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Lê o seguinte texto de Camões, que tem marcas autobiográficas.

   Eu cantei já, e agora vou chorando


   o tempo que cantei tão confiado;
   parece que no canto já passado
   se estavam minhas lágrimas criando.

  5 Cantei; mas se me alguém pergunta: Quando?


   Não sei; que também fui nisso enganado.
   É tão triste este meu presente estado
   que o passado, por ledo, estou julgando.

    Fizeram-me cantar, manhosamente (1),


10 contentamentos não, mas confianças;
  cantava, mas já era ao som dos ferros.

  De quem me queixarei, que tudo mente?


  Mas eu que culpa ponho às esperanças
  onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
 (1)     manhosamente: ao engano.

Construindo frases bem estruturadas e documentando as tuas afirmações com passagens do


texto, responde ao questionário que segue: 
1) O sujeito lírico reflete sobre dois momentos da sua vida. Identifica-os e contrasta o seu estado
de espírito em cada um deles. 
2)      Explicando o seu valor expressivo, identifica a figura de estilo que, ao nível semântico, se
realiza no primeiro verso. 
3)      Relaciona o conteúdo da última estrofe com as reflexões apresentadas nas estrofes
anteriores. 
4)      Apresenta a classificação formal do texto, integrando-a na produção lírica camoniana.
Cotações: 4 x 50 pontos (30+20)

CORRECÇÃO DO TESTE

1.                  Neste soneto é bem claro o contraste – mais aparente do que efetivo – entre dois
tempos: o passado e o presente.

            Assim, ao contrário do presente, tempo no qual o poeta experimenta uma saudade, uma
tristeza e uma revolta profundas (“ao som dos ferros”), o passado é apresentado como um
tempo não muito feliz, mas, comparado com o presente, parece um tempo de felicidade (“É tão
triste este meu presente estado/ que o passado por ledo estou julgando”), daí o “eu” lírico
afirmar “Eu cantei já”: o sujeito poético cantou cheio de esperanças no futuro («confianças»).
No presente, porém, tem consciência de que qualquer esperança de felicidade é em vão.

            No entanto, essa aparente felicidade do passado, analisada à distância do presente, o que
lhe confere objetividade, não é mais que um engano (“Cantei, mas se alguém pergunta
quando: / Não sei, que também fui nisso enganado”), pois percebe agora que os seus sonhos
foram apenas ilusões.

2.                  No primeiro verso, “Eu cantei já, e agora vou chorando”, encontramos, ao nível
semântico, uma antítese. Esta figura de estilo permite fazer contrastar o passado e o presente
na vida do sujeito poético – o passado, tempo de esperanças, de ilusões; o presente, tempo de
provações e de infelicidade (“ferros”) –exprimindo, assim, a dimensão muito acentuada do
estado de alma do sujeito lírico, que é de uma saudade de um tempo irrecuperável, mesmo que
ele tenha sido só aparentemente de felicidade.        

            Esta oposição entre um passado eufórico e um presente disfórico perpassa a poética de


Camões, cuja tónica na perda e na desilusão se estende ao indivíduo e ao mundo («De quem me
queixarei, que tudo mente?»).

3)         Na última estrofe, o sujeito poético interroga-se e culpabiliza o mundo (v. 12) e o destino
enquanto entidade decisiva e mais responsável pelo seu infortúnio e pela mudança que a sua
vida sofreu. Esse infortúnio já era sentido pelo poeta no passado (“cantava, mas já era ao som
dos ferros.”), mas torna-se mais intenso no presente (“É tão triste este meu presente estado”).

            Deste modo, o sujeito poético reforça, neste último terceto, que não é responsável pelo
seu sofrimento, sendo vítima duma Fortuna inclemente e inexorável: “a Fortuna injusta é mais
que os erros”.

Surge, assim, a confirmação no final da composição de que as esperanças do passado viriam a


ser frustradas (“Mas eu que culpa ponho às esperanças”) e de que a tristeza e a revolta do
presente têm uma justificação: o destino deletério (“a Fortuna injusta é mais que os erros”) que
institui o percurso trágico do sujeito lírico.

4)         Este texto é um soneto, composição clássica constituída por um total de catorze versos
dispostos em duas quadras seguidas de dois tercetos. O esquema rimático é abba, abba nas
quadras e cde, cde nos tercetos, sendo, portanto, a rima interpolada e emparelhada nas
quadras, e cruzada nos tercetos. Quanto à métrica, os versos são decassilábicos heroicos:
acentos na sexta e décima sílabas métricas («Fizeram-me cantar, manhosamente),»).

            Deste modo, esta composição poética pertence à medida nova, que reúne os tipos de
métrica do dolce still nuovo importados de Itália para Portugal no século XVI, dos quais se
destaca o verso decassilábico.

Assim, em contraste com formas poéticas tradicionais em medida velha como o vilancete em
redondilha maior ou em redondilha menor, a medida nova está associada às formas poéticas de
origem italiana e renascentista, entre as quais o soneto, considerado um modelo lírico ideal no
Renascimento, que Camões cultivou com mestria e virtuosismo.

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