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Capítulo 1

Embriologia do Sistema Genital e


Diferenciação Sexual

A embriologia é um ramo da ciência que fornece machos ou fêmeas, independendo do sexo genéti-
subsídios para o estudo da patologia. Dessa forma, co.
a embriologia do sistema reprodutivo é essencial A determinação do sexo se processa em três ní-
para uma melhor compreensão da patogênese de veis: sexo genético, sexo gonadal e sexo fenotípico.
muitas condições anormais das gônadas e das vias O sexo genético é determinado durante a fertiliza-
genitais. Esse conhecimentoé especialmenteneces- ção, quando um espermatozóide X ou Y penetra em
sário para o estudo dos intersexos, das formações um óvulo, formando um zigoto de constituição XX
císticas do sexo oposto, das anomalias do desenvol- ou XY. O sexo gonadal é determinado mais tarde,
vimento da genitália, das patologias da placenta e quando a gônada indiferenciada desenvolve-se em
do feto e, ainda, das neoplasias gonadais. ovário ou testículo, certamente sob influência do
A organização das gônadas e os modelos sexo genético. Já o sexo fenotípico depende do de-
arquitetônicos básicos do trato genital se estabele- senvolvimento de estruturas derivadas do seio uro-
cem muito precocemente na embriogênese. Nessa genital. Quando ocorre qualquer distúrbio no desen-
etapa ainda indiferenciada, cada indivíduo é volvimento desses três estágios, podem-se originar
anatomicamente bissexual, com capacidade para várias formas de intersexualidade.
desenvolver, em maior ou menor grau, as caracte- A determinação do sexo genético ocorre no mo-
rísticas fenotípicas de macho ou de fêmea, indepen- mento da fertilização e influenciará assim o desen-
dentemente do sexo genético. Do ponto de vista volvimento da gônada indiferenciada. Os mecanis-
morfológico, o embrião humano de seis ou sete se- mos através dos quais ocorre essa influência ainda
manas ainda é sexualmente neutro. Esse período não estão completamente esclarecidos. Contudo
corresponde à quarta semana na cadela e à sexta está claro que o cromossomo Y influencia de for-
semana na vaca. ma decisiva a diferenciação sexual masculina. Atu-
Na gonadogênese, as determinações do sexo ge- almente tem sido proposto que o fator de diferenci-
nético, do sexo gonadal e do sexo fenotípico são ação testicular (TDF) é codificado por um gene lo-
interdependentes, e cada um depende dos eventos calizado no segmento curto do cromossomo Y, co-
que ocorreram nos estágios anteriores. Durante o nhecido como SRY, correspondente à região deter-
estágio indiferenciado das gônadas, todos os indi- minante do sexo do cromossomo Y. Anteriormen-
víduos são potencialmente capazes de desenvolver- te acreditava-se que o antígeno H-Y, sintetizado a
se parcialmente, ou mesmo completamente, em partir da expressão do gene H-Y, presente no cro-
4/ Patologia da Reprodução dos Animais Domésticos

mossomo Y, seria o responsável pela determinação células primordiais, que apresentam movimento
do desenvolvimento da gônada masculina. constante e aleatório; se forem adicionadas a esse
Resultados de estudos recentes sugerem que o meio células da crista gonadal, imediatamente os
TDF (também conhecido como TDY), produto do gonócitos migram ou são atraídos para a frente des-
gene SRY, é uma proteína constituída por 80 ami- sas células. Em embriões humanos, por volta da 5.a
noácidos que tem a capacidade de se ligar a uma semana após a fecundação, grande número de cé-
seqüência específica de DNA (A/TAACAATIA) e, lulas germinativas primordiais migram em direção
portanto, atua como fator de transcrição influenci- à crista gonadal por movimento de diapedese. O
ando a expressão de outros genes envolvidos na direcionamento dessa migração aparentemente é
diferenciação sexual. O TDF também tem a capa- determinado pela ação de alguma substância
cidade de se ligar a outras seqüências, induzindo quimiotática produzida pelo epitélio celômico.
dobras na cadeia de DNA com ângulos diferentes Componentes da matriz extracelular como a fibro-
para cada seqüência. O ângulo dessas dobras influ- nectina também estão envolvidos nesse processo.
encia a expressão de genes nas proximidades do Na crista gonadal, as células germinativas primor-
sítio de ligação do TDF. Reforçando o possível diais darão origem a oogônias, no caso do embrião
papel regulatório do TDF, recentemente têm sido do sexo feminino. Na espécie humana, logo após a
identificados genes autossômicos envolvidos no migração,dos gonócitos, aos 24 a 30 dias de gesta-
processo de diferenciação sexual, como por exem- ção, existem aproximadamente 1.700gonócitos, ou
plo: o fator esteroidogênico1(SF-l) e o gene SOX9. futuras oogônias. Aos 60 dias de gestação já são
Além disso, outro gene autossômico, conhecido 600.000 oogônias, e aos 150 dias aproximadamen-
comoWT-1, que é requeridopara o desenvolvimen- te 7.000.000 dessas células estão presentes no ová-
to genitourinário normal, aparentemente se liga a rio. Ao nascimento esse número já está reduzido a
seqüências localizadas acima da seqüência codifi- cerca de 1.000.000de oogônias, e na fase da puber-
cadora do gene SRY e, portanto, acredita-se que o dade este número é ainda mais reduzido, geralmente
WT-l atuaria ativando a expressão do SRY. No variando entre 300.000 e 400.000 oogônias. Nos
camundongo a expressão do TDF ocorre durante bovinos, aos 95 dias observam-se folículos primor-
apenas dois dias e é restrita à crista gonadal. diais, aos 140 dias folículos em crescimento e aos
A gônada é formada primitivamente por células 180 dias já há presença de fqlículos antrais.
germinativas, chamadas gonócitos, que são deriva- Quando houver diferenciaçãoda medular, os cor-
das do interstício gonadal, localizado no saco dões sexuais primários evoluem para formar canais
vitelínico, de onde migram, por diapedese (nos seminíferos, que se anastomosam nos túbulos retos
mamíferos) ou por via sanguínea (nas aves), para o da rete testis, e estes, nos túbulos mesonéfricos e
mesênquima, em um local denominado "crista ductos mesonéfricos ou de Wolff, os quais origina-
gonadal", on& se multiplicarão, dando origem aos rão as vias genitais masculinas internas. Essa dife-
cordões sexuais primordiais. Os gonócitos tornam- renciação dos ductos mesonéfricos ocorre sob estí-
se evidentes por volta de 15 a 20 dias no embrião, mulo da testosterona produzida pelas células inters-
quando este tem cerca de 10 somitos. Até aqui o ticiais de Leydig recém-diferenciadas. Parte desse
indivíduo é sexualmente neutro. Se o indivíduo é hormônio é metabolizadoem diidrotestosterona,que
portador, no seu genoma, do cromossoma Y, há irá estimular o seio urogenital a se diferenciar,origi-
diferenciação para cordões testiculares, e a gônada nando as vias genitaismasculinasexternas.Também
será testículo. Se o indivíduo é do sexo genético já se sabe que, quando a gônada se diferencia para
feminino (XX), não ocorre a expressão do TDF, e testículo, as células indiferenciadas de suporte, que
a gônada se diferencia em ovário. irão se diferenciar em células de Sertoli na fase pré-
A migraçâo de gonócitos do interstício gonadal púbere, secretam o MIF (Fator Inibidor de Müller)
para o mesênquima, sobretudo para as pregas ou ou HAM (Hormônio Antimülleriano) que inibe o
cristas gonadais, aparentemente é devida à ação de desenvolvimentodos ductosparamesonéfricose, por
uma substância quimiotática, que atrai as células conseguinte,das vias genitais femininasinternas. Se
germinativas primordiais. Isso pode ser demonstra- a quantidade do MIF for pequena ou insuficiente,
do in vitro, colocando-se em um meio de cultura haverádesenvolvimento,aindaque não total,das vias
Embriologia do Sistema Genital e Diferenciação Sexual / 5

genitais femininas internas. Da mesma fonna, se a Gônada indiferenciada

quantidadede diidrotestosteronafor insuficiente,ou


mesmo ausente, haverá diferenciação das vias ge- Fator de diferenciação
testicular
nitais femininas externas a partir do seio urogeni-
tal. Tal diferenciaçãopoderá ser total ou parcial.Nos
Testículo
bovinos, a regressão dos ductos de Müller é evidente
entre 50 e 55 dias e toma-se completa aos 67 dias
de idade do embrião.
Na ausência do TDF, a gônada se diferencia em
ovário e os cordões sexuais darão origem aos
oócitos. As células germinativas primordiais pas-
sam por várias divisões mitóticas e entram em fase
de meiose, transfonnando-se em oócitos, que são
5", redutase
envolvidos pelas células foliculares derivadas do
blastema somático e transformam-se em folículos
Diidrotestosterona
primordiais. (metabólito da testosterona
Em síntese, o desenvolvimento da genitália mas- produzida pela ação
da 5", redutase)
culina ocorre de fonna "ativa", ou seja, os ductos
mesonéfricos (de Wolff) se desenvolvem sob estí-
mulo honnonal (testosterona) e o seio urogenital se
diferencia nos órgãos genitais masculinos externos
sob estímulo da diidrotestosterona. Além disso, as
Vias genitais
células indiferenciadas de suporte, presentes na masculinas
externas
gônada masculina, secretam o MIF, que inibe o (pênis, prepúcio,
desenvolvimento dos ductos paramesonéfricos (de glande e escroto)

Müller). Já a genitália feminina se desenvolve de


fonna "passiva", uma vez que, na ausência de estí-
mulo da testosterona,não há o desenvolvimentodos
ductos mesonéfricos, ocorrendo o desenvolvimen- Vias genitais internas
masculinas
to dos ductos paramesonéfricos por não haver pro- (epidídimo, ducto deferente,
dução de MIF. Nesse caso, o seio urogenital origi- ampolas e glândula
vesicular)
na os órgãos sexuais femininos externos, devido à
ausência da diidrotestosterona (Fig. 1.1).
Fig. 1.1 Representação esquemática dos mecanismos envol-
As infonnações a respeito da diferenciação se- vidos no processo de diferenciação da gônada e da genitália
xual baseiam-se em embriologia experimental, se- masculina.
gundo a qual, em coelhos, se as gônadas em dife-
renciação, ovário ou testículo, forem destruídas,
haverá diferenciação dos ductos de Müller. Se, em Pelo exposto, pode-se concluir que existem cin-
um embrião masculino, destruinnos o testículo, os co estágios na diferenciação sexual:
ductos de Müller daquele lado se diferenciarão, ao
passo que no lado oposto haverá diferenciação dos (1) determinação cromossômica do sexo (XX ou
ductos de Wolff. Isso mostra que há necessidade da XY);
célula com seu cariótipo no local, sugerindo um (2) fonnação da gônada bis sexual;
mecanismoparácrino de ação dessas substâncias.Se (3) diferenciação gonadal;
forem injetados honnônios masculinos (testostero- (4) diferenciação da genitália interna;
na) diretamente em um embrião feminino, haverá (5) diferenciação da genitália externa.
estímulo para a fonnação dos derivados dos ductos
de Wolff, mas haverá também diferenciação dos Além dessas etapas, também ocorre a determina-
ductos de Müller, já que o MIF não está presente. ção ou diferenciaçãodo sexo cerebral. Nos machos,
6 I Patologia da Reprodução dos Animais Domésticos

alguns centros hipotalâmicos são masculinizados,o KENNEDY, P.c., MILLER, RB. The female genital system.
que impedea atividadecíc1icaobservadanas fêmeas. In: JUBB, K.V.F., KENNEDY, P.c., PALMER, N. (eds.)
Pathology of domestic animais. 4ed. San Diego:
Nessas condições, qualquer alteração em um Academic Press, v.3, p.349-470, 1992.
desses estágios será capaz de desencadear o apare-
cimento de intersexos, como hermafroditismo, KOOPMAN, P. The molecular biology of SRY and its role
in sex determinationin mammals. Reprod. Fertil. Dev., v.7,
freemartinismo, síndrome da feminização testicu- nA, p.713-722, 1995.
lar etc. Tais alterações ocorrem fundamentalmente
McENTEE, K. Reproductive pathology of domestic
em duas situações: aberrações cromossômicas e mammals. San Diego: Academic Press, 1990.
distúrbios hormonais de origem genética ou não.
ROBERTS, S.J. Veterinary obstetrics and genital diseases.
Foi demonstrado que, no homem e em algumas 3ed. Ithaca: S.J. Roberts, 1971.
espécies de animais domésticos, intersexos com
SALDANHA, P.H. (ed.) Aspectos modernos da genética
cariótipoXX apresentam a seqüênciado gene SRY, médica. São Paulo: EDART, 1968. 11Op.
ou seja, expressam o TDF. Por outro lado, alguns
SANTOS, S.RQ. USOda tecnologia molecular na identifi-
intersexos com cariótipo XY são negativos para o cação de homologias gênicas e na clínica da diferencia-
SRY, ou seja, não possuem a seqüência do gene e ção sexual. Belo Horizonte: Escola de Veterinária da
conseqüentemente não expressam o TDF. UFMG, 1995. 75p. Dissertação (Mestrado).
SULTAN, C., LOBACCARO, J.M., MEDLEJ, R, POULAT,
F., BERTA, P. SRY and male sex determination. Horm.
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DlNIZ, E.G. Desenvolvimento morfológico dos ovários em Marketing, 1993.
embriões e fetos bovinos da raça Nelore. Jaboticabal: Fa- VEITIA, RA., NUNES, M., McELREAVEY, K., FELLOUS,
culdade de Ciências Agrárias do Campus de Jaboticabal M. Genetic basis ofhuman sex determination: an overview.
- UNESP, 2001, 75p. Tese (Doutorado). Theriogenology, vA7, n.l, p.83-91, 1997.
Capítulo 2
Intersexos

o conhecimento das anomaliasdo desenvolvimento Pseudo-hermafrodita, macho ou fêmea, é uma clas-


do sistema reprodutivo não é de interesse apenas sificação baseada na morfologia da gônada. Assim,
científico, mas também possui grande importância se esta se assemelha a um testículo, o indivíduo é
prática, em virtude dos prejuízos que tais anomali- um pseudo-hermafrodita macho, e, caso a gônada
as podem causar nos rebanhos. presente seja ovário, o indivíduo é um pseudo-her-
O indivíduo hermafrodita, ou com características mafrodita fêmea.
de intersexualidade, é aquele que possui órgãos Com base na patogenia, os intersexos podem ain-
genitais masculinos e femininos. Entre os animais da ser divididos em: intersexos de origem cromos-
domésticos, a intersexualidade é mais freqüente em sômica, quando as alterações na diferenciação se-
suínos e caprinos, menos comum em eqüinos e cães, xual estão relacionadas com aberrações cromossô-
ocasional em ovinos e bovinos, e extremamenterara micas numéricas; intersexos gonadais, que não es-
em felinos. tão relacionados a aberrações cromossômicas; e
intersexos fenotípicos, decorrentes de anomalias no
HERMAFRODITISMO desenvolvimento da genitália. Essa classificaçãofoi
proposta para o homem e para os suínos.
Hermafrodita é aquele indivíduo dotado de dois A etiologia entre suínos e caprinos é hereditária,
sexos distintos anatômica e funcionalmente. Essa condicionada a um gene autossômico recessivo,
particularidade é normal em certos grupos zooló- sendo desconhecida em outras espécies.
gicos, mas não entre os animais domésticos, cuja A maioria dos intersexos na espécie caprina são
gônada pouco diferenciada raramente será fisiolo- pseudo-hermafroditas machos com cariótipo femi-
gicamente ativa. nino (XX). Essa condição está relacionada com a
Existem diversas classificações baseadas na ana- característica mocha, pois foi observado que, em
tomia do intersexo.Hermafroditaverdadeiroé aque- cruzamentos entre cabras e bodes mochos, 7,1% da
le que apresenta gônadas e vias genitais internas de progênie eram hermafroditas, ao passo que não
ambos os sexos (Figs. 2.1, 2.3 e 2.4). Uma gônada houve casos de hermafroditismo nos cruzamentos
pode ser testículo e a outra ovário, ou ambas apre- entre animais com chifres.
sentarem tecidos ovárico e testicular, o que carac- A incidência de hermafroditismo em suínos va-
teriza um ovotestis (Fig. 2.2). Essa condição é mais ria de 0,2 a 0,6% em vários países, podendo ser mais
comum em suínos e caprinos, sendo de ocorrência elevada em determinadas regiões. A incidência de
rara em outras espécies. As vias genitais externas intersexos na leitegada de varrões portadores do
são quase sempre femininas, com vulva rudimen- gene pode chegar a 5%. Os hermafroditas verdadei-
tar e clitóris hipertrofiado, semelhante a um pênis. ros são muito mais comuns nos suínos do que em
8 / Patologia daReprodução
dos Animais Domésticos

Fig. 2.4 Hermafrodita verdadeiro suíno. Mesmo caso ilustra-


Fig. 2.1 Hermafrodita verdadeiro suíno. A gônada direita é do na Fig. 2.3, endométrio à direita e dueto epididimário à
um testículo e a esquerda é um ovário. esquerda. H. E. 5x.

qualquer outra espécie doméstica. O comportamen-


to sexual do intersexo suíno é variável; pode esse
indivíduo apresentar comportamento de cio ou
mesmo masculinização e comportamento seme-
lhante ao de varrão. Com freqüência, nesses casos,
é possível observar o útero distendido e repleto de
secreção de odor desagradável, podendo ocorrer
piometrite.
O intersexo suíno tem, via de regra, cariótipo XX,
e as alterações na organogênese das gônadas são
decorrentes da presença de um gene no cromosso-
ma X paterno (possivelmente o gene SRY), origi-
Fig. 2.2 Hermafrodita verdadeiro caprino. Gônada constituí- nário de translocação ou de mutação. Esse gene é
da por tecido ovariano com presença de um corpo lúteo (CL) responsável pela masculinização da gônada embri-
e por túbulos seminíferos (seta). H. E. lOx. onária. Durante o desenvolvimento embrionário, o
cromossoma X de origem paterna é inativado. Tal
inativação pode ocorrer em diferentes fases da vida
embrionária e, baseando-se na hipótese de que há
assincronia no desenvolvimento das duas gônadas
nessa espécie, é possível explicar o fato de que,
normalmente, a gônada direita é um testículo ou
ovotestis e a esquerda, um ovário ou ovotestis. Caso
a inativação do cromossoma X de origem paterna
se dê precocemente durante o desenvolvimento
embrionário, quando a gônada direitajá iniciou, mas
não completou o seu desenvolvimento, essa gôna-
da será um ovotestis, porque sofrerá ação parcial do
cromossoma X de origem paterna. Se a inativação
Fig. 2.3 Hermafrodita verdadeiro suíno. Secção transversal das
ocorrer em um período intermediário, a gônada di-
vias genitais internas mostrando uma estrutura semelhante ao reita será testículo, porque foi submetida à influên-
epidídimo localizada ao lado do como uterino. cia do cromossoma X paterno durante todo o seu
Intersexos / 9

desenvolvimento,mas, nesse caso, a gônada esquer-


da será um ovário porque já terá iniciado seu desen-
volvimento após a ocorrência da inativação. Caso
a inativação do cromossoma X paterno ocorra tar-
diamente, a gônada direita será um testículo e a
esquerda, um ovotestis, porque essa última terá so-
frido parcialmente a influência do cromossoma X
paterno. Dessa forma, geralmente a gônada direita
do hermafrodita verdadeiro suíno é um testículo ou
ovotestis e a esquerda, um ovário ou ovotestis.
Sob o ponto de vista prático, a intersexualidade
na espécie suína afeta o rendimento do sistema de
produção, não só por comprometer a fertilidade
desses indivíduos, como também por vários fatores,
como o comportamento agressivo desses animais
nos grupos de animaisem fase de terminação,o odor
característico de varrão na carcaça dos animais que
possuem ovotestis e o potencial de propagação do Fig. 2.5 Intersexo bovino. Hipertrofia acentuada do c1itóris,
que se assemelha à glande; este animal apresentava compor-
gene indesejável através de cobrição natural ou, tamento masculino.
principalmente, por inseminação artificial.
O hermafroditismo ocorre com menos freqüên-
cia em eqüinos, em comparação com caprinos e
Características anátorno-patológicas
suínos. Nessa espécie, geralmente existe o pseudo-
hermafrodita macho, com pênis mais curto direcio- Hermafrodita verdadeiro: gônadas masculina e
nado caudalmente entre as pernas, e a gônada (tes- feminina, vias genitais internas masculina e femi-
tículo) permanece na cavidade abdominal, sendo nina, e vias genitais externas femininas.
muito comum ocorrer hiperplasia, ou mesmo neo- Pseudo-hermafrodita macho: gônada masculina,
plasia, das células intersticiais de Leydig. vias genitais internas femininas e vias genitais ex-
Em cães, o hermafroditismo é raro; e quando temas masculinas rudimentares.
ocorre, geralmentetrata-se de um pseudo-hermafro- Pseudo-hermafrodita fêmea: gônada femini-
dita macho, que enquantojovem fora aparentemente na, vias genitais internas masculinas rudimen-
fêmea, mas, após atingir a maturidade sexual, tor- tares e vias genitais externas femininas rudimen-
nou-se fenotipicamente macho. Apesar disso, o tares.
pseudo-hermafrodita macho exerce atração sexual A patogênese do hermafroditismo pode ser facil-
sobre outros machos. Ao exame externo, sua geni- mente explicada pela translocação de seqüências do
tália se assemelha à de uma cadela, com a vulva cromossoma Y para o cromossoma X, particular-
maior do que o normal, apresentando grandes tu- mente do gene SRY. Contudo, há relatos de casos
fos de pêlos e o c1itórishipertrofiado, semelhante a de hermafroditismo, seja verdadeiro ou pseudo-her-
um pênis. mafrodita macho, em indivíduos de cariótipo XX,
Intersexos em bovinos, excetuando-se os casos que não possuem seqüências específicas do gene
de freemartinismo, são comparativamente raros. SRY. Essa condição é conhecida como sexo rever-
Poucos casos de pseudo-hermafroditas machos têm so. A hipótese do [oeus Z foi proposta para expli-
sido descritos (Fig 2.5). O hermafrodita verdadeiro car esses casos em que há fenótipo masculino em
é raro e o pseudo-hermafrodita fêmea, extremamen- indivíduos SRY-negativo. Segundo essa hipótese,
te raro. o produto do gene SRY agiria como repressor de
Na literatura, há um relato de um coelho herma- outro gene autossômico ou localizado no cromos-
frodita verdadeiro que, mantido em isolamento, soma X, denominado [oeus Z. O produto do [oeus
tomou-se gestante, caracterizando um caso de Z atuaria como repressor de genes responsáveispela
autofertilização. manifestação do fenótipo masculino. Caso essa hi-
10/ Patologia da Reprodução dos Animais Domésticos

pótese seja verdadeira, indivíduos XX, com muta- sofre alterações da organogênese do sistema geni-
ção ocasionando perda de função do [oeus Z, apre- tal.
sentariam fenótipo masculino mesmo na ausência Em bovinos, 92% das fêmeas gêmeas de machos
do gene SRY. sãofreemartins. A freqüência de gestação gemelar
em bovinos é de 1 a 2%. Poucos casos de freemar-
FREEMARTINISMO tinismo têm sido descritos em ovinos, caprinos e
suínos. Recentemente, tem sido possível a identifi-
Freemartins são quimeras XXlXY que se desen- cação de seqüências específicas do cromossoma Y
volvem como conseqüência da fusão da circulação em fêmeas nascidas de gestação gemelar com ou-
corioalantóidea em gestações gemelares em que tro feto macho pela técnica de PCR, que é mais sen-
haja pelo menos um feto do sexo masculino e outro sível do que o método da cariotipagem.
do sexo feminino (Figs. 2.6 e 2.7), quando a fêmea Ofreemartin aparece quando há anastomose dos
vasos corioalantóideos e intercâmbio de células e
hormônios entre os fetos, antes que a diferenciação
gonadal do feto do sexo feminino tenha-se comple-
tado.
Na espécie bovina, a anastomose dos vasos co-
riônicos se completa por volta de 39 dias de ges-
tação. A partir de 59 a 60 dias de gestação, come-
ça a ocorrer o quimerismo. O testículo completa
seu desenvolvimento por volta de 60 dias e o ová-
rio em aproximadamente 90 dias após a concep-
ção. Assim, quando do início do quimerismo, o
testículo já se encontra diferenciado, mas a dife-
renciação ovariana;Ünda não ocorreu. A assincro-
nia desses eventos deve ser a responsável pela
baixa ocorrência de freemartinismo nos pequenos
Fig. 2.6 Gestação gemelar em bovinos. À esquerda, feto do ruminantes e em outras espécies, nos quais a fu-
sexo feminino; à direita, feto masculino. são dos vasos do alantocórion é tardia em relação
à diferenciação gonadal.
A masculinização da gônada feminina possivel-
mente ocorre devido à expressão do TDF, originá-
rio das células do feto macho. Os andrógenos, apa-
rentemente, são responsáveis pelo desenvolvimen-
'"
to dos órgãos sexuais masculinos, e o HAM é o res-
ponsável pela supressão do desenvolvimento dos
duetos paramesonéfricos. Dessa forma, o desenvol-
.1
vimento das vias genitais internas femininas é in-
completo, podendo ocorrer o desenvolvimento par-
cial de vias genitais internas masculinas.
Para que ocorra freemartinismo, há necessidade
de quatro fatores básicos:

(1) liberação de dois oócitos, sendo um deles


fecundado por um espermatozóide X e o ou-
tro fecundado por um espermatozóide Y;
(2) implantação de heterossexos no útero;
Fig. 2.7 Gestação gemelar em bovinos. Anastomose dos va- (3) anastomose de vasos coriônicos;
sos do alantocórion (seta). Gentileza do Prof. F. Megale. (4) modificação na organogênese feminina.
lnlersexos! 11

Características do
morfológicas
freemartin
A gônada é semelhante a um testículo, tem folí-
culos em crescimento, folículos anovulatórios,
medular bastante desenvolvida, com estruturas se-
melhantes aos túbulos seminíferos, com células de
Sertoli, células intersticiais semelhantes a fibroblas-
tos ou semelhantes a células intersticiais de Leydig
ou células luteínicas, que aparecem formando ni-
nhos que se assemelham macroscopicamente a um
corpo lúteo.
A tuba uterina está ausente ou então é semelhan-
te ao epidídimo.
O útero não se desenvolve completamente e per-
manece sob a forma de cordões fibrosos. O cérvix
normalmente está ausente (Fig. 2.8).
A vagina é pouco desenvolvida, o que pode ser
útil no reconhecimento de uma fêmea freemartin,
uma vez que o comprimenro da vagina está, na
maioria dos casos, bastantereduzido, corresponden-
do a aproximadamente um terço do comprimento Fig. 2.9 Bovinofreemartin. Hipertrofia de c1itóris.Gentileza
de uma vagina normal. do Prof. F. Megale.
A vulva é pouco desenvolvida, com tufos de pê-
los em sua comissura ventral. O animal apresenta o
clitóris bem desenvolvido e proeminente (Fig. 2.9). O macho bovino quimera, originário de gestação
Outra característica muito freqüente nos animais gemelar com outro feto do sexo feminino, não apre-
freemartin é a presença de glândulas vesiculares senta alterações significativas na organogênese de
(Fig. 2.8). seu sistema genital. Contudo esses animais tendem

Fig. 2.8 Bovinofreemartin. As vias genitais internas apresentam-se sob a forma de cordões fibrosos, vagina pouco desenvol-
vida e presença de glândulas vesiculares. Gentileza do Prof. F. Megale.
12 / Patologia da Reprodução dos Animais Domésticos

a apresentar crescimento testicular retardado até o hennaphroditism and autofertilisationin a domestic rabbit.
primeiro ano de idade e, quanto maior a taxa de VetoRec., v.126, n.24, p.598-599, 1990.
células com cariótipo XX presente nesse indivíduo, FUJISHIRO, A., KAMAKURA, K., MIYAKE, Y-I.,
maior tendência ele apresenta à degeneração testi- KANEDA, Y. A fast, convenient diagnosis of the bovine
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Theriogenology, v.43, n.5, p.883-89I, 1995.
HUBLER, M., HAUSER, B., MEYERS-WALLEN, V.N.,
SÍNDROME DA FEMINIZAÇÃO ARNOLD, S. SRY-negative XX true hennaphrodite in a
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A síndromede feminizaçãotesticular(SFf), tam- HUNTER, RH.F., CHALMERS, c., CAVAZOS, F. Inter-
bém chamada de síndrome de insensibilidade aos
sexuaIity in domestic pigs: a guide to mechanisms of
andrógenos, foi descrita em homem, camundongo, gonadal differentiation? Anim. Breed. Abstr., v.56, n.lO,
rato, gato, bovinos e eqüinos. Trata-se de uma con- p.785-79I, 1988.
dição de origem genética e, no camundongo, foi HUNTER, RH.F., GREVE, T. Intersexuality in pigs: clini-
demonstrado que o gene para a feminização testi- cal, physiological and practical considerations. Acta Veto
cular está presente no cromossoma X. Os indivídu- Scand., v.37, n.I, p.I-I2, 1996.
os afetados são XY quanto ao genótipo e têm pro- LYON, M.F.,' HAWKES, S.G. X-linked gene for testicular
dução de testosterona pelos testículos, mas não há feminization in the mouse. Nature, v.227, p.I2I7-12I9,
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desenvolvimento dos duetos de Wolff, e por isso
não há formação das vias genitais masculinas inter- McENTEE, K. Reproductive pathology of domestic mam-
nas. Também não ocorre o desenvolvimento dos mais. San Diego: Academic Press, 1990.
duetos de MüIler, porque o HAM é produzido pelo ROBERTS, S.J. Veterinary obstetrics and genital diseases.
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embora haja a produção de testosterona e de diidro- I83p. Tese (Doutorado).
testosterona, as células dos duetos mesonéfricos e VAUGHAN, L., SCHOFIELD, W., ENNIS, S. SRY-negative
do seio urogenital são desprovidas de receptores XX sex reversal in a pony: a case reportoTheriogenology,
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