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UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO

Doutorado em Educação

GILMAR LOPES DIAS

EMERGÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL:


AS TRAMAS DA SUBJETIVAÇÃO DO EDUCADOR NO
PROCAMPO EM SP

Itatiba
2021
GILMAR LOPES DIAS – RA: 002201701067

EMERGÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL:


AS TRAMAS DA SUBJETIVAÇÃO DO EDUCADOR NO
PROCAMPO EM SP

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Educação da
Universidade São Francisco, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Educação.

Linha de pesquisas: Educação, Linguagens e


Processos Interativos.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto da


Silveira

Itatiba
2021
37.057.22 Dias, Gilmar Lopes.
D532e Emergência da educação do campo no Brasil: as tramas
da subjetivação do educador do campo em SP / Gilmar
Lopes Dias. – Itatiba, 2021.
237p.

Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação Stricto


Sensu em Educação da Universidade São Francisco.
Orientação: Carlos Roberto da Silveira

1. Educação do Rural. 2. Educação Rural - Brasil. 3.


Subjetividade. 4. Educação. 5. Governamentalidade. 6.
Professores. 7. Programa de Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo (Procampo). I.
Silveira, Carlos Roberto da. II. Título.

Sistema de Bibliotecas da Universidade São Francisco - USF


Ficha catalográfica elaborada por Mayara Cristina Bernardino - CRB-08/9525
UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM EDUCAÇÃO

Gilmar Lopes Dias defendeu a tese EMERGÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL: AS


TRAMAS DA SUBJETIVAÇÃO DO EDUCADOR NO PROCAMPO EM SP aprovada no Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco em 12 de
fevereiro de 2021 pela Banca Examinadora constituída pelos professores:

Prof. Dr. Carlos Roberto da Silveira


Orientador e Presidente

Prof. Dr. Allan da Silva Coelho


Examinador

Prof. Dr. Armindo Quillici Neto


Examinador

Profa. Dra. Edna Maria Querido de Oliveira Chamon


Examinadora

Prof. Dr. Marcelo Vicentin


Examinador

Profa. Dra. Márcia Aparecida Amador Mascia


Examinadora
Aos meus pais, o Sr. Hermílio Pereira Dias
e a Sra. Izolete Lopes Dias
AGRADECIMENTOS

Ao encerrar essa longa e difícil etapa de pesquisa, que fica materializada com o texto
da presente tese, sinto-me profundamente agradecido:
Inicialmente a Deus, por ter me concedido o dom da vida e, sobretudo, por ter
colocado no meu caminho as pessoas certas e necessárias ao meu desenvolvimento,
verdadeiras fontes de luz e de inspiração.
Aos meus pais: Hermílio e Izolete; pessoas abençoadas que literalmente me trouxeram
à luz e que me ensinaram a caminhar, durante os primeiros passos segurando minha mão,
guiando-me na direção à autonomia. Pelo amor, pelo carinho com que me educaram e
basearam seus preceitos, que são contemporaneamente raros: a ética, a humildade e o respeito
ao próximo. Essa vitória também é de vocês, pois os vejo como verdadeiros guerreiros que,
mesmo diante das inúmeras limitações materiais e financeiras, jamais deixaram de acreditar
no poder libertador da educação, incentivando-me no prosseguimento dos estudos.
Aos meus irmãos: Gilberto e Alice; pela oportunidade da companhia fraterna de vocês
que, mesmo distante, posso dividir esse momento de imensa alegria.
Ao Professor Doutor Carlos Roberto da Silveira, pela dedicação e paciência na leitura
dos meus escritos, que tantas vezes necessitou da sua pertinente correção e indicação de
fontes bibliográficas, assim como pela elegância no apontamento das eventuais lacunas e
incorreções.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade São
Francisco, pelos momentos de aprendizado que vivemos juntos e pela amizade construída
durante as aulas das disciplinas presenciais.
Especial gratidão especial aos amigos e doutores: Osmir Cruz e Marcelo Vincentin;
assim como à Prof. Dra. Márcia Aparecida Mascia que, desde os primeiros passos dessa
pesquisa, realizados ainda na condição de projeto, acompanharam e deram relevantes
sugestões sobre o desenvolvimento da escrita que ora apresentamos.
Aos membros das bancas de qualificação e de defesa, pelas relevantes observações e
contribuições, que se materializam no texto final da tese. Especial gratidão à Professora
Doutora Edna Chamon, pela sabedoria e ternura nas orientações, com que pude contar desde o
curso de mestrado.
Aos funcionários da Universidade São Francisco, principalmente à nossa secretária do
Programa, a Sra. Wanderléia Pereira, pela presteza nas informações e pela ajuda com a
documentação e com os processos, que se fizeram necessários ao desenvolvimento e à
conclusão do curso.
A todos aqueles com quem, de uma maneira ou de outra, pude contar com o apoio,
naqueles momentos mais difíceis dessa etapa de escrita acadêmica. Agradeço-lhes e peço as
minhas humildes desculpas, por não poder ajudar com a mesma frequência com que fui
socorrido, por conta das ausências que esse momento me impôs.
De que valeria a obstinação do saber se ele
assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e
tanto quanto possível o descaminho daquele
que conhece?
Michel Foucualt, 2017b, p.13
DIAS, Gilmar Lopes. Emergência da educação no campo no Brasil: As tramas da
subjetivação do educador no Procampo em SP. Tese (Doutorado em Educação). 2021.
232p. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco,
Itatiba/SP.

RESUMO
O presente estudo foi financiado pela CAPES1 e teve o projeto inicial avaliado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da USF, que emitiu o recebeu parecer favorável, conforme consta no
anexo. Inseriu-se na linha de pesquisa Educação, Linguagem e Processos Interativos, cujo
objetivo foi investigar o processo de emergência da Educação do Campo no Brasil, sob a
perspectiva teórica da governamentalidade, bem como da subjetivação do educador do campo,
no contexto de um curso de formação de professores do campo. Caracterizou-se como um
estudo discursivo, de abordagem exploratória e qualitativa, inédito pelo contexto de pesquisa,
assim pela análise da Educação do Campo a partir de ferramentas conceituais
arquegenealógicas. A emergência da Educação do Campo foi examinada por meio da análise
do discurso, utilizando-se excertos de textos de conferência e pareceres oficiais, que
marcaram o surgimento dos enunciados acerca dessa modalidade de educação. Efetuou-se
também a análise dos documentos oficiais (Projeto Político Pedagógico e Edital de
Convocação) do curso Procampo/UNITAU que, em conjunto com os demais registros
textuais, nos permitiram constatar que a Educação do Campo surgiu como um contraponto ao
modelo de educação rural, instalado no país a partir dos anos trinta, do século passado.
Verificamos que o discurso original, posto em funcionamento pelos movimentos sociais e
sindicais do campo, sofreu adaptações, inclusões e desvios, quando da sua recepção no
interior da razão de governo, no momento em que se transformou em política pública
nacional. Essas transformações no discurso original, muito mais do que representar um
avanço político para os movimentos de resistência, configurou-se como uma estratégia de
inclusão, que pôs e funcionamento a dimensão totalizante da razão de governo, por meio da
qual se construiu a noção, ampla e geral, de população camponesa. A partir desse ponto,
investigamos o processo de subjetivação do educador do campo, por meio do discurso
gravado e transcrito, de dois docentes e três alunos do curso. Verificamos que a
institucionalização do discurso oficial e a sua inserção no interior do dispositivo pedagógico,
produziram as condições necessárias à reprodução da dimensão individualizante do poder
governamental. Desse modo, o processo de subjetivação ocorreu a partir da apreensão de
individualidades da roça, no interior de um dispositivo de mediação, destinado a produzir o
sujeito educador do campo, por intermédio das práticas pedagógicas. As ferramentas
analíticas do presente estudo nos permitiram reconhecer o processo de formação, como uma
necessidade da razão governamental, cuja produção de sujeitos se caracterizou enquanto ação
política, indispensável à reprodução de sua trama discursiva. O educador do campo se
caracteriza como uma espécie de nó dessa trama, por meio do qual é possível a reprodução do
jogo da verdade, que mantém em funcionamento o saber e o poder acerca da educação do
campo, assim como a própria forma de reprodução da vida camponesa, no interior de uma
lógica neoliberal de governamento de si.

Palavras-chave: Educação do Campo. Governamentalidade. Subjetividade. Procampo.

1
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) - código de financiamento 001.
DIAS, Gilmar Lopes. Emergence of field education in Brazil: The plots of the educator's
subjectivity in Procampo in SP. Thesis (Doctorate in Education). 2020. 232p. Stricto Sensu
Graduate Program in Education. São Francisco University, Itatiba/SP.

ABSTRACT

The present study was funded by CAPES2 and the initial project evaluated by the Rechearch
Ethics Committee of the USF, which issued and received a favorable opinion, as shown in the
annex. It was inserted in the line of research Education, Language and Interactive Processes,
whose objective was to investigate the emergence process of Field Education in Brazil, under
the theoretical perspective of governmentality, as well as the subjectivity of the rural educator,
in the context of a training course for field teachers. It was characterized as a discursive study,
with an exploratory and qualitative approach, unprecedented by the research context, as well
as by the analysis of Field Education based on archegenealogical conceptual tools. The
emergence of Field Education was examined through discourse analysis, using excerpts from
conference texts and official opinions, which marked the emergence of statements about this
type of education. The official documents (Pedagogical Political Project and Call Notice) of
the Procampo / UNITAU course were also analyzed, which, together with the other textual
records, allowed us to verify that Rural Education emerged as a counterpoint to the rural
education model, installed in the country from the thirties, of the last century. We verified that
the original discourse, put into operation by the social and union movements in the
countryside, suffered adaptations, inclusions and deviations, when it was received within the
reason of government, at the moment when it became national public policy. These
transformations in the original discourse, much more than representing a political advance for
the resistance movements, were configured as an inclusion strategy, which put into operation
the totalizing dimension of the reason for government, through which the notion was
constructed, broad and general, of peasant population. From this point on, we investigated the
subjectivation process of the field educator, through the recorded and transcribed discourse, of
two teachers and three students of the course. We verified that the institutionalization of the
official discourse and its insertion within the pedagogical device, produced the necessary
conditions for the reproduction of the individualizing dimension of the governmental power.
In this way, the process of subjectification occurred from the apprehension of individualities
in the countryside, within a mediation device, designed to produce the educating subject of
the field, through pedagogical practices. The analytical tools of the present study allowed us
to recognize the formation process, as a necessity of governmental reason, whose production
of subjects was characterized as a political action, indispensable for the reproduction of its
discursive plot. The educator of the field is characterized as a kind of knot of this plot,
through which it is possible to reproduce the game of truth, which keeps the knowledge and
power about the education of the field in operation, as well as the very form of reproduction
of the field. peasant life, within a neoliberal logic of self-governance.

Keywords: Field Education. Governmentality. Subjectivity. Procampo.

2
This work was carried out with the support of the Coordination for the Improvement of Higher Education
Personnel - Brazil (CAPES) - financing code 001.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ANRESC – Avaliação Nacional do Rendimento Escolar


BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento
BM – Banco Mundial
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEB - Câmara de Educação Básica
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CFFA - Centros Familiares de Formação por Alternância
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
CNE - Conselho Nacional de Educação
EFA – Escola Família Agrícola
FAB – Força Aérea Brasileira
FMI – Fundo Monetário Internacional
FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FNDEP - Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública
I ENERA - I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC – Ministério da Educação
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ONU – Organização das Nações Unidas
PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos
PPE – Projeto Principal de Educação
PPP - Projeto Político Pedagógico
Procampo – Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do
Campo
PROMEDLAC - Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe
PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica
SciELO - Scientific Electronic Library Online
SD – Sujeito Docente
SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SR – Sujeito da Roça
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFS – Universidade Federal de Sergipe
UNB – Universidade de Brasília
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNESP – Universidade Estadual Paulista
UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO

MEMORIAL DE TRAJETÓRIA PESSOAL, ACADÊMICA E PROFISSIONAL .. 13

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 24

I – Fundamentos da análise foucaultiana de discurso ................................................... 32


1.1 Uma história acontecimentalizada em Michel Foucault ...................................... 32
1.2 A noção de verdade para Foucault ....................................................................... 36
1.3 A noção de acontecimento em Michel Foucault .................................................. 40
1.4 O enunciado e a formação discursiva .................................................................. 42
1.5 A concepção de discurso em Foucault ................................................................. 46

II – A emergência da razão de governo no ocidente ...................................................... 52


2.1 Uma primeira ruptura: da soberania à arte de governo ........................................ 53
2.2 Segunda ruptura na arte de governo: a emergência da governamentalidade ....... 61
2.3 A governamentalidade como arte liberal de governo .......................................... 64
2.4 A governamentalidade enquanto razão neoliberal ............................................... 69
2.5 A teoria do capital humano e o renascimento do homo oeconomicus ................. 72

III – O contexto de emergência da Educação do Campo no Brasil .............................. 79


3.1 A proveniência da Educação do Campo no Brasil .............................................. 83
3.2 O solo de emergência da Educação do Campo no Brasil .................................... 90

IV – Acontecimentalização da Educação do Campo ..................................................... 112


4.1 A proveniência do discurso sobre a Educação do Campo no Brasil ................... 114
4.2 A emergência do discurso sobre a Educação do Campo no Brasil ...................... 116
4.3 A Pedagogia da Alternância: uma forma de profanar a Educação Rural ............ 132
4.4 A Educação do Campo e a construção de um regime de verdade ....................... 136
4.5 As adaptações, as inclusões e os desvios do discurso original ............................ 145

V – As tramas da subjetivação do educador do campo em SP ..................................... 158


5.1 O dispositivo pedagógico e a produção do sujeito .............................................. 160
5.2 O dispositivo pedagógico e a reprodução da norma ............................................ 163
5.3 Puxando os fios da trama do dispositivo pedagógico .......................................... 168
5.3.1 Puxando um primeiro fio: o exame admissional ........................................ 169
5.3.2 O espaço e o tempo como fios do dispositivo ............................................ 175
5.2.3 O suporte logístico do dispositivo pedagógico .......................................... 179
5.4 O sujeito empírico e a apreensão das individualidades ....................................... 185
5.5 Objetivação do professor: um sujeito transcendental .......................................... 195
5.6 Um sujeito construído: a subjetivação do discurso verdadeiro ............................ 201

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 214

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 220

ANEXO
Parecer Consubstanciado do CEP nº 2.909.119
13

MEMORIAL DE TRAJETÓRIA PESSOAL, ACADÊMICA E


PROFISSIONAL

Uma breve apresentação

Meu nome é Gilmar Lopes Dias, nasci no verão de 1976, exatamente às quatro horas e
trinta minutos do dia 19 de fevereiro, no município de Sapucaia do Sul, região metropolitana
de Porto Alegre-RS, onde residi até os meus oito anos de idade. No início do ano de 1984,
minha família se mudou para um município da região central do Estado, cuja população, na
época, era de pouco mais de 20 mil habitantes, denominado de São Sepé, onde passamos a
habitar um bairro periférico da zona rural. Residi nesse mesmo local até os meus 18 anos,
quando precisei sair de casa para trabalhar numa cidade próxima, que hoje muitas pessoas
certamente já ouviram falar, devido à sua fama mundial, adquirida tragicamente após um
incêndio de uma boate no início do ano de 2013: Santa Maria/RS.
Como filho mais novo de uma família humilde, sempre segui os exemplos de vida e
de esforço de meus pais e escutei seus sábios conselhos, de que deveria estudar para tentar
“ser alguém na vida”. Meu pai, que viveu toda sua infância e adolescência, até
aproximadamente seus 18 anos de idade, na zona rural, não tendo muitas oportunidades de
estudo, cursando até o segundo ano do ensino fundamental, acabou por se dedicar,
profissionalmente, às atividades de pedreiro e carpinteiro. Minha mãe sempre foi um exemplo
de superação para mim, pois mesmo com as sequelas deixadas pela paralisia infantil, que foi
acometida e que lhe ocasionou grandes limitações físicas e motoras, jamais se abalou e
sempre me mostrou que era possível vencer na vida. Do mesmo modo que meu pai, minha
mãe residiu toda sua infância e juventude na zona rural, tendo oportunidade de cursar somente
até a terceira série do ensino fundamental. Como a brava guerreira que sempre foi, após o
matrimônio com meu pai, minha mãe conciliou as tarefas domésticas com o ofício de
costureira, ajudando no orçamento doméstico.
Cursei toda minha educação básica em escola pública, estudando, até a quarta série do
ensino fundamental, numa pequena escola rural multisseriada, que se localizava no bairro
rural próximo à minha casa. Uma escola onde o prédio possuía apenas quatro dependências:
duas salas de aula, uma pequena cozinha e a biblioteca, que servia também como secretaria e
diretoria. Em cada turno da escola, apenas duas professoras davam conta de todas as
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atividades pedagógicas, administrativas e operacionais da escola, pois não havia merendeira e,


tampouco, copeira ou auxiliar de serviços gerais. Uma das professoras, geralmente a que tinha
maior tempo de docência, acumulava a diretoria da escola com suas funções pedagógicas,
sendo que a outra professora acumulava as funções pedagógicas com as de cozinheira e de
merendeira. Em cada uma dessas duas salas de aula, as professoras se desdobravam para
ministrar suas aulas, de forma concomitante para duas turmas de séries diferentes. Enquanto
uma professora lecionava para a primeira e a terceira séries numa das salas de aula, a outra se
encarregava das aulas para a segunda e a quarta séries na outra sala de aula.
Pelo fato dessa pequena escola oferecer somente até a quarta série, quando passei para
quinta série, fui obrigado a trocar de escola e me deslocar diariamente para a cidade, onde
havia um curso que era realizado em regime especial, para atender os alunos oriundos da zona
rural. O regime diferenciado desse curso se caracterizava tanto pelo horário específico de
atendimento aos alunos, como pelo apoio com vale-transporte, que era fornecido
gratuitamente pela prefeitura municipal. Nesse período de estudos, da quinta a oitava série, eu
saía diariamente de casa às oito horas da manhã, pegava o ônibus que vinha do interior do
município e que já trazia os colegas que moravam mais longe. Chegávamos à escola por volta
das oito horas e quarenta e cinco minutos, quando íamos diretamente para o refeitório, onde
tomávamos o café da manhã e, em seguida, conduzidos para a sala de aula. No período da
manhã, as aulas começavam às nove horas e finalizavam ao meio-dia, quando retornávamos
ao refeitório para almoçarmos e, logo após, tínhamos um período de descanso e/ou de
recreação. As aulas recomeçavam às 13 horas e se estendiam até as 15 horas, quando
novamente voltávamos ao refeitório para tomar o lanche da tarde, antes de retornarmos às
nossas residências, utilizando novamente o transporte coletivo que a prefeitura municipal nos
fornecia via vale-transporte.
Enfrentávamos muitas dificuldades nessa escola, devido ao fato de não sermos bem-
aceitos entre os outros alunos, que cursavam os turnos regulares, com os quais travávamos
contato apenas nos intervalos de recreio e de refeições. De certa maneira, o “turno especial”,
como era denominado, sofria discriminações tanto entre os alunos, como entre os professores,
pois essa modalidade adaptada de ensino se destinava ao atendimento educacional das
crianças pobres, vindas do meio rural e das periferias do município.
Após terminar meus estudos no ensino fundamental, de imediato ingressei no ensino
médio e, a partir daquele momento, aumentaram as dificuldades, por não haver mais o apoio
da prefeitura para com o transporte, pois o auxílio era concedido apenas aos alunos do ensino
fundamental. Cabe observar que, até o final da década de 1980, a prioridade com a educação
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pública estava restrita ao ensino fundamental, sendo que o ensino médio era de
responsabilidade do governo estadual. Reconheço que, nessa época de estudos no ensino
médio (segundo grau naquela época), foram grandes as dificuldades enfrentadas pelos meus
pais, devido aos escassos recursos financeiros que minha família possuía na época. A partir do
momento que não contávamos mais com o apoio de transporte, por parte da prefeitura, meus
pais é que passaram a investir uma parcela considerável de suas escassas receitas com o
custeio de meu transporte, para que eu pudesse dar continuidade os estudos no ensino médio.
Sou-lhes extremamente agradecido pela abdicação e pelo esforço financeiro que
fizeram nessa época, dedicando muitas horas de suas vidas no trabalho, para que pudessem
garantir a conclusão do ensino médio. Sou particularmente grato ao meu único irmão, quatro
anos mais velho do que eu, que se privou da vida estudantil muito cedo para ajudar no
sustento da casa e para que eu pudesse dar continuidade aos meus estudos.
Concluí o ensino médio aos dezessete anos, com o mérito de jamais ter reprovado um
ano sequer, pois sempre fui muito dedicado aos estudos, tendo sempre levado comigo, como
se fosse uma espécie de mantra, as sábias palavras de meu pai: “somos pobres, estude meu
filho”. Lembro que, tanto ele como minha mãe, sempre me apoiaram muito para estudar e não
se cansavam de me aconselhar, para que eu não desistisse dos estudos, que buscasse “ser
alguém na vida”. Hoje entendo perfeitamente o significado dessa fala: “ser alguém na vida”;
pois não se tratava de um conselho para eu me tornar uma pessoa de muitas posses materiais,
mas que eu pudesse ter a dignidade de um dia olhar para trás e perceber que, para crescemos e
“sermos esse alguém”, não é preciso passar por cima de outros, tampouco de causar
infelicidade a qualquer pessoa que seja.

Percurso profissional e acadêmico

Compreendo que a preocupação de meus pais, porque, num país tão desigual como o
nosso, inúmeras são as dificuldades de se obter um crescimento pessoal, de uma maneira
digna e ética, pois isso tudo exige muito esforço e investimento em estudo. Trata-se de uma
dificuldade ainda maior quando se precisa enfrentar, de maneira constante e diária, um ciclo
de pobreza econômica, algo como se fosse aquele eterno retorno de que nos falava Nietzsche,
que nos fica incessantemente instigando a desistir.
16

Nesse percurso escolar tive muitos professores excepcionais, principalmente no ensino


médio, mas, em especial, dentre todas as professoras que marcaram meu aprendizado, posso
destacar minha professora de química, que se chamava Lirba (in memorian), assim como a
professora de Biologia, Stelamáris. Em particular, essas duas grandes mestras foram as
minhas referências na educação básica, pois elas me aguçaram o desejo da busca pelo saber,
de tentar descobrir os mistérios das práticas de liberdade que só o conhecimento pode nos dar.
Lembro perfeitamente do entusiasmo dessas duas professoras durante suas aulas, nos
incentivando a pensar para resolver os complexos enigmas biológicos e as complicadas
reações químicas; e somente anos mais tarde fui compreender que essas disciplinas se
entrelaçavam entre si, para formar o incompreensível fenômeno que é a vida.
Particularmente, as aulas de química orgânica pareciam esconder alguma coisa
mágica, que me desafiava a tentar colocar em prática aquelas abstrações, aqueles cálculos,
aquelas reações químicas. Essas aulas eram tão fantásticas para mim, que cheguei ao ponto de
montar um pequeno laboratório caseiro, com materiais improvisados que tinha em casa
mesmo, só para ter o prazer de ver, na prática, aquela magia alquímica das reações. Hoje vejo
que não era a química em particular que me desafiava, mas uma espécie de espírito de
pesquisador, algo que chamava a minha atenção para ir além daquilo que o professor nos
ensinava. Tratava-se de uma vontade interior que me chamava a testar, eu mesmo, aqueles
cálculos, a desenvolver na prática aquelas fórmulas e transformar a realidade, de produzir
coisas diferentes.
No último ano do ensino médio, a escola nos ofereceu um cursinho preparatório para
o exame vestibular, que passou a ser realizado no período contraturno das aulas. Mesmo
sabendo da impossibilidade de cursar o ensino superior, pelo fato de não haver faculdade no
município onde eu residia e pela limitação financeira de cursar em outra cidade, decidi,
mesmo assim, frequentar esse curso oferecido gratuitamente pela escola, mediante o trabalho
voluntário de nossos professores. No final do ano, terminei o ensino médio e decidi prestar o
exame vestibular para a Universidade Federal de Santa Maria, influenciado pela minha
professora de química, inscrevendo-me para o curso de química industrial.
Na época eu sabia que o vestibular seria apenas uma experiência, pois não havia
meios de meus pais manterem meus gastos com estudos em Santa Maria, uma vez que os
custos com aluguel, livros, transporte, alimentação etc., superavam em muito o nosso
reduzido orçamento familiar mensal. Quando abriram as inscrições para o vestibular, já estava
decidido que não prestaria o exame, principalmente pelo fato de não possuir o valor
necessário para a inscrição. Porém, um amigo e colega de classe, que, assim como eu,
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também era de família financeiramente humilde, descobriu que seria possível solicitar uma
isenção da taxa de inscrição.
Viajamos para Santa Maria, localizada no centro do Estado do Rio Grande do Sul e
distante aproximadamente 60 quilômetros de onde morávamos, e fizemos a solicitação da
isenção do pagamento da taxa de inscrição para o vestibular. Dias depois, recebemos a
confirmação do deferimento de nossa solicitação e, com um sentimento que misturava receio
e felicidade, acabamos por nos inscrever para o vestibular naquele ano. No meu caso, como
na época era totalmente apaixonado pela química, decidi me inscrever para o curso de
Química Industrial, sendo que meu colega optou por se inscrever para o curso de Zootecnia.
Ambos estávamos cientes de que, mesmo que viéssemos ser aprovados no concurso, não
haveria possibilidade de cursar a faculdade, pois nossas famílias não possuíam recursos
financeiros suficientes para nos manter fora de casa estudando, diferentemente das famílias
mais abastadas da cidade, nas quais era comum enviar os filhos para estudar fora.
Quando saiu a publicação do resultado do exame vestibular, lembro muito bem de que
se tratava do “Vestibular UFSM/2004”, para nossa surpresa, ambos os nomes estavam na lista
dos aprovados. Foi um momento de alegria indescritível, pois era muito difícil de obter
aprovação naquele vestibular, visto que todos os cursos dessa universidade, já naquela época,
eram extremamente concorridos. Foi uma alegria que, no meu caso em particular, não durou
muito tempo, pois acabei não efetuando a matrícula. Meu colega chegou a iniciar o curso, mas
sua família não conseguiu arcar com as despesas e, ainda no segundo ano da faculdade, ele
acabou desistindo da sua tão sonhada graduação.
Mesmo não cursando a faculdade, o simples fato de ser aprovado numa universidade
pública, logo após o término do ensino médio, aos 17 anos de idade, foi motivo de muito
orgulho para meus pais, meus professores e meus amigos. Isso também serviu para mostrar-
me que seria possível obter a aprovação em outro concurso público, algo que permitisse a
minha inserção no mercado de trabalho. Seguir uma carreira na área pública, foi algo que meu
pai sempre me aconselhou, sendo esta uma das inúmeras recomendações que ele sempre me
deu, como aquela de jamais desistir de estudar. Ainda hoje lembro perfeitamente as suas
palavras que, embora na simplicidade de seu vocabulário gauchesco, em muito me serviram
de estímulo, para buscar a segurança de um emprego público. Eram simples palavras que meu
pai sempre utilizava para me aconselhar: “Guri! Te agarra com o governo!”.
E foi essa a saída que encontrei para romper com o ciclo de limitações financeiras que
me impediam de continuar um projeto de vida tão sonhado pelos meus pais e que eu via ser
necessário também: o de buscar uma posição no mercado de trabalho, para “ser alguém na
18

vida”. Acabei me direcionando para a área militar, pois percebi que essa era uma das
oportunidades que poderiam me garantir certa estabilidade financeira para, futuramente, dar
continuidade aos meus estudos. No ano seguinte, já no em 1995, prestei um concurso público
para Soldado Especialista da Força Aérea Brasileira (FAB), no qual fui aprovado, e, ainda no
mês de julho daquele mesmo ano, tomei posse, e iniciei minha vida profissional como militar
das Forças Armadas. Servi à FAB durante três anos como militar do quadro temporário e
percebia que precisava fazer outro concurso, desta vez para um cargo efetivo, que garantisse
minha estabilidade profissional e financeira.
O fato de não ter um emprego estável me incomodava, sem falar das condições
financeiras, que também não eram das melhores, pois o cargo de baixa hierarquia que eu
ocupava na FAB servia de estímulo e me fazia pensar em estudar cada vez mais para prestar
outro concurso. No ano seguinte fiz cursinho preparatório para as escolas militares, o que me
possibilitou ampliar minha base de conhecimentos adquiridos nos anos de escolarização. No
ano de 1997, obtive a aprovação no concurso público para Sargento de carreira do Exército
Brasileiro.
A aprovação nesse concurso me possibilitou uma primeira saída do Rio Grande do
Sul, pois o curso de formação de sargentos foi realizado na cidade de Três Corações, no
Estado de Minas Gerais. Foi praticamente um ano de curso intensivo, num regime total de
disciplina e de internamento institucional, no qual pude aprender diversas técnicas e táticas
militares de combate, necessárias às atividades profissionais que viria a desenvolver
futuramente, assim como sentir na própria pele as ações do poder disciplinar. Esse foi um dos
períodos mais difíceis da minha vida, pois precisei me submeter a um regime constante de
extrema hierarquia e disciplina, um ano em que pude perceber, no meu próprio corpo, os
efeitos subjetivantes de se viver no interior de um dispositivo panóptico 3.
No final do ano de 1998 retornei ao meu Estado de origem, o Rio Grande do Sul, pois,
após minha formatura na Escola de Sargentos das Armas (ESA), fui transferido para uma
unidade militar localizada na cidade de São Gabriel. Permaneci nessa cidade por
aproximadamente oito anos, onde obtive muitas conquistas pessoais, acadêmicas, financeiras
e fiz muitas amizades. No ano de 2000, conheci uma moça da cidade, que cursava a faculdade
de Educação Física, e acabamos por nos envolver afetivamente e, posteriormente, iniciamos
um empreendimento na área do fitness, quando abrimos em sociedade uma academia de
ginástica.

3
O dispositivo panóptico foi objeto de estudo de Michel Foucault, em sua obra que recebeu o título Vigiar e
punir: nascimento da prisão.
19

Esse empreendimento me instigou a voltar aos estudos e, no ano de 2001, iniciei o


Curso de Licenciatura Plena em Educação Física, matriculado em apenas três disciplinas,
pois, embora o curso fosse noturno, precisava conciliar minhas atividades profissionais da
caserna com as responsabilidades da gestão do empreendimento recém iniciado. Assim,
durante o período em que cursei a faculdade, fui obrigado a conciliar as atividades da
profissão militar com as de administração do empreendimento, com as aulas e tarefas
acadêmicas da faculdade. Como meu curso era no período da noite, com as aulas começando
às 19 horas, eu saía do quartel às 17 horas, passava em casa para trocar de roupa e ir para a
academia, resolver os problemas administrativos cotidianos. Além da parte administrativa da
academia, eu também era responsável por ministrar uma aula de ginástica diariamente, que
ocorria das 18 às 19 horas. Ou seja, chegava sempre atrasado na sala de aula, pois minha aula
de ginástica terminava às 19 horas e, entre tomar banho, trocar de roupa e deslocar-me para o
local do curso, continuamente chegava aproximadamente às 19h30min.
Durante os cinco anos que levei para concluir o curso de Educação Física, essa foi a
rotina diária, um triplo e constante esforço para conseguir conciliar os dois trabalhos com a
tão sonhada possibilidade de possuir um diploma de curso superior. Um esforço financeiro
também, pois diferentemente de minha educação básica, que realizei toda em escola pública,
acabei por cursar a faculdade numa instituição particular, o que exigia mensalmente o
investimento de uma parcela considerável de meu salário. Todos esses esforços foram
recompensados pelas experiências adquiridas, tanto na área acadêmica, na qual obtive minha
formação superior inicial, como na área administrativa, pelo gerenciamento e controle do
empreendimento comercial.
Após seis anos de intenso trabalho, tivemos que nos desfazer do empreendimento
comercial e acabemos vendendo a academia de ginástica, pois, como é uma constante no
Exército Brasileiro, os militares de carreira são transferidos de tempos em tempos para
diferentes regiões do país e havia chegado a minha vez. O ano de 2006 foi muito marcante
para mim, pois naquele mesmo ano acabei o tão sonhado curso superior, fui promovido na
carreira militar e transferido para a Região Amazônica. Na época, minha transferência foi para
a cidade de Santarém, localizada na região oeste do Estado do Pará, onde residi por três anos e
tive uma ótima experiência, pois além da adaptação às diferenças climáticas, foi preciso me
habituar à distância da família, bem como com as diferenças culturais.
Durante os três anos que residi em Santarém-PA, tive a oportunidade de dar
continuidade aos meus estudos, quando concluí o curso de pós-graduação Lato Sensu, na área
de Docência do Ensino Superior. Ao final desse curso, encaminhei meu currículo ao Instituto
20

Luterano de Educação de Santarém (ILES-ULBRA), no intuito de concorrer a uma vaga para


o corpo docente do Curso de Educação Física daquela instituição. No ano de 2009, fui
chamado para uma entrevista com o diretor do campus e, posteriormente, contratado como
professor para o segundo semestre daquele ano.
Naquele semestre, tive a oportunidade de ministrar três disciplinas no curso de
Educação Física: às quintas-feiras à noite, aulas de Saúde e Qualidade de Vida; às sextas-
feiras, também no período noturno, Treinamento e Avaliação Física; e, aos sábados, no
período da tarde, Futebol. Essa experiência como docente, embora tenha se estendido por um
único semestre, foi muito prazerosa e acabei por perceber que a docência se constituía numa
área profissional que poderia contar com minha contribuição, de forma mais efetiva, com o
desenvolvimento do ser humano, do que na área militar.
Infelizmente a experiência docente foi curta, visto que, no final daquele mesmo ano,
fui novamente transferido de organização militar, fato este que me levou a pedir demissão do
cargo de professor. A nova transferência me levou a um novo período de adaptação, pois
desta vez o Exército Brasileiro me movimentou para o interior do Estado de São Paulo, para
uma cidade localizada na Região do Vale do Paraíba, denominada Pindamonhangaba. Essa
transferência me trouxe vários transtornos pessoais, afetivos e econômicos. Pessoalmente,
estava me sentindo realizado com a função docente, que desempenhava e que me trazia, além
da satisfação pessoal, um ótimo rendimento financeiro. Os vencimentos recebidos como
militar, mais o salário de professor universitário, que na época era um valor
consideravelmente alto, possibilitava-me uma ótima qualidade de vida.
Embora a transferência para o interior de São Paulo tenha me causado alguns
prejuízos irreparáveis, trouxe-me também a oportunidade de continuar meus estudos e, no ano
de 2011, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano, da
Universidade de Taubaté, para cursar o mestrado nessa área do conhecimento. Fruto dos
contatos estabelecidos enquanto docente, no período em que residi na cidade de Santarém,
pude desenvolver meu projeto de pesquisa em quatro instituições de ensino superior daquela
cidade. Como objeto de pesquisa, optei por estudar a formação docente e, como suporte
teórico/metodológico, baseei-me na Teoria das Representações Sociais, para investigar as
representações sociais dos acadêmicos de nove cursos de licenciatura sobre a profissão
docente.
Desenvolvi minha dissertação de mestrado, sob a orientação da Professora Doutora
Edna Maria Querido de Oliveira Chamon, sob o título: As representações sociais e a
construção identitária do professor na ótica de acadêmicos de licenciaturas de Santarém/PA.
21

A amostra de pesquisa se constituiu de 580 acadêmicos matriculados em nove cursos de


licenciatura, em quatro instituições de ensino superior, sendo duas instituições públicas e duas
instituições particulares.
Durante o curso de mestrado, desenvolvi, também, atividades de estágio docente, bem
como participei do grupo de pesquisa dirigido pela minha orientadora, intitulado: Educação
do Campo, Identidade e Representação Social de Professores. O estágio docente rendeu a
coautoria de um capítulo de livro, com o tema: O estágio docente como propulsor de
desenvolvimento humano e profissional num programa de mestrado. Por meio dos estudos
desenvolvidos durante a participação no grupo de pesquisa, na condição de coautor, publiquei
o artigo intitulado: Representação social da educação do campo para professores em
formação.
Para efetuar a divulgação dos resultados encontrados na pesquisa desenvolvida
durante o mestrado, participei de diversos eventos nacionais e internacionais mediante a
apresentação de pôsteres e de trabalhos orais, bem como a publicação de artigos em anais de
congressos e em periódico. Destaco, dentre as divulgações da pesquisa do mestrado, o artigo
publicado na Revista de Educação da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), com o
título: As atitudes de licenciandos sobre o ser professor: uma dimensão das representações
sociais, assim como o trabalho oral, premiado no XI Encontro Latino Americano de Pós-
Graduação, da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), intitulado: Representações
sociais sobre a docência: em busca da sustentabilidade profissional.
No início do ano de 2015, iniciei uma nova graduação, desta vez no Curso de
Filosofia da Universidade do Sul de Santa Catarina, e, no final desse mesmo ano, participei do
processo seletivo, para concorrer a uma vaga como aluno especial do curso de Pós-Graduação
Stricto Sensu, Doutorado em Educação, da Universidade São Francisco, Campus de Itatiba.
Fui aprovado no processo seletivo e, no ano de 2016, concomitantemente com o Bacharelado
em Filosofia, cursei duas disciplinas como aluno especial de doutorado, nas quais tive a
oportunidade de travar um primeiro contato com os estudos foucaultianos em educação.
Em dezembro de 2016 participei do processo seletivo para aluno regular de Doutorado
em Educação, no qual obtive aprovação e fui designado como orientando do Professor Doutor
Carlos Roberto da Silveira. Durante o ano de 2017 cursei as duas disciplinas obrigatórias do
doutorado, as duas disciplinas comuns do programa e mais duas disciplinas de forma
extracurricular. No final do ano de 2017, finalizei as disciplinas do curso de Filosofia e, no
campo profissional, fui novamente transferido de quartel, designado como instrutor do Tiro de
Guerra de Mogi Guaçu.
22

No mês de março de 2018 obtive o título de Bacharel em Filosofia, pela Universidade


do Sul de Santa Catarina e, durante o primeiro semestre daquele mesmo ano, participei do
estágio docente, no curso noturno de pedagogia da Universidade São Francisco, sob o
acompanhamento de meu orientador de Doutorado. Ainda no ano de 2018, realizei a coleta
dos dados utilizados na presente pesquisa e, no segundo semestre, iniciei o estudo do material
de campo e a escrita da presente tese.
Durante o Doutorado, tive a oportunidade de participar de eventos científicos, de
publicar um artigo, dois capítulos de livro e participar como coautor na publicação de um
artigo completo em anais de evento e de um capítulo de livro. O artigo foi publicado em 2017,
na Revista Cultura Contemporânea, ainda como resultado dos estudos no mestrado, com o
título: Representações sociais da docência e a escolha da profissão: um estudo com
licenciandos de Santarém/PA. O primeiro capítulo de livro foi publicado em 2019, como
parte da quinta edição da série “Avaliação, Políticas e Expansão da Educação Brasileira”,
publicada pela Editora Atena, com o título: A governamentalidade da educação do campo:
breve estado da arte a partir de bases de dados digitais.
O segundo capítulo foi publicado em 2020 e teve o título: As tramas da subjetivação o
educador no campo em São Paulo, como parte do livro “Estudos de linguagem em
perspectiva: caminhos da interculturalidade”. Em coautoria com meu orientador publicamos
em 2020 o capítulo intitulado: Participantes infames nas pesquisas científicas: inclusão na
exclusão das vidas nuas, como parte do livro “Estudos de linguagem em perspectiva:
caminhos da interculturalidade”. O artigo completo, publicado em coautoria com meu
orientador, recebeu o título: Educa-ação como “modo de vida” uma “ontologia do presente”,
parte dos anais do Congresso Internacional realizado em Bogotá, na Colômbia, intitulado:
“Pensar de otro modo”.

Considerações finais

Ainda nos dias de hoje sinto aquela necessidade de sempre conhecer mais, que vi
nascer em mim durante as aulas de química do ensino médio e que jamais se apagou durante o
meu percurso acadêmico. Hoje consigo perceber que não se tratava de uma simples paixão
pela química orgânica ou pela biologia, mas de algo muito mais intenso, como que um
espírito inquieto de descoberta, isto é, um espírito de cientista que havia brotado em mim. Um
23

espírito que se desenvolveu durante o curso de mestrado, que aprimorei, aprofundei e pude
dar um maior rigor teórico e metodológico, cursando o doutorado em educação.
Espero que tenha dado conta do objetivo estabelecido no início da escrita do presente
memorial, discorrendo e interpretando os principais acontecimentos da minha vida pessoal,
profissional e acadêmica. Certamente muitos não ditos ficaram nas entrelinhas deste texto,
pois é uma tarefa árdua olharmos para o nosso próprio passado e reinterpretá-lo com um olhar
do presente. Tarefa difícil, porém, ao mesmo tempo gratificante, uma vez que materializa na
própria escrita a nossa vida, que se caracteriza como uma espécie de exercício espiritual que
nos faz sentirmos mais aliviados após esse trabalho4.
Fazendo uma breve análise, observando de onde eu iniciei meu percurso acadêmico,
as dificuldades encontradas durante o caminho percorrido, os obstáculos que muitas vezes
quase me fizeram desistir, posso ter a certeza de que valeu a pena e que faria tudo novamente,
embora com algumas pequenas mudanças. É muito recompensador olhar para trás e perceber
que todo o esforço valeu à pena, mas o que temos de mais gratificante é, ao olhar para trás,
percebermos que o presente poderia ser diferente, e podermos nos revoltar com esse nosso
presente, no sentido de vislumbrarmos as possibilidades de se fazer um futuro melhor.

4
A noção de exercício espiritual foi desenvolvida durante o curso, ministrado por Michel nos anos de 1981 e
1982, no Collège de France Foucault, cujas transcrições foram posteriormente transformadas na obra intitulada:
A hermenêutica do sujeito.
24

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa constitui uma Tese de doutoramento na área de


educação, intitulado A emergência da Educação do Campo no Brasil: as tramas da
subjetivação do Educador do Campo em SP. O estudo se insere na linha de pesquisa
Educação: linguagem e os processos interativos, para efetuar um exame das relações de saber
e de poder, por meio das quais a educação produz, discursivamente, os sujeitos necessários ao
funcionamento de um determinado tipo de sociedade.
Como objeto geral e amplo dessa pesquisa, estudamos o surgimento de uma forma
singular de educar a população rural brasileira, que teve a sua idealização e preparação
conceitual realizada originalmente no interior dos movimentos sociais e sindicais do campo.
Sendo assim, nosso trabalho inicial de pesquisa se ocupa da emergência da Educação do
Campo no Brasil, como proposta popular de educação que visou resolver os impasses e
obstáculos, que historicamente foram criados com o desenvolvimento da educação rural em
nosso país. Essas adversidades político/educacionais diziam respeito tanto às dificuldades de
acesso da população rural à educação básica, quanto ao processo educativo que acabava por
desvalorizar a cultura e os modos de produção rurais, em função de um modelo de vida
urbano mais valorizado.
A reivindicação por um projeto educacional, que fosse ao encontro dos interesses de
grupos sociais até então excluídos do processo formal de educação, levou os movimentos
sociais e sindicais do campo, mormente representados pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), a tomarem à frente no debate acerca do cumprimento da lei, de
forma a fazer cumprir o preceito constitucional que garantia o acesso à educação a toda a
população. Após o processo de redemocratização do país e a promulgação da Constituição de
1988, houve uma ampliação dos direitos sociais, sendo a educação incluída como um direito
básico de todo o cidadão brasileiro.
Com base nesse preceito legal, o MST passou a reivindicar o direito à educação, tanto
para os participantes do movimento que se encontravam acampados, como para as famílias
que haviam garantido seu direito de acesso à terra e faziam parte das comunidades de
assentados da Reforma Agrária. Antes da sua transformação em política pública nacional, a
Educação do Campo foi objeto de intensos debates políticos e conceituais, que objetivaram
construir discursivamente seus fundamentos e definir seus pressupostos de base. Essas
25

discussões tiveram início no final da década de 1990, a partir da insatisfação de certos grupos
sociais, com modelo precário de educação rural oferecido até aquele momento.
Após longos debates conceituais e políticos, a proposta inicial de Educação do Campo
foi adaptada e transformada em política educacional, colocada em prática a partir do início da
década de 2000, como parte de um amplo projeto internacional de erradicação do
analfabetismo e, consequentemente, de redução das desigualdades econômicas e sociais.
Dessa maneira, esse projeto pretendia expandir a oferta da educação básica, como forma de
garantir que toda a população tivesse condições de acesso ao processo de educação formal e
escolarizada. A transformação das reivindicações em políticas públicas, que garantiriam o
acesso à educação aos povos do campo, foi vista pelos movimentos sociais como uma vitória
política e uma importante conquista. Isto porque, para o movimento, que exercia a resistência
política e cultural ao modelo econômico vigente, a educação era vista como um meio
necessário para se colocar em prática seu projeto revolucionário.
A transformação da Educação do Campo em política pública nacional demandou um
incremento no investimento econômico em políticas de formação docente, a fim de preparar
um maior quantitativo de professores, de modo a cumprir as exigências impostas pela
legislação. Uma das condições impostas legalmente, quando houve a incorporação da
Educação do Campo às políticas nacionais, foi a obrigatoriedade de os professores do campo
também possuírem formação superior, assim como a determinação de que esses sujeitos-
professores possuíssem vínculos culturais com o meio rural. A formação de professores do
campo constitui-se no contexto específico de estudo da presente tese, concebido a partir da
criação do curso de formação docente da Universidade de Taubaté (UNITAU), sob o subsídio
do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo
(Procampo).
O curso de formação de professores do Procampo/UNITAU se caracterizou como uma
iniciativa inédita no Estado de São Paulo, tendo a especificidade de formar apenas uma turma.
Desse modo, tendo em vista a originalidade e a especificidade desse curso, assim como o fato
de atualmente existir, no Estado de São Paulo, um número reduzido de professores formados
pelo referido programa, identificamos uma oportunidade ímpar de estudar as tramas da
subjetivação do Educador do Campo em SP, a partir dos sujeitos-professores formados no
Procampo/UNITAU.
Com a realização da presente pesquisa, buscamos adentrar nesse complexo universo
discursivo da Educação do Campo, para puxarmos os fios que formam a sua emaranhada
trama, no intuito de revelarmos os jogos de saber-poder que sustentam essa modalidade de
26

educação e a concomitante produção de subjetividades. Para tanto, a pesquisa se desenvolveu


a partir de um referencial teórico/metodológico, que deslocou o eixo de análise dos temas
preponderantemente educacionais, que normalmente são tratados nos estudos desta área. Não
são propriamente os conteúdos pedagógicos da formação docente, o currículo ou os saberes
escolares e docentes que nos interessaram propriamente, mas as práticas de governamento e
de transformação do indivíduo da roça em professor do campo, assim como as práticas de
governo de si, por meio das quais esse mesmo indivíduo constrói a si mesmo como um
sujeito-professor do campo.
Para efetuarmos as análises originalmente propostas para o presente estudo, buscamos
não só um distanciamento das bases teóricas que fundamentam nosso objeto geral de
pesquisa, mas de efetuarmos o aprofundamento no estudo da Educação do Campo, para além
da perspectiva estruturalista. Mediante os estudos realizados anteriormente e com a
participação em grupo de pesquisa envolvendo o tema da Educação do Campo, assim como
pelo aporte teórico fornecido pelas disciplinas cursadas no curso de doutorado, nos
possibilitaram assumir certo distanciamento e suspeita, acerca da suposta evidência de uma
prosperidade do movimento de resistência, com a inclusão da Educação do Campo enquanto
política pública. O presente trabalho de pesquisa não tem por objetivo desmerecer a
resistência e/ou a luta política, operada pelos movimentos sociais e sindicais, tampouco
desconsiderar o significativo avanço ocorrido com a ampliação na oferta de educação básica
para a população rural, com a implantação dessa política pública.
O distanciamento e a essa atitude de suspeita, foi o que nos permitiu identificar a
possível existência de algo mais, pois as estratégias políticas vão além de uma simples
abertura no espaço de circulação do poder, de forma a permitir um maior desdobramento dos
movimentos de resistência. É justamente a possibilidade da existência desse algo mais, que
passou a nos inquietar enquanto pesquisadores, assim como a identificação de uma espécie de
história romanceada, presente nos discursos que consideram a implantação dessa política
pública educacional, simplesmente como um desdobramento do movimento de resistência e
de uma conquista, por parte dos movimentos sociais do campo.
Desse modo, o referencial teórico/metodológico selecionado para as análises na
presente tese, permite-nos problematizar o processo de inclusão da Educação do Campo como
política pública de alcance nacional, não propriamente como uma vitória política da
resistência revolucionária ao modelo econômico capitalista. A problematização da inclusão da
Educação do Campo, no interior de um aparato jurídico e normativo, é o que nos estimula a
investigar todo esse processo, não somente como a produção de um novo regime de verdade,
27

mas enquanto ampliação de espaços da rede de saber/poder, por onde circulam a razão
governamental.
Para realizarmos esse aprofundamento em nossas análises, primeiramente efetuamos
um levantamento das pesquisas brasileiras, empenhadas no estudo da Educação do Campo,
que se utilizaram dessa noção de razão governamental, expressa pelo termo
governamentalidade. Esse levantamento inicial teve como objetivo, verificar o interesse atual
das pesquisas acadêmicas sobre a educação do campo, por meio da identificação da
quantidade de pesquisas que abordaram esse objeto, utilizando a ferramenta foucaultiana da
governamentalidade. Para elaborar esse breve estado da arte 5, buscamos identificar os
trabalhos de pós-graduação Stricto Sensu, disponibilizados eletronicamente para consulta
pública, no portal de teses e dissertações da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES); nos trabalhos de domínio público, disponíveis para consulta no sítio
eletrônico da internet, que recebe esse mesmo nome; bem como na base eletrônica de artigos
acadêmicos, denominada Scientific Library on Line (SciELO).
Por meio do descritor “governamentalidade” no portal de teses e dissertações da
CAPES, encontramos um total de 232 relatórios de pesquisa, desenvolvidas pelos estudantes
brasileiros de pós-graduação, correspondendo a 150 dissertações e 82 teses. Ao se examinar o
objeto de estudo de cada uma destas pesquisas, por meio da leitura dos seus títulos, verificou-
se que apenas uma destas pesquisas abrangia a análise, não exatamente da Educação do
Campo, mas da Educação Rural6. Da mesma maneira, realizou-se uma nova busca no portal
de teses e dissertações da CAPES, porém, utilizando-se o descritor “biopoder”. Foram
encontrados 140 registros para esse descritor, sendo 102 dissertações e 38 teses. Por meio da
leitura de cada um dos títulos desses 140 trabalhos encontrados, comprovou-se que nenhum
deles tratava diretamente do objeto de interesse deste estudo.
Todo o procedimento anteriormente descrito foi realizado novamente com ambos os
descritores, no portal denominado “Domínio Público”. Selecionou-se “texto” para o tipo de
mídia a ser pesquisada e, na caixa denominada “título”, inseriu-se os descritores de busca, um
de cada vez. Para o descritor “governamentalidade” foram encontrados nove trabalhos, sendo
eles: sete teses e duas dissertações. Por meio do descritor “biopoder”, foram localizadas seis

5
O levantamento sobre o estado da arte da Educação do Campo, nas pesquisas que se utilizaram do referencial
foucaultiano da governamentalidade, foi publicado originalmente como capítulo de livro, pela Atena Editora, sob
o título A governamentalidade da Educação do Campo: breve estado da arte a partir de bases digitais.
6
Tratava-se de uma tese de doutoramento, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por Noeli Valentina Weschenfelder, no ano de 2003, que possui o
seguinte título: Uma história de governamento e de verdades – Educação Rural no RS 1950/1970.
28

dissertações. Entretanto, nenhuma dessas 15 pesquisas encontradas no sítio eletrônico


Domínio Público, dedicou seu estudo à Educação do Campo ou à Educação Rural.
O levantamento na base eletrônica SciELO, por sua vez, objetivou efetuar uma busca
dos artigos acadêmicos que empreenderam o esforço de utilizar a ferramenta foucaultiana da
governamentalidade para analisar ou a Educação do Campo, ou a Educação Rural. Desta
maneira, efetuando-se uma busca integrada e regional, a partir do termo
“governamentalidade”, foram encontrados 88 artigos científicos, elaborados em cinco países
diferentes (Brasil: 59; Colômbia: 25; Chile: 2; Portugal: 2). Uma nova pesquisa foi realizada,
porém como descritor “biopoder”, sendo encontrados 115 artigos científicos, produzidos em
nove países distintos (Brasil: 79; Colômbia: 16; México: 7; Chile: 5; Argentina: 3; Venezuela:
2; Espanha: 1; Peru: 1; Portugal: 1). Após a leitura atenta de cada um dos títulos desses 139
artigos, verificou-se que apenas um deles utilizou a governamentalidade para efetuar uma
análise da Educação do Campo 7.
Embora o interesse pelas temáticas relacionadas à Educação do Campo tenha
demonstrado um gradual aumento ultimamente, que se constata pelo crescente número de
pesquisas acadêmicas, podemos afirmar que ainda existe muito a ser estudado sobre o assunto
em questão. Por meio do breve estado da arte realizado a respeito do assunto, percebeu-se a
possibilidade de se lançar “outro olhar” acerca desse objeto, de modo a avançar nos estudos e
aprofundar os conhecimentos concernentes ao assunto. Na possibilidade de contribuir com o
preenchimento de algumas das lacunas epistemológicas, propõe-se o estudo dessa temática
sob uma perspectiva que se pode denominar de arquegenealógica.
Sendo assim, o referencial teórico-metodológico que mobilizamos, para escavarmos
esse terreno e analisarmos os dados coletados, foram os estudos foucaultianos. Por meio da
extensa obra filosófica deixada por Michel Foucault 8, ampliada pelos estudiosos
comentadores de seus textos, buscou-se interpretar inicialmente, o “solo” epistemológico que
oferece o suporte discursivo para a emergência desse objeto geral, que é a Educação do
Campo. Consideramos então, sob a perspectiva foucaultiana, que tento nosso objeto geral de
estudo (a Educação do Campo) como nosso objeto particular de pesquisa (o
Procampo/UNITAU) foram construídos socialmente e emergiram no interior de um campo de
disputas discursivas de saber/pode, próprios de um momento histórico específico.

7
Tratava-se do artigo publicado no ano de 2013, pela Revista Educação e Pesquisa, cujo título era: Programa
Escola Ativa: escolas multisseriadas do campo e educação matemática, elaborado por Gesa Knijnik e Fernanda
Wanderer.
8
Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15 de outubro de 1926 e veio a óbito em 25 de junho de
1984.
29

Desse modo, utilizando-nos das ferramentas teórico-metodológicas deixadas pelo


filósofo francês, partimos da consideração de que, a Educação do Campo se trata de uma
construção discursiva, que se institucionalizou enquanto política pública e, como tal,
transformou-se numa ferramenta de governamento da conduta da população camponesa.
Discutimos ao longo da pesquisa a Educação do Campo como uma ferramenta de
govenamentalização, um dispositivo pedagógico por meio do qual se produzem práticas
consagradoras da produção e da reprodução de um modo de viver e, concomitantemente, da
construção de subjetividades particulares, que caracterizam o sujeito camponês e o sujeito-
professor do campo.
Foram essas ferramentas que nos possibilitaram analisar o programa institucional
Procampo/UNITAU como um dispositivo que produz e põe em circulação os discursos e as
práticas, destinadas a conduzir a conduta dos sujeitos educadores do campo, assim como de
produção de subjetividades. Processo de produção de subjetividades esse que foi objeto de
análise na presente pesquisa, por meio dos instrumentos de análise deixados por Foucault
(2014d), que tratam do cuidado, do conhecimento e da condução de si. Desse modo, o
problema geral abordado na presente pesquisa foi o seguinte: considerando-se a complexa
rede de saber/poder, na qual emerge a Educação do Campo no Brasil e passa a funcionar
como uma ferramenta de governamentalização da população, quais são e como se formam as
tramas discursivas, que compõem o processo de objetivação e de subjetivação do educador do
campo?
O objetivo geral da presente pesquisa, traçado para se buscar algumas respostas
possíveis para o problema mencionado acima, foi investigar a emergência da Educação do
Campo no Brasil, a partir de um contexto de governamentalização, assim como o processo de
subjetivação do educador do campo, no interior do curso de formação de professores do
campo Procampo/UNITAU. Para tanto, traçamos os seguintes objetivos intermediários de
pesquisa: 1) caracterizar o regime de saber/poder sobre o qual emergiram os discursos sobre a
Educação do Campo no Brasil; 2) analisar as práticas de governamentalização da Educação
do Campo; 3) investigar o processo de subjetivação do professor do campo, realizado no
interior do Procampo/UNIATU.
Como sujeitos de pesquisa, foram selecionados dois docentes do curso de formação de
professores do campo Procampo/UNITAU e três professores formados nesse mesmo curso,
sendo que a seleção desses participantes ocorreu por indicação da coordenação do programa,
a partir da qual utilizamos o critério do voluntariado. A coleta de dados foi realizada por meio
de entrevista semiestruturada, sendo os discursos desses sujeitos coletados com o auxílio de
30

um gravador portátil. Os áudios das entrevistas gravadas foram transcritos e analisados sob a
perspectiva da análise foucaultiana do discurso, cujos fundamentos “é fazer com que
desapareçam e reapareçam as contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é
manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia
aparência” (FOUCAULT, 2015a, p.186).
As entrevistas foram realizadas no próprio município de residência dos sujeitos
participantes, no período de 18 a 29 de junho de 2018, após o prévio agendamento com os
mesmos, nos locais e horários que foram indicados respectivamente por cada um desses
colaboradores. A transcodificação dos áudios das entrevistas para texto escrito, para a
construção do corpus discursivo de análise, foi realizada nos meses de julho e agosto de 2018,
de forma manual, ou seja, por meio da escuta direta de cada uma das entrevistas gravadas e da
transcrição da fala dos participantes. Após a transcrição foi realizada mais uma escuta dos
áudios das entrevistas, acompanhando a leitura de sua transcrição, de modo a retificar alguma
incorreção ou imprecisão inicial.
Seguindo os critérios éticos de pesquisa com seres humanos, visando evitar uma
possível identificação dos sujeitos participantes da presente pesquisa, optamos por atribuir um
código alfanumérico, para cada uma das entrevistas. Desta maneira, para identificar a fala dos
docentes do programa, atribuímos ao texto a sigla SD, que identifica o participante
simplesmente como Sujeito Professor, seguida de um número sequencial: 01 ou 02; de forma
a garantir uma diferenciação entre as entrevistas. Da mesma forma, entre os professores
formados no programa, adotamos uma sigla que os identifica como Sujeito da Roça: SR9;
seguida por uma sequência numérica: 01, 02 e 02; para assegurar a individualidade das falas
dos sujeitos. Desse modo, para identificar os docentes do programa Procampo/UNITAU,
utilizamos os códigos SD01 e SD02; assim como os códigos SR01, SR02 e SR03 identificam
os sujeitos formados nesse programa de formação docente.
As entrevistas foram posteriormente analisadas, tomando-se como base dois eixos
principais. No primeiro eixo de análise buscamos concentrar os fragmentos de discurso, que
se relacionavam aos aspectos formativos do curso e que nos permitiram investigar o processo
de construção discursiva do sujeito, ou seja, tratava-se do eixo da objetivação do sujeito-
professor do campo. No segundo eixo de análise selecionamos os excertos dos discursos, que

9
Optamos por atribuir o código SR aos professores formados no curso do PROCAMPO/UNITAU, pelo fato de
que o próprio discurso desses sujeitos, recolhido nas entrevistas, não os identifica como sujeitos do campo, pois
os participantes se autodenominam Sujeitos da Roça.
31

se relacionavam aos aspectos de transformação do sujeito da roça em sujeito-professor do


campo, isto é, concernentes ao processo subjetivação.
Optamos por organizar o texto da presente tese em cinco capítulos, sendo este
primeiro capítulo denominado Apresentação do Tema, no qual apresentamos a justificativa
para a realização deste estudo, o problema estudado, os objetivos, os sujeitos de pesquisa, os
procedimentos de coleta de dados, assim como a forma de análise. No segundo capítulo,
intitulado Os fundamentos para a análise do discurso, são apresentadas as noções de história
acontecimentalizada, de acontecimento, de enunciado e de formação discursiva, que embasam
os fundamentos teórico/metodológico da análise foucaultiana do discurso. No segundo
capítulo, denominado A emergência da razão de governo no ocidente, apresentamos as
rupturas históricas da arte de governo do Ocidente, que possibilitaram a emergência da
governamentalidade, da sua transformação em arte liberal de governo e, posteriormente em
razão neoliberal, na qual se fundamenta a Teoria do Capital Humano e o nascimento do homo
oeconomicus.
O terceiro capítulo foi dedicado à reconstruir teórico/discursivamente O contexto de
emergência da Educação do Campo no Brasil, em que buscamos analisar os principais eixos
de proveniência do objeto de estudo, assim como investigar seu solo de emergência. O quarto
capítulo, que trata da Acontecimentalização da Educação do Campo, aprofundamos o estudo
da proveniência do discurso sobre a Educação do Campo no Brasil, assim como os discursos
que sustentaram a sua emergência. Identificamos também a Pedagogia da Alternância
enquanto profanação da pedagogia utilizada na educação rural, a construção de um regime de
verdade sobre a Educação do Campo, assim como as adaptações, inclusões e desvios do
discurso original, que permitiram a transformação prática dessa modalidade educacional, em
política pública de alcance nacional.
O quinto capítulo foi dedicado ao estudo da emergência do programa Procampo, a sua
institucionalização como curso de formação de professores do campo no Estado de São Paulo,
no qual efetuamos análises sobre a construção discursiva do sujeito-professor do campo, ou
seja, investigamos o processo de subjetivação do professor do campo, no interior do
Procampo/UNIATU. Por fim, o sétimo capítulo foi dedicado à elaboração das considerações
parciais deste estudo, tendo em vista que o mesmo se encontra ainda em processo de
elaboração.
32

I - OS FUNDAMENTOS PARA A ANÁLISE DO DISCURSO

Tendo em vista que o presente estudo tem como base teórica e metodológica o
pensamento arqueogenealógico de Michel Foucaultt, no presente capítulo efetuamos uma
síntese de sua fundamentação acerca da análise do discurso. Inicialmente apresentamos a
concepção foucaultiana de história acontecimentalizada, por meio da qual se abre a
possibilidade de analisar a história sob um prisma diferente, cuja percepção de tempo perde a
sua linearidade e a sua continuidade, assim como o princípio da causalidade deixa de ser
considerado o seu motor. A partir dessa noção particular de história, percorremos o
entendimento foucaultiano acerca dos regimes de verdade, de maneira a nos aproximarmos da
compreensão de como ela (a história acontecimentalizada) é construída no interior de regimes
de poder. É por meio dessa caracterização das verdades, como algo construído
discursivamente no interior de um regime específico de poder, nos permitirá compreender o
que o autor denomina como acontecimento, algo que emerge num determinado tempo e lugar.
Verificamos, então, que são acontecimentos históricos que põem em circulação um
conjunto finito e raro de unidades discursivas, as quais Foucault denominou de enunciados,
que servem de elementos de significação aos discursos. No final do presente capítulo,
apresentamos de uma maneira sintetizada, a concepção de discurso e seus respectivos
elementos de limitação e de exclusão. Por meio dessa opção teórico/metodológica, não
trataremos os fenômenos concretamente como fatos históricos, mas os consideraremos
simplesmente como efeitos discursivos, que se vêem surgir no espaço e no tempo, formando
essa superfície que os estudos foucaultianos denominam de atualidade ou simplesmente como
o presente.

1.1 Uma história acontencimentalizada em Michel Foucault

Na introdução de seu livro intitulado Arqueologia do Saber, Michel Foucault faz uma
crítica ao modo tradicional de se fazer história, ou seja, àquela noção em que se busca a
reconstrução da unidade interna, para encontrar o princípio material ou espiritual de uma
determinada sociedade e, dessa maneira, recompor a significação comum do conjunto de
33

fenômenos de uma determinada época. Trata-se de uma crítica à historiografia linear e


contínua, que Foucault (2015a) denominou: História Global; um discurso contínuo, que tem
na consciência humana o seu constituinte originário, o seu sujeito.
Contrapondo-se à história global, Foucault (2015a) propõe um novo modo de se fazer
história, que denominou de História Geral, cujo traço essencial se constitui no deslocamento
do descontínuo, ou seja, para o interior das análises históricas. Enquanto na História Geral as
descontinuidades eram consideradas como um obstáculo a ser superado, uma ordem a ser
restabelecida, como uma condição para a descoberta da origem; na História Global, o
descontínuo é considerado como uma abertura viva para a história, pois é o próprio devir que
propicia um abrigo mais seguro.
Nessa perspectiva, Foucault (2015a) trata a história não como uma linearidade do
tempo horizontal, mas como a possibilidade de uma verticalização na sua análise, ou seja, de
se aprofundar o estudo a partir do próprio presente, partir da atualidade do objeto para fazer
uma ontologia do presente. Daí a noção de arqueologia do saber e de genealogia do poder,
que inicialmente nos sugere uma busca nas profundezas, sendo que a metáfora da escavação
indica um tipo muito particular de aprofundamento. Por meio da escavação é possível fazer a
“exumação” dos saberes e das práticas soterradas, ou seja, o ato de escavar faz aparecerem as
verdades de uma determinada época e lugar, que se encontram sepultadas na atualidade do
objeto (FOUCAULT, 2015a).
São essas verdades que interessam ao estudo arqueogenealógico, pois, ao serem
desenterradas, revelam não somente as bases nas quais se sustentaram os discursos e as
práticas desse tempo e lugar, mas, também, os modos como os sujeitos foram construídos,
discursivamente, por meio dessas mesmas verdades. O movimento de escavação possibilita
desenterrar, também, as condições de possibilidade em que houve o desaparecimento e a
substituição ou o apagamento de alguns saberes e práticas, a partir da emergência de outros,
que acabam por formar uma nova camada de realidade, desta vez, mais real por se apresentar
como algo ainda mais atual.
A história geral efetua, assim, uma análise vertical, escavando as diferentes camadas
do arquivo, no objetivo de reconstituir os seus regimes de verdade, que fizeram circular os
discursos verdadeiros em diferentes épocas, fabricando seus próprios objetos, bem como os
seus sujeitos. O arquivo surge nos estudos foucaultianos, como uma camada dessa realidade
atual que se estuda, que sustenta discursiva e não-discursivamente a existência desses objetos
e sujeitos nesse tempo e espaço histórico. Não se trata de uma história que busca encontrar a
origem dos objetos, ou seu marco zero de onde se originaria sua evolução, ou, ainda, o ponto
34

exato em que ocorreu o seu surgimento na linha contínua da história. O que a história geral
pretende é interrogar as condições contingentes e imanentes de produção do que é a
atualidade, considerando que aquilo que está sendo agora (a atualidade do objeto), nem
sempre foi assim e, por esse mesmo motivo, poderia ter se constituído de outra maneira
(FOUCAULT, 2015a).
Cabe aqui outro parêntese explicativo, para esclarecer o que Foucault (2015a) entende
por atualidade. Por esse termo, o autor não designa simplesmente o presente, o que está
estabelecido num momento temporal exato, pois, caso fosse assim concebida, essa palavra se
confundiria com a definição de fato, tão caro à história global. Por atualidade, Foucault
pretende designar as bordas do tempo, propriamente o devir em sua manifestação, o que está
acontecendo, o efeito próprio de uma superfície em contínua transformação, consistindo na
própria imanência10 em ação.
Sendo a atualidade essa borda do tempo que está em constante renovação e
produzindo efeitos de superfície, não podemos considerá-la como uma substância ou como
uma coisa em si mesma, mas a própria vontade de verdade, como uma espécie de verbo que
se conjuga no gerúndio e que põe em movimento saberes e práticas. De acordo com Judith
Revel (2005, p. 21):

"Atualidade" e "presente" são, inicialmente, sinônimos. O entanto, uma


diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de um lado, nos precede
mas continua, apesar de tudo, a nos atravessar e o que, de outro lado,
sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da grade epistêmica a que
pertencemos e da periodização que ela engendra. Essa irrupção do "novo",
que tanto Focault quanto Deleuze chamam igualmente de "acontecimento",
torna-se, assim, o que caracteriza a atualidade.

Por conseguinte, o que Foucault (2015a) propõe, por meio de seus estudos
arquegenealógicos, é libertar a história das estruturas fixas, dissociando-a de toda uma
metafísica teleológica, por meio da qual se procura descobrir sempre as origens ou a
finalidade para o próprio devir histórico. Uma tentativa de libertar a história das
metanarrativas, de desvencilhar o devir das estruturas fixas que buscam fixar e limitar o seu
poder de transformação, criando aquilo que Deleuze e Guattari (2012) denomina de linhas de

10
Num sentido geral, imanência se caracteriza como um termo filosófico, que indica a totalidade daquilo que,
“[...] fazendo parte da substância de uma coisa, não subsiste fora dessa coisa”(ABBAGNANO, 2007, p. 623).
Especificamente, numa perspectiva foucaultiana, a imanência assume um caráter de mudança, de diferença e de
singularidade histórica do ser humano, o que, de certa maneira, rompe com a tradição filosófica na qual se
considera a essência ou a identidade do homem e do sujeito. Dessa maneira, a ontologia foucaultiana rompe com
a ideia da transcendência do sujeito e admite o primado da diferença e da imanência histórica, no interior da qual
o próprio ser humano se produz enquanto singularidade.
35

segmentaridade dura. Nos estudos foucaultianos há também um empenho para se afastar de


todo e qualquer tipo de antropologismo, isto é, das ideias que defendem uma soberania do
sujeito pensante (sujeito cartesiano 11, sujeito epistêmico 12) ou do humanismo, em que o
homem se constitui como a origem de todo saber e, dessa forma, na medida de todas as
coisas13.
Trata-se, então, de uma proposta de análise que a examina o próprio devir histórico,
em suas rupturas e perturbações da ordem e da continuidade, ou seja, as mudanças históricas
que se manifestam por meio de séries descontínuas de acontecimentos e que desfazem as
relações de causalidade. Sendo assim, o ponto de partida, para a análise arquegenealógica
foucaultiana, é o que ele designa de arquivo, isto é, toda uma série de documentos, de práticas
e de instituições, que foram produzidos em uma determinada época, sobre um determinado
tema ou objeto e que se constitui na “[...] lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2015a, p.158).
Pode ser que toda essa série de documentos de registro, os modos com que as práticas
trataram e/ou atribuíram significados aos objetos e construíram seus sujeitos, bem como as
instituições, nas quais teve algum tipo de circulação, encontrem-se esquecidas, apagadas ou
transformadas nessa superfície que, na medida do próprio devir (a atualidade), transformam-
se no presente. Como a análise arqueológica da história parte sempre de uma atualidade
específica, esse processo de escavação se torna necessário, no intuito de descobrir os indícios
desses elementos arquivados, que deram o suporte material e/ou discursivo, para que o objeto
de interesse do pesquisador pudesse existir.
Como adiantamos na introdução desse capítulo, não são os fatos históricos que
interessam aos estudos foucaultianos, mas a emergência ou a irrupção de um objeto em sua
singularidade, em sua originalidade e diferença, no momento e no local próprio de sua
produção. Essa ruptura com uma determinada ordem de continuidades, localizável no tempo e
no espaço, Foucault (2015a) designa como acontecimento. Isto é, a manifestação de uma

11
A expressão “homem cartesiano” designa uma adjetivação ao homem concebido por René Descartes (1596-
1650), que a partir da sua própria razão pode justificar a sua existência real, uma ontologia que se baseia na
crença da razão: cogito, ergo sum (penso, logo existo).
12
A noção de sujeito epistêmico foi desenvolvida por Jean Piaget (1896-1980), a partir de seus estudos nos
campos da biologia, da psicologia e da filosofia, que lhe permitiram elaborar um conceito de sujeito universal,
que representa a capacidade de certa forma comum, que todo ser humano possui para aprender e para construir
saberes.
13
A frase “homem como medida para todas as coisas” foi formulada pelo filósofo Protágoras de Abdera (490
a.C.-415 a.C.), para designa um princípio em que as coisas não são absolutas em si mesmas, mas são concebidas
de maneira particular e muito pessoal, por cada indivíduo. Esse princípio filosófico foi resgatado pelo
pensamento humanista e renascentista da Idade Média, como contraponto ao teocentrismo, pondo o homem
como o centro de todas as análises, marcando uma virada no pensamento ocidental, que influenciou o
desenvolvimento das artes, das ciências, da política e de toda a filosofia moderna.
36

estranheza própria e singular que, devido à sua incomum emergência, possui um elevado
potencial disruptivo e de produção da novidade.
Por esse motivo, Foucault (2012a, p.339) afirma que procura “[...] trabalhar no sentido
de uma ‘acontecimentalização’”, que se opera mediante a desmultiplicação causal, por meio
da qual se realizam duas funções. A primeira dessas funções seria propriamente a ruptura com
as evidências, essas manifestações de verdade, que são utilizadas como apoio para a produção
de consentimentos e de práticas. Como função secundária, a acontecimentalização da história
“[...] consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de
força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará
como evidência, universalidade, necessidade” (FOUCAULT, 2012a, p.339).
Por meio de sua história acontecimentalizada, Michel Foucault operou uma ruptura no
interior da própria evidência da realidade, ao efetuar uma espécie de desconstrução da noção
clássica de verdade. No subitem a seguir, abordaremos a concepção foucaultiana de verdade,
no qual se verá que esse termo não designa algo dado, ou um fato incontestável que se
inscreve na própria realidade e que, aos moldes do fato social durkheimiano, aparecem ao
indivíduo com todo o seu poder coercitivo.

1.2 A noção de verdade para Foucault

Salienta-se inicialmente que, para operar uma fundamentação teórico/filosófica, tanto


em relação à noção de vontade, como para a definição de verdade, Foucault recorreu à teoria
da vontade de potência de Friederich Wilhelm Nietzsche. Em Nietzsche, o conceito de
vontade de potência, entretanto, configura-se como uma inversão no sentido anteriormente
proposto por Arthur Schopenhauer, para quem a vontade se constituía como uma força
negativa. A filosofia schopenhaueriana conceitua a vontade como uma expressão
fenomenológica do ser humano, como a força motriz livre e onipotente, que produz a própria
existência humana. Por ela ser livre e onipotente, configura-se também como uma
necessidade insaciável de satisfação do ser humano, que necessita ser dominada e até mesmo
aniquilada, pois se constitui como o cerne de toda a infelicidade e de todo o sofrimento
humano (SCHOPENHAUER, 2001).
Invertendo a noção schopenhaueriana de vontade, Nietzsche considera esse querer
interno do ser humano, não como algo negativo e que deva (ou sequer possa) ser aniquilado,
37

pois se trata de uma potência que anima todas as forças da natureza. É justamente esse querer
interno que se produz como a potência da vontade, como o poder que anima toda e qualquer
força e a faz desejar sempre ser mais, querer a realização da sua autossuperação. Por esse
motivo, para Nietzsche, a vontade não é algo que pode ser conceituado separadamente, pois
há nela uma potência que a anima e, sendo assim, a vontade só pode ser: vontade de potência.
Da mesma forma, a noção de verdade utilizada por Foucault é tributária da filosofia de
Nietzsche, assumindo que, aquilo que se designa por verdade, não passa de uma ilusão própria
do intelecto humano, pois ela se forma a partir de um processo duplo de metaforização. Na
apresentação de um texto póstumo de Nietzsche, Noeli Correia de Melo Sobrinho aponta que
“o processo de metaforização se dá no salto indevido de um impulso nervoso a uma imagem e
do salto indevido dessa mesma imagem, ao som” (SOBRINHO, 2001, p.6-7).
Nesse sentido, a verdade seria um processo de dupla abstração humana, pois,
inicialmente, aprendemos a realidade à nossa volta por meio de nossos sentidos que captam
essa realidade na forma de impulsos nervosos, os quais são transformados em imagens. A
partir dessas imagens metafóricas criadas pelo nosso aparato cognitivo, ocorre uma nova
transformação, desta vez para um som verbal, que servirá como meio, para comunicar a outro
indivíduo, as características dessa realidade percebida (SOBRINHO, 2001).
O homem é considerado por Nietzsche, como o gênio da arquitetura, aquele ser que
busca, em seu próprio intelecto, a matéria prima de que precisa para construir
linguisticamente suas próprias verdades. Muito diferente dos outros animais, como a abelha,
por exemplo, que constrói sua casa com cera, retirando da própria natureza a matéria prima
para a sua construção. É justamente por meio da linguagem e de seu intelecto que, para
Nietzsche, o homem se torna o mais habilidoso dos animais, quando pretende se conservar no
interior de um rebanho ou de uma sociedade (NIETZSCHE, 2001).
Nietzsche pergunta: “o que é a verdade?” e ele mesmo trata de dar uma resposta à sua
pergunta:

Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos, em


resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e
ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso,
pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as
verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que
perderam sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é
considerada mais como tal, mas apenas como metal (NIETZSCHE, 2001, p.
13).
38

Seria, então, por um instinto de conservação, que o homem abdica do seu estado de
natureza, para viver em sociedade, pois precisa superar o estado de luta de todos contra todos
hobbesiano e utilizar a sua própria inteligência para dissimular. Nessa condição, deseja
somente os resultados favoráveis da verdade, as consequências que possam lhe conservar a
vida, mas se mostra indiferente diante do conhecimento puro, que não produz efeitos e, se
mostra até mesmo hostil para como aquelas verdades que podem lhe ser danosas e destrutivas
(NIETZSCHE, 2001).
Por meio de suas escavações arqueológicas no terreno da loucura, por exemplo,
Foucault (2014e) constatou que, determinados fenômenos considerados pela história
tradicional como fatos, constituíam-se como efeitos de superfície, que se sustentavam nas
verdades discursivas próprias de um determinado tempo histórico. Verificou em seus estudos
que, o objeto da loucura havia se constituído de maneiras diversas, em diferentes épocas e no
interior de variadas instituições, como efeitos de verdades produzidas pelos seus próprios
discursos.
Seus estudos tendo como objeto a loucura, as práticas médicas, a delinquência e a
sexualidade, revelaram que a verdade não se origina no sujeito e, tampouco, na natureza, pois
é produzida no interior das instituições. Ao contrário do que preconiza o pensamento
instituído a partir da Modernidade, não são os sujeitos que descobrem uma verdade, a qual se
acharia encoberta na natureza, mas um processo que se daria no sentido inverso. São os
discursos que produzem, tanto as verdades como os próprios sujeitos com quem elas se
relacionam. Seguindo então a genealogia nietzscheana, assim como o caráter perspectivo da
filosofia do martelo14, Foucault propõe as noções de vontade de verdade e de regimes de
verdade, pois não se trata de interrogar o que a verdade é, mas interpelar as condições de sua
produção, ou seja, o seu caráter propriamente histórico (FOUCAULT, 2014f).
Nessas condições, o ser humano possui uma potência conservadora, um querer interno
que aspira à verdade, mas como nos adverte Deleuze (2018, p. 124) “se alguém quer a
verdade, não é em nome do que o mundo é, mas em nome do que o mundo não é”. Por não
suportar a imanência do mundo, o devir que lhe é próprio e as suas forças destrutivas, o ser
humano inventa, cria, fabrica outra realidade, que passa a assumir como uma verdade, que
pode ser utilizada em defesa de sua autopreservação.

14
A filosofia do martelo é um termo utilizado para se referir ao modo como Friedrich Nietzsche (1844-1900)
produziu seu pensamento, ou seja, o filósofo demonstrou que as bases de sustentação moral cristã, sobre a qual
se erguem os ídolos, que são tão frágeis quanto os pés de um gigante feito de barro, que não resistiam às
“marteladas” de sua filosofia.
39

Mais que um conteúdo do conhecimento ou uma estrutura formal do saber, os efeitos


produzidos pelo discurso de verdade, assumem um caráter político e se transformam num
sistema de obrigações morais, que compele os sujeitos a produzi-lo, a aceitá-lo e a se
submeterem a ele. É desse modo que, na obra de Foucault, o saber se vincula de modo
circular ao poder, pois o filósofo irá constatar que tanto individualmente, como no interior das
instituições, um conjunto de saberes assumidos como manifestamente verdadeiros, passam a
ditar as regras daquilo que se pode e do que não se deve dizer, assim como do que se pode e
do que se está proibido de fazer. Em outras palavras, o saber e a verdade desse saber se
transformam em obrigação moral e política, pois ambos se metamorfoseiam no “tu deves”,
compromisso que Nietzsche (2012) comenta em um de seus aforismos do seu Zaratustra.
Por verificar esse vínculo político e moral da verdade, em seus estudos
arqueogenealógicos, Michel Foucault tratou de interrogar a própria verdade, de colocá-la no
interior da história e indagar-lhe sobre a sua vontade, ou seja, interrogar o querer dessa
verdade. A verdade, tanto para Nietzsche quanto para Foucault, não possui uma origem
metafísica, seja essa origem considerada na própria da essência das coisas, ou no querer da
vontade humana (na sua vontade de potência), mas é um objeto de luta, luta essa que se trava
no interior da política.
A verdade, para esses dois filósofos, é o que qualifica algo como verdadeiro ou falso,
isto é, o produto da racionalidade humana sobre o mundo ou, em outros termos, é o querer
próprio da racionalidade (ou a própria racionalidade em si) agindo sobre as outras vontades da
natureza, com a finalidade de transformá-las, de domesticá-las, e de docilizá-las. Nesses
termos, a vontade de verdade exprime a manifestação dos instintos de conservação, evidencia
uma impotência da vontade de criar novos modos de vida, novas condições de existência, ou
seja, constitui-se na manifestação de uma vontade negativa de potência. Nessas condições,
“[...] as verdades não são descobertas pela razão, mas sim inventadas por ela” (VEIGA-
NETO, 2011, p. 90).
Sendo assim, Foucault (2014f, p. 54) prefere entender verdade por “[...] um conjunto
de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados”. Não se trata de um estudo da verdade em si mesma, como
um fato verídico e verificável, pois o interesse de Foucault se desloca para a noção de regimes
de verdade, que “[…] é o que força os indivíduos a um certo número de atos de verdade […]
o que constrange os indivíduos a esses atos de verdade, o que define, determina a forma
desses atos e estabelece para esses atos condições de efetivação e efeitos específicos”
(FOUCAULT, 2010, p. 85).
40

Por esse mesmo ângulo de análise, Revel (2005) acrescenta que, regime de verdade se
caracteriza pelos discursos que as sociedades fazem funcionar como verdadeiros, ou ainda
“[...] os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou
falsos, a maneira como sanciona uns e outros” (FOUCAULT, 2014f, p. 52). É nesse sentido
que, para Michel Foucault, saber e poder forma um conjunto complexo e interrelacionado, no
qual poder produz saber e este é o que dá a sustentação para aquele. São os discursos que,
uma vez colocados em circulação e aceitos por uma comunidade ou sociedade como
verdadeiros, produzem tantos os objetos como sujeitos enquanto efeitos de superfície, ou seja,
por meio dos discursos emergem os acontecimentos. É justamente a noção de acontecimento
que trataremos no próximo tópico.

1.3 A noção de acontecimento em Michel Foucault

A caracterização da noção de acontecimento, utilizada por Foucault (2015a), embora


não admitida expressamente por ele, tem seu sustentáculo no pensamento estóico antigo, uma
vez que ela não é da ordem dos corpos, mas funciona como um incorporal. Para aquela escola
filosófica, somente os corpos é que possuem uma realidade própria e, por realidade, entendem
tudo aquilo que pode afetar ou ser afetado. Para os estóicos, assim como para os cínicos: tudo
é corpo; sendo, inclusive, considerado como corpo: o som, a alma e as virtudes. Para aquelas
categorias que não podem ser consideradas corpos, atribuem a nomenclatura de: incorporais.
Essas escolas contrariam o platonismo, pois consideram que “[...] o corpo não aprisiona e
limita a alma, é a alma, vitalidade imanente ao corpo, que tensiona suas partes ao limite do
que pode e lhe confere virtudes racionais” (BRÉHIER, 2012, p.5).
Sendo, então, a alma a potência imanente dos corpos, podemos associá-la ao princípio
de movimento heraclitiano, que é o Fogo, à vontade schopenhaueriana, ou à vontade de
potência nietzschiana, pois é por meio desse querer interno, que os corpos são impulsionados
imanentemente a se autossuperar. Da mistura dos corpos, da afetação de uns sobre os outros,
não resulta uma nova realidade corpórea, ou a formação de novas propriedades, mas apenas
atributos. De acordo com Temple (2001), atributo é tudo o que é dito ou afirmado sobre um
determinado ser e que, não podendo lhe modificar suas propriedades, permanece
simplesmente no seu exterior como um efeito discursivo, um acontecimento.
41

Nesse mesmo sentido, Paul Veyne (2014, p. 46) afirma que “os acontecimentos não
são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos livremente na
realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e produzem substâncias em
interação, homens e coisas”. Não sendo da ordem dos corpos e, tampouco, das substâncias, os
acontecimentos não possuem uma realidade em si mesma e, desta maneira, considerados
incorporais, não podem afetar diretamente coisa em si, pois eles são simplesmente um
exprimível na forma verbal, aquilo que se diz sobre os corpos, mas que não podem lhes
modificar nem afetar suas qualidades (DELEUZE, 2018).
Segundo Foucault (2015a), o acontecimento é algo que paira sobre a superfície dos
corpos, ou seja, habita-lhes a superfície e integra o universo dos efeitos incorporais, dos
efeitos exteriores aos corpos e que tornam a linguagem possível. Desta maneira, o
acontecimento se relaciona com estados de coisas, como um atributo lógico desses mesmos
estados, mas completamente diferente de suas qualidades físicas. É aquilo que somente pode
possuir existência na linguagem mesma que o manifesta, nas proposições que o tornam
possível como um exprimível, uma existência que somente se torna possível no conteúdo
expresso dos discursos.
Para Foucault (2008c, p. 267), o corpo se constitui numa “[...] superfície de inscrição
dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dissociação do Eu (ao qual ele tenta atribuir a ilusão de uma unidade substancial), volume em
perpétua pulverização”. O acontecimento se instala entre os enunciados e as práticas que os
corpos realizam, práticas essas que pressupõem a existência de uma materialidade, que pode
ser apreendida pelo discurso, como uma verdade.
Sendo os acontecimentos da ordem a linguagem e das proposições, numa perspectiva
nietzschiana, Foucault (2015a) parte do princípio que não são as coisas que criam os
discursos, pois o processo ocorre num sentido inverso, ou seja, são os discursos que produzem
as condições conceituais para que os objetos sejam fabricados a posteriori, ou seja, as coisas
são produzidas conforme uma vontade de verdade. A emergência seria, então, o ponto de
irrupção, o princípio e a lei singular de um acontecimento, situando-se no momento exato em
que ocorre uma alteração da correlação das forças, forças essas que se encontram envolvidas
numa perpétua agonística para determinar seus próprios conteúdos de verdade.
É nesse sentido que Foucault (2015a) orienta seus estudos, na direção de uma história
geral, serial ou acontecimentalizada, pois afirma que “ali onde se estaria bastante tentado a se
referir a uma constante histórica, ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma
evidência se impondo da mesma maneira para todos, trata-se de fazer surgir uma
42

singularidade” (FOUCAULT, 2010, p. 339). Por fim, cabe salientar que o acontecimento não
se constitui como algo isolado, pois a sua irrupção imiscui-se com uma multiplicidade de
outros acontecimentos que emergem da mistura dos corpos. Nessa perspectiva, Veyne (2014,
p. 34) sustenta que “um acontecimento só tem sentido dentro de uma série, o número de séries
é indefinido, elas não se ordenam hierarquicamente e veremos que também não convergem
para um geometral de todas as perspectivas”.
Diante do exposto, este será o caminho que percorreremos, para analisar a emergência
da Educação do Campo, não como um fato histórico, mas como um acontecimento que surge
em meio a tantos outros, na atualidade própria de seu aparecimento, enquanto discurso de
verdade. Discursos verdadeiros que põem em circulação uma série de enunciados que lhe
oferecerem um regime de materialidade repetível, capaz de reproduzi-lo e de criar os seus
próprios objetos. É sobre a noção de enunciado e sua respectiva materialidade repetível,
constituída pela formação discursiva, que trataremos no próximo subitem.

1.4 O enunciado e a formação discursiva

Embora Foucault (2015a) não tenha formulado uma definição exata para o termo
enunciado, traçou uma série de diferenciações, na tentativa de não o confundirmos com as
frases, as proposições ou os atos de fala. Para ele, o enunciado é uma unidade do discurso, que
não é da mesma ordem gramatical, lógica ou pragmática dessas unidades das quais buscou
assinalar sua diferença. Trata-se de “[...] uma função que possibilita que um conjunto de
signos, formando unidade lógica ou gramatical, se relacione com um domínio de objetos,
receba um sujeito possível, coordene-se com outros enunciados e apareça como um objeto,
isto é, como materialidade repetível” (MACHADO, 2006, p. 152).
O enunciado é, assim, uma função de existência que se exerce verticalmente, cruzando
um domínio de estruturas e de unidades possíveis, e possibilitando a emergência de
acontecimentos discursivos. Diferentemente dos acontecimentos que possuem uma
localização espaço/temporal, o enunciado atravessa o espaço e o tempo e se estabelece numa
outra ordem, que é a da instituição. Ele exerce uma função que faz aparecer um jogo de
posições possíveis para um sujeito, que se relaciona discursivamente com um domínio, no
qual determinados objetos podem aparecer (FOUCAULT, 2015a).
43

Por meio dessa função enunciativa, que se exerce verticalmente sobre as estruturas e
as unidades possíveis, o enunciado faz com que objetos apareçam no tempo e no espaço
enquanto acontecimentos discursivos. Embora seja dependente das frases e das proposições
para sua circulação, o enunciado não é algo imediatamente visível, mas ao mesmo tempo, não
está oculto nessa mesma unidade. Nesse sentido, Foucault (2015a) adverte que os enunciados
são raros e poucas coisas podem ser ditas em suma e, talvez, seja justamente pelo fato de ser o
enunciado raro e tão conhecido, que não pode ser percebido instantaneamente como algo que
se manifesta, pois ele se dissimula nas próprias frases e proposições.
Sendo uma função de existência e dependente dos signos que cruzam verticalmente,
tanto a estrutura (corpo) como o acontecimento (o incorporal), o enunciado se caracteriza por
quatro elementos: um referente, um sujeito, um campo associado e uma materialidade
repetível. Primeiramente, o enunciado necessita de um referente, ou seja, um princípio de
diferenciação “[...] dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são
postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de
delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade” (FOUCAULT,
2015a, p. 11).
O segundo elemento que caracteriza um enunciado é uma posição sujeito, isto é, uma
posição vazia a ser ocupada ou uma função que pode ser exercida indiferentemente por
indivíduos diferentes, a partir do momento em que formulam o enunciado e o aceitam como
sua própria lei. Não é porque houve alguém para proferir uma frase, uma proposição ou um
conjunto de signos que existe um enunciado, mas porque é possível assinalar a sua posição
sujeito, na medida em que é possível determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo
o indivíduo para ser seu sujeito (FOUCAULT, 2015a).
A terceira característica do enunciado diz respeito a sua existência enquanto função,
que só pode ser exercida mediante a coexistência num campo adjacente, isto é, num espaço
colateral povoado por outros enunciados. Como assegura Foucault (2015a, p. 152) “todo
enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa,
mas que tem o poder de se reorganizar e de redistribuir segundo relações novas”. Em outras
palavras, “[...] não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros
enunciados” e, sendo assim, “[...] uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se
estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular”
(FOUCAULT, 2015a, p. 120).
Finalmente, a quarta e última característica da função enunciativa, exige uma estrutura
de registro para os signos, ou seja, há a necessidade de um suporte substancial no qual a
44

sequência de elementos linguísticos possa se materializar. De acordo com Foucault (2015a, p.


122) “o enunciado é sempre apresentado através de uma espessura material, mesmo
dissimulada, mesmo se, apenas surgida, estiver condenada a se desvanecer”. É a sua
materialidade que, em parte, constitui propriamente o enunciado, pois para sua existência, ele
precisa dessa substância, de um suporte material que possui um lugar e uma data, mas essa
materialidade é muito mais da ordem institucional do que da localização espaço-temporal.
Resumindo, Foucault (2015a, p. 130-131) afirma que os enunciados são “[...] coisas
que se transmitem e se conservam, que têm um valor, e das quais procuramos nos apropriar”,
ou ainda:

Chamaremos de enunciado a modalidade de existência própria desse


conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma
série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma
substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser
humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um conjunto de
objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar
situado entre outras performances verbais estar dotado, enfim, de uma
materialidade repetível (grifos do autor).

A formação discursiva, por sua vez, constitui-se como um conjunto de performances


verbais, que se ligam no nível dos enunciados ou, em outros termos “[...] é o sistema
enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais [...]”, que “[...] escande
o plano das coisas ditas no nível específico dos enunciados” (FOUCAULT, 2015a, p.142). A
formação discursiva funciona como uma matriz de sentido para os sujeitos, que se
reconhecem porque as significações, que são construídas no interior dessa matriz, parecem-
lhes óbvias e naturais.
É nesse sentido que Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi (2015, p. 41) afirma que, “a
formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a
partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e
o que deve ser dito”. Não é a língua que predetermina o sentido do enunciado, nem mesmo o
sujeito que o enuncia, mas as condições sócio-históricas nas quais eles são produzidos,
reproduzidos e colocados em circulação. Dessa maneira, um mesmo enunciado pode mudar
de sentido, dependendo de qual formação discursiva ele é empregado, ou seja, depende do
conjunto dos outros enunciados que formam o campo no qual se produz a enunciação.
Sendo assim, Foucault (2015a) sustenta que uma formação discursiva é definida pelas
regularidades enunciativas, que se formam no interior de campos homogêneos, regularidades
essas que possibilitam a positividade do enunciado, ou seja, é no interior dessa regularidade
45

que o enunciado produz seus efeitos de verdade. Por esse motivo, embora a análise dos
enunciados e da formação discursiva se estabeleça correlativamente, ambas se abrem em
direções inteiramente opostas.
Enquanto a análise da formação discursiva determina um princípio de raridade, pois
faz aparecer os únicos conjuntos de significantes possíveis, uma vez que, no interior de cada
um dos campos discursivos nem tudo pode ser dito, da mesma maneira, no íntimo mesmo da
formação discursiva, os enunciados são utilizados como instância de exclusão, que os separa
dos demais significantes possíveis. Dito de outra maneira, o princípio de raridade é que
permite o uso dos enunciados no interior de uma dada formação discursiva, é o que possibilita
determinar a posição singular ocupada por ele. O modo como ele é isolado na dispersão geral,
tanto em relação aos demais enunciados com quem mantém vínculo, como em relação ao seu
próprio uso heterogêneo no interior de outras formações discursivas possíveis é que lhe dão
significações diversas (FOUCAULT, 2015a).
Os enunciados, por sua vez, pelo fato de serem raros e de não serem totalmente
transparentes, possuem uma capacidade de circulação e de transformação, de serem
apropriados por múltiplas formações discursivas, adquirindo funções de sentido e de produção
de verdades que, até mesmo podem ser opostas. Por esse motivo, Foucault (2015a, p. 147)
garante que “interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensá-la pela
multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir dela e apesar dela”, pois “[...] analisar
uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-lhe a forma
específica”.
Por esse motivo, a interpretação deve ser realizada nos interstícios, nos espaços vazios
de significado deixados pelos enunciados, quando apreendidos em uma determinada formação
discursiva, pois são esses intervalos que lhe escapam ao controle pleno e deixam transparecer
outros efeitos de sentido possíveis. Dito de outro modo, pelo fato dos enunciados serem
heterogêneos, ou seja, por eles possuírem efeitos de sentido abundantes e de participarem de
múltiplas formações discursivas, eles não podem ser apreendidos por completo em cada uma
dessas formações que o envolvem.
Sobram invariavelmente significações, que sempre deixam escapar algo a mais, que
remetem os efeitos de sentido para além desse campo discursivo específico, e, assim sendo,
nos lembra Foucault (2015a), de que é esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso
descrever. É desse mais, que escapa ao controle de um campo discursivo, que a análise do
discurso faz aparecer e, busca descrever.
46

1.5 A concepção de discurso em Foucault

Para iniciarmos o estudo sobre análise do discurso, precisamos delimitar o objeto de


que trata essa análise, qual seja o discurso. Nessa delimitação é preciso nos afastar das noções
consensuais, nas quais o discurso é identificado como um simples uso da língua em contextos
sociais diversos. Foucault (2015a) demonstrou isso longamente, ao apontar que, embora o
discurso dependa de elementos linguísticos, para possuir uma existência material, suas
unidades constitutivas, os enunciados, não podem ser confundidos nem com as frases, nem
com as proposições, tampouco com os atos de fala.
O discurso, numa perspectiva foucaultiana, não é algo que se localiza ou que tem sua
origem num sujeito que fala ou que escreve, tampouco se encontra na própria linguagem por
ele utilizada, o discurso se circunscreve no social, sendo o sujeito apenas o seu ponto de apoio
e a linguagem a sua forma material de expressão (FERNANDES, 2008). Nesse mesmo
sentido, Orlandi (2015) acrescenta que a linguagem é quem faz a mediação entre o homem e
sua realidade natural ou social, realidade essa que se constitui num trabalho simbólico, que
está na base da produção da existência humana.
É essa mediação que a linguagem faz entre o homem e a sua existência material e
simbólica, que Orlandi (2015, p. 13) denomina de discurso, como aquilo que “[...] torna
possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e a realidade em que vive”. Logo, Foucault (2015a, p. 143) define discurso como “[...]
um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva [...],
sendo o discurso “[...] constituído de um número limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência”.
Nessa perspectiva, diante de um objeto discursivo posto na atualidade, é preciso
considerá-lo como o produto de uma elaboração discursiva, algo que foi construído em meio a
um contexto político beligerante, no qual diversas formações discursivas se confrontam,
guiadas cada uma por uma vontade de saber própria, que estabelecem os efeitos de sentido
desejados aos enunciados, que lhe servem de unidades discursivas e que são postos em
circulação.
Essa relação entre o poder e o saber inaugurou a segunda fase do pensamento
foucaultiano, que ficou demarcada com o seu discurso de posse no Collège de France, na aula
inaugural pronunciada no dia 2 de dezembro de 1970. Esse discurso foi transcrito e editado na
forma de livro que, no Brasil, foi traduzido com o título: A ordem do discurso. Nessa aula
47

inaugural, Foucault (2014a) evidenciou os rumos que tomariam suas pesquisas a partir de
então, além de demarcar claramente importância dada ao discurso.
Foucault (2014a) detecta socialmente um temor acerca dos poderes que os discursos
estão investidos, que se traduzem numa disputa histórica constante pelo privilégio político de
quem pode utilizá-lo livremente. Em outros termos, pelo fato do discurso se caracterizar como
uma prática social, algo que se realiza politicamente e que está investido de efeitos de
verdade, por meio do qual se produzem tanto os objetos como os sujeitos dos quais se fala, há
uma preocupação de manter seus poderes políticos sob um controle jurídico rígido.
Por meio desse conflito, advindo da limitação do direito de uso do discurso, são
criados grandes sistemas de exclusão e procedimentos internos que dominam seus poderes,
conjuram seus acasos, limitam e controlam a sua aparição, bem como definem a sua utilização
pelos sujeitos, estabelecendo quem pode e quem está excluído dessa prerrogativa de utilizá-lo
livremente. Dentre os grandes sistemas de exclusão, que atingem o discurso e se apóiam num
suporte institucional, podemos citar os seguintes: a interdição da palavra, a separação e
rejeição (segregação) e a oposição entre o verdadeiro e o falso (FOUCAULT, 2014a).
A interdição diz respeito ao fato de que não é qualquer sujeito que está autorizado a
falar, sobre qualquer objeto, em qualquer circunstância, isto é, há um direito privilegiado de
uso do discurso, cuja prerrogativa de se pronunciar sobre determinados temas, assuntos e
objetos é atribuída apenas a alguns sujeitos ou a grupos sociais determinados. Essa
prerrogativa de somente determinados sujeitos estarem autorizados a pronunciar seus
discursos sobre determinados temas e objetos, Foucault (2014a) denomina de tabu do objeto.
De maneira complementar, mas ainda dentro desse primeiro sistema de exclusão que opera
por meio da interdição da palavra, o respeito à restrição, à limitação ao controle das condições
em que determinados discursos podem ser pronunciados, constituindo o que o autor denomina
de ritual da circunstância.
A separação e a rejeição se constituem no segundo grande sistema de exclusão, por
meio do qual se estabelecem oposições, de modo a permitir que objetos e/ou sujeitos sejam
incluídos ou excluídos do discurso. Foucault estudou esse grande sistema de exclusão na obra
História da loucura, na qual demonstrou o nítido processo de segregação da loucura que,
desde a Idade Média, operou socialmente por meio de uma separação entre a razão e o seu
oposto: a não-razão ou loucura. Por meio da separação, entre o que se considera razão e
loucura (desrazão), foi possível não apenas rejeitar a palavra do louco, mas de reconhecê-lo
como tal, identificando-se um sujeito que proferia um discurso considerado ininteligível,
irracional (FOUCAULT, 2014a).
48

O terceiro grande sistema de exclusão externo ao discurso e, assim como os outros


dois descritos anteriormente, apoiado num suporte institucional que o reforça e o reconduz
para o interior de um regime de poder, é o da oposição entre verdadeiro e falso. Trata-se de
uma verdade que só se manifesta em sua riqueza e fecundidade, como uma força doce e
falsamente universal, pois concerne ao funcionamento do desejo de poder, próprio de um
discurso que se declara verdadeiro. De acordo com Foucault (2014a, p. 19), é “o discurso
verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e liberta do poder, não pode
reconhecer a vontade de verdade que o atravessa”. Contemporaneamente, podemos identificar
no discurso científico essa estrutura de construção, em que se exclui o verdadeiro do falso, a
partir do uso de um método analítico, que encontra ou revela a verdade, por meio de um
processo dedutivo. Assim, acredita-se na neutralidade dessas verdades, reveladas por meio do
método científico, uma vez que estariam livres do desejo subjetivo do pesquisador e da sua
vontade de verdade (FOUCAULT, 2014a).
Além desses três sistemas externos de exclusão, Foucault (2014a) reconhece também
um conjunto de três princípios de coerção e de restrição internos ao próprio discurso, que são:
o princípio do comentário, o princípio do autor e o princípio da disciplina. O princípio do
comentário tem a função de controlar internamente o discurso, explicando e aprofundando
aquilo que já havia sido dito. Tem como incumbência também, repetir persistentemente aquilo
que jamais fora pronunciado, de modo que o discurso mesmo seja dito e realizado, limitando
seu acaso pelo jogo da identidade, como uma forma de repetição do mesmo.
O princípio do autor ou de rarefação do discurso, igualmente tem a função de limitar o
seu acaso, também pelo jogo da construção interna de uma identidade, mas nesse caso, com
uma forma de individualidade, pois “o autor é aquele que dá à inquietante linguagem da
ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2014a, p.
33). Por fim, o terceiro procedimento interno, que controla a produção dos discursos é o
princípio da disciplina. Para pertencer a uma determinada disciplina, o discurso precisa
preencher exigências e condições complexas, uma espécie de polícia discursiva que controla o
que pode ser colocado no interior de uma vontade de verdade e o que deve ser recusado e
expulso do seu núcleo significante.
Além disso, sobre o princípio da disciplina, Foucault (2014a) cita o exemplo de
Gregor Johann Mendel15, quando do descobrimento de leis genéticas, que explicam as formas

15
Gregor Johann Mendel (1822-1884) nasceu numa família de camponeses austríacos, em Heinzendorf, no dia
22 de julho de 1822, estudou ciências naturais e após 1854 se dedicou ao estudo científico do cruzamento de
espécies diferentes de ervilhas (hibridação). A partir desses estudos formulou duas leis fundamentais para o
49

de transmissão de caracteres hereditários. Adverte que, embora Mendel falasse a verdade,


reportava-se a objetos desconhecidos, empregava métodos e situava-se num horizonte teórico,
também estranho ao campo da biologia de sua época. Para que esse novo objeto, a genética de
Mendel, fosse reconhecido como verdadeiro nesse campo disciplinar da biologia, um “novo
objeto que pede novos instrumentos conceituais e novos fundamentos teóricos, [...] foi preciso
toda uma mudança de escala, o desdobramento de um novo plano de objetos” (p. 33). Sobre
esse princípio, Foucault (2014a, p. 34) finalmente considera que, “é sempre possível dizer o
verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no
verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em
cada um de nossos discursos”.
Foucault (2014a) admite a existência de um terceiro grupo de procedimentos, que
propiciam o controle dos discursos, mas que, diferente dos demais, não se prestam ao domínio
de seus poderes, tampouco a conjurar os acasos de sua aparição. Trata-se de jogos de
limitação e de exclusão, ou seja, são princípios que produzem a rarefação do discurso,
envolvendo a atuação de quatro procedimentos. Embora muito abstratamente esses
procedimentos possam ser separados da sua operação em conjunto, constituem-se nos: rituais
da palavra, nas sociedades do discurso, nos grupos doutrinários e nas apropriações sociais.
A ritualização da palavra produz uma rarefação do discurso, a partir de um controle
subjetivo da fala, por meio do qual se estabelecem as regras e condições para que um
determinado sujeito possa fazer uso do discurso. Em outros termos, o ritual da palavra “[...]
define as qualificações que devem possuir os indivíduos que falam [...] determina para os
sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos”
(FOUCAULT (2014a. p. 37).
As sociedades do discurso instituem uma rarefação discursiva, produzindo ou
conservando discursos que fazem circular em espaços fechados, como é o caso do discurso
científico e, também, o discurso médico. Esses discursos são distribuídos de acordo com
regras estritas, formas de apropriação de segredos e de não permutabilidade, as quais seguem
um regime de exclusividade e de divulgação. É limitado o número de indivíduos que está
autorizado a pronunciar a palavra, sendo que, nessas sociedades de discurso, pode ocorrer
uma apropriação de outros campos discursivos, como é o caso discurso médico que se vê
atravessado pelos discursos da economia e da política (FOUCAULT, 2014a).

estudo da hereditariedade: a lei do monoibridismo e a lei da recombinação ou da segregação independente; leis


essas que ficaram esquecidas até o século XX, quando foram recuperadas por um grupo de cientistas
independentes, denominando-as de Lei de Mendel.
50

Outra forma de controle é a realizada pelos grupos doutrinários, como é o caso dos
movimentos sociais e sindicais, no interior dos quais se partilha um único e mesmo conjunto
de discursos e que, diferentemente das sociedades do discurso, há um número infinito de
indivíduos, que definem a sua pertença recíproca por meio de um reconhecimento das
mesmas verdades e da aceitação de certas regras comuns. Assim, “a doutrina realiza uma
dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos
virtual, dos indivíduos que falam” (FOUCAULT, 2014a, p.41). Em outras palavras, no
interior dos grupos doutrinários, os indivíduos estão vinculados a certos tipos de enunciação e
proibidos de outros, sendo que é justamente esse grupo de enunciados que os une ao grupo de
pertença, diferenciando-os de outros grupos (FOUCAULT, 2014a).
Finalmente, o quarto e último procedimento de controle e sujeição dos discursos que,
numa escala muito mais ampla, diz respeito às apropriações sociais. Embora esse seja um dos
raros momentos, em toda a obra de Michel Foucault, que trata especificamente de temas
ligados à educação, o autor adverte que, o sistema educacional ocupa um espaço particular no
processo de apropriação social dos discursos. Embora a educação seja um direito de todos, ou
seja, um instrumento legal por meio do qual todos os indivíduos podem acessar as mais
diversas modalidades discursivas, ela segue linhas de distribuição, que são marcadas tanto
pelas distâncias e oposições, como pelas lutas sociais. Nessa perspectiva, “todo sistema de
educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com
os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2014a, p. 41).
Dessa maneira, podemos dizer que o discurso é uma prática social, que se produz de
maneiras diversas, conforme o contexto histórico no qual está inserido, apoia-se numa
materialidade específica que é a linguagem, cujo suporte corpóreo é o sujeito. Para manter a
sua regularidade no interior de uma formação discursiva específica, o próprio discurso
estabelece procedimentos internos e externos de exclusão e de controle, que reduzem o perigo
de seu surgimento aleatório e conjura seus poderes. Poderes esses que, devido à raridade e à
heterogeneidade dos enunciados, possibilitam o seu surgimento no interior de formações
discursivas múltiplas, que permitem a criação de unidades de sentido muito diversas e, com
isso, a produção histórica dos próprios objetos e sujeitos que põem em circulação.
Nesse capítulo realizamos uma breve síntese dos fundamentos teórico/metodológicos
de um tipo específico de análise do discurso, que é a análise arquegenealógica do discurso
elaborada por Michel Foucault. O próximo capítulo será dedicado ao estudo da história
acontecimentalizada das diferentes formas de governo que, desde a Antiguidade, conduzem as
ações individuais para um ou outro determinado fim. Ao final desse capítulo será possível
51

entender os modos como, em cada uma das diferentes razões de governo, que se assumiu ao
longo da História Ocidental, foi possível criar os próprios sujeitos governáveis.
52

II - A EMERGÊNCIA DA RAZÃO DE GOVERNO NO OCIDENTE

O presente capítulo é dedicado ao estudo da história acontecimentalizada das


diferentes razões, por meio das quais o governo dos homens baseou sua atividade de conduzir
indivíduos, nos diferentes períodos da História Ocidental. Com base nos estudos realizados
por Michel Foucault, no final da década de 1970, faremos uma síntese das duas grandes
rupturas históricas na arte de governar para, finalmente, nos determos sobre o estudo de uma
nova razão de governo, como fundamento para a análise da emergência de nosso objeto de
pesquisa. Será essa nova razão de governo que mais interessará ao presente estudo, tendo em
vista que o autor nos adverte da sua emergência, a partir da segunda metade do século XVIII
na Europa, mas que, apesar das transformações que sofreu desde então, continua a governar as
condutas humanas e a produzir subjetividades. Desse modo, o estudo da governamentalidade
nos servirá como base interpretativa, para a necessidade histórica da produção, tanto do objeto
Educação do Campo, como do sujeito que sustenta essa noção de educação: o professor do
campo.
Inicialmente, cabe salientar que a palavra governo assumiu contemporaneamente um
sentido particular, que lhe restringe o uso, quase que exclusivamente, às ações institucionais
que se encontram sob o domínio do Estado. Como adverte Veiga-Neto e Lopes (2007), o uso
histórico dessa palavra, em seu sentido amplo, designa as várias formas possíveis de conduzir
a ação dos outros, como o governo das ovelhas pelo pastor, o controle dos filhos e a gestão de
uma casa pelo pai de família, a coordenação da conduta dos educandos pelo professor, dentre
outras tantas possibilidades de direção das ações das pessoas. É nesse sentido amplo do termo
governo que a expressão arte de governo será utilizada no presente estudo, pois ela designa
não apenas uma habilidade em conduzir as condutas dos outros, como também um modo com
que o indivíduo conduz racionalmente suas próprias ações.
De acordo com Foucault (2008a), a governamentalidade surgiu no final do século
XVIII, caracterizando o início de um período histórico que ficou marcado por uma forma
singular de governo, configuração essa que se articula entre os dispositivos de segurança e a
conduta da população. Trata-se de uma nova arte de governar, que estabeleceu uma ruptura
evidente com a razão de governo que a precedeu, embora sustente ainda em seu âmago,
modificados e transformados, alguns dos elementos da racionalidade medieval de governo e
da razão de Estado. Para nomear esse modo totalmente singular de governo, Michel Foucault
criou um neologismo, definindo essa maneira específica de governar da contemporaneidade,
53

essa arte racionalmente desenvolvida para governar da melhor maneira possível a população,
pelo termo governamentalidade.
O primeiro estudo sobre a emergência dessa nova razão de governo foi realizado num
dos cursos, ministrados no Collège de France, o qual recebeu a denominação de Sécurité,
territoire, population. As aulas desse curso foram gravadas, transcritas e, posteriormente
editadas, na França, na forma de livro, cuja primeira edição brasileira foi organizada somente
no ano de 2008, pela editora Martins Fontes e recebeu o título de Segurança, território,
população.
Esse curso foi organizado nos moldes das aulas que Michel Foucault desenvolvia, ou
seja, na forma de seminários que ocorriam uma vez por semana, às quartas-feiras, nessa
universidade francesa. O início desse curso ocorreu no dia 11 de janeiro de 1978 e o seu
término se deu no dia 5 de abril do mesmo ano. Em cada uma dessas aulas, o autor buscou
desenvolver toda uma genealogia do Estado moderno, partindo de uma história da
racionalização da prática governamental e dos seus diferentes aparelhos, formas,
configurações utilizadas para garantir a soberania política. Nesse curso o autor estudou em
profundidade o conjunto heterogêneo de transformações e similitudes dos vários campos da
arte de governo, desde a Antiguidade hebraica e grega, passando pelo poder pastoral e
absolutista da Idade Média, para analisar os modos como configurou essa nova razão de
governo, que denominou de govenamentalidade.

2.1 Uma primeira ruptura: da soberania à arte de governo

No transcorrer do curso Segurança, território, população, o autor demarcou duas


grandes rupturas que a arte de governo sofreu no decorrer de sua prática histórica, rupturas
essas que possibilitaram a emergência de artes de governo até então inexistentes. O cenário de
emergência dessa primeira grande ruptura foi a Europa medieval, temporalmente localizada
no final do século XV e início do século XVI, que ficou marcada pela imanência de uma série
de eventos políticos, culturais e econômicos. Eventos esses que se explicitaram
principalmente pelos movimentos da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica, que
acabaram por polarizar o sistema político/religioso vigente; pela consolidação do movimento
renascentista, que buscou resgatar valores da Antiguidade Clássica; pela mudança do sistema
54

político/econômico feudal para o mercantil; finalmente, com o estabelecimento dos Estados


nacionais.
Partindo da análise de uma série de textos antigos e medievais, Foucault (2008a;
2012a) estabeleceu os elementos de descontinuidade em relação à magistratura grega, ao
pastorado hebraico, ao pastorado cristão e à soberania do príncipe. De um modo inverso,
demarcou elos de continuidades entre o pastorado cristão e a prática política, por meio a
conservação de certos elementos políticos, que serviram para caracterizar o nascimento do
Estado moderno. Na visão do autor, o Estado moderno emerge justamente a partir do
momento em que a governamentalidade se tornou, efetivamente, uma prática de governo
calculada e refletida.
De acordo com Foucault (2014b), o ponto de repulsa de toda a literatura acerca do
governo medieval, situou-se em torno da obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469-
1527), uma aversão que atacou teoricamente o princípio de exterioridade que mantinha o
soberano num vínculo de singularidade e transcendência em relação ao seu principado. Desta
maneira, na segunda metade do século XVI, com as teorias da arte de governo, ficou
demarcada uma ruptura com a forma soberana de governo, que se caracterizava no modo
absolutista com que o príncipe governava seu território. Diferentemente do poder soberano,
em que se verificava como a única configuração possível de exercício do poder, em sua forma
repressiva e violenta, na qual o monarca o exercia sobre o povo, nas teorias anti-
maquiavélicas se reconhece a existência de não somente um, mas pelo menos três tipos
diferentes de governo: o governo de si, o governo da família e o governo do Estado.
Cada uma dessas formas de direção comporta a sua própria matriz específica de
ciência ou de racionalidade, sendo que a moral concerne à ciência do bom governo de si
mesmo, a economia16 diz respeito à arte de bem governar a casa e a família e, por fim, a
política que corresponde à ciência de bem governar o Estado. A razão de Estado comporta
essas três diferentes formas de governo numa relação ascendente e descendente, sendo que a
relação ascendente sustenta que, na medida em que o indivíduo deseja governar o Estado,
primeiramente deverá desenvolver a habilidade de bem governar a si mesmo e,
posteriormente, conduzir de maneira adequada a sua família, seus bens e seu patrimônio. Num
sentido inverso e descendente, quando um Estado é bem governado, os pais de família
também sabem governar habilmente sua família, seus bens e seu patrimônio, assim como cada

16
A palavra “economia” tem sua origem grega no termo oikonomía, que se forma pela junção de dois léxicos:
oikos, que significa casa, família; e nomein (ou nómos), que significa gerenciar, governar, dirigir, (ou lei,
norma). Desta maneira, quando esses dois léxicos são utilizados juntos, formando a palavra oikonomía, significa
“[...] o sábio do de governo da casa para o bem da família” (FOUCAULT, 2014, p. 413).
55

indivíduo se comporta adequadamente e sabe controlar seus vícios e apetites (FOUCAULT,


2008a; 2012a).
Tanto na relação ascendente como na descendente, a arte de governar tem como ponto
central a economia, ou seja, o foco da ação política do governo corresponde à arte de bem
governar a família, permitindo uma continuidade, de ponta a ponta do sistema, dessa prática
de governo. A família é o ponto central em que se apoiam as práticas de governo do Estado,
sendo que a introdução da economia no interior do exercício do poder do Estado, tornou-se o
grande desafio dessa nova arte de governar. Por conseguinte, Foucault (2014b, p. 414)
esclarece que “[...] a arte de governar é precisamente a arte de exercer o poder segundo o
modelo da economia”.
Os elos de continuidade entre a razão de Estado e a arte de governo da Idade Média se
estabelecem a partir de uma espécie de continuidade da racionalidade pastoral, cuja prática se
exerce de uma forma, ao mesmo tempo total e individualizante, sobre o rebanho e sobre cada
ovelha individualmente, e de maneira particular. O bom governo pastoral é aquele que se
ocupa da salvação do rebanho como um todo, sem com isso deixar qualquer ovelha para trás.
O poder pastoral não pode permitir que ovelha alguma se desgarre do seu rebanho e se perca
pelo caminho, mesmo que, para isso, seja preciso que o próprio pastor se sacrifique para
salvá-la (FOUCAULT, 2008a; 2012a).
Por meio dessa genealogia do poder pastoral, cujas transformações vêm ocorrendo
desde a Antiguidade, a partir dos hebreus, passando pelos filósofos e magistrados gregos, cujo
elemento essencial é a condução das condutas, que se reproduziu na pastoral cristã da Idade
Média, Foucault (2008a) estabelece toda uma relação fundamental entre a individualização e a
totalização. Essa relação entre a particularização e a síntese unificadora culminará, em outro
contexto, no estabelecimento da razão de governo, a partir da instituição de uma noção que
nos é muito comum atualmente e que soa como algo aparentemente natural na
contemporaneidade, que é o termo: população.
Sendo assim, para Foucault (2008a), a emergência da razão de Estado, sinalizou uma
ruptura com a antiga tradição de governo medieval, em que o bom governo soberano deveria
se alinhar com uma ordem natural e divina das coisas e inserir-se no interior de uma razão
cosmo-teológica. Somente seria possível um bom governo soberano, na medida em que esse
buscasse, o máximo possível, aproximar-se da perfeição e da maestria divina. Em ouras
palavras, esse governo benfeitor medieval deveria se alinhar à organização natural da
totalidade do cosmos, de maneira que sua prática de governo se aproximasse dessa perfeição.
56

A ruptura com a tradição medieval funda uma nova razão de governo, uma razão que
não mais se fundamentará na ordem natural e cosmo-teológica, mas numa razão interna ao
próprio governo, que estabelecerá uma artificialidade disciplinar, a ser imposta no interior da
organização do Estado. Nessa nova razão governamental, que desse momento em diante
passou a ser uma razão de Estado, ocorreu uma espécie de continuidade no uso de certos
elementos essenciais ao poder pastoral. A partir de então, – embora ainda não se pudesse
utilizar adequadamente o termo população, pois ele ainda se encontrava bloqueado pelo
modelo de economia baseado na gestão familiar – será todo esse conjunto, formado pelos
indivíduos e suas famílias, que deverá ser salvo e, para que todos pudessem ser preservados,
era preciso cuidar para que cada indivíduo também se salvasse.
Há, entretanto, uma diferença quanto ao tipo de salvação que a razão de Estado
buscará alcançar, não sendo mais aquela salvação que o poder pastoral cristão perseguia, uma
salvação futura, numa outra dimensão, num mundo divino que não é esse no qual se vive. A
salvação de que razão de Estado se ocupava, era uma salvação terrena que deveria ocorrer em
sua própria atualidade; não uma salvação espiritual, mas uma salvação material e econômica
do próprio Estado, que dependia da salvação do conjunto total, formado por todos os homens
e suas famílias e, por consequência, da salvação material de cada um dos homens que
habitavam o território governado.
De acordo com Foucault (2008b, p. 6) “governar segundo o princípio da razão de
Estado é fazer que o Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar rico, que
possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-lo”. Para tanto, para que essa salvação
econômica e material do Estado ocorresse em sua totalidade absoluta, para que o Estado se
tornasse sólido e permanente, deveria cuidar para que toda a população se tornasse cada vez
mais forte e, para que isso ocorresse, haveria de impulsionar o crescimento individual de cada
homem.
Dessa forma, para que todos se salvem, para que o próprio Estado se torne soberano e
sobreviva, para que se desenvolva economicamente de maneira a poder competir com os
outros Estados, foi necessário investir individualmente nas forças produtivas de cada homem,
fazendo com que cada indivíduo crescesse e se tornasse mais forte. Pode-se verificar nesse
ponto, com a emergência da razão de Estado, a operação de uma inversão na dinâmica da
ação do poder, pois enquanto o soberano exercia um poder eminentemente negativo e
repressor sobre seus súditos, a prática governamental da razão de Estado exercerá sobre os
indivíduos e suas famílias, um poder positivo. Ao contrário do poder repressivo do soberano,
57

com a emergência de uma arte de governo, o exercício de poder se torna algo que faz
produzir, que incita a criação, suscita o crescimento.
A ação produtiva dessa arte de governar suscitou um investimento produtivo
individual e um desenvolvimento econômico das famílias, de forma que o próprio Estado se
torne mais forte, produtivo e competitivo, garantindo a sua própria soberania enquanto nação
independente. É nesse sentido que Foucault (2008b, p. 6) afirma ser essa razão governamental
a própria fundadora do Estado moderno, pois “[...] precisamente uma prática, ou antes, uma
racionalização de uma prática que vai se situar entre um Estado apresentado como dado e um
Estado apresentado como a construir e a edificar”. Para edificar esse Estado soberano que se
formava, a razão governamental precisou estabelecer uma nova ordem interna, não mais
alinhada com a ordem natural e divina das coisas, mas à necessidade de aumentar, mesmo que
artificialmente, a força, a potência produtiva de cada indivíduo.
Por meio dessa razão de governo, tratou-se de criar, no interior do Estado, um
conjunto de disciplinas e regulamentos para a condução e a manipulação artificial de suas
próprias forças internas. Essas práticas disciplinares e regulamentares tiveram um objetivo
estratégico, que foi o de manter, redistribuir e estabelecer, de forma mais eficiente, as relações
políticas e comerciais num espaço de concorrência interestatal. Em outras palavras, o objetivo
final dessa manipulação de forças, era criar as condições necessárias para o crescimento
competitivo do próprio Estado, de maneira a comercializar com outras nações, obtendo o
máximo de lucro possível em cada transação (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
Como já mencionado anteriormente, o Estado necessitou estabelecer suas condições
artificiais internas, para garantir o crescimento de sua própria força competitiva, força essa
que se constituía e aumentava a partir da atividade humana de fabricação, circulação e troca
de mercadorias. Foi nesse contexto que se constata a emergência de uma instituição, inédita
até então, que ficará incumbida do disciplinamento da população, da regulamentação de todo
esse fluxo de forças e da interação dessas forças responsáveis pela produção e
comercialização de mercadorias e serviços. Essa instituição, que nasceu no século XVII e que
se ocupou, a partir de então, da disciplina e da racionalização política das forças promotoras
do crescimento do Estado, assim como de sua ordem interna, denominou-se de polícia.
No sentido geral do termo, como foi empregado nos séculos XVII e XVIII, polícia era
um conjunto institucional, cujos poderes eram ilimitados e que se encarregava de toda a
regulamentação mercantil e, também, do disciplinamento político das forças produtivas do
Estado. Dessa maneira, a polícia se ocupava de fazer funcionar os dispositivos de segurança,
necessários ao incremento produtivo de cada indivíduo e do conjunto total desses indivíduos e
58

famílias, de forma a garantir o bom comércio do Estado. Em outras palavras, a partir dos
poderes ilimitados que eram atribuídos à polícia, suas múltiplas atividades se ocupavam de
disciplinar e regulamentar a saúde, a subsistência e a circulação humana, de solucionar os
problemas da coexistência densa do homem na cidade, assim como os problemas relacionados
à economia. Aliás, Foucault (2008a) faz questão de enfatizar que a polícia se configura numa
instituição essencialmente urbana e mercantil, não podendo ser dissociada de uma política de
concorrência comercial, tampouco do próprio processo de urbanização, pois acredita que o
policiar e o urbanizar são a mesma coisa.
Para que essa instituição, encarregada de agir sobre o conjunto das forças, sobre esse
fluxo humano, de mercadorias e serviços, que promovem o crescimento e produzem um
aumento de poder para o Estado, tornou-se necessário conhecer. Era preciso conhecer
rigorosa, atenta e minuciosamente cada uma dessas forças produtivas, que compõem o Estado,
na mais fina de sua individualidade. Conhecer cada detalhe da população e cada etapa de seus
processos econômicos de produção, para poder discipliná-los e regulamentá-los, ou seja, para
governá-los de uma maneira política e economicamente mais racional e eficiente. Isso porque,
para que o sistema de polícia pudesse incrementar as forças do Estado, a população deveria
ser considerada como um número maior possível de indivíduos trabalhadores e disciplinados,
um conjunto de corpos dóceis sobre os quais se aplicava todo um sistema de disciplina e de
regulamentação.
Nesse momento histórico, ainda no século XVII, que se viu nascer uma nova técnica
analítica, por meio da qual se tornou possível a racionalização das práticas de governo do
Estado, uma ferramenta matemática que possibilitou conhecer minuciosamente as diversas
variáveis, os pormenores das forças que compõem e que interessam ao Estado. Tratava-se do
surgimento da estatística, uma poderosa ferramenta analítica de cálculo matemático, que
possibilitou conhecer as minúcias de cada um dos processos e que permitiu fracionar, repartir
e quantificar individualmente cada uma dessas forças que compõem economicamente o
Estado. Por meio desse cálculo racional das forças, foi possível estabelecer relações, medir os
fluxos humanos e de mercadorias, de serviços e conhecer detalhadamente a potência e as
deficiências individuais de cada homem (FOUCAULT, 2008a; 2012a).
Por meio da estatística foi possível, pela primeira vez na História do Ocidente,
governar racionalmente a materialidade fina da existência e da coexistência humana, assim
como a materialidade fina da economia, ao controlar a circulação e o comércio de
mercadorias e serviços. A estatística se transformou numa ciência do governo, que
possibilitou centralizar as ações sobre um nível específico da realidade, que é a esfera da
59

economia. Esse é o momento no qual Foucault (2008a) marca especificamente a emergência


da govenamentalidade do Estado, que terá a polícia como o conjunto institucional
encarregado pelas forças promotoras do seu crescimento e de seus poderes, e a estatística
como ferramenta de análise científica da realidade econômica.
Por meio desses dois instrumentos de governo, a polícia enquanto dispositivo de
domínio político e a estatística como instrumento de análise econômica, tornou-se possível
não somente conhecer, mas também disciplinar, promover e incrementar fluxos demográficos
e de produção, políticas de natalidade, soluções para as necessidades gerais da vida do
homem, assim como para a contenção de doenças e epidemias. Foram os cálculos e as
previsões estatísticas que possibilitaram ao Estado fundamentar racionalmente, a partir de
então, suas práticas de governo sobre o conjunto da população, disciplinando, regulamentando
cada uma das ações individuais.
Percebe-se uma continuidade transformada do poder pastoral, pois a emergência da
arte de governo de Estado possibilitou o estabelecimento de um sistema de controle
disciplinar, no qual cada indivíduo passou a ser vigiado, por meio de uma anatomia política
do seu próprio corpo, ao mesmo tempo em que se instituíam dispositivos de segurança para
toda a população. É nesse sentido que o papel original desempenhado pela instituição policial
foi primordial e de extrema importância para a organização, o funcionamento e a expansão
dos Estados nacionais (FOUCAULT, 2008a; 2012a).
Diferentemente da conotação negativa e repressiva que é atribuída ao seu papel social
na contemporaneidade, originalmente a polícia desempenhou uma variedade de funções
eminentemente produtoras, estimuladoras, ou seja, positivas para a razão de Estado, não
sendo a função repressora o seu papel principal, mas subsidiário. No interior da razão de
Estado, a polícia possuía infinitos objetos de interesse e desempenhava uma diversidade de
funções que iam do disciplinamento à regulamentação. Essa diversidade de funções
desempenhadas pela polícia no interior da governamentalidade de Estado, Foucault (2008a)
classifica em cinco categorias distintas: a quantidade necessária de trabalhadores para o bom
funcionamento do Estado e o disciplinamento dos fluxos migratórios; a regulamentação e o
disciplinamento das necessidades da vida; a regulamentação e o disciplinamento dos
problemas com a saúde; a regulação e o disciplinamento dos ofícios; e, por fim, a
regulamentação e o disciplinamento da circulação de mercadorias e do espaço de circulação
de mercadorias, pessoas e serviços.
Desse modo, Foucault (2008a) afirma que, com a polícia e a estatística, instituiu-se um
círculo de poder/saber, no qual a intervenção política, racionalmente calculada, parte sempre
60

do Estado, age sobre os indivíduos e retorna para o Estado como um conjunto de forças
crescentes ou sobre as quais se invoca a necessidade de se fazerem crescer. Essas forças,
sobre as quais se concentra a ação da polícia e cujo intuito é o de fazê-las crescer, passam pela
vida dos indivíduos, articulando-se, desta maneira, à felicidade de cada membro da população
com a potência do Estado. Está aí a própria função original da polícia: fazer da felicidade dos
indivíduos a própria utilidade do Estado, em outras palavras, fazer do crescimento individual
e da felicidade dos homens, um objeto de aumento, de acréscimo da própria força do Estado.
A estatística, por sua vez, permitiu a construção de um conjunto de saberes amplos
sobre a população, efetuando um desbloqueio na arte de governo, ao deslocar o centro das
análises econômicas da família, para esse novo objeto de ação racional e planejada. Foi a
partir da possibilidade de se efetuar um cálculo estatístico e minucioso sobre os problemas da
população, ou seja, dos cálculos necessários ao disciplinamento e à regulamentação de todos
os inconvenientes da coexistência humana e da circulação de mercadorias, que foi possível o
nascimento da economia política (FOUCAULT, 2012a).
Para Foucault (2008a), a economia política diz respeito ao conjunto de saberes acerca
das questões relacionadas à população, às técnicas de intervenção do governo no campo da
realidade, ou seja, uma relação circular entre o poder e o saber, por meio da qual se produz e
reproduz a realidade. Realidade essa que perpassa tanto a economia do Estado como a vida de
cada um dos indivíduos, assim como a vida de toda a população enquanto política. Por esse
motivo é que Foucault (2008a) nos adverte sobre a impossibilidade de dissociar os problemas
de polícia dos problemas políticos da população. Isso porque a política disciplinar de
natalidade e/ou de mortalidade, o treinamento de um ofício, a política regulamentar de
produção e a circulação de mercadorias e serviços, assim como a regulação externa do
comércio entre os Estados, são todos problemas de tanto políticos como problemas de polícia.
Por meio de sua genealogia da arte de governo, Foucault (2008a) explica o processo
pelo qual o Estado de justiça da Idade Média se transformou, possibilitando a emergência de
uma razão governamental de Estado, ou seja, o surgimento de uma governamentalidade de
Estado. Do mesmo modo, esclarece sobre as transformações que ocorreram nessa mesma
governamentalidade de Estado, acerca das modificações que se processaram no início do
século XVIII e possibilitaram a emergência de uma nova governamentalidade, a partir da
segunda metade daquele mesmo século.
61

2.2 Segunda ruptura na arte de governo: a emergência da governamentalidade

A segunda grande ruptura na arte de governo possibilitou a emergência de uma nova


razão governamental, razão essa que ainda nos é contemporânea e que o autor denominou de
governamentalidade. Essa segunda ruptura teria ocorrido no final do século XVIII, o que a faz
coincidir com duas outras grandes rupturas culturais, políticas e econômicas: o movimento do
Iluminismo e a Revolução Francesa. Essa ruptura com razão de Estado emergiu a partir da
proveniência de novas demandas políticas, econômicas e sociais, que apontavam para a
necessidade de mudança geral na arte de governar a população.
Sobre a nova razão governamental, Foucault (2008a) pontua que, ficou a cargo dos
economistas a inventarem, baseados numa racionalidade que não substituirá totalmente a
razão de Estado, mas criará novas formas de racionalidades e novos conteúdos. Para que essa
nova racionalidade governamental pudesse funcionar como uma verdade discursiva, os
economistas fizeram emergir, no interior da razão de Estado, quatro descontinuidades
menores, as quais levariam a total ruptura com essa racionalidade, abrindo as brechas
necessárias para o surgimento da nova governamentalidade.
Inicialmente, o discurso econômico fez emergir um domínio considerado natural e
específico da existência comum entre homens, algo inédito até então e que será
correspondente ao próprio Estado, esse domínio que será a sociedade civil. Com a emergência
da sociedade civil, reaparecem os discursos acerca da naturalidade, não que fosse um retorno
dos discursos sobre a natureza cosmo-teológica, como o que operou durante a Idade Média.
Tratou-se da emergência de discursos que consideravam a naturalidade dos processos de
associação mútua entre os seres humanos, a naturalidade dos processos de formação da
sociedade civil fundamentados no desejo humano e natural de associação, uma naturalidade
da vida coletiva do ser humano em sociedade.
A naturalidade da sociedade civil abriu a possibilidade de uma segunda
descontinuidade discursiva, pois, uma vez que o fenômeno de associação entre os homens
passou a ser considerado algo espontâneo e natural, emergiu, também, a necessidade de se
conhecer os processos que envolviam a produção desse fenômeno, para que eles pudessem ser
gerenciados. Visto que o fenômeno da sociedade passou a ser considerado algo natural, os
processos que o constituem também o foram e, desse modo, houve uma mudança total na
origem dos dados que fundamentavam os saberes sobre a sociedade. Não são mais as forças
internas, próprias da racionalidade do Estado, que forneciam os dados a serem analisados
62

estatisticamente, mas os dados externos a essa nova razão governamental que acabava de
emergir. São os dados da evidência natural das coisas e dos processos que formavam a
sociedade civil que passaram a ser objeto dos cálculos estatísticos, mas que necessitavam
passar pelo crivo analítico da racionalidade científica.
A novidade dessa nova razão governamental está na reivindicação da racionalidade
científica, como fundamento para a análise dos dados obtidos, a partir da evidência dos
fenômenos econômicos. Trata-se do surgimento de uma relação de poder e saber que é
externa à própria arte de governar, que produz uma relação entre o governo dos homens e a
ciência, ou seja, a partir da emergência dessa nova arte de governo, o saber se fundamentará
numa razão da ciência econômica, que fornecerá os elementos necessários ao poder, para que
toda a tomada de decisão política passasse a ser embasada em fundamentos científicos.
Essa continuidade entre governo e ciência, entre poder e saber, ou, ainda, entre ciência
e decisão, conjura a arte de governo, separando-a em dois pólos distintos, mas
interdependentes: um desses lados da relação se envolverá estritamente com a coleta, o
cálculo e análise das evidências fenomênicas, consideradas naturais, recorrendo à pureza
teórico/científica da economia; a outra extremidade envolver-se-á unicamente com a
deliberação política, mas essa tomada de decisão estará sempre fundamentada nos saberes
científicos, produzidos pelo primeiro polo da relação. Nesse sentido, verifica-se uma
continuidade e uma relação circular entre poder e saber, uma vez que as decisões de governo
passam a ser modeladas pelo conhecimento supostamente neutro e imparcial da ciência
(FOUCAULT, 2008a; 2012a).
A terceira descontinuidade discursiva em relação à razão de Estado está relacionada
aos problemas propriamente da população, pois se deixará de considerá-la como uma simples
coleção de súditos. A população não será mais aquele conjunto de homens que o Estado
necessita submeter constantemente a uma disciplina e à regulamentação exaustiva. No interior
da nova razão governamental, a população existe como uma naturalidade intrínseca à
sociedade civil, com suas leis próprias de deslocamento e de transformação. É no interior
dessa naturalidade da sociedade civil que ocorre a interação entre os indivíduos e entre a
população como um todo, produzindo um vínculo diferente daquele desejado pelo Estado,
pois se trata de um vínculo espontâneo e que se estabelece a partir de um interesse individual
(FOUCAULT, 2008a).
A quarta descontinuidade entre a governamentalidade e a razão de Estado está
relacionada à aceitação da verdade sobre as leis naturais, que definem tanto os fenômenos de
ordem populacional como os de ordem econômica. Diferentemente da razão de Estado, na
63

nova governamentalidade, os mecanismos de segurança servem unicamente para evitar que as


coisas se desviem do seu curso natural, para impedir que os processos naturais sofram
interferências artificiais. O Estado, nessa nova razão governamental, assume a função de
produzir mecanismos de segurança que assegurem o curso natural da economia e dos
processos que são intrínsecos à população.
A liberdade surge nesse contexto da govenamentalidade, não apenas como um direito
dos indivíduos, mas como elemento indispensável à própria razão de governo, pois respeitar
essas liberdades é, essencialmente, o mesmo que saber governar ou saber bem governar uma
população. Esse será especificamente, o imperativo para gerenciamento operado pela
governamentalidade no interior da sociedade civil, o de gerir as liberdades e os limites dessas
liberdades, integrando todas as liberdades no interior de um campo, que é o da prática
governamental (FOUCAULT, 2012a).
A nova razão governamental irá estabelecer um sistema duplo de gerenciamento das
liberdades, sendo que de um lado teremos um conjunto de grandes mecanismos de incentivo e
de regulação dos fenômenos naturais da economia, e da gestão de todos os processos
relacionados à população. De outro lado, ver-se-á surgir a institucionalização da polícia, no
sentido moderno que o termo assumiu, com uma função eminentemente repressora, que será
utilizada para impedir os desvios e eliminar a desordem. A governamentalidade incentivará o
livre crescimento dentro de uma ordem, sendo que a liberdade estará inserida dentro dessa
mesma ordem, na qual todo o crescimento é analisado economicamente e deve se produzir de
uma maneira natural, ou seja, sem o inconveniente dos bloqueios artificiais (FOUCAULT,
2008a; 2012a; 2014b).
Nesse subitem apresentamos o conjunto das condições que possibilitaram a
emergência, a partir da segunda metade do século XVIII, de uma nova razão governamental,
formada pelo contato entre as tecnologias de dominação dos outros e as tecnologias de si, que
Foucault (2004) denominou pelo neologismo: governamentalidade. No próximo subitem
efetuaremos um aprofundamento no estudo dessa nova arte de governo, considerando o seu
fundamento maior que se constitui na liberdade dos fatores econômicos, associado ao
aumento dos dispositivos de segurança da população.
64

2.3 A governamentalidade como arte liberal de governo

O aprofundamento do estudo da nova razão governamental foi realizado por Michel


Foucault durante o seminário Nascimento da biopolítica, realizado no ano de 1979, cujas
aulas também foram transcritas e editadas na forma de livro, que foi traduzido e editado no
Brasil no ano de 2008. A organização desse seminário foi semelhante a do ano anterior, em
que Michel Foucault dividiu os conteúdos em 12 aulas de duas horas cada, ministradas uma
vez na semana, às quartas-feiras.
O autor inicia esse seu novo curso, com a retornada das questões sobre a naturalidade
do crescimento livre e sem impedimentos artificiais, as quais aponta como uma configuração
da limitação interna e geral da nova arte de governo, natureza essa que será objeto de cálculo
e de investigação no interior da própria prática de governo. A limitação interna da arte de
governo não se estabelece propriamente a partir de uma divisão entre os indivíduos
governados, mas se introduz a partir de uma divisão das coisas que são peculiares à prática
governamental. Divisão essa que se organiza em torno das coisas que a prática governamental
pode fazer e daquilo que ela não pode realizar, isto é, uma demarcação interna dos meios que
devem e os que não devem ser empregados, de modo a se bem governar as liberdades,
consideradas naturais.
Trata-se de uma nova razão de governo que gira em torno da questão de como não
governar além do estritamente necessário, que Foucault (2008b) denominou de razão
governamental crítica. Por meio dessa nova razão governamental, é o próprio governo que
mensura, calcula e pondera os limites da sua prática, a fim de demarcar a extremidade até
onde pode ir o seu domínio governamental, de modo a não governar demais. De acordo com o
autor, foi a economia política que assegurou essa autolimitação interna da própria razão
governamental, por se tratar de um instrumento intelectual e, ao mesmo tempo, uma forma de
cálculo e de racionalidade das práticas de governamento.
A economia política foi retomada pelos objetivos da razão de Estado, porém de uma
forma diferente e inversa, não mais como um princípio de limitação externa, como o
disciplinamento que se estabeleceu com o pensamento jurídico dos séculos XVI e XVII, mas
como um limite que passa a ser calculado racionalmente no interior da própria razão
governamental. É desse modo que a governamentalidade retoma a economia política que,
desse ponto em diante, atuará como um princípio determinante, como a forma principal de
saber e por meio da qual se definirá os limites internos da prática de governo. Princípio esse
65

que institui uma nova racionalidade para a arte de governo, de modo a se governar o mínimo
possível os elementos internos que são considerados naturais. O objetivo dessa nova razão de
governo se fundamenta numa garantia da livre concorrência interna, de maneira a permitir que
os fluxos econômicos se autorregulem naturalmente.
Diferentemente da razão de Estado, em que os critérios de julgamento, do bom ou do
mau governo, recaíam sobre os princípios legais da prática governamental, para declarar a
legitimidade ou ilegitimidade de um governo, no modelo de governamentalidade liberal, é o
produto da prática de governo que é posto em questão e analisado, para confirmar o seu
fracasso ou o seu sucesso. Vê-se um deslocamento da crítica governamental, do âmbito do
direito, para um campo pragmático e utilitarista da concorrência, no interior do qual os
próprios efeitos da prática de governo é que são postos à prova.
É na medida em que a prática de governamento garante um funcionamento livre e
natural da concorrência interna, que o desempenho do governo será considerado, a partir de
então, como uma ação boa e de sucesso, devido à sua eficiência e eficácia em manter a
liberdade competitiva da sociedade. De um modo inverso e oposto, caso essa mesma prática
funcione de forma a impor limites que impeçam ou dificultem a concorrência interna, limites
esses que são considerados artificiais e externos, ela será julgada como um mau exercício do
poder governamental, isto é, como uma prática fracassada de governo.
Segundo Foucault (2008b), a razão liberal de governo considera que, no interior das
práticas governamentais, há um conjunto de processos, fenômenos e regularidades que são
inteligíveis à razão. Dada a inteligibilidade desse conjunto e pelo fato deles se constituírem
em leis naturais do funcionamento da sociedade, devem eles servir como objeto de análise
para a ação governamental. Esses os objetos é que devem ser decompostos matematicamente,
estudados e racionalizados, de agora em diante, por uma teoria, denominada de liberalismo
econômico.
De acordo com Foucault (2008b), é nesse ponto que a economia política se apropria,
tanto dos fundamentos da filosofia utilitarista17 inglesa, como do pragmatismo 18 americano.

17
O utilitarismo é uma corrente filosófica que se insere no campo da ética e da política, que tenta transformar a
ética numa ciência positiva da conduta humana. Seus fundamentos retomam a filosofia epicurista, na qual a ação
humana deve se basear numa busca pela felicidade e numa fuga do sofrimento. Nesse sentido, tanto os
epicuristas como os utilitaristas consideram uma ação boa, quando é útil e, somente pode ser útil, aquelas ações
que promovem a felicidade humana. Embora os fundamentos do utilitarismo tenham como base a ética
epicurista, essa corrente filosófica se funda com o pensamento do francês Adrien Helvétius (1715-1771), que
posteriormente influenciou o utilitarismo conhecido como de linha inglesa, cujos principais representantes são:
Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) (ABBAGNANO, 2007).
18
O termo pragmatismo foi introduzido na filosofia em 1898, por William James (1842-1910), ao retomar o a
doutrina exposta pelo filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914), cujos princípios determinam uma
correspondência entre a verdade e a utilidade. No pensamento pragmático, “[...] o significado racional de uma
66

Essa apropriação filosófica é que permitiu a inversão do critério ético de julgamento da


prática governamental, deixando esse parâmetro de se relacionar com legitimidade ou a
ilegitimidade da prática, para se transformar numa análise utilitarista e pragmática dos efeitos
positivos ou negativos que as ações governamentais produzem na e para a economia.
O julgamento ético da prática de governo liberal basear-se-á, desse momento em
diante, na sua utilidade enquanto prática de sucesso ou de fracasso, fundamento esse que se
estabelece pelo julgamento do critério da veridicção. Lembrando que não são mais os
parâmetros jurídicos que determinam a razão de legalidade das ações do governo, pois,
doravante, serão os critérios econômicos de verdade que instituirão a razão de cientificidade
para a positividade das práticas de governamento da população. É nesse ponto que emerge, no
interior da razão governamental, um regime discursivo que se baseia no critério da evidência
econômica, determinante para a veridicção das práticas liberais de governo. Trata-se de um
novo regime de verdade, baseado no princípio filosófico do utilitarismo pragmático, por meio
do qual se exige que a prática de governo cruze o crivo inquisitório da ciência econômica, que
irá lhe impor suas verdades como questões centrais para o bom governo da população
(FOUCAULT, 2008b; 2012a).
Essas verdades econômicas, a partir das quais e por meio das quais se estabelecem os
critérios de veridicção para nova razão governamental, não provém necessariamente da teoria
econômica, mas se revelam pela sua própria evidência enquanto mecanismos naturais do
mercado, como: a concorrência, a oferta, a demanda, a circulação, a formação dos preços etc.
São os mecanismos de mercado, que se acredita serem “naturais”, que permitem a atribuição
de um julgamento verdadeiro ou falso, sobre as práticas de governamento. Trata-se de um
julgamento quanto ao modo como as práticas agem sobre a naturalidade desses mecanismos,
de forma a facilitar ou a dificultar o seu funcionamento enquanto processo natural do
mercado.
Desse modo, no interior da lógica estabelecida pela nova razão governamental, a
economia é quem estabelece os critérios éticos de julgamento político, para determinar se um
governo é bom ou ruim. Sendo que uma prática de governo somente será classificada como
boa ou má na medida de sua obediência à sacralidade dos mecanismos “naturais” do mercado,
mecanismos esses que não devem ser tocados pelo poder político. Vê-se estabelecer uma
bipolaridade assimétrica entre a economia e a política, na qual a economia é quem dita a

palavra ou de outra expressão, consiste exclusivamente em seu alcance concebível sobre a conduta da vida”
(ABBAGNANO, 2007, p. 920).
67

verdade sobre as práticas governamentais e determina os seus limites políticos de uma ação
qualquer.
Percebe-se uma inversão no polo de forças que se formaram originalmente no interior
da economia política, uma vez que, enquanto na razão de Estado era a própria prática política
do soberano que determinava e direcionava toda a economia, na nova razão governamental, a
política que se subordina às verdades econômicas. É desse modo que a nova arte
governamental foi construída (peça por peça) no interior de um regime discursivo em que a
economia é quem determina quais os discursos podem ser considerados verdadeiros ou falsos,
por meio do cálculo estatístico e da análise científica, cuja base racional é a via radical e
utilitarista do mercado.
Os limites, para o que é permitido à arte de governo intervir e para o que lhe é vedado,
são construídos discursivamente no interior do campo econômico, a partir de categorias
utilitaristas e concorrenciais do mercado que polarizam tais práticas em verdadeiras ou falsas
(boas ou más). Esse critério de veridicção, definido utilitariamente no interior do campo
econômico, é que institui juridicamente os limites do poder governamental, ou seja, é a
economia que estipula os limites do campo político, no interior do qual se realiza a prática de
governo. Por considerar que os mecanismos de mercado possuem uma naturalidade própria, a
qual não deve ser tocada pelo poder político, o discurso econômico transforma os objetos de
mercado (concorrência, demanda, oferta, preços) em algo que precisa estar a salvo, ou ser
protegido das práticas de governo, consideradas irracionais.
O regime discursivo que se estabelece a partir dessa crença, de evidência dos
mecanismos “naturais” do mercado, é que permite que sejam construídas as verdades sobre a
utilidade econômica da razão de governo, utilidade essa que só se torna verídica no caso em
que se governa menos. Por intermédio da evidência científica de tais verdades, fabricou-se
todo um regime jurídico que estabeleceu os limites do poder público, limites que serviram
como critérios posteriores para a formação do direito público e do direito administrativo
(FOUCAULT, 2008b).
O que caracteriza a arte liberal de governar não é o reconhecimento da liberdade
jurídica dos indivíduos, mas a mecânica interna dos processos econômicos, considerada na
sua espontaneidade e naturalidade. A liberdade não se processa pela via jurídica, que visaria o
respeito às liberdades individuais, mas pela via da evidência natural e espontânea da
concorrência no mercado, que visa à liberdade dos processos econômicos. Isso que possibilita
à teoria econômica munir-se de um conhecimento preciso, contínuo e claro, capaz de
reconhecer em tudo o que acontece na sociedade, quais mecanismos afetam positiva ou
68

negativamente essa concorrência do mercado. É desse modo que se processa a limitação do


poder governamental, pelo respeito às evidências naturais dos mecanismos concorrenciais e
não pelo respeito às liberdades jurídicas e individuais.
Então, poderíamos resumir em dois os pontos de ancoragem nos quais a razão
governamental articula os princípios fundamentais de sua autolimitação: um desses pontos se
localiza no lado do mercado e o outro no lado da utilidade política da prática de governo. Isto
é, uma “razão do Estado mínimo que encontra, portanto no mercado, sua veridicção de base e
na utilidade sua jurisdição de fato” (FOUCAULT, 2008b, p.73). Em vista disso, o ponto de
apoio que se situa no lado do mercado coincide com os mecanismos concorrenciais, que
determinam o surgimento das evidências naturais a serem calculadas, enquanto o ponto de
apoio que está disposto no lado da utilidade, conforma-se às medidas de jurisdição interna
para as ações do governo, ou seja, corresponde à limitação da ação política ao princípio do
governo mínimo necessário. Deve-se governar até o limite do que seja apenas estritamente
útil às liberdades concorrenciais do mercado e de forma a garantir o funcionamento pleno
dessas liberdades.
Por conseguinte, a nova arte liberal de governar age predominantemente por
intermédio de uma gestão dos interesses, isto é, o princípio da nova razão governamental
deverá obedecer a um jogo complexo, de forma a assegurar o funcionamento concomitante
dos interesses, tanto individual como coletivo. Um jogo de interesses em que a utilidade
social e o benefício econômico entram numa relação contínua, de maneira que a razão
governamental deverá buscar constantemente o equilíbrio entre os interesses do mercado e os
interesses do poder público. A prática de governo deverá encontrar esse ponto de equilíbrio,
que se situa num determinado ponto entre o interesse pelos direitos e garantias fundamentais e
a independência dos governados. Não importa quais sejam os interesses; desse ponto em
diante, a única coisa sobre a qual a nova razão de governo estará verdadeiramente autorizada
a agir, é sobre os (e por intermédio dos) interesses. Ou seja, “o governo vai se exercer agora
sobre o que poderíamos chamar de república fenomenal dos interesses” (FOUCAULT, 2008b,
p. 62).
Resumindo, Foucault (2008a, p. 144-145) entende governamentalidade como

[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, as análises e


reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo
lugar, por ‘govenamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em
69

todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a


preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre
todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o
desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e,
por outro lado] o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por
‘governamentalidade’, creio que se deveria entender o processo pelo qual o
Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tronou o
Estado administrativo, viu-se pouco a pouco ‘governamentalizado’” (grifo
do autor).

Nesse subitem apresentamos os principais fundamentos da governamentalidade


enquanto arte liberal de governo, no interior da qual se constrói toda uma racionalidade que
lhe é própria e que se processa pela análise das evidências, consideradas naturais do mercado.
A partir dessas análises econômicas são construídas as verdades que instituem os limites do
campo de atuação política da arte de governo e, no interior dessa prática governamental,
encontra-se o nosso objeto geral de estudo: a Educação do Campo. Dedicamos o próximo
subitem à apresentação de algumas transformações, ocorridas nessa arte liberal de governo
após a Segunda Guerra Mundial, que possibilitaram a emergência de duas razões principais de
governo neoliberais: o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano.

2.4 A governamentalidade enquanto razão neoliberal

Foucault (2008b) deixa claro que não pretende fazer uma história geral do liberalismo
desde o século XVIII até o século XX, mas parte dos problemas que lhe são contemporâneos,
para fazer uma história acontecimentalizada dessa nova razão de governo que é o liberalismo.
Assim sendo, na aula de 31 de janeiro de 1974, identifica duas formas principais que a
programação neoliberal assume, sendo que uma dessas expressões encontra sua ancoragem na
escola de pensamento econômico/liberal alemã, que se denomina de ordoliberalismo ou
ordoliberalismo alemão. A outra forma assumida pelo neoliberalismo encontra seu ponto de
apoio na política econômica estadunidense e recebe a denominação de neoliberalismo
americano.
Pode-se dizer que não mais havia um Estado alemão, logo após a II Guerra Mundial,
pois a sua estrutura política, econômica e social se encontrava totalmente devastada. Nesse
contexto surge o ordoliberalismo, a partir de 1948, quando se inicia uma política econômica,
na Alemanha, coordenada para satisfazer três demandas principais. A primeira dessas
70

demandas se relaciona à necessidade geral de reconstrução dos países europeus, devastados


pela II Guerra Mundial. A segunda urgência dizia respeito à necessidade de uma planificação
dessa reconstrução, por meio da coordenação de planos de reconversão econômica dos
esforços de guerra em esforços de paz. A terceira exigência buscava a socialização dos
objetivos de desenvolvimento, de forma a se evitar novas experiências totalitárias, como foi o
caso do nazismo e do fascismo.
Dessa maneira, o neoliberalismo alemão surge como uma teoria econômica derivada
do liberalismo, mas baseada num Estado forte, de modo a garantir a competição sem a
formação de monopólios, ou seja, no interior de uma ordem estatal que garantia a igualdade
de oportunidades e a estabilização monetária. Por se basear numa ordem interna, assegurada
pelo Estado, esse modelo de liberalismo econômico foi denominado de ordoliberalismo, pois
o prefixo “ordo” designa exatamente esse ordenamento interno do Estado. Por considerar que
o liberalismo é uma palavra que tem sua origem na Alemanha, Foucault (2008b) dedicará, no
seu seminário sobre o nascimento da biopolítica, um conjunto de quatro aulas, exclusivamente
ao estudo do neoliberalismo alemão.
É a concepção neoliberal americana, entretanto, a que mais interessa ao nosso estudo,
sendo que Foucault (2008b) argumenta que essa corrente liberal de política econômica se
apoiou sobre uma espécie de adversário em bloco, cujos elementos que necessitava combater
eram três: a política keynesiana, os pactos sociais de guerra e o crescimento da administração
federal através dos programas econômicos e sociais. A crítica sobre a política keynesiana foi
um ponto convergente entre as diversas formas assumidas pelo neoliberalismo, tanto na
Alemanha, como na França ou nos Estados Unidos. Entretanto, o autor aponta certas
diferenças maciças entre a racionalidade neoliberal formada na Europa e que se consolidou
nos Estados Unidos.
Voltando um pouco na história, pode-se dizer que o liberalismo americano
desempenhou, ainda no século XVIII, um papel semelhante ao que cumpriu na Alemanha do
pós-guerra. Em ambos os casos, o liberalismo atuou como princípio fundador e legitimador
do Estado, com a diferença de que, nos Estados Unidos, o ponto de apoio se deu sobre a
reivindicação de sua independência, cujas bases se fixaram em princípios de ordem
essencialmente econômica. Desta maneira, pode dizer que a emergência do liberalismo
econômico foi o que propiciou a própria formação do Estado, tanto no caso norte-americano,
após a sua independência em 1775, como no caso da reconstrução e do restabelecimento do
Estado alemão, após a II Guerra Mundial (FOUCAULT, 2008b).
71

Durante a segunda metade do século XX, o neoliberalismo encontrou uma ressonância


em todo o espectro do campo político, tendo seus fundamentos reativados tanto nos discursos
considerados como de direita, como naqueles que se admitem de esquerda. À direita do
espectro político, o neoliberalismo se sustentou no discurso contrário, e até mesmo hostil, a
tudo o que pudesse indicar uma tendência socialista. De um modo diferente, nas
manifestações consideradas de esquerda, a razão neoliberal obteve seu apoio nos discursos
contrários à formação de um Estado imperialista e militar (FOUCAULT, 2008b).
Diferentemente do modo como se configurou na França ou na Alemanha, Foucault
(2008b, p. 301) faz questão de frisar que, o neoliberalismo norte-americano é muito mais do
que uma opção econômica, ou do que uma política formulada e assumida pelos governantes.
Para o filósofo (2008b, p.301), “o liberalismo americano é toda uma maneira de ser e de
pensar. É um tipo de relação entre governantes e governados, muito mais que uma técnica dos
governantes em relação aos governados”. Não se trata simplesmente de uma alternativa
política, ou de uma teoria econômica, mas de “[...] uma espécie de reivindicação global,
multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É também uma espécie de foco
utópico sempre reativado. É também um método de pensamento, uma grade de análise
econômica e sociológica” (FOUCAULT, 2008b, p.301).
O liberalismo, assim como o socialismo, também necessita de utopias, pois, em vez de
pensarmos no liberalismo como uma alternativa técnica de governo, urge que ele se torne um
estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação.

É precisamente por esse viés do modo de pensamento, do estilo de análise,


da grade de decifração histórica e sociológica, é por aí que gostaria de pôr a
nu certos aspectos do neoliberalismo americano, dado que não tenho a
menor vontade nem a possibilidade de estudá-lo em todas as suas dimensões
(FOUCAULT, 2008b, p. 302).

Nessa empreitada que estamos seguindo, para construirmos uma grade de análise
inteligível e decifrarmos as condições de emergência da Educação do Campo no Brasil,
seguiremos Foucault (2008b), tomando-lhe por empréstimo os elementos do neoliberalismo
norte-americano. Tais componentes lhe serviram, ao mesmo tempo, como método de análise e
um tipo de programação, pois serviram de fundamentos para a teoria do capital humano,
assim como um programa de análise da criminalidade e da delinquência. Dentre esses três
elementos analisados pelo autor, é a teoria do capital humano que interessará ao presente
estudo e que será o objeto do subitem a seguir.
72

2.5 A teoria do capital humano e o renascimento do homo oeconomicus

A teoria do capital humano surgiu na década de 1960, com a publicação de um artigo


suplementar à revista científica dos EUA Journal of Political Economy, por Teodore Willian
Schultz19 (1902-1998), dedicado ao investimento em seres humanos como fator de aumento
de produtividade econômica (SAUL, 2019). Desde então, um grupo de economistas
associados à Escola de Economia de Chicago, como Gary Becker (1930-2014), Jacob Mincer
(1922-2006), Sherwin Rosen (1938-2001), Michael Grossman (1942-), Milton Friedman
(1912-2006), Robert Emerson Lucas (1937-) e James Joseph Heckman (1944-), deram
continuidade às pesquisas sobre a teoria do capital humano, considerando-a como um dos
fatores necessários ao desenvolvimento econômico. Esses autores inseriram outras dimensões
e elementos à teoria do capital humano, como: o mercado de trabalho, a educação, a saúde, o
casamento; assim como questões relacionadas à macroeconomia, à sociedade e aos setores
próprios do mercado e, também, ao campo não mercadológico (SAUL, 2019).
De acordo com Foucault (2008b), a teoria do capital humano retrata dois processos
que, por um lado, possibilita a incursão num campo até então inexplorado pela economia
política clássica e, por outro, permite a investida da economia política nesse campo ainda
inexplorado, abrindo a possibilidade de reinterpretá-lo economicamente e inseri-lo no interior
das análises econômicas do neoliberalismo. É todo esse campo, que se manteve intangível às
análises da política econômica clássica, por ter sua própria natureza neutralizada e mantida
restrita exclusivamente à análise quantitativa do fator tempo, que será objeto da crítica
neoliberal.
Esse novo domínio de análises da política econômica diz respeito ao campo do
trabalho, que é realizada no âmbito do neoliberalismo americano, mas que tem outro ponto de
partida que não é exatamente do mercado. As análises neoliberais sobre o trabalho partem de
um ponto de vista que é o do próprio trabalhador, ou seja, realiza um estudo minucioso da
conduta econômica, que é praticada, aplicada, calculada, racionalizada, especificamente na
visão daquele que trabalha. Toda essa inversão da análise econômica transforma a posição
ocupada pelo trabalhador que de objeto se converte em sujeito, pois, para a economia clássica,
ele era considerado simplesmente como uma sua força de trabalho, algo a ser negociado no
mercado. De forma diferente, o neoliberalismo passa a considerar o trabalhador como um

19
Teodore W. Shultz foi professor do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, cuja teoria do
capital humano lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 1968.
73

sujeito ativo, que é capaz de produzir efeitos qualitativos na economia, ou seja, o trabalhador
é um sujeito estrategicamente útil para o desenvolvimento da economia (FOUCAULT,
2008b).
Numa perspectiva do próprio trabalhador, o salário deixa de ser simplesmente o preço
a ser pago, de maneira abstrata, pela venda de uma força de trabalho, para se transformar
numa renda adquirida por meio da realização de um trabalho. Para os neoliberais americanos,
renda é considerada um produto ou um rendimento de um capital e, de maneira inversa,
capital é tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra, poderá se transformar numa fonte de
renda futura. Pois bem, como o salário passa a ser considerado uma renda, isto é, um
faturamento sobre um determinado tipo de capital, doravante, será o próprio trabalho que
comportará esse capital, essa possibilidade de obtenção de lucros futuros (FOUCAULT,
2008b).
Do ponto de vista do trabalhador, é o seu próprio corpo que comporta esse capital, não
exatamente um corpo-máquina, mas algo que está em si mesmo, que pode ser localizado no
seu próprio corpo e que poderá transformar numa fonte de renda futura. O capital, que o
trabalhador possui, está contido nas suas próprias capacidades, habilidades e conhecimentos,
ou seja, são as competências que seu corpo possui, para executar essa ou aquela tarefa, que
são consideradas como um capital próprio que lhe é próprio, pois o trabalhador poderá
transformá-las numa renda futura.
Verifica-se que essa decomposição do trabalho em capital e renda possibilitou uma
inversão total na lógica com que a crítica econômica e sociológica efetuava suas análises
sobre o trabalho. Naquelas críticas, o trabalhador se via transformado num objeto de uso pelo
capitalismo, numa máquina por meio da qual se extraia as forças de trabalho e da qual se
separava (alienava) o próprio produto fabricado. Na visão crítica clássica, o trabalho é
considerado algo abstrato, tanto para o trabalhador como para o capitalista, que é o detentor
dos meios de produção. O processo produtivo em si não é um objeto concreto para o
capitalista, mesmo sendo ele o detentor dos meios de produção e tendo, sob a sua
coordenação, um conjunto de trabalhadores que vendem sua força de trabalho. O que se
apresenta como objeto concreto para o capitalista, só pode ser o produto final desse processo,
depois de passar por toda a transformação.
O trabalhador, por sua vez, embora seja ele o possuidor da força de trabalho, precisa
vendê-la por certo tempo e, em troca, receber uma determinada quantia em dinheiro, que será
o seu salário. Desse modo, a análise da crítica clássica admite que, apesar do salário se
constituir numa pequena parcela do valor final da mercadoria, produto esse que será vendido
74

no mercado, a maior parte do valor incorporado a esse bem é alienada do trabalhador,


transformando-se em lucro para o capitalista. Nessas condições, o salário passa a ser o único
objeto concreto, com o qual o trabalhador tem contato ao final do processo produtivo.
Na inversão, operada pela razão neoliberal norte-americana, com base na
decomposição do trabalho em capital e renda, o próprio trabalho se transforma em algo
concreto, pelo fato de coincidir com o corpo mesmo do trabalhador. Na razão neoliberal, não
é mais o trabalhador em si que é considerado uma máquina de trabalho, mas algo que lhe é
próprio, que somente ele possui e não pode se separar dele: suas competências, suas
habilidades e suas aptidões. A máquina produtiva é algo concreto que, desse ponto em diante,
transforma-se em propriedade do trabalhador, isto porque são as suas aptidões para o trabalho,
as competências e habilidades que o sujeito possui para executar determinada tarefa, que são
concebidas como seu capital individual. Um capital que o próprio trabalhador possui e que
tem o potencial de lhe gerar alguma renda, ou seja, são os elementos que estão sob o seu
domínio e podem ser transformados em lucro futuro.
Portanto, as competências, as habilidades e as aptidões são objetos inalienáveis do
trabalhador, pois se trata de um capital que não é como os demais, algo que outra pessoa
possa destituir do trabalhador, mas se constitui num instrumento, numa máquina que está a
serviço do próprio trabalhador. São essas aptidões, habilidades e competências que estão
ligadas individualmente ao trabalhador e que constituirão a sua máquina produtora de fluxos
de renda: são elas que constituem o capital humano. Assim sendo, a educação funciona como
um investimento no sentido de permitir uma acumulação de capital humano, o que permite ao
trabalhador não somente um aumento da sua produtividade, mas também maximizar de forma
crescente os seus rendimentos ao longo da vida (COSTA, 2009).
De acordo como Foucault (2008b), a renda é produzida por essa máquina individual e
se realiza na forma de fluxos, visto que as aptidões, as competências e as habilidades serão
remuneradas por salários variáveis ao longo da vida do trabalhador. Nessa variabilidade de
salários, há uma tendência do fluxo de renda ser menor quando essa máquina começa a ser
utilizada e o fluxo aumenta na medida em que as aptidões e competências são desenvolvidas
ao longo da vida do trabalhador. Da mesma maneira, haverá um decréscimo contínuo nesse
fluxo de renda, conforme vai ocorrendo a obsolescência dessa máquina ou o envelhecimento
gradativo do trabalhador. Posto que essa máquina se constitui no (e pelo) próprio corpo do
trabalhador, desta maneira, o seu envelhecimento biológico ocasiona naturalmente uma queda
produtiva nas aptidões, nas habilidades e nas competências da máquina que, em contrapartida,
receberá um fluxo gradativamente menor de salários.
75

Por esse motivo, quando a educação se insere no interior dos parâmetros da


governamentalidade neoliberal, verifica-se a produção de um discurso sobre a necessidade de
aprendizado permanente. O sujeito neoliberal convive com a incerteza e com uma
insuficiência educacional constante, que o incita a aprender continuamente ao longo de toda
sua vida, de forma a manter um nível ótimo de concorrência. De maneira semelhante, a
educação se apresenta como uma ferramenta necessária para reduzir os efeitos naturais da
degradação do capital humano, de maneira que o sujeito é impelido a efetuar frequentes
reconversões desse capital, aprendendo novas técnicas e/ou novos procedimentos, de maneira
a se manter continuamente atualizado e competitivo no mercado.
Esse conjunto complexo, que se forma pela conexão da máquina com os fluxos de
salários, aparece num sentido inverso e, até mesmo oposto, à concepção clássica de economia
e da análise crítica da sociologia, pois tais teorias analisam o trabalhador como sendo aquele
que detém a força de trabalho, uma força que é vendida ao detentor dos meios de produção,
em troca de um salário. No interior da governamentalidade neoliberal, é o próprio trabalhador
quem deve negociar suas aptidões, habilidades e competências no mercado, recebendo para
isso, certa renda que é o seu salário, de modo que é o próprio trabalhador que emerge, nessa
relação, como uma empresa para si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016).
A base para a análise, a racionalização e a programação, tanto da sociedade como da
economia no neoliberalismo, não será tanto os indivíduos, tampouco os processos ou os
mecanismos naturais do mercado, mas as unidades-empresas, que se formam com a
concepção do capital humano. Nesse ponto Foucault (2008b) afirma que o neoliberalismo
aparece como um retorno modificado do homo oeconomicus, não na sua concepção original,
enquanto um parceiro da troca, mas como um empresário de si mesmo, um novo homo
oeconomicus que é seu próprio capital, que é uma fonte de renda para si mesmo, tal qual uma
empresa.
Essa decomposição do trabalho, em capital e renda, permite reintroduzir o trabalho no
campo da análise econômica, na medida em que o salário, enquanto remuneração, na
qualidade de renda atribuída a um determinado capital humano, é uma conquista da
competência-máquina, que não pode se dissociar de seu portador, que é o próprio indivíduo
humano. Mas essa reintrodução do trabalho no campo da análise econômica exige um estudo
minucioso da maneira como esse capital humano se constitui e sobre os modos como os
indivíduos podem acumulá-lo e desenvolvê-lo. Isso para entendermos, não somente os modos
como são colocados os novos problemas de análise da política econômica pelo
76

neoliberalismo, mas as dimensões de uso da teoria do capital humano, no interior dessa nova
razão governamental.
Quanto aos elementos que formam o capital humano, Foucault (2008b) acrescenta que
os fundadores dessa teoria dividem-no em duas categorias: uma que diz respeito aos
elementos inatos e outra que concerne aos elementos adquiridos. Os elementos considerados
inatos são deixados de lado pelas análises foucaultianas, que se interessam pelo estudo dos
elementos adquiridos, pois são sobre esses elementos que se colocam os problemas e que são
feitas novas análises neoliberais. É sobre os elementos adquiridos do capital humano que se
assentam as análises neoliberais sobre os problemas educacionais, identificando as
necessidades de investimento público e individual na formação, no acúmulo e numa possível
reconversão ao longo da vida de cada indivíduo.
Como lembra Dardot e Laval (2016, p. 150) “se o mercado é um processo de
aprendizado, se o fato de aprender é um fator fundamental do processo subjetivo de mercado,
o trabalho de educação realizado por economistas pode e deve contribuir para a aceleração
dessa autoformação do sujeito”. Sobre esses elementos adquiridos do capital humano que se
assenta, então, a chave para a decifração da economia de mercado, pois é sobre eles que age o
princípio de inteligibilidade da governamentalidade, que busca programar e definir
estrategicamente, tanto as atividades como os comportamentos dos indivíduos. O capital
humano, que cada sujeito possui e desenvolve por meio do processo educacional, constitui-se
na sua ferramenta inicial, que deve ser utilizada para empreender e inovar, mas que também
precisa ser constantemente reconfigurada e/ou reconvertida, de modo a estar sempre adaptada
às flutuações e às demandas do mercado (DARDOT; LAVAL, 2016).
O homo oeconomicus neoliberal, esse sujeito empresarial que é construído no interior
da nova razão de governo, é alguém que possui a liberdade para escolher seus próprios
objetivos com base nas informações que tem sobre o mercado. Um dos componentes
fundamentais do mercado é a liberdade individual, que permite a esse novo sujeito efetuar
suas próprias descobertas empresariais e decidir livremente onde irá investir seu próprio
capital. Dessa maneira, o sujeito que é tomado como referência pela governamentalidade, é o
homem-empresa; é aquele que, para competir com as outras empresas (outros homem-
empresa), precisa aprender a descobrir as oportunidades que o mercado tem a lhe oferecer. É
esse indivíduo-micro-empresa que necessita desenvolver um elevado espírito competitivo, de
empreendedorismo e de inovação, para que possa assumir os riscos constantes de
investimento do seu próprio capital, de maneira a obter o maior lucro possível em cada
transação (DARDOT; LAVAL, 2016).
77

Para tanto, esse novo homo oeconomicus deve ser um sujeito ativo, criativo, um
competidor, um combatente que aprecia a luta e cujo sucesso econômico se constitui como o
maior símbolo de sua vitória enquanto criador. Alguém que, para sobreviver nesse universo
concorrencial, caracterizado por empresas individuais e altamente competitivas, precisa
desenvolver toda uma ciência da escolha correta, que é construída a partir da própria prática
empresarial, no interior desse combate. Um sujeito de desejo, que precisa ser livre para
competir e empreender, isto é, alguém que é livre para criar e para desenvolver suas próprias
forças competitivas, de modo que seu desejo não seja bloqueado, tanto por julgamentos
morais como por impeditivos políticos.
Com a universalização do modelo de sociedade empresarial, no interior dessa nova
razão de governo, constrói-se discursivamente o modelo de sujeito-empresa, um espaço vazio
a ser ocupado por todo e qualquer indivíduo, um espaço no qual ocorre o assujeitamento do
indivíduo ao jogo de poder/saber do mercado. Um espaço no qual o poder se encontra diluído
e funcionando de uma maneira sutil e quase imperceptível, pois o governo deixa de ser uma
força que age externa e coercitivamente sobre o indivíduo. Com a emergência dessa nova
razão de governo, é o próprio indivíduo que incorpora as forças que direcionam as condutas,
isto é, o próprio indivíduo que exerce sobre si mesmo o governo. Dessa maneira, a
governamentalidade se configura como uma espécie de poder que perpassa todo o espectro
social e possibilita que o poder se exerça em sua microfísica (FOUCAULT, 2014b).
É nesse ponto que se pode verificar os motivos pelos quais Michel Foucault necessitou
ampliar a sua concepção inicial sobre as relações de poder, passando a tratá-las no âmbito da
governamentalidade. Com essa nova noção, tornou-se possível um aprofundamento em seus
estudos sobre os saberes formadores dos sujeitos que cada sociedade necessita para bem
funcionar, assim como da relação circular que se estabelece entre o poder e o saber. Com a
noção de governamentalidade, o autor abre outro campo de análise sobre as relações de poder,
saber e de formação do sujeito, que é o terreno da ética, das relações do sujeito consigo
mesmo.
Seria essa a razão que levou Foucault (2008a) a construir um neologismo para essa
arte de governo que atravessa todo o corpo social e se insere no mais íntimo de cada
indivíduo, uma vez que a governamentalidade não se refere tão somente ao estudo das
técnicas de governamento da população, tampouco a uma teoria econômica, mas de uma
espécie de mentalidade generalizada, que se amplia para além da esfera pública de ação de um
governo. As análises empreendidas sobre a racionalidade neoliberal lhe permitiram verificar
que, essa nova razão governamental transcende as relações de governo, que se estabelecem
78

entre a economia política do Estado e a população. Trata-se de uma razão governamental que,
assim como as demais, atinge o mais íntimo de cada indivíduo, mas que difere ao exigir uma
nova relação de si para consigo mesmo, um governo de si. Concerne ao desenvolvimento de
uma mentalidade de concorrência empresarial, que atinge o mais profundo âmbito privado das
relações intersubjetivas e, principalmente, das relações do indivíduo consigo mesmo.
É desse modo que o estudo da governamentalidade interessa a presente pesquisa,
como ferramenta que nos possibilita a ampliação das análises acerca das condições de
possibilidade de emergência da Educação do Campo no Brasil, para além do campo jurídico,
no qual se apoia as lutas sociais pelo direito à educação. Nossa proposta de análise adentra o
campo da política por outra via, que é a de uma disputa pelo direito, sim, mas não como uma
batalha que visa garantir o direito constitucional de acesso à educação formal, mas de uma
guerra pelo direito à posse do discurso verdadeiro, de maneira a garantir a produção de
subjetividades particulares. É justamente sobre as condições de emergência da Educação do
Campo no Brasil, que vamos tratar no próximo capítulo.
79

III - O CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO


NO BRASIL

[...] o que permite tornar inteligível o real é mostrar


simplesmente que ele foi possível.
Michel Foucault20

O conceito de Educação do Campo emergiu como discurso político-educacional a


partir do relatório da I Conferência Nacional: Por uma Educação do Campo, realizada no ano
de 1998. Esse conceito foi construído a partir dos fundamentos teórico-filosóficos do
materialismo histórico, que tem em Karl Marx (1808 – 1883) o seu principal representante. A
filosofia de Marx, por sua vez, buscou seu apoio teórico nas concepções dialéticas da história,
propostas por Hegel (1770 – 1831), o que efetuou uma espécie de inversão na tese do
idealismo transcendental de seu mestre. Por meio dessa inversão, operada pelo materialismo
histórico de Marx, a realidade dos acontecimentos históricos deixou de ser vista como algo
transcendental ao ser humano, passando a ser analisada a partir da sua imanência histórica,
com determinações propriamente materiais. Assim, a realidade humana passou a ser
construída historicamente, com base em fatores preponderantemente de ordem econômica, os
quais se relacionam às técnicas e às relações políticas, que o homem estabelecia com o
trabalho e os meios de produção, na sua luta pela sobrevivência (ABBAGNANO, 2007).
Sobre essa infraestrutura econômica, que Marx acreditava sustentar as relações
históricas, seria construída toda uma superestrutura institucional e política, capaz de manter o
funcionamento daquela infraestrutura. Do ponto de vista antropológico, o materialismo
histórico sustenta que a personalidade humana se constitui em meio às relações de trabalho,
das quais o homem participa para prover as suas próprias necessidades materiais, ou seja, a
consciência do homem se constrói a partir de suas relações com a produção material de sua
própria sobrevivência (ABBAGNANO, 2007).
Nessa perspectiva, as relações de trabalho e de produção se estruturam a partir de uma
dicotomia, formada entre uma classe de proprietários dos meios de produção e outra que se
encontra destituída de posses, que possui apenas a própria força física que é negociada e
vendida aos primeiros. A partir dessa relação antagônica e dialética, formada entre capital e

20
Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979), p. 47.
80

trabalho, entre proprietários e proletários 21, é que se estabelece toda uma relação de troca que,
nessa perspectiva, se expressa pelo estabelecimento de uma rede de poder, cuja principal
característica está relacionada com a separação entre a força de trabalho e o objeto da
produção (MARX, 1982).
O poder, na perspectiva do materialismo histórico, transforma-se num objeto a ser
possuído, cujas características se expressam na sua capacidade coercitiva, opressiva e
repressiva, uma vez que a sua manutenção necessita da concomitante construção de
dispositivos de controle e de submissão da classe operária. Assim, numa perspectiva
repressiva, saber e poder passam a estabelecer uma relação de oposição, competição e de
enfrentamento. É nesse sentido que a ideologia surge como ferramenta política de dominação,
como uma espécie de véu que encobre a realidade das coisas e que se admite como uma
criação discursiva da classe burguesa, para fazer com seus interesses particulares aparentem
características de veracidade, de valor coletivo e/ou universal.
Para o materialismo histórico, a ideologia se constitui como a mais eficiente
ferramenta de dominação entre as classes, pois permite que o proletariado se mantenha numa
condição de subordinação aos proprietários dos meios de produção e separado dos produtos
fabricados pela sua força vital; isto é: o trabalhador é alienado de sua própria produção. Desse
modo, a tomada de consciência do processo de dominação e de alienação, seria a condição
necessária para se efetuar uma ruptura no modelo capitalista de produção material, que se
reproduz no interior das relações sociais.
Ainda segundo o pensamento dialético de Marx, os movimentos de resistência surgem
justamente por conta dessa tomada de consciência da classe trabalhadora (sua desalienação),
sobre a condição de expropriado do fruto de sua própria produção. Ainda, pelo fato de a
classe trabalhadora deter o saber necessário à produção, por possuir, mesmo que
temporariamente, os meios de produção, e ser ainda em maior número do que os seus
proprietários, a sua organização coletiva se constituiria na transição necessária para a
realização de um processo revolucionário, por meio do qual o proletariado tomaria o poder.
Sendo assim, o embasamento para a construção da concepção de Educação do Campo
por meio dos conceitos do materialismo histórico, caracterizou um movimento de resistência
político, por meio do qual se questionou os modos pelos quais a educação rural foi pensada e

21
Nessa concepção teórica, o proletário se caracteriza como sendo o cidadão destituído de posses materiais,
tendo como única posse a sua força de trabalho, que poderia ser vendida e convertida em salário. No contexto do
Império Romano, o proletário era o cidadão pobre, isento do pagamento de impostos, cuja única utilidade que
tinha para a cidade era a geração de filhos. Por isso a expressão proletário (prole + tário), aquele cidadão cuja
única propriedade que possui é o conjunto de pessoas que dependem dele, ou seja, sua prole.
81

produzida historicamente no Brasil. Essa concepção de educação se organizou a partir de


relações lógicas, estabelecidas entre os elementos estruturais que organizavam a sociedades
capitalistas naquela época, e de modos, como a materialidade histórica, que foram se
constituindo ao longo do tempo. Por meio da base teórica do materialismo histórico, buscou-
se evidenciar as contradições internas ao modelo capitalista de produção que, enquanto modo
de organização das relações econômicas, acabava por se reproduzir historicamente no modelo
atual de organização da sociedade.
Feita essa breve introdução, cabe destacar aqui que, no presente estudo, não
seguiremos pelo caminho teórico/metodológico do materialismo histórico, tampouco do
estruturalismo, embora sejam eles caros às bases que sustentam as teorias e as práticas da
Educação do Campo. Particularmente nesse capítulo, que servirá de base teórica,
metodológica e conceitual para as análises dos dados da pesquisa de campo, percorreremos
outro caminho. A partir desse ponto, buscamos investigar as condições discursivas e não
discursivas, que possibilitaram a emergência do nosso objeto geral de pesquisa, que
caracteriza a Educação do Campo no Brasil.
Embora a proposta foucaultiana de análise histórica não negue a existência das forças
estruturantes em uma sociedade como a nossa, assim como o materialismo histórico, percebe
que, dentre essas forças, fulguram resistências. Entretanto, os estudos foucaultianos se
afastam da hipótese repressiva do poder, por não considerar que essas relações de forças
formem, necessariamente, unidades dialéticas, e como tais, que estariam necessariamente
numa relação de antagonismo e contradição, umas em relação às outras. Para Foucault, essas
forças são descontínuas e, por esse mesmo motivo, é a partir dessas descontinuidades que se
constitui o próprio devir histórico, ou seja, o germe por meio do qual, tanto o poder como a
resistência operam agonisticamente22 (DREYFUS; RABINOW, 2013).
No pensamento foucaultiano, não há a pressuposição da existência de uma totalidade
monolítica, que se constituiria a partir da dialética das forças que estão em oposição umas em
relação às outras, cuja resultante é que instituiria a própria realidade histórica. As análises
foucaultianas asseguram que as formas de dominação não são monolíticas, justamente pelo
fato delas serem múltiplas, ou seja, por elas serem essencialmente políticas, é que existem os
tensionamentos, as resistências e as desarticulações que produzem as fissuras internas nos

22
De acordo com Mouffe (2012, p. 114-115), “considerado do ponto de vista do ‘pluralismo agonístico’, o
objetivo da política democrática é construir de tal forma o ele que deixe de ser percebido como um inimigo a
destruir e se conceba como um ‘adversário’, quer dizer, como alguém cujas ideias combatemos, mas cujo direito
de defender essas ideias não duvidamos. Sendo assim, o antagonismo se caracteriza como uma luta entre
inimigos, enquanto o agonismo se define por uma luta entre adversários” (tradução nossa).
82

dispositivos de poder. Por serem, essas forças, descontínuas e dispersas é que se abrem
brechas, por onde emerge a novidade e torna possível romper com a continuidade,
produzindo-se assim as singularidades históricas (FOUCAULT, 2017a).
Pelo fato de as formas de dominação não serem monolíticas, mas políticas, o poder
também não pode estar em contraposição ao saber, mas ao contrário, saber e poder
desempenham uma relação de dependência e de circularidade. Em sua relação política, o
poder produz saber o que, por sua vez, torna possível a construção de mecanismos por meio
dos quais o próprio poder circula. Ou seja, como já mencionado no Capítulo II deste estudo,
para Foucault, saber e poder formam uma relação de mútua imbricação e interdependência.
No interior dessa relação agonística de forças, não há como o poder ser simplesmente algo
opressor, pois ele não se constitui numa coisa, num objeto que alguém possui e, por possuir,
domina outros. O poder é algo que circula, que se expressa em uma objetividade produtora e
não repressora, incitando, suscitando e produzindo saberes e subjetividades (DREYFUS;
RABINOW, 2013)
Sendo assim, pelo fato de nos utilizarmos de algumas das ferramentas foucaultianas de
análise, não interessará estabelecer as causas que levaram ao estabelecimento da Educação do
Campo como política pública nacional. O que importa para nossa pesquisa, nesse primeiro
momento é identificar as condições que possibilitaram a sua emergência enquanto discurso
político e, como tal, investido de relações de saber e poder, necessárias à produção de
determinadas subjetividades. Em outros termos, o que nos interessa inicialmente não é a busca
por uma origem da Educação do Campo no Brasil, mas estudar a sua proveniência, assim
como Nietzsche entende em sua genealogia e como nos indica Marton (2001, p. 203-204):

A proveniência (Herkunft) não funda, não aponta para uma continuidade,


não é uma categoria de semelhança. Perguntar-se pela proveniência de um
indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas
características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o
passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde
fundá-lo, mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e
acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina
conforme a si mesmo.

Sendo assim, buscaremos, no presente capítulo, analisar os regimes de verdade, sobre


os quais emergiu toda uma rede de poder/saber, que oferecem a sustentação necessária para a
inclusão da Educação do Campo no interior de uma nova razão de governo. Essa será a
direção que tomaremos no presente capítulo, ou seja, estudar como a proposta educacional,
que emergiu como uma tentativa de resistência ao modelo de política educacional vigente, foi
83

pouco a pouco submetida aos ditames de uma economia política governamentalizada. Para
tanto, iniciamos pela abordagem da proveniência da Educação do Campo no Brasil, isto é,
pela multiplicidade dos acontecimentos do contexto histórico, político e econômico, que
marcaram as décadas de 1980 e 1990 e que possibilitaram a emergência desse discurso.

3.1 A proveniência da Educação do Campo no Brasil

Numa perspectiva histórica tradicional ficaríamos tentados em refazer um caminho


horizontal de retorno às origens, por meio do qual se chegaria ao início de toda a história do
nosso objeto de estudo, ao nascimento de tudo, ao momento exato em que surgiu a Educação
do Campo no Brasil. Como já adiantamos no Capítulo II, não é a suposta linearidade da
história que nos interessa, mas a sua verticalidade, ou seja, as rupturas marcadas no espaço e
no tempo, por meio das quais surgem determinados objetos e se produzem os efeitos de
superfície, efeitos esses que constituem aquilo que denominamos por realidade.
Então, considerar que, em vez de uma origem, de um ponto inicial no qual poderíamos
marcar o nascimento da Educação do Campo, vamos considerar aqui a sua proveniência, ou
seja, tentaremos traçar um percurso vertical, temporalmente demarcado entre as décadas de
1980 e 1990, com o intuito de salientar uma heterogeneidade de acontecimentos históricos,
que foram emergindo de maneira descontínua e concomitante nesse período, no interior dos
quais se foram produzindo as condições necessárias para o surgimento desse nosso objeto
geral de pesquisa. De acordo com Veiga-Neto (2011), a proveniência pode ser entendida
como uma origem, mas num sentido fraco do termo, como um ponto recuado no tempo em
que se cria uma identidade e se estabelece uma coerência.
Desse modo, estudiosos da Educação do Campo como Arroyo e Fernandes (1999);
Silva (2004); Nascimento (2009); Arroyo, Caldart e Molina (2011); Caldart et al. (2012);
Ghedin (2012); Munarim (2010; 2013); e Molina e Rocha (2014) confirmam que tal educação
se configura como um esforço dialético de resistência (antítese), por meio do qual se buscou a
superação (síntese) da proposta educacional até então vigente e oferecida pelo Estado à
população rural brasileira (tese). Esses mesmos teóricos afirmam que, as políticas públicas de
educação rural tinham em seu núcleo pragmático o fundamento, predominante, de preparação
técnica do indivíduo para o mercado de trabalho, sobretudo para o trabalho agrícola, fato esse
84

que pode ser comprovado sem maiores dificuldades, por meio da análise das políticas
públicas das décadas de 1960 e 1970.
Os mesmos autores acima mencionados são unânimes em defender que o surgimento
da Educação do Campo ocorreu como resultado de um longo processo histórico de luta e
resistência popular, iniciada ainda na década de 1930, face à insuficiência das políticas
públicas, bem como à insatisfação quanto aos projetos de educação rural, que se
desenvolveram após esse período e que acabaram por subordinar a formação humana aos
interesses econômicos capitalistas. Do mesmo modo, Molina, Montenegro e Oliveira (2010),
assim como Arroyo, Caldart e Molina (2011), como também Pires (2012) argumentam que,
por não haver um projeto político e pedagógico específico para a educação da população
rural, o que se procedia na política vigente era uma espécie de transposição de modelo
educacional urbano, para o meio rural.
A primeira questão que gostaríamos de levantar é que somente no final da década de
1990, e não em outra época, que o discurso sobre a Educação do Campo surgiu no cenário
político educacional brasileiro. Inicialmente, gostaríamos de considerar que essa irrupção
discursiva, por meio da qual se cria o objeto Educação do Campo, de maneira alguma ocorreu
aleatoriamente, acidental ou como algo que deveria, necessariamente, acontecer exatamente
nesse momento histórico. Será necessário fazermos um breve exame crítico das condições
políticas e econômicas do período, para tentarmos identificar outros acontecimentos
importantes que possibilitaram a abertura das fissuras ou das brechas acima mencionadas, em
meio às quais foi possível o surgimento, inicialmente de um discurso sobre o objeto em
questão, e, posteriormente, possibilitou a sua emergência enquanto política pública e prática
educacional.
Para tanto, antes de avançarmos, faz-se necessário darmos um passo atrás, para
considerarmos o momento político vivido em meados da década de 1980, na qual o país
passou por um processo de mudança ou ruptura na forma de governo e no realinhamento
econômico. Após um período de aproximadamente 20 anos de governos militares, vivenciou-
se politicamente a esperança pelo estabelecimento definitivo de um regime democrático em
nosso país, por meio do qual o próprio povo pudesse determinar os rumos que a nação
tomaria a partir de então. Podemos dizer que a esperança democrática da década de 1980
nasceu no interior de uma razão de Estado, cuja principal característica estaria calcada na sua
independência jurídica e na manutenção de um princípio de legitimidade (FOUCAULT
(2008b).
85

Por não dispormos de um termo mais apropriado no momento, denominamos, de uma


maneira muito simplista e provisória, esse movimento político que vivenciamos na década de
1980, de abertura política ou de processo de redemocratização do país. Os anos de 1983 e
1984 ficaram marcados pelas intensas manifestações populares organizadas em todo o país e
que passaram a ser conhecidas como Movimento Diretas Já, por meio da qual uma
considerável parcela da população foi às ruas, para exigir a realização de eleições diretas para
Presidente da República, assim como o concomitante restabelecimento do regime democrático
(BERTONCELO, 2007).
O sonho e a euforia por uma possível redemocratização da e na política brasileira,
associado de um abrandamento dos dispositivos de repressão, que permitiram maior liberdade
de associação e de sindicalização, possibilitaram o ressurgimento de movimentos sociais e
sindicais que se encontravam até então silenciados pelo forte aparato jurídico e policial do
regime político anterior. Dentre o grupo de movimentos sociais que puderam se organizar de
maneira politicamente mais efetiva, a partir do início desse processo de abertura política,
figurou o MST, que ganhou força política e arregimentou milhares simpatizantes em torno da
sua causa principal que se constituía na redistribuição de terras pela reforma agrária.
Juntaram-se ao MST, diversos outros movimentos sindicais como o Movimento dos
Atingidos pelas Barragens (MAB), o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), o
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), os sindicatos de trabalhadores rurais e as
federações estaduais desses sindicados vinculados à Confederação dos Trabalhadores da
Agricultura (CONTAG) que, em conjunto, passaram a se mobilizar em torno de um projeto
educacional vinculado aos ideais revolucionários de organização popular para o país e voltado
para a superação do modelo econômico capitalista (MUNARIM, 2008b).
Destacamos inicialmente esses dois eventos históricos, ou seja, o movimento pela
redemocratização do país e o ressurgimento dos movimentos sociais e sindicais, por
identificarmos nesses acontecimentos a primeira ruptura, que possibilitou o ressurgimento de
um discurso político, considerado como de resistência. Trata-se de um discurso que teve
influência, também, na elaboração do texto constitucional de 1988, pois como nos lembram
Fachin e Pagliarini (2018), durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, por meio desses
movimentos, foram sugeridas 61.020 propostas de textos (ou quesitos) e apresentadas 122
emendas populares, sendo que algumas delas possuíam mais de um milhão de assinaturas.
A participação dos movimentos sociais e sindicais, na elaboração da Constituição de
1988, assegurou a incorporação de direitos e garantias individuais e sociais até então inéditas
em um texto constitucional brasileiro. Foram esses direitos e garantias que passaram a
86

salvaguardar legalmente o acesso da população a determinados bens materiais e imateriais,


que, até então, a maioria dos brasileiros estava privada.
Com base na análise do pensamento dialético marxista, constante nas críticas de
Arroyo e Fernandes (1999); Silva (2004); Vendramini (2007); Nascimento (2009); Arroyo,
Caldart e Molina (2011); Caldart et al. (2012); Ghedin (2012); Munarim (2010; 2013); e
Molina e Rocha (2014) e por intermédio do MST que se conquistaram as vitórias no campo
político, a partir da transição, em nosso país, do regime militar para um estado democrático.
De acordo com Vendramini (2007), talvez a conquista mais importante considerada pelo
movimento tenha se materializado na distribuição de terras, por meio do processo de reforma
agrária às famílias de trabalhadores rurais que, por motivos diversos, haviam perdido o direito
a posse de seu principal meio de produção: o agropecuário.
No âmbito da educação, os movimentos sociais tiveram uma participação ativa,
criando o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), lançado oficialmente em
Brasília no dia 9 de abril de 1987, juntamente com o Manifesto em Defesa da Escola Pública
e Gratuita. De acordo com Minto (2013), o FNDEP teve importante participação na
elaboração da proposta de texto constitucional, que viria ampliar os direitos democráticos à
educação pública e gratuita, sendo que, posteriormente, também participou de forma ativa na
elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
Sendo assim, dentre os bens imateriais assegurados como direito humano e social pela
Constituição de 1988, foi incluído o acesso à educação pública e gratuita, na sua forma
escolarizada. A Carta Constitucional de 1988 deixou de considerar a educação como simples
direito individual, cuja responsabilidade deveria ser compartilhada entre o Estado, as famílias
e as empresas, como ajuizavam os textos constitucionais até 1967, passando a constituir um
dever do Estado e tomada, ainda, como direito social a ser garantido de forma gratuita a todos
os brasileiros. Foi com base nessa materialidade discursiva, oferecida pela Lei máxima de
nosso país, que os movimentos sociais do campo se apoiaram para exigir, como seu direito
constitucional, uma educação pública, gratuita e de qualidade, de maneira a atender as
particularidades da população habitante da zona rural.
Pires (2012) lembra que, desde a criação da Educação Rural como política pública,
ainda na Constituição de 1934, esta esteve restrita apenas ao ensino fundamental e técnico,
enquanto estratégia política que visava tanto o combate ao analfabetismo, como a contenção
do fluxo migratório interno, que se acentuou nas décadas seguintes, com o crescente êxodo
rural motivado pelo processo de industrialização ocorrido no país. Entretanto, somente no
final da década de 1990 que começou a se materializar efetivamente os projetos, que
87

garantiriam a ampliação da oferta educacional, com propostas de programas que teriam a


participação dos habitantes da área rural, representados pelos dirigentes dos movimentos
sociais e sindicais do campo (ARROYO, 2011).
A promulgação da LDB, Lei nº 9.394/96, quase uma década após a entrada em vigor
da Constituição de 1988, ratificou os interesses sociais sobre a ampliação de direitos à
educação a todos os brasileiros. A LDB ofereceu as ferramentas jurídicas necessárias para a
reivindicação das garantias objetivas de acesso à escola, por parte daquelas parcelas da
população que, antes de Carta Magna de 1988 e da promulgação dessa lei educacional,
mantiveram-se à margem das políticas educacionais brasileiras, como era o caso da população
rural (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011).
Durante a 31ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa
em Educação (ANPEd), realizada em Caxambu, MG, no período de 12 a 22 de outubro de
2008, o Grupo de Trabalho de número três, tratou dos Movimentos Sociais e Educação.
Munarim (2008b) escreveu sobre o sucesso das experiências educacionais que vinham sendo
desenvolvidas no âmbito do MST, o que lhes rendeu, ainda no ano de 1995, o prêmio de
Educação e Participação, do Itaú e UNICEF, por uma Escola de Qualidade no Meio Rural.
Nesse mesmo evento, esse autor afirma que o Movimento de Educação do Campo no Brasil
nasceu no contexto do I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária
(I ENERA), como um movimento sócio-político e de renovação pedagógica.
O I ENERA foi realizado na Universidade de Brasília (UNB), no mês de julho de 1997
e, de acordo com Munarim (2008b), foi a partir desse evento que se lançou as bases para o
reconhecimento das necessidades camponesas, as quais levariam ao convencimento do poder
público que tais contingências iriam muito além de uma mera oferta de educação técnica,
visando uma preparação individual como mão de obra para o trabalho agrícola. O fator
determinante, para que o Movimento Nacional de Educação do Campo ganhasse força, foi o
engajamento nesse empreendimento político-social, de instituições de ensino superior, de
organizações religiosas e de organismos internacionais, tais como: a Universidade de Brasília
(UNB), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF) e a Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO).
Para os mentores do Movimento, o acesso à educação de qualidade se apresentava
como a principal ferramenta por meio da qual se elevaria o nível intelectual, cultural e de
conhecimento tecnológico da população camponesa, como forma de superar a pobreza e
diminuir as desigualdades sociais e econômicas. Para Arroyo, Caldart e Molina (2011), tais
instituições se uniram em torno da causa educacional, exigindo o cumprimento da lei e
88

reivindicando uma educação de base para toda a população; mas que, para os povos
politicamente marginalizados, fosse diferenciada e que correspondesse aos seus anseios e
necessidades objetivas. Uma educação que deveria ser pensada a partir das reais necessidades
da população que habita o campo e que, sobretudo, atendesse a suas especificidades, ou seja,
uma educação especificamente pensada e destinada aos sujeitos residentes nos espaços
legalmente demarcados como rurais.
Essa foi a principal justificativa, encontrada pelo Movimento, para o engajamento
nessa nova frente de batalha política, que se configurava na construção de um modelo
educacional que visava atender às demandas específicas de sua população. Para tanto,
acreditava-se que esse novo modelo educacional precisava ser gestado no seu local próprio,
ou seja, devia ser pensado pelo próprio povo do campo, de forma a se destinar,
exclusivamente, ao povo que habita e vive no e do campo (CALDART, 2011a).
Tratou-se de elaborar uma proposta educacional que se declarava inovadora e contra-
hegemônica, por meio da qual se pretendia oferecer aos habitantes do campo muito mais do
que a sua mera instrumentalização, para melhor explorar economicamente os recursos
naturais, mas construir um espaço de vida digna, na qual se pudesse pensar numa
transformação geral da sociedade. O discurso sobre a construção e implementação dessa
proposta, visava não somente desenvolver habilidades e saberes que propiciassem a utilização
consciente dos recursos naturais, objetivando o próprio bem-estar desse homem que vivia no
campo e do campo, mas, sobretudo, a politização do sujeito camponês, a fim de transformar a
sociedade a partir da escola. Sendo assim, seus idealizadores rejeitaram que sua proposta
simplesmente fosse enquadrada entre os preceitos legais vigentes, que serviam como
diretrizes para a educação rural (CALDART et al., 2012; GHEDIN, 2012).
De acordo com esses mesmos autores, a educação rural, que até então era oferecida
aos moradores do campo, constituía-se numa política educacional que desconsiderava a
história e a cultura de seus sujeitos, pois assegurava apenas o desenvolvimento de práticas
educativas homogeneizantes e adaptadas. Tais práticas se baseavam num modelo único e
geral de educação, gestado inicialmente para atender aos interesses e demandas capitalistas de
uma população estritamente urbana. A partir desse modelo educacional, considerado
urbanocêntrico, eram simplesmente instituídas pequenas adaptações, de modo que a
possibilitar a repetição da educação urbana, no contexto rural. Esse modo de educar, de
acordo com os seus opositores, deixava de considerar a história de vida e a enorme
diversidade de sujeitos e de culturas existentes no meio rural, como, posteriormente seria
incluída na categoria campo, os povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, dentre outros.
89

Em vista de que o modelo educacional então vigente não atendia à diversidade e às


especificidades da população do campo, uma das primeiras ações desses movimentos sociais
foi propor uma alternativa terminológica para a expressão “rural”. Tratava-se de rejeitar
completamente a expressão “Educação Rural”, pois acreditavam que o vocábulo “rural”
encobria um duplo e grotesco erro, tanto conceitual como ideológico. O erro conceitual
adviria do fato que, teoricamente, o termo “rural” se tratava de um adjetivo e não de um
substantivo, algo que pudesse designar um espaço territorial concreto, específico, determinado
e objetivo (SANTOS, 2014; VEIGA, 2003; ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011).
Embasados no materialismo histórico, esses autores consideram que os objetos e seres
humanos se constituem por meio do trabalho, da práxis23 que se realiza de maneira relacional
e intersubjetiva, no interior de um espaço geográfico concreto que, no caso em questão, tratar-
se-ia, conceitual e terminologicamente, do espaço denominado como campo e não como
rural. Um segundo equívoco, em se considerar uma área como rural, estava no fato de se
acreditar que esse termo estaria atravessado por um viés político e ideológico, por meio do
qual se esconderia uma verdade importante. Verdade escondida no interior da ideologia rural,
de que a educação desenvolvida no interior desse espaço servia unicamente como suporte para
um modelo de sociedade segregacionista, vigente hegemonicamente no Brasil desde a sua
fundação (SANTOS, 2014; VEIGA, 2003; ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011).
De acordo com esses mesmos autores, nos moldes como a Educação Rural era
oferecida, prestava-se unicamente como um instrumento de aprimoramento econômico, por
meio do desenvolvimento de saberes técnicos, estimuladores do desenvolvimento
agroindustrial brasileiro e para a manutenção do status quo24. Desse modo, tomando o suporte
teórico do materialismo histórico de Karl Marx (1818-1883) e apoiando-se didático-
pedagogicamente nas ideias da Pedagogia da Libertação de Paulo Freire (1921-1997), foi
elaborada uma nova proposta educacional, que passou a se denominar Educação do Campo.
Nesse subitem, buscamos realizar uma aproximação, de forma muito panorâmica, de
dois elementos que consideramos como principais e que puderam caracterizar um rompimento
com a continuidade histórica, por meio do qual emergiram condições de possibilidade para o
surgimento da Educação do Campo no País, elementos esses que demarcam a sua
proveniência. Para essa primeira descontinuidade histórica, denominamos de abertura

23
A praxis na “[...] terminologia marxista designa o conjunto de relações de produção e trabalho, que constituem
a estrutura social, e a ação transformadora que a revolução deve exercer sobre tais relações” (ABBAGNANO,
2007).
24
Essa é uma expressão latina que designa o estado atual em que as coisas se encontram e, dessa maneira, a
manutenção do status quo significa uma intenção de não se alterar o modo atual como está organizada a política,
a economia e a sociedade como um toro.
90

política. Como segunda ruptura, consideramos o ressurgimento dos movimentos sociais e


sindicais no país, não como consequência da primeira, mas como uma condição de
possibilidade política. No próximo subitem trataremos de aprofundar um pouco mais a análise
acerca da interação de forças, que possibilitaram a construção discursiva do nosso objeto de
interesse. Sendo assim, a partir de outros elementos e eventos de ordem política, social,
econômica e técnica, estudaremos um pouco mais sobre o solo em que emergiu a Educação
do Campo no Brasil.

3.2 O solo de emergência da Educação do Campo no Brasil

De acordo com Foucault (2015a), tomar o discurso como acontecimento enunciativo é


reconhecê-lo como algo que não é neutro, nem independente, tampouco pode ser considerado
solitário ou soberano. Não é neutro porque todo discurso é uma ferramenta política de
convencimento, de construção de pontos de vista e de criação de consensos, ou seja, constitui-
se numa ferramenta estratégica de poder. Não é independente porque não se trata de uma
criação, no sentido profundo desse termo, pois todo discurso depende de uma rede discursiva
que o antecede, isto é, o discurso é atravessado pelo interdiscurso. Também não é soberano
porque em todo discurso há uma espécie de abertura para o novo, em outros termos, como não
é possível à palavra expressar (ou representar) a complexidade da coisa-em-si, há sempre uma
margem de significações que escapa ao domínio do que foi dito. Sendo assim, todo discurso
comporta em si mesmo o outro, sempre haverá outras possibilidades para os objetos do
discurso, outras significações que lhe são latentes (FOUCAULT, 2014a, 2015a, 2016a).
Desta maneira, todo discurso se articula com acontecimentos que não são,
necessariamente, de ordem ou de natureza estritamente discursiva, pois eles emergem no
interior de uma multiplicidade imanente, cuja estruturação se estabelece a partir de um
diagrama de forças múltiplas e diversas. O diagrama é o que une essa multiplicidade de
forças, oriundas dos campos da técnica, da prática política, da economia etc., formando linhas
visíveis e outras, que são apenas enunciáveis (DELEUZE, 1990, 2013).
Dito isto, não poderíamos aprofundar nosso estudo sobre a Educação do Campo no
Brasil enquanto acontecimento discursivo, deixando de considerar esse objeto como um efeito
de superfície, como algo que emerge num determinado tempo histórico, em meio a esse
diagrama de forças (DELEUZE, 2013; FOUCAULT, 2014a). A Educação do Campo emerge
91

em meio a uma multiplicidade de outros acontecimentos visíveis e enunciáveis que não


pertencem propriamente ao campo educacional, mas que o atravessam e, por vezes, o
determinam (FOUCAULT, 2015a).
Sendo assim, faz-se necessário levar em conta os principais acontecimentos do campo
político e econômico, que caracterizaram as décadas de 1980 e 1990, em meio aos quais
emergiu o objeto Educação do Campo enquanto política pública, determinando todo um
regime de normas, princípios, técnicas e práticas sociais. Embora a década de 1980 tenha
marcado um período de intensas transformações no campo da política nacional, também se
caracterizou como época de agravamento da crise econômica, que atingiu os países latino-
americanos. Crise essa que também se caracterizou como o início de uma ruptura nos rumos
pelos quais a economia política tomaria a partir de então, materializando-se numa série de
reformas no campo educacional aprofundadas nas décadas seguintes.
A crise econômica da chamada década perdida25, marcada pelo crescimento
exponencial da dívida externa e pelas altas taxas da inflação nos países periféricos, iniciou no
México em 1982 e provocou um atraso no pagamento das parcelas com os credores
internacionais. Essa ameaça de mora com a dívida externa provocou a reação dos organismos
fiduciários internacionais, representados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo
Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), esse último também
conhecido como Banco Mundial (BM). Os credores internacionais passaram a adotar uma
política de regulação fiscal, submetendo os países devedores a reestruturações internas e
externas, como uma espécie de caução para a renegociação das dívidas e para a concessão de
novos empréstimos. Essas reformas administrativas tiveram o intuito de promover uma
diminuição dos gastos públicos, de forma que os países devedores pudessem continuar o
pagamento da dívida externa e, assim, também fossem lhes concedidos novos empréstimos e
financiamentos (LEHER; MOTTA, 1998; FONSECA, 1998; JÚNIOR; MAUÉS, 2014).
Como medida de ajuste externo, imposta pelos organismos financeiros internacionais,
para garantir o refinanciamento da dívida externa e a concessão de novos créditos financeiros,
podemos citar a exigência da abertura comercial dos países tomadores de empréstimos, ao
processo de globalização que já estava em curso no mundo como um todo. Foi desse modo
que, no início da década de 1990, presenciamos um período de abertura da economia

25
A referência à década de 1980 como uma década perdida é decorrente de uma análise estritamente econômica,
tendo em vista as baixas taxas de crescimento do PIB, uma aceleração desenfreada na inflação, a redução de
empregos formais, a queda no poder de compra, dentre outros indicadores. No campo político, a democracia
seria um dos ganhos mais importantes da época, uma vez que diversos países da América Latina encontraram
uma saída democrática para a superação de seus regimes ditatoriais (MALLMANN, M. I. Os ganhos da década
perdida: democracia e diplomacia regional na América Latina. Porto Alegre: Edipucrs, 2008).
92

brasileira ao capital estrangeiro, ficando mais evidente a consolidação do processo de


globalização em nosso país, quando do início no mandato presidencial de Fernando Collor de
Melo (1990-1992). Esse processo de abertura econômica teve continuidade durante o mandato
presidencial de Itamar Franco (1992-1994) e se consolidou no governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-1998 e 1999-2002).
Associando-se a esse processo, vivenciamos na década de 1990 um profundo e
acentuado desenvolvimento tecnológico, também em escala global que, com o surgimento da
internet, impôs-se uma nova dinâmica ao comércio e à circulação internacional, não somente
de mercadorias, mas também de serviços e de informações. Essas mudanças impactaram
diretamente o Brasil que, até então, mantinha uma política econômica interna e protecionista
voltada para a substituição de importações26 (GIAMBIAGI et al, 2005).
Essa política econômica protecionista avançou até o final da década de 1980, sendo
que as primeiras iniciativas efetivas, para uma abertura à economia globalizada, partiram do
primeiro presidente brasileiro eleito pelo voto direto, após a redemocratização do país, que foi
Fernando Collor de Melo. A partir de então, iniciou-se a implantação de uma política
econômica liberal que visou à abertura comercial e, durante os dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, quando se intensificou os ritmos das privatizações nos setores produtivos
nacionais sob o controle estatal. Num período de menos de uma década, as tarifas de
importação foram reduzidas exponencialmente, sendo de 51% no ano de 1987, 32,2% no ano
1990 e, em 1994, essa contínua redução fez com que essas taxas chegassem à casa dos 14,2%
(GIAMBIAGI et al., 2005).
A abertura comercial, associada à estabilização da moeda nacional, que viria se
concretizar nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, associada à redução
nas tarifas de importação, teve um impacto direto sobre a produção no meio rural. A partir do
crescimento exponencial das importações, assim como da abertura do parque industrial
nacional para a produção interna de produtos industrializados até então importados, houve um
impacto direto na produtividade agropecuária. Presenciou-se a produção de uma crescente

26
De acordo com Tavares (2011), numa acepção simples, o termo substituição de importações designa a
diminuição ou desaparecimento de determinadas importações, substituindo-as pela produção interna. Essa autora
assegura que, a economia brasileira foi marcada por três momentos, nos quais se desenvolveu o processo de
substituição das importações: o primeiro período se constituiu após a Grande Depressão de 1929, em que se
aproveitou mais intensamente a capacidade de produção instalada; o segundo se estabeleceu durante a Segunda
Guerra Mundial que, pelas dificuldades de abastecimento com suprimentos do exterior, o governo decidiu
investir na indústria pesada (siderurgia); o terceiro e último se desenvolveu no período de 1956 a 1961, com o
aumento da participação direta e indireta do governo nos investimentos internos e a entrada de capital
estrangeiro. TAVARES, M. C. Desenvolvimento e Igualdade. Organizadores: Vanessa Petrell Corrêa e Mônica
Simioni. Ed esp. Rio de Janeiro: IPEA, 2011.
93

mecanização da mão de obra, um aumento no uso de adubos e fertilizantes, de defensivos


agrícolas para o controle de insetos e de predadores, assim como de produtos laboratoriais e
farmacêuticos de alta tecnologia, que acabaram por incrementar a produção agrícola, de carne
e seus derivados (FILHO; VIEIRA, 2013).
Esse incremento na produção rural pode ser comprovado nos dados divulgados, para o
ano de 2006, pelo Órgão das Nações Unidas responsável por avaliar mundialmente, tanto a
produção de alimentos como a agricultura em geral (FAO) 27, demonstrando que no período
compreendido entre os anos 1990 a 2005, houve um aumento de mais de 100% na produção
agrícola brasileira. A adoção de políticas econômicas menos intervencionistas por parte do
Estado, a partir da década de 1990, assim como a adaptação da legislação nacional aos
padrões internacionais e a assinatura de acordos econômicos bilaterais entre diversos países,
permitiram que um percentual considerável da produção agropecuária brasileira passasse a ser
destinada às exportações. De toda essa mudança no cenário econômico brasileiro, cabe
destacar a crescente parcela de participação do agronegócio que, a partir da década de 1990,
passou a contribuir com aproximadamente 40% no volume das exportações brasileiras
(FILHO; VIEIRA, 2013).
A partir desse momento histórico, passam a ser investidos vultosos recursos na
mecanização e no desenvolvimento do agronegócio e na aplicação de técnicas e tecnologias
de cultivo e de produção, voltando-se os esforços para uma produção de monocultura de larga
escala destinada ao abastecimento do mercado internacional. Em contrapartida, a agricultura
familiar, embora na sua forma ainda rudimentar de produção e ocupando lotes de terras bem
menores que o agronegócio, passou a cumprir um importante papel econômico nacional,
contribuindo com uma parcela significativa do abastecimento interno de alimentos, bem como
de oferta de mão de obra no meio rural (PICOLOTTO, 2014).
De acordo com os dados divulgados pelo Censo Agropecuário nos anos de 1995 e
1996 (IBGE, 2019a) e com o documento produzido por Guanziroli e Cardim (2000), a
quantidade de propriedades, ocupadas pela agricultura familiar, representava
aproximadamente 85% do total dos estabelecimentos rurais no Brasil. A área média que cada
uma dessas propriedades ocupava, girava em torno de 26 hectares, sendo que 87% desses

27
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura foi criada em 16 de outubro de 1945,
conta com 191 países-membros, cuja sede está localizada em Roma na Itália, “[...] tem dado especial atenção ao
desenvolvimento das áreas rurais, onde vivem 70% das populações de baixa renda e que ainda passam fome [...]
trabalha no combate à fome e à pobreza, promove o desenvolvimento agrícola, a melhoria da nutrição, a busca
da segurança alimentar e o acesso de todas as pessoas, em todos os momentos, aos alimentos necessários para
uma vida ativa e saudável”. ONU/FAO. Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/fao/>. Acesso em: 14 mar 2019.
94

imóveis tinham menos de 50 hectares. As propriedades familiares ocupavam uma área


correspondente a 30% do território produtivo do meio rural no país, que era responsável por
aproximadamente 38% do valor bruto de produção agropecuária nacional, mas que, em
contrapartida, recebia apenas 25,3% do financiamento governamental destinado ao fomento
da agricultura (GUANZIROLI; CARDIM, 2000; IBGE, 2019a).
Esse mesmo Censo Agropecuário indicou um expressivo declínio na quantidade de
pessoas ocupadas com atividades agrícolas no país, havendo uma redução de
aproximadamente 23% da mão de obra no período de uma década (de 1985 a 1995). Do
mesmo modo, apontava a relevante participação da agricultura familiar na economia nacional,
que se constituía como a principal geradora de trabalho no meio rural, responsável por 76,9%
dos postos de trabalho nesse meio (IBGE, 2019a).
Ainda sobre a intervenção dos organismos econômicos internacionais, cabe lembrar
que o BM e o FMI tiveram participação direta no processo de desenvolvimento de infra-
estrutura dos países do chamado Terceiro Mundo, mediante programas conjuntos de
assistência técnica e financeira (LEHER; MOTTA, 1998; FONSECA, 1998; NOMA, 2010;
PANSARDI, 2011; MANAREZE; LARA, 2012; CASAGRANDE; PEREIRA; SAGRILLO,
2014; JÚNIOR; MAUÉS, 2014). Essa participação não se restringiu à área econômica, pois o
interesse pela área social já havia sido incluído nos objetivos dessas agências financeiras
desde a década de 1960, sendo a educação considerada uma área estratégica de investimento.
Foi o que Leher e Motta (1998) demonstram em seu estudo, quando pontuam que os
investimentos na área da educação passaram a ser a grande estratégia para o Banco Mundial,
como objetivo para a redução da pobreza extrema em todo o mundo. Por meio de um discurso
salvacionista, as estratégias econômicas do BM se baseavam na redução da pobreza, tendo
como via as políticas educacionais, que visavam efetivamente o desenvolvimento do capital
humano dos indivíduos e da população do terceiro mundo. Percebe-se que esse momento
caracteriza pela inserção, na política educacional brasileira, de um discurso próprio da
governamentalidade neoliberal (FOUCAULT, 2008b). Um discurso estratégico que
possibilitou ao BM, a partir da década de 1980, exercer o papel de uma espécie de Ministério
Mundial da Educação, definindo as diretrizes educacionais para os países financiados com
seus recursos (LEHER; MOTA, 1998).
É nesse mesmo contexto sociopolítico e econômico que destacamos a participação de
outras agências internacionais, no debate ao visar a criação de consensos no campo político, a
orientação e a definição de políticas educacionais, não somente para o Brasil, como para toda
a América Latina e Caribe. Tais agências, embora não diretamente vinculadas ao BM,
95

compunham o Sistema Nações Unidas (ONU), pois trabalhavam em conjunto com aquele
organismo financeiro, alinhando-se aos objetivos para propiciar o desenvolvimento
econômico dos países do chamado Terceiro Mundo. Assim, o BM e o FMI atuaram como
órgãos de fomento dos projetos de desenvolvimento e de determinação das políticas de ajuste
fiscal e de reestruturação administrativa dos países, por meio de regras e de condicionalidades
para a concessão de empréstimos e financiamentos. Em outros temos, o BM e o FMI se
constituíram nos grandes investidores financeiros do projeto de desenvolvimento econômico
global, tendo a educação como um meio para a difusão de seus ideais neoliberais
(MANAREZE; LARA, 2012; CASAGRANDE; PEREIRA; SAGRILLO, 2014).
Nesse processo de generalização do desenvolvimento econômico global, as agências
da ONU participam como órgãos técnico/científicos responsáveis pelo estudo da situação
socioeconômica de cada país e pela apresentação de sugestões estratégicas necessárias para a
reestruturação interna. Dentre as agências da ONU participantes dos debates no campo
educacional e responsáveis pelo estudo e pela orientação das políticas públicas educacionais
brasileiras, que foram definidas e postas em execução a partir da década de 1990, destacamos
o UNICEF28, a CEPAL29 e a UNESCO30.
Essas três agências vêm, desde a assinatura da Declaração Universal dos Direitos
Humanos em 1948, atuando como entidades vinculadas à ONU na prestação de apoio
técnico/científico e financeiro aos países membros, em questões relacionadas à educação. Por
meio de sua biopolítica, essas agências se comprometem com o desenvolvimento de
diferentes dimensões da vida da população mundial, estimulando a criação de políticas que
visam à melhoria de elementos diversos do capital humano de cada indivíduo. Nesse sentido,
o UNICEF atua nos processos de enfrentamento de problemas sociais relacionados às crianças
e adolescentes, influenciando na criação de políticas públicas relacionadas à imunização e
aleitamento materno, no combate ao trabalho e violência infantil, assim como à inclusão

28
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) tem como atribuição, “defender e proteger os direitos
de crianças e adolescentes, ajudar a atender suas necessidades básicas e criar oportunidades para que alcancem
seu pleno potencial”. Sobre o UNICEF. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/sobre-o-unicef>. Acesso
em: 14 abr 2019.
29
A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) é uma comissão regional das Nações Unidas,
com sede em Santiago, no Chile, criada “[...] para contribuir com o desenvolvimento econômico da América
Latina, coordenar ações encaminhadas à sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e
com as outras nações do mundo”. ONU/CEPAL. Comissão Econômica para a América Latina e Caribe.
Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/cepal-0>. Acesso em: 15 abr 2019.
30
A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) é uma agência da
especializada das Nações Unidas (ONU), que foi criada logo após o término da II Guerra Mundial, com o
objetivo de contribuir com a paz e a segurança mundial, por meio do patrocínio de projetos nas áreas de
educação, ciências naturais, ciências sociais e humanas, assim como de comunicação e informação. A UNESCO
no mundo e no Brasil. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/>. Acesso em: 12 ago 2019.
96

social e o acesso universal à educação (UNICEF, 2019). A atuação da CEPAL visa à criação
de políticas nacionais voltadas ao desenvolvimento social, que se define pelo progresso
econômico dos países membros, considerando que a educação tem um importante papel na
formação dos recursos humanos e no desempenho da cidadania autônoma (MANAREZE;
LARA, 2012).
A UNESCO, por sua vez, é a agência da ONU que, desde sua fundação, constitui-se
numa referência mundial para os debates de assuntos relacionados à educação e à
democratização da escola pública. De acordo com Noma (2010), a UNESCO é uma agência
especializada em educação e tem assumido uma importância fundamental na orientação das
políticas educacionais da América Latina e do Caribe. De acordo com relatório de 1988, da
própria agência:

Durante praticamente meio século, a UNESCO foi a principal fonte de


informação estatística sobre sistemas educacionais do mundo. É a única
organização mundial credenciada em virtude de sua Constituição para
solicitar aos Estados membros que lhes facilitem sistematicamente dados
estatísticos em todas as esferas de sua competência (UNESCO, 1998, p. 89).

Trata-se de uma agência da ONU que se especializou na realização de estudos


estatísticos e na emissão de pareceres e orientações relacionados às diversas dimensões do
campo educacional, uma espécie de autoridade internacional em assuntos na área da
educação.
Junto aos Ministérios da Educação dos países filiados à ONU, essas três agências,
cada uma na sua área de atuação estratégica, vêm propondo medidas de reestruturação
administrativa, pedagógica e operacional, com vistas a garantir a ampliação do acesso ao
conhecimento, sobretudo para as populações consideradas excluídas socialmente. Essa
participação internacional das agências da ONU, na definição de políticas públicas
educacionais aos países membros, deve-se ao fato de que a educação passou a ser considerada
uma área economicamente estratégica, por ser a responsável pelo desenvolvimento do capital
humano dos indivíduos e, por conseguinte, da população como um todo. Esse
desenvolvimento do capital humano é visto como uma necessidade, tanto para prover o
crescimento econômico dos países, como para a redução de conflitos, por meio da criação de
consensos. Ambos os fatores (desenvolvimento econômico e redução de conflitos) são
considerados primordiais para a garantia da estabilidade social nas democracias, que
compõem a chamada aldeia global (UNESCO, 2010).
97

Percebe-se nos documentos da UNESCO (1998, 2004, 2010) a referência a uma


grande comunidade internacional, uma espécie de sociedade civil global, que se formou a
partir do processo de globalização da economia, comunidade essa que a agência denomina de
aldeia global. Quando a UNESCO se refere aos processos educacionais que garantirão a
estabilidade social e econômica dessa aldeia global, transfere para o interior do discurso
educacional, enunciados econômicos que consideram a espontaneidade dos processos de
associação humana e a naturalidade da formação de sociedades que, nesse entendimento,
constitui-se numa sociedade global. Sendo esses processos naturais e espontâneos, há a
necessidade de conhecer e dominar as suas regularidades, de forma que se possa agir
racionalmente sobre elas, tendo como base a evidência científica.
Quanto aos recursos destinados ao financiamento da UNESCO, Leher e Motta (1988)
apontam que, até 1984 a agência contou com uma maior parcela de financiamento vinda
diretamente dos EUA, sendo que a partir daquele ano, os EUA31 decidiram deixar de serem
membros e financiadores diretos da Organização. Essa perda de patrocínio obrigou a
UNESCO a buscar o apoio financeiro de que necessitava junto ao Banco Mundial, cujos
maiores acionistas também são os EUA. Não houve, no entanto, uma alteração na origem dos
financiamentos, mas uma mudança radical na sua orientação discursiva da agência, de modo a
se alinhar aos ideais norte-americanos (LEHER; MOTTA, 1998).
Com essa mudança indireta de patrocinador, a agência passou a incorporar um
discurso neoliberal e de globalização do BM, afastando-se gradativamente dos ideais
desenvolvimentistas, defendidos e praticados, até então, pela ONU. Essa alteração, dos
princípios de atuação da agência, ficou implícita no relatório emitido no ano de 1998, quando
da finalização do Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe (PPE 32), no
qual se admite que “[...] a existência de outras agências e organismos que começaram a
trabalhar no âmbito da educação, especialmente UNICEF, UNFPA33, Banco Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento, provocando mudança no papel e ação da UNESCO na
região” (UNESCO, 1998, p. 22). Desta maneira, embora não houvesse necessariamente uma
alteração na origem dos financiamentos, o que ocorreu na prática foi uma mudança no

31
A saída dos EUA da UNESCO, com a concomitante retirada de seus custeios àquela organização, ocorreu,
fundamentalmente, pelo fato de que aquele país não mais se interessava pelas políticas desenvolvimentistas
professadas pela ONU, passando a fomentar políticas econômicas de globalização, mais alinhadas com os
propósitos do Banco Mundial (LEHER, 1998).
32
O Projeto Principal de Educação foi proposto durante a Conferência Regional de Ministros da Educação e
Ministros do Planejamento Econômico dos países latinoamericanos, realizada no México, em dezembro de 1979.
33
O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) é uma agência internacional da ONU, criada em 1969
para tratar de assuntos relacionados às questões de desenvolvimento populacional. UNFPA. Missão e Objetivos.
Disponível em: < https://brazil.unfpa.org/pt-br/missao-e-objetivos>. Acesso em: 15 abr. 2020.
98

alinhamento estratégico do discurso da UNESCO, de forma a adaptar-se à política econômica


globalizada imposta pelos seus financiadores, que a partir de então passaram a compor a rede
de investidores financeiros que formam o Banco Mundial (LEHER; MOTTA, 1998).
É nesse mesmo sentido que Figueiredo (2009) evidencia que, a partir da saída dos
EUA da UNESCO em 1984, o Organismo se viu obrigado a buscar financiamento junto ao
BM, acarretando uma adaptação em sua política interna, de forma a se alinhar aos ditames
dessa organização financeira. Dessa maneira, esse mesmo autor aponta que a UNESCO
perdeu as suas atribuições para o Banco Mundial, transformando a educação em assunto de
negócios, de interesse de banqueiros e de estrategistas políticos.
Segundo defendem Leher e Motta (1998), o Banco Mundial assumiu, de forma
decisiva, a direção global da educação, a partir da Conferência Mundial sobre Educação para
Todos, realizada na cidade de Jomtien, na Tailândia, no ano de 1990. Desse evento
participaram 155 países e 120 organizações não-governamentais, dentre elas o Banco
Mundial, o UNICEF, e a UNESCO, que assinaram a respectiva Declaração Mundial sobre
Educação para Todos e um Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de
Aprendizagem, que estabelecia seis metas a serem cumpridas:

[...] a expansão dos cuidados e atividades, visando o desenvolvimento das


crianças em idade pré-escolar; o acesso universal ao ensino fundamental (ou
ao nível considerado básico), que deveria ser completado por todos; a
melhoria da aprendizagem, tal que uma determinada porcentagem de um
grupo de faixa etária ‘x’ atingisse ou ultrapassasse o nível de aprendizagem
desejado; a redução do analfabetismo adulto à metade do nível de 1990,
diminuindo a disparidade entre as taxas de analfabetismo de homens e
mulheres; a expansão de oportunidades de aprendizagem para adultos e
jovens, com impacto para na saúde, no emprego e na produtividade; a
construção, por indivíduos e famílias, de conhecimentos, habilidades e
valores necessários para uma vida melhor e um desenvolvimento sustentável
(JIMENEZ; SEGUNDO, 2007, p. 123).

Os países signatários da agenda, firmada durante aquela Conferência, assumiram o


compromisso de colocar em execução essas metas, transformando-as num movimento global,
que foi denominado: Todos pela Educação. Segundo Leher e Motta (1998), desde então, o
Banco Mundial passou a tratar a educação tanto como estratégia política quanto como
variável econômica, pois acreditava que somente por meio da educação é que um país poderá
impulsionar o seu desenvolvimento, incrementando a produtividade e reduzindo a taxa de
natalidade, o que possibilitaria a redução da pobreza extrema.
99

A partir da Declaração de Jomtien, os pressupostos e metas da Educação para Todos


foram reiterados em diversos outros eventos mundiais, nos quais participaram os líderes da
comunidade global, como: a Conferência de New Delhi, realizada no ano de 1993; o
Compromisso de Dakar, realizado em abril de 2000; a Declaração de Cochabamba, assinada
pelos Ministros da Educação da América Latina e o Caribe, em 2001, na cidade boliviana que
deu o titulo a declaração. No Brasil, os objetivos da Declaração de Jomtien foram
incorporados ao Compromisso Nacional de Educação para Todos e no Plano Decenal de
Educação Para Todos ainda no ano de 1993. Esse plano se configurou como o fruto das
negociações com a UNESCO e deram sequência aos compromissos assumidos
internacionalmente pelo Brasil, como desdobramento da Conferência Mundial sobre
Educação para Todos, estabelecendo-se as diretrizes para a educação básica na década,
compreendida entre os anos de 1993 e 2003, cuja ênfase principal recaiu sobre o Ensino
Fundamental (YANAGUITA, 2013).
Consolidando esse arcabouço de orientações para os níveis e etapas da educação
nacional, posteriormente, as metas da Declaração de Cochabamba e o seu respectivo Plano de
Ação orientaram a elaboração de instrumentos legais, destinados à regulação das diretrizes e
das bases da educação, assim como dos recursos destinados ao seu financiamento. A LDB
(BRASIL, 1996) incorporou no parágrafo 1, do artigo 87, a determinação de que o Plano
Nacional de Educação deveria ser elaborado, tomando-se como base a Declaração Mundial de
Educação Para Todos. Também baseado nos documentos da Declaração de Jomtien, foram
criadas as regras para o financiamento do Ensino Fundamental, estabelecidas pela Lei nº
9.394/96 (LDB), que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental (FUNDEF34).
Uma década após a realização da na Conferência de Jomtien, no ano de 2000, foi
realizado o Fórum de Educação para Todos (Compromisso de Dakar), que teve a participação
de 164 países, no qual se diagnosticou certa negligência, por parte de muitos dos países
signatários, quanto à agenda firmada no ano de 1990 na Conferência de Jomtien. A partir do

34
O FUNDEF foi implantado a partir da Emenda Constitucional nº 14, de 1996, mas somente entrou em vigor
em 1998, por um prazo de 10 anos, sendo seus recursos captados das receitas de impostos e das transferências
dos estados aos municípios (e do Distrito Federal ao município de Brasília), com uma pequena parcela de
contribuição por parte da UNIÃO. Em 2006 expirou seu prazo de funcionamento legal, sendo substituído pelo
FUNDEB, cujo prazo de funcionamento foi ampliado para 14 anos, tendo a sua prescrição prevista para 2020. A
partir da criação do FUNDEB, algumas modificações significativas foram realizadas, como: a inclusão do
Ensino Médio e da Educação Infantil como beneficiários do Fundo; uma parcela de seus recursos passou a ser
destinada à valorização do magistério; houve um aumento na cooperação da União, para a formação dos recursos
financeiros do Fundo, passando os recursos federais a compor uma parcela que correspondia a menos de 1% na
época do FUNDEF, para o equivalente a 10%.
100

Compromisso de Dakar, os países participantes se comprometeram em expandir as


oportunidades educacionais, como forma de se reduzir as desigualdades sociais, além de
cumprir, até o ano de 2015, as metas que ficaram estabelecidas naquele evento.
Desde então, a UNESCO passou a monitorar o cumprimento de tais metas,
apresentando relatórios anuais, contendo dados estatísticos sobre a efetivação da agenda
firmada no Compromisso de Dakar. A quantidade e a qualidade da formação docente se
tornaram pontos cruciais para o cumprimento das metas do Compromisso de Dakar, sendo
que o INEP35, órgão brasileiro responsável por efetuar as pesquisas nacionais sobre educação,
no ano de 2007, emitiu um relatório, assinado pelo Conselho Nacional de Educação,
apontando a necessidade urgente de formação de 235 mil professores no Brasil. Além disso,
no relatório brasileiro de monitoramento de Educação para Todos, apresentado no ano
seguinte (2008), evidenciaram-se diversos outros problemas, que poderiam comprometer o
cumprimento das metas estabelecidas no Compromisso de Dakar.
Os problemas educacionais brasileiros, levantados pelo INEP e apontados pela
UNESCO, constituíam-se tanto como de ordem estrutural, como de organização escolar e de
deficiência quantitativa de professores habilitados para o exercício da docência. Os problemas
estruturais apontavam as precárias condições de funcionamento escolas, sobretudo as escolas
rurais que, associados à escassez de professores habilitados, acarretando na adoção de salas
multisseriadas e de uma elevada taxa de aluno por professor. Correlacionado com os
problemas estruturais, identificou-se um alto índice de evasão escolar, assim como uma
enorme taxa de distorção entre a idade dos alunos e a série na qual deveriam estar
matriculados (UNESCO, 2008).
Como proposta para a superação das desigualdades sociais e a redução da pobreza, o
BM passou a conceder uma série de empréstimos ao Brasil condicionados às reformas que
foram postas em prática nas áreas econômica, social e política de nosso país. As reformas
educacionais empreendidas a partir de então, configuraram-se como uma das componentes
dos ajustes estruturais e setoriais de todo o processo de reformas para a modernização do
Estado brasileiro propostas pelo BIRD (FIGUEIREDO, 2009).

35
O Instituto Nacional de Pedagogia (INEP) foi criado em 1937 com o objetivo de realizar estudos nacionais
para identificar problemas do ensino e propor políticas públicas, tendo em vista a crescente industrialização do
país e a demanda por trabalhadores preparados. Em 1972 o INEP passou a se denominar Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, tornou-se independente do Ministério da Educação (MEC) e passou a ser um
órgão de assessoramento direto da Presidência da República. No ano de 1976 o INEP foi transferido para
Brasília e em 1979 foi novamente incorporado ao MEC. Em 2001 o Senado Federal aprovou a inclusão do nome
de Anísio Teixeira na sua denominação oficial e passou a se chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2019).
101

A partir da década de 1990, o campo educacional foi movimentado por uma série de
reformas educacionais implantadas pelo Ministério da Educação (MEC) que, de acordo com
Júnior e Maués (2014), foram influenciadas pelos diagnósticos realizados pela UNESCO e
pelas orientações propostas pelo Banco Mundial. As reformas educacionais propostas aos
países periféricos, no caso do Brasil postas em execução pelo MEC, enfatizavam a atenção
com educação básica, a descentralização da gestão e a centralização da avaliação
(ALTMANN, 2002; NOMA, 2010).
Há que se destacar que, desde o início da década de 1980, tanto a CEPAL como a
UNESCO delinearam uma agenda para a educação na América Latina e Caribe, compromisso
que se materializou no PPE, elaborado por meio de um consenso entre aquelas duas agências
e os representantes dos governos da região. Por meio desse projeto, foram traçados os
princípios e as estratégias para o desenvolvimento das políticas educativas na região, no
período compreendido entre os anos de 1981 a 2000. Durante a vigência desse projeto foram
realizadas sete reuniões (PROMEDLAC 36) com a participação dos Ministros da Educação dos
países membros, nas quais foram construídos os consensos em torno das principais ideias e
propostas para a educação no período. A primeira reunião aconteceu no México (1984), a
segunda na Colômbia (1987), a terceira na Guatemala (1989), a quarta no Peru (1991), a
quinta no Chile (1993), a sexta na Jamaica em (1996) e a sétima e última, na Bolívia (2001)
(PAIVA; ARAÚJO, 2008; NOMA, 2010).
Paiva e Araújo (2008) fizeram uma análise dos principais assuntos tratados em cada
uma das sete PROMEDLAC, realizadas durante a vigência do PPE, apontando ajustes e
direcionamentos das reformas educacionais realizadas no continente nesse período.
Inicialmente esses autores dividem os debates do PPE em duas etapas, sendo que a primeira
etapa coincide com a primeira PROMEDLAC e a segunda etapa inicia com a IV reunião,
realizada 10 anos após a implantação do projeto.
Por conseguinte, a primeira fase iniciou com a implantação do projeto em 1991,
quando foram estabelecidos três eixos estratégicos ou frentes de combate para a educação no
continente: a universalização da educação básica; a eliminação – ou, para utilizar o mesmo
termo empregado no projeto, a erradicação – do analfabetismo até o fim do século XX; e a
melhoria na qualidade e na eficiência do sistema educacional dos países que participaram

36
PROMEDLAC foi a sigla adotada para as Reuniões do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto
Principal de Educação na América Latina e Caribe, realizadas no intuito de discutir o PPE e traçar os
redirecionamentos necessários ao cumprimento do compromisso de Dakar: Todos pela Educação.
102

“voluntariamente37” do projeto. A segunda fase de implantação do PPE começou em 1991,


com a IV PROMEDLAC, cuja declaração assinada ao seu final, ficou conhecida como
Declaração de Quito, em alusão à cidade peruana onde foi realizada aquela reunião (PAIVA;
ARAÚJO, 2008).
Nessa reunião realizada no Peru, constatou-se que, além da ampliação na oferta de
recursos financeiros, antes, seria necessário modificar estrategicamente a utilização do
numerário disponível, com o intuito de visar à otimização de sua aplicação na melhoria da
qualidade do sistema ensino. Para tanto, tornou-se necessário que os países latino-americanos
e caribenhos iniciassem uma nova fase de desenvolvimento educacional, alinhando-se com as
transformações ocorridas no mundo globalizado, o que exigia alterações no modo de
realização do trabalho produtivo. Associado às transformações na esfera global e do mundo
do trabalho, para manter-se um consenso sobre essa nova ordem mundial que se estabelecia,
foi necessário que se pensasse estrategicamente no estabelecimento, não mais de uma
igualdade, mas de equidade de oportunidades entre os indivíduos, assim como na
democratização política (PAIVA; ARAÚJO, 2008).
Com essa mudança de estratégia, para garantir a expansão do sistema educacional e o
seu perfeito gerenciamento, viu-se construir, a partir dos anos 1990, todo um aparato
discursivo, baseado em um regime de verdade, oriundo da política econômica globalizada,
que se voltou para a produção de novas relações institucionais e pedagógicas. Dentre as
estratégias definidas inicialmente pelo PPE, pode-se destacar a ênfase na universalização da
educação básica, na eliminação do analfabetismo na América Latina e no Caribe (ambas em
consonância com o compromisso de Dakar), no incentivo para o desenvolvimento de políticas
educacionais inclusivas, assim como no financiamento da educação (UNESCO, 1998).
Posteriormente, a partir da IV PROMEDLAC se percebe um deslocamento dos
discursos para o âmbito gerencial, com a penetração de enunciados que têm sua origem no
campo da administração empresarial. É nesse momento que emergem os discursos sobre a
qualidade, sobre a necessidade de descentralização administrativa, da responsabilidade
coletiva, da gestão participativa e democrática. O que sucedeu, na prática, foi uma
transformação nas formas de gestão educacional, com a incorporação de conceitos liberais,
importados da teoria econômico/administrativa, como: produtividade, eficácia e excelência.

37
Optamos aqui em utilizar o termo entre aspas, para acentuar o caráter estratégico utilizado pelas agências
técnicas, vinculando a participação dos países no projeto à concessão de financiamentos pelo BM e aos ajustes
estruturais que lhes seriam propostos a seguir. Uma estratégia política de dominação, de condução das vontades
coletivas, disfarçada de ação humanitária, na qual se propõe uma ajuda para o desenvolvimento da região e dos
países que a constitui.
103

Verifica-se, ainda, a busca pelo estabelecimento de alianças entre o Estado e organismos não
governamentais, assim como com as famílias e a comunidade, com a finalidade tanto de
compartilhar as atribuições administrativas e as responsabilidades pela gestão do sistema
educacional, como de buscar formas alternativas de captação de recursos materiais,
financeiros e de pessoal, para operacionalizar as reformas pretendidas (PAIVA; ARAÚJO,
2008; NOMA, 2010).
A Declaração de Quito estabeleceu um marco consensual entre os países latino-
americanos e Caribe, sobre a necessidade de reformas e de investimentos em políticas
públicas, cujo objetivo seria o de melhorar a qualidade da educação. Com essa mudança
estratégica no regime de verdades, na qual a expansão do sistema educacional passa a ser
atrelado à melhoria da gestão dos recursos disponíveis e, em meados da década de 1990, o
estabelecimento de todo um aparato jurídico, que se voltou para a construção de novas
relações pedagógicas e institucionais.
Durante a IV e a V PROMEDLAC, realizadas em 1991 e 1993, a atenção se voltou
para a formação e a profissionalização docente, ao enfatizar a necessidade de melhoria das
condições de trabalho dos professores, assim como de se integrar a formação inicial e em
serviço, no sentido de assegurar espaços de trocas e de análise sobre a prática docente. Na VI
PROMEDLAC, realizada na Jamaica, houve a reafirmação dos compromissos assumidos com
o PPE, isso por parte dos governos participantes. Em destaque a necessidade de adequação do
projeto ao novo contexto social, educacional, político, econômico, tecnológico e cultural da
região. Para esse alinhamento contextual, nessa reunião se traçou metas para a universalização
da educação básica, para a alfabetização funcional e para o investimento na educação
permanente, ou seja, na educação ao longo da vida (PAIVA; ARAÚJO, 2008).
Em 2002, com o término da vigência do PPE, foi lançado em Cuba, o Projeto Regional
de Educação para a América Latina e Caribe (PRELAC 38), com vigência prevista para o
período compreendido entre 2002 e 2017 (PAIVA; ARAÚJO, 2008; NOMA, 2010). Alinhado
com as metas do compromisso de Dakar: Educação para Todos, nesse novo projeto regional
destinado à educação nos países da America Latina e do Caribe, ficaram estabelecidas cinco
estratégias, ou focos principais de ações. Foram essas estratégias que orientaram o projeto e se

38
O Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (PRELAC), juntamente com o seu modelo
de acompanhamento, foram aprovados na Primeira Reunião Intergovernamental realizada na cidade de Havana,
Cuba, entre os dias 14 e 16 de novembro de 2002, pelos ministros da Educação e os representantes de 34 países.
Todos assinaram a Declaração de Havana, que ratifica a vontade política dos países e o apoio ao Projeto, cujo
horizonte de realização será de 15 anos (UNESCO, 2004).
104

constituíram em temas centrais, que os países participantes deveriam considerar, no intuito de


cumprir as metas do compromisso de Dakar, sendo elas:

1) Foco nos conteúdos e práticas de educação, para construir sentidos sobre


nós mesmos, os outros e o mundo em que vivemos. 2) Foco nos docentes e
fortalecimento de sua importância na mudança educacional, para que
respondam às necessidades de aprendizagem de seus alunos. 3) Foco na
cultura das escolas para que estas se convertam em comunidades de
aprendizagem e participação. 4) Foco na gestão e flexibilização dos sistemas
educativos para oferecer oportunidades de aprendizagem efetiva ao longo da
vida. 5) Foco na responsabilidade social pela educação para gerar
compromissos com seu desenvolvimento e resultados (UNESCO, 2004).

Casagrande, Pereira e Sagrillo (2014, p. 499) salientam que, “a prioridade dada à


educação básica impõe uma revisão da formação docente na perspectiva de instaurar
processos de mudança no interior das instituições formadoras de modo que, por meio da
formação docente, a escola básica se incorpore aos atuais interesses do capital”. Nessa
perspectiva, Pansardi (2011) lembra que os discursos do BM se deslocaram de uma posição
na qual não se admitia uma contribuição efetiva do professor ao processo educativo, para
formulações que reconhecem o impacto concreto de sua participação nesse processo. Esses
novos discursos admitiam o trabalho docente como algo a ser considerado como importante,
mas que era secundário à aprendizagem do aluno.
Entretanto, os discursos do BM atravessaram o campo educacional e colocaram a
figura do professor numa posição ambígua, visto como um mal necessário, para a consecução
dos projetos de reforma educativa. O professor foi visto como um mal, devido ao seu poder de
associação e de sindicalização, que tendia a se transformar em força política, um poder que
tem o potencial estratégico de luta e resistência, contra as reformas propostas pelo BM. De
uma maneira inversa, o professor foi reconhecido como um sujeito necessário ao processo
educacional, sendo considerado o protagonista, o ator principal no desenvolvimento da
educação, pelas agências técnicas da ONU (EVANGELISTA; SHIROMA, 2007;
PANSARDI, 2011; CASAGRANDE; PEREIRA; SAGRILLO, 2014).
De acordo com Casagrande, Pereira e Sagrillo (2014), verificou-se um deslocamento e
uma transferência da escola e do sistema educacional como um todo, da esfera política para a
esfera do mercado. Desse modo, operava todo um deslocamento no processo educativo, por
meio do qual o professor e a própria pedagogia serão removidos do centro desse processo e
transferidos para o centro do processo de aprendizagem. Com esse deslocamento, operou-se
uma separação entre a pedagogia e a formação do professor, uma vez que professores e
105

pedagogos foram colocados em universos diferentes. O pedagogo detinha o conhecimento das


ciências da educação e o professor era aquele que devia se limitar à prática em sala de aula,
limitar sua ação a proporcionar os melhores meios para que o aluno aprendesse a aplicar os
conteúdos em situações práticas de sua vida concreta (PANSARDI, 2011).
Por meio desse deslocamento, não somente ocorreu uma despolitização da escola, com
a sua retirada da esfera política e transferência para o âmbito da lógica concorrencial do
mercado, mas transformou também o próprio papel social do professor. Por meio desses
discursos se deslocou a ênfase sobre o processo educativo, no qual o papel do professor era
central, passando a atribuir, a partir de então, um maior destaque sobre a aprendizagem dos
alunos, sobre os conteúdos a serem aprendidos e os insumos necessários para que se
desenvolvesse a qualidade educacional, como: os livros didáticos, as bibliotecas, a tecnologias
da informação e comunicação (TIC). Nessa lógica gerencial da educação, o próprio professor
se transforma num insumo educacional, que poderia (ou não) agregar maior valor ao produto
final (a aprendizagem) que seria entregue ao consumidor (a sociedade) (PANSARDI, 2011;
CASAGRANDE; PEREIRA; SAGRILLO, 2014).
Sendo assim, o discurso das agências de fomento (como o BM e o FMI), sobre a
necessidade urgente de reformas educacionais nos países da América Latina e Caribe, baseou-
se em estudos realizados pelas agências técnicas da ONU, sobretudo pela UNESCO, a partir
de experiências educacionais comprovadas pela evidência das experiências práticas. Quando
essas práticas se transformaram em objeto de análise pelas agências técnicas, por meio de um
levantamento de dados quantitativos, que são capazes de fundamentar estatisticamente suas
conclusões e lhe creditam cientificidade para seus argumentos. Tratou-se de um apoio
discursivo no método científico, por meio do qual os dados da realidade empírica foram
analisados matematicamente, com o auxílio de ferramentas estatísticas, o que possibilitou que
se tirassem conclusões que se acreditava serem neutras, universais, replicáveis e
manipuláveis. Foram essas conclusões que propiciaram o estabelecimento de um consenso e
de todo um regime de verdades educacionais, incontestáveis e válidas universalmente, que
iriam fundamentar a economia política, com as respectivas reformas sugeridas aos países
latino-americanos e do Caribe nas décadas que seguiram os anos de 1990 (PANSARDI,
2011).
Como parte da construção discursiva, acerca das novas relações do professor com o
processo educacional durante as décadas de 1990 e 2000, foram instituídas intervenções de
nível macro-gerencial, por meio da criação de todo um sistema articulado de avaliações e
auditorias externas. Referimos aqui ao sistema de avaliações, auditorias e apoio técnico,
106

centralizados pela UNESCO e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento


Econômico (OCDE), cuja coleta de dados se realizava por meio de testes padronizados, que
eram respondidos pelos alunos, nos níveis considerados estratégicos para a aprendizagem.
Sistemas que se destinavam não somente a avaliar o aprendizado discente, como também
medir a qualidade educacional dos países e a eficiência do trabalho executado pelo professor.
Esse sistema de avaliação ampliou o controle populacional acerca dos resultados
educacionais, mas também sobre o desempenho profissional de cada professor, pois criou
mecanismos de discriminação positiva. Ou seja, por meio dos resultados obtidos pelos alunos,
nos testes aplicados pelas agências técnicas (INEP, UNESCO e OCDE), aplicou-se o processo
de governamentalidade em todo o sistema educacional, com incentivos de fomento aos
professores que conduziram de forma mais eficiente o processo educacional, eficiência essa
medida de acordo com os resultados superiores dos alunos nos testes.
Percebe-se um alinhamento desse sistema de avaliações e auditorias externas, com o
modelo de gerenciamento empresarial assumido, a partir de então, para o sistema educacional
brasileiro, cujos mecanismos de incentivo à concorrência interna, buscavam premiar os
resultados que se destacavam positivamente e que melhor se adequavam aos indicadores da
melhoria da qualidade educacional. Um regime de verdade sobre a qualidade educacional,
estabelecido vertical e externamente, pelas agências de apoio técnico, cujos índices deviam
ser incessantemente buscados, alcançados e superados pelos professores e pelas escolas.
Dessa maneira, como parte das reformas que foram propostas pelo BM a partir da década de
1990, com base em estudos realizados pela UNESCO, pode-se destacar o estabelecimento de
um amplo sistema de avaliação, que passou a ser implantado no Brasil, no intuito de
monitorar não somente a qualidade da educação, como a eficácia no gerenciamento de
recursos pelas escolas, assim como a eficiência profissional de cada professor.
Como forma de avaliar o rendimento escolar brasileiro, foi criado o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que atualmente é composto por dois exames
complementares: a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB39) e a Avaliação Nacional
de Rendimento Escolar (ANRESC 40). Esses dois exames constituem um conjunto de

39
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi desenvolvido no final da década de 1980 e aplicado
inicialmente em 1990, em escala nacional, nas escolas da rede pública e privada, urbanas e rurais de todo o
Brasil, com o objetivo de conhecer o sistema educacional em profundidade. A partir de 1995 o SAEB sofreu
uma reestruturação metodológica, passando a ser composto por duas avaliações complementares: o ANEB e o
ANRESC, que permitem uma comparação dos desempenhos ao longo dos anos de escolarização. Em 2013 foi
incorporada ao SAEB a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), cujos objetivos é a aferição dos níveis de
alfabetização e letramento em português e matemática (IBGE, 2019b; MEC/INEP, 2013).
40
A Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), também conhecida como Provinha Brasil, é uma
avaliação bianual, que envolve alunos do 5º e do 9º ano do Ensino Fundamental, de escolas públicas que
107

avaliações que têm por objetivo diagnosticar a qualidade da Educação Básica, viabilizando os
indicadores estatísticos para a análise das competências nas disciplinas de português e
matemática, de alunos da primeira e da segunda etapa do Ensino Fundamental (ANRESC) e
do Ensino Médio (SAEB), assim como sobre os saberes desses estudantes em ciências da
natureza e ciências humanas (IBGE, 2019b).
Tal sistema de avaliação se tornou necessário porque, na perspectiva dos organismos
internacionais de financiamento, a educação básica é vista como um fator positivo para o
crescimento econômico de um país. A ênfase do processo educativo recai sobre a Educação
Básica, principalmente sobre a alfabetização e os anos iniciais do Ensino Fundamental, por
uma questão de economia e de eficiência na aplicação dos recursos financeiros. Por meio de
cálculos de regressão estatística pode-se comprovar que, o investimento nos níveis
educacionais elementares propicia um incremento de renda proporcionalmente maior aos
indivíduos, quando comparado ao mesmo montante financeiro, investido na formação de
capital humano em níveis educacionais mais elevados (JIMENEZ; SEGUNDO, 2007).
Outro mecanismo internacional, que centralizou de avaliação e controle do rendimento
escolar, constituiu-se no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA41), que
passou a ser realizado a partir do ano 2000, sob a coordenação da OCDE, controlando os
saberes e os discursos sobre o desempenho educacional no Ensino Médio. O PISA se
configura como um estudo comparativo internacional, realizado a cada três anos e que
possibilita que cada país avalie o desempenho de seus estudantes, na faixa etária dos 15 anos.
Por meio dessa ferramenta estatística, a OCDE avalia os conhecimentos e habilidades dos
estudantes de seus países membros, nos domínios relacionados à leitura, à matemática e às
ciências, comparando os resultados entre os países e estabelecendo um ranking de eficiência
educacional (MEC, 2019).
Mediante o uso de ferramentas estatísticas, esses mecanismos de avaliação,
comparação e controle dos índices educacionais, estabelecem uma lista, que contém a
classificação ordenada de cada um dos países, quanto ao rendimento escolar dos alunos. Esses
índices e classificações fornecem os dados que orientam a criação e a implantação de políticas
públicas em cada um dos países membros. Essas políticas precisam estar alinhadas aos
princípios concorrenciais, de forma a incentivar que cada país busque a melhoria constante
nos resultados educacionais de sua população. Há uma concorrência constante entre os países,

possuam mais de 20 alunos matriculados nas séries avaliadas. Essa avaliação foi criada no ano de 2005 para, em
conjunto com o SAEB, constituírem os índices do IDEB (MEC/INEP, 2013).
41
O Programme for International Student Assessment (PISA), foi traduzido para o português como Programa
Internacional de avaliação de Estudantes, é realizado trienalmente pela OCDE,
108

de maneira a se atingir uma equivalência (normalização) em relação aos primeiros colocados,


como forma de se atingir uma meta comum de desenvolvimento do capital humano.
Verifica-se que as metas comuns, a serem atingidas pelos países membros, variam de
acordo com os objetivos de cada uma das organizações responsáveis pela avaliação. No caso
da UNESCO, a preocupação recai sobre a garantia do acesso à educação de qualidade para
todos, como estratégia política para a redução da pobreza extrema e promover a equidade
social. No caso da OCDE, a educação surge como uma estratégia política para incrementar o
desenvolvimento econômico dos países e, concomitantemente, o comércio internacional. No
fundo, não há diferenças substantivas entre as estratégias de ambas as agências, pois o
objetivo final da educação é o desenvolvimento econômico, tanto como um plano para a
redução da pobreza, quanto uma forma de incremento da concorrência econômica
internacional.
Desta maneira, no discurso desses organismos internacionais, responsáveis pela
avaliação e o controle dos resultados educacionais, por meio das ferramentas estatísticas se
criam indicadores para o rendimento escolar da população educacional, que se complementam
e fornecem dados concretos e objetivos, validados e/ou validáveis pelo método científico,
sobre a atual situação educacional de cada país. Esses índices educacionais, construídos por
organismos externos a partir de dados internos, servem como um modelo comparativo, de
forma a estimular um discurso competitivo, por meio da qual se buscaria a melhoria nos
resultados da qualidade da educação brasileira.
Trata-se de conjunto discursivo que se constituiu enquanto acontecimento técnico-
político e que produziu saberes sobre o sistema educacional como um todo, cujos efeitos
práticos de poder atingem todo o campo educacional brasileiro. Em outras palavras, por meio
da produção de um conhecimento de base científica sobre a qualidade da educação, são
acionados mecanismos de poder que além de permitirem a comparação entre os diversos
países, induz, produz, suscita uma competição entre os membros, assim como ações práticas
que visam atingir e superar os padrões mínimos estabelecidos (a média, a norma).
Um saber que se produz a partir de dados numéricos, fornecidos pelos próprios
sujeitos avaliados, por meio do qual se levanta o perfil da situação inerente ao rendimento
escolar e à qualidade educacional de cada país. Percebe-se uma circularidade nesse processo,
indicando à relação de interdependência entre saber e poder, demonstrada por Foucault
(2014b), pois é a partir de uma coleta de dados quantitativos individuais, que torna possível a
análise estatística, por meio da qual se concebe a norma, isto é, o perfil que dita a qualidade
educacional de cada país. É essa norma que permite a análise comparativa entre os países,
109

com base na qual se criam critérios técnicos/normativos, indicadores das necessidades de


reformas educacionais e administrativas. O conjunto das reformas propostas pelo BM, com
base nesses critérios normativos, visou a melhoraria daqueles resultados iniciais, que
indicavam de maneira quantitativa a qualidade da educação.
Esses critérios técnico/normativos têm como objetivo, muito mais do que estimular a
melhoria da qualidade educacional entre os países, pois os saberes construídos a partir desses
dados estatísticos põem em circulação o discurso da necessidade de melhoria das capacidades,
habilidades e atitudes individuais (capital humano), a fim de se construir um novo homem.
Desse novo sujeito, mais competitivo, produtivo e criativo, um sujeito polivalente e
empreendedor que a economia globalizada necessita, de alguém que seja empreendedor de si,
um empresário de si. É esse sujeito adaptável, cuja formação do capital humano se inicia na
escolarização básica e formal, mas se estende por toda sua vida, mediante uma formação
continuada e em serviço, que vai se construir o cidadão da aldeia global, o sujeito-empresa.
Vemos se estabelecer todo um sistema circular de poder/saber que se estende para
além de uma simples comparação entre os países, mas que se capilariza no interior do sistema
educacional como um todo e se incorpora ao próprio sujeito da educação, seja ele o professor,
o aluno, ou os agentes administrativos da escola. No caso brasileiro, os resultados desses
testes fundamentam as políticas de financiamento estudantil, premiando estados, municípios,
escolas e, até mesmo estudantes, que obtêm rendimentos superiores nesses mesmos testes.
Todo esse conjunto de avaliação e estabelecimento de méritos foi racionalmente construído,
visando a produção do novo sujeito necessário à economia neoliberal globalizada, desde o
direcionamento de um conjunto de práticas educacionais específicas, até a criação de novos
critérios e fundamentos para formação docente.
Nesse sentido, Noma (2010, p. 54) aponta que, na América Latina, muitos países “[...]
realizaram amplas reformas educacionais, abrangendo distintas dimensões do sistema de
ensino, ou seja, legislação, planejamento, gestão educacional, financiamento, currículos
escolares, avaliação, entre outras”. Essa mesma pesquisadora lembra, ainda, que as reformas
educacionais realizadas nos países da América Latina e do Caribe “[...] foram direcionadas
pelas recomendações e orientações educacionais formuladas internacionalmente pelo conjunto
das agências da ONU” (NOMA, 2010, p. 70).
Desta maneira, as decisões governamentais no campo educacional, tomadas após a
década de 1990, foram profundamente influenciadas pela agenda definida pelo BM, cujos
discursos foram se reproduzindo e propagados pelas agências da ONU, sobretudo pela
CEPAL, pela UNESCO e pelo UNICEF. Percebe-se a configuração de uma rede de
110

poder/saber articulada, que cria consensos universais por meio dos quais se exibe uma espécie
de receituário a ser seguido pelos diversos países. Tratando-se de sugestões para ajustes
estruturais, que os países poderiam voluntariamente aderir ou não, essas agências conferiam
uma face mais democrática e humanizada ao pacto multilateral, que dificilmente teria como
ser questionado, por conta do seu embasamento discursivo em verdades cientificamente
construídas (NOMA, 2010).
Como se pode verificar, a partir do processo de redemocratização do Brasil, ocorrido
na década de 1980, estabeleceram-se as condições suficientes para o ressurgimento dos
movimentos sociais que, mediante negociações, alcançaram importantes conquistas legais,
como a inserção dos direitos sociais à educação, na Constituição de 1988, e a concomitante
regulamentação desses direitos na LDB (Lei 9.396).
Constatou-se, também que, a abertura econômica ao capital internacional trouxe
impactos sociais que puderam ser sentidos em diversos setores, como o exemplo da maior
participação da agricultura familiar no abastecimento interno de nosso país e a valorização do
trabalho cooperativo, tornando urgente o investimento em formação nessa área do setor
produtivo. Como contraponto, observou-se que o endividamento, nas décadas anteriores, e a
crise econômica, que se instalou nos países latino-americanos nesse período, comprometeram
o pagamento das dívidas com os credores externos. Fato esse que abriu um campo de
possibilidades estratégicas, o que permitiu aos credores estabelecerem regras e condições para
o refinanciamento da dívida, assim como para a concessão de novos empréstimos, necessários
para que esses países superassem a crise econômica.
É nesse ponto que surgem as propostas de reformas administrativas, que propiciaram
certo alinhamento entre os interesses econômicos desses credores e as necessidades de
negociação das dívidas, por parte dos países em desenvolvimento, que se encontravam em
débito com esses organismos fiduciários. A contrapartida exigida, para o refinanciamento da
dívida e a concessão de novos empréstimos, foi a realização de reformas estruturais e setoriais
por parte dos países financiados, a fim de melhorarem a qualidade e a eficiência na aplicação
dos recursos financeiros concedidos a título de empréstimo. Muitos setores da sociedade
vivenciaram os efeitos dessas reformas, que passaram a influenciar diretamente na formulação
de políticas públicas dos países devedores.
Na área educacional, porém, a principal preocupação do BM e das agências técnicas
da ONU passou a ser a reestruturação da educação básica, por meio de mudanças na forma de
seu financiamento, alterações nos currículos e instituição de um sistema centralizado de
avaliação. Uma etapa educacional, considerada pelas agências financiadoras com responsável
111

pela aquisição de conhecimentos e habilidades essenciais, necessária à formação de capital


humano, capaz de incrementar a produção e o crescimento econômico do país e de reduzir a
pobreza de sua população. Justamente nessa possibilidade de incremento produtivo,
propiciada pela capacidade do processo educacional desenvolver o capital humano dos
indivíduos, que se baseiam os discursos dos organismos internacionais.
A consequência, esperada para esse processo de desenvolvimento do capital humano,
seria a superação das desigualdades econômicas e sociais entre os indivíduos. Em outras
palavras, aos empréstimos concedidos pelo BIRD se seguiram as concomitantes exigências
sobre ajustes estruturais e setoriais, que puderam ser vivenciados no Brasil a partir da década
de 1990. No setor da educação, essas exigências se consumaram em reformas educativas,
particularmente na Educação Básica, cujo intuito manifesto foi a instalação de uma nova
razão de governo, que se caracteriza pela universalização do modelo empresarial.
É nesse solo, no qual se cruzam forças políticas e econômicas, que produzem e
reproduzem os saberes e que fundamentam os discursos sobre a qualidade da educação, que
emerge a Educação do Campo. No embate dessas forças é que se pode observar certo
alinhamento, mesmo que parcial, entre as exigências dos organismos internacionais de
financiamento, das agências técnicas da ONU e as reivindicações dos movimentos sociais.
Enquanto os discursos do BM e da UNESCO defendem a universalização do acesso à
Educação Básica de qualidade para todos, os movimentos sociais reivindicam o direito legal
de uma educação de qualidade para todos os habitantes do campo, um processo educativo que
deveria ser desenvolvido no próprio local em que o povo vive. A emergência do discurso
acerca da Educação do Campo será o assunto tratado no próximo Capítulo.
112

IV - ACONTECIMENTALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

A história acontecimentalizada do discurso sobre o nosso objeto geral de estudo é o


que nos interessa como base epistemológica de análise no presente capítulo, pois será
justamente a noção de acontencimentalização da história, elaborada por Foucault (2015a), que
nos servirá de ponto de partida, para efetuar o aprofundamento das análises sobre como a
Educação do Campo emergiu enquanto acontecimento discursivo e se transformou num
regime de verdade aceito e inquestionável, no interior do qual e por meio dele se produz
subjetividades. Consideramos a Educação do Campo como um acontecimento, que teve como
objetivo político a produção de um regime próprio de verdades, ao inaugurar novas
possibilidades de uso para os raros enunciados de que se dispõe. Trata-se da instauração de
uma formação discursiva singular, por meio da qual os enunciados adquirem, pelo menos
inicialmente, significações originais, que são postas em circulação e que formam o discurso
sobre a Educação do Campo.
Para darmos conta dessa empreitada, inicialmente aprofundaremos o estudo da
Educação do Campo enquanto emergência, ou seja, enquanto irrupção de um regime de
verdade, que tem seu tempo e local demarcáveis. É justamente o tratamento desse objeto
(Educação do Campo) como emergência, que nos possibilitará analisá-lo com lentes
divergentes da história tradicional. Como constamos e iremos explorar mais detalhadamente
adiante, adiantamos que essa emergência concerne muito mais do que o simples surgimento
de um objeto novo de discurso, mas de algo que se instala entre os enunciados e as práticas
que sustentam esse objeto, que se produzem e reproduzem a partir dele. De acordo com
Marton (2001, p.204):

No indagar sobre a emergência de um órgão ou de um costume, não se trata


de explicá-los pelos antecedentes que os teriam tornado possíveis, mas de
mostrar o ponto de seu surgimento; não cabe compreendê-los a partir dos
fins a que se destinariam, mas detectar um certo estado de forças em que
aparecem (MARTON, 2001, p. 204).

Serão duas as principais ferramentas foucaultianas que nos permitirão realizar as


primeiras análises do arquivo da Educação do Campo, enquanto saber/poder que produz
objetos e práticas, em meio aos quais os sujeitos são produzidos e se produzem a si mesmos: o
acontecimento e o enunciado. Não podemos nos furtar de aqui lembrar que, para Foucault
113

(2015a), todo enunciado deve ser considerado um lance, um movimento agonístico no


combate discursivo, uma estratégia para o estabelecimento e a circulação de verdades, que
têm o poder (ou o exercem) de dominar.
De acordo com Mouffe (2012), o movimento agonístico de combate que se trava no
interior da atual democracia, não se constitui da mesma maneira que uma batalha entre
inimigos, pois ele não se configura exatamente como movimentos antagônicos, mas como
uma luta entre adversários, que a autora considera como inimigos amistosos. São assim
considerados, inimigos amistosos, porque o conflito não objetiva a total aniquilação do
adversário, mas o domínio de um espaço simbólico que é comum aos dois lados que se
encontram em disputa. Ou seja, esses adversários compartilham um espaço simbólico comum,
mas cada qual deseja organizar esse espaço simbólico de um modo diferente. É desse modo
que a autora considera o paradoxo democrático, no qual o campo político da democracia se
transforma num terreno de disputa entre inimigos amistosos, no qual cada lado da relação
aceita a participação do outro, desde que essa participação se realize, no espaço simbólico
daquele que o organizou.
Para tanto, faremos uma primeira aproximação de nosso objeto geral de estudo, de
maneira a demarcá-lo enquanto acontecimento, como algo que irrompe num determinado
contexto e pode ser demarcado temporalmente, em meio a esse agonismo político de uma
democracia recém revigorada. É desse modo que apresentamos no tópico a seguir, a
materialização do objeto geral de nosso estudo, isto é, a transformação do projeto inicial da
Educação Básica do Campo em seu surgimento como política pública nacional.
Apresentamos de uma forma rápida e resumida, as condições de implantação do primeiro
programa de Educação do Campo, pois a sua discussão pormenorizada foge aos objetivos do
presente estudo. Trataremos apenas de apontar o caminho estratégico inicial, por meio do qual
o projeto de Educação do Campo pôde ser institucionalizado como política pública para que,
no tópico seguinte, possamos dar sequência na análise das circunstâncias com que esse
projeto foi sendo adaptado, de forma a ser transformar numa política pública nacional e
ampla, extrapolando o âmbito dos assentamentos da reforma agrária.
114

4.1 A proveniência do discursivo sobre a Educação do Campo no Brasil

Nesse tópico abordamos a principal estratégia prática adotada no âmbito institucional


como política de atendimento educacional para a Reforma Agrária, mas que serviu de base
para lançar as ideias iniciais do projeto de Educação do Campo, como forma a operacionalizá-
lo em política pública educacional. Pode-se verificar que, não foi âmbito do Ministério da
Educação que essa proposta popular de educação foi recepcionada inicialmente, pois ela
surgiu no cenário político educacional como uma iniciativa, certamente que dos movimentos
sociais e sindicais do campo, mas acolhida pelo Ministério Extraordinário de Política
Fundiária, que hoje se denomina: Ministério do Desenvolvimento Agrário. Foi no âmbito
desse órgão do poder executivo, que tratava especificamente de questões fundiárias no país,
que se concebeu inicialmente o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA). Essa proposta seminal de educação popular serviu como base experimental,
para o futuro lançamento da política pública nacional, destinada a atender as populações
rurais fora do contexto da Reforma Agrária, que se denominaria de Educação do Campo.
O PRONERA surgiu como uma proposta de institucionalização de práticas
educacionais que algumas instituições de ensino superior já haviam realizado, por iniciativa
própria e sem contar com um fomento específico, no intuito de desenvolver projetos
educativos no interior dos assentamentos da Reforma Agrária. O ponto inicial para a criação
do PRONERA foi dado durante o I ENERA, evento realizado no mês de julho de 1997, na
UNB, que reuniu professores de mais de 20 universidades brasileiras que estavam
empenhados no desenvolvimento de projetos educacionais, sobretudo de alfabetização de
jovens e adultos e de capacitação técnica dos trabalhadores rurais nos assentamentos.
Participaram também desse evento, representantes do Setor de Educação do MST, a UNICEF,
a UNESCO e a CNBB (BRASIL, 2004).
Ainda no ano de 1997, no mês de outubro, reuniram-se na sede da UNB,
representantes de outras cinco universidades brasileiras (UFRGS, UNISINOS, UNIJUÍ, UFS
e UNESP), para discutirem a participação das instituições de ensino superior no processo
educacional dos assentados da Reforma Agrária. Os participantes dessa reunião identificaram
que, naquele momento histórico, as prioridades educacionais para os assentamentos eram as
seguintes: o combate aos altos índices de analfabetismo e aos baixos índices de escolarização
dos trabalhadores assentados pela Reforma Agrária. Durante esse evento foi eleito um grupo
que coordenou a construção do projeto de educação para os assentamentos, documento esse
115

que foi apresentado no III Fórum do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras,
realizado nos dias 6 e 7 de novembro de 1997. O projeto inicial foi aprovado pelos reitores
das universidades participantes daquele evento e encaminhado para avaliação do Ministério
Extraordinário de Política Fundiária, tendo em vista que o projeto se constituía numa proposta
a ser desenvolvida nos assentamentos da Reforma Agrária, que eram consideradas áreas de
responsabilidade Federal.
Desse modo, os proponentes do projeto identificaram certa incompatibilidade jurídica,
para que o mesmo fosse recepcionado pelo MEC e isso poderia ocasionar alguns entraves
burocráticos, tendo em vista que a responsabilidade pelas áreas de assentamento era da União,
mas a operacionalização da educação, sobretudo a educação básica, constituía-se numa
atribuição dos Estados e Municípios. Sendo assim, a estratégia encontrada para a implantação
dessa proposta, foi por meio do seu financiamento via Ministério Extraordinário de Política
Fundiária, que no ano seguinte, criou o PRONERA42, cujo objetivo era o de:

Fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária estimulando, propondo,


criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, utilizando
metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista
contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável (BRASIL,
2004).

Verifica-se que, com a implantação do PRONERA, os movimentos sociais e sindicais


do campo, juntamente com o apoio técnico e pedagógico oferecido pelas universidades,
garantiram a criação de uma política pública inicial, que assegurou o acesso à educação no
interior dos assentamentos da Reforma Agrária. A discussão sobre a ampliação dessa
conquista inicial, de forma a transformá-la numa política pública nacional para além dos
assentamentos da Reforma Agrária, de forma que abrangesse toda a população rural
brasileira, foi realizada no âmbito da I Conferência Nacional, denominada: Por Uma
Educação Básica do Campo, que doravante nos referimos apenas como I Conferência
Nacional.
É justamente a ampliação dessa proposta popular de educação, iniciada nos
assentamentos da Reforma Agrária e posteriormente transformada em política pública
nacional, que interessa ao presente estudo. Sendo assim, no tópico seguinte, analisaremos a
transformação dessa proposta inicial de educação popular em política pública, para além dos

42
O Ministério Extraordinário da Política Fundiária, por meio da Portaria nº 10/98, de16 de abril de 1998, criou
o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), vinculando ao Gabinete do Ministro e
aprovou o seu Manual de Operações.
116

assentamentos, que inicialmente ficou materializada na forma de um relatório, elaborado ao


final daquela I Conferência Nacional.

4.2 A emergência do discurso sobre a Educação do Campo no Brasil

Nesse subitem abordamos o discurso da I Conferência Nacional, realizada no período


compreendido entre os dias 27 a 31 de julho de 1998, no qual se concebeu o primeiro registro
discursivo do compromisso coletivo, para a ampliação do projeto educacional, inicialmente
implantado nos assentamentos da Reforma Agrária, de forma a atender toda a população do
campo. Esse relatório demarca o primeiro registro escrito de um compromisso coletivo, com a
ampliação do projeto popular e a sua transformação em política pública de Educação do
Campo para todo país. Esse relatório se constitui no nosso arquivo inicial, do qual retiramos
os indícios das formações discursivas, nas quais o enunciado “Educação do Campo” se
apoiará e, a partir das quais, será possível garantir a sua circulação para além do âmbito dos
assentamentos e dos movimentos sociais e sindicais.
Essa Conferência foi realizada na cidade de Luziânia, no estado de Goiás, na qual
participaram representantes de cinco instituições: a CNBB, o MST, a UNICEF, a UNESCO e
a UNB. Ao final desse evento, o grupo participante tratou de confeccionar um relatório, com
os compromissos e os desafios que deveriam ser enfrentados para a construção e efetivação
do projeto de Educação do Campo para o Brasil. Tomamos esse registro discursivo,
materializado no relatório da I Conferência, como ponto inicial para realização de nossas
análises, de modo a demarcarmos precisamente as posições-sujeito dos participantes, uma vez
que o “lugar de onde se fala” é considerado um ponto crucial para a análise do discurso,
quando realizada sob uma perspectiva foucaultiana.
Como se pode verificar, o relatório da I Conferência Nacional foi assinado por cinco
instituições diferentes e, por essa razão, podemos admitir que existam múltiplas instituições
que proferiam um discurso inicial sobre a Educação do Campo. As posições que os sujeitos
ocuparam no interior desse discurso institucional são plurais, pois correspondem à sua
posição sócio-histórica e a uma identificação institucional particular. Dessa maneira, embora
essas posições-sujeito produzam um discurso que fala e faz falar de um mesmo objeto, que
ponham em circulação enunciados comuns, suas significações não são unívocas, isto é, a
117

partir de cada posição institucional desses sujeitos, os enunciados postos em circulação


assumem diferentes significados (ORLANDI, 2015).
Devido aos princípios norteadores diversos, sobre os quais cada uma das cinco
instituições participantes dessa Conferência se fundamentou, pode-se admitir que o discurso
sobre a Educação do Campo emergiu em meio a uma disputa política pelos sentidos que esses
enunciados podiam e deviam assumir. Há que se admitir a instauração de um discurso
estratégico, atravessado agonisticamente por pelo menos dois princípios políticos
fundamentais. De um lado, o discurso revolucionário dos movimentos sociais e sindicais, que
concebiam o mercado como um objeto historicamente opressor e que devia ser controlado
pela razão de Estado. De outro, o discurso da governamentalidade neoliberal, defendido pelas
agências técnicas da ONU, que se fundamentam na via utilitária e natural dos mecanismos de
mercado, que não deviam sofrer qualquer tipo de intervenção, por parte da racionalidade do
governo, a menos que essas interferências visassem à garantia do livre funcionamento dos
mecanismos da competição “natural”.
O discurso revolucionário, construído pelos movimentos sociais e sindicais, teve seus
fundamentos democráticos embasados na ideia de igualdade, de uma identidade entre
governados e governantes e cuja soberania se construía por meio da vontade popular. Por
outro lado, o discurso da governamentalidade neoliberal assumiu a validade última do
processo democrático, no império da lei, na defesa dos direitos humanos e no respeito às
liberdades individuais. Desse modo, como pudemos verificar no capítulo precedente, as
agências internacionais buscaram efetuar os ajustes educacionais necessários para a adaptação
da sociedade civil ao inevitável destino da globalização, não importando para tais organismos
questionar as relações de poder, que eram construídas naquele processo (MOUFFE, 2012).
Nosso ponto de partida para a análise desse relatório é a ideia de Munarim (2010, p.
10) de que a Educação do Campo se tratou “[...] de uma concepção de educação forjada a
partir da luta pela terra e por políticas públicas empreendida pelos movimentos e organizações
comunitárias e sindicais do campo”. Por intermédio do apoio numa concepção foucaultiana de
discurso, podemos admitir que, embora não ignoremos a participação efetiva dos movimentos
sociais e sindicais, na consumação da política nacional de educação do campo, não podemos
considerar esse movimento de resistência como fator único e determinante para a construção
dessa política educacional. Sendo assim, como se observa nos capítulos anteriores, num
contexto da governametalidade, pode-se até admitir que o discurso revolucionário dos
movimentos sociais e sindicais do campo possibilitou a produção discursiva de um objeto
inédito: a Educação do Campo. Mas a sua emergência no interior de um discurso estratégico,
118

somente se tornou possível quando o discurso revolucionário pôde ser recepcionado no


interior de outras instituições.
Devemos admitir que, de uma maneira isolada e solitária, dificilmente o MST e as
organizações sociais do campo conseguiriam validar seu discurso revolucionário,
transformando-o naquilo que Foucault (2014a) denomina de um “discurso sério”, em defesa
de uma política educacional específica para o campo. Há de se reconhecer a necessidade desse
discurso revolucionário buscar seus fundamentos em três grandes instituições, todas elas
consagradas pelo direito ao uso do discurso verdadeiro: a Igreja Católica (com suas verdades
transcendentais); a universidade (com suas verdades científicas e pedagógicas); e as agências
da ONU (com suas verdades técnico/científicas, apoiadas em ferramentas estatísticas).
A Igreja Católica por meio da CNBB e a Pastoral da Terra, desde meados da década
de 1970 apoia os movimentos sociais e sindicais no meio rural ao oferecer não somente um
apoio espiritual, mas também um suporte político e pedagógico. Tanto a universidade como a
UNESCO detém o privilégio sobre o domínio do discurso verdadeiro da ciência, sendo que a
universidade mantém o monopólio da produção teórica do discurso filosófico/científico e a
UNESCO possui a prerrogativa internacional sobre o levantamento e a análise dos dados
educacionais, ou seja, uma exclusividade para falar sobre a “realidade” educacional mundial
e, sendo assim, detém o domínio do discurso técnico/científico sobre a educação.
Desse modo, pode-se admitir que a emergência do discurso sobre a Educação do
Campo ocorreu de uma forma agonística no interior de e sob o apoio de pelo menos três,
sistemas estratégicos e díspares de disputa pela verdade: o discurso revolucionário (ou social
democrático), o discurso pedagógico/científico e o discurso técnico/científico neoliberal (ou
liberal democrático). O discurso revolucionário foi proferido pelos movimentos sociais e
sindicais, tendo como apoio o discurso religioso sobre libertação (CNBB), o que se poderia
chamar de um discurso original sobre a Educação do Campo. De acordo com Sofiati, Coelho
e Camilo (2018, p.121), “[...] uma forma religiosa coma a formulação do cristianismo de
libertação, a teologia da libertação, desenvolve uma relação de atração, convergência e
reforço mútuo com interesses de um grupo social e uma forma intelectual que se configura no
marxismo revolucionário”.
O apoio pedagógico/científico, para a emergência do discurso sobre a Educação do
Campo, foi proporcionado pela UNB, com sua tradição em pesquisa ensino e extensão. Por
fim, podemos identificar o discurso técnico/científico da UNESCO, cujos fundamentos
liberais democráticos se basearam numa possibilidade de se conciliar o desenvolvimento
social às necessidades impostas pela globalização, de forma que o desenvolvimento social e o
119

desenvolvimento econômico se produzissem circularmente. Por esse ponto de vista


agonístico, nota-se que o discurso sobre a Educação do Campo emergiu numa dimensão
político/discursiva de interesses institucionais conflitantes, no interior de uma trama
discursiva em que os enunciados circularam, desde o início, segundo uma heterogeneidade de
significações possíveis e de interesses políticos e econômicos, numa batalha pela organização
do espaço simbólico (MOUFFE, 2012).
Feitas essas primeiras ressalvas quando à heterogeneidade e aos interesses estratégicos
que possivelmente atravessaram o discurso inicial dessa I Conferência Nacional,
identificamos que o título desse relatório evidenciou a expressão: Compromissos e Desafios.
Destacamos inicialmente o vocábulo compromissos, para verificarmos que o mesmo
expressava uma espécie de contrato, firmado coletivamente entre as instituições participantes
da Conferência. O termo compromissos lembra o contrato político assumido coletivamente
entre os signatários deste evento, para recordá-los do engajamento necessário de cada um e
que todos juntos deveriam assumir para a efetivação do projeto de educação que haviam
proposto. Expressa, assim, um acordo coletivo, assumido por todos os presentes, cada um na
sua esfera de atuação social, no sentido de envidar os esforços necessários para o
cumprimento das ações propostas nos 10 itens que compunham o relatório.
Pode-se inferir que a expressão desafios estabeleceu duas condições distintas: uma
condição estrutural e um caráter provocativo. A primeira condição que se pode identificar no
uso da palavra desafio, que se refere à conjuntura estrutural, econômica e social, que
aparentemente era vislumbrada pelos proponentes e que diz respeito aos prováveis obstáculos
e às dificuldades que precisariam ser enfrentados, para que esse projeto pudesse se tornar algo
concreto. Uma segunda acepção para a expressão desafio era que, aparentemente, procurava
manifestar um caráter provocativo aos participantes ou como um encorajamento para as ações
estratégicas que o grupo precisaria empenhar, enquanto esforço político para a concretização
do contrato, do pacto firmado com a futura criação dessa política educacional, ainda
inexistente no país.
Em seu conjunto, a sentença Compromissos e Desafios recorda aos participantes da
Conferência, tanto o compromisso assumido com o projeto de instituir a Educação Básica do
Campo, como às dificuldades estruturais da política, da economia e da cultura, que seus
idealizadores enfrentariam para colocá-la em prática. Mas também poderíamos interpretá-la
no seu sentido inverso, pois diante de tantos desafios, materializados discursivamente nas
ações propostas em cada um dos 10 itens desse relatório, somente poderiam ser postos em
prática, mediante o compromisso político de ação estratégica de cada uma das instituições
120

participantes. Assim, mediante a “assinatura” desse acordo materializado no relatório da


Conferência, os compromissos e desafios, expressos no título dado ao documento do evento,
também poderia ser interpretado como desafios e compromissos.
Concomitantemente, essas duas expressões indicam a performatividade do discurso da
I Conferência Nacional, por meio da qual se fundou e buscou produzir não somente uma nova
forma ou modo de educar a população do meio rural, mas os próprios sujeitos educáveis desse
novo meio, que denominam de campo. De acordo com Ball (2005, p. 543), a performatividade
é uma luta pela visibilidade, “[...] é uma tecnologia, uma cultura e um método de
regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de
controle, atrito e mudança”. Nesse mesmo sentido, Avelino (2011, p. 98) argumenta que “o
enunciado performativo é definido por um jogo específico no qual o estatuto daquele que fala
e a situação em que ele se encontra estabelecem previamente o que se pode e o que se deve
dizer”.
Os participantes da Conferência tiveram a preocupação de registrar um preâmbulo no
relatório, com as condições necessárias para a construção do projeto de Educação Básica do
Campo pretendido pelo grupo. É justamente nessa apresentação das premissas, que antecede a
listagem dos 10 compromissos e desafios, que se pode identificar o estatuto daqueles que
estão autorizados a falar, ou seja, a posição-sujeito de quem enuncia as mudanças
educacionais esperadas. Assim, o discurso performativo no qual se baseiam os argumentos,
prefaciados na introdução do relatório, enuncia o seguinte:

Esta Conferência nos mostrou que somente é possível trabalhar por uma
Educação Básica do Campo vinculada ao processo de construção de um
Projeto Popular para o Brasil, que inclui necessariamente um novo projeto
de desenvolvimento para o campo, e a garantia de que todo o povo tenha
acesso à educação (CNBB; MST; UNICEF; UNB, 1998).

Fica evidente, nesses termos da nota de abertura do relatório, o discurso revolucionário


dos movimentos sociais e sindicais, representados naquele ato pelo MST, que reivindicava a
construção de um Projeto Popular para o Brasil, projeto esse que deveria servir de
fundamento para a Educação do Campo. De outro lado, de uma forma menos evidente, pode-
se perceber no excerto “e a garantia de que todo o povo tenha acesso à educação”, um
atravessamento dos enunciados sobre a Educação para Todos, formulados inicialmente na
Conferência de Jomtien e assumidos, como um compromisso educacional coletivo, firmado
entre os países membros, a partir da década de 1990.
121

Por meio desse jogo enunciativo, embora aparente ser um discurso eminentemente
revolucionário, são criadas as condições estratégicas necessárias para a inclusão discursiva de
toda a população camponesa no interior do projeto. É preciso lembrar que esse movimento de
inclusão de todos, no projeto inicial, traz consigo o germe do poder pastoral, característico da
governamentalidade e das necessidades de inclusão que essa razão governamental possui, de
modo a assegurar a salvação de todo o rebanho (FOUCAULT, 2008a).
Como estratégia política revolucionária, pode-se perceber que não se tratava de
simplesmente propor um projeto adaptado e/ou subordinado ao modelo de educação rural até
então vigente, mas de conceber um novo projeto, um programa educacional concatenado com
um projeto popular de maior envergadura, que era o desenvolvimento nacional por meio de
uma iniciativa popular. Esse novo projeto, todavia, caracteriza-se como um enunciado que
adquiriu outras significações, quando analisadas de uma perspectiva da posição-sujeito
representante do discurso técnico das agências da ONU. Ao que tudo indica, sob uma
perspectiva da UNESCO, esse novo, que adjetiva a substancialidade do projeto educacional
pretendido, parece indicar o ponto de apoio para a formação de um tipo específico de
sociedade e de sujeito, diferente daquele pretendido pelo discurso revolucionário.
Esse novo, quando analisado pela perspectiva da economia política, própria da
governamentalidade neoliberal, indica uma performatividade do discurso das agências
mencionadas, cujo propósito era o de incluir toda a população no interior de uma nova razão
de governo. Sob o desígnio da evidência de uma sociedade global, da qual não se podia
escapar e a que todos deviam se sujeitar, há no discurso da UNESCO, que exibia esse novo,
que promovia a inclusão, um modelo de sociedade-empresarial, no interior da qual devia
também habitar um novo homem, o homo oeconomicus, isto é, o sujeito-empresa de si mesmo
(DARDOT; LAVAL, 2016).
Dessa maneira, esse novo se conectou com a noção de desenvolvimento, sobretudo o
desenvolvimento econômico pretendido para as áreas rurais, como forma de incluir toda a
população no projeto global de desenvolvimento. No relatório dos dez anos de implantação do
Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe, o discurso técnico dos
representantes da UNESCO (1998) deixou claro que somente por meio da educação é que
seria possível garantir a equidade de condições aos povos desassistidos, de forma a lhes
garantir as condições necessárias para que esse novo homem pudesse competir e se
desenvolver no mercado global.
O que as agências multilaterais constroem, a partir dos dados estatísticos, são seleções
dentre as várias representações possíveis da organização escolar, do sistema educacional
122

como um todo, da escola e do professor em particular, a fim de produzirem esse novo homem.
Um novo sujeito, cuja performance se alinha às novas exigências do mundo do trabalho,
caracterizada pela flexibilidade, pela multifuncionalidade e pela eficiência (BALL, 2010;
DARDOT; LAVAL, 2016).
De uma posição-sujeito própria dos movimentos sociais e sindicais, a ideia de uma
Educação Básica do Campo vinculada ao processo de construção de um Projeto Popular
para o Brasil articulou-se com a esperança da participação popular, na definição política dos
rumos que o país tomou, a partir do “processo de redemocratização” ocorrido ainda na década
de 1980, que culminou com a promulgação da Constituição de 1988. Pois, como já apontamos
anteriormente, foi somente a partir dessa “abertura política” que os movimentos sociais e
sindicais ressurgiram no cenário político nacional, ao cooperarem com a definição dos direitos
e garantias expressos no texto Constitucional. Com base nesses mesmos direitos e garantias,
foi que se vislumbrou a possibilidade de um avanço, como os planos revolucionários, que
redefiniriam a política nacional, de forma a construir, assim, o tão almejado projeto popular
para o Brasil.
Essa proposta, de um projeto popular de desenvolvimento, estava alinhada aos ideais
marxistas de conquista do poder político por parte da classe trabalhadora, a partir do momento
em que essa classe se apoderasse dos meios de produção econômica, sendo que a posse da
terra consistiria num primeiro passo já conquistado pelos movimentos sociais. Processo esse
de conquista do poder que necessitava passar por uma tomada de consciência por parte do
proletariado sobre a sua situação de alienação, tanto política como material. Uma tomada de
consciência que levaria o proletariado à revolução, instituindo um novo tipo de ditadura, não
mais a do capital sobre o trabalhador, mas uma ditadura popular, uma ditadura do
proletariado. Para tanto, seria necessário propiciar, inicialmente, a desalienação cultural do
povo (no caso em questão, do povo do campo) e a sua concomitante politização, para garantir
não somente o acesso aos meios de produção (conquista essa que já estava em curso, com a
redistribuição de terras pela reforma agrária), mas também, e principalmente, à principal
ferramenta, talvez a única, de tomada de consciência do próprio estado de alienação do
indivíduo: a educação.
Sendo assim, a estratégia revolucionária desse novo projeto de desenvolvimento para o
campo estava atravessada por dois processos gerais de desalienação do camponês, um
corresponde ao eixo do trabalho no campo e o outro concernente ao eixo da própria educação
no campo. Os movimentos sociais e sindicais haviam colocado em execução a estratégia
política de desalienação das forças produtivas que estava em curso com as redistribuições de
123

terra pela reforma agrária, meio que garantia a posse dos meios de produção que, no caso do
camponês considerado no interior dos movimentos sociais e sindicais, configurava-se como o
direito à posse da terra produtiva, sobretudo para a produção agrícola. Faltava-lhes operar a
desalienação do eixo cultural, que se constituiria na garantia de acesso, por parte de toda a
população do campo43 aos meios de produção e de reprodução cultural, cujo lócus
privilegiado se constitui na escola.
De outro modo, esse projeto de inclusão, por meio do qual se buscou a garantia de
que todo o povo tenha acesso à educação, demonstra um alinhamento estratégico com uma
proposta de educação que já vinha sendo posta em prática pela UNESCO, na América Latina
e no Caribe, desde o final da década de 1980, por meio do PPE, que mantinha um
alinhamento com os objetivos da Conferência de Jomtien. Na introdução do relatório final,
que tratou sobre os 10 anos de execução desse projeto educacional da UNESCO para a
América Latina e Caribe, e que é contemporâneo ao relatório da I Conferência Nacional,
Mayor (1998, p. 7) deixou evidente que, o desafio da “[...] generalização do ensino consiste
em proporcionar uma educação de qualidade para todos, ao longo de toda a vida”, era
encontrar uma forma de “incluir os excluídos e alcançar os inalcançáveis”.
Desse modo, assim como advertem Veiga-Neto e Lopes (2007) sobre as políticas de
inclusão educacional, a estratégia de inclusão, defendida pelas agências multilaterais,
constituiu-se num projeto político de maior envergadura, instalado no interior do dispositivo
biopolítico da pedagogia, por meio do qual se buscou incorporar o projeto da Educação do
Campo e a população do campo como um todo no domínio da razão governamental. Foi isso
que se pretendeu com o discurso que queria “incluir aos excluídos e alcançar os
inalcançáveis”. Entretanto, há que se destacar que o domínio governamental da biopolítica se
diferencia do processo de dominação concebido pelo materialismo histórico, pelo fato de que
a nova razão de governo necessita de um polo de liberdade, sobre o qual exerce o controle e a
condução das condutas e, muito mais do que reprimir, produz (FOUCAULT, 2014c).
Prosseguindo a análise do discurso contido no texto do Relatório da I Conferência
Nacional e precedendo ainda os dez compromissos e desafios, encontramos a seguinte
assertiva: Nesta perspectiva, nós participantes desta conferência, assumimos, pessoal e
coletivamente, os seguintes compromissos e desafios. Destacamos, nesse excerto, o pronome

43
É preciso lembrar que, no discurso dos movimentos sociais e sindicais do campo, fica evidente que até o
momento da realização da I Conferência por uma Educação Básica do Campo, como população do campo eram
consideradas apenas as famílias dos agricultores assentamentos pela reforma agrária. Foi somente com o Parecer
nº 36, do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 4 de dezembro de 2001, que a noção de população do
campo foi ampliada, incluindo outros espaços, diferentes dos assentamentos, inclusão essa que discutiremos
mais adiante neste estudo.
124

nós, que designa um sujeito coletivo, ou seja, o conjunto das posições-sujeito que se forma no
interior das instituições participantes do evento: a CNBB, o MST, o UNICEF, a UNESCO e a
UNB. O destaque desse pronome nós, no interior do discurso dessa Conferência, faz-se
necessário porque, será justamente sobre esse ponto específico do discurso, que se verá
produzir todo o consenso sobre a Educação do Campo. Esse coletivo, representado pelo
pronome nós, constituir-se-á num mecanismo inclusivo, numa prática de captura da diferença,
por meio da qual se abstrairão todas as particularidades, a heterogeneidade e a imanência da
disputa política interna ao próprio discurso. Esse nós, presente no preâmbulo desse discurso,
possibilita, ainda, operar uma redução nos múltiplos significados possíveis, que se fazem
presentes na raridade de seus enunciados. Raridade essa que permite que um mesmo
enunciado seja utilizado tanto numa formação discursiva caracteristicamente revolucionária,
como no interior de uma formação discursiva essencialmente neoliberal (BENEVIDES,
2012).
O sujeito coletivo representado pelo pronome nós, do preâmbulo do Relatório da I
Conferência Nacional, enuncia publicamente uma demanda política em nome de um grupo,
em nome do povo do campo. Essa enunciação de uma demanda em nome de um grupo
Conein (2016) denomina de “enunciados de porta-voz”, cuja função foi a de anunciar
previamente um acontecimento político, ou de fazer circular enunciados performativos
(BALL, 2005; 2010). Desse modo, “a formulação de uma demanda pública aparece então
como um procedimento utilizado para atribuir existência política a um acontecimento” e que,
portanto,

[...] formular uma demanda pública em nome de um coletivo consiste em dar


um motivo a uma ação futura”. Desta forma, “a teoria da ação coletiva é
interior ao enunciado político” e “identificar um coletivo como povo e fazer
desse coletivo a fonte de uma demanda é um fato discursivo (CONEIN,
2016, p. 100-101).

Numa perspectiva semelhante, de acordo com Dreyfus e Rabinow (2013, p. 172), o


pronome nós coloca as instituições participantes da I Conferência Nacional numa posição de
destaque, de maneira a ser-lhe concedido o benefício de locutor desse evento, numa “[...]
posição de intelectual universal que fala para a humanidade. O pronome nós estabelece um
benefício do locutor, que coloca esse intelectual universal fora do poder e no interior da
própria verdade”. Verifica-se que essa condição de pensador, de sábio que se acha autorizado
a falar em nome de todos, constitui-se a partir de uma perspectiva na qual o poder é visto
como algo eminentemente repressivo, separado da verdade. O intelectual enquanto porta-voz
125

da consciência esclarecida é alguém que se vê autorizado a proferir o discurso verdadeiro,


utilizando mensagens que afirmam a necessidade de ruptura com a ordem repressiva do
poder, uma posição-sujeito que apela para o discurso da necessidade de se estabelecer uma
nova ordem econômica, política e social.
O nós, que enuncia o discurso da Educação do Campo na I Conferência Nacional,
constitui-se numa posição-sujeito paradoxal, pois o apoio institucional, tanto dos movimentos
sociais e sindicais como do discurso técnico/científico, faz com que esse sujeito acredite estar
do lado do conhecimento e, desta maneira, fora e/ou isento das malhas do poder. Um sujeito
coletivo que se coloca numa posição discursiva privilegiada tal que, por estar de posse de um
conhecimento acerca da “realidade” do campo, acredita não se deixar aprisionar pela
dimensão ideológica do poder e, desse modo, estar de posse do próprio poder. Ao enunciar
um discurso, cujas bases se apoiam na evidência científica (os saberes da área da geografia),
assim como na validação institucional e acadêmica, propiciada pelos organismos
internacionais (UNB, UNICEF e UNESCO), o sujeito coletivo nós, que faz emergir o
enunciado “Educação do Campo”, realiza essa ação do interior de um regime de verdade
próprio do saber técnico/científico e, desta maneira, consegue se articular numa ordem do
discurso da veridicção e do incontestável.
Diferentemente da hipótese repressiva, na qual se acredita numa ideologia dominante
que possibilita ao poder agir de forma a oprimir o sujeito, justamente porque o saber lhe está
oculto, percebe-se que o regime de verdade sobre a Educação do Campo não está separada do
poder. Pelo contrário, o regime de verdade, no qual se sustenta o enunciado “Educação do
Campo”, nasce justamente no interior das tramas do poder institucionalizado e, desta maneira,
necessita desse suporte institucional para que se faça o poder/saber circular. Para falar de
outro modo, somente a partir do momento em que a Educação do Campo se estabeleceu
enquanto regime de verdade, é que foi possível a colocação de uma rede de poder/saber em
circulação.
Foucault (2014b, p. 239) considera que “o poder, longe de impedir o saber, o produz”
e sugere, ainda, que a questão que mais lhe incomoda nas análises “[...] que privilegiam a
ideologia é que sempre se supõe um sujeito humano, cujo modelo foi fornecido pela filosofia
clássica, que seria dotado de uma consciência de que o poder viria a se apoderar”. Nesse
ponto o autor se interroga sobre a própria verdade sobre o sujeito do Iluminismo, que se
considera fora e anterior ao poder.
Desta maneira, sem que se perceba explicitamente um confronto estratégico, no
interior desse discurso aparentemente único, que fala e faz falar a Educação do Campo,
126

operam enunciados que, devido à sua raridade (FOUCAULT, 2015a), põem em


funcionamento, pelo menos, duas formações discursivas díspares: uma que poderíamos
considerar como revolucionária e outra que se denominar de neoliberal. Desde a emergência
do discurso sobre a Educação do Campo é possível de se observar o estabelecimento de uma
luta estratégica entre essas duas formações discursivas, uma disputa política pela construção e
pelo domínio dos sentidos próprios para os mesmos enunciados, cada uma tratando de um
sujeito específico e da respectiva posição idealizada desse sujeito, na (re)construção política
de uma nova sociedade.
As verdades que os enunciados produzem, no interior de cada formação discursiva,
polarizam-se agonisticamente e concorrem para uma disputa estratégica quanto aos
significados do discurso. Como adverte Foucault (2014a), não é pelo poder que esse conflito
se estabelece no interior do campo discursivo, no qual emerge a Educação do Campo, mas
pelo direito mesmo de posse e de uso político desse discurso. É pelo direito à posse do
discurso que se luta, pois essa posse (mesmo que temporária) do discurso é o que possibilita a
cada um dos adversários estabelecer, estrategicamente, o regime de verdade que mais lhe
convêm, sendo que “a cada movimento de um dos adversários, corresponde o movimento do
outro” (FOUCAULT, 2014b, p.236).
Os movimentos sociais e sindicais propõem, por meio de sua perspectiva teórica
fundamentada no materialismo histórico, um projeto da Educação do Campo dedicado à
desalienação material e cultural do camponês, que deveria se materializar num processo de
inclusão, por meio do qual se garantiria que todo o povo tenha acesso à educação. Há que se
salientar o compromisso assumido com a garantia de que todo o povo tenha acesso à
educação, que se constitui num engajamento para prover uma nova educação à população do
campo, necessária à construção de um projeto popular de sociedade também novo. Entretanto,
para o desenvolvimento desse novo projeto de educação para o campo, não se imagina ou se
propõe uma alternativa à estrutura educacional estabelecida, de forma a romper como o
regime de saber/poder vigente. Pelo contrário, o que se prevê com o desenvolvimento desse
novo projeto, é a sua integração no interior do próprio modelo educacional em vigor, que tem
na escola como um lócus exclusivo de desenvolvimento do processo de ensino e
aprendizagem.
A pretensão de sustentar a continuidade do modelo institucionalizado de escola, fica
evidente no decorrer de todo o Relatório ora analisado, pois os idealizadores dessa
Conferência tiveram a preocupação de elaborar um texto ao qual se vincula o discurso acerca
dos compromissos e desafios anteriormente mencionados, ao papel que a instituição escolar
127

desempenharia no processo de implementação desse Projeto de Educação Popular para o


Brasil. O texto desse relatório foi composto de uma sequência numerada de dez
compromissos que os participantes da Conferência assumiram coletivamente, a partir deste
evento. Para cada um desses compromissos, houve o cuidado de se construir uma frase, de
maneira a esclarecer os desafios que deveriam ser vencidos, para que o projeto fosse posto em
prática. Após esses compromissos e desafios, o texto tratou de pontuar a função que a escola
desempenharia nesse processo de construção do novo projeto.
Esse novo projeto foi abordado no decorrer dos dez compromissos e desafios, listados
na sequência do relatório, por meio dos quais se pode perceber a crença no potencial
transformador da sociedade pela educação, cuja instituição considerada como responsável
pelo desenvolvimento desse processo educacional transformador, necessariamente, seria a
escola. Dessa maneira, enquanto cada um dos itens do Relatório enuncia um compromisso,
assumido coletivamente por todos os presentes, quanto à implantação da Educação Básica do
Campo, os desafios, quanto à efetivação desse projeto, são atribuídos à instituição escolar.
Sendo assim, após cada um dos compromissos postos como imperativos para a Educação do
Campo, o relatório traz nitidamente demarcados os desafios que deverão ser enfrentados pela
instituição escolar, que deve funcionar como um ponto de articulação entre o sujeito
camponês e a política de desenvolvimento que se estava propondo.
Antes da listagem dos compromissos e desafios assumidos naquela Conferência, o
relatório traz a seguinte assertiva: Nesta perspectiva, nós participantes desta conferência,
assumimos, pessoal e coletivamente, os seguintes compromissos e desafios. Observa-se que
essa parte do texto da Conferência de trata ratificar o acordo coletivo, como uma espécie de
discurso performativo em que se busca construir aquilo que ainda não existe. É por meio
desse acordo que se busca conduzir todos os presentes na direção de um engajamento efetivo,
de modo que os objetivos e as metas para a construção do projeto de Educação do Campo
para o Brasil, discutidos naquele encontro, fossem colocados em prática. A seguir listamos os
10 compromissos fixados na Conferência em questão:

1. Vincular a prática de Educação Básica do Campo com o processo de


construção de um Projeto Popular de desenvolvimento nacional;
2. Propor e viver novos valores culturais;
3. Valorizar as culturas do campo;
4. Fazer mobilizações em vista da conquista de políticas públicas pelo direito
à Educação Básica do Campo;
5. Lutar para que todo o povo tenha acesso à alfabetização;
6. Formar Educadoras e Educadores do Campo;
7. Produzir uma proposta de Educação Básica do Campo;
128

8. Envolver as comunidades nesse processo;


9. Acreditar na nossa capacidade de construir o novo;
10. Implementar as propostas da conferência.

O sexto compromisso, Formar Educadoras e Educadores do campo, é o que nos


interessa de forma mais específica, pois ele será a base para a construção de todo o dispositivo
pedagógico destinado à formação de professores do campo e, dessa maneira, marca também a
emergência de nosso objeto específico de estudo, o Procampo. Esse compromisso de
formação dos professores do campo se articula em torno do seguinte imperativo: A Educação
do Campo deve formar e titular seus próprios educadores, articulando-os em torno de uma
proposta de desenvolvimento do campo e de um projeto político-pedagógico específico para
suas escolas (CNBB; MST; UNICEF; UNB, 1988. Grifos nossos). Podemos dizer que esse
compromisso com a formação de professores para o campo, assumido a partir da I
Conferência Nacional, possui um alinhamento estratégico com as recomendações do
PROMEDLAC, coordenado pela UNESCO durante o decênio 1987-1997.
Pode-se conferir a evidência desse alinhamento estratégico entre a política de
formação de professores, pretendida e expressa de forma imperativa no projeto da
Conferência Por uma Educação do Campo e o PROMEDLAC, quando analisamos o relatório
de encerramento do PPE, emitido em 1998 pela UNESCO, que, inclusive, era contemporâneo
àquela Conferência. Nesse relatório, especificamente no subitem 2.8, tratou-se justamente do
papel que se creditava àquela agência internacional na formação docente para a América
Latina e Caribe. A partir do balanço das realizações dos dez anos de execução do PPE na
região latino-americana e caribenha, nesse relatório ficaram expressas pretensões sobre as
melhorias nas condições de trabalho docente, assim como as recomendações acerca da
formação de professores para as áreas rurais:

[...] promover a formação de professores através do trabalho conjunto entre


as instituições de pesquisa educacional e os centros de formação, a
realização de pesquisas nas quais participa os educadores e a formação de
professores nas áreas rurais, urbano-marginais e bi-culturais, assim como, a
formação de planejadores, administradores e supervisores dos níveis
centrais, intermediários e locais (UNESCO, 1998, p. 63).

No conjunto desse excerto percebe-se a preocupação daquela agência internacional


com a melhoria na formação docente, em geral, por meio do trabalho conjunto dos centros de
formação e de instituições de pesquisa, ou seja, uma espécie de convênio entre os centros
universitários ou as faculdades isoladas com as universidades. Semelhante atenção da
129

UNESCO estava voltada à necessidade de formação de professores para as áreas rurais,


urbano-marginais e bi-culturais. Essa preocupação se baseava numa materialidade discursiva
e não-discursiva, que se evidenciava nos censos demográficos da educação, demonstrando
uma clara diferença entre o nível de formação dos professores de áreas rurais, quando
comparados com os que lecionavam em áreas urbanas.
De acordo como o Censo Escolar de 1998, o Brasil possuía uma quantidade de 53.430
professores, que lecionavam de 5ª à 8ª série (hoje o segundo ciclo da Educação Fundamental)
em escolas rurais. Naquele mesmo ano, havia um total de 6.892 professores que atuavam no
ensino médio, como docentes de escolas rurais brasileiras, sendo que o censo de 1998 não
apresentou informações pormenorizadas sobre o nível de formação desses professores (INEP,
1998). Esses dados referentes ao nível de formação docente se evidenciaram apenas no censo
de 2002, ao demonstrar que apenas 42% dos professores que lecionavam de 5ª à 8ª série, em
escolas rurais, eram formados em nível superior. Dos professores de ensino médio, que
atuavam como docentes de escolas rurais, esse percentual era de 78%.
Ou seja, no início do novo milênio, havia ainda um percentual elevado de professores
em exercício nas escolas rurais brasileiras que não possuíam a desejada formação superior,
estabelecida pela Lei 9394/96 (LDB), sendo esses percentuais mais elevados no ciclo
compreendido entre a 5ª e a 8 série. Nas áreas rurais a deficiência de formação dos
professores se mantinha muito superior quando comparada com as escolas urbanas, pois como
apontava o relatório do INEP, os professores de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental de área
urbana que possuíam formação em nível superior, representavam 79,1%, sendo que no ensino
médio, esses valores chegavam a de 89,5% (INEP, 2002).
No sexto compromisso da I Conferência Nacional, que trata do imperativo de a
Educação do Campo formar e titular sues professores, ficou expressa, também, a atribuição de
um desafio à instituição escolar. A escola do campo é quem deveria assumir para si mesma a
representação de uma identidade camponesa, de forma a construir essa mesma identidade nos
alunos do campo: A Escola que forma as educadoras/os educadores deve assumir a
identidade do campo e ajudar a construir a referência de uma nova pedagogia (CNBB; MST;
UNICEF; UNB, 1988. Grifos nossos). De acordo com Caldart (2011a, p. 157), a escola tem
justamente essa função de construtora de uma identidade camponesa, pois como afirma a
autora, “a escola do campo tem que ser um lugar onde especialmente as crianças e os jovens
possam sentir orgulho dessa origem e desse destino”.
Essa mesma autora comenta o discurso da I Conferência Nacional e esclarece sobre a
função dessa nova pedagogia, que a escola do campo deveria ajudar a construir: “pedagogia
130

quer dizer o jeito de conduzir a formação de um ser humano” (CALDART, 2011a, p. 98).
Esse aspecto formativo da pedagogia contemporânea, de que a autora menciona como o jeito
de conduzir a formação de um ser humano, constitui-se numa extensão ou numa continuidade
do modelo cristão de poder. Trata-se de uma transposição do modelo de poder pastoral, para o
interior da razão governamental, por meio do qual o governo dos homens assume uma função
moral: a de conduzir as condutas (FOUCAULT, 2008a).
No curso ministrado em 1975, intitulado “Os anormais”, especificamente na aula do
dia 19 de fevereiro, Foucault (2013b, p. 152), esclarece sobre o momento histórico no qual se
deu essa apropriação do poder pastoral e a sua transformação em técnica de governo, em
técnica de condução das condutas:

No momento em que os Estados estavam colocando o problema técnico do


poder a exercer sobre os corpos e dos meios pelos quais seria efetivamente
possível pôr em prática o poder sobre os corpos, a Igreja, de seu lado,
elaborava uma técnica de governo das almas, que é a pastoral, a pastoral
definida pelo concílio de Trento e retomada, desenvolvida em seguida por
Carlos Bartolomeu.

A genealogia do governo do Ocidente, elaborada por Foucault (2008a), esclarece


sobre essa apropriação da técnica de governo das almas pelo Estado e a sua correspondente
transformação em técnica de condução das condutas humanas. Foi justamente essa
apropriação do poder pastoral e a sua transformação em governo das condutas dos homens,
que possibilitou a construção, no final do século XVI, de uma nova razão de Estado e a sua
posterior transformação, no final do século XVIII, em razão governamental.
Nesse sentido, a pedagogia surgiu como extensão do poder governamental que,
enquanto técnica de formação humana, exerce seu poder não somente efetuando o
direcionamento moral das condutas dos educandos, mas como uma como uma forma de poder
que “[...] se exerce sobre a vida cotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categoria,
designa-os por sua individualidade própria, prende-os à sua identidade, impõe-lhes uma lei de
verdade que é preciso neles reconhecer” (FOUCAULT, 2014d, p. 491).
De acordo com Caldart (2011a), o desafio da escola do campo, por meio da sua nova
pedagogia, seria justamente a formação de uma nova identidade, isto é, a construção de uma
identidade camponesa e a concomitante produção de um novo sujeito, que se assume a si
mesmo como camponês, pois como assevera a autora: “os sujeitos da educação do campo são
os sujeitos do campo” (CALDART, 2011a, p. 150). Para tanto, a possibilidade da construção
dessa outra identidade, isto é, a produção de um novo sujeito camponês, dava-se por meio da
131

escola do campo, que deveria ajudar a construir a referência de uma nova pedagogia que, de
acordo com Caldart (2011b), tratava-se de uma forma de educar em movimento.
Ainda de acordo com Caldart (2011b), essa nova pedagogia não significava,
entretanto, a invenção propriamente dita de uma pedagogia inédita, mas de trabalhar com as
matrizes pedagógicas já existentes de uma maneira singular. Considerando os diversos
modelos pedagógicos que se foram construindo ao longo da história humana, essa nova
pedagogia propunha uma forma de educar em movimento, que “[...] deixa que a própria
situação educativa específica se encarregue de mostrar quais precisam ser mais enfatizadas
num momento ou noutro” (CALDART, 2011b, p.98).
Sendo assim, o modelo pedagógico no qual a Educação do Campo se inspirou,
consistia numa forma popular de educar, utilizada inicialmente pelas famílias de produtores
rurais e, posteriormente, assumida como modelo pedagógico para os movimentos sociais e
sindicais que, desde o final da década de 1960, serviu como uma espécie de resistência, de
modo a garantir o acesso à educação para uma parcela considerável da população rural.
Tratava-se de um modelo pedagógico conhecido como Pedagogia da Alternância, que foi
utilizado inicialmente no Brasil por famílias de agricultores nordestinos, como forma de
garantir que seus filhos pudessem frequentar a escola, sem precisar abandonar o modo de vida
do meio rural. Segundo Caldart (2011b, p. 104), o objetivo dessa pedagogia em movimento é
“[...] integrar a escola com a família e a comunidade do educando”, de maneira que se pense a
escola do campo, fazendo dois movimentos distintos e complementares, em regime de
alternância:

o tempo escola, onde os educandos têm aulas teóricas e práticas, participam


de inúmeros aprendizados, se auto-organizam para realizar tarefas que
garantam o funcionamento da escola, avaliam o processo e participam do
planejamento das atividades, vivenciam e aprofundam valores;
o tempo comunidade, que é o momento onde os educandos realizam
atividades de pesquisa da sua realidade, de registro desta experiência, de
práticas que permitem a troca de conhecimentos nos vários aspectos. Esse
tempo precisa ser assumido e acompanhado pela comunidade Sem Terra
(CALDART, 2011b, p. 105, grifos nossos).

É justamente essa forma popular de educação que nos interessa analisar a seguir, por
percebermos que se trata de uma estratégia política, elaborada pelas famílias dos agricultores,
como forma de resistência ao modelo de educação rural que vinha sendo proposta para o país,
desde a década de 1930. Um modelo educacional que se baseava na extensão de um modo de
vida urbano e que acabava por excluir boa parte da população rural, dos processos formais de
132

educação. Sendo assim, identificaremos a Pedagogia da Alternância, pelo menos na sua


concepção inicial, não somente como uma forma de resistência ao modelo dominante de
educação, de escola e de processos educacionais, mas como um movimento de profanação da
educação rural.

4.3 A pedagogia da alternância: uma forma de profanar a educação rural

Nesse subitem buscaremos efetuar uma maior aproximação de nosso objeto geral de
pesquisa, de modo a percebermos o movimento estratégico primordial que possibilitou a
abertura de brechas no interior do modelo institucionalizado de educação e que contribuiu
para a construção discursiva da Educação do Campo. Trataremos brevemente da Pedagogia da
Alternância, enquanto estratégia prática de desenvolvimento de uma educação popular,
construída a partir do movimento de resistência ao modelo institucionalizado e excludente de
educação. Considerando esse modo adaptado de educar, inventado pelas comunidades de
agricultores que, de uma forma inédita, desvincula o processo educativo dos espaços e tempos
institucionalmente demarcados pela escola, o que nos permite analisá-lo como um movimento
de profanação do dispositivo pedagógico.
De acordo como Agamben (2007), historicamente, no âmbito do direito romano, a
consagração dos objetos consistia na passagem de algo pertencente ao ambiente humano para
uma esfera divina. Aos homens não era permitido tocar naquilo que se considerava sagrado,
sob o risco de um contágio profano e, caso esse contato ocorresse, a coisa tocada deixaria de
pertencer ao universo sagrado e deveria ser restituída ao uso comum. Desse modo,
poderíamos afirmar que a institucionalização, assim como a formalização do processo
educacional que, como nos aponta Ramírez-Nogueira (2011), teve início na Europa no século
XVIII, colocou a educação sob um domínio exclusivo dos espaços escolares e transformou a
sociedade ocidental, a partir da Modernidade, numa sociedade educativa.
Essa retirada do processo educacional do interior de um uso comum e a sua colocação
no interior de um espaço institucional, exclusivamente construído para esse fim e sob o
domínio do Estado, traz consigo uma assinatura escatológica e teleológica, que mantém esse
objeto numa condição sacralizada (AGAMBEN, 2016). A assinatura escatológica diz respeito
à condição de que a educação deve sempre conduzir o sujeito a um fim, seja esse fim a
salvação individual num mundo extraterreno e sobrenatural, seja ele (o fim) a salvação
133

material aqui mesmo nesse mundo, ambas localizadas no horizonte do porvir. A assinatura
teleológica corresponde ao estabelecimento de metas, de procedimentos e de objetivos
educacionais, que servem como uma espécie de guia para que a humanidade chegue ao fim
(escatológico) desejado.
Assinatura é um conceito desenvolvido por Agamben (2019), que designa um
deslocamento do significante e do signo, sem, no entanto, produzir uma ruptura semântica de
maneira a mudar o seu significado. É por meio dessa assinatura que ocorre o deslocamento
dos signos e dos conceitos, da esfera religiosa para o âmbito da educação secularizada, sem
que se produza uma ruptura semântica deles. Em outros termos, as assinaturas religiosas da
escatologia e da teleologia agem como elementos que ligam os diferentes de tempos e
espaços, transpondo os significados dessas assinaturas de uma esfera religiosa para o contexto
educacional.
Como nos adverte Agamben (2007, p. 68), a secularização “é uma forma de remoção
que deixa intactas as forças, que se limita a deslocá-las de um lugar a outro” e, sendo assim, o
naturalismo que se presume ser próprio das instituições modernas, conserva no interior delas
um tipo de transcendentalidade, que nada mais é do que a continuidade da antiga assinatura
do sagrado (RUIZ, 2013). É desse modo que se pode afirmar que a educação se secularizou
com o advento da Modernidade, ao deixar de pertencer a um universo estritamente religioso,
mas manteve a sua assinatura escatológica e teleológica, o que permitiu que ela fosse
novamente aprisionada no interior da instituição escolar, constituindo-se, a partir do século
XVIII, novamente num modelo sacralizado de educação, não mais sob o domínio religioso,
mas estatal.
Considerando-se que, em sua forma institucionalizada, o Estado acabou por privilegiar
um modelo urbano de educação, cujos espaços, tempos e conteúdos serviram como regra
geral para a sua universalização de todo o processo educativo. Em muitos casos, esses espaços
e tempos, assim como os conteúdos programáticos, não atendiam às necessidades específicas
da população rural, tendo em vista que o seu modo de vida e de produção econômica depende
de um ciclo natural. A vida das famílias de agricultores e produtores rurais é regida pelo ciclo
das estações e pelo clima, que ditam o momento em que se deve intensificar o trabalho como
o plantio ou com a colheita, assim como os momentos que podem ser destinados a outras
atividades, como as educacionais, de lazer e de recreação, por exemplo.
Acreditamos ser esse o ponto fulcral da resistência inicial dos povos habitantes da
zona rural, quando, nas décadas de 1980 e 1990, levantaram suas bandeiras no interior dos
movimentos sociais e sindicais, contra o formato de escola e de processo educacional que
134

havia se institucionalizado no país. Tratava-se de uma resistência que se estabeleceu por conta
da insatisfação com esse modelo sacralizado de educação, que acabava por subordinar os
interesses econômicos, culturais e os modos de viver do meio rural, ao modelo urbano e
homogeneizante de vida da cidade.
Pode-se dizer, então, que não foi exatamente contra o modelo sacralizado de educação
que os movimentos sociais e sindicais do campo lutaram nos anos oitenta e noventa do século
passado, pois sua resistência se consistiu muito mais como um combate contra a exclusão dos
povos rurais e sua subordinação aos processos, espaços, tempos e conteúdos homogêneos,
adaptados a partir de um modo de vida urbano. Não se buscou propriamente realizar uma
ruptura com o modelo sacralizado de educação, mas de reconstruir estratégias para adaptá-lo
às necessidades do povo habitante da zona rural.
Essa é a primeira aproximação que fazemos do enunciado geral: Educação do Campo;
alertando que o mesmo emerge a partir de uma proposta popular de educação, por meio da
qual os movimentos sociais colocaram em prática e que, na sua origem, apresentou-se como
algo inédito. Justamente por ser tratar de uma iniciativa popular de uma ampliação do projeto
popular de educação em execução no âmbito dos movimentos sociais, mas inexistente, até
então, como política pública oficial. Sendo assim, não se pode deixar de fazer aparecer,
também, os fios do discurso político e científico desse momento histórico específico, por
meio dos quais se tece essa proposta popular de educação, mas que aos poucos vai sendo
absorvida por outros discursos, como o da economia política global.
O que se pode identificar de início, é que algumas experiências com projetos de
educação popular no Brasil já ocorriam, mesmo que de forma isolada, desde 1969, quando o
Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES) fundou as três primeiras
Escolas Famílias Agrícolas (EFA), no estado. Tratava-se de um ensino organizado por
agricultores locais, como forma de resistir ao modelo excludente de educação rural, garantida
como um direito de todos desde os primeiros textos constitucionais brasileiros. Nessa
experiência pioneira, o ensino dos filhos dos agricultores era realizado num espaço cedido
pelas paróquias locais e tinhas o auxílio pedagógico dos padres e de técnicos agrícolas
(TEIXEIRA; BERNARTT; TRINDADE, 2008).
O objetivo dessa iniciativa popular de educação foi criar as condições necessárias para
que os filhos e as filhas de agricultores locais pudessem conciliar os tempos de estudo com o
trabalho agrícola, realizado na propriedade de suas famílias. Nesse contexto, surgiram as
primeiras experiências com a Pedagogia da Alternância no Brasil, como modelo pedagógico
criado na França na década de 1930, a partir da insatisfação de um pequeno grupo de
135

agricultores com o sistema educacional daquele país. O modelo popular da Pedagogia da


Alternância se difundiu pelo Brasil popular e, de acordo com Souza (2019), atualmente as
instituições que desenvolvem e utilizam esse modelo pedagógico são denominadas
oficialmente de Centros de Formação Familiar por Alternância (CEFA).
Esse modelo popular de educação, que tem como base uma pedagogia que alterna os
espaços e os tempos de aprendizagem da criança, foi assumido também como a proposta
pedagógica que passou a fundamentar a Educação do Campo. Percebe-se o estabelecimento
de um novo uso para o modelo educacional escolarizado que, mediante a alternância de
espaços e tempos de aprendizagem, vincula o processo educativo aos modos reais de
produção da vida no meio rural. O que se buscava era a desomogeneização da escola e do
processo educativo como um todo, de maneira que a se integrarem aos diversificados modos
de viver comuns ao povo da zona rural.
Esse movimento alternativo de educar, vinculado às reais necessidades de produção da
vida no meio rural, efetuou uma espécie de fissura ou de cisão no interior do modelo formal e
institucionalizado de educação, o que possibilitou a construção de outros espaços de
aprendizagem para além da escola, assim como uma ampliação dos tempos considerados
educativos, para além daqueles formalmente estabelecidos pelo currículo escolar. São espaços
e tempos educacionais que se vincularam ao uso comum do homem rural, ao seu modo de
viver comum e aos seus processos culturais e produtivos, o que nos leva a considerar a
Pedagogia da Alternância como um movimento de profanação da educação rural.
A profanação, segundo Agamben (2007), consiste num movimento inverso ao da
sacralização, ou seja, na devolução ou restituição de um objeto qualquer para o uso comum
dos homens. O objeto educacional que havia sido sacralizado, por meio da sua interdição e da
sua separação na esfera do sagrado, de um uso exclusivo no interior de espaços e tempos
restritos à escola, por meio da pedagogia da alternância é devolvido ao uso comum dos
homens do meio rural. É nesse sentido que podemos analisar a iniciativa popular da
alternância, como um movimento de profanação, não do dispositivo educacional como um
todo, mas dos espaços, dos tempos e do processo educativo.
A alternância se constituiu, desse modo, numa ferramenta de luta dos movimentos
sociais e sindicais do campo contra o modelo educacional sacralizado a que estavam
subordinados e em favor de uma educação que pudesse ser pensada pelo próprio povo do
campo. Por meio dessa fissura, produzida pelos modos como se alternavam os espaços e os
tempos pedagógicos, é que se observa a criação dos pontos de resistência ao modelo
sacralizado de educação, no interior dos quais o processo educativo é retirado do domínio
136

institucional exclusivamente restrito ao uso de especialistas e devolvido ao uso comum dos


homens. Essa restituição do processo educativo, vinculando-o aos modos de produção da
vida, específico de cada comunidade do meio rural, inaugurou um movimento político que
busca, sobretudo, a desomogeneização do sujeito.
Entretanto, para que esse movimento de resistência, iniciado com a Pedagogia da
Alternância, pudesse se efetivar como uma prática social reconhecida institucionalmente, foi
necessário que os movimentos sociais e sindicais buscassem novos apoios institucionais, de
forma a procederem a um longo processo de reconstrução discursiva, do próprio conceito de
meio rural. O próximo subitem trata justamente da construção desse novo regime de verdades,
por meio do qual se estabilizam os novos sentidos para o rural, não mais como “meio”, mas
como “espaço geográfico concreto”, de forma a permitir a adequada classificação da
população, como sendo “do campo”.

4.4 A educação do campo e a construção de um regime de verdade

Neste subitem efetuaremos um estudo genealógico sobre a construção do regime de


verdade que possibilitou a criação dos fundamentos dessa nova modalidade educacional, que
se convencionou denominar de Educação do Campo. Inicialmente podemos afirmar que os
movimentos sociais e sindicais do campo somente puderam construir um regime de verdade
sobre a Educação do Campo, por meio de um primeiro procedimento estratégico que se
realizou no interior da lei do dizível. Dessa maneira, foi somente após a reformulação da
nomenclatura original para o espaço habitado, de forma a não somente torná-lo diferente do
que se denominava por rural, mas, sobretudo, de garantir a sua validade enquanto uma
verdade cientificamente comprovada, que se pode falar e fazer falar sobre a Educação do
Campo. Em outros termos, foi justamente no momento histórico em que os movimentos
sociais e sindicais conquistam o direito ao discurso e se apoderaram dele, que se tornou
possível a luta política para contextualizar e produzir o conceito de Educação do Campo,
fazendo-o emergir como um enunciado discursivo.
É desse modo que o estabelecimento de um conceito, por meio do qual se buscou dar
sentido à “nova” proposta educacional, que estava em gestação no interior dos movimentos
sociais e sindicais, não pode ser tratado como um acontecimento neutro, mas como um
discurso politicamente estratégico. Discurso esse que mobilizou um regime de verdade que,
137

além de negar e desautorizar os atributos vinculados ao termo rural, puderam melhor definir
os interesses políticos, econômicos e educacionais dos sujeitos que militavam nesses
movimentos, assim como de seus apoiadores.
Entretanto, simplesmente como movimento social, o MST estava politicamente
impedido de pronunciar as verdades necessárias à emergência de sua proposta educacional,
pois a sua posição-sujeito encontrava-se subordinada a outras verdades, pronunciadas por
outras posições-sujeito dominantes do discurso no campo político. Verificou-se uma
modificação estratégica nessa posição-sujeito, ocupada até então pelo MST, quando da
redemocratização do país e da recepção de suas ideias e fundamentos educacionais no interior
de outras instituições consagradas socialmente e autorizadas a pronunciar o discurso
verdadeiro.
Para tanto, para construir um regime de verdade, de que fala e faz falar a Educação do
Campo, tornou-se necessário um apoio em outros discursos que, consagrados socialmente
devido a sua qualificação como verdades cientificamente verificáveis, pudessem garantir a
veridicção desses conceitos e, desta maneira, sustentassem a própria estratégia política desse
discurso. É desse modo que o arquivo, ora aberto, está apoiado num regime de verdades, que
são próprias do discurso do campo acadêmico, especificamente da área da Geografia e que se
constituiu como um importante e necessário aliado na definição de uma nova terminologia
que permitiu a sua diferenciação em relação à educação rural. Terminologia essa que veio
embasar a construção de todo um universo discursivo necessário para a criação desse novo
objeto que é a Educação do Campo, assim como dos demais objetos que pertencem a esse
mesmo universo.
Podemos destacar a participação de diversos estudiosos da área da geografia, como
Whitacker (2010), Endlich (2010) e Santos (2014), autores mais alinhados com as bases
teóricas do materialismo histórico, que possibilitaram a concepção do conceito de Campo,
para definir o espaço geográfico habitado, até então considerado como rural. Esses autores
rejeitam veemente a forma, considerada por eles como arbitrária, com a qual se atribuem
legalmente as nomenclaturas para os espaços habitados em nosso país e que se definem pelos
termos: urbano ou rural. Por meio de seus estudos teóricos, consideram falseáveis os critérios
oficiais adotados, na atribuição dessas nomenclaturas, pois entendem que a terminologia
(urbano e rural) não define objetivamente os espaços geográficos habitados pelo homem, ou
seja, elas não designam especificamente a concretude da forma de organização espacial.
Argumentam que esses termos, simplesmente adjetivam um conteúdo específico de
práticas humanas, que são realizadas no interior de um determinado território, pouco
138

importando se essas práticas sejam: relações políticas, econômicas e/ou sociais. Sugerem,
então, que os conceitos capazes que definir, de uma maneira mais objetiva e real, os espaços
geográficos habitados pelo homem são cidade e campo. Esses dois termos estariam
diretamente relacionados com a forma espacial, isto é, com a paisagem que tais espaços
assumem, a partir da ocupação humana e das atividades econômicas, políticas e culturais ali
desenvolvidas (WHITACKER, 2010; ENDLICH, 2010; SANTOS, 2014).
Desta maneira, os termos Campo e Cidade seriam mais apropriados para designar o
espaço geográfico, pois os autores acreditam que essas nomenclaturas seriam capazes de
melhor representar linguisticamente a formação espacial, ou seja, haveria uma
correspondência objetiva entre o objeto e o seu referente. Nesse ponto, pode-se dizer que
sobre a regularidade discursiva acerca do espaço geográfico e sobre a qual se sustentará todo
um discurso verdadeiro, esse novo projeto educacional, que emerge discursivamente, é
construído no interior de uma epistèmê representacional, por meio da qual se acredita haver
uma correspondência entre um significante e o seu significado (FOUCAULT, 2016a).
É a evidência empírica da formação espacial do território que permite aos cientistas do
campo da Geografia reconhecer esse espaço como Campo ou Cidade, desconsiderando a
metafísica de linguagem, que reveste o saber científico no qual se apoiam. Uma metafísica
que opera por meio da arbitrariedade linguística e que é capaz de reduzir a complexidade do
significante, inserindo-o abstratamente no interior de um significado. A metafísica, de que se
reveste o conhecimento científico, diz respeito à dupla metaforização de que fala Nietzsche,
quando da apropriação do objeto e da sua transformação em verdade e em conhecimento
(SOBRINHO, 2001).
É esse significado que, a partir de então, passará a representar linguisticamente o
objeto, será aceito consensualmente entre os sujeitos da ciência e por meio do qual se
construirá um regime de verdade acerca da Educação do Campo. Não é exatamente a verdade
que interessa a Foucault (2014c, p. 86), pois o autor prefere utilizar a noção de “regime de
verdade”, para designar “[...] o conjunto dos procedimentos e instituições pelos quais os
indivíduos são comprometidos e forçados a realizar, em certas condições e com certos efeitos,
atos bem definidos de verdade”.
Sob o mesmo ângulo de análise das designações do espaço habitado, Veiga (2003)
critica ainda os critérios, utilizados no Brasil, para se definirem os espaços urbanos e,
concomitantemente, os limites geográficos entre a cidade e o campo. O autor alega que, caso
o Brasil utilizasse os mesmos critérios adotados em outros países, como, por exemplo, o
parâmetro da densidade demográfica adotada pelos países da OCDE, uma quantidade enorme
139

de cidades brasileiras passaria a ser considerada como imaginária. Isso se deve ao fato de que
os critérios aqui utilizados, em nosso país, para a definição de uma zona como urbana, não
levam em consideração a densidade populacional desse espaço, tampouco as relações sociais
e econômicas que se estabelecem em seu interior.
Sendo assim, por cidade imaginária, Veiga (2003) considera as cidades onde as
relações sociais não são propriamente urbanas, pois seus habitantes mantêm relações
econômicas e sociais que são típicas do meio rural. Haveria, então, no Brasil, cidades que
poderiam, sim, ser consideradas como urbanas, mas uma quantidade maior delas, utilizando-
se esses critérios, deveria ser classificada como rural (cidades rurais) e, desta maneira,
conceitualmente, não poderiam ser consideradas cidades, sendo assim, conceituadas, pelo
autor, como cidades imaginárias.
A partir dessa conceituação geográfica para o que se considera como Campo e Cidade,
estabelecida no interior da instituição que detém a exclusividade para pronunciar verdades
propriamente científicas, é que foi possível aos movimentos sociais e as instituições que lhe
eram simpatizantes fundamentarem sua contestação, acerca de um regime de verdade
legalmente estabelecido. Regime esse que definia como sendo rural, tanto o espaço habitado
pelos assentados da reforma, como a educação dos sujeitos habitantes desse espaço. Como
nos indica Foucault (2014a, p. 46), “o discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos”, sendo nesse suporte discursivo/institucional,
no qual se estabelece o regime de verdade sobre o conceito de espaço geográfico, que os
movimentos sociais e instituições interessadas em propor um novo uso estratégico do termo
Campo se apoiam para construir o novo, o conceito de Educação do Campo.
Tratou-se, assim, de construir estrategicamente uma terminologia que pudesse
desautorizar a designação de rural como algo concreto e objetivo, ou seja, somente o conceito
de Campo, como um objeto passível de apreensão empírica e de estudo metódico, seria
suscetível de uma análise objetiva pelas lentes da ciência, daí a necessidade desse objeto se
apoiar num discurso acadêmico/científico. Em outros termos, enquanto ciência do espaço
habitado pelo homem, somente a Geografia estaria autorizada a pronunciar discursos
verdadeiros sobre esse objeto, que é o espaço e, sendo assim, somente o discurso científico da
Geografia poderia ser aceito como uma verdade que desautoriza a designação de rural como
algo concreto e objetivo. Doravante, inaugura-se um novo uso para o conceito de campo, que
servirá para adjetivar a forma com que os movimentos sociais e sindicais do campo
pretendem enunciar a sua proposta educacional: a Educação do Campo.
140

Nesse ponto precisamos fazer um parêntese conceitual, a fim de problematizarmos o


conceito campo, de modo identificarmos a forma como esse termo foi estrategicamente
incluído no interior do discurso político da educação. Assumimos, então, a problematização
desse conceito no sentido apontado por Foucault (2015b, p. 242), como sendo “[...] o conjunto
das práticas discursivas ou não-discursivas que faz qualquer coisa entrar no jogo do
verdadeiro e do falso e a constitui como objeto para o pensamento (seja na forma de reflexão
moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.)”.
A problematização do termo campo convida a considerar o espaço geográfico como
um efeito de superfície, com a concretização de uma forma específica assumida pela
paisagem, a partir das transformações decorrentes dos modos de produção econômica e de
reprodução da vida humana. Não poderíamos considerar o campo simplesmente como uma
estrutura física concreta, sem analisar essa forma espacial enquanto produto histórico do
processo de ocupação humana. É preciso desnaturalizar esse termo, assumindo-o como um
efeito da transformação do meio natural, pela ação humana, num espaço de produção e de
exploração econômica que, como tal, sofre influências estratégicas das disputas políticas. O
campo, nesse contexto, constitui-se num dos diversos biomas possíveis de ocupação humana e
de transformação em espaço habitado, um dos possíveis territórios concretos de produção
econômica e de reprodução da vida.
Por conseguinte, há que se problematizar o léxico campo, assumindo-o como um dado
histórico e contingente que deve, sim, ser abordado como paisagem, mas não simplesmente
como uma paisagem natural. Exceto as restritas áreas conhecidas, como os pampas rio-
grandenses, os campos de altitude catarinenses, os campos de vacaria do Mato Grosso do Sul,
os campos de altitude da Serra da Mantiqueira e os campos de várzea da Região Amazônica.
Uma grande área do território brasileiro, cuja paisagem se pode hoje denominar pelo termo
campo, foi produzida pela degradação e transformação do espaço natural, mediante a ação
humana. Uma parcela considerável do território nacional, cujo espaço físico se pode hoje
considerar como campo, foi produzido intencionalmente pelo homem por meio do
desmatamento e das queimadas.
É desse modo que se deve problematizar o termo campo, deixando de considerá-lo
simplesmente como um território, um espaço geográfico concreto que se caracteriza por sua
paisagem natural. É preciso analisá-lo, também, como um efeito de superfície, um
acontecimento histórico de reconstrução e reconfiguração do meio ambiente, a partir de
interesses econômicos e políticos. Como mencionamos acima, muitas das áreas consideradas
hoje como campo eram áreas florestais e de mata, que foram transformadas em pastos para a
141

criação bovina ou em lavoura para a produção agrícola. Sobre esse aspecto, o termo campo
designa muito mais do que uma simples conformação espacial, pois caracteriza, sobretudo, a
terra economicamente produtiva, sobre a qual se desenvolve o plantio agrícola e a produção
de alimentos de origem animal pela pecuária.
Considerando-se que o Brasil é, historicamente, um país cuja economia de base se
constitui pela produção agropecuária, o campo não pode ser considerado um espaço
geográfico qualquer ou genérico, mas um lugar de disputa política pelo direito de posse da
terra. Um espaço no qual se desenvolve historicamente o potencial econômico do país e, desse
modo, por se constituir num meio de produção e fonte de riquezas, transforma-se num objeto
de disputa política. Nesse sentido, o campo se constitui de áreas produtivas, regulamentadas
pelo poder estatal, nas quais o sujeito, que detém o direito de sua posse e de sua exploração
econômica, deve fazer desenvolver o seu potencial produtivo, sob pena dessa área ser
desapropriada, no caso de ser considerada improdutiva.
É o campo, e não outros biomas, que passa a ser o objeto de desejo, pelo fato de ser
nesse espaço geográfico (e somente nele) que a agricultura e a pecuária podem se desenvolver
como atividade econômica, entrando para o jogo do verdadeiro e do falso. Não é por acaso,
então, que os movimentos sociais e sindicais escolhem o termo campo, justamente para
designar o seu espaço de vida. O campo é espaço que mais bem representa o local onde se
produz e reproduz o modo de vida dos movimentos sociais e sindicais e, desta maneira, o
substantivo que melhor pôde ser utilizado para o modelo educacional, que passaram a
defender em seus discursos.
A luta dos movimentos sociais e sindicais é pela apropriação do discurso verdadeiro,
que qualifica a terra como produtiva ou improdutiva e possibilita a sua posse, como meio de
produção econômica, pela classe trabalhadora. Pela lógica do discurso revolucionário, não se
está necessariamente interessado em destruir o sistema de produção capitalista propriamente
dito, mas de realizar uma inversão no seu pólo de dominação, ou seja, devolvendo os meios
de produção para aqueles que deveriam ser os seus autênticos proprietários: os trabalhadores.
Podemos considerar que, em sua origem, o termo campo se constituiu numa expressão
pertinente, que melhor poderia expressar o desejo dos movimentos sociais e sindicais, quanto
ao atendimento de suas demandas político/educacionais, pois representava realmente o anseio
daqueles povos, que acabaram de reaver o seu direito de posse da terra, por meio da reforma
agrária e que habitavam o bioma caracteristicamente denominado com tal nomenclatura. Não
há como negar que o campo se caracteriza como um território de luta, no qual o Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra se engajou na disputa política pelo direito à posse da
142

terra. Uma luta pelo espaço territorial, no qual as famílias assentadas pudessem desenvolver
autonomamente suas atividades econômicas, caracteristicamente agropecuárias.
Percebe-se, entretanto, que não houve um esforço ou uma preocupação, propriamente
no sentido de reformular ou de propor substancialmente uma nova educação, pois o que se
observa é uma continuidade no uso desse substantivo, como algo natural e que traz em si,
verdades já estabelecidas e consagradas. Trata-se de um regime de verdades que sustenta o
discurso pedagógico, que se baseia nos princípios universais apregoados pelo Iluminismo e
que se constituíram nos fundamentos da racionalidade moderna. De acordo com Lima (2002,
p. 60) “a compreensão de um sujeito universal, dotado de razão e de suas propriedades
universais e idênticas em todo o indivíduo, passa a ser o solo em que se movimentam as
teorias pedagógicas”.
A partir do racionalismo cartesiano, do empirismo baconiano e da ideia de
esclarecimento proposta por Immanuel Kant, instaura-se a concepção moderna de homem,
sobre a qual se sustentam os fundamentos do discurso pedagógico desde a Modernidade até
nossos dias. Foram os discursos da Modernidade, pronunciados inicialmente por aquele que
foi considerado seu pai: René Descartes (1596-1650); que colocou em circulação o enunciado
acerca da razão humana, um tribunal supremo do homem que estabelece os princípios de
universalidade, de autonomia e de individualidade do sujeito moderno. Associado ao
enunciado da razão, a Modernidade também nos legou a crença na possibilidade da
descoberta da verdade acerca dos objetos e do mundo que, pode meio do método científico,
tornou possível o domínio racional da natureza (LIMA, 2002).
Desse modo, a escola, a pedagogia e o processo educacional como um todo se
sustentam nessa raridade de enunciados: razão, método e verdade científica, sujeito do
conhecimento; formulados ainda na Modernidade e que trouxeram as promessas de liberdade,
autonomia e de emancipação humana. É nesse sentido que Lima (2002, p. 62) afirma que a
“razão científica e subjetividade são referências obrigatórias para compreender a educação
como processo institucionalizado, que se organiza frente à necessidade de formar sujeitos que
possuam uma condição de vida segundo padrões seculares”.
Com isso, nos resta analisar a preposição do, presente no enunciado Educação do
Campo e que, por sua vez, demonstra o estabelecimento de uma nova ordem, ou um novo
direcionamento para o processo educativo que deverá se desenvolver nesse espaço geográfico,
considerado doravante como campo. Assim, diferentemente da educação rural, que
estabelecia um contexto relacional, em que o processo educativo segue um modelo único,
tanto para a área urbana, como para o meio rural, a Educação do Campo nega essa direção
143

incomum. Essa nova proposta educacional rejeita essa direção sacralizada (AGAMBEN,
2007), na qual o processo educativo deve ser pensado por especialistas e cuja aplicação
precisar estar adaptada aos valores urbanos, devendo, ao contrário, esse processo educacional
partir dos próprios sujeitos do campo e a eles se destinar (MUNARIM, 2010).
Pode-se dizer, então, que um novo regime de verdade foi posto em movimento, a
partir de uma apropriação estratégia do conceito geográfico de campo, que se define pela
concretude científica desse termo, que lhe reveste de certa neutralidade e da possibilidade de
generalização. Foi essa verdade científica que possibilitou aos movimentos sociais
construírem o enunciado Educação do Campo, que foi utilizado estrategicamente como
recurso discursivo para a reivindicação do direito, humano e constitucional, de acesso à
educação formal.
Precisamos destacar que a singularidade desse regime de verdade, que sustenta o
discurso sobre a Educação do Campo, não é da ordem de seu substantivo, isto é, não se tratou
de recriar, de alterar ou de produzir, mesmo que discursivamente, uma nova substancialidade
para a Educação. O que se apresenta como novo ou inédito no enunciado Educação do
Campo foi produzido por meio da redefinição de um atributo, que designa espacialmente o
local onde o processo educativo se realiza. Essa qualidade de ser do Campo é que permitiu
incluí-la no interior de um critério de cientificidade, ou seja, o enunciado e o seu regime de
verdade correspondente se tornam singulares, não pelos fundamentos do seu substantivo, mas
pelos princípios correspondentes que são reforçados com o léxico campo. É o substantivo
campo que concebe a validade científica para o regime de verdade singular, por meio do qual
se constrói esse novo objeto discursivo, que foi posto em movimento e que será transformado
em política pública na década seguinte.
Com base nesse suporte discursivo, inauguram-se outras possibilidades para o uso e a
circulação de enunciados, que foram consagrados pelas Ciências Humanas em outros
momentos históricos, mas que ainda estão presentes enquanto regime de verdade
contemporâneo. Referimo-nos aqui ao regime de verdade que atualiza, de maneira constante,
todo um aparato enunciativo sobre o qual se fundamentou o pensamento iluminista e que
serviu como bases epistêmicas para a construção do conceito de Modernidade, assim como
todo um conjunto de práticas sociais, que se naturalizaram a partir de então e passaram a ditar
os critérios de veridicção (FOUCAULT, 2008b).
Estamos nos referindo à atualização constante, nos discursos e nas práticas, de uma
crença moderna sobre a existência de um sujeito dotado de razão, um sujeito epistêmico sobre
o qual se torna necessário investir todo o processo educativo. O próprio processo educativo se
144

desenvolve em torno de (tem por finalidade) desenvolver as potencialidades racionais do ser


humano, assim como de lhe ensinar a fazer um uso adequado dessa sua capacidade inata. Uma
metafísica da racionalidade humana, sobre a qual também se sustenta tanto a racionalidade
científica, assim como todo o dispositivo pedagógico da Modernidade (CAMBI, 1999;
VEIGA-NETO, 2004).
O conceito de dispositivo panóptico foi explorado inicialmente por Foucault (2012b),
sendo essa noção aprofundada enquanto dispositivo da sexualidade, no primeiro volume de
sua obra sobre a História da sexualidade. Essa obra recebeu o subtítulo de A vontade de saber
e delimitou a noção de dispositivo, como uma rede de saber/poder que se estabelece os
elementos discursivos e não-discursivos, a rede heterogênea que se forma entre o dito e o não
dito (FOUCAULT, 2017a). Sendo assim, a noção de dispositivo se refere a:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,


organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT,
2014b, p. 364).

De acordo com Gallo (2018), o filósofo e professor do Departamento de Filosofia da


Universidade de Paris 8, René Scherer foi quem aprofundou, em seus estudos de filosofia da
educação, a noção foucaultiana de dispositivo, construindo o conceito de Dispositivo
Pedagógico. Por dispositivo pedagógico, Scherer entende um estado de coisas que se
perpetuou pela Modernidade e que preparou, implementou e promoveu a perversão da
criança, a partir da criação, pelos adultos, de um conceito de infância que, em vez de
possibilitar conhecê-la, afasta-se dela. Essa perversão da criança se deve ao processo de
conformação do conceito da criança a uma imagem de infância, que é previamente concebida
pelo adulto a partir de um atributo que a criança ainda não possui: a fala. Sendo assim, a
imagem da criança é associada à infância, palavra essa de origem latina, derivada do verbo
Fani, que designa aquele ser infans, ou seja, o ser que ainda não adquiriu a linguagem
articulada, como meio de comunicação próprio da espécie humana (PAGNI, 2010).
Nesse mesmo sentido, poderíamos afirmar que, com a sua emergência, a Educação do
Campo se insere no interior desse dispositivo pedagógico, cuja formação discursiva
possibilita aos enunciados atualizar suas significações Iluministas ao assumir, assim, efeitos
de sentido até então inéditos e pondo em circulação verdades que irão embasar as práticas
pedagógicas. Por exemplo, Campo, a partir de então, passa a ser considerado o único e
145

possível espaço geográfico a ser conceituado como diferente da cidade; Camponês, o sujeito
epistêmico habitante desse espaço geográfico; Educação do Campo se transforma no processo
educacional legítimo que possibilitará a apropriação dos bens culturais por parte dos sujeitos,
a partir de então, considerados camponeses. Por fim, Escola do Campo, constitui-se como o
espaço social privilegiado, no qual se desenvolverá todo o processo educativo formal, no qual
se verá racionalizado o processo pedagógico e, por meio do qual serão criadas as condições de
apropriação, por parte do sujeito camponês, desses bens culturais construídos
histórico/socialmente.
Com base nessas poucas e incompletas condições acontecimentais, que marcaram o
solo político, econômico e técnico do momento histórico em se produziu a emergência do
conceito de Educação do Campo, pode-se identificar múltiplas relações de forças atuando em
conjunto, dispersas e agonisticamente. Ou seja, o referencial teórico/metodológico adotado
para o presente estudo, nos permite reconhecer a dispersão das condições das possibilidades
de emergência desse objeto, tanto discursivas como não-discursivas, em meio às quais foi
possível o seu surgimento enquanto objeto de discurso (DELEUZE, 2013; FOUCAULT,
2015a).
No próximo tópico, abordaremos as adaptações e inclusões no discurso inicial sobre a
Educação do Campo que foram produzidas pelo discurso legal e que possibilitaram um desvio
estratégico no uso dos enunciados, de forma a reduzir seus significados e inserir esse objeto
no interior de uma formação discursiva própria da razão de governo. Trata-se das adaptações
e inclusões discursivas necessárias à incorporação da diversidade no interior de uma
totalidade, de forma a se produzir a noção de população do campo. População essa que é
formada por sujeitos, cujas condutas podem ser individualizadas, por meio do uso de
ferramentas estatísticas apropriadas, de forma a serem governados disciplinarmente.

4.5 As adaptações, as inclusões e os desvios do discurso original

Como examinamos anteriormente, o discurso no qual os enunciados sobre Educação


do Campo foram postos em circulação, inicialmente, emergiram no interior de um campo
político de disputa, característico de um momento histórico específico, no qual se iniciava
uma busca pelo restabelecimento do regime democrático de governo em nosso país. No
núcleo do regime democrático que restabelecia, com o auxílio dos estudos desenvolvidos por
146

Mouffe (2012), nos foi possível identificar a afirmação agonística de, pelo menos dois,
grandes ideais de política econômica. De um lado, verificamos a produção de discursos
engajados com princípios comunitários, cujos ideais progressistas e de resistência nos
permitem categorizá-los como defensores de um regime social-democrático. De outro lado,
identificamos também os discursos que defendem os princípios democráticos, mas que se
fundamentam, sobretudo, no ideal das liberdades individuais, o que permite classificá-los
desenvolvimentistas e como partidários da liberal-democracia.
Em meio a essa disputa política pela posse do discurso verdadeiro, verificamos que
nosso objeto geral de estudo, a Educação do Campo, emergiu no interior de uma proposta
popular de educação, cujos princípios se alinhavam com um projeto comunitário, típico da
social-democracia. Entretanto, na medida em que esse objeto foi se integrando ao domínio das
políticas públicas, verificamos um deslocamento de seus princípios iniciais, de modo a
integrá-lo à razão governamental, que está mais alinhado aos ideais de um projeto liberal-
democrata.
São esses movimentos estratégicos, realizados no interior do discurso da
governamentalidade, que buscamos apontar nesse subitem, sendo que podemos identificar um
primeiro movimento discursivo, por meio do qual foi possível adaptar a proposta inicial de
Educação do Campo e criar as condições estratégicas de inclusão de outros povos, que não se
caracterizavam propriamente como assentados da Reforma Agrária. No dia 4 de dezembro de
2001, o Conselho Nacional de Educação (CNE 44), por intermédio de sua Câmara de Educação
Básica (CEB45), emitiu o Parecer CNE/CEB nº 36/2001, que estabeleceu as Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Essa diretriz considerou
evidente um vínculo específico, por meio do qual os povos que viviam num contexto
territorial, legalmente reconhecido como rural, poderiam ser reconhecidos como população do
campo. Esse vínculo seria a ligação desses povos com a terra, de onde todos eles, de uma
forma direta ou indireta, extrairiam seus meios de subsistência.

44
O atual Conselho Nacional de Educação (CNE) é um órgão colegiado, que integra independentemente o
Ministério da Educação e foi instituído pela Lei 9.131, de 25/11/95, com a finalidade de colaborar na formulação
da Política Nacional de Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao
Ministro da Educação. Esse órgão se subdivide em duas Câmaras: uma de Educação Básica (CEB) e outra de
Ensino Superior (CES). BRASIL/MEC. CNE-Histórico. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/escola-de-
gestores-da-educacao-basica/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/14306-cne-historico.
Acesso em: 14 fev 2020.
45
A Câmara de Educação Básica (CEB) tem como atribuições analisar e emitir pareceres sobre procedimentos e
resultados de processos de avaliação da educação infantil, fundamental, média, profissional e especial, deliberar
sobre diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação; e acompanhar a execução do Plano Nacional
de Educação (PNE) (BRASIL/MEC, 2020).
147

Foi justamente a consideração da evidência de um vínculo comum com a terra, como


meio de produção, que possibilitou aos membros do CNE/CEB considerarem como população
do campo, todos os mais diferentes modos de existência humana que se realizam fora de um
espaço geográfico considerado “cidade”, ou de um contexto urbano. Sendo assim, o Parecer
36/2001 considera que “A educação do campo, tratada como educação rural na legislação
brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e
da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos
e extrativistas” (BRASIL, 2001, p. 1).
O movimento de adaptação do discurso original da Educação do Campo, por meio do
qual foi possível realizar a inclusão de outros povos, fica evidente no excerto acima
apresentado, em que se considera que: A Educação do Campo [...] tem um significado que
incorpora os espaços [...] mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços [...]. Não é
exatamente a população do campo com suas necessidades educacionais específicas que esse
discurso inicialmente busca incluir. Podemos verificar que a estratégia discursiva desse
parecer, encarregou-se de construir inicialmente um campo de sentidos no qual pudesse
incluir ou acolher territórios diferentes, no interior de uma única e mesma categoria, a partir
de um vínculo virtual que é a terra, ou a posse da terra como meio produtivo.
O que se pode identificar nessa estratégia discursiva é a criação de uma categoria
totalizante, no interior da qual a razão governamental pudesse incluir e acolher a totalidade
dos indivíduos, na forma de uma população do campo. Uma estratégia que se coaduna com as
estratégias educacionais propostas pela UNESCO para América Latina e Caribe, evidenciadas
por Mayor (1998) no Relatório de encerramento dos 10 anos do PPE, cujo objetivo era
encontrar uma forma de “incluir ao excluídos e alcançar os inalcançáveis” (UNESCO, 1998).
Reconhecer estrategicamente, incluindo no interior de um mesmo conceito de educação, um
conjunto de diferentes formações populacionais, até então inalcançáveis pelas políticas
educacionais, que as consideravam como rurais.
A criação dessa categoria populacional totalizante fica evidente no Parecer 36/2001,
quando considera “O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um
campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção
das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana” (BRASIL,
2001, p. 1). O vínculo virtual, construído pelo discurso legal, corresponde à ligação dos seres
humanos com a própria produção das condições de existência social, sendo que essa ligação
se constitui pelo suposto vínculo comum, desses diferentes seres humanos, com a terra.
Virtualmente, é a posse da terra o fator unificador da categoria campo, posse essa que, de
148

acordo com o discurso em questão, possibilita a própria produção das condições de


existência social.
Mas quando o Parecer 36/2001 menciona a própria produção das condições de
existência social, o discurso deixa transparecer que essa produção não se trata de qualquer
forma de condições de existência, mas daquelas que permitam estabelecer um vínculo com as
realizações da sociedade humana. Considerando que o discurso oficial do Parecer 36/2001,
encontra-se atravessado pela razão governamental, a sociedade humana de que se fala,
emerge nesse contexto, com um sentido global, como uma sociedade globalizada. Do mesmo
modo, para que as realizações dessa sociedade globalizada possam ser efetivadas, há a
exigência de adaptações às suas novas formas de produção e de existência humana, que são
influenciadas pelo desenvolvimento e pelas trocas materiais e simbólicas, que agora se
realizam em âmbito globais (DARDOT; LAVAL, 2016).
Outro movimento de adaptação, de inclusão e que produz certo desvio no discurso
original, proposto na I Conferência Nacional, pode ser percebido quando da instituição legal
das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, instauradas pela
Resolução CNE/CEB nº 01, de 3 de abril de 2002. Essas diretrizes instituem o modo como a
Educação Básica deverá ser operacionalizada, na prática, nas escolas consideradas do campo,
pelo Parecer CNE/CEB nº 36/2001. Essa resolução visou traçar um conjunto de princípios,
diretrizes e procedimentos, de forma que projeto inicial da Educação Básica do Campo
pudesse se adaptar às bases legais da educação nacional, assim como às Diretrizes
Curriculares Nacionais. O artigo 2º dessa resolução deixa clara essa intenção, ao afirmar que:

Estas Diretrizes, com base na legislação educacional, constituem um


conjunto de princípios e de procedimentos que visam adequar o projeto
institucional das escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e Médio, a Educação de Jovens e
Adultos, a Educação Especial, a Educação Indígena, a Educação Profissional
de Nível Técnico e a Formação de Professores em Nível Médio na
modalidade Normal (BRASIL, 2002, grifo nosso).

Visualizamos nessas adaptações, inclusões e adequações, a instalação de um conjunto


das práticas discursivas e não-discursivas, que preparava a Educação do Campo para entrar no
jogo do verdadeiro e do falso. Como apontamos anteriormente, essas práticas correspondiam
às pretensões totalizantes e universalistas do discurso educacional, que acabavam por incluir
indivíduos e populações que habitam de biomas diferentes e que tinham relações comunitárias
também dessemelhantes no interior de uma única e mesma categoria discursiva. Por meio
149

desse discurso que incluía habitantes de outros biomas, cujos respectivos modos de produção
econômica e da sua própria forma de existência são heterogêneos, sob um mesmo e único
signo, tornou-se possível a produção de um conceito universal e totalizante: o de população
do campo. É nesse sentido que vemos, nesse primeiro movimento estratégico de adaptação e
de inclusão, o domínio do discurso técnico/científico neoliberal sobre o discurso
revolucionário. Este, originalmente produzido e posto em circulação no interior dos
movimentos sociais e sindicais e mais alinhado com a social-democracia. Aquele, oriundo das
agências técnicas internacionais (UNESCO e UNICEF), mais engajadas com o discurso
liberal democrático.
Podemos pontuar, ainda, um terceiro movimento de inclusão, por meio do qual se
produziu novas adaptações e adequações legais para que a proposta inicial de Educação do
Campo se tornasse ainda mais abrangente e universal. Tratava-se do texto da Resolução
CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008, que no seu artigo primeiro voltou a considerar como
rurais, as populações atendidas pelo programa e passou a abranger, a partir de então, também
as populações indígenas:

A Educação do Campo compreende a Educação Básica em suas etapas de


Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação
Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino Médio e
destina-se ao atendimento às populações rurais em suas mais variadas
formas de produção da vida - agricultores familiares, extrativistas,
pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma
Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros (BRASIL, 2008, grifos
nossos).

Podemos constatar que, devido à sutileza das estratégias de governamentalização, que


sustentam o discurso de adaptação da concepção inicial de Educação do Campo, de forma a
recepcionar e a incluir outros biomas e outras populações em sua proposta inicial, ela não foi
percebida pelos adeptos do movimento de resistência, como uma forma de exercício do poder.
Antes, sob uma perspectiva repressiva do poder, esse movimento de inclusão é visto, por parte
dos movimentos sociais e sindicais como uma estratégia política que lhes favorece, pois
possibilitaria uma garantia de reforço e de empoderamento ao movimento de resistência, já
que, sob o ponto de vista repressivo, quem se está combatendo, é um inimigo e um inimigo
muito poderoso por sinal, e, para vencê-lo, é preciso unir forças.
Esse discurso que identifica o poder como uma substância repressiva, pode-se
perceber nos comentários de Arroyo, Caldart e Molina (2011), que afirmam ser importante a
construção de uma identidade camponesa, de modo a ocorrer uma espécie de unificação de
150

forças para o enfrentamento do poder, que é algo possuído pelos detentores dos meios de
produção e que consideram como uma capacidade opressiva. Como declaram esses autores,
no texto em que comentam e detalham as discussões da I Conferência Nacional, “aprendemos
que a nossa divisão em nome das diferenças somente interessa a quem nos oprime: ‘dividir
para melhor dominar’ é uma máxima tão antiga quanto à própria dominação” (ARROYO,
CALDART; MOLINA, 2011, p. 154).
Ocorre que, sob uma perspectiva da razão governamental, é justamente a unificação
das diferentes formações humanas, no interior de um conceito único de população do campo,
que constitui uma das estratégias de dominação e de governamento (FOUCAULT, 2014a).
Sendo assim, é a própria estratégia revolucionária de unir forças para combater, que foi
sendo utilizada de maneira adaptada pelo discurso liberal democrático, de uma forma muito
sutil e sem que seu adversário percebesse, para incluir diferentes formações humanas no
interior de sua própria da razão governamental.
Verifica-se que, assim como adverte Mouffe (2012), a agonística dessa política
discursiva não se formou a partir de um combate entre inimigos (como pretendia o
movimento de resistência), mas de uma disputa entre adversários. Essa análise genealógica
permite afirmar que o discurso político de resistência ao modelo neoliberal, proferido pelos
movimentos sociais e sindicais, compartilham de um espaço simbólico comum. Entretanto, o
discurso de resistência e o discurso neoliberal disputam o domínio pelo campo discursivo,
pois, como lembra Foucault (2014a), não é por meio do discurso que se luta, pois o discurso
não é a ferramenta com a qual se combate o poder, não se trata de um objeto que leva ao
poder, mas é o objeto por meio do qual o poder circula e, sendo assim, é pelo discurso mesmo
que se luta. Na batalha política, em que ocorre a circulação do poder, está em vantagem
estratégica aquele que obtém o direito de utilizar o discurso e, sendo assim, é o discurso pelo
qual se luta.
Por meio dessa breve análise discursiva do Parecer CNE/CEB 36/2001, da Resolução
CNE/CEB 01/2002 e da Resolução CNE/CEB 02/2008, podemos constatar que o modo
estratégico, encontrado para incluir legalmente a diversidade das culturas e dos modos de
produção econômica e de reprodução da vida, sob o signo campo, deu-se inicialmente de uma
forma conceitual e enunciativa, sendo que especificamente a Resolução CNE/CEB 02/2002
institui o modo prático como essa inclusão deveria ocorrer. Nesse sentido, considerar o campo
como uma denominação genérica, capaz de abarcar os significados de todos os biomas nos
quais o homem vive e retira seu próprio sustento, pode, em si mesmo, ser considerada a
151

execução da estratégia política das agências internacionais, para incluir os excluídos e


alcançar os inalcançáveis na ordem do discurso (FOUCAULT, 2014a).
Embora os movimentos sociais e sindicais do campo estivessem em luta, resistissem
ao que acreditavam ser o poder institucionalizado, por meio desse ato político de incluir
outros povos em sua categoria própria de verdade, também se utilizaram de estratégias de
poder, que se pode considerar como uma ação de dominação, ou seja, uma prática de
governamento. Por meio dessa prática discursiva, esse ato político de trazer para um domínio
comum outras formações populacionais, que em absoluto se poderiam considerar como
camponesas, identifica-se a emergência e a colocação em funcionamento, quase que
imperceptível, do dispositivo de segurança biopolítica da razão governamental, via sistema de
educação, que abrangia toda a população rural em idade escolar.
Mesmo que se apoiassem em formações discursivas diferentes, devido à raridade dos
enunciados, os discursos adversários compartilhavam de um campo simbólico comum, o que
permitia que no interior do próprio discurso de resistência aparecessem brechas. É por meio
dessas aberturas no discurso revolucionário, que a razão governamental circula seu domínio
sobre as vontades, de maneira a conduzir as resistências e fazer delas, um uso estratégico, de
forma a garantir a segurança da população como um todo. De acordo com Veiga-Neto e
Lopes (2011), a dominação pela inclusão é uma espécie de relação de poder, muito mais sutil
e profunda do que a exclusão ou do que o disciplinamento, pois ela possibilita um controle
total sobre a população.
Em vista disso, a naturalização do termo Campo e a sua correspondente transformação
numa expressão comum, algo que fosse capaz de representar genericamente os diferentes
espaços territoriais e as respectivas formas de vida humana, acaba por desconsiderar e, até
mesmo, silenciar, toda a dimensão histórica e política que o envolve. Como nos ensina
Foucault (2008a), a razão governamental não está interessada no passado, mas nas evidências
atuais e pelas ações que deve realizar para conduzir a sociedade civil ao fim econômico
desejado.
É nesse sentido que se verifica que, por meio da naturalização da categoria Campo, o
que se efetua é uma espécie de apagamento das ações humanas que, em grande parte do
território nacional, produziu e vem produzindo a modificação da paisagem natural. Quando se
admite que, tudo o que não é cidade, é Campo, condiciona-se o discurso a uma espécie de
esquecimento do trabalho humano sobre o próprio território, pois são omitidas as ações de
desmatamento, de queimada e de todas as formas possíveis de transformação da paisagem
natural. Ações essas que efetuam a modificação artificial das áreas que, até então eram
152

consideradas economicamente improdutivas, mas que são transformadas em terras propícias


para o uso comercial, sobretudo da agropecuária.
Consequentemente, não poderíamos admitir a pretensa neutralidade científica, quanto
à definição do léxico Campo, principalmente quando esse termo se presta a designar uma
totalidade de espaços, que a legislação brasileira ainda considera como rurais, pois essa
pretensa neutralidade acabaria por ocultar, silenciar e apagar a história da vida humana nesses
diferentes espaços territoriais. É nesse sentido que identificamos, na legislação analisada, uma
estratégia biopolítica de inclusão que, de acordo com Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 949), “[...]
as políticas de inclusão escolar [funcionarem] como um poderoso e efetivo dispositivo
biopolítico a serviço da segurança das populações”. Segurança essa que pode ser admitida
como um ganho desejável, uma vez que se trata de um movimento de inclusão de todos (a
Educação para Todos), como um objetivo de diminuição do risco social.
Defendendo, de uma forma otimista, os avanços educacionais para o enfrentamento
dos chamados desafios do século XXI, na introdução do relatório A UNESCO e a educação na
América Latina e Caribe, Mayor (1998) afirma que “assim como a exclusão social é um vetor
primário de pobreza, radicalização e violência, a educação revela-se como fator decisivo para
a construção da paz, alcançar um desenvolvimento duradouro e consolidar a democracia”
(grifo nosso). Considerando as políticas educacionais desse modo, como fator de redução da
exclusão social e como pressuposto para integração pacífica da sociedade, para o
desenvolvimento e consolidação da democracia, enfim, como um dispositivo de segurança,
Veiga-Neto e Lopes (2011, p. 106) advertem que “[...] coloque-se apenas no plano discursivo
ou de fato se materialize no plano das práticas concretas, a inclusão escolar tem em seu
horizonte a governamentalização neoliberal e a diminuição do risco social”.
As forças de atuação desse dispositivo de segurança da população, por sua vez,
possuem vetores que operam em duas direções complementares, pois se num sentido
ascendente, esse mecanismo busca defender a sociedade, no seu curso descendente, são os
indivíduos que essas forças defendem. Num primeiro sentido de atuação, é a segurança da
própria sociedade que está em jogo, uma vez que ela corre o risco de ter o seu modo de
funcionamento desordenado e desestruturado, caso algum indivíduo, ou determinada
população, não esteja completamente integrada à sua lógica interna de desempenho. Em outro
sentido, complementar e descendente, é sobre a segurança de cada indivíduo que esse
dispositivo age, pois são eles que correm o risco de se verem excluídos da sociedade, caso
essa razão de governo não tome as medidas necessárias, para que toda a sua população seja
153

incluída no interior de sua lógica intrínseca de funcionamento, assim como cada um de seus
indivíduos, particularmente (FOUCAULT, 2014a).
Nesse sentido, podemos verificar que o desvio e a ampliação do conceito de Educação
do Campo, para além dos espaços inicialmente considerados campesinos, constituíram-se
num movimento estratégico de inclusão, que possibilitou a ampliação do dispositivo
biopolítico de segurança da razão governamental. Incluir diferentes formas de existência no
interior de um mesmo discurso caracteriza-se como um movimento estratégico e
performático, que visa a produção de uma identidade específica: a identidade camponesa.
Como afirmam Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 25), “[...] temos uma preocupação especial
de resgate do conceito de camponês [... pois se acredita ser esse], um conceito histórico e
político, [cujo...] significado é extraordinariamente genérico e representa uma diversidade de
sujeitos” (grifo dos autores).
Essa categoria geral de território que se denominou de campo, embora reconheça a
diferença como diversidade, designa a totalidade de uma população e, com essa manobra
estratégica, tornou-se possível homogeneizar as diferenças e reduzir ou silenciar os conflitos
ou, para utilizar um termo amplamente empregado pela UNESCO: produzir consensos.
Consensos esses que giram em torno de uma tentativa de apagar os sentidos pejorativos,
historicamente construídos e que revestem as diversas denominações dos trabalhadores rurais,
como: caipira, seringueiro, caiçara, roceiro, sem terra, assentado; alcunhas essas que
acabariam por classificar “[...] esses sujeitos como atrasados, preguiçosos, ingênuos,
incapazes” (ARROYO, CALDART; MOLINA, 2011, p. 25).
Ainda para Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 26), o que essas expressões têm em
comum, é um vínculo natural que todas essas formações populacionais (indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e outros) possuem com o trabalho na terra, pois “essas palavras
denominam, antes de mais nada, o homem, a mulher, a família que trabalha na terra”. Cabe
destacar, mais uma vez, o vínculo teórico dos movimentos sociais de resistência com o
materialismo histórico. Recorrendo a esse aporte epistemológico, a categoria “trabalho” surge
nos discursos de resistência como uma condição natural de existência, como o elemento
determinante da constituição da própria humanização do homem.
Mediante essa manobra estratégica, verifica-se que o discurso produz uma espécie de
redução e de silenciamento de outras formas de existência, nas quais não faria o menor
sentido falar sobre a necessidade do trabalho para se constituir uma subjetividade
humanizada. Nesse caso, poderíamos considerar dois contextos específicos, que são as
comunidades indígenas e as comunidades de pescadores, que foram incluídas na categoria de
154

camponês, pela Resolução CNE/CEB 36/2001, como forma de se produzir o efeito de verdade
desejado, por meio do vínculo naturalizado e naturalizante, entre o trinômio: indivíduo, terra e
trabalho; capaz de criar um sentido de totalidade. No caso dos indígenas, que especificamente
não possuem uma relação com terra propriamente, mas com a floresta, não há como se admitir
que esse vínculo natural se produza por meio de uma relação propriamente de trabalho.
Também há que se considerar situação de trabalho das comunidades de pescadores que,
embora dependam propriamente de uma relação laboral para produzir a sua existência, esse
vínculo não se dá com a terra, mas com outro meio: o rio ou o mar.
Percebe-se que a incorporação ou a inclusão de outros espaços e culturas, no interior
de um conceito genérico de campo, possibilita a transformação daquilo que antes se poderia
considerar como diferente, em algo que se passa a admitir como diverso. A produção de uma
identidade única é o que possibilita transformar a diferença em diversidade, útil ao dispositivo
de segurança da liberal democracia. Como advertem Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 958) “[...]
se aquilo que está em jogo é executar o melhor – mais efetivo, mais econômico, mais
permanente – governamento da população, então é preciso, antes de mais nada, promover o
maior ordenamento possível dos elementos que a compõem”.
Por esse ponto de vista, quando o Parecer 36/2001 reconhece a Educação do Campo
como uma política ampla e totalizante, identifica-se esse esforço como uma estratégia de
governamento da população, de forma permitir a produção de um ordenamento e da
normalização (FOUCAULT, 2008a; 2008b). Logo após a II Conferência Nacional, Arroyo e
Fernandes (1999, p. 13-14) comentaram sobre a nova proposta educacional, ao afirmar que a
sociedade e as elites nacionais reconheciam a inquietude e a agitação dos movimentos sociais
do campo:

Me parece que hoje, as elites, a sociedade, todos reconhecem que o campo


não está parado, o campo está vivo, há mais vida na terra do que no asfalto
da cidade e este me parece o ponto fundamental: temos consciência de que
onde há mais vida no sentido de movimento social. Onde há mais
inquietação é no campo (ARROYO; FERNANDES, 1999, p. 13-14, grifos
nossos).

Essa movimentação e inquietação no campo, essa vida no sentido do movimento social


é que precisa ser administrada, gerenciada, governada; são as vontades aleatórias do
movimento revolucionário que surgem como um risco para a liberal democracia e precisam
ser reguladas e controladas pelo dispositivo de segurança da razão governamental. É
justamente essa inquietação, esse movimento da vida que interessa à biopolítica, pois são
155

esses os elementos que precisam ser regulados e direcionados, de forma que sua potência seja
conduzida na direção das próprias realizações da sociedade humana, mencionadas na
Resolução 36/2001.
O movimento estratégico, para a formação de um dispositivo de segurança, produz-se
por meio da educação e se consistiu pela incorporação e pelo acolhimento de outros espaços
territoriais, isto é, uma Educação do Campo em que as diferentes formas de existência
humana pudessem ser incluídas no interior de um único conceito territorial e que essas
diferenças pudessem ser transformadas em diversidade, de maneira a possibilitar um convívio
democrático, por meio do consenso. Que as identidades culturais pudessem se apoiar num
elemento comum: a sua ligação com a terra e o seu uso como ferramenta de produção das
condições da existência social, ou seja, percebe-se que o projeto se desencadeia em torno da
uma economia da existência.
Discursivamente, podemos analisar o movimento de inclusão como uma estratégia,
para reforçar o dispositivo de segurança em torno da noção de população, por meio do qual se
inclui legalmente outros espaços e seus respectivos habitantes, que não haviam sido
mencionadas originalmente no relatório da I Conferência Nacional. Trata-se de uma ação do
princípio de rarefação do discurso, no qual o movimento de inclusão se constitui,
discursivamente, pelo funcionamento do princípio do comentário que, de acordo com
Foucault (2014a, p. 24), tem o papel de fazer falar “[...] o que estava articulado
silenciosamente no texto primeiro”, ou em outras palavras, “[...] dizer pela primeira vez
aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não
havia jamais sido dito” (FOUCAULT, 2014a, p. 24).
Nesse ponto podemos perceber que aquilo que não foi expresso no discurso original da
I Conferência Nacional (o não dito) passou a ser dito pela norma legal, por meio dos
enunciados de inclusão social, como uma intenção política para ampliar a oferta de educação
básica e enquanto estratégia, para se cumprir o acordo da universalização educacional,
firmado na Conferência de Jomtien em 1990. O que também jamais foi dito no discurso
original é que, a mobilidade proporcionada pelo discurso da inclusão fez parte da estratégia de
ampliação da razão governamental. Isso pelo que pontuamos anteriormente, pois o sentido
elementar do deslocamento discursivo caracterizou um efeito de totalização, por meio da
incorporação de toda a população rural no interior de uma nova política educacional.
Movimento que tornou possível a construção de um conceito de população do campo, que,
muito mais que incluir os excluídos para reduzir as desigualdades, acabou por homogeneizá-
las e colocá-las sob o controle de um mesmo enunciado. Por meio dessa homogeneização,
156

diferentes culturas e atividades produtivas (ou formas de vida integradas à natureza) passaram
a ser submetidas a um modelo empresarial de gestão e inseridas no domínio de uma lógica de
mercado (DARDOT; LAVAL, 2016).
O segundo movimento estratégico do dispositivo de segurança, a partir dessa
homogeneização fabricada pela criação discursiva do conceito populacional de campo,
consistiu num processo de individualização e disciplinarização, com a construção de normas
que permitiram ancorar as diferenças, modelando e fixando as diferentes subjetividades do
homem rural no interior de uma noção de identidade camponesa. Em outras palavras, a partir
da construção discursiva dessa noção de população do campo, tornou-se possível uma ação
total e, ao mesmo tempo, individualizada da razão governamental. A partir de uma produção
de dados estatísticos populacionais, que serviram de fundamento científico para a criação de
normas, sobre as quais se apoiou toda a política econômica, cuja ação da razão governamental
se produz sobre cada um dos indivíduos dessa população (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
De acordo com Foucault (2014a, p. 24), esse modo de dizer “o que estava articulado
silenciosamente no texto”, constitui-se, ainda, como um princípio de delimitação do acaso do
discurso, que o autor denomina como “o princípio do comentário”. Esse princípio impede a
dispersão, controla e limita “o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a
forma de repetição do mesmo” (FOUCAULT, 2014a, p. 28). É desse modo que Foucault
(2014a, p. 25) argumenta que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta”, num retorno dos enunciados do discurso, por intermédio desse princípio, que é o do
comentário.
É a ação desse princípio do comentário que vemos se processar nos textos produzidos
após a I Conferência Nacional, como o produzido por Arroyo, Caldart e Molina, que
argumentam:

Os sujeitos da educação do campo são aquelas pessoas que sentem na


própria pele os efeitos desta realidade perversa, mas que não se conformam
com ela. São os sujeitos da resistência no e do campo: sujeitos que lutam
para continuar sendo agricultores apesar de um modelo de agricultura cada
vez mais excludente; sujeitos da luta pela terra e pela Reforma Agrária;
sujeitos da luta por melhores condições de trabalho no campo; sujeitos de
resistência na terra dos quilombos e pela identidade própria desta herança;
sujeitos da luta pelo direito de continuar a ser indígena e brasileiro, em terras
demarcadas e em identidades e direitos sociais respeitados; e sujeitos de
tantas outras resistências culturais, políticas, pedagógicas [...] (ARROYO,
CALDART; MOLINA, 2011, p. 152, grifos nossos).
157

Portanto, consideramos a emergência do discurso da Educação do Campo no Brasil,


como um movimento estratégico, sob um embate agonístico entre duas concepções políticas
distintas: a liberal-democracia e a social-democracia. Por conseguinte, podemos, agora,
identificar os pontos de ancoragem que consideramos principais e que possibilitaram a
organização e o domínio de um espaço simbólico comum, de uma maneira específica. Trata-
se do compartilhamento de um espaço simbólico no qual a terra, o trabalho e a identidade
camponesa surgem como enunciados comuns, que possibilitam a construção de verdades
sobre as quais se produzem os consensos, como defendem as agências internacionais, sobre
quem é e quais as características que esse novo sujeito. Como deve ser esse camponês, quais
características deve ele possuir e como deve se comportar, para que se a razão governamental
possa conduzir racionalmente suas condutas, de forma que suas vontades sejam direcionadas
conforme as realizações da sociedade humana.
Podemos então dizer que, a Educação do Campo emergiu em meio a um agonismo de
forças, uma disputa política entre duas razões governamentais, cada qual com seu regime de
verdade próprio, e a partir do qual se propôs, estrategicamente, a formação de subjetividades
formalmente heterogêneas, mas que possuem um ponto de relação comum, que era o trabalho.
Ou seja, em ambos os casos se está falando da formação de um homo oeconomicus, embora se
perceba um esforço político, por parte dos movimentos sociais e sindicais do campo, de se
formar um sujeito de direito, um sujeito democrático, do contrato social, que é característico
da razão de Estado. No outro polo, percebe-se o empenho estratégico para a produção de um
novo sujeito, empreendedor, dinâmico, multifuncional, um modelo universal de sujeito-
empresa, que interessa à nova razão governamental neoliberal e que pouco a pouco vem se
estabelecendo como modelo único (DARDOT; LAVAL, 2016).
Em resumo, pode-se dizer que toda essa disputa política, em torno da ampliação da
oferta educacional e da inclusão das populações até então desassistidas, teve um propósito
fundamental, que foi a produção de uma forma específica de sujeito, que se tornou necessária
para o funcionamento de uma determinada formação social. Assim sendo, vemos a circulação
de um regime de verdades que buscou a produção do sujeito da social-democracia, que entrou
em disputa com outro regime de verdades, por meio das quais se pretendeu produzir o homo
oeconomicus. Em todo caso, era a produção de subjetividades que interessava a ambos os
regimes de verdades, sendo esse assunto que trataremos no próximo capítulo, no qual
analisamos as tramas da subjetivação do educador do campo, no interior do Programa de
Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo), no Estado
de São Paulo.
158

V - AS TRAMAS DA SUBJETIVAÇÃO DO EDUCADOR DO CAMPO


EM SÃO PAULO

No capítulo precedente analisamos as condições discursivas, que tornaram possíveis o


léxico campo se transformar num objeto de conhecimento verdadeiro, de forma a redefinir,
conceitualmente, o conjunto daquelas populações que vivem em contextos espaço/temporais
habitados, diferentes daqueles que se consideram como cidade. Em outros termos, analisamos
as condições que possibilitaram a aceitação do léxico campo, como um conceito verdadeiro e
que designa um espaço geográfico objetivo e real, no qual se visualiza a produção de um
modo de vida muito particular, que se convencionou chamar de camponês. Em suma,
analisamos as condições que determinaram a construção discursiva das verdades sobre esses
novos objetos, que se denominam: campo e camponês. A partir da produção desses dois
termos conceituais, verificamos a construção de todo um campo discursivo, no interior do
qual o espaço geográfico e o sujeito habitante desse espaço foram transformados em objetos
de conhecimento possível, ou seja, reconstruímos o processo por meio do qual se produziu a
objetivação do sujeito camponês.
Essa necessidade de delimitação conceitual, tanto do espaço habitado como do sujeito
que vive nesse ambiente, baseia-se numa vontade de saber, que necessita estabelecer um jogo
de verdade sobre seus próprios objetos de conhecimento, de maneira que o discurso estabilize
as formas e, desse modo, permita reduzir o risco e as ameaças de tudo aquilo que pode se
apresentar como aleatório ao discurso, ou seja, as coisas que se produzem a partir da
imanência, que é própria das formas vivas (FOUCAULT, 2014a). Verificamos assim, que a
amplitude conceitual do objeto campo e do sujeito camponês acaba por generalizar as
diferenças e as singularidades, homogeneíza discursivamente aquilo que se apresenta com o
naturalmente complexo e múltiplo, de maneira a apreender os mais diversos espaços
geográficos e seus respectivos modos de vida, transformando-os num objeto de conhecimento
“pasteurizado46” e verdadeiro.
Dessa maneira, até aqui nos restringimos à análise do modo como se estabeleceu
histórica e macropoliticamente as verdades sobre a Educação do Campo no Brasil, de maneira

46
A pasteurização é um processo culinário, utilizado para eliminar microorganismos presentes nos alimentos,
que podem acelerar o processo de deterioração e/ou causar doenças. Nesse caso, utilizamos o termo
“pasteurização” como uma metáfora, que representa o sistema de exclusão, operado pelo discurso, por meio da
vontade de verdade, descrita por Foucault (2014a).
159

a fazermos aparecer a trama discursiva de saber e de poder, que antecede propriamente a


produção do professor do campo, enquanto sujeito de ação e objeto necessário para o
funcionamento dessa mesma trama que o criou. Tentamos demonstrar, com o apoio dos
estudos foucaultianos e de seus comentadores, que a Educação do Campo, enquanto
acontecimento historicamente demarcável inaugura um novo traçado histórico, produz uma
descontinuidade espaço temporal, que permite a construção de novos sujeitos. Dessa maneira,
fizemos esse percurso arquegenealógico, para destacar o caráter positivo do poder e de suas
relações com o saber, que possuem o potencial de construir objetiva e originalmente um
sujeito historicamente singular, que é o professor do campo. Um sujeito que surge não
somente como objeto de conhecimento, mas como um efeito discursivo da própria trama de
saber/poder e enquanto ponto de apoio para a disseminação das práticas constituintes daquilo
que se instituiu como política pública e que se denominou de Educação do Campo.
É justamente o estudo dessas práticas constitutivas do sujeito professor do campo, que
nos interessa desse ponto em diante da presente pesquisa, pois a partir de agora avançamos
para a fase final de desenvolvimento da presente tese, de maneira a darmos conta do nosso
último objetivo de pesquisa, que trata da investigação sobre o processo de subjetivação do
professor do campo. Para tanto, adentramos propriamente no interior da microfísica do
Programa de Formação de Professores do Campo, desenvolvido pela Universidade de
Taubaté-SP, doravante designado como Procampo/UNITAU, para estudarmos os efeitos
substanciais e concretos do discurso, por meio do qual se produziu o objeto professor do
campo.
Destarte, nos interessa no presente capítulo as ações práticas, realizadas no interior do
dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU, por meio das quais se efetua a seleção, a
apreensão e todo um trabalho discursivo e não-discursivo sobre os indivíduos da roça, de
forma a transformá-los em sujeitos professores do campo. Aprofundamos, assim, o estudo
sobre a objetivação e adentramos ao universo da microfísica do poder governamentalizado, no
interior do qual circula o discurso verdadeiro, por meio do qual se produzem as
subjetividades.
Considerando que o estudo acerca do processo de subjetivação do professor do campo
constitui nosso objetivo último de pesquisa, para que possamos avançar as análises, desse
ponto em diante, privilegiamos as dimensões “microfísicas” de circulação das relações de
poder e de saber, e, para tanto, faz-se necessário explorar especificamente o meio pelo qual se
fez difundir o discurso performativo sobre o professor do campo. Esse meio, no qual se
reproduziu toda a trama discursiva sobre o objeto de nosso estudo, nas suas respectivas
160

dimensões de apreensão e de produção de subjetividades, constitui-se no dispositivo


pedagógico do Procampo/UNITAU.

5.1 O dispositivo pedagógico e a produção do sujeito

Como mencionamos anteriormente, a perspectiva foucaultiana considera a atualidade


do poder como uma dimensão criativa e produtiva que, na sua forma governamentalizada,
circula a partir de um conjunto de procedimentos racionalmente calculados para a adequada
gestão e direção de condutas, sejam elas individuais ou da totalidade dos modos agir de uma
população. Em vista disso, o poder governamentalizado necessita de uma base de sustentação,
ou de um ponto onde possa se apoiar, para que seu regime de verdade continue a se difundir
pelo tecido social. Além desse ponto de apoio, a govenamentalidade necessita ainda de um
meio, que lhe permita fazer circular e, com isso, reproduzir o discurso verdadeiro que mantém
em funcionamento o seu regime de saber e de poder.
Nesse sentido, é o sujeito que constitui esse ponto de apoio, no qual o poder
governamentalizado se sustenta, pois funciona como uma espécie de nó, que se produz na e
pela própria trama discursiva, no interior do qual as verdades se reproduzem, para tornar
possível a circulação do poder em sua plena positividade. De outra forma, há a necessidade de
um meio, que permita a rede de saber/poder estabelecer a sua trama discursiva e produzir o
sujeito como ponto de contato, necessário à sua reprodução. Esse meio se configura partir do
universo institucional e dos seus respectivos dispositivos de apreensão das individualidades.
Em resumo, para que o poder circule, faz-se necessário tanto um apoio subjetivo como um
suporte institucional, isto é, entre o governo e os indivíduos há toda uma rede
institucionalizada de dispositivos, que apreendem as individualidades, de maneira a produzir
as subjetividades de que o poder necessita para se fazer circular (AGAMBEN, 2009).
De acordo com Agamben (2009), sujeito é algo que surge da relação entre duas
grandes classes de coisas, os seres viventes e os dispositivos que os capturam
incessantemente, ou seja, o dispositivo é máquina que captura o indivíduo e o transforma em
sujeito, por meio de uma cisão que separa o vivente de si mesmo e da relação imediata com
seu ambiente. Desse modo, o autor aprofunda a noção foucaultiana de dispositivo, ao
considerá-lo “[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,
161

determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os


discursos dos seres viventes” (p. 40).
A ampla noção que Foucault (2014b) nos deixou sobre o termo dispositivo, possibilita
compreendê-lo como uma rede heterogênea que se forma entre os elementos discursivos e
não-discursivos e, nesse sentido, Agamben (2009, p. 39) propõe que, todos os significados
com os quais se reveste o termo dispositivo remetem sempre a uma referência à oukonomia,
isto é, “[...] a um conjunto de práticas, de saberes, de instituições cujo objetivo é gerir,
governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos
homens”.
Entende-se por dispositivo, o termo geral utilizado por Michel Foucault, que designa a
amplitude das tecnologias de poder, marcadoras da transitoriedade e da imanência histórica e,
com isso, uma concepção que substitui à ideia clássica acerca dos universais. Ao propor a
noção de dispositivo, o autor inverte o sentido das análises tradicionais e propõe uma
ontologia histórica, que desconsidera a existência de uma essência para as coisas, pois a
transitoriedade e a mudança são os elementos que caracterizam a imanência da história. Desse
modo, abandona-se a premissa da existência dos universais enquanto continuidade e
identidade das coisas, dos seres e dos sujeitos. O dispositivo foi precisamente o que, na
estratégia foucaultiana, tomou lugar dos universais, pois esse termo não designa “[...]
simplesmente essa ou aquela medida de segurança, essa ou aquela tecnologia de poder, nem
mesmo uma maioria obtida por abstração [...]”, antes, caracteriza a rede que se estabelece
entre essas medidas e tecnologias e os processos de subjetivação (ABAMBEN, 2009, p.33).
É sob esse aspecto, como máquina de captura e de orientação para a produção de
subjetividades, que analisamos o Procampo/UNITAU, isto é, enquanto dispositivo
pedagógico de modelação, de controle e de orientação dos gestos, das condutas, das opiniões
e dos discursos do professor do campo. Assim, esse dispositivo pedagógico se organizou na
forma de uma máquina institucionalizada de captura, que emergiu entre duas formas
ontológicas do ser: o indivíduo da roça e o sujeito professor do campo. Entre o vivente da
roça e o sujeito que se tornou necessário à manutenção da trama discursiva, a qual sustenta
toda a concepção de Educação do Campo, viu-se emergir o dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU, como mecanismo de captura e de produção de subjetividades.
De acordo com Agamben (2009, p.46), “de fato, todo dispositivo implica um processo
de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo,
mas se reduz a um mero exercício de violência”. Considera-se, então, o dispositivo como a
trama heterogênea que liga institucionalmente o sujeito aos regimes institucionalizados de
162

saber e de poder, tendo a verdade como seu elemento de ligação, elemento esse que possibilita
as ações de governo sobre sujeitos livres. O dispositivo é a máquina que se forma entre o
poder e o indivíduo, que utiliza a verdade como um fio, que amarra e prende o sujeito às
tramas discursivas e não-discursivas do poder governamentalizado (AGAMBEN, 2009).
O dispositivo é a própria rede heterogênea que se forma entre o empírico 47 e o
transcendental48 do sujeito, como uma malha estratégica que cruza as relações de poder e de
saber, de maneira a fabricar as subjetividades necessárias à manutenção dessas mesmas
relações. O sujeito é, então, o ponto no qual o dispositivo se prende, formando um nó nessa
rede estratégica, que possibilita a união dos fios e a continuidade das relações de poder. Ou
seja, é por meio do sujeito ocorre a circulação dos saberes, que possibilitam a continuidade
das relações de poder que, por sua vez, produzem novos saberes (FOUCAULT, 2014d;
AGAMBEN, 2009).
A partir dessas definições acerca do dispositivo, podemos então fazer uma primeira
aproximação do nosso objeto específico de estudo, para analisá-lo mais de perto. Assim,
como verificamos no capítulo VI, restou evidenciada a produção de um saber muito bem
delimitado e calculado sobre os contornos da forma sujeito camponês, ou seja, identificamos a
construção discursiva desse sujeito enquanto objeto de conhecimento. Somente após essa
delimitação da forma camponesa de ser sujeito, é que foi possível estabelecer uma definição
performativa sobre os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que deveriam ser
desenvolvidas nos indivíduos que ocupariam esse espaço, a partir de um processo formativo
para a docência, de modo a torná-los aptos a assumirem uma posição institucional como
professores do campo.
O sujeito professor do campo surge, nesse contexto, como uma função no interior da
trama discursiva, pois ele passa a funcionar como um dos pontos de apoio e de disseminação
radial desse regime de verdade previamente criado, que define objetivamente o que é ser
camponês. O professor do campo se constitui propriamente como o ponto de fixação de que

47
Na filosofia, o termo empírico indica aquilo que é factual, ao estado substantivo da coisa (ABBAGNANO,
2007). Para Michel Foucault, o caráter empírico da subjetividade corresponde às condições de possibilidades de
existência, que são ditadas pela norma, ou seja, considerando a atualidade de uma existência subjetiva, existem
práticas que são permitidas ao sujeito realizar e outras que lhe são proibidas. No interior desse campo normativo
que se produz a substancialidade do sujeito. Em outros termos, o empírico constitui tudo aquilo que o sujeito
pode fazer consigo mesmo, considerando a atualidade da sua existência.
48
Foucault (2014d) considera que as condições de existência empírica do sujeito são construídas na imanência
da história, por meio de uma interface entre o saber e o poder. Dessa maneira, por meio do jogo de saber/poder é
que se constrói, de maneira antecipada, a forma com que uma determinada subjetividade deve assumir em cada
momento histórico. Sendo assim, a forma-sujeito antecede a própria substância humana que a ocupa e, por esse
motivo, é considerada transcendental.
163

necessita a trama discursiva, para irradiar seu regime de verdade e possibilitar a continuidade
desse processo de fabricação das subjetividades camponesas.
A emergência desse objeto de conhecimento somente se tornou possível após a
definição e a delimitação discursiva de quem é, ou quem deveria ser o sujeito camponês e
quais as características, conhecimentos e habilidades deveriam possuir e dominar, aqueles que
desejassem ocupar essa posição de professor do campo. O dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU surge como a superfície de mediação, aquilo que se coloca entre essa
forma transcendental de ser sujeito, produzida previamente pelo discurso e a sua superfície de
contato, qual seja, os corpos e as mentes (ou a alma) dos indivíduos da roça, que se
submeteram voluntariamente ao processo de formação docente.
É desse modo que o dispositivo produz aquilo que Deleuze (2013, p.105) denominou
de “interiorização do lado de fora”, pois é o próprio tecido social que se torce e se dobra sobre
os indivíduos, formando sobre eles uma espécie de prega ou sulco que envolve o ser vivente,
o apreende e o transforma em sujeito. A transformação das individualidades ocorre com a
interiorização das verdades normatizadas, ou seja, a formação do sujeito professor do campo
ocorre por meio da reprodução dos saberes do mundo exterior, quando suas verdades são
transportadas para o âmago mesmo do sujeito. De uma maneira mais específica, podemos
dizer que o Procampo/UNITAU, enquanto dispositivo pedagógico de apreensão e produção
de subjetividades, constituiu-se como a superfície de mediação, que possibilitou a produção
dessa dobra social sobre os indivíduos da roça, de forma a fazer com que eles assumissem,
para si mesmos, as verdades acerca da forma transcendental de ser professor do campo. Para
tanto, para a transformação do indivíduo da roça em sujeito professor do campo, foi preciso
todo um processo de subjetivação, intermediado pelo dispositivo pedagógico do Procampo/
UNITAU, que será abordado no próximo subitem.

5.2 O dispositivo pedagógico e a reprodução da verdade

Por meio do Edital de Convocação no 9/2009-MEC o Ministério da Educação, através


de sua Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD 49),

49
No momento da publicação do Edital de Convocação nº 09/2009-MEC, a SECAD ainda não havia
incorporado o eixo da inclusão, o que ocorreu somente a partir do Decreto 7.480, de 16 de maio de 2011, quando
passou a se denominar SECADI.
164

convocou as Instituições Públicas de Ensino Superior para que apresentassem seus


respectivos projetos para os Cursos de Licenciatura em Educação do Campo. O texto do
Edital estabelecia os critérios de formulação dos Projetos Políticos Pedagógicos dos
cursos, aos quais as instituições interessadas deveriam se adequar como condição para a
aprovação desses projetos e o respectivo repasse financeiro necessário à sua
operacionalização (BRASIL, 2009b).
Uma das condições para a aprovação do projeto consistia na Promoção de
estratégica de formação para a docência multidisciplinar, com organização curricular
por área de conhecimento (MEC, 2009). Nessa norma, que estabelece critérios de
inclusão e de exclusão, percebe-se o emprego inédito de um enunciado que põe em
circulação um modo singular de objetivação do professor do campo. A partir desse
critério normativo, o professor do campo se transforma num objeto a ser conhecido e
produzido pelo dispositivo pedagógico do Procampo. Esse discurso normativo põe em
circulação a objetivação de uma forma específica de ser professor, caracterizada pela
formação plural, que se destinava à habilitação para o exercício da docência em múltipas
disciplinas escolares.
Por meio desse discurso normatizado, criou-se um espaço institucional objetivo,
no qual estavam contidas as verdades sobre o sujeito que poderia e deveria ocupá-lo, um
sujeito até então inexistente, cujo dispositivo pedagógico estaria incumbido da sua
produção. Com isso, o discurso posto em circulação pela norma admite que o dispositivo
pedagógico do Procampo deveria, obrigatoriamente, oferecer as condições
didático/pedagógicas necessárias à habilitação do professor do campo, para lecionar em
múltiplas disciplinas, correspondentes a duas das seguintes grandes áreas do
conhecimento: Linguagens e Códigos; Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natureza
e Matemática; Ciências Agrárias.
Por intermédio da norma, dissemina-se um discurso que objetiva o professor do
campo como um sujeito possuidor de habilidades para a docência em múltipas
disciplinas, assim como para o desenvolvimento outras tarefas administrativas,
operacionais e pedagógicas, necessárias ao funcionamento da escola do campo. Essa
objetivação serviu como critério, para a antecipação dos procedimentos performativos,
necessários à transformação dos indivíduos do meio rural em sujeitos professores do
campo. Percebe-se que, esse modo de objetivação do professor do campo, encontra-se
evidentemente atravessado pelo interdiscurso da razão governamental neoliberal.
165

Como vimos no capítulo II desse estudo, o discurso neoliberal fundamentou a


formulação de políticas públicas brasileiras a partir da segunda metade da década de
1990, quanto à racionalização no uso dos recursos públicos, de maneira a se obter a
melhor eficácia possível, também no uso dos recursos humanos (DARDOT ; LAVAL,
2016). Esse discurso esteve alinhado às exigências dos órgãos internacionais de
financiamento e de suas agências consultivas, quanto à reestruturação dos gastos
públicos, sobretudo quanto à necessidade de racionalização e economia nas despesas com
a educação, que tratamos no capítulo IV (LEHER; MOTTA, 1998; PAIVA; ARAÚJO,
2008; PANSARDI, 2011). Esses elementos discursivos expõem um enunciado
relacionado à eficiência no uso dos recursos públicos, que também se revelam na
normatização do exercício da docência em múltiplas disciplinas. A formação docente por
área do conhecimento constitui um fato inédito, quando se trata da formação de
professores brasileiros. Além da sua originalidade, esse enunciado parece contrariar a
própria lógica atual do mercado de trabalho, que exige profissionais cada vez mais
especializados, peritos em assuntos relativos a um único objeto de conhecimento
(DARDOT; LAVAL, 2016).
Entretanto, pode-se afirmar que essa estratégica de formação multidisciplinar
consistiu não exatamente como uma solução didático/pedagógica, destinada a resolver os
problemas educacionais específicos da população rural. Observando as entrelinhas
históricas dessa proposta, percebe-se que a concepção de uma formação multidisciplinar
materializava uma solução técnica e gerencial, utilizada pela razão governamental, para
resolver dois problemas administrativos de ordem logística, mas que afetavam a ordem
econômica. Um deles, que podemos considerar como um impasse geral do sistema
educacional brasileiro nas décadas de 1990 e de 2000, caracterizada pela carência de
professores especialistas. Especificamente nas áreas rurais, havia outro inconveniente
logístico, que consistia na necessidade de efetuar diariamente o transporte de professores
da cidade para as áreas rurais, o que ocasionava um comprometimento de parcelas
expressivas dos recursos públicos alocados para a educação (RUIZ; RAMOS; HINGEL,
2007; PANSARDI, 2011; YANAGUITA, 2013).
O problema geral estava relacionado à escassez de professores habilitados em
determinadas áreas do conhecimento, principalmente para lecionar as disciplinas relativas
às ciências exatas e naturais. Essa deficiência de professores foi apontada, por Ruiz,
Ramos e Hingel (2007), num relatório que buscou estudar as medidas necessárias para
superar a carência de professores, sobretudo para as disciplinas específicas do Ensino
166

Médio. A formação por área do conhecimento foi a estratégia encontrada naquele


momento e visava garantir um aumento significativo de professores habilitados nas
disciplinas de maior carência. Essas medidas se viam necessárias, tanto para garantir um
quantitativo suficiente de professores em cada disciplina, como para a ampliação da
oferta de docentes formados e preparados para atuar em qualquer uma daquelas áreas
críticas do conhecimento, nas quais se identificava a maior deficiência, como:
matemática, física, biologia, química etc.
Assim, a formação de professores do campo emergiu como uma solução técnica,
necessária para o gerenciamento de tais problemas, possibilitando uma formação que
habilitaria um mesmo professor a exercer a docência em múltiplas disciplinas. Além
disso, consistia numa estratégia também econômica, pois ao considerar as especificidades
das escolas rurais, a utilização de um único professor para lecionar em múltiplas
disciplinas tornaria mais eficiente o emprego dos recursos humanos, além de reduzir os
gastos públicos, também reduziria a quantidade de contratações necessárias.
Portanto, a solução encontrada com a formação de professores do campo,
concentrada por área do conhecimento e não por disciplina, buscava solucionar também
impasses técnicos, financeiros e logísticos específicos das áreas rurais. Primeiramente
porque as práticas adotadas, até então, com a contratação de vários professores para
lecionar numa mesma turma de alunos, de forma que cada um fosse responsável pelo
ensino de apenas uma disciplina, tornavam inviável a oferta educacional nas áreas rurais,
tanto para o segundo ciclo da educação básica, como para o ensino médio. Isso se deve
ao fato de que muitas das escolas rurais possuíam poucas turmas (às vezes uma só) e um
reduzido número de alunos. Assim, um professor com formação multidisciplinar poderia
atender a demanda de várias disciplinas, numa mesma turma ou em turmas diferentes, o
que se pode considerar como uma racionalização e uma economia no uso dos recursos
humanos.
Outro ponto estratégico relacionado ao Procampo, diz respeito à oferta da
formação docente aos próprios habitantes locais, o que poderia gerar uma economia de
recursos financeiros, pois isso reduziria a necessidade de efetuar o transporte de
professores por longas distâncias. Essa era uma realidade das escolas rurais, pois a
maioria de seus professores residia na cidade e, por esse motivo, havia a necessidade do
poder público custear os longos deslocamentos diários, até o local de trabalho. A oferta
da formação docente, aos próprios indivíduos residentes nas áreas rurais, consistia numa
solução racional e econômica, que visava solucionar o problema de deslocamento diário
167

dos professores que, acarretava também prejuízos pedagógicos. Não eram raras as
circunstâncias em que, devido às condições das estradas rurais, que em épocas chuvosas
tornam-se intrafegáveis, ocorria o cancelamento das aulas.
A replicação do modelo urbano de educação às áreas rurais, a partir da década de
1930, fez emergir a complexidade desses problemas, que se tornaram verdadeiros
obstáculos para que a população do campo pudesse ser totalmente incluída no processo
formal de educação escolarizada (NASCIMENTO, 2009; ARROYO, CALDART;
MOLINA, 2011; MUNARIM, 2013). O contorno dessas barreiras se buscou com a adoção
das medidas político/gerenciais, como se verifica no discurso do Edital nº 09/2009, no qual
enuncia a Promoção de estratégia de formação para a docência multidisciplinar, com
organização curricular por área de conhecimento (BRASIL/MEC, 2009a). Um discurso
que se encontra atravessado por elementos não-discursivos, que correspondem às
estratégias que visam oferecer uma solução prática, eficiente e econômica para esses
problemas.
Tais inconvenientes, relacionados principalmente com a logística da educação
rural, surgiram como elementos não-discursivos, para os quais foi preciso encontrar uma
solução, tanto econômica quanto política, por meio da qual a razão governamental
pudesse produzir ações práticas, como estratégia para garantir o cumprimento dos
acordos internacionais que exigiam a ampliação da oferta educacional e de assegurar uma
Educação para Todos (LEHER; MOTTA, 1988; JIMENEZ; SEGUNDO, 2007). O recurso
encontrado e que se mostrava mais economicamente viável, para incluir toda população
rural aos processos formais de educação e ao mesmo tempo melhorar a qualidade
educacional, foi o investimento na formação e habilitação de indivíduos do próprio local.
Para tanto, a formação inicial do professor do campo precisava ser ampla e
múltipla, para a fim de garantir a maior eficiência do trabalho docente e atender
oportunamente às demandas, tanto econômicas como educacionais, que eram específicas
das áreas rurais. Sendo assim, a estratégia de formação docente por área de conhecimento
resolveria dois dos principais impasses nacio nais que se mostravam como impeditivos
para a efetivação do projeto Educação para Todos, e se caracterizavam na dificuldade e
no alto custo de se alocar professores especialistas em escolas rurais e o dispêndio
excessivo de recursos financeiros com transporte de professores.
Todo esse retorno às questões macroestruturais se fez necessário, para
entendermos os elementos discursivos e não-discursivos que serviram como base de
sustentação de um modo específico de objetivação do Professor do Campo. Uma maneira
168

singular de ser professor, que emergiu no discurso político/educacional, acabou por se


transformar na norma contida no Edital nº 09/2009. Essa norma serviu de orientação para
a propositura e a construção do Projeto Político Pedagógico do Procampo/UNITAU que,
por sua vez, estabeleceu as condições de funcionamento do dispositivo pedagógico e de
suas práticas formativas. No próximo item abordamos a distribuição dessas práticas
formativas no tempo e no espaço, assim como a estrutura que formou a trama desse
dispositivo pedagógico.

5.3 Puxando alguns fios da trama do dispositivo pedagógico

O lócus de estudo da presente pesquisa foi uma Instituição Pública de Ensino


Superior (IES) do interior paulista que, até o momento da defesa da presente tese,
representava a primeira e a única a oferecer um curso de Licenciatura em Educação do
Campo, no estado de São Paulo. Trata-se da Universidade de Taubaté, que se caracteriza
como uma Instituição Pública de Ensino Superior, criada pela Lei Municipal nº 1.498, de
6 de dezembro de 1974, uma autarquia do município de Taubaté/SP, cuja sede está
localizada no Vale do Paraíba Paulista, à uma distância aproximada de 140 quilômetros
da capital do estado de São Paulo (UNITAU, 2019).
Foi reconhecida como universidade, pelo Decreto nº 78.924, de 9 de dezembro de
1976, assinado pelo então Presidente da República Ernesto Geisel e publicado na Seção
1, do Diário Oficial da União de 10 de dezembro de 1976. Oferece diversos cursos de
graduação nas áreas de biociências, exatas, humanas e de tecnologia; oferta cursos de
pós-graduação lato sensu nas áreas de humanas, negócios e gestão, comunicação e arte,
exatas, engenharia e tecnologia, biociências e saúde; disponibiliza, ainda, cursos de
mestrado e doutorado em diversas áreas do conhecimento (UNITAU, 2019).
A UNITAU apresentou sua proposta para a oferta do curso de Educação do
Campo, concorrendo ao Edital de Convocação, por meio do qual obteve a devida
autorização a sua criação e execução. Após a resolução de problemas relacionados à
descentralização de recursos financeiros do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), com vistas a financiar o curso e em atendimento às determinações
contidas no item 2.2 daquele edital, que previa a observância constitucional da gratuidade
e da igualdade de condições para o acesso ao ensino, a UNITAU lançou o Edital
169

COPESA nº 002/2012. Por intermédio desse edital, abriu o processo seletivo para o curso
de Licenciatura em Educação do Campo – Procampo, com a oferta de 60 vagas
(UNITAU, 2012b).
Como critério preferencial para ter o direito a concorrer a uma vaga no curso, o
candidato deveria ser professor e estar em exercício na rede pública de educação básica,
com atuação em escolas rurais e que ainda não possuir habilitação legal em licenciatura.
Como segundo parâmetro para a concorrência, o candidato poderia ser professor da rede
pública de ensino que, mesmo que possuísse a habilitação legal exigida para a docência,
mas atuasse em áreas distintas daquelas na qual fora formado. Por fim, as vagas se
destinavam ainda, aos jovens habitantes da zona rural que tivessem concluído o ensino
médio e que ainda não possuíssem formação superior.

5.3.1 Puxando um primeiro fio: o exame admissional

Cabe aqui fazermos alguns comentários e uma breve análise acerca do exame, por
meio do qual os candidatos garantiram o seu ingresso no dispositivo pedagógico, pois as
ferramentas foucaultianas nos permitem considerá-lo como uma forma de apreensão dos
indivíduos pela trama discursiva do saber/poder. Na atualidade, possivelmente não se
questione a necessidade da realização de exames, quando se tem por objetivo selecionar, no
interior de uma população, um grupo de pessoas que se considere mais capacitadas, para a
realização de uma determinada tarefa ou, como no caso em questão, indivíduos de maior nível
cultural para participar de um curso superior de formação de professores.
O exame vestibular caracteriza algo aparentemente natural e não problemático nos
tempos atuais, pois configura um procedimento que se reveste de um caráter democrático e
meritocrático, por meio do qual o estudante tem a oportunidade de garantir o seu acesso aos
níveis superiores de educação. Essa normalidade encobre as próprias limitações financeiras e
estruturais, históricas ao sistema educacional brasileiro, que impedem a oferta de ensino
superior a toda a população e que, nessas condições, torna necessário o estabelecimento de
critérios considerados objetivos de inclusão e, consequentemente, de exclusão. É desse ponto
que iniciamos propriamente a problematização do Procampo/UNITAU, pois a partir seu
processo seletivo, enquanto procedimento discursivo e não-discursivo, racionalmente
calculado para efetuar a separação e a seleção daquelas pessoas de que necessita, verifica-se a
170

entrada dos indivíduos da roça no jogo do verdadeiro e do falso, de forma a constituir a


Educação do Campo como objeto para o pensamento (FOUCAULT, 2015b).
A necessidade de realização do exame de admissão ao curso do Procampo/UNITAU
reflete uma situação de normalidade na atualidade, na medida em que essa norma também se
tornou uma condição historicamente determinada e determinante, por fazer parte do próprio
arquivo de nosso tempo e, por esse motivo, algo também problematizável. É o arquivo,
enquanto conteúdo e condições históricas que fornece o material discursivo e não-discursivo,
que é capaz de organizar o funcionamento das coisas e do pensamento, de modo que se
proceda de uma maneira e não de outra. No interior do arquivo estão as condições históricas
que estabelecem a necessidade de as pessoas passarem por um exame vestibular, que tem
como objetivo verificar suas competências cognitivas e culturais, como critério inicial para a
inclusão ou a exclusão e, desse modo, garantir o acesso ou não ao nível superior de educação.
Não que se considere o arquivo como uma entidade metafísica, capaz dele próprio exercer o
poder sobre os indivíduos, mas aquilo que oferece as condições históricas de possibilidade
para a própria circulação do poder. Ou seja, é a norma de acesso ao nível superior de ensino
que organiza as condições historicamente criadas e normatizadas, e que estabelece os
fundamentos para a divisão e a separação dos indivíduos, critérios esses que, por serem
contingentes e não naturais, também podem e devem ser problematizados (FOUCAULT,
2015a; PORTOCARRERO, 2008).
De acordo com dados divulgados pela assessoria de imprensa da universidade,
efetivaram a inscrição nesse certame mais de 230 candidatos, residentes em 17 municípios do
interior paulista e que se propuseram a concorrer a uma das vagas disponibilizada naquele
edital. A prova foi realizada no dia 19 de outubro daquele mesmo ano, e continha questões
objetivas de múltipla escolha que versaram sobre conteúdos do ensino fundamental e médio,
além de uma redação que deveria ser escrita em língua portuguesa. Os aprovados nesse
processo e classificados no interior do número de vagas, estabelecido no edital, efetivaram
suas matrículas nos dias 25 e 26 de outubro de 2012, sendo a aula inaugural realizada dia 5 de
dezembro de 2012 (UNITAU, 2012a).
Desse modo, percebe-se que o processo seletivo do Procampo/UNITAU, colocou em
funcionamento uma técnica disciplinar, amplamente analisada por Michel Foucault em sua
obra Vigiar e Punir, que não deixou de existir com o surgimento da razão governamental, mas
foi assimilada por ela. Trata-se de uma técnica disciplinar que possibilita a circulação dos
mecanismos de poder, a partir do momento em que se efetua tanto a divisão como a separação
entre os indivíduos. No caso do objeto de nosso estudo, verificou-se uma divisão entre os
171

indivíduos, processada no interior do processo avaliativo, que tem seu regime de verdade
estabelecido pela normalização desse procedimento, como exame vestibular.
Posteriormente à divisão dos indivíduos, procedeu-se a sua separação em dois grupos,
sendo que um deles obteve autorização para participar do processo formativo de professores
do campo e, dessa maneira, teve garantida a sua inclusão e apreensão no interior do
dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU. O outro grupo, em contrapartida, teve a sua
incorporação ao dispositivo desautorizada e foi excluído do processo seletivo. A partir dessa
separação inicial, tornou-se possível um investimento sobre os corpos e as mentes dos
indivíduos, por meio de ações didático/pedagógicas racionalmente calculadas. Sendo assim,
as condutas desses alunos passaram a ser guiadas, na direção de uma transformação pessoal,
de modo que, ao final de todo o processo formativo, fossem produzidos sujeitos professores
do campo. Ou seja, sobre o corpo e a alma dessas pessoas, apartadas de seu ambiente comum
de convivência social, que o exercício do poder investiu seus saberes, para construir as
subjetividades de que necessitava (FOUCAULT, 2012b).
Sendo assim, desde o início do processo seletivo e da respectiva admissão dos
indivíduos no Procampo/UNITAU, percebe-se uma relação de poder, que acaba por sujeitar
os voluntários a um regime de verdade, presente no seu próprio arquivo histórico. Trata-se do
regime de verdade que determina não somente um valor superior aos títulos acadêmicos, mas
também que, entre as diversas titulações de nível superior, seja definida uma hierarquia.
Dessa maneira, embora no senso comum se considere que as titulações dos cursos de
licenciatura possuem um valor social inferior, quando comparadas com as certificações
obtidas em outras áreas do conhecimento - como a Medicina, o Direito e as engenharias -, a
formação docente, enquanto qualificação profissional de grau acadêmico, materializa uma
possibilidade de ascensão social (GATTI; BARRETTO, 2009).
No excerto a seguir, retirado do discurso do sujeito de pesquisa SR03, percebe-se certa
apreensão quanto ao fato do mesmo possuir apenas o ensino médio, pois o indivíduo relata
certa insatisfação e um sentimento de insegurança, quanto às oportunidades de obter um
trabalho reconhecido.

SR03 – Não que eu pretendesse ser professora, já tenho minhas duas irmãs que são
professoras. Eu não queria dar aulas, mas eu queria aprender alguma coisa [...], foi
uma oportunidade que eu tive de começar os meus estudos. [...] Eu sempre quis fazer
alguma coisa, queria aprender. [...] Eu achava insuficiente ficar só com o ensino médio,
pensava: - eu vou fazer o quê com isso? Foi aí que surgiu essa oportunidade, dessa
faculdade de matemática. Eu disse: - ótimo! Vou fazer isso, depois eu aprendo e faço
engenharia.
172

Quando o sujeito pergunta para si mesmo: - vou fazer o quê com isso?; evidencia a sua
insatisfação, quanto às limitadas oportunidades que teria na vida profissional, pois a
expressão: fazer o quê; manifesta um certo desprezo pelo tipo de trabalho que lhe restaria para
executar, pois provavelmente considera essas tarefas como algo socialmente desvalorizado.
Sendo assim, denomina o ensino médio como: isso; por considerá-lo como um nível
educacional insuficiente, conhecimentos que não são capazes de lhe oportunizar condições
satisfatórias de trabalho.
Outro ponto que precisamos destacar nesse discurso do sujeito SR03, está no fato de
que o curso de licenciatura do Procampo/ UNITAU consistia muito mais como uma
oportunidade para o indivíduo continuar seus estudos de nível superior, do que propriamente
uma pretensão de exercer a docência como atividade laboral. No fragmento SR03 afirma: eu
não queria dar aulas. O sujeito manifestou a sua condição inicial, no momento em que
ingressou no curso de licenciatura em educação do campo. Condição de quem percebeu no
curso de licenciatura, uma oportunidade de dar continuidade com os estudos e obter um
diploma de nível superior.
De acordo com o estudo realizado por Gatti e Barretto (2009), versando sobre
professores brasileiros, aproximadamente 24% dos alunos que optavam por cursar uma
licenciatura, afirmavam que haviam feito essa escolha como uma possível opção de trabalho,
pois, se porventura, não conseguissem exercer outra atividade remunerada, poderiam se
dedicar à docência. No caso do sujeito SR03, sua opção em cursar a licenciatura em educação
do campo se deu devido à proximidade que a habilitação do curso do Procampo/UNITAU
concedia, com a área de seu real interesse, a Matemática. O sujeito afirma ainda que: depois
eu aprendo e faço engenharia; o que demonstra um interesse na formação superior em
Matemática como uma espécie de objetivo intermediário, que lhe serviria de preparativo para,
posteriormente, cursar a faculdade que era de seu real interesse: a Engenharia Civil.
O fragmento de discurso do sujeito SR01 evidencia uma condição semelhante,
aparentemente comum a muitos dos candidatos ao curso de licenciatura do
Procampo/UNITAU, pois afirma que: tinha muita gente que não queria ser professor. No
caso desses alunos, o que vislumbravam era a possibilidade de obter um diploma de curso
superior, pois como sugere o sujeito de pesquisa: você vai ter um diploma, depois você pode
fazer outra coisa, exercer outra coisa.
173

SR01 – tinha muita gente que não queria ser professor. Se você não quiser ser professor,
você vai ter um diploma, depois você pode fazer outra coisa, exercer outra coisa. Mas
a pessoa vai pegando o gosto, você vai aprendendo, começa a ter contato com a escola.

Percebe-se que o interesse do sujeito SR01 pela docência foi algo que surgiu
posteriormente, durante o processo da própria aprendizagem para a docência, quando o
indivíduo é introduzido no interior do processo de ensino/ aprendizagem e passa a ter uma
convivência maior com o ambiente escolar. O contato com o ambiente escolar e,
possivelmente, o aprendizado dos saberes e o desenvolvimento das habilidades individuais
necessários à docência, possibilitam à pessoa pegar o gosto, pois como afirma o próprio
sujeito de pesquisa: você vai aprendendo.
Diferentemente dos dois casos mencionados anteriormente, para sujeito SR02, o
Procampo/UNITAU surgiu como uma possibilidade da realização de seu sonho de ser
professora, algo que parecia estar muito distante da sua realidade, pois como moradora da
roça, acreditava que não teria mais a oportunidade de continuar seus estudos.

SR02 – Eu sempre sonhei em ser professora, um sonho muito grande meu. [...] Eu olhava
os professores me dando aula e falava: - Nossa, eu poderia estar ali, poderia estar no lugar
delas, mas acho que eu não vou mais ter a oportunidade de estudar. [...] Sendo professora,
eu...; podia ser de qualquer uma das disciplinas, queria muito ser professora. Eu me
identifico muito mais com as humanas do que com exatas, só que eu adoro também
matemática, adoro tudo, contando que eu pudesse lecionar. [...] O sonho de ser
professora, de poder ajudar [...] de eu poder marcar a vida de algum aluno, de poder levar
para eles a aprendizagem, a educação, que eu acredito muito na educação.

O sonho do sujeito SR02 era ser professora, algo que não dependia exatamente de uma
área específica do conhecimento, embora manifestasse uma maior identificação pessoal com
as Ciências Humanas, declarava certa predileção também em relação à matemática. Constata-
se que, a atração do sujeito pela docência, relacionava-se com a sua crença na possibilidade de
transformação do outro, por meio da educação. Percebe-se nesse excerto a função do
professor como alguém que leva para os alunos algo, que marca as suas vidas e os ajuda,
sendo que esse objeto que o professor transfere para o aluno, é a aprendizagem. Desse modo,
o professor é alguém que participa da condução da vida do aluno, como uma pessoa que pode
ajudá-lo em sua aprendizagem. Poder de marcar a vida de algum aluno consiste propriamente
de uma relação de governo do outro, pois essa espécie de sinal que o professor deixa na vida
de seu aluno configura uma positividade de sua ação como docente, que possivelmente visa a
transformação do aluno, por exemplo, num cidadão (FOUCAULT, 2014d).
174

O discurso acerca do reconhecimento social, garantido tanto por uma formação de


nível superior, como pelo papel desempenhado pelo professor, enquanto agente de
transformação das individualidades, faz circular um regime de verdade, por meio do qual se
mantém em funcionamento uma rede de saber e de poder que, em seu interior, torna o exame
de admissão algo necessário e, pelo fato de ser indispensável, mobiliza desejos individuais.
Desse modo, é o sonho de possuir uma titulação de nível superior ou de se tornar esse agente
social de transformação das pessoas, que força os indivíduos a subjetivarem esse regime de
verdade, ou seja, de assumirem como algo verídico para o seu próprio ser, motivando-se a
uma apreensão voluntária nessa trama discursiva do dispositivo pedagógico.
De acordo com Agamben (2009, p.44) “na raiz de todo dispositivo está, deste modo,
um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação desse desejo,
numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo”. Essa separação do
indivíduo, mediante a sua própria liberdade de querer participar do jogo, é o que possibilita a
circulação do poder governamentalizado e a ação de suas relações de força, que acabam por
apreender os indivíduos e transformá-los em sujeitos de um saber. Nessas condições, o
indivíduo não somente é sujeitado pela trama discursiva, pois ao tomar essas verdades para si
mesmo, passa a utilizá-las como objeto de domínio de seu próprio ser, de maneira a sujeitar a
si próprio ao controle desse regime de verdade (FOUCAULT, 2013a; 2014d).
Nesse tópico, efetuamos uma primeira abordagem do dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU, a partir do processo seletivo que possibilitou a admissão dos
indivíduos no programa. Com essa aproximação, foi possível analisar o exame vestibular,
enquanto mecanismo historicamente necessário, produzido para selecionar, separar e
apreender as subjetividades no interior do dispositivo pedagógico. Desse ponto em diante
passamos a análise de dimensões adicionais da trama discursiva, que configuram outros
mecanismos de divisão, não mais dos sujeitos, mas do espaço e do tempo do próprio
dispositivo pedagógico, de modo a possibilitar uma ação planejada e racionalizada do
poder governamentalizado, no interior de uma microfísica das relações
didático/pedagógicas (FOUCAULT, 2012b).
175

5.3.2 O espaço e o tempo como fios do dispositivo

O funcionamento prático do Procampo/UNITAU como um dispositivo, seguiu as


orientações contidas no Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso, que foi elaborado
especificamente para atender às normas contidas no Edital 09/2009. Podemos considerar o
PPP como uma ferramenta de planejamento didático/pedagógica, que possibilita organizar
racionalmente e de maneira antecipada, os procedimentos necessários à formação de uma
determinada subjetividade. É nesse sentido que o PPP pode ser analisado como um
instrumento discursivo de racionalização do poder, a partir do qual se produzem, previamente,
tanto os procedimentos necessários à condução do aprendizado, como os métodos de
apreensão pedagógica das individualidades no espaço e no tempo.
Desse modo, a criação de uma matriz curricular para o curso, inserida no interior do
PPP, possibilita o planejamento e a organização da distribuição temporal das disciplinas
formativas e o estabelecimento prévio dos espaços que serão destinados à aprendizagem dos
alunos. No caso do dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU, tanto o planejamento
geral do curso, assim como a distribuição curricular das disciplinas, seguiu as orientações
contidas na norma jurídica, que fixou os critérios para o funcionamento do curso. Assim, no
currículo do Curso de Formação de Professores do Campo da UNITAU foi prevista uma
carga horária total de 3.600 horas/aula, que deveriam ser integralizadas por meio do estudo
das disciplinas e das práticas pedagógicas, que foram distribuídas em oito semestres letivos.
Como estratégia de formação multidisciplinar, os conteúdos e as práticas foram
organizados de forma a habilitar o professor do campo para a docência nas áreas das Ciências
da Natureza e Matemática. A habilitação para a docência nessas duas áreas do conhecimento
ofereceu aos professores, formados no Procampo/UNITAU, uma certificação para o ensino
das disciplinas de biologia, física, química, geografia e matemática (UNITAU, 2016).
Ainda com objetivo de cumprir as determinações legais, impostas pelo edital de
convocação, a organização curricular do projeto do Procampo/UNITAU adotou a estratégia
de ensino por alternância. O regime de alternância se baseia num modelo de formação, em
que os tempos e espaços de aprendizagem são divididos e se alternam em Tempo Escola e
Tempo Comunidade (CALDART, 2011b).
176

SPC02 – Então, os quatro anos de duração foram divididos entre janeiro e julho, com aulas
do Tempo Escola, que aconteciam na universidade e as disciplinas mais voltadas para a
prática, foram executadas no Tempo do período Comunidade, que acontecia no meio dos
dois semestres.

De acordo com o depoimento dos professores do curso, a organização


didático/pedagógica do Procampo/UNITAU teve como objetivo, além de facilitar o acesso e a
permanência dos alunos à formação, evitar que o aluno precisasse mudar seu local de
residência para a cidade, para dar continuidade com seus estudos.
Para o Tempo Escola, na grade curricular do curso foi previsto um total de 1.600
horas/aula, que foram integralizadas presencialmente pelos alunos, nas instalações da própria
universidade, nos meses das férias escolares (janeiro/fevereiro e julho). Embora o estudo das
disciplinas curriculares acontecesse somente nos meses acima mencionados, as aulas
ocorreram em dois turnos, de maneira a cumprir uma carga horária equivalente aos semestres
dos cursos regulares de licenciatura. A racionalização do tempo foi, então, um fator
determinante para o funcionamento do dispositivo pedagógico, de maneira a cumprir a carga
horária normatizada, tanto pela política nacional de formação de professores em nível
superior, quanto pela execução da estratégia de formação pelo regime de alternância.
Como podemos constatar no fragmento de discurso do sujeito SR03, no período em
que os alunos frequentaram as aulas presenciais do Tempo Escola, o tempo diário de estudos
foi dividido em dois turnos: matutino e vespertino.

SR03 – As aulas eram em período integral, o dia inteiro. A gente chegava lá às sete e meia
da manhã e saíamos às 18 horas. As aulas eram divididas em dois tempos, uma disciplina no
primeiro tempo até a hora do almoço, o meio-dia e depois, outra disciplina no segundo
tempo.

De acordo com a Professora SPC02, cada turno diário ficou destinado ao estudo de
uma disciplina específica, sendo um professor responsável pelo desenvolvimento do conteúdo
de uma disciplina pela parte da manhã, enquanto outro professor ministrava o assunto de outra
matéria curricular no período da tarde. Ainda, de acordo com o excerto do discurso dessa
mesma professora, a estratégia didática de intercalar disciplinas foi adotada para manter o
interesse dos alunos e evitar que as atenções fossem prejudicadas pelo cansaço, caso tivessem
que estudar o mesmo conteúdo disciplinar por dois turnos consecutivos, que somavam oito
horas/aula.
177

SPC02 – Como as aulas aconteciam o dia todo, nós fizemos uma divisão, que um professor
dava aula de uma disciplina no período da manhã e outro professor de outra disciplina no
período da tarde, para não ficar cansativo, oito horas com o mesmo professor o mesmo
assunto, isso foi uma estratégia para que a atenção dos alunos não fosse prejudicada.

No Tempo Comunidade, os alunos cumpriram uma carga horária 2.000 horas, na qual
foram desenvolvidos projetos de intervenção nas suas próprias comunidades de origem, sob a
supervisão de professores do curso, nos períodos de fevereiro a junho e de agosto a dezembro.
Desse modo, no período compreendido entre os meses de fevereiro e junho, assim como entre
agosto e dezembro, havia a continuidade da aprendizagem dos alunos, que se desenvolvia de
maneira prática, a partir da aplicação dos projetos nas escolas de suas respectivas
comunidades (UNITAU, 2016). Como lembra a Professora SPC02, a própria comunidade do
aluno constituía o espaço para o desenvolvimento das práticas pedagógicas, por meio de
pesquisas de investigação cultural em que se buscava conhecer de maneira mais aprofundada
o próprio bairro e a escola.

SPC02 – O Tempo Comunidade se desenvolveu com dois professores acompanhando os


alunos. Então, nós professores do tempo comunidade, íamos até as cidades. Nós
concentramos em um encontro em duas cidades, dois municípios [...], nós desenvolvemos
atividades mais práticas. Então era onde o aluno realizava pesquisas sobre o bairro, para
desenhar o panorama do bairro, qual é a cultura, os moradores, os conhecimentos do bairro
rural.

Nesse mesmo sentido, a Professora SPC01 afirma que havia também o


desenvolvimento de projetos, nos quais os alunos eram levados a perceber aspectos da cultura
local, para propor métodos de ensino mais condizentes com as necessidades culturais e
pedagógicas específicas de suas comunidades.

SPC01 – Nós trabalhávamos as disciplinas do Tempo Comunidade, em que eles iam olhar
a escola, geralmente uma escola que era a deles. Eles iam perceber a cultura desses alunos, o
que precisava. E eles iam atuar através de projetos, que cada segmento necessitasse [...] nós
trabalhávamos questões, disciplinas que valorizassem a cultura, principalmente a cultura
do campo e as novas propostas de ensino para as escolas do campo. Diante do que? Diante
da necessidade real daquela comunidade.

A pedagogia da alternância é uma metodologia de organização escolar, que conjuga


experiências formativas, distribuídas em espaços e tempos distintos, ao alternar as vivências
educacionais entre o estudo no ambiente escolar e a aprendizagem no interior do círculo
familiar e/ou da comunidade. Trata-se de um modelo pedagógico revolucionário de
178

ensino/aprendizagem, que surgiu a partir da insatisfação de agricultores com o sistema


educacional francês, na década de 1930. Essa iniciativa popular de educação enfatizava a
necessidade de um modelo escolar, que atendesse às particularidades psicossociais de jovens
camponeses, culminou com o surgimento da Pedagogia da Alternância em 1935 (QUEIROZ,
2004; NORSELLA, 2014).
No Brasil, a pedagogia da alternância foi implantada a partir das influências da
educação popular, cujo movimento emergiu no país na década de 1960, especialmente com a
alfabetização de adultos, no desenvolvimento do projeto educacional de Paulo Freire, no
Estado do Rio Grande do Norte. Nesse mesmo período, surgiram outros projetos populares,
como o Movimento de Cultura Popular (MCP), produzido pela Prefeitura de Recife/PE; a
campanha De pé no chão também se aprende ler, realizado pela prefeitura de Natal/RN; assim
como o Movimento de Educação de Base (MEB), de iniciativa da CNBB, em regime de
parceria com o Governo Federal (MACHADO, 2012).
Na esteira da educação popular, surgiram as primeiras experiências com a pedagogia
da alternância, no final da década de 1960, com a fundação de três Escolas Família Rural
(EFR), no estado do Espírito Santo. Essas experiências se ampliaram pelo país,
posteriormente, com a fundação das EFA’s e das Casas Familiares Rurais (CFA). Tendo em
vista a proximidade dos propósitos dessas associações populares de educação, quando se
referia às entidades que praticavam a alternância no meio rural, optou-se por utilizar o termo
genérico de Centros Familiares de Formação por Alternância (CFFA).
Embora no Brasil já se tivesse uma experiência com a pedagogia da alternância desde
1969, esse modelo pedagógico de organização curricular era ainda pouco conhecido, sendo
que o mesmo foi reconhecido oficialmente somente no ano de 2006. Ou seja, somente após
aproximadamente quarenta anos do início dessa experiência pedagógica, o Governo Federal
veio reconhecer oficialmente a pedagogia da alternância, como um modelo pedagógico
reconhecido pela norma e considerado válido para a educação dos povos rurais. Foi por meio
do Parecer CNE/CEB nº 01/2006, que o MEC/SECAD atestou que os dias de estudo,
realizados em regime de alternância nos CFFA, poderiam ser reconhecidos como letivos. Esse
parecer trouxe o seguinte reconhecimento:

A carga horária anual ultrapassa os duzentos dias letivos e as oitocentas


horas exigidas pela Lei de Diretrizes a Bases da Educação Nacional. Os
períodos vivenciados no centro educativo (escola) e no meio sócio-
profissional (família/comunidade) são contabilizados como dias letivos e
horas, o que implica em considerar como horas e aulas atividades
desenvolvidas fora da sala de aula, mas executadas mediante trabalhos
179

práticos e pesquisas com auxílio de questionários que compõem um Plano


de Estudo (MEC, 2006a, grifos originais).

De acordo com Norsella (2014), o objetivo inicial das Escolas de Família Rural era
elaborar uma alternativa pedagógica do meio rural, para o próprio meio rural, uma vez que
essa escola devia ser construída para os agricultores, cujos interesses deviam se alinhar às
suas necessidades de mudança da realidade em que viviam. Assim sendo, a pedagogia da
alternância se constituiu como a forma de organização escolar, que melhor se alinhou com as
necessidades educacionais e produtivas do povo do meio rural.
A estratégia didático/pedagógica de ensino por alternância estava estabelecida na
própria norma do Edital 09/2009, por ser considerada a mais viável para o curso e por
assegurar a participação de alunos que já exerciam a função docente e, dessa maneira,
somente poderiam se afastar do trabalho nas escolas, nos períodos de férias escolares, ou seja,
nos meses de janeiro/fevereiro e de julho. Por conseguinte, também possibilitava aos
indivíduos, que ainda não possuíam uma formação superior e desejavam cursar essa
licenciatura, não precisarem abandonar os locais onde residiam, pois o Tempo Escola, embora
se desenvolvesse e em período integral, tinha a duração de apenas um mês a cada semestre e
contava com todo um apoio logístico, que será abordado a seguir.

5.3.3 O suporte logístico do dispositivo pedagógico

Durante o tempo de estadia na universidade, para frequentar as aulas, a maioria dos


alunos permaneceu alojada nas próprias instalações de um de seus campi, onde foram
disponibilizadas salas de aula para utilização como alojamentos, um masculino e um
feminino, assim como banheiros, para a higiene pessoal. Desta maneira, os alunos que
optaram por ficar alojados na universidade, permaneciam no campus a semana inteira e
retornavam às suas residências, normalmente, ao término do período de aulas da sexta-feira.
De acordo com a Professora SPC01, a estrutura física e de apoio didático/pedagógico
da Universidade estava muito bem preparada para fazer funcionar o dispositivo pedagógico
do Procampo, por possuir um aparato tecnológico condizente com a proposta do curso.
180

SPC01 – A universidade tinha o Campus do Bom Conselho, que foi o melhor local da
universidade para abrigar esse curso de ciências da natureza e matemática, porque nós
tínhamos os laboratórios de primeiro mundo. Os laboratórios de ciências, de primeiro
mundo. Nós tínhamos um laboratório de informática, muitos não dominavam, eles
aprenderam a dominar a informática nesses laboratórios. Além dessas questões, a questão de
biblioteca, de livros, a universidade é muito preparada nesse quesito.

A professora considera o local destinado para o desenvolvimento das aulas presenciais


do Tempo Escola, como o campus mais adequado na UNITAU, pois seus laboratórios, sua
biblioteca e o acervo bibliográfico disponível formavam uma estrutura de excelência,
comparável com as existentes nas melhores universidades dos países desenvolvidos.
Como complemento dessa estrutura física, o dispositivo contava com o suporte
informatizado na própria sala de aula, que dispunha de aparelho de projeção, utilizado para
facilitar a apresentação dos conteúdos aos alunos, assim como a possibilidade de impressão
pela própria universidade e a distribuição gratuita dos fascículos das disciplinas.

SPC01 – Os fascículos de cada disciplina, que a universidade imprimia, eles tinham em


mãos. Os fascículos, os trabalhos, os professores muito envolvidos em preparar as aulas,
com data show, com estratégias de ensino muito pertinentes a cada assunto.

Esse material de apoio didático foi confeccionado por cada um dos professores
responsáveis pelas disciplinas do curso. Percebe-se o destaque especial que a professora
SPC01 atribuiu ao compromisso dos professores com o curso, que se materializou tanto na
preparação de suas aulas, como na utilização dos recursos tecnológicos e de metodologias
apropriadas a cada um dos assuntos desenvolvidos.
Para que a estrutura física, informatizada e de pessoal, disponibilizada pela
universidade, pudesse funcionar como mecanismos do dispositivo pedagógico, foi preciso
efetuar a apreensão dos corpos dos indivíduos, de maneira que houvesse a necessária
transformação dessas pessoas em professores do campo. Desse modo, foi preciso colocar em
funcionamento todo um aparato logístico, que facilitasse a participação e a permanência dos
alunos no curso.
Assim, referindo-se às questões logísticas, indispensáveis ao funcionamento do curso,
a professora SPC02 menciona que foi necessária a realização de duas parcerias, uma com a
Prefeitura Municipal de Cunha e outra com a Universidade de Taubaté. A Prefeitura de Cunha
fornecia o transporte dos alunos, da cidade para o campus da universidade, para as aulas do
Tempo Escola, assim como as salas de aula das escolas onde ocorriam os encontros
181

presenciais do Tempo Comunidade. Quanto ao apoio logístico oferecido pela UNITAU, a


Professora SPC02 lembra que, no Tempo Escola, a Universidade disponibilizava as salas de
aula e os sanitários, assim como os colchonetes que eram utilizados pelos alunos como
colchões, durante o período em que pernoitavam no campus.

SPC02 – A questão de logística tinha uma parceria com a prefeitura. Nós tínhamos, na
verdade, duas parcerias: a prefeitura cedia a questão do transporte dos alunos, cedia
também algumas escolas onde a gente se encontrava no Tempo Comunidade. Cediam salas
de aula, lanche também para o Tempo Comunidade. Outra questão de logística, de parceria,
foi com a Universidade de Taubaté, que cedeu também o espaço de alojamento, que
cedeu os colchonetes, os sanitários, a questão do café da manhã, as salas de aula.

No Tempo Escola havia o apoio logístico da universidade que, além da sala de aula
onde ocorriam as aulas, cedia também mais duas salas, utilizadas como alojamento masculino
e feminino pelos alunos que se achavam impossibilitados de retornar às suas residências ao
final do dia letivo. O lanche e o café da manhã, mencionados no discurso da Professora,
estavam incluídos na planilha de custos do próprio curso, que contava com o financiamento
dos recursos disponibilizados pelo FNDE (UNITAU, 2016).
Por meio desse suporte de alojamento, banheiros e colchonetes, oferecido
gratuitamente pela universidade, permitiu-se que os alunos permanecessem na cidade durante
os dias de aula. Desse modo, a Professora SPC02 lembra que os alunos, que permaneciam
alojados na universidade, chegavam ao campus universitário na segunda-feira e retornavam às
suas cidades na sexta-feira no final da tarde.

SPC02 – No Tempo Escola, que as aulas aconteciam aqui na universidade, a universidade


oferecia o alojamento. Então o aluno poderia vir ficar alojado. Ele chegava na segunda-
feira pela manhã e ia embora na sexta-feira à noite.

De acordo com o depoimento dos sujeitos formados no Procampo/UNITAU,


entrevistados nesta pesquisa, o apoio fornecido para Prefeitura de Cunha e pela própria
universidade foi essencial para garantir a frequência e a permanência dos alunos no curso,
pois afirmam que, caso não houvesse essa colaboração mútua, não haveria a possibilidade
deles se deslocarem diariamente até a Cidade de Taubaté, ou de se manterem um mês inteiro
hospedados na cidade, durante o Tempo Escola. No caso do sujeito SR01, que menciona não
saber a exatamente qual a distância de sua residência até a universidade, relata a
182

impossibilidade de efetuar esse deslocamento diariamente, sendo que esse aluno foi um dos
que necessitou de alojamento durante o período das aulas presenciais.

SR01 – Eu morando aqui, não sei quantos quilômetros é daqui em Taubaté, mas é longe,
então não teria como eu ir, como me deslocar todos os dias.

Com esse apoio logístico fornecido pela universidade, resolveu-se a principal


dificuldade relatada pelos alunos entrevistados, que os impedia de dar continuidade aos
estudos num curso de nível superior, pelo o fato de residirem muito longe dos locais onde
esses cursos eram disponibilizados. O problema do deslocamento dos alunos foi solucionado,
por meio da parceria firmada entre o Procampo/ UNITAU e a Prefeitura de Cunha, conforme
o relato do sujeito SR02, que garantiu o transporte gratuito dos alunos para frequentarem as
aulas no Tempo Escola.

SR02 – A gente teve muito suporte da prefeitura de Cunha, ela levava a gente [...] a
prefeitura ajudou muito, o pessoal de Cunha, deu bastante suporte de ônibus, ajudou muito.
Seria difícil, por exemplo, eu ir para Taubaté.

Percebe-se nesse fragmento de discurso do sujeito SR02, a menção à dificuldade que


teria para efetuar esse deslocamento para as aulas, pois caso a Prefeitura de Cunha não tivesse
oferecido transporte gratuito para as aulas, possivelmente estaria impedida de frequentar o
curso. Do mesmo modo, o sujeito SR03 relata que, devido à distância da residência dos
alunos até a universidade, caso não tivessem recebido esse apoio de transporte por parte da
prefeitura, a maioria deles não teria condições financeiras de bancar os custos com o
deslocamento para as aulas.

SR03 – Para a gente sair daqui, é muito longe para ir para lá, tudo muito longe. [...] o
transporte que era fornecido pela prefeitura, se não fosse ele, a maioria que precisava
viajar, não teria conseguido.

Todo esse suporte logístico do dispositivo pedagógico contou ainda com um terceiro
elemento, por meio do qual se buscou a inserção imediata dos alunos na prática docente e, em
contrapartida, garantiu a permanência no curso, por meio do fornecimento de bolsas de
estudo. Desse modo, por meio do curso de Licenciatura em Educação do Campo, o
Procampo/UNITAU manteve cada um dos alunos vinculados ao Programa Institucional de
183

Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) que, de acordo com a aluna SR03, foi imprescindível
para custear os gastos com alimentação durante o Tempo Escola.

SR03 – a gente tinha uma bolsa do PIBID, que era uns 400 reais na época. Era o que
ajudava a gente se manter lá, principalmente com a alimentação [...] O PIBID foi
essencial, porque eu acho que a maioria não teria condições nenhuma de se manter,
principalmente se manter em questão de alimentação.

Como mencionado anteriormente, o curso disponibilizava o café da manhã para os


alunos, sendo que as demais refeições deveriam ser providenciadas e/ou custeadas por cada
discente. Do mesmo modo, o sujeito SR01 afirma que o PIBID foi essencial, pois os recursos
disponibilizados por meio dessa bolsa eram utilizados também para o custeio de outros gastos,
que os alunos tiveram durante o desenvolvimento do curso, como com materiais e com o
transporte para as aulas presenciais no Tempo Comunidade, e para as orientações durante a
produção do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

SR01 – Acho que sem o PIBID, a maioria não teria conseguido realmente. [...] Mas a
gente precisava se manter lá. Gastava com material, com transporte aqui, porque eu tinha
que me locomover daqui até a escola do Paraitinga, no meio do caminho daqui, uns 15
quilômetros daqui. Tudo isso tem custo e se não fosse isso eu não teria condições de fazer.

O PIBID foi instituído como política pública por meio da Portaria Normativa nº 38, de
12 de dezembro de 2007, cujo objetivo foi o fomento e a preparação de estudantes de
licenciaturas, de instituições públicas de ensino superior, com vista à atuação na educação
básica pública (BRASIL, 2007a). A primeira chamada pública para as bolsas do PIBID
ocorreu com a abertura do Edital MEC/CAPES/FNDE 2007, de 13 de dezembro de 2007, o
qual operacionalizou a seleção de projetos institucionais para a participação no programa
(BRASIL, 2007b).
Até a publicação do Edital CAPES/DEB nº 02/200950, somente poderiam concorrer às
bolsas do programa PIBID, alunos de instituições federais e estaduais, sendo que essa
concorrência às bolsas se ampliou a partir da publicação do Edital CAPES 18/2010 (MEC,
2010a). A contar desse edital, as instituições públicas municipais de ensino superior, assim
como as universidades e centros universitários comunitários, confessionais e filantrópicos,

50
Com a chamada pública do Edital nº 02/2209, CAPES restringia a oferta do PIBID às Instituições Públicas de
Ensino Superior, federais e estaduais (MEC, 2009).
184

passaram a ter o direito de encaminhar seus projetos para concorrer na oferta de bolsas PIBID
para seus alunos dos cursos de licenciaturas.
Ainda no ano de 2010, a CAPES lançou um edital específico para o atendimento, por
meio do PIBID, aos Programas de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais
Indígenas (PROLIND) e aos cursos do Procampo (MEC, 2010b). Além do financiamento dos
estudos, por meio de bolsas aos alunos dos cursos de licenciatura, o PIBID garantia o custeio
do trabalho docente de um coordenador institucional, de coordenadores de área e de
professores supervisores dos estagiários.
A cada um dos alunos matriculados no Procampo/UNITAU foi garantida uma bolsa de
iniciação à docência, no valor mensal de R$ 450,00, financiada até o final do curso pela
CAPES. O coordenador institucional foi o responsável pela execução do projeto, e se tratava
de um docente indicado pela própria instituição contemplada com o programa. Os
coordenadores de área foram selecionados entre os professores dos cursos de Licenciatura, do
quadro efetivo da própria UNITAU, e tinham a incumbência de selecionar os bolsistas, além
de acompanhá-los e orientá-los. O professor supervisor, por sua vez, ficou responsável pelo
acompanhamento dos bolsistas nas escolas, os quais foram selecionados pelo coordenador de
área (MEC, 2010).
Cabe ressaltar que o PIBID e o Procampo eram programas distintos e independentes
um do outro, que foram vinculados entre si pelos organizadores da proposta do
Procampo/UNITAU, como uma estratégia que permitiu a inclusão e a permanência dos alunos
no curso, pois a bolsa fornecida pelo Programa de Iniciação à Docência se tornou uma
importante ferramenta de financiamento para as despesas acadêmicas dos alunos. Além disso,
o PIBID se configurava como uma possibilidade a mais, além do currículo do
Procampo/UNITAU, de formação docente através da experiência de si dos alunos, por meio
da qual se realizou a transformação desses indivíduos em sujeitos professores do campo,
mediada pelo dispositivo pedagógico.
De acordo com Larrosa (2011), o dispositivo efetua a mediação pedagógica da
experiência de si, por meio da organização arquitetônica, distribuição das disciplinas e da
forma como elas são didaticamente ensinadas, do direcionamento das práticas educacionais,
que os sujeitos precisam desenvolver, para cumprir a prescrição curricular. Por esse motivo,
tratarmos anteriormente sobre o próprio funcionamento do dispositivo pedagógico do
Procampo/UNITAU, assim como a respeito das questões relacionadas à logística, por meio
das quais se criou a possibilidade de uma efetiva apreensão dos indivíduos da roça no interior
do processo de formação docente.
185

No próximo subitem abordaremos os aspectos relacionados à atualidade do sujeito


empírico, ou seja, nos ocuparemos propriamente das características gerais e subjetivas dos
alunos do Procampo/UNITAU, no momento da apreensão de suas individualidades pelo
dispositivo pedagógico.

5.4 O sujeito empírico e a apreensão das individualidades

Nesse subitem, inicialmente, apresentamos alguns dados estatísticos sobre quem eram
os alunos que ingressaram no programa, e que permitiram traçar uma espécie de perfil
socioeconômico e demográfico desses indivíduos, ou seja, informações que possibilitaram
efetuar uma primeira objetivação do sujeito empírico. Para o perfeito funcionamento do
dispositivo pedagógico, é necessário que se produza saberes sobre a individualidade dos
sujeitos, isto é, que se descubram os elementos sobre os quais haverá a necessidade do
exercício do poder governamentalizado, de modo que as condutas sejam modificadas e
moldadas (FOUCAULT, 2013a; 2014c; 2016b).
Desse modo, os saberes necessários à objetivação do indivíduo da roça, enquanto
sujeito empírico apreendido pelo dispositivo pedagógico, foram produzidos a partir dos dados
coletados pela pesquisa intitulada Educação do Campo, Identidade e Representação Social de
Professores, coordenada pela Professora Doutora Edna Maria Querido de Oliveira Chamon,
que contou com a participação deste pesquisador, durante a realização do curso de mestrado
(CHAMON, 2012). Por meio de nossa participação nesse projeto de pesquisa, foi possível
realizar um acompanhamento aproximado dos alunos do Procampo/UNITAU, durante os
quatro anos de realização do curso. Sendo assim, os dados apresentados a seguir foram
obtidos por meio da pesquisa referenciada anteriormente sobre os ingressantes no curso de
Licenciatura em Educação do Campo da UNITAU, no ano de 2013.
Inicialmente foram matriculados 60 alunos no curso Procampo/UNITAU, residentes
em 17 municípios do Vale do Paraíba Paulista, sendo que nenhum deles possuía curso
superior e aproximadamente 70% deles eram mulheres. A média de idade desses estudantes
ficava em torno dos 28 anos, sendo que o mais jovem possuía, na época da matrícula, 18 anos
de idade e, em contrapartida, o acadêmico que possuía a idade mais avançada encontrava-se
com 58 anos. Dentre o total de alunos matriculados, em torno de 96% deles não exercia a
atividade docente, cerca de 4% declararam exercer a função de professor e, dentre esses
186

últimos, metade tinha entre um e dois anos de experiência docente, sendo que a outra metade
possuía entre dois e três anos de prática educacional. Os alunos que se declararam casados ou
que viviam com o(a) companheiro(a) representavam 59% do grupo, os solteiros equivaliam a
32% e os separados ou divorciados constituíam 9% do total de estudantes.
Quando indagados sobre as dimensões de suas famílias, cerca de 43% declararam
possuir quatro ou mais irmãos, 10% afirmaram que tinham três irmãos, 20% possuíam dois
irmãos, 25% revelaram ter apenas um irmão e 2% deixaram de responder a essa questão.
Sobre o questionamento acerca do tipo de residência (própria, alugada etc.), aproximadamente
73% declararam que residiam em casa própria, 11% habitavam imóvel alugado, 13%
moravam em casa cedida ou emprestada e 3% afirmaram que viviam como caseiro da
propriedade. Ao serem questionados sobre as pessoas com quem dividiam a moradia, em
torno de 52% declararam residir com os pais e/ou outros parentes, 41% revelaram dividir a
residência com o(a) cônjuge e/ou com os filhos, 4% mencionaram que moravam sozinhos e
cerca de 3% alegaram que moravam com amigos, com os quais dividiam as despesas
domésticas.
Sobre as condições econômicas e de trabalho, cerca de 40% declararam não estar
trabalhando na época da matrícula no curso, aproximadamente 44% afirmaram trabalhar
apenas um turno e outros 16% mencionaram que seu regime trabalho lhes consumia dois
turnos diários. Quando indagados sobre a sua renda pessoal, metade dos alunos declarou
receber mensalmente até um salário-mínimo, aproximadamente 21% assegurou que recebia
mensalmente entre um e três salários-mínimos, cerca de 27% mencionaram não possuir renda
pessoal e outros 2% não responderam. Sobre a renda familiar, em torno de 30% dos alunos
alegaram que suas famílias recebiam até um salário-mínimo mensal, cerca de 65% declararam
ter uma renda familiar que estava entre um e três salários-mínimos, outros 5% revelaram que
sua renda familiar mensal se encontrava na faixa entre três e cinco salários-mínimos.
Os questionamentos acerca dos aspectos culturais, os dados revelados pelos estudantes
possibilitaram verificar que, em torno de 91% desses acadêmicos haviam estudado apenas em
escola pública, cerca de 5% estudaram somente em escola particular, outros 4% declararam
ter estudado parte de seu tempo de escolarização em escola pública e outra parte em escola
privada. Quanto ao tipo de curso concluído no ensino médio, aproximadamente 70% dos
estudantes afirmaram terem finalizado seus estudos no ensino médio regular, cerca de 16%
declararam ter concluído por meio de supletivo. Em torno de 10% realizaram o magistério
profissionalizante e outros 4% afirmaram que cursaram o ensino técnico profissionalizante.
187

O levantamento de questões culturais das famílias dos estudantes do Procampo


revelou que, aproximadamente 20% dos pais e 18 % das mães desses acadêmicos não eram
escolarizados, que cerca de 68% dos pais e 65% das mães não haviam concluído o ensino
fundamental. Os dados revelaram ainda que, apenas 4% dos pais e 7% das mães desses
estudantes possuíam o ensino fundamental completo, bem como apenas 5% dos pais e 7% das
mães possuíam o ensino médio completo e que, considerando ambos os genitores, apenas 2%
deles possuíam o ensino superior.
Os dados numéricos, apresentados anteriormente, referentes às características do aluno
ingressante no Procampo/ UNITAU, não diferem muito daqueles encontrados por Abramovay
(2004), em sua pesquisa que tratou do perfil dos professores brasileiros. Naquele estudo, o
autor apontou que, a maior parte dos alunos, que frequentava os cursos de licenciatura, era
oriunda de família pobre, nas quais os pais não tiveram a oportunidade de obter uma formação
em nível superior. O universo pesquisado era constituído de um percentual elevado de
discentes que não desejam exercer a função de professor, mas que viam na oportunidade da
formação docente, como uma possibilidade de ascensão social, pela perspectiva que a
habilitação lhes oferecia de trabalhar em outras áreas, diversas da educação (ABRAMOVAY,
2004).
Desse modo, os dados que acabamos de apresentar serviram como parâmetros
normativos, tanto para o conhecimento do sujeito empírico e a produção dos saberes
necessários à sua estabilização enquanto objeto de saber, como para a sua apreensão pelo
dispositivo enquanto objeto de saber e o posterior investimento das ações pedagógicas, que
tinham o objetivo de transformá-lo em sujeito professor do campo (LARROSA, 2011).
Deixemos então que os próprios sujeitos da pesquisa falem, sobre quem era aquele indivíduo
da roça, que se deixou apreender e se fez capturar voluntariamente interior do dispositivo
pedagógico do Procampo/UNITAU.
Assim, questionamos os dois professores participantes da presente pesquisa, sobre
quem eram os alunos do Procampo/UNITAU, no momento do ingresso no curso. Como
resposta a essa indagação, o professor SD01 relata ter recebido alunos muito tímidos,
retraídos em si mesmos e com baixa autoestima, quanto aos aspectos relacionados a sua
cultura, além de um acentuado desconhecimento acerca da tecnologia. De acordo com a
professora do programa SD01:
188

SD01 – Eles chegaram como alunos do campo muitos intimidados. Aquele mundo que
eles estavam vendo na universidade, com aquela cidade grande, eles pareciam seres
intimidados, recuados.

Nesse excerto, percebe-se um regime de verdade já subjetivado pelo docente, que põe
em funcionamento o discurso sobre a identidade camponesa, por meio do qual transforma o
aluno do campo num objeto de conhecimento, algo que precisa ser apreendido pelo discurso
institucionalizado da Educação do Campo. De acordo com Foucault (2014b), o dispositivo
busca efetuar a ancoragem das subjetividades numa identidade, que fixa as diferenças e
ancora as potências criativas. No caso do camponês, essa identidade objetiva o indivíduo a
partir da estabilização de suas potências, em torno de uma suposta relação primordial com a
terra e da necessidade da sua utilização como meio de produção e de reprodução de sua
própria existência (MOLINA, 2010; MUNARIM, 2010).
De uma maneira geral, os alunos não se identificavam como sujeitos do campo, pois
essa não é a denominação comum, utilizada para designar o habitante da região da Serra da
Mantiqueira, onde se localiza boa parte dos municípios que compõem o Vale do Paraíba
Paulista. O território desses municípios é marcado por uma forma de relevo sinuoso, que nem
de longe lembra a planície dos campos. Sendo assim, os alunos serem designados como
camponeses, evoca algo que não lhe faz sentido algum, pois a identidade que eles se auto
atribuem é a de sujeito da roça. Nos excertos dos discursos dos sujeitos formados no
programa Procampo/UNITAU, verificamos essa autodesignação, enquanto sujeito da roça,
como alguém que nasceu ou que reside na zona rural.

SR01 – Antes eu me via como um coitadinho da roça [...] porque sempre o aluno da roça
é mais tímido, é mais na dele, é mais quietinho, tem um pouco de vergonha.

Percebe-se nesse fragmento do discurso do sujeito de pesquisa SR01 um olhar sobre si


mesmo como sujeito da roça, como alguém que se observava enquanto uma pessoa
miserável, que identifica a timidez, o silêncio e a vergonha, como uma característica
particular do aluno da roça. Essa visão depreciativa de si mesmo caracteriza justamente a
representação de sujeito, que os movimentos sociais buscavam modificar, com a criação do
termo camponês, pois como afirmam Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 25), alguns
vocábulos utilizados em nosso dicionário, como: caipira, sertanejo, seringueiro, caiçara,
caboclo, colono, etc.; transmitem um sentido valorativo e depreciativo, sendo que essas “[...]
189

expressões são carregadas de sentidos pejorativos, que classificam esses sujeitos como
atrasados, preguiçosos, ingênuos, incapazes”.
Essa representação depreciativa de si caracterizava a própria subjetivação da imagem
social construída sobre o sujeito rural brasileiro, ou seja, criada pelo outro e transformada em
verdade pelos próprios alunos, imagem que acabava por lhes fazer acreditar que eram pessoas
inferiores. No fragmento de discurso proferido pelo sujeito SD02 e apresentado a seguir,
constata-se a preocupação do aluno, com a imagem produzida pelos professores, acerca da sua
condição enquanto sujeito da roça.

SD02 - Quando eles chegaram na universidade, eu tenho um aluno que estava dando aula e
ele interrompeu a minha aula, e ele falou:
- Professora, me desculpa, mas nós estamos aqui em pleno janeiro e você veio dar aula
nas suas férias. Quem você achou que você iria encontrar?
Eles tinham muito essa preocupação do que, nós professores, achávamos que eles eram. E
aí eu respondi:
- Olha eu acho que você está esperando de mim, que eu ia encontrar um monte de gente de
botina, calça suja de terra, chapéu, cigarro de palha.
Eles riram eu falei:
- Não, para alguém assumir uma formação para professor de escola rural e vir fazer um
curso em janeiro, são pessoas transformadoras.
Então esses alunos tinham essa expectativa que a gente achava que eles eram caipiras, que
falavam errado, que não sabiam nada, que erram burros.

Nesse excerto, no qual se verifica uma reprodução do próprio discurso do aluno


ingressante no Procampo/UNITAU, que questiona a professora sobre a imagem
representacional que tinha de seus alunos de programa, percebe-se a tentativa de
desconstrução discursiva dessas representações. Como resposta à pergunta de seu aluno, a
professora retoma o estereótipo representacional do sujeito da roça, presente inclusive nos
livros de literatura do autor taubateano, Monteiro Lobato. A imagem do caboclo vestido de
botina e calças sujas de terra, por conta do seu trabalho na roça, usando chapéu e fumando um
cigarro de palha, constitui a típica representação do personagem Jeca Tatu, de Monteiro
Lobato.
Era justamente essa imagem estereotipada de sujeito da roça, que a proposta inicial de
Educação do Campo pretendia desconstruir, a partir da exaltação de elementos socioculturais
específicos, como a posse da terra e o seu uso como meio de produção, que serviam de
fundamento para a produção discursiva de uma nova representação, ou seja, a criação da
imagem do camponês. Como morador da roça que o sujeito de pesquisa SR02 se referia à sua
pessoa, reconhecia a si mesmo como alguém que residia na zona rural e que possuía
190

limitações, que o impediam até mesmo de sonhar em estudar fora do seu local de habitação, o
que lhe permitia caracterizar o curso do Procampo/UNITAU como: um sonho impossível que
se tornou possível.

SR02 - Para mim foi um sonho impossível que se tornou possível. Porque, morando na
roça, zona rural e pintar uma faculdade lá em Taubaté, que a gente ia em janeiro e julho...
e, assim..., meu marido sendo contra!

Da mesma maneira, no extrato de discurso do sujeito SR03, também se percebe uma


autodefinição semelhante, de como um indivíduo que nasceu na roça, mas que precisou residir
algum tempo na cidade, mas retornou a morar na roça. O SR03 se identificava como alguém
que sempre manteve um vínculo com o meio rural e que, semelhante ao SR02, precisou
conservar essa ligação com seu local de origem, por não ter condições de sair da roça para
fazer um curso superior na cidade.

SR03 - Eu nasci na roça, na zona rural aqui em Cunha. [...] Daí eu vim para cidade,
depois voltei para roça então sempre estive nesse meio rural. [...] Mas como que eu iria
fazer, se não tinha como sair da roça?

Percebe-se nos estrados dos discursos apresentados anteriormente, certa abertura dos
sujeitos pesquisados às representações estereotipadas, difundidas socialmente inclusive pela
literatura local. Abertura essa que, de certa forma, os tornavam vulneráveis a tais
representações, que assimilavam como um discurso de verdade e que os faziam aceitar as
limitações que a distância lhes impunha, como algo insuperável e que acabavam até mesmo
por lhes retirar a possibilidade de sonhar em ser alguém diferente do que eram.
A assimilação de um discurso de verdade, que acaba por depreciar não somente as
formas de existência rural, mas a própria vontade dos sujeitos da roça e seus modos singulares
de falar, de pensar e de entender o mundo. Por meio dessas representações, os alunos criavam
uma imagem vergonhosa de si, assumindo-se negativamente como caipiras, gente que fala
errado, pessoas de baixa capacidade cognitiva e de um saber de menor valor (que não sabe
nada), ou seja, alguém que é considerado burro.
Sobre essa imagem depreciativa de si mesmo, o extrato do discurso da professora
SD02 deixa claro o desejo do sujeito da roça ser diferente do que é, falar do mesmo modo
como o outro (o sujeito da cidade) fala, uma vez que seu vocabulário, de certa forma,
191

denuncia um modo de ser socialmente inferiorizado, que é a situação do caipira que mora na
roça.

SD02 - Um aluno até chegou a falar:


- fessora, quando é que nóis vai fala igual ocêis?
Reconhecer essa questão da importância em valorização da variação linguística, do
respeito à cultura, da adequação da fala. Então eles chegaram com essa questão. Muito
quietos e receosos de fazer questionamentos, de contestar alguma coisa do professor,
com receio em mexer com a questão da tecnologia, de montar um PowerPoint, eles nunca
tinham feito isso.

Quando o indivíduo da roça expressa o seu desejo de falar diferente, no momento em


que ele diz: quando é que nóis vai fala igual ocêis; constata-se o início do reconhecimento de
uma verídica de falar e o desejo de subjetivação desse discurso verdadeiro. Verifica-se a
aceitação do indivíduo da roça, como algo legítimo e reconhecidamente superior, a forma
como seu mestre se comporta e fala. No discurso do outro está contido um modelo para a
transformação de si, pois o aluno toma o comportamento e o modo eloquente de se expressar
de seu mestre, como um ponto de ancoragem no qual a verdade precisa ser subjetivada, isto é,
um regime de verdade que também precisa se transformar na própria verdade do discípulo.
Em outras palavras, é por meio do discurso do mestre que o discípulo opera sobre si mesmo
sua própria transformação (FOUCAULT, 2014d).
Além de se auto identificarem como sujeitos da roça e não como camponeses,
percebemos nos excertos anteriormente expostos que, quando do ingresso dos alunos no
Procampo/UNITAU, os alunos possuíam uma imagem inferiorizada e depreciativa de si
mesmos. Essa representação de si revela uma espécie de abertura do eu desses sujeitos para o
exterior, que os obrigava a manter uma atitude silenciosa, uma postura tímida, vergonhosa e
recuada, ou como se referiu o professor SD02: receosos de fazer questionamentos, de
contestar alguma coisa do professor.
Podemos dizer que, ao ingressarem no curso de formação de professores do
Procampo/UNITAU, os alunos se encontram num estado de ignorância de si mesmos, de
desconhecimento de si. Entretanto, não queremos aqui afirmar que o estado de ignorância, no
qual tais sujeitos se encontravam, refere-se a uma condição de deficiência de conhecimentos
sobre o mundo. Devido às limitações impostas ao seu querer, à sua vontade de potência, para
nos referirmos a um termo nietzschiano, em função das reduzidas possibilidades que o mundo
podia lhes oferecer, para desenvolverem suas vontades sobre os objetos de conhecimento de
si, esses sujeitos da roça acabaram por assimilar certas representações sobre si. Para dizer as
192

coisas de outra maneira, a partir do momento em que o regime de verdade, difundido


socialmente pelo discurso, diz algo sobre o sujeito da roça, que o faz acreditar ser verídico, há
uma subjetivação dessa verdade e a sua manifestação na forma de atitudes conformistas, de
comportamentos retraídos e de um fechamento do indivíduo sobre si mesmo. Por acreditarem
na incapacidade de romper com as estruturas representacionais e materiais nas quais se
encontravam, esses sujeitos atribuíam a si mesmos essas representações depreciativas, de
maneira a se imaginar como seres socialmente inferiores e, com isso, eles não queriam ser
quem eles mesmos eram, desejavam ser outro.
Identificamos nessa condição inicial dos alunos, quando ingressaram no curso do
Procampo/UNITAU, uma situação relacional do sujeito consigo mesmo e com o mundo,
semelhante ao estado de stultitia, termo extraído da filosofia clássica e estudado por Foucault
(2014d). A stultitia refere-se às circunstâncias nas quais o sujeito não tem uma relação de
cuidado consigo mesmo, permanecendo num estado de abertura em relação ao exterior e,
desta maneira, na dependência das representações externas sobre si e sobre a sua posição no
mundo. No caso do nosso estudo, caracteriza-se como um estado no qual os sujeitos
desenvolvem uma certeza absoluta na eterna reprodução do passado e agem “[...] com
descuido, negligenciam os bens, ainda que presentes, porque estão constantemente voltados
para suas preocupações com o porvir [...]” (FOUCAULT, 2014d, p.417).
Ou seja, nesse estado de abertura que configura a stultitia, o sujeito não dedica uma
atenção especial ao momento presente de sua existência, como forma de efetuar um cuidado
consigo mesmo e perceber-se como alguém sujeitado às representações externas. No excerto a
seguir, percebemos nos fragmentos do discurso do SR01 a aceitação de uma verdade pretérita
de seu entorno social e a predisposição para assumi-la como uma certeza para o seu futuro.

SR01 - Eu não sei se eu sonhava em fazer uma faculdade, porque todo mundo que veio
antes de mim, lá no meu bairro, todo mundo estudou até a quarta série, nem o sexto ou
o sétimo tinha, não existia isso lá. [...] Não tinha como você morar aqui e fazer uma
faculdade. E para ir embora também, todo mundo é pobre lá em casa, ninguém tinha...,
não tinha condições, nem de sonhar com isso. [...] Nem isso, nem nada! Não tinha.
Então ninguém tinha, era uma coisa inimaginável. Apareceu até o ensino médio, está bom
já. Já estava à frente de todo mundo. [...] Você é um pouco do meio de onde você está
inserido. Então, lá não existe ninguém que teve um curso superior. Ninguém. Todo
mundo trabalhou na roça e a vida lá é assim, ninguém nunca pensou.

O fato de não haver uma única pessoa formada em nível superior na sua comunidade,
configura uma certeza para o sujeito, de que cursar uma faculdade é algo impensável para
quem mora na roça, um sonho que ele nem mesmo sabia dizer se algum dia passou pela sua
193

cabeça, pois a realidade de seu entorno social lhe evidenciava que: não tinha como você como
você morar aqui e fazer uma faculdade [...] não tinha condições, nem de sonhar com isso [...]
nem isso, nem nada! Não tinha. Quando o sujeito utiliza a expressão: nem isso, nem nada;
refere-se justamente à sua certeza de que haveria uma reprodução das coisas, exatamente da
forma como sempre aconteceram, o que lhe impedia até mesmo de sonhar com algo diferente.
Nesse sentido, Foucault (2014d, p.118-119) afirma que “[...] o stultus é aquele que está
disperso no tempo: não somente aberto à pluralidade do mundo exterior, como disperso no
tempo”.
Pelo fato de não haver uma pessoa sequer em sua comunidade, portadora de um título
educacional de nível superior, o SR01 transformou essa condição pretérita do seu entorno
social, numa representação verdadeira para si mesmo. Desse modo, por acreditar que essa
concretude histórica de sua comunidade, acabaria por se reproduzir na sua própria existência,
terminava por aceitar que não tinha condições, nem de sonhar com isso. Seria essa uma forma
de dispersão no tempo, como declara Foucault (2014d), pois o fato de o sujeito nem de sonhar
com isso determina uma espécie de solução, de encerramento ou de conclusão prévia para o
futuro de sua existência. Em outras palavras, com base nas representações sobre o passado, o
SR01 emitia um juízo sobre o futuro, de forma a não haver espaço para as incertezas do
porvir, o que se constitui uma maneira própria do sujeito tentar controlar aquilo que ainda não
aconteceu, ou seja, de planejar o futuro.
De maneira semelhante, o SR02 acreditava que seria impossível cursar uma faculdade,
tanto pelo fato de residir na roça, como pelas outras responsabilidades que possuía como
empresária, motorista e produtora rural. Afirma que sua vida era de muito trabalho, pois além
de proprietária de uma lanchonete, declarou que desempenhava ainda a função de motorista,
além de produzir e ser comerciante de flores na sua chácara. Acrescenta, ainda, que embora
toda essa vida agitada com os trabalhos na lanchonete, como motorista e no plantio e venda
das flores produzidas na chácara, seu sonho mesmo era ser professora.

SR02 – Minha vida era de muita luta [...] aqui eu tinha uma lanchonete [...] Eu era
motorista da zona rural [...] aqui eu tinha uma lanchonete, sou produtora da flor copo-
de-leite, sou produtora da chácara, é muita luta, muito trabalho. [...] Eu sempre sonhei
em ser professora, um sonho muito grande meu. [...] Eu olhava os professores me dando
aula e falava: - Nossa! Eu poderia estar ali, poderia estar no lugar delas. Mas acho que eu
não vou mais ter a oportunidade de estudar [...]. Sempre sonhei em cursar uma faculdade,
mas achava isso impossível.
194

De acordo como Foucault (2014d, p. 118) “[...] o stultus é aquele que quer, mas quer
com inércia, quer com preguiça, sua vontade se interrompe sem parar, muda de objetivo. Ele
não quer sempre”. Não se tratava propriamente da preguiça, mas sim de uma inércia que se
formava por conta da distância, pois os sujeitos se viam impedidos de cursar uma faculdade,
porque residiam longe dos locais em que os cursos superiores eram ofereciam.

SR03 – [...] porque estando na roça, para eu estudar seria muito difícil, não só pela
questão financeira, mas o problema de locomoção. Eu morava a 10 quilômetros do
asfalto. Para eu ir até o asfalto e pegar uma condução para faculdade, não tinha como.

De acordo com Foucault (2014d), o oposto do estado de stultitia é a condição de


sapientia do sujeito, sendo que passagem de um estado a outro somente é possível com o
auxílio de um mestre, que irá realizar um processo ou uma operação de retirada do indivíduo
de si, um diretor de consciência que irá fazê-lo sair de si mesmo, alguém que lhe estende a
mão e lhe conduz para fora de si mesmo. No fragmento do discurso do professor SD01,
verificamos esse movimento de retirada do indivíduo de si mesmo, executado por meio de
exercícios de reflexão e de rememoração.

SD01 – Ao mesmo tempo em que os meus alunos estavam se transformando, estavam


aprendendo, metamorfoseando-se em professores, eu também estava passando por esse
processo, só que no sentido contrário. Enquanto eles iam para fora deles mesmos, eu ia
para dentro de mim mesma. E essas reflexões acabaram suscitando uma volta às
memórias minhas da infância.

Nesse trecho do discurso, o SD01 reconhece o processo de transformação que o sujeito


da roça passava, no qual era conduzido para fora de si mesmo, com o objetivo de se
metamorfosear em professor. Tratava-se de uma duplicação do eu, operada pelo dispositivo
pedagógico, “[... que constrói e medeia] a experiência de si como um conjunto de operações
de divisão orientadas à construção de um duplo e como um conjunto de operações de relação
orientadas à captura desse eu duplicado” (LARROSA, 2011, p.79).
Os dispositivos pedagógicos operam sobre o sujeito fechado sobre si, de maneira a
dividi-lo e fazer aparecer esse duplo, de forma que essa nova dimensão do eu possa ser
capturada, tanto pelo dispositivo pedagógico, como pelo próprio eu do sujeito duplicado. São
os procedimentos de desdobramento, de fabricação e de captura desse duplo, que constituíram
o processo de subjetivação do professor do campo, no interior do dispositivo pedagógico
195

institucionalizado pelo curso Procampo/UNITAU, que interessa ao estudo a ser realizado nos
subitens que seguirão o desenvolvimento da presente tese.

5.5 Objetivação do professor: um sujeito transcendental

No decorrer de sua obra, Michel Foucault elege três formas diversas de


objetivação, sendo que o primeiro desses processos analisado pelo autor, o sujeito é
reconhecido enquanto objeto de estudo da ciência, como um ser que é parte de uma
história biológica e natural e, também, na medida em que é um sujeito que produz e que é
considerado um homem econômico. No interior da segunda forma de objetivação, o autor
observa o sujeito como objeto de práticas divisórias, práticas essas que o separam de si
mesmo e dos outros, de modo que a sua segregação de uma parcela dita sã da sociedad e,
produz o surgimento desse sujeito como louco, como delinquente, como prisioneiro etc.
A terceira forma de objetivação se caracteriza pelos modos como o homem concebe a si
mesmo o status de sujeito, isto é, por meio do conhecimento de si e das práticas de si
sobre si mesmo, o homem se constitui e se reconhece como sujeito de verdade e de
conhecimento (FOUCAULT, 2010; 2013a; 2014d).
Conforme estudamos no capítulo anterior, o professor do campo passou a constituir
um objeto de saber e a fazer parte de um determinado jogo de verdade, a partir do embate
político que se consumou com a normatização da Educação do Campo. Por meio da disputa
política entre os discursos do materialismo histórico e neoliberal, caracterizou-se e fixou-se
essa nova forma de ser sujeito, uma racionalidade que possibilitou a elaboração da norma
educacional, por meio da qual se estabeleceram os procedimentos didático/pedagógicos,
essenciais para uma ação prática sobre as individualidades, de maneira a se produzir e
reproduzir essa identidade camponesa.
A necessidade governamental de produzir uma identidade capaz de unificar as
diversas formas de vida rural, fez emergir o discurso da Educação do Campo, que estabeleceu
como norma indispensável à formação do modo totalizante de ser, caracterizado pela
subjetividade camponesa. Segundo Larrosa (2011, p.75), “a norma, diferente da lei, pretende
ser um conceito descritivo: média estatística, regularidade, hábito. Pretende objetividade:
justificação racional”. O professor do campo surge nesse contexto, como um ponto de apoio
196

necessário à disseminação dos saberes, que são utilizados como objetos de poder, para a
transformação das individualidades rurais nessa modalidade única e total de ser camponês.
Ainda de acordo com Larrosa (2011, p.76) “[...] a norma está ancorada no saber, na
medida em que fixa critérios racionais que aparecem como objetivos e, ao mesmo tempo, está
ancorada no poder, na medida em que constitui os princípios de regulação da conduta segundo
os quais funcionam as práticas sociais de disciplina”. As práticas de regulação da conduta
constituem especificamente o trabalho executado pelo dispositivo pedagógico, por meio do
qual se buscou a modificação do indivíduo da roça, a partir da exposição de seu ser empírico a
um modelo de subjetividade constituído previamente, que se organizou na forma do sujeito
transcendental, caracterizado pelo professor do campo.
Cabe aqui um esclarecimento sobre a concepção foucaultiana de sujeito
transcendental, pois não se trata da substância epistêmica cartesiana, desde sempre existente e
que antecede o saber, capaz dele próprio construir a história. O sujeito é considerado uma
forma e não uma substância transcendental, justamente por ser uma matriz de apreensão de
individualidades, que é histórica e antecede até mesmo aquele que ocupa essa posição.
Noutros temos, considera-se como transcendental essa posição sujeito, pelo fato de ser
histórica e contingente, assim como por se tratar de uma construção a priori, que antecede o
próprio ser que nela se apreende (FOUCAULT, 2010, 2012a; 2013a).
Portanto, o dispositivo pedagógico estabeleceu os meios que propiciaram o contato do
indivíduo da roça com o seu outro, com a forma de ser produzida discursivamente, como uma
posição sujeito que deveria ser ocupada pelo professor do campo. Como demonstramos no
capítulo IV, o perfil desse sujeito professor do campo foi sendo traçado, por meio do embate
político de forças revolucionárias e neoliberais, que buscavam a produção de um ser livre e
autônomo. Destacamos que, os sentidos atribuídos aos enunciados liberdade e autonomia
eram diferentes, quando considerada cada uma das formações discursivas, que buscavam
limitar a dispersão e a aleatoriedade desses enunciados (FOUCAULT, 2015a).
Desse modo, o discurso revolucionário se apoiava numa determinada formação
discursiva, que confere ao processo educativo a capacidade de produção de um sujeito
engajado politicamente, alguém que possui a liberdade e a autonomia para a mudança da
estrutura econômica, que é vista como a causa responsável pela produção da diferença e a
desigualdade. Por outro lado, o discurso neoliberal se apoiava numa formação discursiva, que
credita à educação a capacidade de produzir uma determinada forma de ser sujeito, também
livre, autônomo e engajado num outro tipo de transformação, que não se trata exatamente da
estrutura sócio/econômica. A transformação que se pretende operar, por meio do discurso
197

neoliberal é na própria subjetividade, de maneira que a pessoa se torne alguém mais apto a
participar ativamente dessa estrutura. Um sujeito, mais eficientemente engajado no mundo do
trabalho e da produção, é considerado como o ponto necessário para operar a redução das
diferenças e das desigualdades sociais (DARDOT; LAVAL, 2016).
Ainda com base nas análises realizadas no capítulo IV, constatamos que, por meio das
adaptações, das inclusões e dos desvios do discurso original da Educação do Campo, o
modelo progressista e transformador de educação e de sujeito, pretendido pelos movimentos
sociais e sindicais do campo, acabou por ser integrado ao discurso neoliberal. Essa
acomodação do discurso progressista e revolucionário aos preceitos neoliberais, culminou
com a normatização de um determinado tipo de educação e a produção de uma forma
específica de sujeito, cuja base epistemológica se fundamenta no enunciado de sujeito da
modernidade: um ser considerado livre e autônomo. É dessa maneira que a transformação do
indivíduo da roça em sujeito professor do campo, seguiu os parâmetros estabelecidos pelo
conhecimento científico, cuja objetividade foi que propiciou as novas bases para a
interpretação individual e cultural (FOUCAULT, 2008a; 2008b).
Para Foucault (2015b), a objetivação corresponde ao processo pelo qual o homem
é reduzido a um objeto de conhecimento manipulável, passível de domínio e que
possibilita a transformação do indivíduo, em algo diferente do que ele é na atualidade.
Sendo assim, com o objetivo de investigar o modo como o professor do campo foi objetivado
pelo dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU, interrogamos dois dos docentes do
programa, sobre quem era o sujeito que se pretendia formar por meio do referido curso. De
acordo como a professora SPC01, esse sujeito já estava delineado no Projeto Político
Pedagógico do Procampo, que se trata de um professor que deveria possuir uma formação
científica, de maneira a dominar os fundamentos de cinco áreas diferentes do saber.

SPC01 – O sujeito que se pretendia formar é o que está delineado no Projeto Político
Pedagógico do Procampo. Especificamente no Procampo/UNITAU, o que está delineado
é um sujeito que tivesse uma formação cientifica, em relação aos fundamentos da
matemática, da física, da química, da biologia e da geografia.

A resposta da professora SPC01 remete ao caráter performativo do curso e aos


elementos transcendentais dessa posição de professor, quando se menciona que esse sujeito já
estava delineado no próprio PPP do Procampo, ou seja, tratava-se de um sujeito cujos
contornos já estavam estabelecidos e fixados pela norma, na qual se buscava uma justificação
racional no próprio discurso científico (LARROSA, 2011). Além disso, esse sujeito professor
198

deveria possuir uma formação científica, de maneira que lhe permitisse dominar os
fundamentos das disciplinas escolares relacionadas à matemática, à física, à química, à
biologia e à geografia. Percebe-se os elementos performativos do discurso neoliberal,
configurados nesse aspecto do sujeito multitarefa, que deve ser preparado para desempenhar o
trabalho docente em várias disciplinas.
Esse mesmo enunciado, que objetiva o professor do campo, como alguém que deveria
possuir uma formação científica e multidisciplinar, pode ser identificado no fragmento da
entrevista da professora SPC02, quando afirma que o curso se estruturou em torno do objetivo
de formar professores, para lecionar no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino
médio, habilitados ao ensino das disciplinas anteriormente mencionadas.

SPC02 – O curso, o Procampo da universidade de Taubaté, tinha como objetivo formação


interdisciplinar de professores, voltados para a área das ciências da natureza e
matemática. Então, era um curso todo estruturado, todo elaborado para a formação de
professores das séries finais do ensino fundamental, a partir do sexto ano e no ensino
médio, nas disciplinas de matemática, física, química, biologia e geografia. O objetivo, a
proposta do curso, seria esse trabalho, em que disciplinas pedagógicas e disciplinas
específicas pudessem ser integradas junto à política, voltada também a educação do campo.

Além desse preparo para o exercício da docência em múltiplas disciplinas, o professor


formado pelo Procampo deveria ser um sujeito habilidoso com trabalho interdisciplinar, de
maneira que, durante a sua ação pedagógica, procedesse a integração das disciplinas escolares
entre si, assim como a interação destas com a política nacional. Quando a professora SPC02
menciona que o trabalho interdisciplinar, que integra a ciência e política, deveria se voltar
para a Educação do Campo, percebe-se justamente a formação do ponto de apoio do regime
de saber/poder. O professor do campo viria a se constituir uma espécie de “elo de ligação”, a
partir do qual se deveria disseminar as verdades, capazes de conduzir a transformação dos
alunos, ou seja, o regime de verdade por meio do qual o poder governamentalizado agiria, de
modo a formar o sujeito camponês.
De acordo com a professora SPC01, essa formação ampla e multidisciplinar,
propiciada pelo dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU, representava a formação
específica para o professor da escola do campo para esse novo milênio.
199

SPC01 – Além da formação específica para o professor da escola do campo para esse
novo milênio, também contemplava uma valorização muito grande da cultura desses
alunos. É um olhar sobre a cultura, uma valorização sobre essa cultura, que é muito
desprezada em nosso país e, ao mesmo tempo, esse programa manteve aceso à história de
cada aluno, à história dos seus pais, dos seus antepassados.

A menção do sujeito SPC01 sobre a formação do professor do novo milênio, indica


uma reprodução dos enunciados postos em circulação originalmente por Delors (1998), no
relatório elaborado no ano de 1996 para a UNESCO, por meio do qual, especialistas em
educação de diferentes países, traçaram as orientações sobre a educação mundial para o
século XXI. Esse relatório recebeu o título de: Educação: um tesouro a descobrir; e
estabeleceu os ideais do projeto educacional, para a formação da sociedade do novo milênio
que se aproximava. Esses ideais estavam perpassados por três temas transversais: tecnologias
de Comunicação, professores e processo de ensino e finanças; que deveriam ser abordados a
partir de seis linhas investigativas: educação e cultura, educação e cidadania, educação e
coesão social, educação trabalho e emprego, educação e desenvolvimento, educação pesquisa
e ciência.
Conforme os ideais estabelecidos no documento, caberia aos professores do novo
milênio formar o espírito e o caráter das “novas gerações”, que seriam compostas por sujeitos
capazes de evoluir e de se adaptar a um contexto de aceleradas transformações. (DELORS,
1998). A educação consistia no tesouro que ainda estava por ser descoberto, pois ela
constituiria o meio pelo qual se produziria o novo homem, necessário para fazer frente às
demandas do novo milênio. Verifica-se nos fragmentos da entrevista da professora SPC01, a
reprodução do discurso performativo sobre a necessidade de produção de um novo sujeito,
aquele que se fazia necessário para o enfrentamento dos desafios do século XXI.
A partir dessa orientações da UNESCO, contidas no documento que ficou conhecido
como Relatório Delors, atribuiu-se à educação o trabalho de produção do sujeito do novo
milênio e, para isso, a educação para o século XXI deveria englobar processos, que
conduziriam as pessoas, desde a infância até o fim da vida, a um conhecimento dinâmico do
mundo, dos outros e de si mesmas, de maneira a combinar, flexivelmente, quatro
aprendizagens essenciais: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e
aprender a ser (DELORS, 1998).
Outro aspecto a ser evidenciado nesse fragmento do discurso da professora SPC01,
está relacionado à questão da valorização cultural, pois como já discutido anteriormente, o
dispositivo pedagógico buscava efetuar uma espécie de desconstrução do estereótipo
200

construído culturalmente sobre o sujeito da roça. De acordo com Rodrigues e Abramowicz


(2013), a cultura tem sido um campo propício para o governamento da população, a partir da
estratégia de apaziguamento das desigualdades e do esvaziamento das diferenças. Nesse
sentido, a cultura atua como um dispositivo que opera por duas vias, uma produtiva e outra
como espaço. A via produtiva da cultura é a que constrói os sentidos e a própria realidade.
Enquanto espaço que circunscreve a esfera do social, a cultura atua como um campo de
contenção, para o caráter disruptivo anunciado pela diferença (RODRIGUES;
ABRAMOWICZ, 2013).
Os autores apontam um esvaziamento da cultura enquanto categoria analítica, por
conta da sua abrangência semântica, que é capaz de comportar várias prescrições e abrir
espaço tanto para categorias universais como para a esfera local. Sendo assim, a cultura
enquanto elemento estratégico, de articulação política para a redução das desigualdades
sociais, opera como um mecanismo de governo da população, que se alinha ao discurso
neoliberal. A inclusão por meio da cultura efetua uma espécie de justiça cultural, em
substituição à justiça social, como forma de naturalizar as desigualdades por considerá-la a
partir de outra perspectiva semântica: a diversidade. Enquanto a noção de diversidade oculta,
encobre e disfarça as questões históricas e sociais, referentes à desigualdade e à diferença, a
cultura surge como um dispositivo de inclusão, de aproximação e de tolerância à diversidade
(RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013).
No excerto da entrevista da professora SPC02, percebe-se que o curso objetivava
integrar culturalmente os saberes experienciais dos alunos, com o conhecimento científico e
os saberes da docência.

SPC02 – O objetivo do curso seria mesmo essa questão de integrar os saberes do campo,
saberes dos alunos, aqueles que tinham conhecimento da realidade do campo, com o
conhecimento científico e com a docência.

O trabalho didático/pedagógico de integração cultural constituía na própria


oportunidade de exposição das individualidades rurais às verdades científicas, de modo a se
efetuar um duplo trabalho de ressignificação. Por meio da integração de saberes, o dispositivo
pedagógico criava as condições necessárias para a exposição dos indivíduos ao seu duplo
transcendental. Desse modo, para que pudessem ocupar aquele espaço que lhes fora reservado
como professor do campo, o indivíduo da roça precisava transformar uma parte do seu ser,
aquela que lhe mantinha sujeitado às representações externas.
201

Percebe-se que o modo como se produziu a objetivação do professor do campo,


baseou-se totalmente num enunciado de sujeito universal, muito próximo da representação
moderna de sujeito do iluminismo, cujas ideias se fundamentam, principalmente, no
pensamento de René Descartes (1596-1650) e de Immanuel Kant (1724-1804). O sujeito do
iluminismo se caracteriza pela liberdade de pensamento, sendo que a sua racionalidade é o
que lhe concede os atributos da trans-historicidade, assim como o potencial para a uma
autonomia individual. Liberdade e autonomia individuais que, de acordo com um texto
kantiano que trata do esclarecimento, estariam prejudicados pela preguiça e pela covardia do
sujeito em conceber suas próprias ideias (KANT, 1783).
Aquela parte de si mesmo, aquele eu que até então serviu como critério para uma
existência pessoal no mundo, o eu enquanto sujeito rural ou as qualidades do indivíduo da
roça precisaram se transformar, de modo a reduzir a complexidade e a indeterminação do
novo ambiente educacional no qual o indivíduo acabava de se inserir, como também
estabelecer e fixar o seu papel e a sua função social nesse novo universo, isto é, a sua própria
identidade no interior da atualidade de seu tempo. Trata-se da construção de uma
subjetividade, que busca no interior do próprio indivíduo, algo que de precisa se livrar, que
exige uma superação e a devida transformação.
Os fragmentos de discurso dos sujeitos SPC01 e SPC02 referem-se a um processo de
objetivação do sujeito, cujo objetivo era criar as condições necessárias para colocar o
indivíduo da roça em contato com seu outro, o sujeito transcendental que fora idealizado
como modelo, como forma determinada de ser professor. Desse modo, quando a professora
SPC01 menciona que eles iam para fora deles mesmos, esse movimento configura o
deslocamento indivídual, que o projeta para fora de si, de modo a contemplar as verdades que
lhe são externas, mas que devem ser assumidas como algo inerente ao próprio sujeito. É
processo de subjetivação do discurso verdadeiro, por meio do qual o indivíduo da roça assume
para si as verdades sobre o sujeito professor do campo, a partir das quais opera uma
transformação de si mesmo, que nos interessa analisar no subitem a seguir.

5.6 Um sujeito construído: a subjetivação do discurso verdadeiro

Considerando todo esse processo de apreensão, cálculo e estabelecimento dos limites


de normalidade, por meio dos quais se definem os saberes que objetivam um espaço a ser
202

ocupado, numa perspectiva foucaultiana, não se considera o sujeito como uma essência ou
uma substância, tal qual passou a ser defendido pela racionalidade moderna a partir da obra de
René Descartes (1596-1650) e aprofundado pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804).
Toda a série de pesquisas realizadas por Michel Foucault, acerca do saber e do poder e suas
inter-relações, serviram-lhe de base para avançar nos estudos sobre essa configuração, que
determina as formas particulares de agir e de ser humano, que passou a se chamar de sujeito.
Nessa forma de ser, denominada sujeito, não se trata de uma essência desde sempre
idêntica a si mesma ou imutável, mas refere-se a algo que se constrói historicamente e que se
desloca no tempo e no espaço, uma estrutura que está em constante mutação e, por isso
mesmo, jamais é idêntica a si mesma de uma época histórica para outra. Dessa maneira, os
estudos foucaultianos concebem o sujeito como uma forma, que se configura, que se compõe
e se organiza estruturalmente de diferentes maneiras, conforme cada época. Em outras
palavras, o sujeito é um objeto produzido no interior das relações de saber/poder,
historicamente estabelecidas (FOUCAULT, 2014d).
Do mesmo modo, o termo subjetivação, quando empregado numa perspectiva
foucaultiana, marca a contraposição à ideia de sujeito constituinte, pois essa expressão
designa sempre um caráter processual e de produção de uma determinada forma de ser sujeito,
nunca completamente acabada e em constante transformação e abertura, tanto ao exterior
quanto ao universo interno do indivíduo. Sendo assim, as ações por meio das quais o poder
busca orientar as condutas, no sentido de construir a subjetividade do professor do campo, só
se tornam compreensíveis a partir da produção discursiva de uma dupla posição individual, ou
seja, um duplo modo de ser com os quais a pessoa passa a se relacionar intimamente.
Esse eu duplicado do sujeito se forma, quando ocorre uma apreensão do indivíduo por
um dispositivo, aqui o pedagógico, que, na condição atual em que se encontra o seu ser, toma
parte no processo formativo para se tornar professor e entra em contato com um regime de
verdades acerca de um estado desejável, ou da forma idealizada e objetivada de ser professor
do campo. Então, o eu duplicado do sujeito se produz a partir do conflito entre um eu
empírico (o indivíduo da roça) e uma forma transcendental de ser (o sujeito professor do
campo). A duplicação do sujeito se alicerça numa batalha constante entre a atualidade do eu e
a dobra produzida sobre si, pela objetivação da forma-sujeito, enquanto estrutura idealizada e
construída apriorística e discursivamente (FOUCAULT, 2014d; LARROSA, 2011).
O eu empírico, ou aquela atualidade da maneira de ser do indivíduo num determinado
momento histórico (o indivíduo da roça), precisou passar por uma transformação em seu
modo de ser, de modo que esse indivíduo adquirisse os conhecimentos, as habilidades e as
203

atitudes necessárias correspondentes a uma nova forma de ser, configurada na forma-sujeito


professor do campo. De acordo como o professor SPC01, esse trabalho de transformação da
pessoa da roça em sujeito professor do campo, que se realizou no interior da materialidade
discursiva e não-discursiva do dispositivo pedagógico, consistiu em uma tarefa realizada na
intimidade de cada aluno do Procampo/UNITAU. Tratava-se de um exercício que o próprio
indivíduo precisou efetuar sobre si mesmo, de modo a assumir para si as verdades sobre esse
objeto.

SPC01 – Os professores foram elementos primordiais nessas transformações, mas acho que
a grande transformação ocorreu dentro deles mesmos. Nesse processo dialético de
aprendizagem e de reflexão, de quem eles eram, dos professores que eles estavam se
relacionando e do professor que eles gostariam de ser. Eu acho que a grande questão
foi interna, dentro de cada um.

A dialética da reflexão, de que a professora SPC01 se refere nesse excerto, diz respeito
ao conflito do sujeito, quando colocado em relação com seu outro, com o duplo de si mesmo,
construído a partir das visibilidades do dispositivo pedagógico, que conduz o indivíduo a
refletir e a julgar seu próprio eu, tendo como base uma imagem do outro eu, aquele que ele
deve ser tornar, o sujeito objetivado enquanto espaço a ser ocupado por aqueles que desejam
ser professores do campo, o sujeito idealizado e transformado em discurso performativo.
Sendo assim, aquela parte de si mesmo, aquele eu, que até então serviu como critério
para uma existência pessoal no mundo, o eu enquanto sujeito rural ou na qualidade de
indivíduo da roça, precisou se transformar, de modo a reduzir a complexidade e a
indeterminação do novo ambiente no qual esse indivíduo acabava de se inserir, como também
estabelecer e fixar o seu papel e a sua função social nesse novo universo, isto é, a sua própria
identidade no interior da atualidade de seu tempo. Para tanto, as tramas da subjetivação do
professor do campo se organizaram mediante as relações de si para consigo, proporcionadas
pelo exercício constante de uma experiência de si e de um exame de consciência, previamente
programados no interior do dispositivo pedagógico, que estabeleceram, por meio dos tempos
escola e comunidade, os critérios para o direcionamento do olhar dos sujeitos, de modo que
observassem uma determinada especificidade de seu ser, como objeto de conhecimento.
De acordo com a professora SPC01, o aprendizado dos alunos do Procampo/UNITAU
ocorreu por meio da retirada do indivíduo de si mesmo e do contato desse outro eu com os
saberes científicos.
204

SPC01 – Eu acho que o maior aprendizado foi a valorização da cultura e da história


deles [...] ao mesmo tempo em que os meus alunos estavam se transformando, estavam
aprendendo, metamorfoseando-se em professores, eu também estava passando por esse
processo, só que no sentido contrário. Enquanto eles iam para fora deles mesmos, eu ia
para dentro de mim mesma [...] com as minhas aulas, aquilo que eu havia escrito, eu fazia
com que eles saíssem de dentro deles para olhar as ciências e ressignificar a sua
cultura.

Lançar o indivíduo da roça para fora de si mesmo, de modo a contemplar outras


realidades, que se evidenciam a partir da iluminação proporcionada pelas luzes da ciência,
comprova a adesão desse discurso ao pensamento iluminista, que se fundamenta na crença de
que a mente humana possui a capacidade de alcançar a verdade sobre os objetos empíricos.
Essa seria a função principal da educação, preparar os sujeitos para utilizar o conhecimento
científico de forma metódica, de tal modo que os objetos do mundo empírico sejam forçados a
manifestar a sua verdade. A direção da consciência configura uma técnica de si, denominada
por Foucault (2008a) como Tecnologia Pastoral, que submete o indivíduo a uma verdade que
lhe é externa, de forma a produzir um determinado tipo de subjetividade. Desse modo, os
estudos foucaultianos consideram a liberdade do sujeito, não porque deixou de se submeter a
uma norma externa, mas pelo fato de assumir para si essas verdades, que lhe permitem
governar a si mesmo.
Projetar as individualidades rurais para fora de si mesmas constitui propriamente uma
técnica de subjetivação do discurso verdadeiro das ciências, que constrange o sujeito a
executar uma reflexão sobre seu próprio ser, a partir de elementos que lhe são externos. De
acordo com Larrosa (2011, p.49), “do que se trata aí é de definir, formar e transformar um
professor reflexivo, capaz de examinar e reexaminar, regular e modificar constantemente sua
própria atividade prática quanto, sobretudo, a si mesmo, no contexto dessa prática
profissional”. Em outras palavras, o autor complementa que “[...] o que se pretende formar e
transformar não é apenas o que o professor faz ou o que sabe, mas, fundamentalmente, sua
própria maneira de ser em relação ao seu trabalho”.
Trata-se de uma tecnologia do eu, produtora de uma determinada forma de ser, a partir
da sujeição do indivíduo a um regime de verdade que, embora lhe seja exterior, apresenta-se
como algo evidente e verídico, de forma que ele mesmo as subjetiva e assume para si mesmo,
como normas que passam a guiar sua conduta (LARROSA, 2011). São as práticas
pedagógicas que reproduzem os regimes de verdade, na medida em que o dispositivo
pedagógico não representa um mero espaço de mediação para o desenvolvimento, nos quais
ocorre a aquisição de conhecimentos, mas constitue verdadeiros mecanismos de produção da
205

experiência de si, ou espaços onde ocorre a produção e a reprodução de saberes, assim como a
circulação do poder em seu aspecto positivo, ou seja, não necessariamente repressivo, mas
essencialmente produtivo.
Nesses espaços pedagógicos se põe em funcionamento o processo de subjetivação,
pois se caracterizam como locais e momentos de produção do sujeito professor do campo, ou
mecanismos que colocam em funcionamento e que operam a reprodução do a priori histórico,
no interior dos quais se constitui o sujeito transcendental (LARROSA, 2011).

(SR02) Lá na faculdade geralmente a gente sempre tinha que apresentar uma aula. [...]
Tivemos que dar aula para os professores, lá na frente e tudo era com apresentação. Tudo
o que você fazia, você tinha que apresentar numa aula. Toda aula de geografia,
matemática, você tinha que ir lá na frente para apresentar, na maioria das vezes.

A prática pedagógica de ir à frente estabelece uma experiência de si, na qual o


indivíduo não somente apresenta um conteúdo ou manifesta um saber assimilado e/ou
apreendido, inerente ao conteúdo disciplinar que o professor acaba de ensinar. Antes disso,
ele confessa aos colegas e ao professor algo sobre si mesmo e, certamente, não somente aos
outros, pois expõe para si mesmo suas dificuldades, suas deficiências, ou seja, aquela parte de
si mesmo que precisa transformar, de modo a se tornar o sujeito que foi objetivado pelo
dispositivo pedagógico. Por meio do exercício de apresentação de um conteúdo disciplinar
diante dos colegas e dos professores, o aluno é colocado numa condição similar à da
confissão, na qual é obrigado a exteriorizar elementos da sua própria subjetividade.
Quando no Tempo Escola o aluno era solicitado para ir à frente apresentar seu trabalho
de campo, sua pesquisa, ou o conteúdo desenvolvido no tempo comunidade, já estava
estabelecido de antemão, pelo dispositivo pedagógico, aquele modo como o sujeito devia ser,
enquanto objeto visível para o mestre e para seus colegas, assim como os demais objetos e
comportamentos que precisam ser evidenciados pelo seu discurso. Nessa condição, o aluno
era colocado numa relação de poder tal, que precisava revelar determinadas verdades
subjetivadas, sobre o conteúdo disciplinar e, sobretudo, acerca das verdades sobre si mesmo.
Esse tipo de atividade prática de apresentação de trabalho, no qual o mestre e os colegas se
encontram numa condição de expectadores e avaliadores, obriga o indivíduo a realizar um
exame de si mesmo, concomitante à confissão do seu eu para si e para os outros.
Esses componentes da subjetividade do aluno, que se revelam no modo como o
indivíduo fala e se expressa, acabavam por expor aquela parte do seu ser que precisava ser
transformada. De acordo com o discurso do sujeito SR03, percebe-se que a transformação do
206

sujeito ocorreu por meio de um aprendizado dinâmico, que se realizava pela disposição
didática das disciplinas, que vinculavam a teoria com a aplicação prática dos conteúdos.

(SR03) Muita dinâmica a gente fazia. Além da teoria, muita prática. A gente tinha que
aprender praticando tudo o que eles ensinavam.

Por meio da prática, o aluno era conduzido a confessar constantemente a parte do seu
ser que, por não condizer com o modelo transcendental de sujeito que se desejava formar,
abria espaço para um trabalho de autotransformação do indivíduo da roça em sujeito professor
do campo. Trabalho esse que se realizava no íntimo de cada aluno, por meio dos exercícios
dialéticos de ação e reflexão, mencionados anteriormente pela professora SPC01, que
propiciavam um exame constante do indivíduo sobre si mesmo, tomando-se como base aquilo
que se era na atualidade de seu próprio ser e aquela nova forma de sujeito, que era imposta
externamente pelo discurso performativo e ditava a norma de como deve ser um professor do
campo.
De acordo com Larrosa (2011), quando o próprio indivíduo é quem realiza o exame de
si, podemos afirmar que se trata de uma internalização da verdade, ou daquilo que Foucault
(2004) denominou como a subjetivação do discurso verdadeiro. É no interior dessa trama
discursiva, que apreende o indivíduo da roça e que produz nele mesmo um duplo, a alteridade
necessária para a ação do regime de verdade da ciência, que permitirá a sua transformação em
sujeito, no duplo sentido que este termo assume nos estudos foucaultianos.
Um sujeito que é duplo não somente pelo fato de ser transformado em objeto de poder
e, assim, sujeitado a um saber que lhe é exterior e que o antecede; mas também por se
transformar em objeto de poder para si mesmo, no momento em que assume para si aquelas
mesmas verdades que lhe são impostas e lhes sujeitam, passando a considerá-las como sendo
a sua própria verdade, algo verídico sobre seu ser mesmo. Desse ponto em diante, no processo
de subjetivação, sujeito e objeto se confundem, de maneira que o sujeito assume seu próprio
eu como objeto, não somente de conhecimento, mas, e acima de tudo, como objeto para o
qual é capaz de conduzir as condutas, ou seja, o sujeito passa a exercer o poder sobre si
mesmo e converte-se no seu próprio governante. Percebe-se, assim, o funcionamento do
dispositivo de segurança da governamentalidade, que em seu sentido descendente de ação
busca incluir cada indivíduo no interior de sua lógica de funcionamento.
Para a professora SPC02, ressignificar a cultura dos indivíduos da roça foi algo que se
realizou pela integração de saberes, que consistia num dos objetivos do curso, na medida em
207

que a formação docente buscava complementar os saberes dos alunos sobre a realidade do
campo, de forma a possibilitar o seu aprofundamento por meio do conhecimento científico,
integrando-os aos saberes docentes.

SPC02 – O objetivo do curso seria mesmo essa questão de integrar os saberes do campo,
saberes dos alunos, aqueles que tinham conhecimento da realidade do campo, com o
conhecimento científico e com a docência.

Nesse aspecto, o dispositivo pedagógico funcionou como um mediador para a


realização de práticas, por meio das quais os alunos puderam efetuar a observação de si e da
sua própria cultura, através das “lentes” da ciência e por meio dessa tecnologia de poder que
permitiu que os próprios sujeitos transformassem aquelas representações depreciativas sobre
si e do seu entorno sócio/cultural. Percebe-se que a verdade sobre o sujeito professor do
campo foi sendo reproduzida no interior da própria prática formativa, no interior das quais os
alunos foram incitados a ver e a reproduzir essas verdades, por meio da ressignificação de
suas culturas sob o olhar da ciência. Por meio do um novo regime de verdade, estabelecido
pela Educação do Campo, o dispositivo cria a cisão interna no indivíduo da roça, de modo que
ele próprio possa praticar exames constantes sobre si mesmo e perceber tais verdades, assim
como aquilo que deixa de ser verídico sobre seu modo de ser.

(SPC01) A gente sempre primou por isso, para que eles aprendessem, aprendessem de
fato e, ao mesmo tempo, que eles fossem profundos conhecedores da realidade e da
prática pedagógica das escolas do campo, das regiões em que eles estivessem inseridos e
que eles pudessem dialogar com essas esferas, para criar uma proposta diferenciada, à
luz da educação do nosso século XXI. Para as nossas escolas do campo, que eles
tivessem condições de levar o conhecimento, a tecnologia e, ao mesmo tempo, a
cultura local, sempre transitando nessas duas esferas.

Enquanto o discurso revolucionário pretendia formar um sujeito professor, que se


caracterizava pelo seu engajamento político, por meio do qual se buscava transformar as
estruturas socioeconômicas de dominação, o discurso neoliberal propôs a produção de um
sujeito mais engajado e mais adaptado a essas mesmas estruturas. Assim, a solução neoliberal
para a formação do professor do campo, propôs a transformação das individualidades, de
forma a construir um sujeito mais ativo e engajado economicamente, como forma de reduzir
as diferenças socioeconômicas. Como os saberes relacionados à população são produzidos no
interior da economia política, a proposta neoliberal de formação de professores do campo não
busca propriamente uma mudança na forma de condução política dos sujeitos, tampouco uma
208

alteração na estrutura econômica da sociedade. A cultura se transforma no meio pelo qual se


pode produzir a metamorfose das individualidades, de maneira a adaptá-las à estrutura
sociopolítica.
Varela (2011) nos adverte sobre a ilusão de que as pedagogias renovadoras possam
corrigir a distorção provocada pelas pedagogias ditas tradicionais, que desconsideram as
culturas não acadêmicas e rejeitam a diversidade cultural. Para essa autora, as pedagogias
renovadoras tendem a construir uma cultura popular, excessivamente vinculada ao concreto,
ao local, ao prático e ao criativo. Esse movimento das pedagogias renovadoras pode provocar
efeitos indesejados, ao encerrar as classes menos favorecidas no interior de sua própria
realidade concreta, negando-lhes o acesso às formas culturais eruditas e, desta maneira,
podem criar barreiras culturais para que esses indivíduos escapem de sua condição
socialmente subordinada (VARELA, 2011).
A partir do momento em que ocorre a dobra social, que captura o indivíduo por meio
de um conjunto de práticas institucionalizadas de manipulação e de condução, esse ir para
fora de si, passa a se constituir num processo de apreensão das individualidades pelo discurso
verdadeiro das ciências. É o próprio indivíduo que se transforma num objeto de estudo, de
assimilação e de transformação pelo regime de verdade científico, pois como declara Deleuze
(2013, p.104), “o lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada e que
possui movimentos peristálticos, de pregas e de dobras que constituem o lado de dentro: nada
do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora”.
Dessa maneira, com base nos estudos realizados por Michel Foucault nas décadas de
1960 e 1970, constata-se que os saberes elaborados sobre o campo, o sujeito camponês e o
professor do campo, não se relacionam a um desdobramento do lado de dentro do indivíduo,
mas o seu envolvimento pelas verdades construídas pelo lado de fora, pelo regime de
saber/poder. Sendo assim, o professor do campo emerge como um efeito de superfície, algo
que surge a partir dessa dobra do social sobre os indivíduos camponeses. É nesse sentido que
o movimento, por meio do qual se traz o indivíduo para fora de si, consiste num exercício de
conhecimento de si, semelhante ao proposto pela confissão cristã, no qual o sujeito se percebe
a partir de uma verdade, que lhe é exterior e o antecede, uma espécie de palavra sagrada que
possibilita o conhecimento do ser mesmo do sujeito, aquela parte de si que precisa ser
controlada e transformada (FOUCAULT, 2014d).
Diferentemente, porém, de reconhecer seu ser pelo intermédio da palavra contida nas
sagradas escrituras, o indivíduo da roça é levado a se reconhecer como sujeito de
conhecimento e de ação, por meio das verdades científicas, também sacralizadas
209

(AGAMBEN, 2016). As verdades da ciência fizeram aparecer o eu mesmo do indivíduo da


roça, as individualidades que as práticas do dispositivo pedagógico tornaram evidentes e sobre
as quais se fez o investimento pedagógico necessário, para que houvesse a devida
transformação desse indivíduo. Em outras palavras, o indivíduo aprendeu e subjetivou o
discurso científico, a partir do qual ressignificou e transformou seu próprio ser, ou nas
palavras da Professora SPC01, metamorfoseou a sua individualidade naquela forma desejada
de sujeito professor do campo, planejada inicialmente pelo dispositivo pedagógico.
Percebe-se que um conjunto de formas e de visibilidades, previamente estabelecidas,
fez com que o indivíduo lançasse luz sobre determinados aspectos de seu próprio ser,
precisamente aqueles que necessitavam ser conhecidos e modificados, de modo a permitir a
sua transformação em sujeito professor do campo. O que havia de problemático no estado de
stultitia dos indivíduos da roça, estava no fato de que essa condição passiva de si para
consigo, não coincidia com o regime de verdade imposto pela racionalidade de nossa época.
Um indivíduo que se deixa levar pela sorte, não coincide com o ideal de sujeito
autodeterminado, autônomo e livre, que o discurso da modernidade produz, faz aparecer e põe
em circulação, enquanto materialidade discursiva e não-discursiva.
Desse modo, foi o próprio modo de governar a si mesmo que o indivíduo da roça
precisou transformar, como condição de funcionamento da razão neoliberal, materializada
pela mentalidade de governo. De acordo com os fundamentos da genealogia foucaultiana,
discutidos no Capítulo II desta tese, a governamentalidade constitui uma ferramenta
conceitual, que nos permite perceber a reprodução e a propagação de uma mentalidade,
individual e coletiva, de governo. Mentalidade essa que atua não somente como uma
ferramenta política de controle e de determinação da conduta dos outros, mas que estende a
sua ação disciplinar para uma dimensão ética, na qual o próprio indivíduo se percebe como
um ser livre, para autodeterminar a sua conduta pessoal, ou seja, uma liberdade que lhe
possibilita estabelecer uma relação de governo, de si para consigo (FOUCAULT, 2014b;
2014c).
Assim, o poder disciplinar atinge outra dimensão de controle e de balizamento das
condutas, mais sutil e quase imperceptível, por não se basear em mecanismos repressivos e
exclusivamente externos à pessoa. Verifica-se a produção de um duplo movimento do jogo
estratégico de governamento das condutas, por meio do qual o sujeito é transformado num
objeto de saber, objetivado pela verdade científica, no interior de dispositivos que reproduzem
as práticas de subjetivação. Ao aderir, de maneira voluntária, a esses dispositivos, o indivíduo
é impelido a assumir para si, o papel, também duplo, de transformar a si mesmo em objeto de
210

conhecimento e, por meio desse conhecimento de si, realizar práticas de autotransformação


(FOUCAULT, 2014d).
É nesse sentido que a professora SPC01 concebe a transformação, pela qual passaram
seus alunos, com a participação do processo formativo de professores do campo, como algo
que ocorreu no interior de cada um e que lhes possibilitou desenvolver a autoconfiança e a
autoafirmação social.

(SPC02) Muitos se autoafirmaram, viram que são capazes. [...] Eles realmente se
reconheceram como importantes como sujeitos sociais. [...] Reconhecimento como um
sujeito importante na sua comunidade, como um sujeito importante na questão social,
como o reconhecimento de que ele é um sujeito capaz, uma autoconfiança.

A partir da proposição de práticas pedagógicas e disciplinares, o dispositivo


pedagógico criou as condições necessárias para a superação do estado de passividade e de
abertura às representações externas (que comparamos ao estado de stultitia), no qual se
encontrava o indivíduo, no início do processo formativo. Por meio dessas práticas, criou-se a
possibilidade do indivíduo da roça transformar seu próprio modo de existência social, ao se
metamorfosear no sujeito professor do campo, isto é, naquela forma de ser que é capaz de
conduzir o outro e, desse modo, obter um reconhecimento da importância do seu papel na
sociedade. Poderíamos considerar o desenvolvimento da autoconfiança e da autoafirmação
como um processo subjetivo, que se estabelece a partir da apreensão do indivíduo no interior
da trama discursiva, na qual se produz o professor do campo (FOUCAULT, 2014d;
LARROSA, 2011).
O processo de empoderamento não consistiu simplesmente de uma assimilação de
conhecimentos científicos, por meio dos quais o sujeito se percebe como alguém capaz de
ensinar outras pessoas, mas de uma transformação da pessoa da roça, a partir da apreensão de
sua individualidade, no interior da trama discursiva de um jogo com a verdade, na qual se
produz a forma transcendental de ser, denominada de professor do campo. O sujeito que se
reconhece como alguém capaz e admite a sua importância social, encontra-se inserido no
interior da ordem do discurso verdadeiro da governamentalidade, como alguém apto, não
somente a reproduzir os saberes científicos, mas a guiar as condutas individuais em sua
comunidade. Um conhecimento de si por meio do jogo de verdade, na qual o sujeito se
reconhece como alguém útil socialmente enquanto professor do campo, por assumir o papel
de condutor, tanto da aprendizagem dos alunos, como da vida de sua comunidade.
211

Desse modo, o desenvolvimento da autoconfiança, por meio do reconhecimento de


uma capacidade individual em conduzir outras pessoas ao aprendizado, nos remete às formas
de reprodução e disseminação do discurso verdadeiro acerca da governamentalidade. Como se
pode verificar no excerto do discurso da professora SPC01, a transformação que ocorreu nos
alunos do Procampo/UNITAU se relaciona ao empoderamento dos sujeitos.

(SPC01) Então, eles não eram mais seres amedrontados, eles se tornaram seres
detentores de um conhecimento de um empoderamento. Esse curso deu a eles um
empoderamento. O empoderamento que o conhecimento trouxe, em questão do
autoconhecimento, eles se tornaram pessoas que sabem quem eles são, o que eles
querem, para onde eles vão.

Precisamos relembrar mais uma vez a noção foucaultiana de poder, como um jogo
estratégico que ocorre entre pessoas livres, por meio do qual uns tentam determinar a conduta
dos outros. Nesse sentido, a expressão empoderamento pode ser entendida como um
movimento de conhecimento de si e de apreensão do sujeito, por meio do discurso persuasivo
da ciência, necessário ao convencimento e à direção da conduta, tanto de si mesmo como dos
outros. O empoderamento expressa a possibilidade de liberdade do sujeito em determinar a
sua própria conduta, assim como a apreensão dos conhecimentos necessários para a condução
do outro. Uma dupla autonomia do sujeito, tanto na dimensão ética quanto no campo político,
relacionada à sua capacidade de autogoverno e governos dos outros, ou seja, à sua liberdade
de conduzir a si mesmo, de acordo com os objetivos que a própria pessoa propõe para sua
vida e de direcionar a conduta dos outros ao aprendizado científico. Nesse sentido, o
empoderamento do sujeito professor do campo pode ser visto como uma consequência, ou
como o resultado subjetivo dos mecanismos mediadores da relação do sujeito com um
determinado jogo de verdade, cujos efeitos de superfície o inscrevem na ordem do discurso da
atualidade histórica (FOUCAULT, 2014a; 2015a).
No fragmento da entrevista da professora SPC02 verificamos que, o mencionado
empoderamento do sujeito, diz respeito não somente a uma dimensão ética de
autodeterminação, mas a uma dimensão política de valorização e reconhecimento social.

(SPC02) Muitos se autoafirmaram, viram que são capazes. Então todo aquele receio, isso
foi sendo superado ao longo do tempo. Muitos viram que o apoio, todo o respaldo da
família, da instituição, do município, é importante, mas que ele é o responsável pelo seu
aprendizado. Eles realmente se reconheceram como importantes, como sujeitos sociais.
Reconhecimento como um sujeito importante na sua comunidade, como um sujeito
importante na questão social, como o reconhecimento de que ele é um sujeito capaz,
uma autoconfiança.
212

O reconhecimento social do professor do campo, como alguém que estudou e possui


um discurso embasado cientificamente, constitui um elemento importante desse
empoderamento do sujeito, pois, como menciona o SR01, pelo fato de ter estudado e obtido
uma formação superior, sua opinião passou a ter um peso social, ou seja, seu discurso se
revestiu de certa autoridade, perante as pessoas de sua comunidade.

(SR01) As pessoas às vezes têm um respeito maior, dizem: - ele estudou! A opinião da
gente acaba tendo um peso maior para as pessoas. Você se sente bem assim, mais útil.
Eu posso ajudar, eu posso dar uma opinião melhor. Ele está precisando de uma dica, nisso
naquilo. Eu acho que essa formação me ajudou bastante, a autoestima da gente fica lá em
cima.

Desse modo, o autoconhecimento, a autoestima, o autocontrole, a autoconfiança, a


autonomia, a autorregulação, a autodisciplina são termos que definem um sujeito que é capaz
de exercer o controle e a direção de si, de se autogovernar e que, a partir desse
empoderamento, torna-se alguém capaz de governar a conduta dos outros. De acordo com
Larrosa (2011, p.30) “essa curiosa expressão só é compreensível a partir de uma distinção
entre, pelo menos, duas partes da pessoa. É a partir da ideia de que uma delas, a melhor, a
mais alta, a mais ‘humana’, deve dominar a outra”.
Desde o nascimento da filosofia, como forma racional do ser humano se relacionar
com o mundo e consigo mesmo, a razão se constituiu como a parte mais elevada da pessoa
humana, por meio da qual o indivíduo seria capaz de dominar, não somente a natureza, mas a
si mesmo. As diferentes maneiras com que, ao longo da história do Ocidente, a filosofia
buscou desenvolver esse elemento mais elevado do indivíduo, foi objeto de estudo de Michel
Foucault, em sua obra intitulada A hermenêutica do sujeito. Com essa obra, Foucault (2014d)
constatou, a partir de seus estudos arqueogenealógicos, que mesmo essa substância: a razão;
que se considerou muitas vezes como uma essência humana, não se manteve constante ao
longo da história ocidental.
Foucault (2014d) verificou a existência de uma impermanência histórica, tanto da
substância que se considera como a essência da própria humanidade, como nos métodos
utilizados para o indivíduo ter acesso a essa sua parte mais elevada, de maneira a desenvolver
o controle sobre seus apetites, suas paixões e suas representações. Se durante o período
clássico, o indivíduo era solicitado a cuidar de si mesmo, de maneira a conhecer suas próprias
inclinações, suas paixões e seus apetites, como forma de exercer o domínio sobre si mesmo,
com o advento da modernidade, há uma espécie de inversão nessa hierarquia entre o cuidado
213

e o conhecimento, pois o cuidado de si passa a se subordinar ao conhecimento de si. A partir


de então, a preocupação se desloca do cuidado para conhecimento, pois não serão mais os
apetites e as paixões os objetos de cuidado, de conhecimento e de controle do indivíduo, mas
suas representações. A representação que o sujeito tem de si e do mundo que precisa ser
conhecida e controlada, na medida em que ela é considerada uma cópia imperfeita da
realidade – uma fantasia – e, desse modo, surge a necessidade do sujeito conhecê-la para
poder dominá-la. Um domínio de si que se dá não mais pelo cuidado, mas pelo conhecimento
de si, pois uma vez que as representações constituem o próprio sujeito, a partir de então, é o
conhecimento de si que possibilita o governo das próprias representações (FOUCUALT,
2014d).
214

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é que realmente faço?


Que pretendo alcançar exatamente com isso?
Friedrich Nietzsche51

Na presente pesquisa mobilizamos a proposta teórico-metodológica de Michel


Foucault, seguindo sua perspectiva arqueogenealógica do discurso, para analisarmos a
emergência da Educação do Campo no Brasil e, a partir da sua propositura como política
pública nacional, investigamos o processo de subjetivação do professor do campo. Utilizamos
como lócus de estudo, o curso de formação de professores do campo, oferecido pela
Universidade de Taubaté (UNITAU), que se caracterizou como um curso inédito no Estado de
São Paulo, tendo como suporte o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura
em Educação do Campo (Procampo).
Verificamos que a Educação do Campo se constituiu como uma política pública
educacional relativamente recente, que foi colocada em prática no início dos anos 2000, cujos
fundamentos teóricos se embasaram no materialismo histórico e sua emergência ocorreu no
interior dos movimentos sociais e sindicais do campo, no final da década de anterior. A
origem do movimento de instauração da Educação do Campo se constituiu como uma luta
política, que nasceu da resistência popular ao modelo de educação rural vigente na época e
que estava em execução no Brasil, desde o início do século XX. A reivindicação pela
expansão do sistema educacional, de forma a atender plenamente as necessidades da
população rural, de maneira a considerar a sua própria realidade cultural, fez parte de uma
estratégia revolucionária maior, que foi posta em funcionamento pelo MST.
O discurso de emergência da Educação do Campo foi marcado pelo movimento de
contraposição ao modelo sócio-econômico de sociedade capitalista, que surgiu num momento
específico da história brasileira, logo após a abertura política e a instauração do processo de
redemocratização. Verificamos que o enunciado da inclusão surgiu como uma espécie de elo
estratégico, capaz de fazer convergir duas formações discursivas díspares e politicamente
antagônicas, as quais embasavam tanto o sonho revolucionário como o projeto de
globalização do mercado.

51
Questionamentos feitos por Nietzsche (2013, p. 235) sobre a verdade.
215

A análise do discurso nos possibilitou adentrar num campo de batalha, onde foi
travada a disputa propriamente política, pelo domínio dos efeitos de sentido entre essas duas
formações discursivas. Por um lado, percebeu-se que os movimentos sociais e sindicais se
apoiaram em efeitos de sentido específicos, que o enunciado da inclusão permitia e que lhes
possibilitava justificar a ampliação do direito democrático de acesso à educação formal, como
ferramenta revolucionária. No outro pólo dessa disputa pela posse do discurso, verificamos a
organização de outra formação discursiva, enquanto estratégia política organizada
mundialmente pelos organismos internacionais de financiamento, como um discurso que teve
como objetivo, incorporar os países periféricos no processo de globalização.
As análises atinentes à emergência da Educação do Campo nos possibilitaram
constatar que, os efeitos de sentido do discurso original, foram aos poucos incorporados aos
significados mercantis do discurso da globalização e do neoliberalismo. A partir de
adaptações sutis e desvios semânticos, o discurso revolucionário foi integrado ao conjunto de
reformas educacionais, que se apoiaram no enunciado da inclusão e que se viu implantar no
Brasil, a partir do final da década de 1990. Percebemos que, sob a coordenação de organismos
técnicos internacionais, vinculados a instituições financeiras, como o BM e o FMI, essas
reformas buscaram expandir o acesso à educação básica para toda a população brasileira, cujo
discurso de base se apoiava na política econômica internacional.
A elevação dos níveis educacionais, por meio da garantia de que toda a população
tivesse o acesso à educação básica, era o que embasava o discurso internacional de redução
das desigualdades sociais dos povos considerados emergentes na America Latina e no Caribe.
Verifica-se que o interesse desenvolvimentista atravessa o discurso da inclusão educacional,
pois a elevação do nível cultural da população dos países considerados de terceiro mundo
consistia uma estratégia política, que visava a garantia da participação dessas economias no
mercado global. Sendo assim, por intermédio de um incentivo ao desenvolvimento
econômico, por meio da elevação dos níveis culturais de suas populações, buscava-se
expandir a globalização do modelo de economia de mercado.
Verificamos, então, a confluência e a assimilação do discurso social-democrata pelo
projeto neoliberal, pois ambos se apoiavam sobre a premissa do direito universal à educação,
o que tornou possível colocar em funcionamento o enunciado da inclusão. Nesse contexto
sociopolítico, por um lado, o acesso à educação pode ser considerado como uma expansão das
garantias e dos direitos individuais e um avanço ao processo democrático, de outro, como
uma espécie de motor para o desenvolvimento econômico dos países emergentes.
216

Percebemos que os efeitos de sentido que o enunciado da inclusão produziu, no


interior de uma formação discursiva revolucionária, foi assimilada pela formação discursiva
neoliberal e pôs em circulação os regimes de verdade, por meio dos quais as práticas
educacionais se embasaram. Percebe-se que, pelo controle dos efeitos de sentido dos
enunciados, travaram-se as batalhas políticas, não sendo necessariamente pelo poder que esse
conflito se estabeleceu no interior do campo discursivo da Educação do Campo. O discurso
era propriamente o objeto de luta, pois o seu direito de posse e de uso político possibilita
construir a realidade por meio das práticas sociais.
A posse (mesmo que temporária) do discurso foi o que possibilitou aos organismos
internacionais estabelecer, de uma maneira estratégica, o regime de verdade que mais lhe
convinha para o momento. A estratégia discursiva, encontrada pelos órgãos internacionais de
financiamento, para colocar em funcionamento o seu plano de inclusão das economias
periféricas ao processo de globalização, materializou-se através do financiamento de projetos
na área educacional. Sendo assim, a problemática geral desse estudo girou em torno da
incorporação do discurso original da Educação do Campo, pelo discurso da política
econômica mundial, como estratégia para a redução das desigualdades sociais.
No encadeamento do jogo discursivo, viu-se criarem efeitos de sentido e se
estabelecerem regimes de verdade, em torno de uma forma de vida rural que engloba todas as
diferentes possibilidades de existência não urbana. Constatamos que, os movimentos sociais e
sindicais do campo somente puderam construir um regime de verdade sobre a Educação do
Campo, por meio de um procedimento discursivo, cuja estratégia se realizou no interior da lei
do dizível. Dessa maneira, somente após a reformulação da nomenclatura original para o
espaço habitado, de forma a não somente torná-lo diferente do que se denominava por rural,
mas, sobretudo, de garantir a sua validade enquanto uma verdade cientificamente
comprovada, que se pôde falar e fazer falar sobre a Educação do Campo.
Em outros termos, foi justamente no momento histórico em que os movimentos
sociais e sindicais conquistam o direito ao discurso e se apoderaram dele, que se tornou
possível a luta política para contextualizar e produzir o conceito de Educação do Campo,
fazendo-o emergir como um enunciado discursivo. O termo campo, entretanto, materializou
essa forma de existência genérica, a partir de um jogo com a verdade, produzida no interior do
discurso acadêmico das Ciências Sociais. Esse termo possibilitou a emergência e a reprodução
de enunciados, capazes de efetuar um apagamento das diferenças, pois as formas
dessemelhantes de vida rural foram incorporadas no interior de um conceito populacional,
capaz de incluí-las numa concepção de diversidade produtiva.
217

Mediante um breve exame lógico, acerca das diferentes formas de existência dos
povos, que foram legalmente incluídos no interior da categoria Campo, percebemos a
estratégia discursiva, utilizada politicamente para se criar esse conceito totalizante.
Certamente que se pode identificar o campo como um local de produção, mas isso não nos
permite afirmar que, por exemplo, um indígena, um pescador, um quilombola ou um
ribeirinho habitem um espaço geográfico que possui características comuns. Tampouco se
pode admitir que essas diferentes formas de reprodução da vida humana em comunidade,
representem alguma semelhança, tanto quanto ao modo de conduzir suas atividades laborais,
quanto aos propósitos econômicos.
Desse modo, percebemos algo de problemático na atribuição desse rótulo único a
todas as diferentes formações populacionais, pois a posse da terra e o seu uso como meio de
produção, somente de uma forma muito abstrata e virtual, poderia ser admitida como o fator
unificador desses diferentes modos de vida. Conforme as análises realizadas, constatamos que
as condições de emergência da Educação do Campo no Brasil, associadas aos objetivos de
inclusão de toda a população do campo no interior de um projeto educacional único,
configurou um movimento que implicou na expansão da razão de governo.
Ocupamo-nos, então, em fazer o caminho de reconstituição da emergência da
Educação do Campo no Brasil, para esclarecer que, com o surgimento da trama discursiva que
envolve a instituição de práticas educacionais singulares, destinadas ao governamento do
meio rural, surge também a necessidade de fundar uma nova forma de ser sujeito: o
camponês. Foi preciso todo esse percurso analítico, para sublinhar a determinação histórica da
construção do sujeito camponês pelo discurso da governamentalidade, no qual abordamos as
questões sobre o saber e suas verdades que, ao mesmo tempo em que antecedem a produção
desse sujeito enquanto objeto de conhecimento, vinculam-no a um regime de poder,
necessário ao funcionamento e a reprodução da própria trama discursiva.
Em outras palavras, as verdades que produzem sujeitos governáveis são as mesmas
que reproduzem a própria razão governamental de nossa época e, nessas condições, para
existir o objeto campo, foi necessário produzir um sujeito que assumisse esse enunciado e
todo o campo semântico que o circunda, como uma verdade para si mesmo. Sendo assim,
houve a necessidade de fabricar um objeto de conhecimento, para que se pudesse produzir a
subjetividade, que se identificava como camponesa. Do mesmo modo, para que se pudesse
produzir uma forma específica de educação e de educador, foi necessário produzir um objeto
de conhecimento, uma forma transcendental de educação e de sujeito professor do campo,
218

como um ponto no qual esse jogo discursivo pudesse se reproduzir e ser aceito como
verdadeiro.
Constatamos que a trama discursiva, que se organiza a partir de um saber científico,
atravessa o dispositivo pedagógico do Procampo/UNITAU como um jogo de verdade, de
modo a transformar o indivíduo da roça em sujeito de conhecimento. De uma maneira mais
específica, podemos dizer que o dispositivo pedagógico de apreensão e produção de
subjetividades, constituiu-se como uma superfície de mediação, que possibilitou a produção
da dobra social sobre os indivíduos da roça, de forma a fazer com que eles assumissem para si
mesmos, as verdades acerca de uma forma transcendental de ser professor do campo.
É nesse sentido que o professor do campo adquire as características metafóricas de um
nó, que prende, segura e propaga a trama discursiva, de maneira a possibilitar a circulação,
tanto do jogo de verdade, como do jogo de poder. No interior desse jogo da verdade e por
intermédio do saber científico, identificamos a transformações das representações que o
indivíduo da roça fazia de si mesmo, isto é, a construção de imagens positivas de si, que
possibilitaram não somente o autoconhecimento do indivíduo enquanto pessoa, mas a sua
metamorfose em sujeito professor do campo. Por meio da luz que a ciência lançou sobre tais
representações, para torná-las visíveis, possibilitou a sua apreensão no jogo do poder, que as
classifica como verdadeiras ou falsas. Percebeu-se que o enunciado, no qual se apoiou esse
jogo de saber e de poder, tomou como referência o sujeito da modernidade, de modo a
determinar se as representações que o indivíduo faz de si mesmo coincidem ou não com esse
modelo epistêmico de sujeito, que foi criado pelo pensamento moderno.
Por meio das práticas de si, nas quais o indivíduo se assumiu enquanto sujeito
professor do campo, purificaram-se as “falsas” representações sobre si e transformaram seu
próprio modo de ser, naquele que assume o domínio sobre seu próprio modo de existir. Sendo
assim, foi o próprio modo de governar a si mesmo que o indivíduo da roça precisou
transformar, como condição necessária ao funcionamento da razão neoliberal, materializada
pela mentalidade de governo. Verificamos a produção de um duplo movimento do jogo
estratégico de governamento das condutas, por meio do qual o sujeito é transformado num
objeto de saber, objetivado pela verdade científica, no interior de dispositivos que reproduzem
as práticas de subjetivação.
Toda essa estratégica produção da verdade, ocorreu no interior de uma trama do
saber/poder, que acabou por orientar a adesão voluntária dos indivíduos, para o interior dos
dispositivos de segurança. Impelidos a assumirem para si próprios, o papel, também duplo, de
transformar a suas próprias individualidades em objeto de conhecimento, embora esse
219

domínio não seja total, pois se está limitado às condições concretas e materiais, que são
próprias da atualidade e que antecedem à existência do sujeito. Poderíamos considerar, então,
o professor do campo como uma configuração tal da subjetividade, na qual a pessoa da rica se
viu resgatada e salva pela verdade, pois o regime de veridição que sustenta a Educação do
Campo é o mesmo que transforma o indivíduo da roça num sujeito livre enquanto homo
oeconomicus, para se tornar um empreendedor e, sobretudo, um empreendedor de si mesmo.
Não poderíamos deixar de relembrar a noção foucaultiana de poder, enquanto jogo
estratégico entre pessoas livres, por meio do qual uns tentam determinar a conduta dos outros,
pois o empoderamento que o processo de formação proporcionou aos sujeitos, estabeleceu um
movimento de conhecimento de si, por meio do discurso persuasivo da ciência, necessário ao
convencimento e à direção da conduta, tanto de si mesmo como dos outros. Nestes termos, o
empoderamento expressa uma possibilidade de liberdade para o sujeito, pois os mesmos
passaram a perceber outras condições possíveis para determinar suas próprias condutas, bem
como a apreensão dos conhecimentos necessários para a condução do outro.
Uma dupla autonomia do sujeito, tanto na dimensão ética quanto no campo político,
relacionada à sua capacidade de autogoverno e governos dos outros, ou seja, mediante a sua
liberdade de conduzir a si mesmo, de acordo com os objetivos que o próprio indivíduo propõe
para sua vida e de direcionar a conduta dos outros ao aprendizado científico. Nesse sentido,
pudemos perceber o empoderamento do sujeito professor do campo como uma consequência,
ou como um resultado subjetivo, dos mecanismos mediadores da relação do sujeito com um
determinado jogo de verdade, cujos efeitos de superfície o inscrevem na ordem do discurso da
atualidade histórica.
220

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