras palavras, a partir dos
poderes ilimitados que eram atribuídos à polícia, suas múltiplas atividades se ocupavam de
disciplinar e regulamentar a saúde, a subsistência e a circulação humana, de solucionar os
problemas da coexistência densa do homem na cidade, assim como os problemas relacionados
à economia. Aliás, Foucault (2008a) faz questão de enfatizar que a polícia se configura numa
instituição essencialmente urbana e mercantil, não podendo ser dissociada de uma política de
concorrência comercial, tampouco do próprio processo de urbanização, pois acredita que o
policiar e o urbanizar são a mesma coisa.
Para que essa instituição, encarregada de agir sobre o conjunto das forças, sobre esse
fluxo humano, de mercadorias e serviços, que promovem o crescimento e produzem um
aumento de poder para o Estado, tornou-se necessário conhecer. Era preciso conhecer
rigorosa, atenta e minuciosamente cada uma dessas forças produtivas, que compõem o Estado,
na mais fina de sua individualidade. Conhecer cada detalhe da população e cada etapa de seus
processos econômicos de produção, para poder discipliná-los e regulamentá-los, ou seja, para
governá-los de uma maneira política e economicamente mais racional e eficiente. Isso porque,
para que o sistema de polícia pudesse incrementar as forças do Estado, a população deveria
ser considerada como um número maior possível de indivíduos trabalhadores e disciplinados,
um conjunto de corpos dóceis sobre os quais se aplicava todo um sistema de disciplina e de
regulamentação.
Nesse momento histórico, ainda no século XVII, que se viu nascer uma nova técnica
analítica, por meio da qual se tornou possível a racionalização das práticas de governo do
Estado, uma ferramenta matemática que possibilitou conhecer minuciosamente as diversas
variáveis, os pormenores das forças que compõem e que interessam ao Estado. Tratava-se do
surgimento da estatística, uma poderosa ferramenta analítica de cálculo matemático, que
possibilitou conhecer as minúcias de cada um dos processos e que permitiu fracionar, repartir
e quantificar individualmente cada uma dessas forças que compõem economicamente o
Estado. Por meio desse cálculo racional das forças, foi possível estabelecer relações, medir os
fluxos humanos e de mercadorias, de serviços e conhecer detalhadamente a potência e as
deficiências individuais de cada homem (FOUCAULT, 2008a; 2012a).
Por meio da estatística foi possível, pela primeira vez na História do Ocidente,
governar racionalmente a materialidade fina da existência e da coexistência humana, assim
como a materialidade fina da economia, ao controlar a circulação e o comércio de
mercadorias e serviços. A estatística se transformou numa ciência do governo, que
possibilitou centralizar as ações sobre um nível específico da realidade, que é a esfera da
59
do Estado, age sobre os indivíduos e retorna para o Estado como um conjunto de forças
crescentes ou sobre as quais se invoca a necessidade de se fazerem crescer. Essas forças,
sobre as quais se concentra a ação da polícia e cujo intuito é o de fazê-las crescer, passam pela
vida dos indivíduos, articulando-se, desta maneira, à felicidade de cada membro da população
com a potência do Estado. Está aí a própria função original da polícia: fazer da felicidade dos
indivíduos a própria utilidade do Estado, em outras palavras, fazer do crescimento individual
e da felicidade dos homens, um objeto de aumento, de acréscimo da própria força do Estado.
A estatística, por sua vez, permitiu a construção de um conjunto de saberes amplos
sobre a população, efetuando um desbloqueio na arte de governo, ao deslocar o centro das
análises econômicas da família, para esse novo objeto de ação racional e planejada. Foi a
partir da possibilidade de se efetuar um cálculo estatístico e minucioso sobre os problemas da
população, ou seja, dos cálculos necessários ao disciplinamento e à regulamentação de todos
os inconvenientes da coexistência humana e da circulação de mercadorias, que foi possível o
nascimento da economia política (FOUCAULT, 2012a).
Para Foucault (2008a), a economia política diz respeito ao conjunto de saberes acerca
das questões relacionadas à população, às técnicas de intervenção do governo no campo da
realidade, ou seja, uma relação circular entre o poder e o saber, por meio da qual se produz e
reproduz a realidade. Realidade essa que perpassa tanto a economia do Estado como a vida de
cada um dos indivíduos, assim como a vida de toda a população enquanto política. Por esse
motivo é que Foucault (2008a) nos adverte sobre a impossibilidade de dissociar os problemas
de polícia dos problemas políticos da população. Isso porque a política disciplinar de
natalidade e/ou de mortalidade, o treinamento de um ofício, a política regulamentar de
produção e a circulação de mercadorias e serviços, assim como a regulação externa do
comércio entre os Estados, são todos problemas de tanto políticos como problemas de polícia.
Por meio de sua genealogia da arte de governo, Foucault (2008a) explica o processo
pelo qual o Estado de justiça da Idade Média se transformou, possibilitando a emergência de
uma razão governamental de Estado, ou seja, o surgimento de uma governamentalidade de
Estado. Do mesmo modo, esclarece sobre as transformações que ocorreram nessa mesma
governamentalidade de Estado, acerca das modificações que se processaram no início do
século XVIII e possibilitaram a emergência de uma nova governamentalidade, a partir da
segunda metade daquele mesmo século.
61
estatisticamente, mas os dados externos a essa nova razão governamental que acabava de
emergir. São os dados da evidência natural das coisas e dos processos que formavam a
sociedade civil que passaram a ser objeto dos cálculos estatísticos, mas que necessitavam
passar pelo crivo analítico da racionalidade científica.
A novidade dessa nova razão governamental está na reivindicação da racionalidade
científica, como fundamento para a análise dos dados obtidos, a partir da evidência dos
fenômenos econômicos. Trata-se do surgimento de uma relação de poder e saber que é
externa à própria arte de governar, que produz uma relação entre o governo dos homens e a
ciência, ou seja, a partir da emergência dessa nova arte de governo, o saber se fundamentará
numa razão da ciência econômica, que fornecerá os elementos necessários ao poder, para que
toda a tomada de decisão política passasse a ser embasada em fundamentos científicos.
Essa continuidade entre governo e ciência, entre poder e saber, ou, ainda, entre ciência
e decisão, conjura a arte de governo, separando-a em dois pólos distintos, mas
interdependentes: um desses lados da relação se envolverá estritamente com a coleta, o
cálculo e análise das evidências fenomênicas, consideradas naturais, recorrendo à pureza
teórico/científica da economia; a outra extremidade envolver-se-á unicamente com a
deliberação política, mas essa tomada de decisão estará sempre fundamentada nos saberes
científicos, produzidos pelo primeiro polo da relação. Nesse sentido, verifica-se uma
continuidade e uma relação circular entre poder e saber, uma vez que as decisões de governo
passam a ser modeladas pelo conhecimento supostamente neutro e imparcial da ciência
(FOUCAULT, 2008a; 2012a).
A terceira descontinuidade discursiva em relação à razão de Estado está relacionada
aos problemas propriamente da população, pois se deixará de considerá-la como uma simples
coleção de súditos. A população não será mais aquele conjunto de homens que o Estado
necessita submeter constantemente a uma disciplina e à regulamentação exaustiva. No interior
da nova razão governamental, a população existe como uma naturalidade intrínseca à
sociedade civil, com suas leis próprias de deslocamento e de transformação. É no interior
dessa naturalidade da sociedade civil que ocorre a interação entre os indivíduos e entre a
população como um todo, produzindo um vínculo diferente daquele desejado pelo Estado,
pois se trata de um vínculo espontâneo e que se estabelece a partir de um interesse individual
(FOUCAULT, 2008a).
A quarta descontinuidade entre a governamentalidade e a razão de Estado está
relacionada à aceitação da verdade sobre as leis naturais, que definem tanto os fenômenos de
ordem populacional como os de ordem econômica. Diferentemente da razão de Estado, na
63
que institui uma nova racionalidade para a arte de governo, de modo a se governar o mínimo
possível os elementos internos que são considerados naturais. O objetivo dessa nova razão de
governo se fundamenta numa garantia da livre concorrência interna, de maneira a permitir que
os fluxos econômicos se autorregulem naturalmente.
Diferentemente da razão de Estado, em que os critérios de julgamento, do bom ou do
mau governo, recaíam sobre os princípios legais da prática governamental, para declarar a
legitimidade ou ilegitimidade de um governo, no modelo de governamentalidade liberal, é o
produto da prática de governo que é posto em questão e analisado, para confirmar o seu
fracasso ou o seu sucesso. Vê-se um deslocamento da crítica governamental, do âmbito do
direito, para um campo pragmático e utilitarista da concorrência, no interior do qual os
próprios efeitos da prática de governo é que são postos à prova.
É na medida em que a prática de governamento garante um funcionamento livre e
natural da concorrência interna, que o desempenho do governo será considerado, a partir de
então, como uma ação boa e de sucesso, devido à sua eficiência e eficácia em manter a
liberdade competitiva da sociedade. De um modo inverso e oposto, caso essa mesma prática
funcione de forma a impor limites que impeçam ou dificultem a concorrência interna, limites
esses que são considerados artificiais e externos, ela será julgada como um mau exercício do
poder governamental, isto é, como uma prática fracassada de governo.
Segundo Foucault (2008b), a razão liberal de governo considera que, no interior das
práticas governamentais, há um conjunto de processos, fenômenos e regularidades que são
inteligíveis à razão. Dada a inteligibilidade desse conjunto e pelo fato deles se constituírem
em leis naturais do funcionamento da sociedade, devem eles servir como objeto de análise
para a ação governamental. Esses os objetos é que devem ser decompostos matematicamente,
estudados e racionalizados, de agora em diante, por uma teoria, denominada de liberalismo
econômico.
De acordo com Foucault (2008b), é nesse ponto que a economia política se apropria,
tanto dos fundamentos da filosofia utilitarista17 inglesa, como do pragmatismo 18 americano.
17
O utilitarismo é uma corrente filosófica que se insere no campo da ética e da política, que tenta transformar a
ética numa ciência positiva da conduta humana. Seus fundamentos retomam a filosofia epicurista, na qual a ação
humana deve se basear numa busca pela felicidade e numa fuga do sofrimento. Nesse sentido, tanto os
epicuristas como os utilitaristas consideram uma ação boa, quando é útil e, somente pode ser útil, aquelas ações
que promovem a felicidade humana. Embora os fundamentos do utilitarismo tenham como base a ética
epicurista, essa corrente filosófica se funda com o pensamento do francês Adrien Helvétius (1715-1771), que
posteriormente influenciou o utilitarismo conhecido como de linha inglesa, cujos principais representantes são:
Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) (ABBAGNANO, 2007).
18
O termo pragmatismo foi introduzido na filosofia em 1898, por William James (1842-1910), ao retomar o a
doutrina exposta pelo filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914), cujos princípios determinam uma
correspondência entre a verdade e a utilidade. No pensamento pragmático, “[...] o significado racional de uma
66
palavra ou de outra expressão, consiste exclusivamente em seu alcance concebível sobre a conduta da vida”
(ABBAGNANO, 2007, p. 920).
67
verdade sobre as práticas governamentais e determina os seus limites políticos de uma ação
qualquer.
Percebe-se uma inversão no polo de forças que se formaram originalmente no interior
da economia política, uma vez que, enquanto na razão de Estado era a própria prática política
do soberano que determinava e direcionava toda a economia, na nova razão governamental, a
política que se subordina às verdades econômicas. É desse modo que a nova arte
governamental foi construída (peça por peça) no interior de um regime discursivo em que a
economia é quem determina quais os discursos podem ser considerados verdadeiros ou falsos,
por meio do cálculo estatístico e da análise científica, cuja base racional é a via radical e
utilitarista do mercado.
Os limites, para o que é permitido à arte de governo intervir e para o que lhe é vedado,
são construídos discursivamente no interior do campo econômico, a partir de categorias
utilitaristas e concorrenciais do mercado que polarizam tais práticas em verdadeiras ou falsas
(boas ou más). Esse critério de veridicção, definido utilitariamente no interior do campo
econômico, é que institui juridicamente os limites do poder governamental, ou seja, é a
economia que estipula os limites do campo político, no interior do qual se realiza a prática de
governo. Por considerar que os mecanismos de mercado possuem uma naturalidade própria, a
qual não deve ser tocada pelo poder político, o discurso econômico transforma os objetos de
mercado (concorrência, demanda, oferta, preços) em algo que precisa estar a salvo, ou ser
protegido das práticas de governo, consideradas irracionais.
O regime discursivo que se estabelece a partir dessa crença, de evidência dos
mecanismos “naturais” do mercado, é que permite que sejam construídas as verdades sobre a
utilidade econômica da razão de governo, utilidade essa que só se torna verídica no caso em
que se governa menos. Por intermédio da evidência científica de tais verdades, fabricou-se
todo um regime jurídico que estabeleceu os limites do poder público, limites que serviram
como critérios posteriores para a formação do direito público e do direito administrativo
(FOUCAULT, 2008b).
O que caracteriza a arte liberal de governar não é o reconhecimento da liberdade
jurídica dos indivíduos, mas a mecânica interna dos processos econômicos, considerada na
sua espontaneidade e naturalidade. A liberdade não se processa pela via jurídica, que visaria o
respeito às liberdades individuais, mas pela via da evidência natural e espontânea da
concorrência no mercado, que visa à liberdade dos processos econômicos. Isso que possibilita
à teoria econômica munir-se de um conhecimento preciso, contínuo e claro, capaz de
reconhecer em tudo o que acontece na sociedade, quais mecanismos afetam positiva ou
68
Foucault (2008b) deixa claro que não pretende fazer uma história geral do liberalismo
desde o século XVIII até o século XX, mas parte dos problemas que lhe são contemporâneos,
para fazer uma história acontecimentalizada dessa nova razão de governo que é o liberalismo.
Assim sendo, na aula de 31 de janeiro de 1974, identifica duas formas principais que a
programação neoliberal assume, sendo que uma dessas expressões encontra sua ancoragem na
escola de pensamento econômico/liberal alemã, que se denomina de ordoliberalismo ou
ordoliberalismo alemão. A outra forma assumida pelo neoliberalismo encontra seu ponto de
apoio na política econômica estadunidense e recebe a denominação de neoliberalismo
americano.
Pode-se dizer que não mais havia um Estado alemão, logo após a II Guerra Mundial,
pois a sua estrutura política, econômica e social se encontrava totalmente devastada. Nesse
contexto surge o ordoliberalismo, a partir de 1948, quando se inicia uma política econômica,
na Alemanha, coordenada para satisfazer três demandas principais. A primeira dessas
70
Nessa empreitada que estamos seguindo, para construirmos uma grade de análise
inteligível e decifrarmos as condições de emergência da Educação do Campo no Brasil,
seguiremos Foucault (2008b), tomando-lhe por empréstimo os elementos do neoliberalismo
norte-americano. Tais componentes lhe serviram, ao mesmo tempo, como método de análise e
um tipo de programação, pois serviram de fundamentos para a teoria do capital humano,
assim como um programa de análise da criminalidade e da delinquência. Dentre esses três
elementos analisados pelo autor, é a teoria do capital humano que interessará ao presente
estudo e que será o objeto do subitem a seguir.
72
19
Teodore W. Shultz foi professor do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, cuja teoria do
capital humano lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 1968.
73
sujeito ativo, que é capaz de produzir efeitos qualitativos na economia, ou seja, o trabalhador
é um sujeito estrategicamente útil para o desenvolvimento da economia (FOUCAULT,
2008b).
Numa perspectiva do próprio trabalhador, o salário deixa de ser simplesmente o preço
a ser pago, de maneira abstrata, pela venda de uma força de trabalho, para se transformar
numa renda adquirida por meio da realização de um trabalho. Para os neoliberais americanos,
renda é considerada um produto ou um rendimento de um capital e, de maneira inversa,
capital é tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra, poderá se transformar numa fonte de
renda futura. Pois bem, como o salário passa a ser considerado uma renda, isto é, um
faturamento sobre um determinado tipo de capital, doravante, será o próprio trabalho que
comportará esse capital, essa possibilidade de obtenção de lucros futuros (FOUCAULT,
2008b).
Do ponto de vista do trabalhador, é o seu próprio corpo que comporta esse capital, não
exatamente um corpo-máquina, mas algo que está em si mesmo, que pode ser localizado no
seu próprio corpo e que poderá transformar numa fonte de renda futura. O capital, que o
trabalhador possui, está contido nas suas próprias capacidades, habilidades e conhecimentos,
ou seja, são as competências que seu corpo possui, para executar essa ou aquela tarefa, que
são consideradas como um capital próprio que lhe é próprio, pois o trabalhador poderá
transformá-las numa renda futura.
Verifica-se que essa decomposição do trabalho em capital e renda possibilitou uma
inversão total na lógica com que a crítica econômica e sociológica efetuava suas análises
sobre o trabalho. Naquelas críticas, o trabalhador se via transformado num objeto de uso pelo
capitalismo, numa máquina por meio da qual se extraia as forças de trabalho e da qual se
separava (alienava) o próprio produto fabricado. Na visão crítica clássica, o trabalho é
considerado algo abstrato, tanto para o trabalhador como para o capitalista, que é o detentor
dos meios de produção. O processo produtivo em si não é um objeto concreto para o
capitalista, mesmo sendo ele o detentor dos meios de produção e tendo, sob a sua
coordenação, um conjunto de trabalhadores que vendem sua força de trabalho. O que se
apresenta como objeto concreto para o capitalista, só pode ser o produto final desse processo,
depois de passar por toda a transformação.
O trabalhador, por sua vez, embora seja ele o possuidor da força de trabalho, precisa
vendê-la por certo tempo e, em troca, receber uma determinada quantia em dinheiro, que será
o seu salário. Desse modo, a análise da crítica clássica admite que, apesar do salário se
constituir numa pequena parcela do valor final da mercadoria, produto esse que será vendido
74
neoliberalismo, mas as dimensões de uso da teoria do capital humano, no interior dessa nova
razão governamental.
Quanto aos elementos que formam o capital humano, Foucault (2008b) acrescenta que
os fundadores dessa teoria dividem-no em duas categorias: uma que diz respeito aos
elementos inatos e outra que concerne aos elementos adquiridos. Os elementos considerados
inatos são deixados de lado pelas análises foucaultianas, que se interessam pelo estudo dos
elementos adquiridos, pois são sobre esses elementos que se colocam os problemas e que são
feitas novas análises neoliberais. É sobre os elementos adquiridos do capital humano que se
assentam as análises neoliberais sobre os problemas educacionais, identificando as
necessidades de investimento público e individual na formação, no acúmulo e numa possível
reconversão ao longo da vida de cada indivíduo.
Como lembra Dardot e Laval (2016, p. 150) “se o mercado é um processo de
aprendizado, se o fato de aprender é um fator fundamental do processo subjetivo de mercado,
o trabalho de educação realizado por economistas pode e deve contribuir para a aceleração
dessa autoformação do sujeito”. Sobre esses elementos adquiridos do capital humano que se
assenta, então, a chave para a decifração da economia de mercado, pois é sobre eles que age o
princípio de inteligibilidade da governamentalidade, que busca programar e definir
estrategicamente, tanto as atividades como os comportamentos dos indivíduos. O capital
humano, que cada sujeito possui e desenvolve por meio do processo educacional, constitui-se
na sua ferramenta inicial, que deve ser utilizada para empreender e inovar, mas que também
precisa ser constantemente reconfigurada e/ou reconvertida, de modo a estar sempre adaptada
às flutuações e às demandas do mercado (DARDOT; LAVAL, 2016).
O homo oeconomicus neoliberal, esse sujeito empresarial que é construído no interior
da nova razão de governo, é alguém que possui a liberdade para escolher seus próprios
objetivos com base nas informações que tem sobre o mercado. Um dos componentes
fundamentais do mercado é a liberdade individual, que permite a esse novo sujeito efetuar
suas próprias descobertas empresariais e decidir livremente onde irá investir seu próprio
capital. Dessa maneira, o sujeito que é tomado como referência pela governamentalidade, é o
homem-empresa; é aquele que, para competir com as outras empresas (outros homem-
empresa), precisa aprender a descobrir as oportunidades que o mercado tem a lhe oferecer. É
esse indivíduo-micro-empresa que necessita desenvolver um elevado espírito competitivo, de
empreendedorismo e de inovação, para que possa assumir os riscos constantes de
investimento do seu próprio capital, de maneira a obter o maior lucro possível em cada
transação (DARDOT; LAVAL, 2016).
77
Para tanto, esse novo homo oeconomicus deve ser um sujeito ativo, criativo, um
competidor, um combatente que aprecia a luta e cujo sucesso econômico se constitui como o
maior símbolo de sua vitória enquanto criador. Alguém que, para sobreviver nesse universo
concorrencial, caracterizado por empresas individuais e altamente competitivas, precisa
desenvolver toda uma ciência da escolha correta, que é construída a partir da própria prática
empresarial, no interior desse combate. Um sujeito de desejo, que precisa ser livre para
competir e empreender, isto é, alguém que é livre para criar e para desenvolver suas próprias
forças competitivas, de modo que seu desejo não seja bloqueado, tanto por julgamentos
morais como por impeditivos políticos.
Com a universalização do modelo de sociedade empresarial, no interior dessa nova
razão de governo, constrói-se discursivamente o modelo de sujeito-empresa, um espaço vazio
a ser ocupado por todo e qualquer indivíduo, um espaço no qual ocorre o assujeitamento do
indivíduo ao jogo de poder/saber do mercado. Um espaço no qual o poder se encontra diluído
e funcionando de uma maneira sutil e quase imperceptível, pois o governo deixa de ser uma
força que age externa e coercitivamente sobre o indivíduo. Com a emergência dessa nova
razão de governo, é o próprio indivíduo que incorpora as forças que direcionam as condutas,
isto é, o próprio indivíduo que exerce sobre si mesmo o governo. Dessa maneira, a
governamentalidade se configura como uma espécie de poder que perpassa todo o espectro
social e possibilita que o poder se exerça em sua microfísica (FOUCAULT, 2014b).
É nesse ponto que se pode verificar os motivos pelos quais Michel Foucault necessitou
ampliar a sua concepção inicial sobre as relações de poder, passando a tratá-las no âmbito da
governamentalidade. Com essa nova noção, tornou-se possível um aprofundamento em seus
estudos sobre os saberes formadores dos sujeitos que cada sociedade necessita para bem
funcionar, assim como da relação circular que se estabelece entre o poder e o saber. Com a
noção de governamentalidade, o autor abre outro campo de análise sobre as relações de poder,
saber e de formação do sujeito, que é o terreno da ética, das relações do sujeito consigo
mesmo.
Seria essa a razão que levou Foucault (2008a) a construir um neologismo para essa
arte de governo que atravessa todo o corpo social e se insere no mais íntimo de cada
indivíduo, uma vez que a governamentalidade não se refere tão somente ao estudo das
técnicas de governamento da população, tampouco a uma teoria econômica, mas de uma
espécie de mentalidade generalizada, que se amplia para além da esfera pública de ação de um
governo. As análises empreendidas sobre a racionalidade neoliberal lhe permitiram verificar
que, essa nova razão governamental transcende as relações de governo, que se estabelecem
78
entre a economia política do Estado e a população. Trata-se de uma razão governamental que,
assim como as demais, atinge o mais íntimo de cada indivíduo, mas que difere ao exigir uma
nova relação de si para consigo mesmo, um governo de si. Concerne ao desenvolvimento de
uma mentalidade de concorrência empresarial, que atinge o mais profundo âmbito privado das
relações intersubjetivas e, principalmente, das relações do indivíduo consigo mesmo.
É desse modo que o estudo da governamentalidade interessa a presente pesquisa,
como ferramenta que nos possibilita a ampliação das análises acerca das condições de
possibilidade de emergência da Educação do Campo no Brasil, para além do campo jurídico,
no qual se apoia as lutas sociais pelo direito à educação. Nossa proposta de análise adentra o
campo da política por outra via, que é a de uma disputa pelo direito, sim, mas não como uma
batalha que visa garantir o direito constitucional de acesso à educação formal, mas de uma
guerra pelo direito à posse do discurso verdadeiro, de maneira a garantir a produção de
subjetividades particulares. É justamente sobre as condições de emergência da Educação do
Campo no Brasil, que vamos tratar no próximo capítulo.
79
20
Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979), p. 47.
80
trabalho, entre proprietários e proletários 21, é que se estabelece toda uma relação de troca que,
nessa perspectiva, se expressa pelo estabelecimento de uma rede de poder, cuja principal
característica está relacionada com a separação entre a força de trabalho e o objeto da
produção (MARX, 1982).
O poder, na perspectiva do materialismo histórico, transforma-se num objeto a ser
possuído, cujas características se expressam na sua capacidade coercitiva, opressiva e
repressiva, uma vez que a sua manutenção necessita da concomitante construção de
dispositivos de controle e de submissão da classe operária. Assim, numa perspectiva
repressiva, saber e poder passam a estabelecer uma relação de oposição, competição e de
enfrentamento. É nesse sentido que a ideologia surge como ferramenta política de dominação,
como uma espécie de véu que encobre a realidade das coisas e que se admite como uma
criação discursiva da classe burguesa, para fazer com seus interesses particulares aparentem
características de veracidade, de valor coletivo e/ou universal.
Para o materialismo histórico, a ideologia se constitui como a mais eficiente
ferramenta de dominação entre as classes, pois permite que o proletariado se mantenha numa
condição de subordinação aos proprietários dos meios de produção e separado dos produtos
fabricados pela sua força vital; isto é: o trabalhador é alienado de sua própria produção. Desse
modo, a tomada de consciência do processo de dominação e de alienação, seria a condição
necessária para se efetuar uma ruptura no modelo capitalista de produção material, que se
reproduz no interior das relações sociais.
Ainda segundo o pensamento dialético de Marx, os movimentos de resistência surgem
justamente por conta dessa tomada de consciência da classe trabalhadora (sua desalienação),
sobre a condição de expropriado do fruto de sua própria produção. Ainda, pelo fato de a
classe trabalhadora deter o saber necessário à produção, por possuir, mesmo que
temporariamente, os meios de produção, e ser ainda em maior número do que os seus
proprietários, a sua organização coletiva se constituiria na transição necessária para a
realização de um processo revolucionário, por meio do qual o proletariado tomaria o poder.
Sendo assim, o embasamento para a construção da concepção de Educação do Campo
por meio dos conceitos do materialismo histórico, caracterizou um movimento de resistência
político, por meio do qual se questionou os modos pelos quais a educação rural foi pensada e
21
Nessa concepção teórica, o proletário se caracteriza como sendo o cidadão destituído de posses materiais,
tendo como única posse a sua força de trabalho, que poderia ser vendida e convertida em salário. No contexto do
Império Romano, o proletário era o cidadão pobre, isento do pagamento de impostos, cuja única utilidade que
tinha para a cidade era a geração de filhos. Por isso a expressão proletário (prole + tário), aquele cidadão cuja
única propriedade que possui é o conjunto de pessoas que dependem dele, ou seja, sua prole.
81
22
De acordo com Mouffe (2012, p. 114-115), “considerado do ponto de vista do ‘pluralismo agonístico’, o
objetivo da política democrática é construir de tal forma o ele que deixe de ser percebido como um inimigo a
destruir e se conceba como um ‘adversário’, quer dizer, como alguém cujas ideias combatemos, mas cujo direito
de defender essas ideias não duvidamos. Sendo assim, o antagonismo se caracteriza como uma luta entre
inimigos, enquanto o agonismo se define por uma luta entre adversários” (tradução nossa).
82
dispositivos de poder. Por serem, essas forças, descontínuas e dispersas é que se abrem
brechas, por onde emerge a novidade e torna possível romper com a continuidade,
produzindo-se assim as singularidades históricas (FOUCAULT, 2017a).
Pelo fato de as formas de dominação não serem monolíticas, mas políticas, o poder
também não pode estar em contraposição ao saber, mas ao contrário, saber e poder
desempenham uma relação de dependência e de circularidade. Em sua relação política, o
poder produz saber o que, por sua vez, torna possível a construção de mecanismos por meio
dos quais o próprio poder circula. Ou seja, como já mencionado no Capítulo II deste estudo,
para Foucault, saber e poder formam uma relação de mútua imbricação e interdependência.
No interior dessa relação agonística de forças, não há como o poder ser simplesmente algo
opressor, pois ele não se constitui numa coisa, num objeto que alguém possui e, por possuir,
domina outros. O poder é algo que circula, que se expressa em uma objetividade produtora e
não repressora, incitando, suscitando e produzindo saberes e subjetividades (DREYFUS;
RABINOW, 2013)
Sendo assim, pelo fato de nos utilizarmos de algumas das ferramentas foucaultianas de
análise, não interessará estabelecer as causas que levaram ao estabelecimento da Educação do
Campo como política pública nacional. O que importa para nossa pesquisa, nesse primeiro
momento é identificar as condições que possibilitaram a sua emergência enquanto discurso
político e, como tal, investido de relações de saber e poder, necessárias à produção de
determinadas subjetividades. Em outros termos, o que nos interessa inicialmente não é a busca
por uma origem da Educação do Campo no Brasil, mas estudar a sua proveniência, assim
como Nietzsche entende em sua genealogia e como nos indica Marton (2001, p. 203-204):
pouco a pouco submetida aos ditames de uma economia política governamentalizada. Para
tanto, iniciamos pela abordagem da proveniência da Educação do Campo no Brasil, isto é,
pela multiplicidade dos acontecimentos do contexto histórico, político e econômico, que
marcaram as décadas de 1980 e 1990 e que possibilitaram a emergência desse discurso.
que pode ser comprovado sem maiores dificuldades, por meio da análise das políticas
públicas das décadas de 1960 e 1970.
Os mesmos autores acima mencionados são unânimes em defender que o surgimento
da Educação do Campo ocorreu como resultado de um longo processo histórico de luta e
resistência popular, iniciada ainda na década de 1930, face à insuficiência das políticas
públicas, bem como à insatisfação quanto aos projetos de educação rural, que se
desenvolveram após esse período e que acabaram por subordinar a formação humana aos
interesses econômicos capitalistas. Do mesmo modo, Molina, Montenegro e Oliveira (2010),
assim como Arroyo, Caldart e Molina (2011), como também Pires (2012) argumentam que,
por não haver um projeto político e pedagógico específico para a educação da população
rural, o que se procedia na política vigente era uma espécie de transposição de modelo
educacional urbano, para o meio rural.
A primeira questão que gostaríamos de levantar é que somente no final da década de
1990, e não em outra época, que o discurso sobre a Educação do Campo surgiu no cenário
político educacional brasileiro. Inicialmente, gostaríamos de considerar que essa irrupção
discursiva, por meio da qual se cria o objeto Educação do Campo, de maneira alguma ocorreu
aleatoriamente, acidental ou como algo que deveria, necessariamente, acontecer exatamente
nesse momento histórico. Será necessário fazermos um breve exame crítico das condições
políticas e econômicas do período, para tentarmos identificar outros acontecimentos
importantes que possibilitaram a abertura das fissuras ou das brechas acima mencionadas, em
meio às quais foi possível o surgimento, inicialmente de um discurso sobre o objeto em
questão, e, posteriormente, possibilitou a sua emergência enquanto política pública e prática
educacional.
Para tanto, antes de avançarmos, faz-se necessário darmos um passo atrás, para
considerarmos o momento político vivido em meados da década de 1980, na qual o país
passou por um processo de mudança ou ruptura na forma de governo e no realinhamento
econômico. Após um período de aproximadamente 20 anos de governos militares, vivenciou-
se politicamente a esperança pelo estabelecimento definitivo de um regime democrático em
nosso país, por meio do qual o próprio povo pudesse determinar os rumos que a nação
tomaria a partir de então. Podemos dizer que a esperança democrática da década de 1980
nasceu no interior de uma razão de Estado, cuja principal característica estaria calcada na sua
independência jurídica e na manutenção de um princípio de legitimidade (FOUCAULT
(2008b).
85
reivindicando uma educação de base para toda a população; mas que, para os povos
politicamente marginalizados, fosse diferenciada e que correspondesse aos seus anseios e
necessidades objetivas. Uma educação que deveria ser pensada a partir das reais necessidades
da população que habita o campo e que, sobretudo, atendesse a suas especificidades, ou seja,
uma educação especificamente pensada e destinada aos sujeitos residentes nos espaços
legalmente demarcados como rurais.
Essa foi a principal justificativa, encontrada pelo Movimento, para o engajamento
nessa nova frente de batalha política, que se configurava na construção de um modelo
educacional que visava atender às demandas específicas de sua população. Para tanto,
acreditava-se que esse novo modelo educacional precisava ser gestado no seu local próprio,
ou seja, devia ser pensado pelo próprio povo do campo, de forma a se destinar,
exclusivamente, ao povo que habita e vive no e do campo (CALDART, 2011a).
Tratou-se de elaborar uma proposta educacional que se declarava inovadora e contra-
hegemônica, por meio da qual se pretendia oferecer aos habitantes do campo muito mais do
que a sua mera instrumentalização, para melhor explorar economicamente os recursos
naturais, mas construir um espaço de vida digna, na qual se pudesse pensar numa
transformação geral da sociedade. O discurso sobre a construção e implementação dessa
proposta, visava não somente desenvolver habilidades e saberes que propiciassem a utilização
consciente dos recursos naturais, objetivando o próprio bem-estar desse homem que vivia no
campo e do campo, mas, sobretudo, a politização do sujeito camponês, a fim de transformar a
sociedade a partir da escola. Sendo assim, seus idealizadores rejeitaram que sua proposta
simplesmente fosse enquadrada entre os preceitos legais vigentes, que serviam como
diretrizes para a educação rural (CALDART et al., 2012; GHEDIN, 2012).
De acordo com esses mesmos autores, a educação rural, que até então era oferecida
aos moradores do campo, constituía-se numa política educacional que desconsiderava a
história e a cultura de seus sujeitos, pois assegurava apenas o desenvolvimento de práticas
educativas homogeneizantes e adaptadas. Tais práticas se baseavam num modelo único e
geral de educação, gestado inicialmente para atender aos interesses e demandas capitalistas de
uma população estritamente urbana. A partir desse modelo educacional, considerado
urbanocêntrico, eram simplesmente instituídas pequenas adaptações, de modo que a
possibilitar a repetição da educação urbana, no contexto rural. Esse modo de educar, de
acordo com os seus opositores, deixava de considerar a história de vida e a enorme
diversidade de sujeitos e de culturas existentes no meio rural, como, posteriormente seria
incluída na categoria campo, os povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, dentre outros.
89
23
A praxis na “[...] terminologia marxista designa o conjunto de relações de produção e trabalho, que constituem
a estrutura social, e a ação transformadora que a revolução deve exercer sobre tais relações” (ABBAGNANO,
2007).
24
Essa é uma expressão latina que designa o estado atual em que as coisas se encontram e, dessa maneira, a
manutenção do status quo significa uma intenção de não se alterar o modo atual como está organizada a política,
a economia e a sociedade como um toro.
90
25
A referência à década de 1980 como uma década perdida é decorrente de uma análise estritamente econômica,
tendo em vista as baixas taxas de crescimento do PIB, uma aceleração desenfreada na inflação, a redução de
empregos formais, a queda no poder de compra, dentre outros indicadores. No campo político, a democracia
seria um dos ganhos mais importantes da época, uma vez que diversos países da América Latina encontraram
uma saída democrática para a superação de seus regimes ditatoriais (MALLMANN, M. I. Os ganhos da década
perdida: democracia e diplomacia regional na América Latina. Porto Alegre: Edipucrs, 2008).
92
26
De acordo com Tavares (2011), numa acepção simples, o termo substituição de importações designa a
diminuição ou desaparecimento de determinadas importações, substituindo-as pela produção interna. Essa autora
assegura que, a economia brasileira foi marcada por três momentos, nos quais se desenvolveu o processo de
substituição das importações: o primeiro período se constituiu após a Grande Depressão de 1929, em que se
aproveitou mais intensamente a capacidade de produção instalada; o segundo se estabeleceu durante a Segunda
Guerra Mundial que, pelas dificuldades de abastecimento com suprimentos do exterior, o governo decidiu
investir na indústria pesada (siderurgia); o terceiro e último se desenvolveu no período de 1956 a 1961, com o
aumento da participação direta e indireta do governo nos investimentos internos e a entrada de capital
estrangeiro. TAVARES, M. C. Desenvolvimento e Igualdade. Organizadores: Vanessa Petrell Corrêa e Mônica
Simioni. Ed esp. Rio de Janeiro: IPEA, 2011.
93
27
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura foi criada em 16 de outubro de 1945,
conta com 191 países-membros, cuja sede está localizada em Roma na Itália, “[...] tem dado especial atenção ao
desenvolvimento das áreas rurais, onde vivem 70% das populações de baixa renda e que ainda passam fome [...]
trabalha no combate à fome e à pobreza, promove o desenvolvimento agrícola, a melhoria da nutrição, a busca
da segurança alimentar e o acesso de todas as pessoas, em todos os momentos, aos alimentos necessários para
uma vida ativa e saudável”. ONU/FAO. Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/fao/>. Acesso em: 14 mar 2019.
94
compunham o Sistema Nações Unidas (ONU), pois trabalhavam em conjunto com aquele
organismo financeiro, alinhando-se aos objetivos para propiciar o desenvolvimento
econômico dos países do chamado Terceiro Mundo. Assim, o BM e o FMI atuaram como
órgãos de fomento dos projetos de desenvolvimento e de determinação das políticas de ajuste
fiscal e de reestruturação administrativa dos países, por meio de regras e de condicionalidades
para a concessão de empréstimos e financiamentos. Em outros temos, o BM e o FMI se
constituíram nos grandes investidores financeiros do projeto de desenvolvimento econômico
global, tendo a educação como um meio para a difusão de seus ideais neoliberais
(MANAREZE; LARA, 2012; CASAGRANDE; PEREIRA; SAGRILLO, 2014).
Nesse processo de generalização do desenvolvimento econômico global, as agências
da ONU participam como órgãos técnico/científicos responsáveis pelo estudo da situação
socioeconômica de cada país e pela apresentação de sugestões estratégicas necessárias para a
reestruturação interna. Dentre as agências da ONU participantes dos debates no campo
educacional e responsáveis pelo estudo e pela orientação das políticas públicas educacionais
brasileiras, que foram definidas e postas em execução a partir da década de 1990, destacamos
o UNICEF28, a CEPAL29 e a UNESCO30.
Essas três agências vêm, desde a assinatura da Declaração Universal dos Direitos
Humanos em 1948, atuando como entidades vinculadas à ONU na prestação de apoio
técnico/científico e financeiro aos países membros, em questões relacionadas à educação. Por
meio de sua biopolítica, essas agências se comprometem com o desenvolvimento de
diferentes dimensões da vida da população mundial, estimulando a criação de políticas que
visam à melhoria de elementos diversos do capital humano de cada indivíduo. Nesse sentido,
o UNICEF atua nos processos de enfrentamento de problemas sociais relacionados às crianças
e adolescentes, influenciando na criação de políticas públicas relacionadas à imunização e
aleitamento materno, no combate ao trabalho e violência infantil, assim como à inclusão
28
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) tem como atribuição, “defender e proteger os direitos
de crianças e adolescentes, ajudar a atender suas necessidades básicas e criar oportunidades para que alcancem
seu pleno potencial”. Sobre o UNICEF. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/sobre-o-unicef>. Acesso
em: 14 abr 2019.
29
A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) é uma comissão regional das Nações Unidas,
com sede em Santiago, no Chile, criada “[...] para contribuir com o desenvolvimento econômico da América
Latina, coordenar ações encaminhadas à sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e
com as outras nações do mundo”. ONU/CEPAL. Comissão Econômica para a América Latina e Caribe.
Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/cepal-0>. Acesso em: 15 abr 2019.
30
A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) é uma agência da
especializada das Nações Unidas (ONU), que foi criada logo após o término da II Guerra Mundial, com o
objetivo de contribuir com a paz e a segurança mundial, por meio do patrocínio de projetos nas áreas de
educação, ciências naturais, ciências sociais e humanas, assim como de comunicação e informação. A UNESCO
no mundo e no Brasil. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/>. Acesso em: 12 ago 2019.
96
social e o acesso universal à educação (UNICEF, 2019). A atuação da CEPAL visa à criação
de políticas nacionais voltadas ao desenvolvimento social, que se define pelo progresso
econômico dos países membros, considerando que a educação tem um importante papel na
formação dos recursos humanos e no desempenho da cidadania autônoma (MANAREZE;
LARA, 2012).
A UNESCO, por sua vez, é a agência da ONU que, desde sua fundação, constitui-se
numa referência mundial para os debates de assuntos relacionados à educação e à
democratização da escola pública. De acordo com Noma (2010), a UNESCO é uma agência
especializada em educação e tem assumido uma importância fundamental na orientação das
políticas educacionais da América Latina e do Caribe. De acordo com relatório de 1988, da
própria agência:
31
A saída dos EUA da UNESCO, com a concomitante retirada de seus custeios àquela organização, ocorreu,
fundamentalmente, pelo fato de que aquele país não mais se interessava pelas políticas desenvolvimentistas
professadas pela ONU, passando a fomentar políticas econômicas de globalização, mais alinhadas com os
propósitos do Banco Mundial (LEHER, 1998).
32
O Projeto Principal de Educação foi proposto durante a Conferência Regional de Ministros da Educação e
Ministros do Planejamento Econômico dos países latinoamericanos, realizada no México, em dezembro de 1979.
33
O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) é uma agência internacional da ONU, criada em 1969
para tratar de assuntos relacionados às questões de desenvolvimento populacional. UNFPA. Missão e Objetivos.
Disponível em: < https://brazil.unfpa.org/pt-br/missao-e-objetivos>. Acesso em: 15 abr. 2020.
98
34
O FUNDEF foi implantado a partir da Emenda Constitucional nº 14, de 1996, mas somente entrou em vigor
em 1998, por um prazo de 10 anos, sendo seus recursos captados das receitas de impostos e das transferências
dos estados aos municípios (e do Distrito Federal ao município de Brasília), com uma pequena parcela de
contribuição por parte da UNIÃO. Em 2006 expirou seu prazo de funcionamento legal, sendo substituído pelo
FUNDEB, cujo prazo de funcionamento foi ampliado para 14 anos, tendo a sua prescrição prevista para 2020. A
partir da criação do FUNDEB, algumas modificações significativas foram realizadas, como: a inclusão do
Ensino Médio e da Educação Infantil como beneficiários do Fundo; uma parcela de seus recursos passou a ser
destinada à valorização do magistério; houve um aumento na cooperação da União, para a formação dos recursos
financeiros do Fundo, passando os recursos federais a compor uma parcela que correspondia a menos de 1% na
época do FUNDEF, para o equivalente a 10%.
100
35
O Instituto Nacional de Pedagogia (INEP) foi criado em 1937 com o objetivo de realizar estudos nacionais
para identificar problemas do ensino e propor políticas públicas, tendo em vista a crescente industrialização do
país e a demanda por trabalhadores preparados. Em 1972 o INEP passou a se denominar Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, tornou-se independente do Ministério da Educação (MEC) e passou a ser um
órgão de assessoramento direto da Presidência da República. No ano de 1976 o INEP foi transferido para
Brasília e em 1979 foi novamente incorporado ao MEC. Em 2001 o Senado Federal aprovou a inclusão do nome
de Anísio Teixeira na sua denominação oficial e passou a se chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2019).
101
A partir da década de 1990, o campo educacional foi movimentado por uma série de
reformas educacionais implantadas pelo Ministério da Educação (MEC) que, de acordo com
Júnior e Maués (2014), foram influenciadas pelos diagnósticos realizados pela UNESCO e
pelas orientações propostas pelo Banco Mundial. As reformas educacionais propostas aos
países periféricos, no caso do Brasil postas em execução pelo MEC, enfatizavam a atenção
com educação básica, a descentralização da gestão e a centralização da avaliação
(ALTMANN, 2002; NOMA, 2010).
Há que se destacar que, desde o início da década de 1980, tanto a CEPAL como a
UNESCO delinearam uma agenda para a educação na América Latina e Caribe, compromisso
que se materializou no PPE, elaborado por meio de um consenso entre aquelas duas agências
e os representantes dos governos da região. Por meio desse projeto, foram traçados os
princípios e as estratégias para o desenvolvimento das políticas educativas na região, no
período compreendido entre os anos de 1981 a 2000. Durante a vigência desse projeto foram
realizadas sete reuniões (PROMEDLAC 36) com a participação dos Ministros da Educação dos
países membros, nas quais foram construídos os consensos em torno das principais ideias e
propostas para a educação no período. A primeira reunião aconteceu no México (1984), a
segunda na Colômbia (1987), a terceira na Guatemala (1989), a quarta no Peru (1991), a
quinta no Chile (1993), a sexta na Jamaica em (1996) e a sétima e última, na Bolívia (2001)
(PAIVA; ARAÚJO, 2008; NOMA, 2010).
Paiva e Araújo (2008) fizeram uma análise dos principais assuntos tratados em cada
uma das sete PROMEDLAC, realizadas durante a vigência do PPE, apontando ajustes e
direcionamentos das reformas educacionais realizadas no continente nesse período.
Inicialmente esses autores dividem os debates do PPE em duas etapas, sendo que a primeira
etapa coincide com a primeira PROMEDLAC e a segunda etapa inicia com a IV reunião,
realizada 10 anos após a implantação do projeto.
Por conseguinte, a primeira fase iniciou com a implantação do projeto em 1991,
quando foram estabelecidos três eixos estratégicos ou frentes de combate para a educação no
continente: a universalização da educação básica; a eliminação – ou, para utilizar o mesmo
termo empregado no projeto, a erradicação – do analfabetismo até o fim do século XX; e a
melhoria na qualidade e na eficiência do sistema educacional dos países que participaram
36
PROMEDLAC foi a sigla adotada para as Reuniões do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto
Principal de Educação na América Latina e Caribe, realizadas no intuito de discutir o PPE e traçar os
redirecionamentos necessários ao cumprimento do compromisso de Dakar: Todos pela Educação.
102
37
Optamos aqui em utilizar o termo entre aspas, para acentuar o caráter estratégico utilizado pelas agências
técnicas, vinculando a participação dos países no projeto à concessão de financiamentos pelo BM e aos ajustes
estruturais que lhes seriam propostos a seguir. Uma estratégia política de dominação, de condução das vontades
coletivas, disfarçada de ação humanitária, na qual se propõe uma ajuda para o desenvolvimento da região e dos
países que a constitui.
103
Verifica-se, ainda, a busca pelo estabelecimento de alianças entre o Estado e organismos não
governamentais, assim como com as famílias e a comunidade, com a finalidade tanto de
compartilhar as atribuições administrativas e as responsabilidades pela gestão do sistema
educacional, como de buscar formas alternativas de captação de recursos materiais,
financeiros e de pessoal, para operacionalizar as reformas pretendidas (PAIVA; ARAÚJO,
2008; NOMA, 2010).
A Declaração de Quito estabeleceu um marco consensual entre os países latino-
americanos e Caribe, sobre a necessidade de reformas e de investimentos em políticas
públicas, cujo objetivo seria o de melhorar a qualidade da educação. Com essa mudança
estratégica no regime de verdades, na qual a expansão do sistema educacional passa a ser
atrelado à melhoria da gestão dos recursos disponíveis e, em meados da década de 1990, o
estabelecimento de todo um aparato jurídico, que se voltou para a construção de novas
relações pedagógicas e institucionais.
Durante a IV e a V PROMEDLAC, realizadas em 1991 e 1993, a atenção se voltou
para a formação e a profissionalização docente, ao enfatizar a necessidade de melhoria das
condições de trabalho dos professores, assim como de se integrar a formação inicial e em
serviço, no sentido de assegurar espaços de trocas e de análise sobre a prática docente. Na VI
PROMEDLAC, realizada na Jamaica, houve a reafirmação dos compromissos assumidos com
o PPE, isso por parte dos governos participantes. Em destaque a necessidade de adequação do
projeto ao novo contexto social, educacional, político, econômico, tecnológico e cultural da
região. Para esse alinhamento contextual, nessa reunião se traçou metas para a universalização
da educação básica, para a alfabetização funcional e para o investimento na educação
permanente, ou seja, na educação ao longo da vida (PAIVA; ARAÚJO, 2008).
Em 2002, com o término da vigência do PPE, foi lançado em Cuba, o Projeto Regional
de Educação para a América Latina e Caribe (PRELAC 38), com vigência prevista para o
período compreendido entre 2002 e 2017 (PAIVA; ARAÚJO, 2008; NOMA, 2010). Alinhado
com as metas do compromisso de Dakar: Educação para Todos, nesse novo projeto regional
destinado à educação nos países da America Latina e do Caribe, ficaram estabelecidas cinco
estratégias, ou focos principais de ações. Foram essas estratégias que orientaram o projeto e se
38
O Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (PRELAC), juntamente com o seu modelo
de acompanhamento, foram aprovados na Primeira Reunião Intergovernamental realizada na cidade de Havana,
Cuba, entre os dias 14 e 16 de novembro de 2002, pelos ministros da Educação e os representantes de 34 países.
Todos assinaram a Declaração de Havana, que ratifica a vontade política dos países e o apoio ao Projeto, cujo
horizonte de realização será de 15 anos (UNESCO, 2004).
104
39
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi desenvolvido no final da década de 1980 e aplicado
inicialmente em 1990, em escala nacional, nas escolas da rede pública e privada, urbanas e rurais de todo o
Brasil, com o objetivo de conhecer o sistema educacional em profundidade. A partir de 1995 o SAEB sofreu
uma reestruturação metodológica, passando a ser composto por duas avaliações complementares: o ANEB e o
ANRESC, que permitem uma comparação dos desempenhos ao longo dos anos de escolarização. Em 2013 foi
incorporada ao SAEB a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), cujos objetivos é a aferição dos níveis de
alfabetização e letramento em português e matemática (IBGE, 2019b; MEC/INEP, 2013).
40
A Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), também conhecida como Provinha Brasil, é uma
avaliação bianual, que envolve alunos do 5º e do 9º ano do Ensino Fundamental, de escolas públicas que
107
avaliações que têm por objetivo diagnosticar a qualidade da Educação Básica, viabilizando os
indicadores estatísticos para a análise das competências nas disciplinas de português e
matemática, de alunos da primeira e da segunda etapa do Ensino Fundamental (ANRESC) e
do Ensino Médio (SAEB), assim como sobre os saberes desses estudantes em ciências da
natureza e ciências humanas (IBGE, 2019b).
Tal sistema de avaliação se tornou necessário porque, na perspectiva dos organismos
internacionais de financiamento, a educação básica é vista como um fator positivo para o
crescimento econômico de um país. A ênfase do processo educativo recai sobre a Educação
Básica, principalmente sobre a alfabetização e os anos iniciais do Ensino Fundamental, por
uma questão de economia e de eficiência na aplicação dos recursos financeiros. Por meio de
cálculos de regressão estatística pode-se comprovar que, o investimento nos níveis
educacionais elementares propicia um incremento de renda proporcionalmente maior aos
indivíduos, quando comparado ao mesmo montante financeiro, investido na formação de
capital humano em níveis educacionais mais elevados (JIMENEZ; SEGUNDO, 2007).
Outro mecanismo internacional, que centralizou de avaliação e controle do rendimento
escolar, constituiu-se no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA41), que
passou a ser realizado a partir do ano 2000, sob a coordenação da OCDE, controlando os
saberes e os discursos sobre o desempenho educacional no Ensino Médio. O PISA se
configura como um estudo comparativo internacional, realizado a cada três anos e que
possibilita que cada país avalie o desempenho de seus estudantes, na faixa etária dos 15 anos.
Por meio dessa ferramenta estatística, a OCDE avalia os conhecimentos e habilidades dos
estudantes de seus países membros, nos domínios relacionados à leitura, à matemática e às
ciências, comparando os resultados entre os países e estabelecendo um ranking de eficiência
educacional (MEC, 2019).
Mediante o uso de ferramentas estatísticas, esses mecanismos de avaliação,
comparação e controle dos índices educacionais, estabelecem uma lista, que contém a
classificação ordenada de cada um dos países, quanto ao rendimento escolar dos alunos. Esses
índices e classificações fornecem os dados que orientam a criação e a implantação de políticas
públicas em cada um dos países membros. Essas políticas precisam estar alinhadas aos
princípios concorrenciais, de forma a incentivar que cada país busque a melhoria constante
nos resultados educacionais de sua população. Há uma concorrência constante entre os países,
possuam mais de 20 alunos matriculados nas séries avaliadas. Essa avaliação foi criada no ano de 2005 para, em
conjunto com o SAEB, constituírem os índices do IDEB (MEC/INEP, 2013).
41
O Programme for International Student Assessment (PISA), foi traduzido para o português como Programa
Internacional de avaliação de Estudantes, é realizado trienalmente pela OCDE,
108
poder/saber articulada, que cria consensos universais por meio dos quais se exibe uma espécie
de receituário a ser seguido pelos diversos países. Tratando-se de sugestões para ajustes
estruturais, que os países poderiam voluntariamente aderir ou não, essas agências conferiam
uma face mais democrática e humanizada ao pacto multilateral, que dificilmente teria como
ser questionado, por conta do seu embasamento discursivo em verdades cientificamente
construídas (NOMA, 2010).
Como se pode verificar, a partir do processo de redemocratização do Brasil, ocorrido
na década de 1980, estabeleceram-se as condições suficientes para o ressurgimento dos
movimentos sociais que, mediante negociações, alcançaram importantes conquistas legais,
como a inserção dos direitos sociais à educação, na Constituição de 1988, e a concomitante
regulamentação desses direitos na LDB (Lei 9.396).
Constatou-se, também que, a abertura econômica ao capital internacional trouxe
impactos sociais que puderam ser sentidos em diversos setores, como o exemplo da maior
participação da agricultura familiar no abastecimento interno de nosso país e a valorização do
trabalho cooperativo, tornando urgente o investimento em formação nessa área do setor
produtivo. Como contraponto, observou-se que o endividamento, nas décadas anteriores, e a
crise econômica, que se instalou nos países latino-americanos nesse período, comprometeram
o pagamento das dívidas com os credores externos. Fato esse que abriu um campo de
possibilidades estratégicas, o que permitiu aos credores estabelecerem regras e condições para
o refinanciamento da dívida, assim como para a concessão de novos empréstimos, necessários
para que esses países superassem a crise econômica.
É nesse ponto que surgem as propostas de reformas administrativas, que propiciaram
certo alinhamento entre os interesses econômicos desses credores e as necessidades de
negociação das dívidas, por parte dos países em desenvolvimento, que se encontravam em
débito com esses organismos fiduciários. A contrapartida exigida, para o refinanciamento da
dívida e a concessão de novos empréstimos, foi a realização de reformas estruturais e setoriais
por parte dos países financiados, a fim de melhorarem a qualidade e a eficiência na aplicação
dos recursos financeiros concedidos a título de empréstimo. Muitos setores da sociedade
vivenciaram os efeitos dessas reformas, que passaram a influenciar diretamente na formulação
de políticas públicas dos países devedores.
Na área educacional, porém, a principal preocupação do BM e das agências técnicas
da ONU passou a ser a reestruturação da educação básica, por meio de mudanças na forma de
seu financiamento, alterações nos currículos e instituição de um sistema centralizado de
avaliação. Uma etapa educacional, considerada pelas agências financiadoras com responsável
111
que foi apresentado no III Fórum do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras,
realizado nos dias 6 e 7 de novembro de 1997. O projeto inicial foi aprovado pelos reitores
das universidades participantes daquele evento e encaminhado para avaliação do Ministério
Extraordinário de Política Fundiária, tendo em vista que o projeto se constituía numa proposta
a ser desenvolvida nos assentamentos da Reforma Agrária, que eram consideradas áreas de
responsabilidade Federal.
Desse modo, os proponentes do projeto identificaram certa incompatibilidade jurídica,
para que o mesmo fosse recepcionado pelo MEC e isso poderia ocasionar alguns entraves
burocráticos, tendo em vista que a responsabilidade pelas áreas de assentamento era da União,
mas a operacionalização da educação, sobretudo a educação básica, constituía-se numa
atribuição dos Estados e Municípios. Sendo assim, a estratégia encontrada para a implantação
dessa proposta, foi por meio do seu financiamento via Ministério Extraordinário de Política
Fundiária, que no ano seguinte, criou o PRONERA42, cujo objetivo era o de:
42
O Ministério Extraordinário da Política Fundiária, por meio da Portaria nº 10/98, de16 de abril de 1998, criou
o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), vinculando ao Gabinete do Ministro e
aprovou o seu Manual de Operações.
116
Esta Conferência nos mostrou que somente é possível trabalhar por uma
Educação Básica do Campo vinculada ao processo de construção de um
Projeto Popular para o Brasil, que inclui necessariamente um novo projeto
de desenvolvimento para o campo, e a garantia de que todo o povo tenha
acesso à educação (CNBB; MST; UNICEF; UNB, 1998).
Por meio desse jogo enunciativo, embora aparente ser um discurso eminentemente
revolucionário, são criadas as condições estratégicas necessárias para a inclusão discursiva de
toda a população camponesa no interior do projeto. É preciso lembrar que esse movimento de
inclusão de todos, no projeto inicial, traz consigo o germe do poder pastoral, característico da
governamentalidade e das necessidades de inclusão que essa razão governamental possui, de
modo a assegurar a salvação de todo o rebanho (FOUCAULT, 2008a).
Como estratégia política revolucionária, pode-se perceber que não se tratava de
simplesmente propor um projeto adaptado e/ou subordinado ao modelo de educação rural até
então vigente, mas de conceber um novo projeto, um programa educacional concatenado com
um projeto popular de maior envergadura, que era o desenvolvimento nacional por meio de
uma iniciativa popular. Esse novo projeto, todavia, caracteriza-se como um enunciado que
adquiriu outras significações, quando analisadas de uma perspectiva da posição-sujeito
representante do discurso técnico das agências da ONU. Ao que tudo indica, sob uma
perspectiva da UNESCO, esse novo, que adjetiva a substancialidade do projeto educacional
pretendido, parece indicar o ponto de apoio para a formação de um tipo específico de
sociedade e de sujeito, diferente daquele pretendido pelo discurso revolucionário.
Esse novo, quando analisado pela perspectiva da economia política, própria da
governamentalidade neoliberal, indica uma performatividade do discurso das agências
mencionadas, cujo propósito era o de incluir toda a população no interior de uma nova razão
de governo. Sob o desígnio da evidência de uma sociedade global, da qual não se podia
escapar e a que todos deviam se sujeitar, há no discurso da UNESCO, que exibia esse novo,
que promovia a inclusão, um modelo de sociedade-empresarial, no interior da qual devia
também habitar um novo homem, o homo oeconomicus, isto é, o sujeito-empresa de si mesmo
(DARDOT; LAVAL, 2016).
Dessa maneira, esse novo se conectou com a noção de desenvolvimento, sobretudo o
desenvolvimento econômico pretendido para as áreas rurais, como forma de incluir toda a
população no projeto global de desenvolvimento. No relatório dos dez anos de implantação do
Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe, o discurso técnico dos
representantes da UNESCO (1998) deixou claro que somente por meio da educação é que
seria possível garantir a equidade de condições aos povos desassistidos, de forma a lhes
garantir as condições necessárias para que esse novo homem pudesse competir e se
desenvolver no mercado global.
O que as agências multilaterais constroem, a partir dos dados estatísticos, são seleções
dentre as várias representações possíveis da organização escolar, do sistema educacional
122
como um todo, da escola e do professor em particular, a fim de produzirem esse novo homem.
Um novo sujeito, cuja performance se alinha às novas exigências do mundo do trabalho,
caracterizada pela flexibilidade, pela multifuncionalidade e pela eficiência (BALL, 2010;
DARDOT; LAVAL, 2016).
De uma posição-sujeito própria dos movimentos sociais e sindicais, a ideia de uma
Educação Básica do Campo vinculada ao processo de construção de um Projeto Popular
para o Brasil articulou-se com a esperança da participação popular, na definição política dos
rumos que o país tomou, a partir do “processo de redemocratização” ocorrido ainda na década
de 1980, que culminou com a promulgação da Constituição de 1988. Pois, como já apontamos
anteriormente, foi somente a partir dessa “abertura política” que os movimentos sociais e
sindicais ressurgiram no cenário político nacional, ao cooperarem com a definição dos direitos
e garantias expressos no texto Constitucional. Com base nesses mesmos direitos e garantias,
foi que se vislumbrou a possibilidade de um avanço, como os planos revolucionários, que
redefiniriam a política nacional, de forma a construir, assim, o tão almejado projeto popular
para o Brasil.
Essa proposta, de um projeto popular de desenvolvimento, estava alinhada aos ideais
marxistas de conquista do poder político por parte da classe trabalhadora, a partir do momento
em que essa classe se apoderasse dos meios de produção econômica, sendo que a posse da
terra consistiria num primeiro passo já conquistado pelos movimentos sociais. Processo esse
de conquista do poder que necessitava passar por uma tomada de consciência por parte do
proletariado sobre a sua situação de alienação, tanto política como material. Uma tomada de
consciência que levaria o proletariado à revolução, instituindo um novo tipo de ditadura, não
mais a do capital sobre o trabalhador, mas uma ditadura popular, uma ditadura do
proletariado. Para tanto, seria necessário propiciar, inicialmente, a desalienação cultural do
povo (no caso em questão, do povo do campo) e a sua concomitante politização, para garantir
não somente o acesso aos meios de produção (conquista essa que já estava em curso, com a
redistribuição de terras pela reforma agrária), mas também, e principalmente, à principal
ferramenta, talvez a única, de tomada de consciência do próprio estado de alienação do
indivíduo: a educação.
Sendo assim, a estratégia revolucionária desse novo projeto de desenvolvimento para o
campo estava atravessada por dois processos gerais de desalienação do camponês, um
corresponde ao eixo do trabalho no campo e o outro concernente ao eixo da própria educação
no campo. Os movimentos sociais e sindicais haviam colocado em execução a estratégia
política de desalienação das forças produtivas que estava em curso com as redistribuições de
123
terra pela reforma agrária, meio que garantia a posse dos meios de produção que, no caso do
camponês considerado no interior dos movimentos sociais e sindicais, configurava-se como o
direito à posse da terra produtiva, sobretudo para a produção agrícola. Faltava-lhes operar a
desalienação do eixo cultural, que se constituiria na garantia de acesso, por parte de toda a
população do campo43 aos meios de produção e de reprodução cultural, cujo lócus
privilegiado se constitui na escola.
De outro modo, esse projeto de inclusão, por meio do qual se buscou a garantia de
que todo o povo tenha acesso à educação, demonstra um alinhamento estratégico com uma
proposta de educação que já vinha sendo posta em prática pela UNESCO, na América Latina
e no Caribe, desde o final da década de 1980, por meio do PPE, que mantinha um
alinhamento com os objetivos da Conferência de Jomtien. Na introdução do relatório final,
que tratou sobre os 10 anos de execução desse projeto educacional da UNESCO para a
América Latina e Caribe, e que é contemporâneo ao relatório da I Conferência Nacional,
Mayor (1998, p. 7) deixou evidente que, o desafio da “[...] generalização do ensino consiste
em proporcionar uma educação de qualidade para todos, ao longo de toda a vida”, era
encontrar uma forma de “incluir os excluídos e alcançar os inalcançáveis”.
Desse modo, assim como advertem Veiga-Neto e Lopes (2007) sobre as políticas de
inclusão educacional, a estratégia de inclusão, defendida pelas agências multilaterais,
constituiu-se num projeto político de maior envergadura, instalado no interior do dispositivo
biopolítico da pedagogia, por meio do qual se buscou incorporar o projeto da Educação do
Campo e a população do campo como um todo no domínio da razão governamental. Foi isso
que se pretendeu com o discurso que queria “incluir aos excluídos e alcançar os
inalcançáveis”. Entretanto, há que se destacar que o domínio governamental da biopolítica se
diferencia do processo de dominação concebido pelo materialismo histórico, pelo fato de que
a nova razão de governo necessita de um polo de liberdade, sobre o qual exerce o controle e a
condução das condutas e, muito mais do que reprimir, produz (FOUCAULT, 2014c).
Prosseguindo a análise do discurso contido no texto do Relatório da I Conferência
Nacional e precedendo ainda os dez compromissos e desafios, encontramos a seguinte
assertiva: Nesta perspectiva, nós participantes desta conferência, assumimos, pessoal e
coletivamente, os seguintes compromissos e desafios. Destacamos, nesse excerto, o pronome
43
É preciso lembrar que, no discurso dos movimentos sociais e sindicais do campo, fica evidente que até o
momento da realização da I Conferência por uma Educação Básica do Campo, como população do campo eram
consideradas apenas as famílias dos agricultores assentamentos pela reforma agrária. Foi somente com o Parecer
nº 36, do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 4 de dezembro de 2001, que a noção de população do
campo foi ampliada, incluindo outros espaços, diferentes dos assentamentos, inclusão essa que discutiremos
mais adiante neste estudo.
124
nós, que designa um sujeito coletivo, ou seja, o conjunto das posições-sujeito que se forma no
interior das instituições participantes do evento: a CNBB, o MST, o UNICEF, a UNESCO e a
UNB. O destaque desse pronome nós, no interior do discurso dessa Conferência, faz-se
necessário porque, será justamente sobre esse ponto específico do discurso, que se verá
produzir todo o consenso sobre a Educação do Campo. Esse coletivo, representado pelo
pronome nós, constituir-se-á num mecanismo inclusivo, numa prática de captura da diferença,
por meio da qual se abstrairão todas as particularidades, a heterogeneidade e a imanência da
disputa política interna ao próprio discurso. Esse nós, presente no preâmbulo desse discurso,
possibilita, ainda, operar uma redução nos múltiplos significados possíveis, que se fazem
presentes na raridade de seus enunciados. Raridade essa que permite que um mesmo
enunciado seja utilizado tanto numa formação discursiva caracteristicamente revolucionária,
como no interior de uma formação discursiva essencialmente neoliberal (BENEVIDES,
2012).
O sujeito coletivo representado pelo pronome nós, do preâmbulo do Relatório da I
Conferência Nacional, enuncia publicamente uma demanda política em nome de um grupo,
em nome do povo do campo. Essa enunciação de uma demanda em nome de um grupo
Conein (2016) denomina de “enunciados de porta-voz”, cuja função foi a de anunciar
previamente um acontecimento político, ou de fazer circular enunciados performativos
(BALL, 2005; 2010). Desse modo, “a formulação de uma demanda pública aparece então
como um procedimento utilizado para atribuir existência política a um acontecimento” e que,
portanto,
quer dizer o jeito de conduzir a formação de um ser humano” (CALDART, 2011a, p. 98).
Esse aspecto formativo da pedagogia contemporânea, de que a autora menciona como o jeito
de conduzir a formação de um ser humano, constitui-se numa extensão ou numa continuidade
do modelo cristão de poder. Trata-se de uma transposição do modelo de poder pastoral, para o
interior da razão governamental, por meio do qual o governo dos homens assume uma função
moral: a de conduzir as condutas (FOUCAULT, 2008a).
No curso ministrado em 1975, intitulado “Os anormais”, especificamente na aula do
dia 19 de fevereiro, Foucault (2013b, p. 152), esclarece sobre o momento histórico no qual se
deu essa apropriação do poder pastoral e a sua transformação em técnica de governo, em
técnica de condução das condutas:
escola do campo, que deveria ajudar a construir a referência de uma nova pedagogia que, de
acordo com Caldart (2011b), tratava-se de uma forma de educar em movimento.
Ainda de acordo com Caldart (2011b), essa nova pedagogia não significava,
entretanto, a invenção propriamente dita de uma pedagogia inédita, mas de trabalhar com as
matrizes pedagógicas já existentes de uma maneira singular. Considerando os diversos
modelos pedagógicos que se foram construindo ao longo da história humana, essa nova
pedagogia propunha uma forma de educar em movimento, que “[...] deixa que a própria
situação educativa específica se encarregue de mostrar quais precisam ser mais enfatizadas
num momento ou noutro” (CALDART, 2011b, p.98).
Sendo assim, o modelo pedagógico no qual a Educação do Campo se inspirou,
consistia numa forma popular de educar, utilizada inicialmente pelas famílias de produtores
rurais e, posteriormente, assumida como modelo pedagógico para os movimentos sociais e
sindicais que, desde o final da década de 1960, serviu como uma espécie de resistência, de
modo a garantir o acesso à educação para uma parcela considerável da população rural.
Tratava-se de um modelo pedagógico conhecido como Pedagogia da Alternância, que foi
utilizado inicialmente no Brasil por famílias de agricultores nordestinos, como forma de
garantir que seus filhos pudessem frequentar a escola, sem precisar abandonar o modo de vida
do meio rural. Segundo Caldart (2011b, p. 104), o objetivo dessa pedagogia em movimento é
“[...] integrar a escola com a família e a comunidade do educando”, de maneira que se pense a
escola do campo, fazendo dois movimentos distintos e complementares, em regime de
alternância:
É justamente essa forma popular de educação que nos interessa analisar a seguir, por
percebermos que se trata de uma estratégia política, elaborada pelas famílias dos agricultores,
como forma de resistência ao modelo de educação rural que vinha sendo proposta para o país,
desde a década de 1930. Um modelo educacional que se baseava na extensão de um modo de
vida urbano e que acabava por excluir boa parte da população rural, dos processos formais de
132
Nesse subitem buscaremos efetuar uma maior aproximação de nosso objeto geral de
pesquisa, de modo a percebermos o movimento estratégico primordial que possibilitou a
abertura de brechas no interior do modelo institucionalizado de educação e que contribuiu
para a construção discursiva da Educação do Campo. Trataremos brevemente da Pedagogia da
Alternância, enquanto estratégia prática de desenvolvimento de uma educação popular,
construída a partir do movimento de resistência ao modelo institucionalizado e excludente de
educação. Considerando esse modo adaptado de educar, inventado pelas comunidades de
agricultores que, de uma forma inédita, desvincula o processo educativo dos espaços e tempos
institucionalmente demarcados pela escola, o que nos permite analisá-lo como um movimento
de profanação do dispositivo pedagógico.
De acordo como Agamben (2007), historicamente, no âmbito do direito romano, a
consagração dos objetos consistia na passagem de algo pertencente ao ambiente humano para
uma esfera divina. Aos homens não era permitido tocar naquilo que se considerava sagrado,
sob o risco de um contágio profano e, caso esse contato ocorresse, a coisa tocada deixaria de
pertencer ao universo sagrado e deveria ser restituída ao uso comum. Desse modo,
poderíamos afirmar que a institucionalização, assim como a formalização do processo
educacional que, como nos aponta Ramírez-Nogueira (2011), teve início na Europa no século
XVIII, colocou a educação sob um domínio exclusivo dos espaços escolares e transformou a
sociedade ocidental, a partir da Modernidade, numa sociedade educativa.
Essa retirada do processo educacional do interior de um uso comum e a sua colocação
no interior de um espaço institucional, exclusivamente construído para esse fim e sob o
domínio do Estado, traz consigo uma assinatura escatológica e teleológica, que mantém esse
objeto numa condição sacralizada (AGAMBEN, 2016). A assinatura escatológica diz respeito
à condição de que a educação deve sempre conduzir o sujeito a um fim, seja esse fim a
salvação individual num mundo extraterreno e sobrenatural, seja ele (o fim) a salvação
133
material aqui mesmo nesse mundo, ambas localizadas no horizonte do porvir. A assinatura
teleológica corresponde ao estabelecimento de metas, de procedimentos e de objetivos
educacionais, que servem como uma espécie de guia para que a humanidade chegue ao fim
(escatológico) desejado.
Assinatura é um conceito desenvolvido por Agamben (2019), que designa um
deslocamento do significante e do signo, sem, no entanto, produzir uma ruptura semântica de
maneira a mudar o seu significado. É por meio dessa assinatura que ocorre o deslocamento
dos signos e dos conceitos, da esfera religiosa para o âmbito da educação secularizada, sem
que se produza uma ruptura semântica deles. Em outros termos, as assinaturas religiosas da
escatologia e da teleologia agem como elementos que ligam os diferentes de tempos e
espaços, transpondo os significados dessas assinaturas de uma esfera religiosa para o contexto
educacional.
Como nos adverte Agamben (2007, p. 68), a secularização “é uma forma de remoção
que deixa intactas as forças, que se limita a deslocá-las de um lugar a outro” e, sendo assim, o
naturalismo que se presume ser próprio das instituições modernas, conserva no interior delas
um tipo de transcendentalidade, que nada mais é do que a continuidade da antiga assinatura
do sagrado (RUIZ, 2013). É desse modo que se pode afirmar que a educação se secularizou
com o advento da Modernidade, ao deixar de pertencer a um universo estritamente religioso,
mas manteve a sua assinatura escatológica e teleológica, o que permitiu que ela fosse
novamente aprisionada no interior da instituição escolar, constituindo-se, a partir do século
XVIII, novamente num modelo sacralizado de educação, não mais sob o domínio religioso,
mas estatal.
Considerando-se que, em sua forma institucionalizada, o Estado acabou por privilegiar
um modelo urbano de educação, cujos espaços, tempos e conteúdos serviram como regra
geral para a sua universalização de todo o processo educativo. Em muitos casos, esses espaços
e tempos, assim como os conteúdos programáticos, não atendiam às necessidades específicas
da população rural, tendo em vista que o seu modo de vida e de produção econômica depende
de um ciclo natural. A vida das famílias de agricultores e produtores rurais é regida pelo ciclo
das estações e pelo clima, que ditam o momento em que se deve intensificar o trabalho como
o plantio ou com a colheita, assim como os momentos que podem ser destinados a outras
atividades, como as educacionais, de lazer e de recreação, por exemplo.
Acreditamos ser esse o ponto fulcral da resistência inicial dos povos habitantes da
zona rural, quando, nas décadas de 1980 e 1990, levantaram suas bandeiras no interior dos
movimentos sociais e sindicais, contra o formato de escola e de processo educacional que
134
havia se institucionalizado no país. Tratava-se de uma resistência que se estabeleceu por conta
da insatisfação com esse modelo sacralizado de educação, que acabava por subordinar os
interesses econômicos, culturais e os modos de viver do meio rural, ao modelo urbano e
homogeneizante de vida da cidade.
Pode-se dizer, então, que não foi exatamente contra o modelo sacralizado de educação
que os movimentos sociais e sindicais do campo lutaram nos anos oitenta e noventa do século
passado, pois sua resistência se consistiu muito mais como um combate contra a exclusão dos
povos rurais e sua subordinação aos processos, espaços, tempos e conteúdos homogêneos,
adaptados a partir de um modo de vida urbano. Não se buscou propriamente realizar uma
ruptura com o modelo sacralizado de educação, mas de reconstruir estratégias para adaptá-lo
às necessidades do povo habitante da zona rural.
Essa é a primeira aproximação que fazemos do enunciado geral: Educação do Campo;
alertando que o mesmo emerge a partir de uma proposta popular de educação, por meio da
qual os movimentos sociais colocaram em prática e que, na sua origem, apresentou-se como
algo inédito. Justamente por ser tratar de uma iniciativa popular de uma ampliação do projeto
popular de educação em execução no âmbito dos movimentos sociais, mas inexistente, até
então, como política pública oficial. Sendo assim, não se pode deixar de fazer aparecer,
também, os fios do discurso político e científico desse momento histórico específico, por
meio dos quais se tece essa proposta popular de educação, mas que aos poucos vai sendo
absorvida por outros discursos, como o da economia política global.
O que se pode identificar de início, é que algumas experiências com projetos de
educação popular no Brasil já ocorriam, mesmo que de forma isolada, desde 1969, quando o
Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES) fundou as três primeiras
Escolas Famílias Agrícolas (EFA), no estado. Tratava-se de um ensino organizado por
agricultores locais, como forma de resistir ao modelo excludente de educação rural, garantida
como um direito de todos desde os primeiros textos constitucionais brasileiros. Nessa
experiência pioneira, o ensino dos filhos dos agricultores era realizado num espaço cedido
pelas paróquias locais e tinhas o auxílio pedagógico dos padres e de técnicos agrícolas
(TEIXEIRA; BERNARTT; TRINDADE, 2008).
O objetivo dessa iniciativa popular de educação foi criar as condições necessárias para
que os filhos e as filhas de agricultores locais pudessem conciliar os tempos de estudo com o
trabalho agrícola, realizado na propriedade de suas famílias. Nesse contexto, surgiram as
primeiras experiências com a Pedagogia da Alternância no Brasil, como modelo pedagógico
criado na França na década de 1930, a partir da insatisfação de um pequeno grupo de
135
além de negar e desautorizar os atributos vinculados ao termo rural, puderam melhor definir
os interesses políticos, econômicos e educacionais dos sujeitos que militavam nesses
movimentos, assim como de seus apoiadores.
Entretanto, simplesmente como movimento social, o MST estava politicamente
impedido de pronunciar as verdades necessárias à emergência de sua proposta educacional,
pois a sua posição-sujeito encontrava-se subordinada a outras verdades, pronunciadas por
outras posições-sujeito dominantes do discurso no campo político. Verificou-se uma
modificação estratégica nessa posição-sujeito, ocupada até então pelo MST, quando da
redemocratização do país e da recepção de suas ideias e fundamentos educacionais no interior
de outras instituições consagradas socialmente e autorizadas a pronunciar o discurso
verdadeiro.
Para tanto, para construir um regime de verdade, de que fala e faz falar a Educação do
Campo, tornou-se necessário um apoio em outros discursos que, consagrados socialmente
devido a sua qualificação como verdades cientificamente verificáveis, pudessem garantir a
veridicção desses conceitos e, desta maneira, sustentassem a própria estratégia política desse
discurso. É desse modo que o arquivo, ora aberto, está apoiado num regime de verdades, que
são próprias do discurso do campo acadêmico, especificamente da área da Geografia e que se
constituiu como um importante e necessário aliado na definição de uma nova terminologia
que permitiu a sua diferenciação em relação à educação rural. Terminologia essa que veio
embasar a construção de todo um universo discursivo necessário para a criação desse novo
objeto que é a Educação do Campo, assim como dos demais objetos que pertencem a esse
mesmo universo.
Podemos destacar a participação de diversos estudiosos da área da geografia, como
Whitacker (2010), Endlich (2010) e Santos (2014), autores mais alinhados com as bases
teóricas do materialismo histórico, que possibilitaram a concepção do conceito de Campo,
para definir o espaço geográfico habitado, até então considerado como rural. Esses autores
rejeitam veemente a forma, considerada por eles como arbitrária, com a qual se atribuem
legalmente as nomenclaturas para os espaços habitados em nosso país e que se definem pelos
termos: urbano ou rural. Por meio de seus estudos teóricos, consideram falseáveis os critérios
oficiais adotados, na atribuição dessas nomenclaturas, pois entendem que a terminologia
(urbano e rural) não define objetivamente os espaços geográficos habitados pelo homem, ou
seja, elas não designam especificamente a concretude da forma de organização espacial.
Argumentam que esses termos, simplesmente adjetivam um conteúdo específico de
práticas humanas, que são realizadas no interior de um determinado território, pouco
138
importando se essas práticas sejam: relações políticas, econômicas e/ou sociais. Sugerem,
então, que os conceitos capazes que definir, de uma maneira mais objetiva e real, os espaços
geográficos habitados pelo homem são cidade e campo. Esses dois termos estariam
diretamente relacionados com a forma espacial, isto é, com a paisagem que tais espaços
assumem, a partir da ocupação humana e das atividades econômicas, políticas e culturais ali
desenvolvidas (WHITACKER, 2010; ENDLICH, 2010; SANTOS, 2014).
Desta maneira, os termos Campo e Cidade seriam mais apropriados para designar o
espaço geográfico, pois os autores acreditam que essas nomenclaturas seriam capazes de
melhor representar linguisticamente a formação espacial, ou seja, haveria uma
correspondência objetiva entre o objeto e o seu referente. Nesse ponto, pode-se dizer que
sobre a regularidade discursiva acerca do espaço geográfico e sobre a qual se sustentará todo
um discurso verdadeiro, esse novo projeto educacional, que emerge discursivamente, é
construído no interior de uma epistèmê representacional, por meio da qual se acredita haver
uma correspondência entre um significante e o seu significado (FOUCAULT, 2016a).
É a evidência empírica da formação espacial do território que permite aos cientistas do
campo da Geografia reconhecer esse espaço como Campo ou Cidade, desconsiderando a
metafísica de linguagem, que reveste o saber científico no qual se apoiam. Uma metafísica
que opera por meio da arbitrariedade linguística e que é capaz de reduzir a complexidade do
significante, inserindo-o abstratamente no interior de um significado. A metafísica, de que se
reveste o conhecimento científico, diz respeito à dupla metaforização de que fala Nietzsche,
quando da apropriação do objeto e da sua transformação em verdade e em conhecimento
(SOBRINHO, 2001).
É esse significado que, a partir de então, passará a representar linguisticamente o
objeto, será aceito consensualmente entre os sujeitos da ciência e por meio do qual se
construirá um regime de verdade acerca da Educação do Campo. Não é exatamente a verdade
que interessa a Foucault (2014c, p. 86), pois o autor prefere utilizar a noção de “regime de
verdade”, para designar “[...] o conjunto dos procedimentos e instituições pelos quais os
indivíduos são comprometidos e forçados a realizar, em certas condições e com certos efeitos,
atos bem definidos de verdade”.
Sob o mesmo ângulo de análise das designações do espaço habitado, Veiga (2003)
critica ainda os critérios, utilizados no Brasil, para se definirem os espaços urbanos e,
concomitantemente, os limites geográficos entre a cidade e o campo. O autor alega que, caso
o Brasil utilizasse os mesmos critérios adotados em outros países, como, por exemplo, o
parâmetro da densidade demográfica adotada pelos países da OCDE, uma quantidade enorme
139
de cidades brasileiras passaria a ser considerada como imaginária. Isso se deve ao fato de que
os critérios aqui utilizados, em nosso país, para a definição de uma zona como urbana, não
levam em consideração a densidade populacional desse espaço, tampouco as relações sociais
e econômicas que se estabelecem em seu interior.
Sendo assim, por cidade imaginária, Veiga (2003) considera as cidades onde as
relações sociais não são propriamente urbanas, pois seus habitantes mantêm relações
econômicas e sociais que são típicas do meio rural. Haveria, então, no Brasil, cidades que
poderiam, sim, ser consideradas como urbanas, mas uma quantidade maior delas, utilizando-
se esses critérios, deveria ser classificada como rural (cidades rurais) e, desta maneira,
conceitualmente, não poderiam ser consideradas cidades, sendo assim, conceituadas, pelo
autor, como cidades imaginárias.
A partir dessa conceituação geográfica para o que se considera como Campo e Cidade,
estabelecida no interior da instituição que detém a exclusividade para pronunciar verdades
propriamente científicas, é que foi possível aos movimentos sociais e as instituições que lhe
eram simpatizantes fundamentarem sua contestação, acerca de um regime de verdade
legalmente estabelecido. Regime esse que definia como sendo rural, tanto o espaço habitado
pelos assentados da reforma, como a educação dos sujeitos habitantes desse espaço. Como
nos indica Foucault (2014a, p. 46), “o discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos”, sendo nesse suporte discursivo/institucional,
no qual se estabelece o regime de verdade sobre o conceito de espaço geográfico, que os
movimentos sociais e instituições interessadas em propor um novo uso estratégico do termo
Campo se apoiam para construir o novo, o conceito de Educação do Campo.
Tratou-se, assim, de construir estrategicamente uma terminologia que pudesse
desautorizar a designação de rural como algo concreto e objetivo, ou seja, somente o conceito
de Campo, como um objeto passível de apreensão empírica e de estudo metódico, seria
suscetível de uma análise objetiva pelas lentes da ciência, daí a necessidade desse objeto se
apoiar num discurso acadêmico/científico. Em outros termos, enquanto ciência do espaço
habitado pelo homem, somente a Geografia estaria autorizada a pronunciar discursos
verdadeiros sobre esse objeto, que é o espaço e, sendo assim, somente o discurso científico da
Geografia poderia ser aceito como uma verdade que desautoriza a designação de rural como
algo concreto e objetivo. Doravante, inaugura-se um novo uso para o conceito de campo, que
servirá para adjetivar a forma com que os movimentos sociais e sindicais do campo
pretendem enunciar a sua proposta educacional: a Educação do Campo.
140
criação bovina ou em lavoura para a produção agrícola. Sobre esse aspecto, o termo campo
designa muito mais do que uma simples conformação espacial, pois caracteriza, sobretudo, a
terra economicamente produtiva, sobre a qual se desenvolve o plantio agrícola e a produção
de alimentos de origem animal pela pecuária.
Considerando-se que o Brasil é, historicamente, um país cuja economia de base se
constitui pela produção agropecuária, o campo não pode ser considerado um espaço
geográfico qualquer ou genérico, mas um lugar de disputa política pelo direito de posse da
terra. Um espaço no qual se desenvolve historicamente o potencial econômico do país e, desse
modo, por se constituir num meio de produção e fonte de riquezas, transforma-se num objeto
de disputa política. Nesse sentido, o campo se constitui de áreas produtivas, regulamentadas
pelo poder estatal, nas quais o sujeito, que detém o direito de sua posse e de sua exploração
econômica, deve fazer desenvolver o seu potencial produtivo, sob pena dessa área ser
desapropriada, no caso de ser considerada improdutiva.
É o campo, e não outros biomas, que passa a ser o objeto de desejo, pelo fato de ser
nesse espaço geográfico (e somente nele) que a agricultura e a pecuária podem se desenvolver
como atividade econômica, entrando para o jogo do verdadeiro e do falso. Não é por acaso,
então, que os movimentos sociais e sindicais escolhem o termo campo, justamente para
designar o seu espaço de vida. O campo é espaço que mais bem representa o local onde se
produz e reproduz o modo de vida dos movimentos sociais e sindicais e, desta maneira, o
substantivo que melhor pôde ser utilizado para o modelo educacional, que passaram a
defender em seus discursos.
A luta dos movimentos sociais e sindicais é pela apropriação do discurso verdadeiro,
que qualifica a terra como produtiva ou improdutiva e possibilita a sua posse, como meio de
produção econômica, pela classe trabalhadora. Pela lógica do discurso revolucionário, não se
está necessariamente interessado em destruir o sistema de produção capitalista propriamente
dito, mas de realizar uma inversão no seu pólo de dominação, ou seja, devolvendo os meios
de produção para aqueles que deveriam ser os seus autênticos proprietários: os trabalhadores.
Podemos considerar que, em sua origem, o termo campo se constituiu numa expressão
pertinente, que melhor poderia expressar o desejo dos movimentos sociais e sindicais, quanto
ao atendimento de suas demandas político/educacionais, pois representava realmente o anseio
daqueles povos, que acabaram de reaver o seu direito de posse da terra, por meio da reforma
agrária e que habitavam o bioma caracteristicamente denominado com tal nomenclatura. Não
há como negar que o campo se caracteriza como um território de luta, no qual o Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra se engajou na disputa política pelo direito à posse da
142
terra. Uma luta pelo espaço territorial, no qual as famílias assentadas pudessem desenvolver
autonomamente suas atividades econômicas, caracteristicamente agropecuárias.
Percebe-se, entretanto, que não houve um esforço ou uma preocupação, propriamente
no sentido de reformular ou de propor substancialmente uma nova educação, pois o que se
observa é uma continuidade no uso desse substantivo, como algo natural e que traz em si,
verdades já estabelecidas e consagradas. Trata-se de um regime de verdades que sustenta o
discurso pedagógico, que se baseia nos princípios universais apregoados pelo Iluminismo e
que se constituíram nos fundamentos da racionalidade moderna. De acordo com Lima (2002,
p. 60) “a compreensão de um sujeito universal, dotado de razão e de suas propriedades
universais e idênticas em todo o indivíduo, passa a ser o solo em que se movimentam as
teorias pedagógicas”.
A partir do racionalismo cartesiano, do empirismo baconiano e da ideia de
esclarecimento proposta por Immanuel Kant, instaura-se a concepção moderna de homem,
sobre a qual se sustentam os fundamentos do discurso pedagógico desde a Modernidade até
nossos dias. Foram os discursos da Modernidade, pronunciados inicialmente por aquele que
foi considerado seu pai: René Descartes (1596-1650); que colocou em circulação o enunciado
acerca da razão humana, um tribunal supremo do homem que estabelece os princípios de
universalidade, de autonomia e de individualidade do sujeito moderno. Associado ao
enunciado da razão, a Modernidade também nos legou a crença na possibilidade da
descoberta da verdade acerca dos objetos e do mundo que, pode meio do método científico,
tornou possível o domínio racional da natureza (LIMA, 2002).
Desse modo, a escola, a pedagogia e o processo educacional como um todo se
sustentam nessa raridade de enunciados: razão, método e verdade científica, sujeito do
conhecimento; formulados ainda na Modernidade e que trouxeram as promessas de liberdade,
autonomia e de emancipação humana. É nesse sentido que Lima (2002, p. 62) afirma que a
“razão científica e subjetividade são referências obrigatórias para compreender a educação
como processo institucionalizado, que se organiza frente à necessidade de formar sujeitos que
possuam uma condição de vida segundo padrões seculares”.
Com isso, nos resta analisar a preposição do, presente no enunciado Educação do
Campo e que, por sua vez, demonstra o estabelecimento de uma nova ordem, ou um novo
direcionamento para o processo educativo que deverá se desenvolver nesse espaço geográfico,
considerado doravante como campo. Assim, diferentemente da educação rural, que
estabelecia um contexto relacional, em que o processo educativo segue um modelo único,
tanto para a área urbana, como para o meio rural, a Educação do Campo nega essa direção
143
incomum. Essa nova proposta educacional rejeita essa direção sacralizada (AGAMBEN,
2007), na qual o processo educativo deve ser pensado por especialistas e cuja aplicação
precisar estar adaptada aos valores urbanos, devendo, ao contrário, esse processo educacional
partir dos próprios sujeitos do campo e a eles se destinar (MUNARIM, 2010).
Pode-se dizer, então, que um novo regime de verdade foi posto em movimento, a
partir de uma apropriação estratégia do conceito geográfico de campo, que se define pela
concretude científica desse termo, que lhe reveste de certa neutralidade e da possibilidade de
generalização. Foi essa verdade científica que possibilitou aos movimentos sociais
construírem o enunciado Educação do Campo, que foi utilizado estrategicamente como
recurso discursivo para a reivindicação do direito, humano e constitucional, de acesso à
educação formal.
Precisamos destacar que a singularidade desse regime de verdade, que sustenta o
discurso sobre a Educação do Campo, não é da ordem de seu substantivo, isto é, não se tratou
de recriar, de alterar ou de produzir, mesmo que discursivamente, uma nova substancialidade
para a Educação. O que se apresenta como novo ou inédito no enunciado Educação do
Campo foi produzido por meio da redefinição de um atributo, que designa espacialmente o
local onde o processo educativo se realiza. Essa qualidade de ser do Campo é que permitiu
incluí-la no interior de um critério de cientificidade, ou seja, o enunciado e o seu regime de
verdade correspondente se tornam singulares, não pelos fundamentos do seu substantivo, mas
pelos princípios correspondentes que são reforçados com o léxico campo. É o substantivo
campo que concebe a validade científica para o regime de verdade singular, por meio do qual
se constrói esse novo objeto discursivo, que foi posto em movimento e que será transformado
em política pública na década seguinte.
Com base nesse suporte discursivo, inauguram-se outras possibilidades para o uso e a
circulação de enunciados, que foram consagrados pelas Ciências Humanas em outros
momentos históricos, mas que ainda estão presentes enquanto regime de verdade
contemporâneo. Referimo-nos aqui ao regime de verdade que atualiza, de maneira constante,
todo um aparato enunciativo sobre o qual se fundamentou o pensamento iluminista e que
serviu como bases epistêmicas para a construção do conceito de Modernidade, assim como
todo um conjunto de práticas sociais, que se naturalizaram a partir de então e passaram a ditar
os critérios de veridicção (FOUCAULT, 2008b).
Estamos nos referindo à atualização constante, nos discursos e nas práticas, de uma
crença moderna sobre a existência de um sujeito dotado de razão, um sujeito epistêmico sobre
o qual se torna necessário investir todo o processo educativo. O próprio processo educativo se
144
possível espaço geográfico a ser conceituado como diferente da cidade; Camponês, o sujeito
epistêmico habitante desse espaço geográfico; Educação do Campo se transforma no processo
educacional legítimo que possibilitará a apropriação dos bens culturais por parte dos sujeitos,
a partir de então, considerados camponeses. Por fim, Escola do Campo, constitui-se como o
espaço social privilegiado, no qual se desenvolverá todo o processo educativo formal, no qual
se verá racionalizado o processo pedagógico e, por meio do qual serão criadas as condições de
apropriação, por parte do sujeito camponês, desses bens culturais construídos
histórico/socialmente.
Com base nessas poucas e incompletas condições acontecimentais, que marcaram o
solo político, econômico e técnico do momento histórico em se produziu a emergência do
conceito de Educação do Campo, pode-se identificar múltiplas relações de forças atuando em
conjunto, dispersas e agonisticamente. Ou seja, o referencial teórico/metodológico adotado
para o presente estudo, nos permite reconhecer a dispersão das condições das possibilidades
de emergência desse objeto, tanto discursivas como não-discursivas, em meio às quais foi
possível o seu surgimento enquanto objeto de discurso (DELEUZE, 2013; FOUCAULT,
2015a).
No próximo tópico, abordaremos as adaptações e inclusões no discurso inicial sobre a
Educação do Campo que foram produzidas pelo discurso legal e que possibilitaram um desvio
estratégico no uso dos enunciados, de forma a reduzir seus significados e inserir esse objeto
no interior de uma formação discursiva própria da razão de governo. Trata-se das adaptações
e inclusões discursivas necessárias à incorporação da diversidade no interior de uma
totalidade, de forma a se produzir a noção de população do campo. População essa que é
formada por sujeitos, cujas condutas podem ser individualizadas, por meio do uso de
ferramentas estatísticas apropriadas, de forma a serem governados disciplinarmente.
Mouffe (2012), nos foi possível identificar a afirmação agonística de, pelo menos dois,
grandes ideais de política econômica. De um lado, verificamos a produção de discursos
engajados com princípios comunitários, cujos ideais progressistas e de resistência nos
permitem categorizá-los como defensores de um regime social-democrático. De outro lado,
identificamos também os discursos que defendem os princípios democráticos, mas que se
fundamentam, sobretudo, no ideal das liberdades individuais, o que permite classificá-los
desenvolvimentistas e como partidários da liberal-democracia.
Em meio a essa disputa política pela posse do discurso verdadeiro, verificamos que
nosso objeto geral de estudo, a Educação do Campo, emergiu no interior de uma proposta
popular de educação, cujos princípios se alinhavam com um projeto comunitário, típico da
social-democracia. Entretanto, na medida em que esse objeto foi se integrando ao domínio das
políticas públicas, verificamos um deslocamento de seus princípios iniciais, de modo a
integrá-lo à razão governamental, que está mais alinhado aos ideais de um projeto liberal-
democrata.
São esses movimentos estratégicos, realizados no interior do discurso da
governamentalidade, que buscamos apontar nesse subitem, sendo que podemos identificar um
primeiro movimento discursivo, por meio do qual foi possível adaptar a proposta inicial de
Educação do Campo e criar as condições estratégicas de inclusão de outros povos, que não se
caracterizavam propriamente como assentados da Reforma Agrária. No dia 4 de dezembro de
2001, o Conselho Nacional de Educação (CNE 44), por intermédio de sua Câmara de Educação
Básica (CEB45), emitiu o Parecer CNE/CEB nº 36/2001, que estabeleceu as Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Essa diretriz considerou
evidente um vínculo específico, por meio do qual os povos que viviam num contexto
territorial, legalmente reconhecido como rural, poderiam ser reconhecidos como população do
campo. Esse vínculo seria a ligação desses povos com a terra, de onde todos eles, de uma
forma direta ou indireta, extrairiam seus meios de subsistência.
44
O atual Conselho Nacional de Educação (CNE) é um órgão colegiado, que integra independentemente o
Ministério da Educação e foi instituído pela Lei 9.131, de 25/11/95, com a finalidade de colaborar na formulação
da Política Nacional de Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao
Ministro da Educação. Esse órgão se subdivide em duas Câmaras: uma de Educação Básica (CEB) e outra de
Ensino Superior (CES). BRASIL/MEC. CNE-Histórico. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/escola-de-
gestores-da-educacao-basica/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/14306-cne-historico.
Acesso em: 14 fev 2020.
45
A Câmara de Educação Básica (CEB) tem como atribuições analisar e emitir pareceres sobre procedimentos e
resultados de processos de avaliação da educação infantil, fundamental, média, profissional e especial, deliberar
sobre diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação; e acompanhar a execução do Plano Nacional
de Educação (PNE) (BRASIL/MEC, 2020).
147
desse discurso que incluía habitantes de outros biomas, cujos respectivos modos de produção
econômica e da sua própria forma de existência são heterogêneos, sob um mesmo e único
signo, tornou-se possível a produção de um conceito universal e totalizante: o de população
do campo. É nesse sentido que vemos, nesse primeiro movimento estratégico de adaptação e
de inclusão, o domínio do discurso técnico/científico neoliberal sobre o discurso
revolucionário. Este, originalmente produzido e posto em circulação no interior dos
movimentos sociais e sindicais e mais alinhado com a social-democracia. Aquele, oriundo das
agências técnicas internacionais (UNESCO e UNICEF), mais engajadas com o discurso
liberal democrático.
Podemos pontuar, ainda, um terceiro movimento de inclusão, por meio do qual se
produziu novas adaptações e adequações legais para que a proposta inicial de Educação do
Campo se tornasse ainda mais abrangente e universal. Tratava-se do texto da Resolução
CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008, que no seu artigo primeiro voltou a considerar como
rurais, as populações atendidas pelo programa e passou a abranger, a partir de então, também
as populações indígenas:
forças para o enfrentamento do poder, que é algo possuído pelos detentores dos meios de
produção e que consideram como uma capacidade opressiva. Como declaram esses autores,
no texto em que comentam e detalham as discussões da I Conferência Nacional, “aprendemos
que a nossa divisão em nome das diferenças somente interessa a quem nos oprime: ‘dividir
para melhor dominar’ é uma máxima tão antiga quanto à própria dominação” (ARROYO,
CALDART; MOLINA, 2011, p. 154).
Ocorre que, sob uma perspectiva da razão governamental, é justamente a unificação
das diferentes formações humanas, no interior de um conceito único de população do campo,
que constitui uma das estratégias de dominação e de governamento (FOUCAULT, 2014a).
Sendo assim, é a própria estratégia revolucionária de unir forças para combater, que foi
sendo utilizada de maneira adaptada pelo discurso liberal democrático, de uma forma muito
sutil e sem que seu adversário percebesse, para incluir diferentes formações humanas no
interior de sua própria da razão governamental.
Verifica-se que, assim como adverte Mouffe (2012), a agonística dessa política
discursiva não se formou a partir de um combate entre inimigos (como pretendia o
movimento de resistência), mas de uma disputa entre adversários. Essa análise genealógica
permite afirmar que o discurso político de resistência ao modelo neoliberal, proferido pelos
movimentos sociais e sindicais, compartilham de um espaço simbólico comum. Entretanto, o
discurso de resistência e o discurso neoliberal disputam o domínio pelo campo discursivo,
pois, como lembra Foucault (2014a), não é por meio do discurso que se luta, pois o discurso
não é a ferramenta com a qual se combate o poder, não se trata de um objeto que leva ao
poder, mas é o objeto por meio do qual o poder circula e, sendo assim, é pelo discurso mesmo
que se luta. Na batalha política, em que ocorre a circulação do poder, está em vantagem
estratégica aquele que obtém o direito de utilizar o discurso e, sendo assim, é o discurso pelo
qual se luta.
Por meio dessa breve análise discursiva do Parecer CNE/CEB 36/2001, da Resolução
CNE/CEB 01/2002 e da Resolução CNE/CEB 02/2008, podemos constatar que o modo
estratégico, encontrado para incluir legalmente a diversidade das culturas e dos modos de
produção econômica e de reprodução da vida, sob o signo campo, deu-se inicialmente de uma
forma conceitual e enunciativa, sendo que especificamente a Resolução CNE/CEB 02/2002
institui o modo prático como essa inclusão deveria ocorrer. Nesse sentido, considerar o campo
como uma denominação genérica, capaz de abarcar os significados de todos os biomas nos
quais o homem vive e retira seu próprio sustento, pode, em si mesmo, ser considerada a
151
incluída no interior de sua lógica intrínseca de funcionamento, assim como cada um de seus
indivíduos, particularmente (FOUCAULT, 2014a).
Nesse sentido, podemos verificar que o desvio e a ampliação do conceito de Educação
do Campo, para além dos espaços inicialmente considerados campesinos, constituíram-se
num movimento estratégico de inclusão, que possibilitou a ampliação do dispositivo
biopolítico de segurança da razão governamental. Incluir diferentes formas de existência no
interior de um mesmo discurso caracteriza-se como um movimento estratégico e
performático, que visa a produção de uma identidade específica: a identidade camponesa.
Como afirmam Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 25), “[...] temos uma preocupação especial
de resgate do conceito de camponês [... pois se acredita ser esse], um conceito histórico e
político, [cujo...] significado é extraordinariamente genérico e representa uma diversidade de
sujeitos” (grifo dos autores).
Essa categoria geral de território que se denominou de campo, embora reconheça a
diferença como diversidade, designa a totalidade de uma população e, com essa manobra
estratégica, tornou-se possível homogeneizar as diferenças e reduzir ou silenciar os conflitos
ou, para utilizar um termo amplamente empregado pela UNESCO: produzir consensos.
Consensos esses que giram em torno de uma tentativa de apagar os sentidos pejorativos,
historicamente construídos e que revestem as diversas denominações dos trabalhadores rurais,
como: caipira, seringueiro, caiçara, roceiro, sem terra, assentado; alcunhas essas que
acabariam por classificar “[...] esses sujeitos como atrasados, preguiçosos, ingênuos,
incapazes” (ARROYO, CALDART; MOLINA, 2011, p. 25).
Ainda para Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 26), o que essas expressões têm em
comum, é um vínculo natural que todas essas formações populacionais (indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e outros) possuem com o trabalho na terra, pois “essas palavras
denominam, antes de mais nada, o homem, a mulher, a família que trabalha na terra”. Cabe
destacar, mais uma vez, o vínculo teórico dos movimentos sociais de resistência com o
materialismo histórico. Recorrendo a esse aporte epistemológico, a categoria “trabalho” surge
nos discursos de resistência como uma condição natural de existência, como o elemento
determinante da constituição da própria humanização do homem.
Mediante essa manobra estratégica, verifica-se que o discurso produz uma espécie de
redução e de silenciamento de outras formas de existência, nas quais não faria o menor
sentido falar sobre a necessidade do trabalho para se constituir uma subjetividade
humanizada. Nesse caso, poderíamos considerar dois contextos específicos, que são as
comunidades indígenas e as comunidades de pescadores, que foram incluídas na categoria de
154
camponês, pela Resolução CNE/CEB 36/2001, como forma de se produzir o efeito de verdade
desejado, por meio do vínculo naturalizado e naturalizante, entre o trinômio: indivíduo, terra e
trabalho; capaz de criar um sentido de totalidade. No caso dos indígenas, que especificamente
não possuem uma relação com terra propriamente, mas com a floresta, não há como se admitir
que esse vínculo natural se produza por meio de uma relação propriamente de trabalho.
Também há que se considerar situação de trabalho das comunidades de pescadores que,
embora dependam propriamente de uma relação laboral para produzir a sua existência, esse
vínculo não se dá com a terra, mas com outro meio: o rio ou o mar.
Percebe-se que a incorporação ou a inclusão de outros espaços e culturas, no interior
de um conceito genérico de campo, possibilita a transformação daquilo que antes se poderia
considerar como diferente, em algo que se passa a admitir como diverso. A produção de uma
identidade única é o que possibilita transformar a diferença em diversidade, útil ao dispositivo
de segurança da liberal democracia. Como advertem Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 958) “[...]
se aquilo que está em jogo é executar o melhor – mais efetivo, mais econômico, mais
permanente – governamento da população, então é preciso, antes de mais nada, promover o
maior ordenamento possível dos elementos que a compõem”.
Por esse ponto de vista, quando o Parecer 36/2001 reconhece a Educação do Campo
como uma política ampla e totalizante, identifica-se esse esforço como uma estratégia de
governamento da população, de forma permitir a produção de um ordenamento e da
normalização (FOUCAULT, 2008a; 2008b). Logo após a II Conferência Nacional, Arroyo e
Fernandes (1999, p. 13-14) comentaram sobre a nova proposta educacional, ao afirmar que a
sociedade e as elites nacionais reconheciam a inquietude e a agitação dos movimentos sociais
do campo:
esses os elementos que precisam ser regulados e direcionados, de forma que sua potência seja
conduzida na direção das próprias realizações da sociedade humana, mencionadas na
Resolução 36/2001.
O movimento estratégico, para a formação de um dispositivo de segurança, produz-se
por meio da educação e se consistiu pela incorporação e pelo acolhimento de outros espaços
territoriais, isto é, uma Educação do Campo em que as diferentes formas de existência
humana pudessem ser incluídas no interior de um único conceito territorial e que essas
diferenças pudessem ser transformadas em diversidade, de maneira a possibilitar um convívio
democrático, por meio do consenso. Que as identidades culturais pudessem se apoiar num
elemento comum: a sua ligação com a terra e o seu uso como ferramenta de produção das
condições da existência social, ou seja, percebe-se que o projeto se desencadeia em torno da
uma economia da existência.
Discursivamente, podemos analisar o movimento de inclusão como uma estratégia,
para reforçar o dispositivo de segurança em torno da noção de população, por meio do qual se
inclui legalmente outros espaços e seus respectivos habitantes, que não haviam sido
mencionadas originalmente no relatório da I Conferência Nacional. Trata-se de uma ação do
princípio de rarefação do discurso, no qual o movimento de inclusão se constitui,
discursivamente, pelo funcionamento do princípio do comentário que, de acordo com
Foucault (2014a, p. 24), tem o papel de fazer falar “[...] o que estava articulado
silenciosamente no texto primeiro”, ou em outras palavras, “[...] dizer pela primeira vez
aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não
havia jamais sido dito” (FOUCAULT, 2014a, p. 24).
Nesse ponto podemos perceber que aquilo que não foi expresso no discurso original da
I Conferência Nacional (o não dito) passou a ser dito pela norma legal, por meio dos
enunciados de inclusão social, como uma intenção política para ampliar a oferta de educação
básica e enquanto estratégia, para se cumprir o acordo da universalização educacional,
firmado na Conferência de Jomtien em 1990. O que também jamais foi dito no discurso
original é que, a mobilidade proporcionada pelo discurso da inclusão fez parte da estratégia de
ampliação da razão governamental. Isso pelo que pontuamos anteriormente, pois o sentido
elementar do deslocamento discursivo caracterizou um efeito de totalização, por meio da
incorporação de toda a população rural no interior de uma nova política educacional.
Movimento que tornou possível a construção de um conceito de população do campo, que,
muito mais que incluir os excluídos para reduzir as desigualdades, acabou por homogeneizá-
las e colocá-las sob o controle de um mesmo enunciado. Por meio dessa homogeneização,
156
diferentes culturas e atividades produtivas (ou formas de vida integradas à natureza) passaram
a ser submetidas a um modelo empresarial de gestão e inseridas no domínio de uma lógica de
mercado (DARDOT; LAVAL, 2016).
O segundo movimento estratégico do dispositivo de segurança, a partir dessa
homogeneização fabricada pela criação discursiva do conceito populacional de campo,
consistiu num processo de individualização e disciplinarização, com a construção de normas
que permitiram ancorar as diferenças, modelando e fixando as diferentes subjetividades do
homem rural no interior de uma noção de identidade camponesa. Em outras palavras, a partir
da construção discursiva dessa noção de população do campo, tornou-se possível uma ação
total e, ao mesmo tempo, individualizada da razão governamental. A partir de uma produção
de dados estatísticos populacionais, que serviram de fundamento científico para a criação de
normas, sobre as quais se apoiou toda a política econômica, cuja ação da razão governamental
se produz sobre cada um dos indivíduos dessa população (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
De acordo com Foucault (2014a, p. 24), esse modo de dizer “o que estava articulado
silenciosamente no texto”, constitui-se, ainda, como um princípio de delimitação do acaso do
discurso, que o autor denomina como “o princípio do comentário”. Esse princípio impede a
dispersão, controla e limita “o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a
forma de repetição do mesmo” (FOUCAULT, 2014a, p. 28). É desse modo que Foucault
(2014a, p. 25) argumenta que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta”, num retorno dos enunciados do discurso, por intermédio desse princípio, que é o do
comentário.
É a ação desse princípio do comentário que vemos se processar nos textos produzidos
após a I Conferência Nacional, como o produzido por Arroyo, Caldart e Molina, que
argumentam:
46
A pasteurização é um processo culinário, utilizado para eliminar microorganismos presentes nos alimentos,
que podem acelerar o processo de deterioração e/ou causar doenças. Nesse caso, utilizamos o termo
“pasteurização” como uma metáfora, que representa o sistema de exclusão, operado pelo discurso, por meio da
vontade de verdade, descrita por Foucault (2014a).
159
saber e de poder, tendo a verdade como seu elemento de ligação, elemento esse que possibilita
as ações de governo sobre sujeitos livres. O dispositivo é a máquina que se forma entre o
poder e o indivíduo, que utiliza a verdade como um fio, que amarra e prende o sujeito às
tramas discursivas e não-discursivas do poder governamentalizado (AGAMBEN, 2009).
O dispositivo é a própria rede heterogênea que se forma entre o empírico 47 e o
transcendental48 do sujeito, como uma malha estratégica que cruza as relações de poder e de
saber, de maneira a fabricar as subjetividades necessárias à manutenção dessas mesmas
relações. O sujeito é, então, o ponto no qual o dispositivo se prende, formando um nó nessa
rede estratégica, que possibilita a união dos fios e a continuidade das relações de poder. Ou
seja, é por meio do sujeito ocorre a circulação dos saberes, que possibilitam a continuidade
das relações de poder que, por sua vez, produzem novos saberes (FOUCAULT, 2014d;
AGAMBEN, 2009).
A partir dessas definições acerca do dispositivo, podemos então fazer uma primeira
aproximação do nosso objeto específico de estudo, para analisá-lo mais de perto. Assim,
como verificamos no capítulo VI, restou evidenciada a produção de um saber muito bem
delimitado e calculado sobre os contornos da forma sujeito camponês, ou seja, identificamos a
construção discursiva desse sujeito enquanto objeto de conhecimento. Somente após essa
delimitação da forma camponesa de ser sujeito, é que foi possível estabelecer uma definição
performativa sobre os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que deveriam ser
desenvolvidas nos indivíduos que ocupariam esse espaço, a partir de um processo formativo
para a docência, de modo a torná-los aptos a assumirem uma posição institucional como
professores do campo.
O sujeito professor do campo surge, nesse contexto, como uma função no interior da
trama discursiva, pois ele passa a funcionar como um dos pontos de apoio e de disseminação
radial desse regime de verdade previamente criado, que define objetivamente o que é ser
camponês. O professor do campo se constitui propriamente como o ponto de fixação de que
47
Na filosofia, o termo empírico indica aquilo que é factual, ao estado substantivo da coisa (ABBAGNANO,
2007). Para Michel Foucault, o caráter empírico da subjetividade corresponde às condições de possibilidades de
existência, que são ditadas pela norma, ou seja, considerando a atualidade de uma existência subjetiva, existem
práticas que são permitidas ao sujeito realizar e outras que lhe são proibidas. No interior desse campo normativo
que se produz a substancialidade do sujeito. Em outros termos, o empírico constitui tudo aquilo que o sujeito
pode fazer consigo mesmo, considerando a atualidade da sua existência.
48
Foucault (2014d) considera que as condições de existência empírica do sujeito são construídas na imanência
da história, por meio de uma interface entre o saber e o poder. Dessa maneira, por meio do jogo de saber/poder é
que se constrói, de maneira antecipada, a forma com que uma determinada subjetividade deve assumir em cada
momento histórico. Sendo assim, a forma-sujeito antecede a própria substância humana que a ocupa e, por esse
motivo, é considerada transcendental.
163
necessita a trama discursiva, para irradiar seu regime de verdade e possibilitar a continuidade
desse processo de fabricação das subjetividades camponesas.
A emergência desse objeto de conhecimento somente se tornou possível após a
definição e a delimitação discursiva de quem é, ou quem deveria ser o sujeito camponês e
quais as características, conhecimentos e habilidades deveriam possuir e dominar, aqueles que
desejassem ocupar essa posição de professor do campo. O dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU surge como a superfície de mediação, aquilo que se coloca entre essa
forma transcendental de ser sujeito, produzida previamente pelo discurso e a sua superfície de
contato, qual seja, os corpos e as mentes (ou a alma) dos indivíduos da roça, que se
submeteram voluntariamente ao processo de formação docente.
É desse modo que o dispositivo produz aquilo que Deleuze (2013, p.105) denominou
de “interiorização do lado de fora”, pois é o próprio tecido social que se torce e se dobra sobre
os indivíduos, formando sobre eles uma espécie de prega ou sulco que envolve o ser vivente,
o apreende e o transforma em sujeito. A transformação das individualidades ocorre com a
interiorização das verdades normatizadas, ou seja, a formação do sujeito professor do campo
ocorre por meio da reprodução dos saberes do mundo exterior, quando suas verdades são
transportadas para o âmago mesmo do sujeito. De uma maneira mais específica, podemos
dizer que o Procampo/UNITAU, enquanto dispositivo pedagógico de apreensão e produção
de subjetividades, constituiu-se como a superfície de mediação, que possibilitou a produção
dessa dobra social sobre os indivíduos da roça, de forma a fazer com que eles assumissem,
para si mesmos, as verdades acerca da forma transcendental de ser professor do campo. Para
tanto, para a transformação do indivíduo da roça em sujeito professor do campo, foi preciso
todo um processo de subjetivação, intermediado pelo dispositivo pedagógico do Procampo/
UNITAU, que será abordado no próximo subitem.
49
No momento da publicação do Edital de Convocação nº 09/2009-MEC, a SECAD ainda não havia
incorporado o eixo da inclusão, o que ocorreu somente a partir do Decreto 7.480, de 16 de maio de 2011, quando
passou a se denominar SECADI.
164
dos professores que, acarretava também prejuízos pedagógicos. Não eram raras as
circunstâncias em que, devido às condições das estradas rurais, que em épocas chuvosas
tornam-se intrafegáveis, ocorria o cancelamento das aulas.
A replicação do modelo urbano de educação às áreas rurais, a partir da década de
1930, fez emergir a complexidade desses problemas, que se tornaram verdadeiros
obstáculos para que a população do campo pudesse ser totalmente incluída no processo
formal de educação escolarizada (NASCIMENTO, 2009; ARROYO, CALDART;
MOLINA, 2011; MUNARIM, 2013). O contorno dessas barreiras se buscou com a adoção
das medidas político/gerenciais, como se verifica no discurso do Edital nº 09/2009, no qual
enuncia a Promoção de estratégia de formação para a docência multidisciplinar, com
organização curricular por área de conhecimento (BRASIL/MEC, 2009a). Um discurso
que se encontra atravessado por elementos não-discursivos, que correspondem às
estratégias que visam oferecer uma solução prática, eficiente e econômica para esses
problemas.
Tais inconvenientes, relacionados principalmente com a logística da educação
rural, surgiram como elementos não-discursivos, para os quais foi preciso encontrar uma
solução, tanto econômica quanto política, por meio da qual a razão governamental
pudesse produzir ações práticas, como estratégia para garantir o cumprimento dos
acordos internacionais que exigiam a ampliação da oferta educacional e de assegurar uma
Educação para Todos (LEHER; MOTTA, 1988; JIMENEZ; SEGUNDO, 2007). O recurso
encontrado e que se mostrava mais economicamente viável, para incluir toda população
rural aos processos formais de educação e ao mesmo tempo melhorar a qualidade
educacional, foi o investimento na formação e habilitação de indivíduos do próprio local.
Para tanto, a formação inicial do professor do campo precisava ser ampla e
múltipla, para a fim de garantir a maior eficiência do trabalho docente e atender
oportunamente às demandas, tanto econômicas como educacionais, que eram específicas
das áreas rurais. Sendo assim, a estratégia de formação docente por área de conhecimento
resolveria dois dos principais impasses nacio nais que se mostravam como impeditivos
para a efetivação do projeto Educação para Todos, e se caracterizavam na dificuldade e
no alto custo de se alocar professores especialistas em escolas rurais e o dispêndio
excessivo de recursos financeiros com transporte de professores.
Todo esse retorno às questões macroestruturais se fez necessário, para
entendermos os elementos discursivos e não-discursivos que serviram como base de
sustentação de um modo específico de objetivação do Professor do Campo. Uma maneira
168
COPESA nº 002/2012. Por intermédio desse edital, abriu o processo seletivo para o curso
de Licenciatura em Educação do Campo – Procampo, com a oferta de 60 vagas
(UNITAU, 2012b).
Como critério preferencial para ter o direito a concorrer a uma vaga no curso, o
candidato deveria ser professor e estar em exercício na rede pública de educação básica,
com atuação em escolas rurais e que ainda não possuir habilitação legal em licenciatura.
Como segundo parâmetro para a concorrência, o candidato poderia ser professor da rede
pública de ensino que, mesmo que possuísse a habilitação legal exigida para a docência,
mas atuasse em áreas distintas daquelas na qual fora formado. Por fim, as vagas se
destinavam ainda, aos jovens habitantes da zona rural que tivessem concluído o ensino
médio e que ainda não possuíssem formação superior.
Cabe aqui fazermos alguns comentários e uma breve análise acerca do exame, por
meio do qual os candidatos garantiram o seu ingresso no dispositivo pedagógico, pois as
ferramentas foucaultianas nos permitem considerá-lo como uma forma de apreensão dos
indivíduos pela trama discursiva do saber/poder. Na atualidade, possivelmente não se
questione a necessidade da realização de exames, quando se tem por objetivo selecionar, no
interior de uma população, um grupo de pessoas que se considere mais capacitadas, para a
realização de uma determinada tarefa ou, como no caso em questão, indivíduos de maior nível
cultural para participar de um curso superior de formação de professores.
O exame vestibular caracteriza algo aparentemente natural e não problemático nos
tempos atuais, pois configura um procedimento que se reveste de um caráter democrático e
meritocrático, por meio do qual o estudante tem a oportunidade de garantir o seu acesso aos
níveis superiores de educação. Essa normalidade encobre as próprias limitações financeiras e
estruturais, históricas ao sistema educacional brasileiro, que impedem a oferta de ensino
superior a toda a população e que, nessas condições, torna necessário o estabelecimento de
critérios considerados objetivos de inclusão e, consequentemente, de exclusão. É desse ponto
que iniciamos propriamente a problematização do Procampo/UNITAU, pois a partir seu
processo seletivo, enquanto procedimento discursivo e não-discursivo, racionalmente
calculado para efetuar a separação e a seleção daquelas pessoas de que necessita, verifica-se a
170
indivíduos, processada no interior do processo avaliativo, que tem seu regime de verdade
estabelecido pela normalização desse procedimento, como exame vestibular.
Posteriormente à divisão dos indivíduos, procedeu-se a sua separação em dois grupos,
sendo que um deles obteve autorização para participar do processo formativo de professores
do campo e, dessa maneira, teve garantida a sua inclusão e apreensão no interior do
dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU. O outro grupo, em contrapartida, teve a sua
incorporação ao dispositivo desautorizada e foi excluído do processo seletivo. A partir dessa
separação inicial, tornou-se possível um investimento sobre os corpos e as mentes dos
indivíduos, por meio de ações didático/pedagógicas racionalmente calculadas. Sendo assim,
as condutas desses alunos passaram a ser guiadas, na direção de uma transformação pessoal,
de modo que, ao final de todo o processo formativo, fossem produzidos sujeitos professores
do campo. Ou seja, sobre o corpo e a alma dessas pessoas, apartadas de seu ambiente comum
de convivência social, que o exercício do poder investiu seus saberes, para construir as
subjetividades de que necessitava (FOUCAULT, 2012b).
Sendo assim, desde o início do processo seletivo e da respectiva admissão dos
indivíduos no Procampo/UNITAU, percebe-se uma relação de poder, que acaba por sujeitar
os voluntários a um regime de verdade, presente no seu próprio arquivo histórico. Trata-se do
regime de verdade que determina não somente um valor superior aos títulos acadêmicos, mas
também que, entre as diversas titulações de nível superior, seja definida uma hierarquia.
Dessa maneira, embora no senso comum se considere que as titulações dos cursos de
licenciatura possuem um valor social inferior, quando comparadas com as certificações
obtidas em outras áreas do conhecimento - como a Medicina, o Direito e as engenharias -, a
formação docente, enquanto qualificação profissional de grau acadêmico, materializa uma
possibilidade de ascensão social (GATTI; BARRETTO, 2009).
No excerto a seguir, retirado do discurso do sujeito de pesquisa SR03, percebe-se certa
apreensão quanto ao fato do mesmo possuir apenas o ensino médio, pois o indivíduo relata
certa insatisfação e um sentimento de insegurança, quanto às oportunidades de obter um
trabalho reconhecido.
SR03 – Não que eu pretendesse ser professora, já tenho minhas duas irmãs que são
professoras. Eu não queria dar aulas, mas eu queria aprender alguma coisa [...], foi
uma oportunidade que eu tive de começar os meus estudos. [...] Eu sempre quis fazer
alguma coisa, queria aprender. [...] Eu achava insuficiente ficar só com o ensino médio,
pensava: - eu vou fazer o quê com isso? Foi aí que surgiu essa oportunidade, dessa
faculdade de matemática. Eu disse: - ótimo! Vou fazer isso, depois eu aprendo e faço
engenharia.
172
Quando o sujeito pergunta para si mesmo: - vou fazer o quê com isso?; evidencia a sua
insatisfação, quanto às limitadas oportunidades que teria na vida profissional, pois a
expressão: fazer o quê; manifesta um certo desprezo pelo tipo de trabalho que lhe restaria para
executar, pois provavelmente considera essas tarefas como algo socialmente desvalorizado.
Sendo assim, denomina o ensino médio como: isso; por considerá-lo como um nível
educacional insuficiente, conhecimentos que não são capazes de lhe oportunizar condições
satisfatórias de trabalho.
Outro ponto que precisamos destacar nesse discurso do sujeito SR03, está no fato de
que o curso de licenciatura do Procampo/ UNITAU consistia muito mais como uma
oportunidade para o indivíduo continuar seus estudos de nível superior, do que propriamente
uma pretensão de exercer a docência como atividade laboral. No fragmento SR03 afirma: eu
não queria dar aulas. O sujeito manifestou a sua condição inicial, no momento em que
ingressou no curso de licenciatura em educação do campo. Condição de quem percebeu no
curso de licenciatura, uma oportunidade de dar continuidade com os estudos e obter um
diploma de nível superior.
De acordo com o estudo realizado por Gatti e Barretto (2009), versando sobre
professores brasileiros, aproximadamente 24% dos alunos que optavam por cursar uma
licenciatura, afirmavam que haviam feito essa escolha como uma possível opção de trabalho,
pois, se porventura, não conseguissem exercer outra atividade remunerada, poderiam se
dedicar à docência. No caso do sujeito SR03, sua opção em cursar a licenciatura em educação
do campo se deu devido à proximidade que a habilitação do curso do Procampo/UNITAU
concedia, com a área de seu real interesse, a Matemática. O sujeito afirma ainda que: depois
eu aprendo e faço engenharia; o que demonstra um interesse na formação superior em
Matemática como uma espécie de objetivo intermediário, que lhe serviria de preparativo para,
posteriormente, cursar a faculdade que era de seu real interesse: a Engenharia Civil.
O fragmento de discurso do sujeito SR01 evidencia uma condição semelhante,
aparentemente comum a muitos dos candidatos ao curso de licenciatura do
Procampo/UNITAU, pois afirma que: tinha muita gente que não queria ser professor. No
caso desses alunos, o que vislumbravam era a possibilidade de obter um diploma de curso
superior, pois como sugere o sujeito de pesquisa: você vai ter um diploma, depois você pode
fazer outra coisa, exercer outra coisa.
173
SR01 – tinha muita gente que não queria ser professor. Se você não quiser ser professor,
você vai ter um diploma, depois você pode fazer outra coisa, exercer outra coisa. Mas
a pessoa vai pegando o gosto, você vai aprendendo, começa a ter contato com a escola.
Percebe-se que o interesse do sujeito SR01 pela docência foi algo que surgiu
posteriormente, durante o processo da própria aprendizagem para a docência, quando o
indivíduo é introduzido no interior do processo de ensino/ aprendizagem e passa a ter uma
convivência maior com o ambiente escolar. O contato com o ambiente escolar e,
possivelmente, o aprendizado dos saberes e o desenvolvimento das habilidades individuais
necessários à docência, possibilitam à pessoa pegar o gosto, pois como afirma o próprio
sujeito de pesquisa: você vai aprendendo.
Diferentemente dos dois casos mencionados anteriormente, para sujeito SR02, o
Procampo/UNITAU surgiu como uma possibilidade da realização de seu sonho de ser
professora, algo que parecia estar muito distante da sua realidade, pois como moradora da
roça, acreditava que não teria mais a oportunidade de continuar seus estudos.
SR02 – Eu sempre sonhei em ser professora, um sonho muito grande meu. [...] Eu olhava
os professores me dando aula e falava: - Nossa, eu poderia estar ali, poderia estar no lugar
delas, mas acho que eu não vou mais ter a oportunidade de estudar. [...] Sendo professora,
eu...; podia ser de qualquer uma das disciplinas, queria muito ser professora. Eu me
identifico muito mais com as humanas do que com exatas, só que eu adoro também
matemática, adoro tudo, contando que eu pudesse lecionar. [...] O sonho de ser
professora, de poder ajudar [...] de eu poder marcar a vida de algum aluno, de poder levar
para eles a aprendizagem, a educação, que eu acredito muito na educação.
O sonho do sujeito SR02 era ser professora, algo que não dependia exatamente de uma
área específica do conhecimento, embora manifestasse uma maior identificação pessoal com
as Ciências Humanas, declarava certa predileção também em relação à matemática. Constata-
se que, a atração do sujeito pela docência, relacionava-se com a sua crença na possibilidade de
transformação do outro, por meio da educação. Percebe-se nesse excerto a função do
professor como alguém que leva para os alunos algo, que marca as suas vidas e os ajuda,
sendo que esse objeto que o professor transfere para o aluno, é a aprendizagem. Desse modo,
o professor é alguém que participa da condução da vida do aluno, como uma pessoa que pode
ajudá-lo em sua aprendizagem. Poder de marcar a vida de algum aluno consiste propriamente
de uma relação de governo do outro, pois essa espécie de sinal que o professor deixa na vida
de seu aluno configura uma positividade de sua ação como docente, que possivelmente visa a
transformação do aluno, por exemplo, num cidadão (FOUCAULT, 2014d).
174
SPC02 – Então, os quatro anos de duração foram divididos entre janeiro e julho, com aulas
do Tempo Escola, que aconteciam na universidade e as disciplinas mais voltadas para a
prática, foram executadas no Tempo do período Comunidade, que acontecia no meio dos
dois semestres.
SR03 – As aulas eram em período integral, o dia inteiro. A gente chegava lá às sete e meia
da manhã e saíamos às 18 horas. As aulas eram divididas em dois tempos, uma disciplina no
primeiro tempo até a hora do almoço, o meio-dia e depois, outra disciplina no segundo
tempo.
De acordo com a Professora SPC02, cada turno diário ficou destinado ao estudo de
uma disciplina específica, sendo um professor responsável pelo desenvolvimento do conteúdo
de uma disciplina pela parte da manhã, enquanto outro professor ministrava o assunto de outra
matéria curricular no período da tarde. Ainda, de acordo com o excerto do discurso dessa
mesma professora, a estratégia didática de intercalar disciplinas foi adotada para manter o
interesse dos alunos e evitar que as atenções fossem prejudicadas pelo cansaço, caso tivessem
que estudar o mesmo conteúdo disciplinar por dois turnos consecutivos, que somavam oito
horas/aula.
177
SPC02 – Como as aulas aconteciam o dia todo, nós fizemos uma divisão, que um professor
dava aula de uma disciplina no período da manhã e outro professor de outra disciplina no
período da tarde, para não ficar cansativo, oito horas com o mesmo professor o mesmo
assunto, isso foi uma estratégia para que a atenção dos alunos não fosse prejudicada.
No Tempo Comunidade, os alunos cumpriram uma carga horária 2.000 horas, na qual
foram desenvolvidos projetos de intervenção nas suas próprias comunidades de origem, sob a
supervisão de professores do curso, nos períodos de fevereiro a junho e de agosto a dezembro.
Desse modo, no período compreendido entre os meses de fevereiro e junho, assim como entre
agosto e dezembro, havia a continuidade da aprendizagem dos alunos, que se desenvolvia de
maneira prática, a partir da aplicação dos projetos nas escolas de suas respectivas
comunidades (UNITAU, 2016). Como lembra a Professora SPC02, a própria comunidade do
aluno constituía o espaço para o desenvolvimento das práticas pedagógicas, por meio de
pesquisas de investigação cultural em que se buscava conhecer de maneira mais aprofundada
o próprio bairro e a escola.
SPC01 – Nós trabalhávamos as disciplinas do Tempo Comunidade, em que eles iam olhar
a escola, geralmente uma escola que era a deles. Eles iam perceber a cultura desses alunos, o
que precisava. E eles iam atuar através de projetos, que cada segmento necessitasse [...] nós
trabalhávamos questões, disciplinas que valorizassem a cultura, principalmente a cultura
do campo e as novas propostas de ensino para as escolas do campo. Diante do que? Diante
da necessidade real daquela comunidade.
De acordo com Norsella (2014), o objetivo inicial das Escolas de Família Rural era
elaborar uma alternativa pedagógica do meio rural, para o próprio meio rural, uma vez que
essa escola devia ser construída para os agricultores, cujos interesses deviam se alinhar às
suas necessidades de mudança da realidade em que viviam. Assim sendo, a pedagogia da
alternância se constituiu como a forma de organização escolar, que melhor se alinhou com as
necessidades educacionais e produtivas do povo do meio rural.
A estratégia didático/pedagógica de ensino por alternância estava estabelecida na
própria norma do Edital 09/2009, por ser considerada a mais viável para o curso e por
assegurar a participação de alunos que já exerciam a função docente e, dessa maneira,
somente poderiam se afastar do trabalho nas escolas, nos períodos de férias escolares, ou seja,
nos meses de janeiro/fevereiro e de julho. Por conseguinte, também possibilitava aos
indivíduos, que ainda não possuíam uma formação superior e desejavam cursar essa
licenciatura, não precisarem abandonar os locais onde residiam, pois o Tempo Escola, embora
se desenvolvesse e em período integral, tinha a duração de apenas um mês a cada semestre e
contava com todo um apoio logístico, que será abordado a seguir.
SPC01 – A universidade tinha o Campus do Bom Conselho, que foi o melhor local da
universidade para abrigar esse curso de ciências da natureza e matemática, porque nós
tínhamos os laboratórios de primeiro mundo. Os laboratórios de ciências, de primeiro
mundo. Nós tínhamos um laboratório de informática, muitos não dominavam, eles
aprenderam a dominar a informática nesses laboratórios. Além dessas questões, a questão de
biblioteca, de livros, a universidade é muito preparada nesse quesito.
Esse material de apoio didático foi confeccionado por cada um dos professores
responsáveis pelas disciplinas do curso. Percebe-se o destaque especial que a professora
SPC01 atribuiu ao compromisso dos professores com o curso, que se materializou tanto na
preparação de suas aulas, como na utilização dos recursos tecnológicos e de metodologias
apropriadas a cada um dos assuntos desenvolvidos.
Para que a estrutura física, informatizada e de pessoal, disponibilizada pela
universidade, pudesse funcionar como mecanismos do dispositivo pedagógico, foi preciso
efetuar a apreensão dos corpos dos indivíduos, de maneira que houvesse a necessária
transformação dessas pessoas em professores do campo. Desse modo, foi preciso colocar em
funcionamento todo um aparato logístico, que facilitasse a participação e a permanência dos
alunos no curso.
Assim, referindo-se às questões logísticas, indispensáveis ao funcionamento do curso,
a professora SPC02 menciona que foi necessária a realização de duas parcerias, uma com a
Prefeitura Municipal de Cunha e outra com a Universidade de Taubaté. A Prefeitura de Cunha
fornecia o transporte dos alunos, da cidade para o campus da universidade, para as aulas do
Tempo Escola, assim como as salas de aula das escolas onde ocorriam os encontros
181
SPC02 – A questão de logística tinha uma parceria com a prefeitura. Nós tínhamos, na
verdade, duas parcerias: a prefeitura cedia a questão do transporte dos alunos, cedia
também algumas escolas onde a gente se encontrava no Tempo Comunidade. Cediam salas
de aula, lanche também para o Tempo Comunidade. Outra questão de logística, de parceria,
foi com a Universidade de Taubaté, que cedeu também o espaço de alojamento, que
cedeu os colchonetes, os sanitários, a questão do café da manhã, as salas de aula.
No Tempo Escola havia o apoio logístico da universidade que, além da sala de aula
onde ocorriam as aulas, cedia também mais duas salas, utilizadas como alojamento masculino
e feminino pelos alunos que se achavam impossibilitados de retornar às suas residências ao
final do dia letivo. O lanche e o café da manhã, mencionados no discurso da Professora,
estavam incluídos na planilha de custos do próprio curso, que contava com o financiamento
dos recursos disponibilizados pelo FNDE (UNITAU, 2016).
Por meio desse suporte de alojamento, banheiros e colchonetes, oferecido
gratuitamente pela universidade, permitiu-se que os alunos permanecessem na cidade durante
os dias de aula. Desse modo, a Professora SPC02 lembra que os alunos, que permaneciam
alojados na universidade, chegavam ao campus universitário na segunda-feira e retornavam às
suas cidades na sexta-feira no final da tarde.
impossibilidade de efetuar esse deslocamento diariamente, sendo que esse aluno foi um dos
que necessitou de alojamento durante o período das aulas presenciais.
SR01 – Eu morando aqui, não sei quantos quilômetros é daqui em Taubaté, mas é longe,
então não teria como eu ir, como me deslocar todos os dias.
SR02 – A gente teve muito suporte da prefeitura de Cunha, ela levava a gente [...] a
prefeitura ajudou muito, o pessoal de Cunha, deu bastante suporte de ônibus, ajudou muito.
Seria difícil, por exemplo, eu ir para Taubaté.
SR03 – Para a gente sair daqui, é muito longe para ir para lá, tudo muito longe. [...] o
transporte que era fornecido pela prefeitura, se não fosse ele, a maioria que precisava
viajar, não teria conseguido.
Todo esse suporte logístico do dispositivo pedagógico contou ainda com um terceiro
elemento, por meio do qual se buscou a inserção imediata dos alunos na prática docente e, em
contrapartida, garantiu a permanência no curso, por meio do fornecimento de bolsas de
estudo. Desse modo, por meio do curso de Licenciatura em Educação do Campo, o
Procampo/UNITAU manteve cada um dos alunos vinculados ao Programa Institucional de
183
Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) que, de acordo com a aluna SR03, foi imprescindível
para custear os gastos com alimentação durante o Tempo Escola.
SR03 – a gente tinha uma bolsa do PIBID, que era uns 400 reais na época. Era o que
ajudava a gente se manter lá, principalmente com a alimentação [...] O PIBID foi
essencial, porque eu acho que a maioria não teria condições nenhuma de se manter,
principalmente se manter em questão de alimentação.
SR01 – Acho que sem o PIBID, a maioria não teria conseguido realmente. [...] Mas a
gente precisava se manter lá. Gastava com material, com transporte aqui, porque eu tinha
que me locomover daqui até a escola do Paraitinga, no meio do caminho daqui, uns 15
quilômetros daqui. Tudo isso tem custo e se não fosse isso eu não teria condições de fazer.
O PIBID foi instituído como política pública por meio da Portaria Normativa nº 38, de
12 de dezembro de 2007, cujo objetivo foi o fomento e a preparação de estudantes de
licenciaturas, de instituições públicas de ensino superior, com vista à atuação na educação
básica pública (BRASIL, 2007a). A primeira chamada pública para as bolsas do PIBID
ocorreu com a abertura do Edital MEC/CAPES/FNDE 2007, de 13 de dezembro de 2007, o
qual operacionalizou a seleção de projetos institucionais para a participação no programa
(BRASIL, 2007b).
Até a publicação do Edital CAPES/DEB nº 02/200950, somente poderiam concorrer às
bolsas do programa PIBID, alunos de instituições federais e estaduais, sendo que essa
concorrência às bolsas se ampliou a partir da publicação do Edital CAPES 18/2010 (MEC,
2010a). A contar desse edital, as instituições públicas municipais de ensino superior, assim
como as universidades e centros universitários comunitários, confessionais e filantrópicos,
50
Com a chamada pública do Edital nº 02/2209, CAPES restringia a oferta do PIBID às Instituições Públicas de
Ensino Superior, federais e estaduais (MEC, 2009).
184
passaram a ter o direito de encaminhar seus projetos para concorrer na oferta de bolsas PIBID
para seus alunos dos cursos de licenciaturas.
Ainda no ano de 2010, a CAPES lançou um edital específico para o atendimento, por
meio do PIBID, aos Programas de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais
Indígenas (PROLIND) e aos cursos do Procampo (MEC, 2010b). Além do financiamento dos
estudos, por meio de bolsas aos alunos dos cursos de licenciatura, o PIBID garantia o custeio
do trabalho docente de um coordenador institucional, de coordenadores de área e de
professores supervisores dos estagiários.
A cada um dos alunos matriculados no Procampo/UNITAU foi garantida uma bolsa de
iniciação à docência, no valor mensal de R$ 450,00, financiada até o final do curso pela
CAPES. O coordenador institucional foi o responsável pela execução do projeto, e se tratava
de um docente indicado pela própria instituição contemplada com o programa. Os
coordenadores de área foram selecionados entre os professores dos cursos de Licenciatura, do
quadro efetivo da própria UNITAU, e tinham a incumbência de selecionar os bolsistas, além
de acompanhá-los e orientá-los. O professor supervisor, por sua vez, ficou responsável pelo
acompanhamento dos bolsistas nas escolas, os quais foram selecionados pelo coordenador de
área (MEC, 2010).
Cabe ressaltar que o PIBID e o Procampo eram programas distintos e independentes
um do outro, que foram vinculados entre si pelos organizadores da proposta do
Procampo/UNITAU, como uma estratégia que permitiu a inclusão e a permanência dos alunos
no curso, pois a bolsa fornecida pelo Programa de Iniciação à Docência se tornou uma
importante ferramenta de financiamento para as despesas acadêmicas dos alunos. Além disso,
o PIBID se configurava como uma possibilidade a mais, além do currículo do
Procampo/UNITAU, de formação docente através da experiência de si dos alunos, por meio
da qual se realizou a transformação desses indivíduos em sujeitos professores do campo,
mediada pelo dispositivo pedagógico.
De acordo com Larrosa (2011), o dispositivo efetua a mediação pedagógica da
experiência de si, por meio da organização arquitetônica, distribuição das disciplinas e da
forma como elas são didaticamente ensinadas, do direcionamento das práticas educacionais,
que os sujeitos precisam desenvolver, para cumprir a prescrição curricular. Por esse motivo,
tratarmos anteriormente sobre o próprio funcionamento do dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU, assim como a respeito das questões relacionadas à logística, por meio
das quais se criou a possibilidade de uma efetiva apreensão dos indivíduos da roça no interior
do processo de formação docente.
185
Nesse subitem, inicialmente, apresentamos alguns dados estatísticos sobre quem eram
os alunos que ingressaram no programa, e que permitiram traçar uma espécie de perfil
socioeconômico e demográfico desses indivíduos, ou seja, informações que possibilitaram
efetuar uma primeira objetivação do sujeito empírico. Para o perfeito funcionamento do
dispositivo pedagógico, é necessário que se produza saberes sobre a individualidade dos
sujeitos, isto é, que se descubram os elementos sobre os quais haverá a necessidade do
exercício do poder governamentalizado, de modo que as condutas sejam modificadas e
moldadas (FOUCAULT, 2013a; 2014c; 2016b).
Desse modo, os saberes necessários à objetivação do indivíduo da roça, enquanto
sujeito empírico apreendido pelo dispositivo pedagógico, foram produzidos a partir dos dados
coletados pela pesquisa intitulada Educação do Campo, Identidade e Representação Social de
Professores, coordenada pela Professora Doutora Edna Maria Querido de Oliveira Chamon,
que contou com a participação deste pesquisador, durante a realização do curso de mestrado
(CHAMON, 2012). Por meio de nossa participação nesse projeto de pesquisa, foi possível
realizar um acompanhamento aproximado dos alunos do Procampo/UNITAU, durante os
quatro anos de realização do curso. Sendo assim, os dados apresentados a seguir foram
obtidos por meio da pesquisa referenciada anteriormente sobre os ingressantes no curso de
Licenciatura em Educação do Campo da UNITAU, no ano de 2013.
Inicialmente foram matriculados 60 alunos no curso Procampo/UNITAU, residentes
em 17 municípios do Vale do Paraíba Paulista, sendo que nenhum deles possuía curso
superior e aproximadamente 70% deles eram mulheres. A média de idade desses estudantes
ficava em torno dos 28 anos, sendo que o mais jovem possuía, na época da matrícula, 18 anos
de idade e, em contrapartida, o acadêmico que possuía a idade mais avançada encontrava-se
com 58 anos. Dentre o total de alunos matriculados, em torno de 96% deles não exercia a
atividade docente, cerca de 4% declararam exercer a função de professor e, dentre esses
186
últimos, metade tinha entre um e dois anos de experiência docente, sendo que a outra metade
possuía entre dois e três anos de prática educacional. Os alunos que se declararam casados ou
que viviam com o(a) companheiro(a) representavam 59% do grupo, os solteiros equivaliam a
32% e os separados ou divorciados constituíam 9% do total de estudantes.
Quando indagados sobre as dimensões de suas famílias, cerca de 43% declararam
possuir quatro ou mais irmãos, 10% afirmaram que tinham três irmãos, 20% possuíam dois
irmãos, 25% revelaram ter apenas um irmão e 2% deixaram de responder a essa questão.
Sobre o questionamento acerca do tipo de residência (própria, alugada etc.), aproximadamente
73% declararam que residiam em casa própria, 11% habitavam imóvel alugado, 13%
moravam em casa cedida ou emprestada e 3% afirmaram que viviam como caseiro da
propriedade. Ao serem questionados sobre as pessoas com quem dividiam a moradia, em
torno de 52% declararam residir com os pais e/ou outros parentes, 41% revelaram dividir a
residência com o(a) cônjuge e/ou com os filhos, 4% mencionaram que moravam sozinhos e
cerca de 3% alegaram que moravam com amigos, com os quais dividiam as despesas
domésticas.
Sobre as condições econômicas e de trabalho, cerca de 40% declararam não estar
trabalhando na época da matrícula no curso, aproximadamente 44% afirmaram trabalhar
apenas um turno e outros 16% mencionaram que seu regime trabalho lhes consumia dois
turnos diários. Quando indagados sobre a sua renda pessoal, metade dos alunos declarou
receber mensalmente até um salário-mínimo, aproximadamente 21% assegurou que recebia
mensalmente entre um e três salários-mínimos, cerca de 27% mencionaram não possuir renda
pessoal e outros 2% não responderam. Sobre a renda familiar, em torno de 30% dos alunos
alegaram que suas famílias recebiam até um salário-mínimo mensal, cerca de 65% declararam
ter uma renda familiar que estava entre um e três salários-mínimos, outros 5% revelaram que
sua renda familiar mensal se encontrava na faixa entre três e cinco salários-mínimos.
Os questionamentos acerca dos aspectos culturais, os dados revelados pelos estudantes
possibilitaram verificar que, em torno de 91% desses acadêmicos haviam estudado apenas em
escola pública, cerca de 5% estudaram somente em escola particular, outros 4% declararam
ter estudado parte de seu tempo de escolarização em escola pública e outra parte em escola
privada. Quanto ao tipo de curso concluído no ensino médio, aproximadamente 70% dos
estudantes afirmaram terem finalizado seus estudos no ensino médio regular, cerca de 16%
declararam ter concluído por meio de supletivo. Em torno de 10% realizaram o magistério
profissionalizante e outros 4% afirmaram que cursaram o ensino técnico profissionalizante.
187
SD01 – Eles chegaram como alunos do campo muitos intimidados. Aquele mundo que
eles estavam vendo na universidade, com aquela cidade grande, eles pareciam seres
intimidados, recuados.
Nesse excerto, percebe-se um regime de verdade já subjetivado pelo docente, que põe
em funcionamento o discurso sobre a identidade camponesa, por meio do qual transforma o
aluno do campo num objeto de conhecimento, algo que precisa ser apreendido pelo discurso
institucionalizado da Educação do Campo. De acordo com Foucault (2014b), o dispositivo
busca efetuar a ancoragem das subjetividades numa identidade, que fixa as diferenças e
ancora as potências criativas. No caso do camponês, essa identidade objetiva o indivíduo a
partir da estabilização de suas potências, em torno de uma suposta relação primordial com a
terra e da necessidade da sua utilização como meio de produção e de reprodução de sua
própria existência (MOLINA, 2010; MUNARIM, 2010).
De uma maneira geral, os alunos não se identificavam como sujeitos do campo, pois
essa não é a denominação comum, utilizada para designar o habitante da região da Serra da
Mantiqueira, onde se localiza boa parte dos municípios que compõem o Vale do Paraíba
Paulista. O território desses municípios é marcado por uma forma de relevo sinuoso, que nem
de longe lembra a planície dos campos. Sendo assim, os alunos serem designados como
camponeses, evoca algo que não lhe faz sentido algum, pois a identidade que eles se auto
atribuem é a de sujeito da roça. Nos excertos dos discursos dos sujeitos formados no
programa Procampo/UNITAU, verificamos essa autodesignação, enquanto sujeito da roça,
como alguém que nasceu ou que reside na zona rural.
SR01 – Antes eu me via como um coitadinho da roça [...] porque sempre o aluno da roça
é mais tímido, é mais na dele, é mais quietinho, tem um pouco de vergonha.
expressões são carregadas de sentidos pejorativos, que classificam esses sujeitos como
atrasados, preguiçosos, ingênuos, incapazes”.
Essa representação depreciativa de si caracterizava a própria subjetivação da imagem
social construída sobre o sujeito rural brasileiro, ou seja, criada pelo outro e transformada em
verdade pelos próprios alunos, imagem que acabava por lhes fazer acreditar que eram pessoas
inferiores. No fragmento de discurso proferido pelo sujeito SD02 e apresentado a seguir,
constata-se a preocupação do aluno, com a imagem produzida pelos professores, acerca da sua
condição enquanto sujeito da roça.
SD02 - Quando eles chegaram na universidade, eu tenho um aluno que estava dando aula e
ele interrompeu a minha aula, e ele falou:
- Professora, me desculpa, mas nós estamos aqui em pleno janeiro e você veio dar aula
nas suas férias. Quem você achou que você iria encontrar?
Eles tinham muito essa preocupação do que, nós professores, achávamos que eles eram. E
aí eu respondi:
- Olha eu acho que você está esperando de mim, que eu ia encontrar um monte de gente de
botina, calça suja de terra, chapéu, cigarro de palha.
Eles riram eu falei:
- Não, para alguém assumir uma formação para professor de escola rural e vir fazer um
curso em janeiro, são pessoas transformadoras.
Então esses alunos tinham essa expectativa que a gente achava que eles eram caipiras, que
falavam errado, que não sabiam nada, que erram burros.
limitações, que o impediam até mesmo de sonhar em estudar fora do seu local de habitação, o
que lhe permitia caracterizar o curso do Procampo/UNITAU como: um sonho impossível que
se tornou possível.
SR02 - Para mim foi um sonho impossível que se tornou possível. Porque, morando na
roça, zona rural e pintar uma faculdade lá em Taubaté, que a gente ia em janeiro e julho...
e, assim..., meu marido sendo contra!
SR03 - Eu nasci na roça, na zona rural aqui em Cunha. [...] Daí eu vim para cidade,
depois voltei para roça então sempre estive nesse meio rural. [...] Mas como que eu iria
fazer, se não tinha como sair da roça?
Percebe-se nos estrados dos discursos apresentados anteriormente, certa abertura dos
sujeitos pesquisados às representações estereotipadas, difundidas socialmente inclusive pela
literatura local. Abertura essa que, de certa forma, os tornavam vulneráveis a tais
representações, que assimilavam como um discurso de verdade e que os faziam aceitar as
limitações que a distância lhes impunha, como algo insuperável e que acabavam até mesmo
por lhes retirar a possibilidade de sonhar em ser alguém diferente do que eram.
A assimilação de um discurso de verdade, que acaba por depreciar não somente as
formas de existência rural, mas a própria vontade dos sujeitos da roça e seus modos singulares
de falar, de pensar e de entender o mundo. Por meio dessas representações, os alunos criavam
uma imagem vergonhosa de si, assumindo-se negativamente como caipiras, gente que fala
errado, pessoas de baixa capacidade cognitiva e de um saber de menor valor (que não sabe
nada), ou seja, alguém que é considerado burro.
Sobre essa imagem depreciativa de si mesmo, o extrato do discurso da professora
SD02 deixa claro o desejo do sujeito da roça ser diferente do que é, falar do mesmo modo
como o outro (o sujeito da cidade) fala, uma vez que seu vocabulário, de certa forma,
191
denuncia um modo de ser socialmente inferiorizado, que é a situação do caipira que mora na
roça.
SR01 - Eu não sei se eu sonhava em fazer uma faculdade, porque todo mundo que veio
antes de mim, lá no meu bairro, todo mundo estudou até a quarta série, nem o sexto ou
o sétimo tinha, não existia isso lá. [...] Não tinha como você morar aqui e fazer uma
faculdade. E para ir embora também, todo mundo é pobre lá em casa, ninguém tinha...,
não tinha condições, nem de sonhar com isso. [...] Nem isso, nem nada! Não tinha.
Então ninguém tinha, era uma coisa inimaginável. Apareceu até o ensino médio, está bom
já. Já estava à frente de todo mundo. [...] Você é um pouco do meio de onde você está
inserido. Então, lá não existe ninguém que teve um curso superior. Ninguém. Todo
mundo trabalhou na roça e a vida lá é assim, ninguém nunca pensou.
O fato de não haver uma única pessoa formada em nível superior na sua comunidade,
configura uma certeza para o sujeito, de que cursar uma faculdade é algo impensável para
quem mora na roça, um sonho que ele nem mesmo sabia dizer se algum dia passou pela sua
193
cabeça, pois a realidade de seu entorno social lhe evidenciava que: não tinha como você como
você morar aqui e fazer uma faculdade [...] não tinha condições, nem de sonhar com isso [...]
nem isso, nem nada! Não tinha. Quando o sujeito utiliza a expressão: nem isso, nem nada;
refere-se justamente à sua certeza de que haveria uma reprodução das coisas, exatamente da
forma como sempre aconteceram, o que lhe impedia até mesmo de sonhar com algo diferente.
Nesse sentido, Foucault (2014d, p.118-119) afirma que “[...] o stultus é aquele que está
disperso no tempo: não somente aberto à pluralidade do mundo exterior, como disperso no
tempo”.
Pelo fato de não haver uma pessoa sequer em sua comunidade, portadora de um título
educacional de nível superior, o SR01 transformou essa condição pretérita do seu entorno
social, numa representação verdadeira para si mesmo. Desse modo, por acreditar que essa
concretude histórica de sua comunidade, acabaria por se reproduzir na sua própria existência,
terminava por aceitar que não tinha condições, nem de sonhar com isso. Seria essa uma forma
de dispersão no tempo, como declara Foucault (2014d), pois o fato de o sujeito nem de sonhar
com isso determina uma espécie de solução, de encerramento ou de conclusão prévia para o
futuro de sua existência. Em outras palavras, com base nas representações sobre o passado, o
SR01 emitia um juízo sobre o futuro, de forma a não haver espaço para as incertezas do
porvir, o que se constitui uma maneira própria do sujeito tentar controlar aquilo que ainda não
aconteceu, ou seja, de planejar o futuro.
De maneira semelhante, o SR02 acreditava que seria impossível cursar uma faculdade,
tanto pelo fato de residir na roça, como pelas outras responsabilidades que possuía como
empresária, motorista e produtora rural. Afirma que sua vida era de muito trabalho, pois além
de proprietária de uma lanchonete, declarou que desempenhava ainda a função de motorista,
além de produzir e ser comerciante de flores na sua chácara. Acrescenta, ainda, que embora
toda essa vida agitada com os trabalhos na lanchonete, como motorista e no plantio e venda
das flores produzidas na chácara, seu sonho mesmo era ser professora.
SR02 – Minha vida era de muita luta [...] aqui eu tinha uma lanchonete [...] Eu era
motorista da zona rural [...] aqui eu tinha uma lanchonete, sou produtora da flor copo-
de-leite, sou produtora da chácara, é muita luta, muito trabalho. [...] Eu sempre sonhei
em ser professora, um sonho muito grande meu. [...] Eu olhava os professores me dando
aula e falava: - Nossa! Eu poderia estar ali, poderia estar no lugar delas. Mas acho que eu
não vou mais ter a oportunidade de estudar [...]. Sempre sonhei em cursar uma faculdade,
mas achava isso impossível.
194
De acordo como Foucault (2014d, p. 118) “[...] o stultus é aquele que quer, mas quer
com inércia, quer com preguiça, sua vontade se interrompe sem parar, muda de objetivo. Ele
não quer sempre”. Não se tratava propriamente da preguiça, mas sim de uma inércia que se
formava por conta da distância, pois os sujeitos se viam impedidos de cursar uma faculdade,
porque residiam longe dos locais em que os cursos superiores eram ofereciam.
SR03 – [...] porque estando na roça, para eu estudar seria muito difícil, não só pela
questão financeira, mas o problema de locomoção. Eu morava a 10 quilômetros do
asfalto. Para eu ir até o asfalto e pegar uma condução para faculdade, não tinha como.
institucionalizado pelo curso Procampo/UNITAU, que interessa ao estudo a ser realizado nos
subitens que seguirão o desenvolvimento da presente tese.
necessário à disseminação dos saberes, que são utilizados como objetos de poder, para a
transformação das individualidades rurais nessa modalidade única e total de ser camponês.
Ainda de acordo com Larrosa (2011, p.76) “[...] a norma está ancorada no saber, na
medida em que fixa critérios racionais que aparecem como objetivos e, ao mesmo tempo, está
ancorada no poder, na medida em que constitui os princípios de regulação da conduta segundo
os quais funcionam as práticas sociais de disciplina”. As práticas de regulação da conduta
constituem especificamente o trabalho executado pelo dispositivo pedagógico, por meio do
qual se buscou a modificação do indivíduo da roça, a partir da exposição de seu ser empírico a
um modelo de subjetividade constituído previamente, que se organizou na forma do sujeito
transcendental, caracterizado pelo professor do campo.
Cabe aqui um esclarecimento sobre a concepção foucaultiana de sujeito
transcendental, pois não se trata da substância epistêmica cartesiana, desde sempre existente e
que antecede o saber, capaz dele próprio construir a história. O sujeito é considerado uma
forma e não uma substância transcendental, justamente por ser uma matriz de apreensão de
individualidades, que é histórica e antecede até mesmo aquele que ocupa essa posição.
Noutros temos, considera-se como transcendental essa posição sujeito, pelo fato de ser
histórica e contingente, assim como por se tratar de uma construção a priori, que antecede o
próprio ser que nela se apreende (FOUCAULT, 2010, 2012a; 2013a).
Portanto, o dispositivo pedagógico estabeleceu os meios que propiciaram o contato do
indivíduo da roça com o seu outro, com a forma de ser produzida discursivamente, como uma
posição sujeito que deveria ser ocupada pelo professor do campo. Como demonstramos no
capítulo IV, o perfil desse sujeito professor do campo foi sendo traçado, por meio do embate
político de forças revolucionárias e neoliberais, que buscavam a produção de um ser livre e
autônomo. Destacamos que, os sentidos atribuídos aos enunciados liberdade e autonomia
eram diferentes, quando considerada cada uma das formações discursivas, que buscavam
limitar a dispersão e a aleatoriedade desses enunciados (FOUCAULT, 2015a).
Desse modo, o discurso revolucionário se apoiava numa determinada formação
discursiva, que confere ao processo educativo a capacidade de produção de um sujeito
engajado politicamente, alguém que possui a liberdade e a autonomia para a mudança da
estrutura econômica, que é vista como a causa responsável pela produção da diferença e a
desigualdade. Por outro lado, o discurso neoliberal se apoiava numa formação discursiva, que
credita à educação a capacidade de produzir uma determinada forma de ser sujeito, também
livre, autônomo e engajado num outro tipo de transformação, que não se trata exatamente da
estrutura sócio/econômica. A transformação que se pretende operar, por meio do discurso
197
neoliberal é na própria subjetividade, de maneira que a pessoa se torne alguém mais apto a
participar ativamente dessa estrutura. Um sujeito, mais eficientemente engajado no mundo do
trabalho e da produção, é considerado como o ponto necessário para operar a redução das
diferenças e das desigualdades sociais (DARDOT; LAVAL, 2016).
Ainda com base nas análises realizadas no capítulo IV, constatamos que, por meio das
adaptações, das inclusões e dos desvios do discurso original da Educação do Campo, o
modelo progressista e transformador de educação e de sujeito, pretendido pelos movimentos
sociais e sindicais do campo, acabou por ser integrado ao discurso neoliberal. Essa
acomodação do discurso progressista e revolucionário aos preceitos neoliberais, culminou
com a normatização de um determinado tipo de educação e a produção de uma forma
específica de sujeito, cuja base epistemológica se fundamenta no enunciado de sujeito da
modernidade: um ser considerado livre e autônomo. É dessa maneira que a transformação do
indivíduo da roça em sujeito professor do campo, seguiu os parâmetros estabelecidos pelo
conhecimento científico, cuja objetividade foi que propiciou as novas bases para a
interpretação individual e cultural (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
Para Foucault (2015b), a objetivação corresponde ao processo pelo qual o homem
é reduzido a um objeto de conhecimento manipulável, passível de domínio e que
possibilita a transformação do indivíduo, em algo diferente do que ele é na atualidade.
Sendo assim, com o objetivo de investigar o modo como o professor do campo foi objetivado
pelo dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU, interrogamos dois dos docentes do
programa, sobre quem era o sujeito que se pretendia formar por meio do referido curso. De
acordo como a professora SPC01, esse sujeito já estava delineado no Projeto Político
Pedagógico do Procampo, que se trata de um professor que deveria possuir uma formação
científica, de maneira a dominar os fundamentos de cinco áreas diferentes do saber.
SPC01 – O sujeito que se pretendia formar é o que está delineado no Projeto Político
Pedagógico do Procampo. Especificamente no Procampo/UNITAU, o que está delineado
é um sujeito que tivesse uma formação cientifica, em relação aos fundamentos da
matemática, da física, da química, da biologia e da geografia.
deveria possuir uma formação científica, de maneira que lhe permitisse dominar os
fundamentos das disciplinas escolares relacionadas à matemática, à física, à química, à
biologia e à geografia. Percebe-se os elementos performativos do discurso neoliberal,
configurados nesse aspecto do sujeito multitarefa, que deve ser preparado para desempenhar o
trabalho docente em várias disciplinas.
Esse mesmo enunciado, que objetiva o professor do campo, como alguém que deveria
possuir uma formação científica e multidisciplinar, pode ser identificado no fragmento da
entrevista da professora SPC02, quando afirma que o curso se estruturou em torno do objetivo
de formar professores, para lecionar no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino
médio, habilitados ao ensino das disciplinas anteriormente mencionadas.
SPC01 – Além da formação específica para o professor da escola do campo para esse
novo milênio, também contemplava uma valorização muito grande da cultura desses
alunos. É um olhar sobre a cultura, uma valorização sobre essa cultura, que é muito
desprezada em nosso país e, ao mesmo tempo, esse programa manteve aceso à história de
cada aluno, à história dos seus pais, dos seus antepassados.
SPC02 – O objetivo do curso seria mesmo essa questão de integrar os saberes do campo,
saberes dos alunos, aqueles que tinham conhecimento da realidade do campo, com o
conhecimento científico e com a docência.
ocupado, numa perspectiva foucaultiana, não se considera o sujeito como uma essência ou
uma substância, tal qual passou a ser defendido pela racionalidade moderna a partir da obra de
René Descartes (1596-1650) e aprofundado pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804).
Toda a série de pesquisas realizadas por Michel Foucault, acerca do saber e do poder e suas
inter-relações, serviram-lhe de base para avançar nos estudos sobre essa configuração, que
determina as formas particulares de agir e de ser humano, que passou a se chamar de sujeito.
Nessa forma de ser, denominada sujeito, não se trata de uma essência desde sempre
idêntica a si mesma ou imutável, mas refere-se a algo que se constrói historicamente e que se
desloca no tempo e no espaço, uma estrutura que está em constante mutação e, por isso
mesmo, jamais é idêntica a si mesma de uma época histórica para outra. Dessa maneira, os
estudos foucaultianos concebem o sujeito como uma forma, que se configura, que se compõe
e se organiza estruturalmente de diferentes maneiras, conforme cada época. Em outras
palavras, o sujeito é um objeto produzido no interior das relações de saber/poder,
historicamente estabelecidas (FOUCAULT, 2014d).
Do mesmo modo, o termo subjetivação, quando empregado numa perspectiva
foucaultiana, marca a contraposição à ideia de sujeito constituinte, pois essa expressão
designa sempre um caráter processual e de produção de uma determinada forma de ser sujeito,
nunca completamente acabada e em constante transformação e abertura, tanto ao exterior
quanto ao universo interno do indivíduo. Sendo assim, as ações por meio das quais o poder
busca orientar as condutas, no sentido de construir a subjetividade do professor do campo, só
se tornam compreensíveis a partir da produção discursiva de uma dupla posição individual, ou
seja, um duplo modo de ser com os quais a pessoa passa a se relacionar intimamente.
Esse eu duplicado do sujeito se forma, quando ocorre uma apreensão do indivíduo por
um dispositivo, aqui o pedagógico, que, na condição atual em que se encontra o seu ser, toma
parte no processo formativo para se tornar professor e entra em contato com um regime de
verdades acerca de um estado desejável, ou da forma idealizada e objetivada de ser professor
do campo. Então, o eu duplicado do sujeito se produz a partir do conflito entre um eu
empírico (o indivíduo da roça) e uma forma transcendental de ser (o sujeito professor do
campo). A duplicação do sujeito se alicerça numa batalha constante entre a atualidade do eu e
a dobra produzida sobre si, pela objetivação da forma-sujeito, enquanto estrutura idealizada e
construída apriorística e discursivamente (FOUCAULT, 2014d; LARROSA, 2011).
O eu empírico, ou aquela atualidade da maneira de ser do indivíduo num determinado
momento histórico (o indivíduo da roça), precisou passar por uma transformação em seu
modo de ser, de modo que esse indivíduo adquirisse os conhecimentos, as habilidades e as
203
SPC01 – Os professores foram elementos primordiais nessas transformações, mas acho que
a grande transformação ocorreu dentro deles mesmos. Nesse processo dialético de
aprendizagem e de reflexão, de quem eles eram, dos professores que eles estavam se
relacionando e do professor que eles gostariam de ser. Eu acho que a grande questão
foi interna, dentro de cada um.
A dialética da reflexão, de que a professora SPC01 se refere nesse excerto, diz respeito
ao conflito do sujeito, quando colocado em relação com seu outro, com o duplo de si mesmo,
construído a partir das visibilidades do dispositivo pedagógico, que conduz o indivíduo a
refletir e a julgar seu próprio eu, tendo como base uma imagem do outro eu, aquele que ele
deve ser tornar, o sujeito objetivado enquanto espaço a ser ocupado por aqueles que desejam
ser professores do campo, o sujeito idealizado e transformado em discurso performativo.
Sendo assim, aquela parte de si mesmo, aquele eu, que até então serviu como critério
para uma existência pessoal no mundo, o eu enquanto sujeito rural ou na qualidade de
indivíduo da roça, precisou se transformar, de modo a reduzir a complexidade e a
indeterminação do novo ambiente no qual esse indivíduo acabava de se inserir, como também
estabelecer e fixar o seu papel e a sua função social nesse novo universo, isto é, a sua própria
identidade no interior da atualidade de seu tempo. Para tanto, as tramas da subjetivação do
professor do campo se organizaram mediante as relações de si para consigo, proporcionadas
pelo exercício constante de uma experiência de si e de um exame de consciência, previamente
programados no interior do dispositivo pedagógico, que estabeleceram, por meio dos tempos
escola e comunidade, os critérios para o direcionamento do olhar dos sujeitos, de modo que
observassem uma determinada especificidade de seu ser, como objeto de conhecimento.
De acordo com a professora SPC01, o aprendizado dos alunos do Procampo/UNITAU
ocorreu por meio da retirada do indivíduo de si mesmo e do contato desse outro eu com os
saberes científicos.
204
experiência de si, ou espaços onde ocorre a produção e a reprodução de saberes, assim como a
circulação do poder em seu aspecto positivo, ou seja, não necessariamente repressivo, mas
essencialmente produtivo.
Nesses espaços pedagógicos se põe em funcionamento o processo de subjetivação,
pois se caracterizam como locais e momentos de produção do sujeito professor do campo, ou
mecanismos que colocam em funcionamento e que operam a reprodução do a priori histórico,
no interior dos quais se constitui o sujeito transcendental (LARROSA, 2011).
(SR02) Lá na faculdade geralmente a gente sempre tinha que apresentar uma aula. [...]
Tivemos que dar aula para os professores, lá na frente e tudo era com apresentação. Tudo
o que você fazia, você tinha que apresentar numa aula. Toda aula de geografia,
matemática, você tinha que ir lá na frente para apresentar, na maioria das vezes.
sujeito ocorreu por meio de um aprendizado dinâmico, que se realizava pela disposição
didática das disciplinas, que vinculavam a teoria com a aplicação prática dos conteúdos.
(SR03) Muita dinâmica a gente fazia. Além da teoria, muita prática. A gente tinha que
aprender praticando tudo o que eles ensinavam.
Por meio da prática, o aluno era conduzido a confessar constantemente a parte do seu
ser que, por não condizer com o modelo transcendental de sujeito que se desejava formar,
abria espaço para um trabalho de autotransformação do indivíduo da roça em sujeito professor
do campo. Trabalho esse que se realizava no íntimo de cada aluno, por meio dos exercícios
dialéticos de ação e reflexão, mencionados anteriormente pela professora SPC01, que
propiciavam um exame constante do indivíduo sobre si mesmo, tomando-se como base aquilo
que se era na atualidade de seu próprio ser e aquela nova forma de sujeito, que era imposta
externamente pelo discurso performativo e ditava a norma de como deve ser um professor do
campo.
De acordo com Larrosa (2011), quando o próprio indivíduo é quem realiza o exame de
si, podemos afirmar que se trata de uma internalização da verdade, ou daquilo que Foucault
(2004) denominou como a subjetivação do discurso verdadeiro. É no interior dessa trama
discursiva, que apreende o indivíduo da roça e que produz nele mesmo um duplo, a alteridade
necessária para a ação do regime de verdade da ciência, que permitirá a sua transformação em
sujeito, no duplo sentido que este termo assume nos estudos foucaultianos.
Um sujeito que é duplo não somente pelo fato de ser transformado em objeto de poder
e, assim, sujeitado a um saber que lhe é exterior e que o antecede; mas também por se
transformar em objeto de poder para si mesmo, no momento em que assume para si aquelas
mesmas verdades que lhe são impostas e lhes sujeitam, passando a considerá-las como sendo
a sua própria verdade, algo verídico sobre seu ser mesmo. Desse ponto em diante, no processo
de subjetivação, sujeito e objeto se confundem, de maneira que o sujeito assume seu próprio
eu como objeto, não somente de conhecimento, mas, e acima de tudo, como objeto para o
qual é capaz de conduzir as condutas, ou seja, o sujeito passa a exercer o poder sobre si
mesmo e converte-se no seu próprio governante. Percebe-se, assim, o funcionamento do
dispositivo de segurança da governamentalidade, que em seu sentido descendente de ação
busca incluir cada indivíduo no interior de sua lógica de funcionamento.
Para a professora SPC02, ressignificar a cultura dos indivíduos da roça foi algo que se
realizou pela integração de saberes, que consistia num dos objetivos do curso, na medida em
207
que a formação docente buscava complementar os saberes dos alunos sobre a realidade do
campo, de forma a possibilitar o seu aprofundamento por meio do conhecimento científico,
integrando-os aos saberes docentes.
SPC02 – O objetivo do curso seria mesmo essa questão de integrar os saberes do campo,
saberes dos alunos, aqueles que tinham conhecimento da realidade do campo, com o
conhecimento científico e com a docência.
(SPC01) A gente sempre primou por isso, para que eles aprendessem, aprendessem de
fato e, ao mesmo tempo, que eles fossem profundos conhecedores da realidade e da
prática pedagógica das escolas do campo, das regiões em que eles estivessem inseridos e
que eles pudessem dialogar com essas esferas, para criar uma proposta diferenciada, à
luz da educação do nosso século XXI. Para as nossas escolas do campo, que eles
tivessem condições de levar o conhecimento, a tecnologia e, ao mesmo tempo, a
cultura local, sempre transitando nessas duas esferas.
(SPC02) Muitos se autoafirmaram, viram que são capazes. [...] Eles realmente se
reconheceram como importantes como sujeitos sociais. [...] Reconhecimento como um
sujeito importante na sua comunidade, como um sujeito importante na questão social,
como o reconhecimento de que ele é um sujeito capaz, uma autoconfiança.
(SPC01) Então, eles não eram mais seres amedrontados, eles se tornaram seres
detentores de um conhecimento de um empoderamento. Esse curso deu a eles um
empoderamento. O empoderamento que o conhecimento trouxe, em questão do
autoconhecimento, eles se tornaram pessoas que sabem quem eles são, o que eles
querem, para onde eles vão.
Precisamos relembrar mais uma vez a noção foucaultiana de poder, como um jogo
estratégico que ocorre entre pessoas livres, por meio do qual uns tentam determinar a conduta
dos outros. Nesse sentido, a expressão empoderamento pode ser entendida como um
movimento de conhecimento de si e de apreensão do sujeito, por meio do discurso persuasivo
da ciência, necessário ao convencimento e à direção da conduta, tanto de si mesmo como dos
outros. O empoderamento expressa a possibilidade de liberdade do sujeito em determinar a
sua própria conduta, assim como a apreensão dos conhecimentos necessários para a condução
do outro. Uma dupla autonomia do sujeito, tanto na dimensão ética quanto no campo político,
relacionada à sua capacidade de autogoverno e governos dos outros, ou seja, à sua liberdade
de conduzir a si mesmo, de acordo com os objetivos que a própria pessoa propõe para sua
vida e de direcionar a conduta dos outros ao aprendizado científico. Nesse sentido, o
empoderamento do sujeito professor do campo pode ser visto como uma consequência, ou
como o resultado subjetivo dos mecanismos mediadores da relação do sujeito com um
determinado jogo de verdade, cujos efeitos de superfície o inscrevem na ordem do discurso da
atualidade histórica (FOUCAULT, 2014a; 2015a).
No fragmento da entrevista da professora SPC02 verificamos que, o mencionado
empoderamento do sujeito, diz respeito não somente a uma dimensão ética de
autodeterminação, mas a uma dimensão política de valorização e reconhecimento social.
(SPC02) Muitos se autoafirmaram, viram que são capazes. Então todo aquele receio, isso
foi sendo superado ao longo do tempo. Muitos viram que o apoio, todo o respaldo da
família, da instituição, do município, é importante, mas que ele é o responsável pelo seu
aprendizado. Eles realmente se reconheceram como importantes, como sujeitos sociais.
Reconhecimento como um sujeito importante na sua comunidade, como um sujeito
importante na questão social, como o reconhecimento de que ele é um sujeito capaz,
uma autoconfiança.
212
(SR01) As pessoas às vezes têm um respeito maior, dizem: - ele estudou! A opinião da
gente acaba tendo um peso maior para as pessoas. Você se sente bem assim, mais útil.
Eu posso ajudar, eu posso dar uma opinião melhor. Ele está precisando de uma dica, nisso
naquilo. Eu acho que essa formação me ajudou bastante, a autoestima da gente fica lá em
cima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
51
Questionamentos feitos por Nietzsche (2013, p. 235) sobre a verdade.
215
A análise do discurso nos possibilitou adentrar num campo de batalha, onde foi
travada a disputa propriamente política, pelo domínio dos efeitos de sentido entre essas duas
formações discursivas. Por um lado, percebeu-se que os movimentos sociais e sindicais se
apoiaram em efeitos de sentido específicos, que o enunciado da inclusão permitia e que lhes
possibilitava justificar a ampliação do direito democrático de acesso à educação formal, como
ferramenta revolucionária. No outro pólo dessa disputa pela posse do discurso, verificamos a
organização de outra formação discursiva, enquanto estratégia política organizada
mundialmente pelos organismos internacionais de financiamento, como um discurso que teve
como objetivo, incorporar os países periféricos no processo de globalização.
As análises atinentes à emergência da Educação do Campo nos possibilitaram
constatar que, os efeitos de sentido do discurso original, foram aos poucos incorporados aos
significados mercantis do discurso da globalização e do neoliberalismo. A partir de
adaptações sutis e desvios semânticos, o discurso revolucionário foi integrado ao conjunto de
reformas educacionais, que se apoiaram no enunciado da inclusão e que se viu implantar no
Brasil, a partir do final da década de 1990. Percebemos que, sob a coordenação de organismos
técnicos internacionais, vinculados a instituições financeiras, como o BM e o FMI, essas
reformas buscaram expandir o acesso à educação básica para toda a população brasileira, cujo
discurso de base se apoiava na política econômica internacional.
A elevação dos níveis educacionais, por meio da garantia de que toda a população
tivesse o acesso à educação básica, era o que embasava o discurso internacional de redução
das desigualdades sociais dos povos considerados emergentes na America Latina e no Caribe.
Verifica-se que o interesse desenvolvimentista atravessa o discurso da inclusão educacional,
pois a elevação do nível cultural da população dos países considerados de terceiro mundo
consistia uma estratégia política, que visava a garantia da participação dessas economias no
mercado global. Sendo assim, por intermédio de um incentivo ao desenvolvimento
econômico, por meio da elevação dos níveis culturais de suas populações, buscava-se
expandir a globalização do modelo de economia de mercado.
Verificamos, então, a confluência e a assimilação do discurso social-democrata pelo
projeto neoliberal, pois ambos se apoiavam sobre a premissa do direito universal à educação,
o que tornou possível colocar em funcionamento o enunciado da inclusão. Nesse contexto
sociopolítico, por um lado, o acesso à educação pode ser considerado como uma expansão das
garantias e dos direitos individuais e um avanço ao processo democrático, de outro, como
uma espécie de motor para o desenvolvimento econômico dos países emergentes.
216
Mediante um breve exame lógico, acerca das diferentes formas de existência dos
povos, que foram legalmente incluídos no interior da categoria Campo, percebemos a
estratégia discursiva, utilizada politicamente para se criar esse conceito totalizante.
Certamente que se pode identificar o campo como um local de produção, mas isso não nos
permite afirmar que, por exemplo, um indígena, um pescador, um quilombola ou um
ribeirinho habitem um espaço geográfico que possui características comuns. Tampouco se
pode admitir que essas diferentes formas de reprodução da vida humana em comunidade,
representem alguma semelhança, tanto quanto ao modo de conduzir suas atividades laborais,
quanto aos propósitos econômicos.
Desse modo, percebemos algo de problemático na atribuição desse rótulo único a
todas as diferentes formações populacionais, pois a posse da terra e o seu uso como meio de
produção, somente de uma forma muito abstrata e virtual, poderia ser admitida como o fator
unificador desses diferentes modos de vida. Conforme as análises realizadas, constatamos que
as condições de emergência da Educação do Campo no Brasil, associadas aos objetivos de
inclusão de toda a população do campo no interior de um projeto educacional único,
configurou um movimento que implicou na expansão da razão de governo.
Ocupamo-nos, então, em fazer o caminho de reconstituição da emergência da
Educação do Campo no Brasil, para esclarecer que, com o surgimento da trama discursiva que
envolve a instituição de práticas educacionais singulares, destinadas ao governamento do
meio rural, surge também a necessidade de fundar uma nova forma de ser sujeito: o
camponês. Foi preciso todo esse percurso analítico, para sublinhar a determinação histórica da
construção do sujeito camponês pelo discurso da governamentalidade, no qual abordamos as
questões sobre o saber e suas verdades que, ao mesmo tempo em que antecedem a produção
desse sujeito enquanto objeto de conhecimento, vinculam-no a um regime de poder,
necessário ao funcionamento e a reprodução da própria trama discursiva.
Em outras palavras, as verdades que produzem sujeitos governáveis são as mesmas
que reproduzem a própria razão governamental de nossa época e, nessas condições, para
existir o objeto campo, foi necessário produzir um sujeito que assumisse esse enunciado e
todo o campo semântico que o circunda, como uma verdade para si mesmo. Sendo assim,
houve a necessidade de fabricar um objeto de conhecimento, para que se pudesse produzir a
subjetividade, que se identificava como camponesa. Do mesmo modo, para que se pudesse
produzir uma forma específica de educação e de educador, foi necessário produzir um objeto
de conhecimento, uma forma transcendental de educação e de sujeito professor do campo,
218
como um ponto no qual esse jogo discursivo pudesse se reproduzir e ser aceito como
verdadeiro.
Constatamos que a trama discursiva, que se organiza a partir de um saber científico,
atravessa o dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU como um jogo de verdade, de
modo a transformar o indivíduo da roça em sujeito de conhecimento. De uma maneira mais
específica, podemos dizer que o dispositivo pedagógico de apreensão e produção de
subjetividades, constituiu-se como uma superfície de mediação, que possibilitou a produção
da dobra social sobre os indivíduos da roça, de forma a fazer com que eles assumissem para si
mesmos, as verdades acerca de uma forma transcendental de ser professor do campo.
É nesse sentido que o professor do campo adquire as características metafóricas de um
nó, que prende, segura e propaga a trama discursiva, de maneira a possibilitar a circulação,
tanto do jogo de verdade, como do jogo de poder. No interior desse jogo da verdade e por
intermédio do saber científico, identificamos a transformações das representações que o
indivíduo da roça fazia de si mesmo, isto é, a construção de imagens positivas de si, que
possibilitaram não somente o autoconhecimento do indivíduo enquanto pessoa, mas a sua
metamorfose em sujeito professor do campo. Por meio da luz que a ciência lançou sobre tais
representações, para torná-las visíveis, possibilitou a sua apreensão no jogo do poder, que as
classifica como verdadeiras ou falsas. Percebeu-se que o enunciado, no qual se apoiou esse
jogo de saber e de poder, tomou como referência o sujeito da modernidade, de modo a
determinar se as representações que o indivíduo faz de si mesmo coincidem ou não com esse
modelo epistêmico de sujeito, que foi criado pelo pensamento moderno.
Por meio das práticas de si, nas quais o indivíduo se assumiu enquanto sujeito
professor do campo, purificaram-se as “falsas” representações sobre si e transformaram seu
próprio modo de ser, naquele que assume o domínio sobre seu próprio modo de existir. Sendo
assim, foi o próprio modo de governar a si mesmo que o indivíduo da roça precisou
transformar, como condição necessária ao funcionamento da razão neoliberal, materializada
pela mentalidade de governo. Verificamos a produção de um duplo movimento do jogo
estratégico de governamento das condutas, por meio do qual o sujeito é transformado num
objeto de saber, objetivado pela verdade científica, no interior de dispositivos que reproduzem
as práticas de subjetivação.
Toda essa estratégica produção da verdade, ocorreu no interior de uma trama do
saber/poder, que acabou por orientar a adesão voluntária dos indivíduos, para o interior dos
dispositivos de segurança. Impelidos a assumirem para si próprios, o papel, também duplo, de
transformar a suas próprias individualidades em objeto de conhecimento, embora esse
219
domínio não seja total, pois se está limitado às condições concretas e materiais, que são
próprias da atualidade e que antecedem à existência do sujeito. Poderíamos considerar, então,
o professor do campo como uma configuração tal da subjetividade, na qual a pessoa da rica se
viu resgatada e salva pela verdade, pois o regime de veridição que sustenta a Educação do
Campo é o mesmo que transforma o indivíduo da roça num sujeito livre enquanto homo
oeconomicus, para se tornar um empreendedor e, sobretudo, um empreendedor de si mesmo.
Não poderíamos deixar de relembrar a noção foucaultiana de poder, enquanto jogo
estratégico entre pessoas livres, por meio do qual uns tentam determinar a conduta dos outros,
pois o empoderamento que o processo de formação proporcionou aos sujeitos, estabeleceu um
movimento de conhecimento de si, por meio do discurso persuasivo da ciência, necessário ao
convencimento e à direção da conduta, tanto de si mesmo como dos outros. Nestes termos, o
empoderamento expressa uma possibilidade de liberdade para o sujeito, pois os mesmos
passaram a perceber outras condições possíveis para determinar suas próprias condutas, bem
como a apreensão dos conhecimentos necessários para a condução do outro.
Uma dupla autonomia do sujeito, tanto na dimensão ética quanto no campo político,
relacionada à sua capacidade de autogoverno e governos dos outros, ou seja, mediante a sua
liberdade de conduzir a si mesmo, de acordo com os objetivos que o próprio indivíduo propõe
para sua vida e de direcionar a conduta dos outros ao aprendizado científico. Nesse sentido,
pudemos perceber o empoderamento do sujeito professor do campo como uma consequência,
ou como um resultado subjetivo, dos mecanismos mediadores da relação do sujeito com um
determinado jogo de verdade, cujos efeitos de superfície o inscrevem na ordem do discurso da
atualidade histórica.
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