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BALDIOS
os invisíveis desapossados da cidade

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Comitê Científico - Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)

Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)

Membros
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Cristian Farias Martins (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Heloisa Helena Corrêa (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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BALDIOS
os invisíveis desapossados da cidade

Noélio Martins
Renan Albuquerque

Embu das Artes - SP


2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL

Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz - Université de Versailles
Antônio Cattani - UFRGS
Alfredo Bosi - USP
Arminda Mourão Botelho - Ufam
Spartacus Astolfi - Ufam
Boaventura Sousa Santos - Universidade de Coimbra
Bernard Emery - Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira - UFC
Conceição Almeira - UFRN
Edgard de Assis Carvalho - PUC/SP
Gabriel Conh - USP
Gerusa Ferreira - PUC/SP
José Vicente Tavares - UFRGS
José Paulo Netto - UFRJ
Paulo Emílio - FGV/RJ
Élide Rugai Bastos - Unicamp
Renan Freitas Pinto - Ufam
Renato Ortiz - Unicamp
Rosa Ester Rossini - USP
Renato Tribuzy - Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitor
Jacob Moysés Cohen

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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Instituições Parceiras e Cooperações entre
Programas de Pós-Graduação

AGRADECIMENTOS
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam)
Universidade Federal do Amazonas (Ufam)
Universidade de São Paulo (USP)

APOIO
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam)
Laboratório de Editoração Digital do Amazonas (Leda)

COOPERAÇÃO INTERINSTITUCIONAL
Programa de Pós-Graduação em Sociedade e
Cultura na Amazônia (PPGSCA/Ufam)
Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos
e outras Legitimidades (PPGHDL/USP)

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© by Alexa Cultural

Direção
Yuri Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Renan Albuquerque
Revisão Técnica
Renan Albuquerque, Noélio Martins e Michel Justamand
Revisão de Língua
Fabrício Vasconcelos
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586l - MARTINS, Noélio


A319r - ALBUQUERQUE, Renan

Baldios, os invisíveis desapossados da cidade. Noélio Martins e


Renan Albuquerque. Alexa Cultural: Embu das Artes/SP, EDUA:
Manaus, AM, 2021

14x21cm - 128 páginas

ISBN - 978-65-89677-00-0

1. Exclusão - 2. Pessoas em Situação de Rua (PSR) - 3. Baldios -


4. Sociedade - 5. Amazonas - I. Índice - II Bibliografia


CDD - 300

Índices para catálogo sistemático:


Pessoas em Situação de Rua
Exclusão
Amazonas

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610


É vetada a divulgação ou utilização integral ou parcial do presente texto sem a
devida autorização por escrito do autor e/ou da Editora.

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas


Rua Henrique Franchini, 256 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, n.
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PREFÁCIO
Um não-lugar chamado rua e os seus
elementos de ressignificações
Ricardo Alexino Ferreira1

Andarilho, mendigo, sem-teto e, mais recentemente, pes-


soas em situação de rua (PSR) têm sido termos que vão adquirindo
diferentes roupagens e identidades no decorrer das narrativas. Mas
todas essas narrativas, sejam mitológicas, ficcionais ou não-ficcio-
nais, trazem indivíduos que vivem a síndrome, aqui chamada, da
“tartaruga”. Tudo que levam estão em mochilas ou sacos, se deslo-
cando de um lado para outro: dormem em ruas, se alimentam da-
quilo que ofertam e são anônimos e invisibilizados. Vivem no fio da
navalha, entre o encontro e a perda de si mesmos.
Uma das primeiras e mais conhecidas narrativas neste
sentido se refere a Sidarta Gautama, que era príncipe, no principado
de Kapilavastu, ao sul do hoje Nepal. Em um determinado momen-
to de sua vida abandona tudo para adquirir aquilo que ele vai cha-
mar de iluminação. A partir disso, nasceu o Budismo.
Sidarta, que significa aquele que atinge os seus objetivos,
realmente existiu, mas são imprecisas as referências à sua vida e às
datas do seu nascimento e morte. Alguns pesquisadores apostam
em 583 a.C a 483 a.C. Outros acreditam que a sua morte foi em 400
a.C. A sua biografia mais considerada é Buddhacarita, um poema
épico, escrito pelo poeta Aśvaghosa, no ano 2 a.C.
Mas isso não é o mais relevante e sim como a vida de Si-
darta, depois chamado de Buda, se tornou uma narrativa mitológica
marcada para o arquétipo do desapego.
Outra narrativa da mitologia africana Yoruba é de Oba-
luaiê, filho de Nanã e Oxalá. Como nasce cheio de feridas, é aban-
donado, à beira-mar, pela sua mãe, sendo, então, resgatado por Ie-
1 Professor Associado (Livre-Docente), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e outras Legi-
timidades (PPGHDL-USP).

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manjá. Obaluaiê resiste e usa palhas para esconder as suas feridas e
sobrevive de esmolas. A narrativa mitológica diz que, certo dia, ao
passar por uma aldeia e pedir comida, foi rechaçado pelos morado-
res. Desse dia em diante, a terra do vilarejo secou, as mulheres não
mais engravidaram e os seus moradores entenderam que era algu-
ma maldição de Obaluaiê. Então, foram procurá-lo na floresta e lhe
deram comida, bebida e abrigo. Em pouco tempo a aldeia se refez e
voltou à normalidade.
Temos aqui duas situações emblemáticas. Sidarta torna-se
mendigo para atingir a elevação. Obaluaiê chama a atenção para a
falta de empatia da sociedade para com os “desvalidos”. O despo-
jamento do interior para a compreensão do exterior são as tônicas
dessas narrativas. Mudanças nos indivíduos podem gerar mudanças
sociais. Aqui a ideia do ter é considerada um entrave para que indi-
víduo e sociedade evoluam, sendo a única saída o desapego.
Uma outra narrativa interessante é de Giovanni di Pietro
di Bernardone, mais conhecido como Francisco de Assis, nascido
em Assis, na Itália, em 1181, filho de um rico comerciante burguês.
A sua vida é contada por Tomás de Celano. É uma narrativa que
lembra o despojamento da riqueza. No caso, Giovanni (ou Fran-
cisco) abandona a casa do pai totalmente nu e sai pelo mundo à
procura também de elevação espiritual.
Na mitologia grega, tem-se a narrativa de que Zeus e seu
filho Hermes resolveram testar a hospitalidade dos humanos e se
disfarçaram de andarilhos. Foram expulsos de todos os lugares em
que pediam comida e abrigo. Em uma cidade chamada Frígia, na
Ásia Menor, bateram na humilde casa de Baucis e seu esposo Fi-
lemon e foram acolhidos. Como recompensa o casal foi protegido
pelos deuses.
O filme Ironweed (1987), de Hector Babenco, com Meryl
Streep e Jack Nicholson, conta a história dos personagens Francis
Phelan e Helen Archer, que perambulam pelas ruas de Nova York.
Francis vive o trauma e remorso pela morte do filho. Helen, que fora
cantora e pianista, vive em depressão. Os dois dependentes de ál-
cool. Talvez, Ironweed é um dos filmes que melhor aborda a essência
da vida de pessoas em situação de rua.

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Em 1995, a repórter Rebeca Kritsch e o repórter fotográfi-
co Vidal Cavalcante, do jornal O Estado de S. Paulo, passaram cinco
dias nas ruas vivendo como pessoas em situação de rua em todos
os sentidos (pedindo esmolas, reciclando latas, embriagando-se).
A experiência resultou na reportagem Viver nas ruas de São Paulo,
publicada em 3 de setembro de 1995, no caderno Cidades, no jornal
O Estado de S. Paulo. A grande reportagem recebeu o Prêmio Esso
de Jornalismo 1995.
O assunto é contemporâneo. Em dezembro de 2020, o
padre Júlio Renato Lancelotti, da paróquia São Miguel Arcanjo, no
bairro Mooca, em São Paulo, recebeu o Prêmio USP de Direitos
Humanos pelo seu trabalho com as pessoas em situação de rua na
capital paulista.
Assim, como se pode observar, as narrativas que envol-
vem pessoas que não vivem em casa/morada são uma constante nas
mitologias, na ficção, na não-ficção, nas áreas de economia, de polí-
tica, de comportamento, jornalismo e tantas outras.
Adentrar o universo das pessoas em situação de rua traz
a transversalidade da desigualdade social; da sociopatia que leva as
pessoas a invisibilizarem seres humanos que todos os dias, princi-
palmente em períodos de recessão, estão nas ruas das grandes cida-
des, maltrapilhos, sujos, famintos, doentes física e emocionalmente.
Por outro lado, a mendicância e o “morar” nas ruas remete
a narrativas mitológicas e ficcionais ao mundo de Hades do incons-
ciente coletivo. O arquétipo da peregrinação é muito rico e elabora
muitos elementos simbólicos.
Este livro traz diferentes olhares sobre o fenômeno de pes-
soas em situação de rua em busca de humanizações possíveis e daí
a sua riqueza.

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SUMÁRIO
PREFÁCIO
Um não-lugar chamado rua e os seus elementos
de ressignificações 9
Ricardo Alexino Ferreira

APRESENTAÇÃO
Uma aproximação de viés sócio-antropológico 15
Noélio Martins Costa e Renan Albuquerque

CAPÍTULO I
Para estudar a rua e suas gentes 21
1.1 Delineando contextos e procedimentos 21
1.2 Descrições de método e sistemática de coleta de dados 28

CAPÍTULO II
Os dias e as noites sem um lar 41
2.1 Os primeiros questionamentos 41

CAPÍTULO III
O estranho igual a mim que fala 59
3.1 Narrativas da rua: alguns resultados 59
3.2 Heterotopias, espaços públicos e cidades 73

CAPÍTULO IV
Os marginais e invisíveis que nos vigiam 87
4.1 O trabalho e os espaços de fuga das PSR 87
4.2 A informalidade é o próprio desenquadramento 93

POSFÁCIO
Experiências e relatos de vida nas ruas 113
Francisco Alcicley Andrade

REFERÊNCIAS 115

SOBRE OS AUTORES 125

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APRESENTAÇÃO
Uma aproximação de viés
sócio-antropológico
Noélio Martins
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas
Renan Albuquerque
Universidade Federal do Amazonas

O livro é uma leitura do agora, apresentado como a pri-


meira parte de crítica seleta textual subdividida de três volumes.
A obra é fruto do levantamento inicial de uma tese de doutorado,
defendida em agosto de 2019, pelo então estudante de pós-gradua-
ção Noélio Martins Costa, na Universidade Federal do Amazonas
(Ufam). Desde lá, foram 18 meses de trabalho duro de reavaliação
de dados e recomposição dos extensos apontamentos de campo.
Optamos por esse modelo de publicação porque a tese, em si, apre-
sentava-se muito extensa, com cerca de 350 páginas, incluindo-se
pré-textuais e alguns anexos. De forma compartimentada, então,
a partir da aprovação do trabalho na banca final de doutorado na
Ufam, decidimos dividir o calhamaço em volumes, fazer alterações
e revisões. Também ampliamos alguns trechos, retiramos outros e,
nós, por fim, assumimos a responsabilidade final pelo documento,
sendo o Prof. Dr. Noélio Martins o primeiro autor e o Prof. Dr. Re-
nan Albuquerque, coorientador da pesquisa primordial, o co-autor
do livro.
Muito importante ressaltar que do original pudemos
acrescentar e atualizar inúmeros dados em um ano e meio a mais de
trabalho, reconfigurando e construindo novas abordagens para além
da tese original, pensando e caracterizando modos diferenciados de
compreender a realidade abordada. Entre idas e vinda ao campo de
pesquisa (ruas do centro) novamente, acessamos farto material de
entrevistas gravadas em áudio, vídeo, anotações de caderno de cam-
po e fotografias. Todo esse material foi tratado no âmbito do nosso

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grupo de pesquisa, o NEPAM1. Convivemos com os baldios, ou seja,
as pessoas em situação de rua (PSR), durante a construção da tese
e também durante a recomposição do estudo em sequência, que se
concretiza neste livro. Foram muitas idas e vindas, análises reava-
liadas e interpretações refeitas, em uma atividade etnográfica muito
próxima aos indivíduos contatados, em amplos diálogos.
Pernoitamos nas ruas do centro de Manaus, sentamos em
calçadas, deitamos em camas de papelão, acompanhamos a vida
das PSR. Nas noites e madrugadas, comemos das mesmas comidas
doadas pelos voluntários das caravanas. Bebemos das mesmas be-
bidas que cooperamos para comprar e compartilhamos as angústia
e incertezas de estar na rua. Portanto, vivemos entre eles, sentimos,
mesmo de forma mínima, um pouco da dor da indigência na cons-
trução de relações sociais com pessoas que parecem viver como
errantes. São indivíduos baldios, sim, porém a intenção de usar o
termo “baldios”, aqui, nunca será de forma pejorativa. Quisemos tão
somente granjear uma aproximação antropológica em relação ao es-
tudo etnográfico mediante os modus operandi das PSR. Os baldios
do centro de Manaus assim se denominam, via de regra, por vários
motivos, posto que adotam a rua como lar e vão ficando por ali,
talvez deixados de lado pelo egoísmo de uma sociedade que desistiu
deles, como eles próprios quiçá assumiram também.
Compreendemos que os baldios, nas palavras deles mes-
mos, podem ser exatamente PSR que aceitam aquele trabalho que
o carregador ou o carreteiro rejeita. Se o trabalhador “normativo”
não está disposto, ou está cansado, ou faltou, ou está doente, então
entra em cena o baldio para substituí-lo. Dessa forma, o livro tem
como um dos objetivos a construção de reflexões a partir dos modos
de ser e de viver de grupos sociais diferentes, grupos que vivem nas
ruas do centro velho de Manaus igualmente em busca de trabalho.
Questionamos como esses conjuntos populacionais que vivem no
mesmo ambiente geográfico e podem apresentar características tão
distintas em relação à população geral. Ora, são diferenças no cam-
po dos saberes, da cultural geral, da educação formal e da informal,
1 Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos, liderado por Renan Albuquerque, cujo
vice-líder é Noélio Costa.

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bem como da identidade. De modo que perguntamos: como as ex-
periências se aproximam e se repelem incorporando ou rejeitando
diferentes perspectivas? É uma questão emblemática a que, neste
livro, almejamos lançar luz.
Buscamos perceber o outro nas suas diferenças e particu-
laridades porque sabíamos o quão longe estamos de nós mesmos,
como seres humanos falhos, limitados e materialistas. E, por isso,
a loucura do outro reflete uma sociedade adoecida e suas margi-
nalidades traduzem a forma possível de sobrevivência das PSR nas
ruas. São conceitos multidiversos inúmeras vezes usados por nós
para designar esses atores sociais que vivem nas ruas e são invisibili-
zados, marginalizados, achincalhados e despersonalizados. Concei-
tos que os próprios baldios, flâneurs e outsiders acabam aceitando
para si. São algumas categorias usadas, em suma, para tentarmos
compreender nosso público em estudo, tanto porque parecem ser
sujeitos que estão ali e não queremos enxergar enquanto socieda-
de. A suspeição do outro, de tal modo, é algo desconhecido em nós
mesmo. O outro não tem a mesma cor de pele, não fala a mesma
língua e nem evoca fantasmas semelhantes.
Leitor e leitora, não foi nosso objetivo fazer uma história
do fracasso do ser humano ou uma sociologia do fracasso. Estima-
mos uma leitura do presente, da problemática das PSR no centro
velho de Manaus como reflexo do drama humano do mundo inteiro
em quase todos os tempos. A tentativa foi penetrar em regiões silen-
ciadas e silenciosas. Regiões onde o Estado não chega e não atinge.
Onde empresas não abarcam e nem querem se importar. Falamos
aqui da exclusão de um espaço no mundo, de um universo onde o
lugar de fala dos baldios inexiste. Tratamos não apenas da carência
física material, mas sobretudo da miséria humana, da despersona-
lização, ou seja, do apagamento da pessoa como gente, de seu silen-
ciamento perante os semelhantes. Tivemos claro no estudo que a
pior violência que se pode fazer ao outro é a sua negação enquanto
sujeito, portanto não quisemos deixar cessar o diálogo, não quise-
mos deixar o problema ser ocultado.
As PSR não querem apenas comida, necessitam também
de afeto, de abraço fraterno, de um olhar compreensivo e uma con-

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versa solidária. Querem voltar a ser. Estão exaustos do não ser que
as configura como desapossadas do mundo, como invisíveis e sem
dignidade. A dor que sentem é uma dor humana, de todos nós.
Assim, convido a todos a adentrarem no mundo dos baldios, um
mundo hostil e diferente nas suas características físicas e psíquicas.
No escrito, houve a desvinculação a julgamentos rápidos, a juízos
de valor. O que se escolheu foi mergulhar nas profundezas, sair do
lugar comum, do perigo do pré-conceito. A imersão foi realizada a
partir do lugar do outro, nas camadas que não se dão a ver, porém
que fazem parte da cidade que todos vivemos. A cidade e seu mal-
-estar, com atritos, tensões, histórias, espaços e tempos.
Bauman (2001)2 sublinha em que medida estereótipos
se moldam de forma taxativa para as PSR no processo de desqua-
lificação do outro. Em Modernidade líquida, o autor aposta que a
cronopolítica moderna situa as PSR não apenas como inferiores e
primitivas, subdesenvolvidas e necessitadas de profunda reforma e
esclarecimento, mas também como atrasadas e aquém dos tempos,
vítimas de defasagem cultural, arrastadas a degraus baixos na es-
cala evolutiva. Para Bauman, a sociedade tipifica os baldios como
bandidos, imperdoavelmente lentos ou morbidamente relutantes
em relação ao padrão universal de desenvolvimento. Partindo desse
prisma, as incursões diurnas e principalmente noturnas pelas ruas
do centro velho de Manaus foram atividades que permitiram notar
o perverso sistema de exclusão combinado com tudo aquilo que a
sociedade rejeita para as fronteiras da história.
Mesmo que não possamos relativizar a existência das PSR
na capital amazonense, principalmente nos arredores dos portos,
mercados e feiras do centro velho da cidade, elas são entendidas
como uma ameaça. São configuradas como corpos destituídos de
sentidos. São também mentes baldias, mentes arruinadas, segundo
concepção rasteira e, a nosso ver, equivocada. O certo é que são pes-
soas, no âmbito do trabalho, como abarcamos na segunda metade
deste Os invisíveis desapossados do mundo, de extrema necessidade
à dinâmica econômica. Estas sobrevivem aquém e além do sistema,
pendurando-se nas franjas ou entrando nas brechas do que sobra da
2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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informalidade. De modo geral, vemos o trabalho a que nos referi-
mos tal e qual categoria e ainda como uma oportunidade de com-
preender um pouco da vivência dessas pessoas que escolheram de
alguma forma a rua como lar.
Almejamos contar uma história referente aos espaços e
às gentes fugidias, fora do prumo normativo. Assim, em resumo,
dedicamos esta obra às PSR, em primeiro lugar, e também a pesqui-
sadores/as, profissionais, professores/as, estudantes, voluntários/as
de ONGs e instituições religiosas que demandam seu tempo para
promover ações necessárias ao bem-estar e à qualidade de vida do
próximo.

Boa leitura.

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CAPÍTULO I
Para estudar a rua e suas gentes
Surgiu uma nova raça, o povo das ruas. Passam a vida no
trabalho e nas ruas. Eles têm tocas e covis para os quais
rastejar na hora de dormir e é tudo [...] Da calçada imunda
recolhiam e comiam pedaços de laranja, cascas de maçã e
restos de cachos de uva.

(Jack London, O povo do abismo: fome e miséria no coração do


império britânico)

1.1 Delineando contextos e procedimentos


Se imaginarmos a experiência de permanecer apenas 24
horas privados de tudo, o que nos daria conforto? Como ficaría-
mos? Despojados de roupas adequadas e de uma moradia, além de
higiene pessoal, sono tranquilo, alimentação apropriada, sossego,
segurança e entes queridos, o que seria de nós? Quem sabe a expe-
riência poderia despertar elementos instintivos de sobrevivência e,
então, por natureza, fazer-nos perigosos, quiçá agressivos, dado que
enfrentar a retirada de tudo aquilo que nos compõe é algo surreal.
Pensando na experiência, foi desenvolvido o estudo a seguir, acerca
do “morar na rua”, do “não ter nada além de si mesmo”, do “estar
só”. No caminho, o mergulho se deu em um universo paradoxal,
tanto porque o trabalho almejou lançar foco em pessoas invisibili-
zadas, solitárias, porém não isoladas, porque estão postas em cena
na história contemporânea como narradoras de suas vidas, donas
de si, que se apropriam de discursos estratégicos para buscar uma
transformação em agentes da própria existência.
Respeitar o lugar de fala das pessoas em situação de rua
(PSR) constitui-se como ato de reconhecimento e cidadania em
relação a suas existências, uma ação de respeito, sobretudo porque
para o discurso oficial ou não oficial as PSR não existem ou não são
dignas de uma história própria. A prostituta, o michê, o louco, o

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bêbado, o mendigo, o miserável desvalido, os órfãos, os aleijados,
os doentes mentais, os ex-detentos, os desamparados, dentre outros
sujeitos, emergem, via de regra, como chagas da sociedade formal,
como pessoas em relação às quais não se quer agir para o bem co-
mum. Todavia, entendemos que esses sujeitos nascem justamente
de contradições inerentes à sociedade, especialmente de conflitos
provocados pela desigualdade social. Estudar essa parcela da socie-
dade, portanto, fazendo parte de um passado/presente comum, foi
uma ação de expor feridas, de reconhecer e tentar minimamente
reparar erros, de admitir direitos negados, de não negligenciar em-
bates, mesmo que simbólicos.
Iniciamos nosso primeiro capítulo de estudo, neste Volu-
me 1, supondo as PSR enquanto representativas de entraves sociais
para as cidades modernas. Tratadas na maior parte das vezes com
inferioridade, vivendo alijadas, em espaços alternativos ante a so-
ciedade formal. Na atividade de pesquisa, foi destacado que as PSR,
em suas inúmeras experiências vividas, agem no sentido de inventar
o próprio mundo a partir do movimento da rua, contrapondo-se à
ordem estabelecida, embate que as faz viver no limite das forças.
Lembramos, inclusive, que esse indicado teve como exemplificação
a narrativa de um de nossos interlocutores. “[...] Quando você está
fora do sistema, entrar nele de novo é muito difícil” (Ademar, PSR,
45 anos). As lutas de Ademar, assim como as lutas das outras tan-
tas PSR, em ampla medida, parecem marcadas pelas resistências e
ainda pelas persistências em existir em um espaço alternativo ao
mundo do trabalho formal, da família e do Estado.
As PSR experimentaram a “liberdade” e pagaram um sal-
vo conduto por ela. Nessa condição, esses indivíduos fazem o que
acham certo, mesmo que para o Estado, para as leis e normativas, o
certo possa ser o errado. Trazendo esse embasamento no âmbito do
problema, o trabalho teve como proposta estudar pessoas em situa-
ção de rua do centro da cidade de Manaus e sublinhar inferências
de dados sociais e econômicos da população delimitada para ten-
tar acessar modos de vida desenvolvidos no ambiente urbano e nas
narrativas de indivíduos. Foi intenção observar o tempo e o espaço

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na rua, a situação e o comportamento das PSR, tomando a contento
tentar descobrir que gente é essa e como vive. O termo pessoas em
situação de rua (PSR) é usado pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) e pela Secretaria Nacional de As-
sistência Social (SNAS) com base na Pesquisa Nacional da Popula-
ção em Situação de Rua3. O estudo, assim, assumiu a conceituação
tendo em vista efetivar ação de pesquisa que explorasse e descreves-
se comportamentos e sentidos, almejando compreensões globais do
problema.
Organizamos o estudo em volumes trazendo essa comple-
xidade e tendo como meta explicitar com mais clareza a pesquisa
realizada. Neste primeiro tomo, foi analisada de que forma a rua se
configura como meio e fim para determinadas pessoas inventarem
outros modos de vida. A avaliação tomou as PSR como sujeitos de
pesquisa e também como agentes do estudo, na medida em que no-
tamos sua inserção nos territórios urbanos e seus aprimorados pro-
cedimentos para sobreviver no centro da cidade. Foi meta projetar
análises sobre as PSR tomando objetividades e subjetividades como
vinculadas a questões materiais e imateriais. Deve-se lembrar que o
desuso do termo “morador de rua” foi orientado para que não fos-
sem cristalizados casos entendidos em termos de situação crônica,
definitiva ou irreversível. O conceitual PSR foi utilizado no sentido
de uma semântica que sinalizasse relativização, considerando pes-
soas que adotam a rua como hábitat por escolha ou razão situacional
e não necessariamente como vítimas de uma consequência estrita.
Sobre a delimitação terminológica, também interessa sa-
lientar que estudos do governo federal para criar um conjunto de
políticas nacionais para inclusão social dessa população utilizam o
conceito “pessoas em situação de rua” e a partir dele traçam-se prin-
cípios norteadores de ações brasileiras e amazonenses. Seguimos
usando a mesma denominação, portanto. De tal modo, no trabalho
adotou-se o disposto, sabendo embora que existam outras denomi-
nações semelhantes para designar os mesmos indivíduos.
3 Pesquisa solicitada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome instituída pela
Meta Instituto de Pesquisa de Opinião em 71 cidades do Brasil, sendo auferida em abril do ano de
2008. A pesquisa revelou as características socioeconômicas, educacionais, condições de saúde, tra-
balho e acesso a serviços da pessoa em situação de rua.

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Vieira, Bezerra e Rosa (1994) chegam a identificar três ca-
racterizações: i) pessoas que ficam na rua, a configurar uma situação
circunstancial; ii) pessoas que estão na rua, a estabelecer relações
duradouras; e iii) pessoas que são da rua, a estarem há tempos em
vulnerabilidade e permanência. Na cartilha do governo federal acer-
ca do tema, intitulada SUAS e População em Situação de Rua, dis-
põe-se a Instrução Operacional Conjunta SNAS e SENARC Nº 07,
de 22 de novembro de 2010, que reúne orientações a municípios e
Distrito Federal para a inclusão das pessoas no Cadastro Único para
Programas Sociais. A extensa legislação acerca do enfocado empre-
ga, portanto, o termo “pessoas em situação de rua” para designar
essa população. Há também termos de denominação geral, como
“população em situação de rua”, igualmente definidos pelo governo
federal e que tratam de um grupo homogêneo, assemelhada quan-
to à pobreza, vínculo familiar destruído ou cortado, experiência de
desagregação social, falta de emprego e seguridade, sem moradia
convencional regular e tendo a rua como espaço de sustento.
Segundo dados oficiais, existem especificidades que per-
passam a população de rua e devem ser consideradas, como gêne-
ro, raça/cor, idade e deficiências físicas e mentais, que não tratamos
especificamente em nossa pesquisa. Todavia, é preciso distinguir
que as PSR não estão na rua por causa somente do que comumente
se crê: o rompimento de laços familiares e a adicção. Em verdade,
procuram uma tática de escape para um mundo onde não são reco-
nhecidas. E nas ruas podem ser invisíveis. Dos diferentes tipos de
pessoas que vivem nas ruas, por conseguinte, nem todas são vítimas
de alguma causa comum. São variados indivíduos com trajetórias
singulares, que dividem o mesmo espaço e repartem diferentes his-
tórias. Boa parte fica esporadicamente sem teto por necessidades
momentâneas. Algumas pessoas que trabalham nas ruas simples-
mente começam a dormir fora de casa por conta do difícil retorno à
periferia onde moram.
Muito embora existam grupos heterogêneos de PSR, com-
puseram a amostra do trabalho i) pessoas que denotavam estado
de depauperamento por alcoolismo/drogadição; ii) que estavam em

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situação de rua por problemas familiares notificados a partir de nar-
rativas coletadas; iii) que não dispunham de habitação convencional
ou regular; e iv) que, sobretudo, perambulavam a partir de rotas e
trajetos satisfatoriamente definidos, principalmente levando em con-
sideração necessidades básicas e de lazer. A metodologia foi correlata
a aplicada pelo governo federal. A publicação do documento Política
Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua4, um
texto oficial, cita como principais motivos pelos quais pessoas passam
a viver e morar na rua os seguintes: alcoolismo e/ou drogas (35,5%),
desemprego (29,8%) e desavenças com pai/mãe/irmãos (29,1%). Dos
homens e mulheres entrevistados no censo, 71,3% citaram pelo me-
nos um desses três motivos como causas que poderiam estar correla-
cionadas entre si ou ser consequência de outras.
Nossa premissa de estudo foi guiada pela ideia de que as
PSR são levadas a essa situação por gradativo processo de falta de
reconhecimento social, que em geral começa no seio familiar, mas
não necessariamente nele é determinante, e avança a partir de ques-
tões subjetivas. A falta de reconhecimento pode ter consequências
advindas de fatores econômicos, mas vai além. Na medida em que
são maximizados conflitos em relações familiares, sobretudo confli-
tos intrapessoais, do eu consigo mesmo, da não aceitação a situações
contingenciais, a situações de vida, configuram-se as causas da rua-
lização. A perda de controle da própria existência vem em seguida,
até a desestruturação do lar, podendo ainda desdobrar-se em várias
nuances, como brigas conjugais, mortes, vícios, desemprego, bem
como desilusões relacionais e com a vida em família.
Tudo isso fragmenta a autoestima, concorrendo para que
a rua passe a ser subterfúgio, como notamos. E a fuga não é apenas
física. Ela oscila no lado psíquico da mesma forma. É uma fuga das
normas que passam a ser desconhecidas enquanto diretrizes para a
vida em comum. Assim, nossa premissa supôs que retirar o reco-
nhecimento moral e especialmente como cidadão apto a trabalho,
além de lazer, amor e família, fomenta também a retirada, recipro-
4 Conferir BRASIL; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria Nacional de
Assistência Social. Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua. Governo
Federal. Brasília/DF, Maio de 2008.

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camente, do respeito a normas e condutas do eu ante a sociedade em
geral. Essa foi a temática objetiva, não nominal, a partir da qual se
fez o recorte para este trabalho.
Para nortear o estudo, foi delineada como hipótese que as
PSR necessitam construir outras formas de viver a partir do lugar
em que se encontram na cidade. Esse trabalho de construção envol-
ve a percepção de formas de comportamento, as quais serão carac-
terizadas mediante vínculos afetivos cimentados nas ruas. Formu-
lamos proposições imaginando que, a partir da experiência na rua,
as PSR desenvolvam estratégias para coexistir no habitat. Supomos
nas premissas a nortearem a base da hipótese apontada que, a partir
das múltiplas identidades criadas, pessoas errantes conseguem mi-
nimamente estabelecer relações aceitáveis de comportamento para
com seus pares e com o meio, dentro de uma lógica imposta pela sua
situação de rua.
Relações que fogem da coerência formal, ou seja, que
usam um arsenal de desvios propensos à marginalidade, ao jogo, ao
trabalho e ao trambique, parecem ser controversas em si mesmas.
Dessa forma, espraiamos hipóteses não apenas no lado da compai-
xão estereotipada pelo “coitadismo”, mas na existência concreta de
um lugar de fala das PSR a partir de um outro mundo possível, de
solidariedade desviante e respeito ao não-usual, constituído me-
diante expertises e vigarices necessárias aos lugares onde vivem. O
intuito consistiu em trazer elementos que ajudassem a compreender
impressões deixadas pela presença de agentes públicos em intera-
ção, estabelecendo contradições em razão de suas diferentes expe-
riências sociais no centro de Manaus.
Partindo da perspectiva, perguntamos até que ponto parte
da sociedade se anestesia frente às desigualdades, especialmente no
centro da cidade de Manaus, e ainda tentamos no trabalho entender
esse fenômeno sob ótica interdisciplinar, não de forma plenamen-
te ativa ou passiva. Buscamos ao equilíbrio. Foram investigados os
constantes confrontos entre grupos heterogêneos de PSR que per-
meiam o centro manauara. A amostra foi formada por PSR, assim
entendidas mediante seus modus operandi (LEROI-GOURHAN,

- 26 -
1984). A especificação se refere a habitações improvisadas e primi-
tivas da pré-história, com semelhança a cavernas, onde se abrigam
de intempéries. Acenamos para o homem caçador-coletor, que nas
ruas sai diariamente em busca de alimentos, como nossos seme-
lhantes faziam milhões de anos atrás, investindo sobre o ambiente.
Outra analogia esteve no paradigma do fogo, como outro-
ra, hoje usado para aquecer o bando e cozinhar. Notamos a perma-
nência de técnicas primitivas de organização social, que funcionam
muito bem enquanto estratégias de sobrevivências individuais e
grupais. Foram similitudes que permitiram pensar sobre o modo de
vida das PSR. Além da delimitação em quatro pontuações estritas,
entendidas, mormente, como conjuntos de tipologias de pessoas em
situação de rua, foi inserida uma quinta condição, a de pessoas com
as quais havia mais fácil acesso, fosse no cotidiano da pesquisa ou
nas habitualidades da procura por participantes.
A conveniência foi resguardada como escolha etnográ-
fica a partir de Hammersley (1992), que aponta, juntamente com
Wielewicki (2001), Peirano (1992) e Crapanzano (1986), propostas
para se observar e descrever conjuntos de “entendimentos e conhe-
cimentos compartilhados entre populações, buscando acessar com-
portamentos em meio a um contexto específico” (HORNBERGER,
1994, p. 688). Esses estudiosos sustentam a possibilidade das des-
crições de fenômenos da realidade por meio da etnografia, como
diferentes vozes que fazem parte do discurso do pesquisador e do
sujeito.
Peirano (1992) aposta no artesanato da pesquisa, no tra-
balho lento e gradual de registro de apontamentos, ou seja, nas
construções observadas e bem interpretadas pelo pesquisador por
datações de tempos pretéritos, na busca por realidades outras, além
de sua própria, de acordo com aportes teóricos definidos. Crapan-
zano aponta para subliminaridades ou abstrações da realidade, ou
seja, para aquilo que não está posto, que vive latente nas sub-es-
truturas socioculturais. Ele propõe o desvelamento das realidades a
partir de um estilo de “não-mascaramento” da etnografia — o qual
viria a ser uma sistemática adotada em trabalhos de Geertz (2008).

- 27 -
1.2 Descrições de método e sistemática de coleta de dados
Para trabalhar com grupos excluídos, marginalizados,
oprimidos e esquecidos, trabalhadores anônimos, sem teto, imi-
grantes, idosos, abandonados, criminosos, refugiados, fugitivos da
Justiça, adictos, pessoas em sofrimento ou transtornos psíquicos,
além de transexuais, profissionais do sexo, desempregados, entre
outros subgrupos, para tentar dar voz a essas pessoas, exercitamos
o trabalho com a etnografia como aporte metodológico. Foi realiza-
da imersão e consequentemente descrição densa (WIELEWICKI,
2001) para se refletir acerca de múltiplas interpretações a respeito
das relações entre a análise da narrativa pública sobre a marginali-
dade social e os modos específicos de vida desenvolvidos por esses
chamados “desajustados”. A descrição sugerida por Geertz (2008) e
usada por nós, é aquela que se propõe a fazer uma interpretação do
discurso local de segunda ordem, fugindo radicalmente de descri-
ções superficiais.
A etnografia foi entendida no seu sentido clássico: como
um trabalho que envolve a ida do pesquisador ao campo, a ação de
“estar lá” (ID., op. cit.). E muito mais do que a produção de textos
a partir da experiência, da vivência e do diálogo, procedemos a um
“tipo de esforço intelectual que representa um risco elaborado para
uma descrição densa” (GEERTZ, 2008, p. 4). A etnografia se confi-
gurou, assim sendo, como importante instrumento de investigação,
por vezes fascinante e sedutor, porque agimos com serenidade ante
interlocutores, ouvindo suas narrativas e observando com frequên-
cia seu cotidiano para ponderarmos argumentos apresentados por
eles. Nossa meta foi manter atualizado o caderno de campo com
anotações pertinentes e assim transcrever conversas em incursões
na rua. Sobre isso, Pacheco de Oliveira5 (2004, p. 15) lembra do ca-
ráter situacional e dialógico do trabalho etnográfico, constituído
primeiramente em processos de comunicação social.
As pesquisas de campo são delineadas para responder a uma
multiplicidade de questões, que caminham de questões de na-

5 Conferir Pluralizando tradições etnográficas: sobre um certo mal-estar na Antropologia. PACHECO


DE OLIVEIRA, João. In ABA - Saúde dos Povos Indígenas: Reflexões sobre antropologia participativa.
Esther Jean Langdon e Luíza Garnelo (orgs). Rio de Janeiro. Contracapa. (pgs. 9-34), 2004.

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tureza teórica até diagnósticos de problemas práticos e propo-
sição de linhas de intervenção para solucioná-lo, passando por
modalidades variadas de investigação empírica (refletida em
censos, mapas, genealogias, redes, estudo de situação, corpus
de narrativas, pesquisa histórica, biografia, registros iconográ-
ficos e sonoros, etc.) (ID., op. cit., p. 15).

Informações sistemáticas coletadas em campo ajudam a


potencializar o trabalho, confirmando, refutando hipóteses ou ain-
da construindo outras hipóteses. A multiplicidade de dados anali-
sados à luz do arcabouço teórico conduziu a reflexões aprofundadas
sobre o tema, compondo redes de significados cada vez mais claras,
a formar a tessitura estrutural da tese. A etnografia da sensibilidade
e das técnicas apuradas de campo captou movimentos nas relações
sociais inventadas e reinventadas, apontando contradições básicas
só apreendidas no interior das próprias comunidades estudadas, ou
seja, na ação, no movimento em si (CLIFFORD, 2002). Foi apro-
priada a etnografia como sistemática de investigação e adotada a
coleta de dados segundo entrevistas semiestruturadas, via conversas
informais e com aporte da observação participante, com registro em
áudio e fotos a serem analisadas posteriormente, de maneira infe-
rencial.
Valorizamos sempre a fala do indivíduo como principal
agente, como aponta Gohn (1984, p. 11), quando sublinha a troca
efetiva na apreensão do universo de representações dos participan-
tes, tentando descobrir relações, incoerências, subversões e trans-
formações sociais. Para a autora, “[...] o sujeito que conhece não
é um simples espelho registrando sensações. Ele é um agente, que
influi e é influenciado no processo de investigação”. De tal modo
que a pesquisa foi uma tentativa possível de explicar a realidade da
comunidade de rua naquele momento específico. Não pretendemos
estipular como “neutra” a análise, dadas as subjetividades intrínse-
cas alocadas, mas acreditamos e supomos haver contribuições para
o saber científico crítico. São fatos que suscitam entendimentos para
a sociedade onde vivemos, tendo em vista transformá-la.
Na discussão sobre a etnografia e o trabalho do antropó-
logo, Pacheco de Oliveira (2004, p. 27) identifica que a apreensão de

- 29 -
fenômenos sociais perpassa pelos atos de “olhar, ouvir e escrever”,
como etapas no exercício da pesquisa e da construção do conheci-
mento. Pensamos no diálogo com nossos interlocutores de uma for-
ma igualitária, mesmo que utópica. Em campo, tentamos dividir o
poder da fala e da escuta, minimizando a influência sobre o discurso
do outro. Ao longo do trabalho, fizemos descrição da atividade de
ida a campo e de estada lá com os indivíduos. Foi uma tentativa de
ser o mais eficiente possível no trabalho de tradução dos dados e das
informações, sem interferir no cotidiano das pessoas que moram
nas ruas.
Nas ruas, ao esclarecermos as intenções de pesquisa an-
tes de coletarmos dados, as PSR não se recrudesciam como objetos
inertes e nem se distanciavam. Pelo contrário, falavam sem parar,
brincavam, comiam, bebiam e agiam de forma natural como se não
estivéssemos ali. Para nós, esse encontro etnográfico produziu um
espaço de diálogo mútuo, amplo, com interação direta, sem embates
conflituosos com os sujeitos da pesquisa. Eram encontros em que
existiam papéis a serem assumidos e viabilizados mediante acei-
tações tácitas de posições de fala. O fazer etnográfico se deu pela
imersão no universo do outro, no âmbito da busca pela vivência in-
tensa do contexto social abordado, em uma sistemática de observa-
ção participante, pois estávamos in loco, estabelecendo pontes com
uma realidade incrível.
Nesse caminho, almejamos por nos colocar dentro da his-
tória como partícipes do movimento do trabalho de campo, influen-
ciando de alguma forma e sendo influenciados. Pareceu ser uma das
melhores formas de compreender e analisar o outro bem de perto.
Enfatizamos a tentativa de diálogos próximos e, nesse intuito, houve
esforço para estar no lugar das PSR, dentro de uma perspectiva de
alteridade (ZANELLA, 2005), abrindo espaço de igualdade e con-
fiança para conversas polifônicas, onde vozes podiam ser ouvidas de
forma análoga. A autora fala sobre a subjetividade relativa ao outro,
reconhecendo-o a partir desse pressuposto, estendendo a concep-
ção do “outro” como parte desconecta de nós mesmos, mas integra-
tiva no sentido do respeito a seus lugares de fala e de atividade.
O desconhecido, sendo parte de si, como vemos relatado

- 30 -
nas aventuras de Marco Polo, é aquele mesmo que busca referên-
cias para encontrar a si mesmo e consequentemente sua alteridade
(CALVINO, 1990). E assim, tentando traduzir esse significado para
o enfoque em relevo, vemos que se tratou de uma tentativa de apro-
ximar pesquisadores e pesquisados, em um espaço de diálogo sen-
sível, múltiplo, respeitosos, de análise mútua. Portanto, a pesquisa
buscou respeitar o outro não como objeto a ser descrito, visto como
“de fora”. Mas como outro que possui identidade especificada em
si mesmo, sem reforçar assim uma suposta invisibilidade sobre ele.
Pesquisamos alguém, não algo, e por esse motivo privilegiamos o
lugar de fala do sujeito e seus tempos de dizer, deixando-o a vontade
para ser ele mesmo. E, pensamos ainda: se invisibilizar constitui a
negação da identidade do outro, colocando-o em uma posição de
vitimização, isso faz desaparecer o indivíduo, anulando-o em suas
ações como tal, e contra isso nos posicionamos.
As PSR, frequentemente tratadas como objetos, foram vis-
tas mediante o prisma da força da credibilidade e da autonomia, ou
seja, foram ouvidas nas suas próprias demandas. E para além da in-
visibilidade, como problema singular, a pesquisa se espraiou acerca
da violência simbólica contra as PSR, que uma vez despojadas de
suas famílias e bens materiais são oprimidas e humilhadas diuturna-
mente. A rejeição constante e a angústia dilacerante também fazem
parte do cotidiano cruel dessas pessoas. Isso ficou bastante mani-
festo no estudo. Foi o que sentimos ao olharmos nos olhos delas, na
aproximação que fizemos. Fomos próximos o bastante para sentir,
nas conversas e expressões, sentimentos de pessoas oprimidas por
sua situação. Pensamos, inclusive, em interpretar a invisibilidade
como tática das PSR para praticar atividades ilícitas ou desvios.
A pesquisa se absteve de entrecruzar diferentes detalhes
de maneira opinativa, sobretudo como pondera Zaluar (1985), par-
tindo para uma situação mais concreta de definição, como o estar lá,
o participar da rotina, o observar o cotidiano, o interagir em comu-
nidades muitas das quais sem ter a garantia de qualquer segurança.
Foi uma atividade em que nós, pesquisadores, fomos tomados pelo
medo do desconhecido, principalmente em locais marginalizados e

- 31 -
com altos índices de periculosidade. Entretanto, o estranhamento,
o preconceito e o desconhecimento sobre a pessoa dos pesquisado-
res no campo (e neste caso em específico, além da desconfiança, a
curiosidade do outro causou em nós um choque natural) resultaram
em um trabalho cuidadoso de descrição. Apesar disso, dos esforços
para nos aproximar das pessoas, mesmo assim ainda ficamos em
campos opostos, em mundos separados (ZALUAR, 1985).
Ao dispormos de observação direta interagimos na inter-
pretação do cotidiano da pessoa em situação de rua enquanto fonte
disponível, mas altamente volátil, chegando a ser, muitas vezes, pou-
co confiável. Todavia, tal entrave não nos tirou a certeza de que fize-
mos uma etnografia ética e justa, porque confrontamos fontes, ana-
lisamos informações, cruzamos dados, fomos amigos e estranhos ao
mesmo tempo e não julgamos, mas sim inferimos. Tentamos estabe-
lecer um estudo confiável dentro desse terreno escorregadio, que é a
coleta de material em campo e a interpretação de informações, e de
tal modo trabalhamos. Sobre o disposto, Malinowski (1976) indica
que o objetivo principal da pesquisa etnográfica constitui-se em:

(...) apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamen-


to com a vida, sua visão de seu mundo. É nossa tarefa estudar o
homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que mais in-
timamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce
sobre ele. Cada cultura possui seus próprios impulsos, desejam
diferentes formas de felicidade. Em cada cultura encontramos
instituições diferentes, nas quais o homem busca seu próprio
interesse vital; costumes diferentes através dos quais ele satis-
faz às suas aspirações; diferentes códigos de lei e moralidade
que premiam suas virtudes ou punem seus defeitos. Estudar as
instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento
e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos
subjetivos pelos quais ele vive, e sem o intuito de compreen-
der o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, em minha
opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do
estudo do homem (ID., op.cit., p. 37-38).

Lévi-Strauss (1996) entende que para conseguir aceitar-se


nos outros, pretensão do etnógrafo, assim como para conhecer o ho-
mem como objetivo principal, é preciso recusar-se em si mesmo. O

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antropólogo sublinha que “o eu é um outro”. O eu é uma tentativa de
se ver no outro, de humanizá-lo e a si mesmo, comungando a ideia
de ambos fazerem parte da mesma humanidade. Mas o problema é
que a ideia de humanidade nunca é a mesma e em algum momento
sempre estará apartada e não semelhante. Assim, cabe destacar que
o trabalho não foi uma execução de métodos ou técnicas em estado
mecânico ou puramente instrumental, mas sim uma interpretação
retirada mediante o material de campo. O material, produto bru-
to resultante de nossa inserção no universo, foi elaborado a partir
de observação participante (MALINOWSKI, 1976) e tomado sob
ponto de vista crítico, conforme ações de participação objetivante
(BOURDIEU, 2002a, 2002b), que nada mais é do que o domínio dos
fins sociais na mira dos fins científicos diretamente prosseguidos.
Foi preciso apostar na interpretação da humanidade dos
indivíduos abordados e compor uma construção inferencial, algo
que, a nosso ver, configura-se como bastante fugidio hoje em dia
por ter se imbricado nas vivências cotidianas e, principalmente nas
grandes cidades, em função do ritmo alucinante que se imprime nas
metrópoles. Trata-se de uma vida entremeada por reconformações,
as quais procuramos abarcar no estudo. Como categorias de análise,
pontuamos i) marginalidade6 e ii) invisibilidade, ambas implicadas
em função de iii) trajetos vivenciados pelas PSR. Tomamos o supos-
to a partir da construção de instrumentos de pesquisa que perpas-
saram necessariamente pela observação participante, pela vivência
e imersão em campo, pelos escritos nos diários, pelas gravações com
os indivíduos, pelos registros fotográficos7, pelos diálogos (falas e
silêncios, ditos e não-ditos) efetivados e pelas interpretações reali-
zadas sobre o contexto vivido.
Como fenômeno social, o problema enfocado envolveu
pessoas, lugares, situações, modos de vida e expressões físicas e psí-
quicas. O tema em escolha, por si mesmo, foi de extrema subjetivi-
dade, daí a importância de se estudar o ponto de vista dos próprios
6 A categoria i) marginalidade foi melhor explicada no tópico 3.4, a ii) invisibilidade tratada no
tópico 3.3 e iii) trajetos vista no capítulo II.
7 A fotografia tem seus métodos e técnicas próprias, assim com intencionalidades. Optamos pelo
registro fotográfico tendo o cuidado de preservar a identidade das pessoas, principalmente evitando
colocá-las em situações vexatórias ou constrangedoras. Fotografamos as pessoas de perfil, de costas
ou por imagens distorcidas, com o objetivo de não as expor ou ridicularizar.

- 33 -
indivíduos na tentativa de incorporar registros escritos e fotográ-
ficos, além de modos de pensar e sentir de pessoas. Cabe destacar,
ainda, no que tange às fotografias registradas, que esse tipo de exe-
cução, assim como os registros em vídeo, constituem-se na visão de
Le Goff (2003, p. 39) enquanto fatos que “revolucionam a memória”.
Ele relata que, a partir dos seus respectivos adventos, fragmentos
do passado passaram a ficar registrados em vívida lembrança, im-
pedindo de certa forma o esquecimento. Em contrapartida, a foto-
grafia não deve ser pensada como verdade absoluta e muito menos
o vídeo.
Devemos levar em consideração, em suas leituras, os pon-
tos de informação fragmentária que carregam, bem como suas in-
terpretações e manipulações, dentre outros. A fotografia e o registro
em vídeo têm usos próprios e consistem em técnicas e recursos des-
critivos da realidade na medida em que se configuram como im-
portantes suportes à etnografia. O historiador Kossoy (1989), em
Fotografia e História, afirma que a imagem captada pela fotografia é
apenas um “microcenário do passado” (ID., op. cit., p. 51), apesar de
ser de alta relevância. Como algo “micro”, assim o sabemos, é parte
de um macro e, logo, não reúne todo o conhecimento do passado,
o que significa que deixa um importante universo de informações
de fora, mas indica um caminho de saberes de extrema relevância.

Uma única imagem contém em si um inventário de informa-


ções acerca de um determinado momento passado; ela sinte-
tiza no documento um fragmento do real visível, destacando-o
do contínuo da vida. O espaço urbano, os monumentos arqui-
tetônicos, o vestuário, a pose e as aparências elaboradas dos
personagens estão ali congelados na escala habitual do origi-
nal fotográfico: informações multidisciplinares nele gravadas
[...] apenas aguardam sua competente interpretação (ID., op.
cit., p. 69).

As entrevistas, bem como as observações participantes e


as anotações no caderno de campo, foram procedimentos técnicos
realizados de natureza qualitativa, tendo em vista construir inferên-
cias sobre as pessoas do centro de Manaus. A análise foi projetada

- 34 -
em razão do contexto de ações e reações desses indivíduos. Servimo-
-nos de uma multiplicidade de fontes históricas, pretendendo cor-
relacioná-las com fontes orais na tentativa de dialogar diretamente
com indivíduos integrantes do estudo. “Na experiência etnográfica,
o observador coloca-se como seu próprio instrumento de observa-
ção. Cada carreira etnográfica tem seu fundamento nas ‘confissões’,
escritas ou inconfessadas” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 43-44).
Coletamos testemunhos de pessoas que convivem nas
ruas, localizadas a partir da frequência em espaços urbanos. Obser-
vamos noite e dia o desenrolar da vida das PSR do centro velho de
Manaus. Foi intuito anotar atividades comportamentais, trabalhos,
condutas estereotipadas, falas, gestos, trejeitos, relações jocosas, hu-
mores, angústias, risos, silêncios e outras diferentes interações mú-
tuas, buscando peculiaridades. Apreciamos o cotidiano e fizemos
registros gerais e específicos. A experiência de cada encontro com
as PSR foi de uma riqueza antropológica e etnográfica incrível. Até
mesmo a instabilidade dos contatos com indivíduos da pesquisa nos
fez pensar sempre que seria o último acesso àquela pessoa. Porém,
as situações foram singulares, sempre.
Uma das incursões noturnas pelo centro da cidade come-
çou às 18h de um dia quente de outubro, dois anos e meio atrás. Foi
opção percorrer trajetos ligados em rede a partir da Praça da Sau-
dade, no centro monumental turístico da cidade, porque os trajetos
poderiam ser também escolhas livres de nós, pesquisadores, mas
sempre guiadas pelas concepções de caminhos das PSR. E assim foi
percorrida toda a imediação da praça para se ter uma visão geral.
Na ocasião, situamo-nos em um banco a uns 20 metros de um gru-
po de pessoas que estava em baixo de uma frondosa mangueira, na
parte frontal da Praça da Saudade, em frente ao Rio Negro Clube, na
avenida Epaminondas. Elas estavam dispostas em dois semicírculos,
algumas sentadas em cadeiras quebradas e outras deitadas em um
velho colchão; poucas descançando no chão. Conversavam, bebiam,
discutiam e dançavam. Afastadas, outras três pessoas dormiam. A
observação, nesse âmbito, foi no sentido da aproximação para pers-
crutar as narrativas do grupo.

- 35 -
Ao tentar a abordagem da observação participante, foi ex-
plorada uma espécie de hierarquia por tempo de permanência na rua,
entre o antigo “morador sem-teto” em oposição ao “novo morador”.
Pouco homogênea, a categoria pôde ainda se diversificar de várias
formas, tal como pela diversificação por tempo de rua, sendo os nova-
tos e os veteranos em divisões específicas. Também por área de pousio
se fez a separação, porque enquanto uns descansam em praças, largos
e mercados, outros ficam em terrenos e casas abandonadas, mais sujas
e menos confortáveis. As divisões também ocorrem por ocupação:
guardador e lavador de carro, carreteiro ou carregador, vendedor e
ambulante etc. Todas as diversificações têm grau hierárquico. A PSR
recém-chegada tem todo um tempo para aprender as “manhas” da
rua. A novata sem-teto se depara com uma rede de relações comple-
xas, como em um início de carreira profissional, quando há estranha-
mento e tempo de latência antes da ambientação.
A PSR recém-chegada precisa inicialmente encontrar um
ponto de esmola, um trabalho informal, um grupo minimamente
confiável para se enturmar, bem como uma colaboração de prote-
tores ou ainda uma cooperação de feirantes, lojistas, voluntários e
transeuntes do centro da cidade. Dessa forma, poderá conseguir
uma estada frequente e razoavelmente segura no mundo das ruas e
em meio às marginalidades que pressupõem sua condição. O suces-
so nessa carreira significa simplesmente a sobrevivência. Nesse sen-
tido, as relações entre pares são fundamentais para a introdução no
universo da rua e ainda para conhecimento e tomada dos melhores
pontos de repouso, de esmola e trabalho.
De acordo com pessoas veteranas, há de se estabelecer
estratégias e perceber momentos para atividades do cotidiano. Por
exemplo, festejos religiosos, festas populares, semana santa, época
natalina, etc., quando há mais movimento no centro da cidade e
quando há momentos propícios para manguear8, trabalhar ou fur-
tar. Os veteranos sabem o momento certo, geralmente sendo movi-
dos pelo estado de sensibilidade de caridosos. Pode haver estranha-
mentos e imposição de poder no contexto da categoria das veteranas
8 Termo nativo, usado pelas PSR, no sentido de ludibriar, tapear, enganar.

- 36 -
sobre as recém-chegadas, como forma de impor as regras da rua.
Porém, boa parte desse processo de aclimatação de indivíduos inex-
perientes na rua tende a se dar de forma violenta, com intimidações
físicas e/ou verbais. Algumas vezes, para entrar no jogo da rua, é
necessário se colocar primeiro em posição de submissão para evitar
conflitos com um universo desconhecido para quem está chegando.
Para as PSR novatas, percebemos a sublime ausência de
hábitos comuns de cooperação para facilitar as relações humanas,
e com isso conflitos são inevitáveis (ELIAS, 1993, 1994, 2000). So-
bretudo porque as PSR se apresentam como um grupo diversifica-
do. Homens, mulheres, idosos e jovens são difíceis de caracterizar
e quantificar de maneira comum, uma vez que, por estranhamento,
muitas vezes não revelam suas experiências. Por medo, vergonha ou
pela própria dor que sentem ao falar de si, as PSR deixam de narrar
suas experiências. São grupos que, apesar de diferentes, parecem ser
igualados pela indigência, miserabilidade ou pauperização em que
se encontram, momentaneamente ou continuamente. No encami-
nhamento do trabalho, assim sendo, pareceu interessante ponderar
acerca do tempo que indivíduos estão em situação de rua. Até mes-
mo porque quem possui mais tempo de rua é exatamente aquele que
conseguiu continuar a viver, apesar das agruras próprias da existên-
cia nesses termos. Essa proposta foi fundamental para pensarmos o
cotidiano dessas pessoas, dessas sobreviventes. No caso do tempo
de vivência ele denotou, em boa monta, a resiliência perante as di-
ficuldades.
O motivo de se ter delimitado dessa forma foi porque aju-
dou na interpretação de modos de vida das pessoas dispostas como
potenciais integrantes da amostra no cenário da pesquisa. Ou seja,
para termos uma etnografia segura ao estudo, que indicasse con-
fiabilidade e replicabilidade aos dados, a projeção se justificou por
uma prévia abordagem feita com as PSR, pois elegemos parâmetros
que destacam o tempo como item promotor da integração gradativa
e profunda com o meio. Ao se manterem nas ruas, desenvolvem vín-
culo, valores e estratégias. A rua, então, passa a ser a referência da
vida, o lugar no mundo, chegando-se a moldar a identidade a partir

- 37 -
dela. Inclusive, passam a ser pejorativamente chamados de homens
de rua e mulheres de rua por isso. E como há um universo grande
de pessoas vivendo ao relento no centro velho, procuramos delimi-
tar dessa forma para tentar conseguir indivíduos aptos a dialogar e
responder a questionamentos.
Optamos em não trabalhar diálogos de pessoas com trans-
tornos mentais ou pessoas em estado de abuso de drogas ou álcool
no momento da entrevista. E dentro dessa aproximação inicial com
as PSR, aconteceu uma situação inusitada. Certa vez, uma moça saiu
do grupo onde estava e veio em nossa direção. De forma bastante
educada, pediu que nos retirássemos do banco da praça e saíssemos
dali, pois queria um lugar tranquilo e solitário para orar. Fizemos,
então, um acordo. Depois da oração, ela iria conceder entrevista. Ela
consentiu e assim ficou acertado. Depois do tempo determinado à
oração e nossas explicações iniciais sobre o trabalho de pesquisa,
pedimos autorização para gravar a conversa. Cristiane, 38 anos, vive
desde os 14 nas ruas do centro velho. A mulher começou a falar so-
bre estar por muitos anos nessa condição de sem-teto.

Muitos aí, mano, vieram pra cá porque viraram alcoólatras,


viraram ‘noiados’ e muitos [foram] levados pela vida. Porque
a pessoa que se mete nesse centro aqui, mano, não sai mais
não. Sabe por que não sai? Porque vai ali tem comida, vai ali
toma um banho, vai bem ali tem outra coisa e assim tem tudo!
Mesmo assim aqui não dão trabalho pra ninguém. Eu mesma
tô procurando um trabalho. Tenho todos os meus documentos,
mas ninguém dá trabalho pra antigo morador de rua (Cristia-
ne, 38 anos, PSR, entrevista de campo).

Cristiane foi uma das nossas primeiras entrevistadas, em


2017. A partir da importante narrativa dela pensamos em fazer uma
angulação de nosso enfoque, realizando assim um trabalho inferen-
cial que refletisse acerca das múltiplas interpretações a respeito das
relações intersubjetivas contidas dentro das contextualizações de
vida de pessoas em situação de rua. Sim, Cristiane, uma das primei-
ras entrevistadas, logo de início nos despertou para as possibilidades
contidas na atividade etnográfica, muito maiores do que imagináva-
mos, levando-se em propósito o cotidiano daqueles que vivenciam

- 38 -
o território9 das ruas, que em verdade são territórios de todos e de
ninguém. A proposta, desta feita, passou a ser penetrar em um sub-
mundo de certa forma desconhecido. Falamos do sentido do des-
conhecimento porque embora seja uma mesma terra compartilhada
por transeuntes, passantes, visitantes e outsiders (uma espécie de flâ-
neur pós-moderno, sem dinheiro e glamour), não se configura com
a mesma similaridade todo o tempo aos diferentes sujeitos.
No trabalho de prescrutar as PSR, houve ainda particula-
ridades relacionadas a sons, cheiros, gostos, tônicas de mundo com-
partilhado, olhares, contatos físicos, sensações psíquicas e episódios
não verbais e verbais que delimitaram nossos movimentos. Encon-
tramos pessoas que estabelecem seus trajetos no cenário urbano de
forma errante. Estabelecem suas conexões com a dinâmica da cida-
de e também constroem relações com a massa efêmera que circula
pelo centro de Manaus. Como o flâneur de Baudelaire, descobrimos
que as PSR fazem um percurso na cidade que não é inocente, apesar
de errante. O perambular cambiante se propõe a estabelecer rela-
ções sociais positivas em um amplo território (afetivo) marcado por
tensões, medos e violências físicas e simbólicas. O centro da cidade,
geralmente degradado, associa-se por definição com estados físicos
e mentais dos sem-teto para formar um cenário interessante e insti-
gante, que agrega os iguais, com seus modos semelhantes de vida, e
afasta os diferentes como desiguais.
Foram observados cenários instalados no centro da cida-
de que compuseram diferentes lugares, próximo a mercados, feiras,
comércios atacadistas/varejistas e ao porto, dos quais fazem parte
diversos personagens que se relacionam ao cotidiano da cidade. São
comerciantes, donas de casa, transeuntes, trabalhadores informais,
camelôs, catadores de materiais recicláveis, catraieiros, tripulantes
de navios, carregadores, carreteiros10, guardadores de veículos, ven-
9 Em relação à conceituação dos termos território, lugar e espaço, escolhemos, dentre muitas pos-
sibilidades, tratar território no sentido de pertencimento, apropriação e dominação (TUAN, 2012).
Ambiente que remete à coexistência, representando configuração instantânea de posições, sendo
“o espaço um lugar praticado” (CERTEAU, 1994, p. 202). Este [espaço], por sua vez, assumindo o
sentido geográfico de amplitude de dimensões infinitas, pode também ser um conjunto de formas
contendo cada qual frações da sociedade em movimento. As formas podem configurar um pequeno
recorte que possibilitam a representação de um papel efetivo na realização social (SANTOS, 1988).
10 Na área do centro de Manaus, próximo a porto, mercado e feira, a fala do senso comum esclarece
que carregador equivale ao sujeito que desembarca mercadoria dos barcos para os carros e cami-
nhões, e vice-versa. Alguns trabalham carregando malas e pertences de passageiros que desembar-
cam e embarcam, inclusive credenciados pelo porto privado com crachás. Já o carreteiro é aquele
que ajuda a levar até os carros de particulares gêneros comprados de modo geral.

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dedores de passagem, vendedores ambulantes de verduras e frutas,
vendedores ambulantes de lanche, vendedores de peixe em canoas,
taxistas, moto-taxistas, mendigos, prostitutas e pedintes, dentre ou-
tros. No contexto desse complexo sistema, personagens se juntam
no centro em busca de objetivos diversos e dentre eles se destacam o
ganho e o trabalho, pois em espaços comerciais da cidade há fartura.
Próximo a feiras e mercados, por exemplo, é corriqueiro
o aproveitamento de restos da feira com o intuito de cortar a parte
estragada das verduras que vão para o lixo e vender o restante. São
os conhecidos sacolões de verdura. Os sacolões representam o outro
lado da realidade que se observa. Há uma banda imprestável, podre,
mas há resistências segundo outros reversos, as quais se mostram na
medida em que se podam arestas, se forçam novas reconfigurações.
Há o lado da abundância e da pobreza, e comumente o da miséria.
Mas o centro é ambivalente, controverso, com dados equidistantes,
positivos e negativos, e isso certamente se reflete no âmbito das PSR.
Elas são degradadas, ou melhor, estão em estado de degradação, po-
rém podem ser tanto o lado podre da fruta quanto a parte boa, o que
depende muito das circunstâncias.
Notamos que as PSR representam ainda um dos vieses da
dinâmica econômica das ruas em Manaus, idealizadas no aprovei-
tamento do que está disponível para o comércio imediato. No caso
dos sacolões de verdura, sua montagem e comercialização são rea-
lizadas, em geral, por pessoas carentes que estão na feira a garim-
par restos e ganhar trocado vendendo produtos encontrados com
poucas avarias. Tudo isso faz parte, de alguma forma, da interação
desses múltiplos sujeitos com o mundo do trabalho formal e infor-
mal, pois são componentes importantes do cotidiano do centro de
Manaus, nos seus mercados, feiras e portos. Para as PSR, a vida na
cidade não parece se resumir apenas a desventuras, mas, sobretudo,
a aventuras, músicas, poesias, bebidas, afetos e inconsistências. Um
lugar de quebra da monotonia, visto que sempre está acontecendo
algo diferente nos recintos das PSR, algo que as remete a acompa-
nhar o ritmo do centro velho da cidade, estabelecendo sintonia com
uma dinâmica incessante, a qual requer desprendimento a padrões
lineares de rotina, visto que não há certezas de quase nada em um
dia de perambulação.

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CAPÍTULO II
Os dias e as noites sem um lar

2.1 Os primeiros questionamentos avaliados

Os rejeitados e os inúteis! Os miseráveis, os humilhados, os


esquecidos. Todos morrendo no matadouro social. Os frutos da
prostituição, homens e mulheres e crianças, de carne e osso,
fulgor e espírito. Enfim, os frutos da prostituição do trabalho.
Se isso é o melhor que a civilização pode fazer pelos humanos,
então nos dêem a selvageria nua e crua. É bem melhor ser um
povo das tocas e dos desertos, das cavernas, do que um povo da
máquina e do abismo.

(Jack London, O povo do abismo: fome e miséria no coração do


império britânico)

Hum, se tu souber que eu sou o maior


magueador... mas tu tá por fora, sou
cabeça, sou mangueador profissional.
Né, não?! Do jeito que eu tô,
magueio até o diabo.

(Jackson, 36 anos, mecânico


desempregado, PSR).

Começamos com as palavras a partir das quais Jackson (36


anos, PSR) explicou as categorias nativas “manguear” e “manguea-
dor”11. Segundo ele, significam respectivamente “o ato de pedir” e “a
pessoa que pede”. Ou seja, é uma ação própria das ruas, que guarda
no âmago uma tática da atividade de esmolar. E foi exatamente a
partir dessa tática que nosso interlocutor chegou-se, iniciou uma
conversa conosco e contou sobre suas dores nos pés e nas pernas.
“[...] Oi, meus amigos, eu tô cansado de andar e não conseguir nada
11 Usado aqui como termo nativo no sentido de ludibriar. O verbo ‘manguear’, de acordo com o
dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0, tem suas variações, por exemplo, no regio-
nalismo: Rio Grande do Sul – Transitivo direto (1): guiar (gado) pelos flancos em travessia de rios,
em direção às mangueiras ou a outro lugar; – transitivo direto (2): usar de artifícios, esp. para obter
o que se deseja; engodar, iludir.

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[...] me dá um dinheiro pra eu interar minha passagem?”. Assim
aconteceu o começo de um diálogo a partir do qual, aos poucos,
fomos adentrando e conhecendo uma importante parte do univer-
so da rua, a dinâmica do “mangueio”. Acerca desse destaque, tenta-
mos aqui fazer um sobrevoo nesse Volume 1, bem como acerca do
cotidiano em geral da vida sem lar. Antes de caminharmos nesse
sentido, entretanto, cabe destacar a seguinte pergunta: como surgiu
a ideia de falar sobre as pessoas em situação de rua (PSR) do centro
de Manaus?
Pode existir inúmeras respostar para isso, mas parece ser
forçoso admitirmos que a cena de diversas pessoas deitadas em
papelões, caixas de madeira, colchões velhos, em pedaços de pano
ou mesmo ao relento, jamais será algo agradável. E justamente essa
cena tem sido comum no centro velho da cidade de Manaus nas
últimas três décadas, pelo menos. Não há quem deixe de notar essa
ampla dimensão das ruas quando circula de madrugada nas locali-
dades velhas do centro da capital amazonense. Em nosso caso, além
de nos sentirmos instigados em saber mais e profundamente sobre
essa realidade, tivemos intenção de coletar e interpretar detalhes e
dados acerca da indicada seara de pesquisa.
As PSR forjam o habitat delineando heterotopias e trans-
formando, de forma subjetiva, territórios públicos em privados.
Além de tecerem suas vidas em relações íntimas como agentes do
trabalho e dos amores informais, estabelecem com essas atividades
parâmetros para reforçar a questão da invisibilidade. Portanto, co-
nhecer o centro velho da cidade é notar a brasa que faísca em foga-
reiros improvisados de peixe e churrasquinho de gato; é ver inúme-
ras garrafinhas de corote que pululam de mão em mão; é observar
o baralho ou dominó e todos os risos estridentes e as palavras de
certa forma incompreensíveis das PSR na madrugada ativa. E isso
nos chamou atenção porque estávamos adentrando em um mun-
do incógnito, em outra lógica de existir, que funcionava longe dos
olhos da maioria da população.
Era uma mistura de muitos sujeitos com seus diferentes
artifícios, convivendo num caldeirão de interações intrigante, no

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entanto grande parte deles parecia invisível e despossuído. Nesse
contexto, o que mais chocou foi a miséria urbana de uma das cidades
mais ricas do país em PIB/per capta12. Portanto, a ideia surgida de
estudar as PSR e seus modos de vida nasceu dessa primeira inquie-
tação. O trabalho de campo foi a parte mais estimulante da pesquisa.
“O estar lá” proporcionou uma grande realização, uma participação
empírica, que ajudou a concretizar o estudo teórico epistemológico
e seus vieses etnográficos. Em campo, com as pessoas que estávamos
a estudar, tudo parecia se tornar tangível, assertivo, com boas possi-
bilidades de interpretação daquela dada realidade.
Assim, a importância do trabalho de campo se faz por ser
parâmetro norteador da pesquisa. A partir do levantamento empí-
rico, especialmente quando se trabalha com observação participan-
te, conseguimos orientar os caminhos do estudo. Apesar de toda a
base teórica adquirida para atuar nas ruas de Manaus, incertezas
apareciam e eram muito mais fortes, com situações adversas que
se apresentavam de forma real e perigosa. Não sabíamos o que nos
aguardava, principalmente em meios hostis como são os territórios
das PSR. Rejeições, agressões, medos, violência, frustração, com-
paixão com o sujeito, revolta com a situação ou o puro e simples
estranhamento com o meio? Foram diversos os sentimentos que nos
aproximaram e afastaram do trabalho de pesquisa.
O pensamento era que geralmente alguém de fora seria
visto como provável ameaça, podendo ser tratado com agressivida-
de ou indiferença, ser roubado ou agredido. Ser morto. E por cer-
to houve ameaças legítimas, principalmente no ambiente noturno
do centro da cidade e estas tiveram de ser enfrentadas para o bom
andamento da pesquisa. Para melhor investigar o campo e seus in-
tegrantes, assim como as pessoas que vivem temporariamente ou
permanentemente nas ruas, foram escolhidos três pontos estraté-
gicos de concentração mais frequentes das PSR, a saber: i) Praça da
Saudade; ii) Rua Guilherme Moreira e iii) Praça dos Remédios. Para
melhor visualização dos participantes e dos cenários complexos, ía-
mos à noite, no horário de 18h as 00h, embora a coleta de dados
também tenha se dado durante o dia, das 14h às 18h.
12 Com R$ 67 bilhões e renda per capita de um pouco mais de quase R$ 33 mil/ano, Manaus em
2017 tem a sétima maior participação no PIB do brasileiro, segundo dados do IBGE.

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Ao longo do texto, citamos entrevistas e conversas com
participantes, acrescentando a hora, o dia, a estação do ano, o local,
o pseudônimo do(a) participante ou o nome quando autorizado,
além de idade, sexo e tempo de rua, dentre outras características
que se poderiam fazer necessárias ou que fossem relevantes ao es-
tudo. Tivemos contato com 13 interlocutores certos, formalmente,
por meio de entrevistas semiestruturadas e/ou conversas informais.
Em relação à ida a campo, desde setembro de 2016 coletamos da-
dos. Nesta data, tivemos a primeira experiência de encontrar as PSR
dispostas de madrugada na avenida Manaus Moderna e assim ini-
ciamos a observação mais atenta e as anotações em diário de campo.
Não temos como quantificar com precisão as inúmeras
vezes em que, mesmo a passeio ou como transeuntes, observamos,
conversamos e interagimos com as PSR em seus locais provisórios
de morada ou trabalho. Intuímos que a inserção no contexto so-
cial ocorreu de modo efetivo em diversas oportunidades. Para se
adentrar nesse universo ficou claro que não bastava entrevistar as
PSR com perguntas prontas. Havia que se aproximar e ganhar a con-
fiança delas para tentar entrar com mais profundidade no empírico
daquelas existências. Se houvesse suspeita ou desconfiança quanto
ao trabalho, eles simplesmente não falavam ou mentiam demasia-
damente. Assim, ao dissertarmos sobre esses sujeitos sociais nos ar-
riscamos a penetrar em um submundo desconhecido de muitos: o
centro noturno da cidade de Manaus.
Falamos “desconhecido” porque embora seja a mesma
espacialidade dos transeuntes diurnos, com ritmo frenético, sons,
cheiros e gostos, a tônica muda de sentido quando a noite cai e a
madrugada avança. Ao demonstrarmos que espaços públicos são
reapropriados, ocupados, tomados por uma profusão de significa-
dos, foi meta definir com acuidade as relações notívagas das PSR
em meio a cenários formados com pessoas, comidas, fumaça, feira
ambulante, bebidas, lixo, músicas, violência, sexo e drogas. Tudo fa-
zendo parte do desfecho de um dia cheio no centro.
Como podemos visualizar e registrar em fotografias e
vídeos, houve diversos pontos de aglomeração que se fizeram vi-

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venciar a partir de inquietações da vida cotidiana, observados com
olhar apurado sobre o outro. Aglomerados que mostram a condição
humana de existir frágil frente às adversidades, as quais são impos-
tas pela vida pós-moderna, especialmente nas grandes cidades e nas
ruas.
Partindo do princípio da investigação sobre agrupamen-
tos, ajuntamentos e reuniões informais, foram percebidos outros
universos nas ruas do centro de Manaus, outras lógicas de existir,
que fogem à formalidade proposta pela sistemática que a nossa so-
ciedade capitalista impõe. Estudamos a condição de existência dos
excluídos, os quais denominamos como invisíveis ou despossuídos,
ou ainda baldios. Em verdade, são pessoas fruto de um mundo de-
sigual. Invisíveis como cidadãos para o Estado, o que se concreti-
za quando, por vezes, sua existência legal desaparece pela falta de
documentos de identificação. Sua invisibilidade se dá também no
mercado de trabalho regular, formalista, na medida em que cada
um deles parece não ser mais útil à produção de riqueza. Mas para
as pessoas que ignoram as PSR, passando por elas sem as verem,
essa mesma invisibilidade tende a funcionar como estratégia de so-
brevivência.
Vivemos em uma sociedade excludente de baldios que
não se enquadram em padrões de desenvolvimento, progresso e
comportamento. São pessoas acerca das quais, como dizem, devem
ser extintas, banidas, apagadas, lavadas da vida social, exterminadas
do meio. Vivemos em uma sociedade, por vezes, que ignora o outro,
o despossuído, não querendo ver aquele sujeito posto no seu mesmo
espaço, mas sim geralmente em um universo de oposição. Vivemos
em uma sociedade caracterizada de acordo como ela trata as pes-
soas que mais precisam dela. As PSR, nesse contexto, mesmo tendo
de se reconstituir de perdas constantes (família, trabalho, amigos...),
às vezes não conseguem se refazer porque existem obstáculos enor-
mes. Daí ocorre a negação do mundo a que pertenciam e do mundo
de si mesmo, buscando as ruas como fuga e construção de outros
referenciais.
Dentre as propostas da pesquisa, uma delas consistiu em
analisar a invisibilidade de pessoas em situação de risco social no

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centro da cidade de Manaus e pensar conjunturas em decorrência
da exclusão. Na busca de inspiração no fazer etnográfico, foi opção
refletir acerca de múltiplas interpretações a respeito das relações
desses sujeitos baldios, contidas nesta parte territorial de cidade, le-
vando-se em conta o cotidiano daqueles que vivenciam tais territó-
rios do da urbe. Foi um desafio perceber que aquilo necessitado por
muitos vai além de serem vistos e respeitados como seres humanos.
Eles querem existir, em verdade, mediante suas escolhas.
A pesquisa tematizou histórias de vida de pessoas. Os rela-
tos se desenrolaram nos becos e ruas do centro, nas calçadas, praças,
casas, barcos abandonados, no entorno dos mercados, feiras, por-
tos, enfim, em variados matizes que ultrapassam o simples ir e vir do
passeio público. Para isso, nos debruçamos em perceber como esses
espaços públicos são vivenciados, organizados e percebidos pelas
PSR, levando em consideração seus desvios e marginalidades. No
trabalho, o desvendar de valores, as experiências e as tratativas para
o olhar direcionado a esse universo físico e simbólico foram ativida-
des para se adentrar na atividade de coleta com uma visão participa-
tiva, ou seja, experimentando a problemática dessas pessoas in loco
em um recorte próximo do real.
Quando falamos em experimentação não nos referimos
à experiência científica na complexidade de resultados e dentro de
uma lógica empírica, mas simplesmente como ciência interpretativa
com foco na etnografia. A busca por significados e não por códigos
normativos de conduta foi a meta primordial, usando, sobretudo, a
etnografia de descrição densa13. A etnografia como opção metodo-
lógica privilegiou a vivência dos pesquisadores e sua elaboração ao
ponto de interações como i) atividade de investigação, ii) de convi-
vência social, iii) de imersão nas ruas e iv) de diálogos continuados
com indivíduos no cotidiano. O estudo constituiu, pensamos, uma
forma de refletir, dialogar e avaliar a vida das PSR no centro de Ma-
naus. Objetivando verificar suas demandas como categoria social,
seus anseios existenciais urgentes e ainda pesquisar pessoas apaga-
das para a sociedade formal.

13 Conferir em GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. Parte I.

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Tentamos mostrar não apenas a penúria humana vivida,
mas estratégias e expertises de sobrevivência como benefício da in-
visibilidade na rua. Além de tentar levar ao conhecimento da so-
ciedade e do Estado a problemática atual das PSR, para que sejam
desenvolvidas políticas públicas eficientes que as contemplem, a in-
tenção perpassou por elucidar para a população de Manaus o uni-
verso das pessoas em situação de rua e seus dramas individuais, suas
histórias, seus conflitos e conjunturas de vida. Tanto porque são in-
divíduos que vivem nos umbrais do centro velho, ou seja, à sombra
da modernidade e do estatuto civilizatório vigente. Ponderamos que
boa parte das PSR não quer sair das ruas por conta de uma projeção
pessoal, orgânica, de defesa, preferindo essa condição ao controle
estatal ou familiar. Todavia, assim como entrar, sair das ruas fica
cada vez mais difícil quando se pensa em um ato de superação so-
litária para os problemas. O agir coletivo, nesse caso, tende a ser o
melhor caminho para superar estigmas associados à marginalidade.
Na medida em que trabalhamos na rua vão surgindo al-
gumas questões instigantes, as quais assim se mostram: Que cidade
é essa e quem são as pessoas que estão na invisibilidade? De onde
elas vêm? Quais suas esperanças e como o poder público as vê?
Quantos vivem exatamente na invisibilidade social e por que estão
em Manaus? São inúmeras as questões a serem investigadas e daí
o interesse em analisar a circulação das pessoas e suas histórias de
vida, sonhos, esperanças e estigmas. Percebermos a predominância
das transformações socioculturais, das adaptabilidades e resistên-
cias frente ao novo, à hostilidade e receptividade dentro da cidade.
Objetivamos compreender fatores sociais e históricos, percebendo
ainda como esses espaços públicos são vivenciados, organizados e
apreendidos pelas PSR. A pesquisa, portanto, teve traçado qualitati-
vo e a sistemática que amparou a coleta de informações esteve rela-
cionada com aportes da etnografia, privilegiando diários de campo
e interpretação inferencial de narrativas destacadas.
O trabalho consistiu em enveredar pela análise da rela-
ção entre o discurso público sobre marginalidade social e os modos
específicos de vida desenvolvidos pelos chamados “marginais”. Em

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meio aos levantamentos, notamos que se trata de uma população
ora denominada de marginal porque é agrupada como despossuída,
desclassificada, bandida, desvalida, louca, errante. Só que ao mesmo
tempo em que são negligenciadas, essas pessoas tendem a ser ca-
racterizadas como dignas de compaixão e compadecimento, posto
terem sido achincalhadas pelas famílias e pelo Estado. Uma con-
trovérsia que desde o século passado é notada por Djalma Batista
(1976). “São seres isolados, pobres e famintos, muitas vezes doentes
e frequentemente tristes. Alguns chegam a vencer a carga negativa
que os acompanha, mas a maioria naufraga dolorosamente” (p. 90).
Tomando Djalma Batista como exemplo a partir de preo-
cupações do intelectual amazônida com a temática já na segunda
metade da década de 1970, surgem mais questões a serem postas em
relevo. As PSR estão lá porque não têm onde morar ou porque que-
rem? Como essa discussão local se insere no contexto nacional, já
que em certa medida negamos a existência social e nos desrespon-
sabilizamos? São demandas, por certo, de alta importância, dado
que só enxergamos a caricatura projetada do problema na mecânica
obtusa das correlações causais. Mas talvez essa seja uma forma de
impor a visibilidade das PSR, de negar seu protagonismo, de não
afirmar sua existência. Nesse ponto, lembremos Foucault (2003a) ao
destacar a vida dos homens infames.

Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no en-
tanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse
iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da
noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, per-
manecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma
palavra, sem dúvida estaria mais ali para lembrar seu fugidio
trajeto. O poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu,
que prestou atenção ainda por um instante, em suas queixas
e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com as suas gar-
ras, foi ele que suscitou essas poucas palavras que nos restam
(FOUCAULT, 2003a, p. 207).

Há toda uma produção de discursividade (FOUCAULT,


1999) que tenta, ao definir a identidade pela via negativa, ou seja,
estigmatizante (GOFFMAN, 1988), enquadrar o outro dentro de

- 48 -
parâmetros controláveis e manipuláveis pelo Estado e por narrati-
vas da classe burguesa, rica e média. Os autores fazem interessante
viagem pela situação dos indivíduos incapazes de se confinarem em
padrões normalizadores da sociedade. O último autor analisa os
sentimentos da pessoa estigmatizada sobre si própria e sua relação
com os outros ditos “normais”. E nesse jogo de invisibilidade-visibi-
lidade do poder, exclusão econômica e inclusão marginal, estão su-
jeitos individuais e agrupamentos coletivos, que fazem uso variado
das ruas do centro de Manaus, principalmente à noite.
Esses sujeitos passam por perigos constantes, quase não
têm proteção de órgãos públicos e não dispõem da mínima cidada-
nia, entendendo o termo como obtenção de direitos básicos como
educação, saúde e moradia. São cidadãos esses sujeitos? São sujeitos
sociais esses indivíduos? Para além dessas questões, como exata-
mente destacamos momentos atrás, a pesquisa destacou histórias
de vida desenvolvidas em becos e ruas do centro manauara, nas
calçadas, praças, casas, barcos abandonados, em torno dos merca-
dos, enfim, em variados matizes que ultrapassam o simples ir e vir
do passeio público. Trabalhamos para perceber como esses espaços
públicos são vivenciados, organizados e notados pelas PSR em Ma-
naus.
Como resultado, notamos que sujeitos os quais vivem
ocupando logradouros públicos, sendo privados de quase tudo,
principalmente de suas individualidades e liberdades, trazem con-
sigo tragédias cotidianas, desagregações familiares, sofrimentos de-
correntes de racismos e preconceitos, além do peso de “não serem
ninguém”, considerados pela sociedade como lixo social. Reduzidos
a nada, na rua, essas pessoas ficam embrutecidas, coisificadas com
o tratamento a elas dispensado pelos ditos “cidadãos” da cidade e
pelo poder público. A rua também é o palco de confrontos caracte-
rizados por diferenças sociais e culturais com seus padrões éticos e
estéticos. Ou seja, nela o que prevalece é a lei da rua.
Destarte, se queremos uma cidade mais humana e digna
para vivermos, teremos que entender problemáticas e minimizar
mazelas que se apresentam cotidianamente, incorporando soluções

- 49 -
em razão dos sem-teto envolvidos. Porque entendemos que dificul-
dades enfrentadas pelas PRS são problemas de toda uma socieda-
de, dado que afetam a cidade e seus cidadãos em maior ou menor
grau. Daí, temos que o recorte do universo onde trabalhamos foi
o do mundo contemporâneo, da vida espraiada. Difícil efetivar o
contemporâneo estando inserido a ele e, se estamos cheios de vícios,
clichês e modismos, acabamos impregnando o texto. No entanto, se
nos afastarmos muito perdemos detalhes, rostos, gestos e cacoetes
que significam muito ao estudo etnográfico.
Nas palavras de Ruben Oliven, um clássico: “[...] fenôme-
nos que ocorrem em cidades brasileiras sempre serão ricos campos
de investigação social e compreensão de processos sociais (1977,
p. 50). Assim, a verificação das relações se deu a partir de olhares
interdisciplinares, tendo como principais suportes a história, a an-
tropologia e a sociologia de grupos excluídos. A pesquisa permitiu
a notabilização de áreas não exploradas, fazendo emergir catego-
rias êmicas ora silenciadas por discursos produzidos em exteriores.
Nesse sentido, pensamos como etnógrafos de performance comu-
nicativa, percebendo o lugar da fala de pessoas na multidão, suas
organizações, comportamentos e pensamentos. Como essas pessoas
conseguem dialogar com um cotidiano tão excludente usando de
estratégias próprias da rua?
Se no final do século XIX a Manaus do governador Eduar-
do Gonçalves Ribeiro, dentre outros, produziu a exclusão e a mar-
ginalização contra os indesejados, como bem mostrou Edinea Mas-
carenhas Dias (1999), a Manaus do final do século XX, governada
por Eduardo Braga, Amazonino Mendes, Arthur Neto e Gilberto
Mestrinho, só para citar alguns, não ficou por menos. Não foi repor-
tado o passado apenas pelo passado propriamente dito. Entendemos
que a perpetuação do lado nefasto que esse passado produziu, os
excluídos, ainda está posta. E compreender em que medida Manaus
continua atraindo pessoas como sonho mítico, de el dourado, que
pode ser traduzido pelas oportunidades aqui encontradas, ou não,
foi um desafio.
O estudo das sociedades contemporâneas tem avançado
muito no Brasil. Citamos a publicação de textos como de Bela Feld-

- 50 -
man-Bianco (1987), que aborda mudanças sociais provocadas pela
industrialização e que consequentemente afetaram e aprimoraram
o estudo da antropologia. Ela vai além quando estuda não apenas
povos originários, mas processos e redes compartilhadas em inter-
-espaços, sistemas homogêneos, frações territoriais que chama de
‘quase grupos’. Fala ainda de uma sociedade contemporânea e suas
problemáticas atuais. Dessa forma, com orientação quanto a análise,
conceitos e técnicas para se pensar o outro, contribui muito no cam-
po de pesquisa do sujeito apartado.
Becker (2008) também ajudou a perceber a invisibilidade
como desvio social de quem narra e não de quem vive, sendo as PSR
parecidas com os outsiders, apesar de encaradas como marginais. Se
são acusadas, por vezes, de desviantes, essas pessoas fogem da nor-
matização que a sociedade espera, exercendo ações de transgressão,
sim, mas como estratégia de vida. Sendo de tal modo, foram analisa-
das as relações entre o discurso público sobre a marginalidade social
e os modos específicos de vida desenvolvidos por esses chamados
desviantes. A abordagem da “sociologia do desvio” pensada por
Becker (ID., op. cit.) nos levou a compreender situações gerais des-
sas pessoas consideradas “erradas” e situações referentes à formação
das identidades nessas comunidades. O desvio, por fim, enquanto
rótulo subjetivo para comportamento esporadicamente irregular,
não determinou e nem classificou para nós de forma categórica as
PSR, mas ajudou a compreendê-las.
Desviantes fazem parte da dinâmica das cidades, com suas
regras. Estão incrustados nas invisibilidades e consequentemen-
te em diversas exclusões, as quais são arraigadas, principalmente,
nos grandes centros urbanos, como Manaus. Pode-se dizer, assim,
que são estabelecidas regras e também punições para quem viola
normativas, ordenamentos e códigos formais. Entretanto, Simmel
(1967, 1986, 1987, 1995, 1998) sugere interpretações acerca da mo-
dernidade da cidade e da vida mental, por meio de símbolos ideá-
rios como “dinheiro” e “metrópole”, e indica controvérsias no con-
texto do discurso oficial do Estado e das classes rica e média. Fala
sobre a proximidade e a distância relativa do outro, onde o próximo

- 51 -
pode ser o remoto, designado estranho ou estrangeiro, que se coloca
mais próximo do distante.
Sobre o racismo, Bauman (1999, 2001) trabalha as ideias
das identidades fragmentadas e do estigma entre bandidos e rebel-
des. Ambas as questões giram em torno de crises de pertencimento.
Ele sugere que na sociedade moderna vivemos em estados tempo-
rários, sob a incapacidade de manter vínculos, tal e qual estados lí-
quidos, sem forma constante. Para Bauman, somos uma sociedade
fluida e qualquer tentativa contrária de afirmar isso, via caminhos
de políticas de identidade, levaria inevitavelmente a um beco sem
saída.
Certeau (1994) aborda as táticas de sobrevivência como
conjunto de práticas que articulam espaço e poder. Destaca que o
estudo das dinâmicas de vivência nas ruas pode reproduzir mapas
urbanos com traços densos ou leves, de lugares e não-lugares. Elias
(1993, 1994, 2000) pensa o ideal de processo civilizador enquanto
terreno fértil para conflitos e rejeições, estendendo a análise para
categorias relacionadas à civilização e cultura. Eles abrem discussão
também para se perceber o controle de instintos conforme “etique-
tas de classe”, de bons modos, ou seja, por meio do agenciamento e
da normatização da existência, o que leva a crer que há tentativas de
se forjar territórios de convivência.
Foucault (1985, 1987, 2003b, 2008, 2009) nos aproxima
de teorias que refletem problemáticas importantes sobre o conceito
de poder, conhecimento e controle social mediante instituições. Ele
explora como técnica a arqueologia e a filosofia e as destaca como
práticas de lutas sociais. Foucault estudou a sexualidade, o sistema
penitenciário, a psiquiatria, a instituição escolar e a psicanálise pra-
ticada de forma tradicional. Utilizamos seus estudos sobre heteroto-
pia, termo que tende a significar um espaço de convivência de todos,
de múltiplos usos, de liberdade e pluralidade de saberes e fazeres,
que vai além do princípio físico. Sugerimos, assim, que a heterotopia
sublinha o lugar da fala no interior da cultura oficial, fora de todos
os ditames estatais.
Sobre Geertz (1989, 1994), compreendemos a etnografia
como aporte metodológico para diferenciar um piscar de olhos de

- 52 -
uma piscadela maliciosa. Goffman (2009), a nosso ver, sobre o su-
posto metodológico, colocou a questão do estigma ligada ao desvio
e fez uma correlação entre pertencimento ou não a determinado
grupo. O poder de categorizar o sujeito, apontou Goffman (1980),
faz com que as PSR na atualidade sejam descritas de acordo com
características positivas ou negativas, o que gera maniqueísmos e
imprecisões históricas. Sua concepção para estigmatizados, ou seja,
pessoas que aos olhos de outrem apresentam deformações físicas
ou de caráter, sugere quais são as habilitadas para a aceitação social.
Outro autor que ajudou a entender esse grupo social foi
Maffesoli (1987, 1997, 2005), por meio da inovação de sensibilida-
de, do progresso e da razão estética. Ele traça um panorama para a
pós-modernidade e percebe a emergência de novas sociabilidades,
aquilo que está disposto no microcosmo da sociedade, que é a rua.
Em O Tempo das tribos, Maffesoli (2006) fala de microgrupos mo-
vimentados dentro de uma sociedade de massa cada fez mais cres-
cente. São grupos mutantes, compostos de pessoas constantemen-
te em mudança. Em certos momentos, esses grupos se juntam por
afinidade, criando comunidades emocionais, efêmeras, mutantes e
estruturadas no cotidiano.
Santos (1988, 1997, 1998, 2000, 2012) estuda o espaço ur-
bano globalizado, crítica o capitalismo marcado pelo poder e cunha
o termo “globalitarismo”, uma junção de globalização e autoritaris-
mo. Estuda a distribuição no espaço urbano das forças produtivas,
que dialogam de forma desarmônica com os sujeitos sociais. Com
essas temáticas, deixa claro que há interesse das correntes hegemôni-
cas mundiais em relação à economia, política e cultura. Importante
destacar o trabalho, na Unicamp, de Frangella (2009), que interpreta
a ideia de “pedestre resistente”, estabelecendo relação contumaz com
a ideologia política e econômica contextual de ordenação do espaço.
Procuramos descrever “cantos” habitáveis da cidade que fogem ao
planejamento urbanístico, onde se improvisam o viver e onde PSR
resistem a seu apagamento.
É também o que diz Ana Cristina Arantes Nasser (1998),
professora do Departamento de Sociologia da USP, no seu livro Sair

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para o mundo. Ela trata da problemática da interrupção ou do rom-
pimento das relações de trabalho, da família e do lazer, com a subse-
quente exclusão de pessoas na cidade de São Paulo. A autora aborda
trajetórias de vidas fragmentadas e procura reler a percepção acerca
de quem adotou o nomadismo e suas representações como práticas
sociais nas ruas da maior cidade do país. Sobre a invisibilidade pú-
blica desses indivíduos, foram pontuadas obras, como a dissertação
e a tese14, do psicólogo Fernando Braga da Costa, que experimentou
o serviço de gari ao varrer as ruas da USP para concluir acerca da
“invisibilidade pública”. Ele conseguiu situar que, de alguma forma,
as pessoas enxergam apenas a função social do outro e não o ou-
tro em si. O psicólogo social se vestiu com uniforme e trabalhou
dez anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo.
Percebeu que, ao olhar da maioria, trabalhadores braçais são ‘seres
invisíveis’, ‘sem nome’. Ele fez um esforço acadêmico para descrever
acerca das percepções humanas as quais, segundo ele, são prejudi-
cadas e condicionadas à divisão social do trabalho.
Outros exemplos nessa mesma linha de pensamento estão
em A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta
por reconhecimento da população em situação de rua, em que Melo
(2011), na Universidade do Paraná, teve como proposta trabalhar
com redes de mobilização de população sem-teto em Curitiba/
PR, apontando que práticas de se viver na e sem (contravenção) se
transformam em alvo de políticas públicas a partir da ação coleti-
va para o reconhecimento de especificidades. O trabalho se articula
com a tese Habitar a rua, onde Kasper (2006), também na Unicamp,
estuda a cultura material das PSR como forma de habitação impro-
visada e as construções dos espaços públicos, verificando em que
medida suas tecnologias se relacionam com o meio urbano em São
Paulo/SP.
Demais estudos sobre o tema, não só no Brasil, comun-
gam com ideias como as expostas no livro Down on their luck - a

14 COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social.São Paulo: Edi-
tora Globo, 2004. 254 p. ISBN: 8525038911 e COSTA F. Braga. Moisés e Nilce: retratos biográficos
de dois garis: um estudo de psicologia social a partir de observação participante e entrevistas. Tese
[Doutorado em Psicologia] — Universidade de São Paulo, 2008.

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study of homeless street people15. Snow (1998), assim como autores/as
citados/as antes, realiza etnografia onde pesquisa múltiplos aspectos
das pessoas que vivem nas ruas. O autor levanta genealogias, re-
lações empíricas, entrevistas e registros institucionais, formulando
categorias mediante as quais considera que existe uma subcultura de
rua em Austin, no Texas/EUA. Por último, fala da maneira existen-
cial das PSR, ou seja, de como se notam, como se percebem nesse
mundo e a dinâmica do universo do desabrigo.
Essas marcações teóricas predispostas nos convidaram a
pensar sobre a condição de subjetividade em relação à existência
invisível, dado que estigmas, lugares e pertencimentos, bem como
múltiplas identidades, sofrimentos, conflitos e humilhações, foram
classes reflexivas por nós utilizadas. Em suma, foram diversos os
trabalhos nessa linha de pensamento que, de alguma forma, ajuda-
ram a ampliar o horizonte de perspectivas e proporcionaram avan-
ços na busca de inferências para o presente estudo. Também utiliza-
mos textos que ponderam sobre como a invisibilidade de sujeitos se
insere na história do centro velho de Manaus propriamente dito, das
complexas interconexões que insinuam aspectos subjetivos e ideo-
lógicos dentro dos microguetos e da interação comunitária, propi-
ciando organização de interesses e articulação de solidariedades,
além de somar esforços para lutas contra a dependência em suas
diversas formas.
O estudo aproxima-se das linhas de pesquisa cultura e re-
presentação; cultura e cidade; e antropologia e urbanismo. Isso porque,
assim cremos, trata da sociabilidade em um determinado espaço e tem-
po sem deixar de dialogar com práticas de lazer, trabalho e sensibili-
dade. Nessa perspectiva, maneiras diferenciadas de relações subjetivas
e objetivas foram destacadas, incluindo-se o ser e o agir em razão de
experiências. A princípio, admitimos a complexidade dos significados
contidos no conceito de “identidade”. No entanto, houve tentativa de se
aproximar o marco teórico do conceito à perspectiva estudada, ligan-
do-o diretamente à história pessoal e/ou de vivência na rua.
15 Título original de uma etnografia sobre os moradores de rua, subcategoria dentre os desabriga-
dos. O estudo de caso foi feito em Austin, Texas, a partir de trabalho de campo realizado em meados
dos anos 1980. Em português: SNOW, David; ANDERSON, Leon. Desafortunados: um estudo sobre o
povo da rua. Petrópolis: Vozes, 1998, 528 p.

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Para nós, a identidade das PSR foi estruturada ao tempo
em que representou a marcação de uma personagem dentro de um
conjunto cênico real e dramático de atos que integram a socializa-
ção das ruas, a partir do modo de relação estabelecido ao se aproxi-
marem das particularidades dispostas no meio em que vivem. Dessa
forma, pensamos que a identidade das PSR pode se integrar com
nossos pressupostos de pesquisa em função de conjuntos de identi-
dades instáveis. Ou seja, essa representação dentro de um sistema de
significação funcionou como uma atribuição de sentido ancorada
a construções dependentes da realidade (SILVA, 2014). “[...] É por
meio dessa representação que, por assim dizer, a identidade e a dife-
rença passam a existir. Representar quer dizer: ‘essa é a identidade’,
‘a identidade é isso’” (ID., p. 91).
Ainda sobre o enfoque teórico, Goffman (1980) sugere
que há uma diferenciação entre identidades. Estas podem ser vir-
tuais, ou seja, caracterizadas pelo que imputamos ao sujeito, pelo
que achamos que ele é. Ou reais, caracterizadas por categorias e
atributos que efetivamente o sujeito prova possuir segundo crenças
e atitudes, isto é, como ele é, como se configura. Ao trabalhar com
fragmentação de identidades na atualidade, Hall (2006) já destaca
o sujeito sociológico envolvido na complexidade do mundo. Um
sujeito que se configura como acusador ou acusado (ID., op. cit.).
Um sujeito que, não sendo auto-suficiente e nem independente do
mundo, forma sua identidade por meio do intercâmbio do “eu” com
a sociedade em que se situa. Desse modo, sua identidade vai além da
subjetividade do “eu”. O autor afirma que:
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado
como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanen-
te. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada,
transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam. E definida historicamente, e não biologica-
mente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
“eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL,
2006, p. 93).

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Assim como existem diferentes sujeitos, há diversas iden-
tidades em constante transformação, acompanhando o ritmo da
modernidade, fixando esse sujeito na estrutura social escolhida por
ele. Na perspectiva de Bauman (2005), a ideia de identidade gira
em torno de crises de pertencimento, ou seja, trata-se de uma iden-
tidade que se estabelece por meio de vínculos por vezes estáveis e
por vezes instáveis, que ligam uma pessoa às outras. Para o autor,
que conviveu com mudanças radicais provocadas no seu tempo,
sobretudo com as guerras do século passado, a sociedade onde se
inserem PSR lhe parece cercada de incertezas, o que gera provisó-
rias identidades sociais, culturais e sexuais. “Qualquer tentativa de
‘solidificar’ o que se tornou líquido por uma política de identidade
levaria inevitavelmente o pensamento crítico a um lugar inóspito e
sem respostas” (ID., op. cit., p. 12). A fluidez desse termo deixa em
aberto a propositura de mobilidades interpretativas e a tentativa de
mapear essas identidades se torna um desafio instigante e desafiador
na categoria trabalhada.
É importante salientar que a noção de identidade é
conceitualmente volátil por sua gama perturbadora de significados
móveis, diversos, os quais se deslocam para a subjetividade dos
sujeitos. Para Hall (1987), frente a essa diversidade de significações
e representações, está a pessoa pós-moderna e sua composição
psicofísica aberta. O sujeito se depara com inúmeras e cambiantes
identidades, identificáveis, mas sempre de forma temporária. São
identidades dispostas em um determinado mundo social que não
podem mais ser vistas de forma determinista. Elas estão em con-
tínua mutação e movimento, renovando-se de tempos em tempos
e fazendo nascerem novas formas de ser e estar no mundo, em um
processo de fragmentação do indivíduo moderno. O autor também
destaca que estaria ocorrendo uma mudança conceitual de identi-
dade e de sujeito, visto que as identidades modernas estão sendo
descentradas, ou seja, deslocadas e fragmentadas e, dessa forma,
não é possível oferecer afirmações concretas sobre o que é a iden-
tidade, dado tratarem-se de aglomerados com aspectos complexos,
que envolvem múltiplos fatores.

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CAPÍTULO III
O estranho igual a mim que fala

3.1 Narrativas da rua: alguns resultados


Dia 16 do outubro de 2017. Fim de tarde chuvoso na capi-
tal do Amazonas. Caminhando de forma despretensiosa, descemos
a Praça dos Remédios em direção ao Mercado Municipal Adolpho
Lisboa. Lá, ficamos observando a lateral do mercado, as pessoas
perfiladas uma a lado das outras, sentadas em uma espécie de ban-
co, onde se abrigavam do chuvisco.
Sentamos ao lado de um rapaz e o cumprimentamos, no
que ele respondeu. “Os senhores são os primeiros que passam por
aqui e falam com a gente” (Jackson, 34 anos). Pedimos autorização
para gravar a conversa e usar as falas para a pesquisa. Estava ele e
mais alguns colegas seus. Expliquei do que se tratava e deixei o celu-
lar no bolso, gravando. Depois de falarmos sobre o tempo de chuva,
o barulho das motocicletas e os urubus revirando a xepa, começa-
ram as perguntas pessoais sobre a vida na rua.

Estou morando aqui por enquanto, sou mecânico, estou espe-


rando uma oportunidade aí, entendeu? No dia que eu conse-
guir, vou sair daqui. Não volto mais. Isso aqui não é vida pra
ninguém, não. Porque sempre morre os outros ali e ninguém
sabe quem matou [apontou para uma esquina movimentada].
Aqui eu não tenho amigos, sabe, só colegas de rua mesmo (Ja-
ckson, PSR, 34 anos).

Nosso interlocutor, na entrevista, realizada em meados


dos meses de chuva na região amazônica, confirmou que a lateral
direita do Mercado Adolpho Lisboa serve como abrigo nesses dias
de tempestade, mas também guarda perigos potenciais. E comple-
tou: “[...] só sei te falar que é uma vida difícil, né, cara... ou mata ou
morre”. Perguntamos se ele era de Manaus. Depois de um tempo em
silêncio, retornou a narrar:

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Eu nasci no Maranhão, mas eu parei por aqui já uns 17 anos.
Sou de Vitorino Freire, no Maranhão. Eu vim pra terminar meu
estudo. Terminei, aí casei com uma mulher. Não deu certo e
quebrei minha cara. Não deu certo e perdi a cabeça. Trabalhei
10 anos na Cascavel (empresa de ônibus). Hoje eu não tenho
é nada. Até o fogão tá melhor do que eu porque tem registro,
eu não tenho é nada [e baixou a cabeça]. [Perguntamos sobre
seus documentos] É uma longa história. Minha mulher rasgou,
fez um inferno, acabou com a minha história todinha e nem
sei mais quem sou. Acho que tu entende que as mulheres do
Pará são valentes, né? [Perguntei se tinha vontade de voltar
para o Maranhão]. Na minha terra eu ralei pra caralho. Então
pra eu ir pro Maranhão passar o que eu passei, quebrar aquele
côco [de babaçu]. Té doido, é, cara! Tem lugar ruim, tem lugar
bom, tem lugar difícil. Mas lá, na área que eu trabalho, é mui-
to difícil. [Perguntamos se morar na rua não era mais difícil
do que quebrar côco]. Aqui não, porque é Amazonas, né? Tem
A e M, é Amazonas, é ‘A Mãe’... [falou rindo]. Todo mundo que
não presta é jogado aqui, tu sabe, né? Aqui tu não passa fome,
né? Mais tarde, os pastores passam e dão sopa, dão roupa. Aí o
cara se acomoda e não quer saber de trabalhar, né? Mas o cara
não merece essa vida, né? Aí também tem a Igreja Católica ali.
O cara vai e tira a barba. Dão camisa, roupa, cortam o cabelo.
Então a gente dorme e pensa ‘sei lá que dia é amanhã’. [Pergun-
tamos se tinha alguma preocupação]. Aqui não paga imposto,
dívida, mas eu tenho porque tenho uma filha, que nasceu aqui e
mora na Cidade de Deus [bairro de Manaus]. A mulher [ex] não
quero mais, mas a melhor amiga que tenho é ela. Peguei R$ 40
mil da Cascavel e comprei uma casa pra ela [faz uma pausa e se
cala] (Jackson, PSR, 34 anos).

O que fica implícito na narrativa é que o forte trânsito mi-


gratório Nordeste-Norte, outrora exaltado como política dos gover-
nos militares para a ocupação da região amazônica, ainda se mantém
inalterado. Nosso interlocutor saiu de uma existência difícil, segundo
ele, vida de subsistência com a atividade de beneficiamento do coco
babaçu, e passou para uma vida mais razoável, menos difícil, confor-
me destaca, quando veio para a capital do Amazonas. É fato confir-
mado quando diz que adquiriu uma casa, um carro e constituiu uma
família. Sua vida se degringolou, entretanto, como diz, a partir da fa-
lência do seu relacionamento amoroso, o qual não quis dar detalhes,
mas, nas entrelinhas, supomos que tenha se separado por questões de
inconsistência relacional grave com a ex-companheira.

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Na sua fala, comentou ainda que estava “no buraco”, sem
uma solução, porque perdeu a cabeça com a mulher e a mesma
queimou seus documentos. Por conta da desilusão amorosa, perdeu
também o emprego e, a partir de sua problemática com finanças
pessoais, acabou por sair de casa (aqui, a questão do abuso de álcool
e drogas não foi citada explicitamente, mas nos pareceu algo intrín-
seco). Em suma, foi uma sequência de acontecimentos que intensifi-
cou a predisposição de ir se estabelecer nas ruas. Nosso interlocutor
também disse que já lutou por seus direitos de modo a se engajar em
cursos preparatórios, como relatou a seguir:

Já trabalhei com mecânica moderna, passei e fiz cursos por São


Paulo, Curitiba e Venezuela. Sobre injeção eletrônica, carros
modernos, como esse aqui, ó [e apontou para um carro esta-
cionado]. Essa é minha área, parte elétrica e injeção. Aliás, eu
me considero não um mecânico, mas um consultor técnico. Por
enquanto, tô aqui pela rua. Alugar um quarto eu não vou poder
por esses tempos. Mas eu pretendo arrumar um patrão pra eu
sair fora, trabalhar. [Perguntamos o que ele via por ali, prin-
cipalmente à noite]. Tem uns caras que ficam aqui pra vigiar
carro só pra usar drogas [e a parte seguinte ficou inaudível].
Sei que o cara se acostuma, né? E não quer mais sair daqui. Mas
têm coisas feias que eu já vi. [De forma bem firme ele falou] Eu
quero sair daqui e vou sair. Esse senhor ali tem um bom tempo
na rua, tem gente aqui que tem 20 anos. Ei, caras, eu não me
acostumo com isso. Sabe por quê? Porque isso aqui é uma coisa
que o cara deve passar às vezes. Mas eu uma vez fui evangélico
e passei quase cinco anos na igreja evangélica. Às vezes é uma
coisa que a gente tem que passar (Jackson, PSR, 34 anos).

O trabalho com mecânica enaltecido por ele, as viagens ao


estrangeiro, os sonhos e as esperanças parecem fortalecer a intenção
de ir em direção à mudança de vida. Diz que pretende ir embora
das ruas, pois, mesmo tendo alimentação, roupa e higiene pessoal
disponibilizadas por religiosos, ONGs e grupos voluntários, destaca
que “isso não é vida para ninguém”. Fala das drogas e da relação
com as mortes de colegas nas ruas, que ficaram sem solução. Se foi
morte ou assassinato ele questiona também. Tenta, até para expres-
sar conhecimento, falar sobre religião e esoterismo, relatando que já

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esteve bem próximo da religiosidade evangélica. Conclui seu pen-
samento falando que este momento o qual vive é apenas passageiro,
coisa de “provação da vida”.
Antes, eu já vim aqui outras vezes, eu tinha um Gol [carro da
Volks] zerado, 16 válvulas, eu comprei. Eu sempre pegava
o pessoal pra sair daqui, ó. Vinha aqui com um colega meu e
dizia - recupera, cara, vambora mudar. E eu parei aqui. Então
eu tenho que passar por essa, né? [Insistimos com a pergunta
do porquê veio parar na rua. Ele virou a cabeça para o lado.
Dissemos que se ele não quisesse falar, não falasse. No que
ele respondeu] Às vezes, é decepção, às vezes o cara não tem
coragem de encarar a realidade na moral, sem ser careta, né?
Que a cachaça, o cara quando bebe já não é careta mais, né? E
ainda tem mais uma. Nem todo mundo que passa olha pra cara
da gente. Todo mundo que passa, olha pra cara da gente, mas
discrimina. Ou o pessoal nem olha ou olha assim, ó [fez cara
de reprovação e nojo]. Vamos supor: é um buraco mesmo, não
tem mais solução. Eles até que falam de Jesus. Mas Jesus fez o
quê? Comeu com os pecadores, né? Jesus tava comendo com os
pecadores e o que alguém falou pra ele? Já queriam condenar
ele mesmo, né? - Como é que o senhor é o filho de Moisés, de
Davi, etc., prega pra todo mundo e come com os pecadores? - E
Jesus disse que não tinha vindo em busca dos ricos, porque ele
tinha vindo para os que necessitavam dele. Não entenderam,
não? [Respondemos que sim] (Jackson, PSR, 34 anos).

Jackson, PSR, 34 anos, em sua fala diz “eu quero sair da-
qui e vou sair”. Ressaltamos novamente em sua narrativa o perfil de
vontade e esperança de deixar a situação de rua, buscar mudanças
da vida, sair da morada onde está, largar a situação de incerteza co-
tidiana em que vive. Aqui apontamos que ele fala de alcoolismo e
da necessidade que talvez demonstre ter em viver a realidade, uma
necessidade de superação, a partir de uma multifocalidade para o
real, mas não de forma ébria. Na sua perceptiva, a bebida e as drogas
o fazem aguentar a realidade em que vive, mas o fazem ao mesmo
tempo decair. Depois de um longo caminho de sofrimento e solidão,
as drogas se tornam válvula de escape dessa realidade cruel em que
se encontra, conforme ele mesmo destaca. Ou seja, a drogadição
tende a ser impulso para atitudes de manutenção da degradação so-
cial, incluindo-se as próprias controvérsias apontadas por Jackson.

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Jackson, assim como demais PSR com as quais dialoga-
mos, pareceu apresentar identidades fragmentadas em múltiplos
pedaços. Pareceu estigmatizado (BAUMAN, 2005; GOFFMAN,
1988). Trabalhamos na perspectiva especialmente de Goffman (IB.,
op. cit.), quando o autor fala do estigma ligado à criminalização.
Estigma que desqualifica a pessoa por meio de características nega-
tivas. Para Goffman (ID., op. cit.), o estigma parte da não aceitação
social plena por conta da mensagem que a própria pessoa transmite.
No caso das PSR, às vezes, a linguagem corporal lhes anuncia ne-
gativamente. As PRS se contrapõem ao que está posto como nor-
mal, correto a se fazer, ou supostamente correto. Elas se configuram
como o avesso de uma sociedade plurissocial. Surgem como bárba-
ras da contracultura, ao inverso dos cabelos bem cortados, das bar-
bas bem desenhadas, da higiene corporal. Seu corpo é tudo e algo
mais do que dispõem para o enfrentamento da realidade.
Contrário ao modo de vida das PSR, impera hoje a cul-
tura do simulacro narcisista, em que muitas pessoas se apresentam
em razão de uma virtualidade das coisas, moldada por parâmetros
e ideias fora da ordem comum. O que será isso? A simulação da
realidade. Postam-se em redes sociais, por exemplo, fotos melhora-
das com photoshop, com filtros, exibindo-se corpos aperfeiçoados
em uma tentativa de se enquadrar a modelos midiáticos. A foto de
uma mulher ou homem, muitas vezes não é a realidade da mulher
ou do homem, é apenas seu simulacro. Para muitos, porém, hoje o
simulacro é essencial até mais que a imagem real. A realidade se de-
substancializa, ou seja, perde sua fixidez e importância. Vale apenas
a superfície, a publicidade, a imagem criada. Antes comprávamos
uma roupa por sua qualidade e seu preço. Hoje é mais importante
o que a calça simula ser, sua marca, sua griffe famosa, sua postura e
nível social delimitados pelo preço etc.
O amor e o sexo também são simulados pela internet. As
pessoas se conhecem e namoram sem nunca terem se visto pessoal-
mente. Porque mesmo que você esteja em contato físico com al-
guém, no fundo, pode estar fazendo amor consigo mesmo. O outro,
na pós-modernidade, só existe para confirmar o próprio universo

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narcísico. Essa realidade cada vez mais virtual, ou seja, simulada,
indica a “Matrix”16 do agora. Desumanizamo-nos cada vez mais.
Esse mundo novo transforma sujeitos em objetos descartáveis, fora
do sistema, dado que não se enquadram nele. Não vemos e nem
conversamos mais com quem está ao nosso lado. Hoje, as aparências
dizem muita coisa. Por essas e outras ideias, as quais pensamos ser
um tanto complexas e por isso não nos deteremos nelas em profun-
didade, deixamos de perceber o outro que está do nosso lado e o
invisibilizamos.
Redes sociais e jogos eletrônicos nos colocam em um sa-
fári exótico na África, na Antártica ou em Galápagos, a partir de
uma espaçonave ou no fundo da Terra, longe do real. Portanto, na
pós-modernidade se cria um novo tempo e um espaço totalmente
reposicionado, antes inimaginável. Será que a máquina nos tragou,
como Chaplin previa? Vivemos na era da globalização não apenas
de produtos e serviços, mas também de modos de vida baseados da
riqueza e na pobreza, nas benesses do capital para uns em oposição
a outros. Essa questão impõe a nosso trabalho uma maior amplidão,
pois podemos abranger as PSR de Manaus para um nível global.
Essa questão das PSR, por tudo isso, é uma problemática
local e ao mesmo tempo universal, seja em cidades grandes, mé-
dias e, inclusive, atualmente, nas cidades pequenas no interior do
Amazonas. Existem inúmeras PSR em Coari, Itacoatiara, Parintins
e Tabatinga, entre demais, só para citar algumas localidades, e, se
formos pesquisar a fundo, talvez em todo o interior do Amazonas
o problema seja crônico. As razões desse cenário são semelhantes
às dos grandes centros: vão desde conflitos familiares até a falta de
perspectivas de ocupação laborial. Nesse sentido, o estudo em des-
crição se inseriu em um conjunto de discussões mais amplas, como
é a própria Amazônia e os seus sujeitos que historicamente a habi-
tam.
A ocorrência das PSR se manifesta de forma globalizada já
faz algum tempo. Pensando sobre a história das cidades industriais,
especialmente à época da Revolução Industrial inglesa, imaginamos
16 Fazendo referência aqui ao mundo virtual vivido no filme Matrix (em inglês: The Matrix), que é
um filme australo-estadunidense de 1999, dos gêneros ação e ficção científica, dirigido por Lilly e
Lana Wachowski.

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a onda de camponeses expropriados de suas terras, empurrados
para as urbes, à procura de emprego fixo ou ocupação sazonal re-
munerada. Devia ser um lugar caótico, sem espaço para a densidade
populacional que se avolumava constantemente nas grandes capi-
tais do Estado. Nem todas as pessoas que procuravam melhorar de
vida migrando para os centros industriais e comerciais foram absor-
vidas pelo mundo do trabalho. E daí que uma parcela da população,
como ocorre ainda hoje, passou a ficar à margem, esperando sua
oportunidade. Nesse meio tempo, pessoas arranjaram outros meios
para sobreviver e a rua acabou se transformando em um grande ce-
leiro de oportunidades lícitas e ilícitas, pois no momento em que
não conseguem vender a única coisa que resta, ou seja, a força de
trabalho, surgiram alternativas incomuns.
Muitos se tornam ladrões, vigaristas, PSR, pedintes, va-
gabundos, jogadores e apostadores, sendo enfim são levados pelas
conjunturas que estão postas. Trata-se de uma história de perdas,
com certeza. Romancistas, poetas e pintores outrora se ocuparam
em retratar a sociedade de época a partir do foco nas PSR como
sistemática de observação (flâneur, outsiders, bon vivants). Balzac,
Flaubert, Degas, Lautrec, Van Gogh, Maupassant, Pirandello, Jean
Genet, Hilda Hilst etc., entre demais, foram primordiais em des-
cortinar a matriz do problema e, apesar de não executarem meto-
dologia científica etnográfica em suas avaliações, tinham acurada
percepção de vida e mundo, pois descreviam grupos de pessoas que
permeavam as ruas, às vezes de forma apologética, vivendo de bis-
cate, de bicos, de ajudas, mendigando como estilo de vida, e às vezes
de modo trágico.
No Velho Mundo, a ideia de outsider, flâneur, bon vivant,
em certa época, foi estimada por aparatos romanescos, até mesmo
em consonância ao movimento artístico-cultural de dado momento
(LECLAIRE, 1971). Artistas, escultores, comerciantes da new age,
filósofos e navegadores tomaram para si o estilo de vida desregrado,
quiçá poético, que em algum instante foi bem difundido. Mas nou-
tros nem tanto. Com as vidas desregradas e/ou descomprometidas,
contando-se apenas com prazeres imediatos (álcool, cigarro, sexo,

- 65 -
drogas), era possível desmistificar a ideia de boa vida associada a
ricos ociosos que desfrutam de trivialidades. Para além dessa ideia,
o bon vivant, assim como o flâneur, podia ainda ser um estado de
espírito, de mentalidade em relação à adoção de um estilo de vida
próprio. E as PSR se assemelhavam ao suposto, dentro de uma cons-
tante em que se configuravam como espíritos de vida livre.
Porém, deixando de lado o glamour do bon vivant, vemos
uma realidade cruel não apenas em Manaus, mas em grande parte
do Brasil e do mundo. Até países ricos, de alta verve capitalista, tam-
bém são assolados pela pobreza das ruas em certa monta. O jornal
espanhol El País Internacional publicou em sua edição de 30 de de-
zembro de 2017 a manchete “Número de moradores de rua dispara
na capital da miséria dos EUA”. Segundo a reportagem, o Conselho
Interagências dos Estados Unidos sobre os Desabrigados anotava
em 553.742 o número de pessoas sem ter onde morar. E vale dizer
que as condições de desemprego/subemprego pioraram na gestão
Trump, o que significa supor que, de 2017 até o momento, o cotidia-
no das PSR está bem pior globalmente.
Segundo relatório da Comissão das Nações Unidas para
Direitos Humanos, há mais de 100 milhões de pessoas que não pos-
suem moraria e vivem nas ruas dos grandes centros metropolitanos
do planeta. O número representa 1,5% da população mundial. A
estatística assusta, pois, embora esforços para combater pobreza e
desigualdade no mundo tenham aumentando exponencialmente
ao longo do último século, ainda no século 21 temos de lidar com
dados problemáticos referentes às PSR. Um dos fatores destacados
pelo jornal para que até pessoas empregadas estivessem morando
nas ruas nos EUA eram os altos preços praticados nos aluguéis de
imóveis.
Como o poder aquisitivo não aumentava no mesmo ritmo
dos preços dos imóveis, as maiores cidades dos EUA apresentavam
esse cenário. Segundo o noticiado, só na cidade de Nova York eram
76.501 sem-teto, além de Los Angeles (55.188), Seattle (11.643), San
Diego (9.160), Washington (7.473), San Jose (7.394) e São Francisco
(6.858). Todas estas regiões cresciam em velocidade acima da mé-

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dia nacional. E, nelas, muitas vezes os afetados até tinham atividade
profissional. O jornal reforçava que um em cada cinco moradores
de rua vivia em Nova York ou Los Angeles. A diferença era que em
Nova York, 90% tinham onde passar a noite. Três em cada quatro
pessoas sem teto em Los Angeles não tinham cama em albergue
como solução temporária.
A outra manchete é taxativa: “O sonho americano está se
transformando rapidamente na ilusão americana”. O jornal El País
relata que os EUA estão se transformando no campeão mundial da
desigualdade. Tudo porque não só lá, mas aqui também a política
adotada para as PSR deveria envolver investimentos em habitação,
aluguel de prédios desocupados e ainda hotéis para onde são dire-
cionadas essas pessoas. Todavia, a lógica é cruel. Tornou-se mais
barato “prevenir” a ocorrência de PSR nas cidades do que cuidar
do impacto dos sem teto na cidade. Mas essa “prevenção” é ques-
tionável, porque mais de 40 milhões de norte-americanos vivem na
pobreza e, deles, 18,5 milhões em extrema pobreza. Ademais, várias
críticas acerca da criminalização da pobreza podem ser feitas, em
todo o planeta.
Em países como México, Rússia e Filipinas a quantidade
de PSR tem aumentado bastante. O México é uma nação com sérios
problemas sociais e econômicos, com 40% de sua população total
vivendo em estado de pobreza. O número de pessoas que vivem na
rua da capital mexicana está entre 15.000 e 30.000. Na Rússia há
cerca de 5 milhões de pessoas desabrigadas e deste número 1 milhão
são crianças. Moscou tem a maior proporção de sem-teto daquele
país, entre 20.000 e 50.000. Já nas Filipinas, de acordo com o Home-
less Internacional, em torno de 22,8 milhões estão em favelas. Para o
governo filipino, 1,2 milhões são crianças que se sustentam tanto em
vendas ambulantes quanto mendigando nas ruas, sendo que cerca
de 70.000 perambulam pelas ruas em Manila17.
Fazendo certa generalização, mas resguardando-se as es-
pecificidades regionais e locais, no Brasil as PSR apresentam pontos
semelhantes, como pobreza extrema, desestrutura familiar, abuso
17 Cf. https://www.fatosdesconhecidos.com.br/cidades-com-mais-moradores-de-rua-mundo. Aces-
sos em 02/05/2018.

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de entorpecentes, ausência de emprego e renda fixa, inexistência
de moradia convencional e permanência fixa ou esporádica na rua
como morada. Essas e outras características se assemelham e elas
tendem a definir o perfil das PSR no Brasil. Sobretudo porque por
volta das décadas de 1960 a 1990, segundo o IBGE, o êxodo rural
empurrou para as cidades cerca de 18 milhões de pessoas. Ou seja,
38% da população brasileira da época migraram para grandes cida-
des. Sem capacidade estrutural para receber a todos adequadamen-
te, houve crise e colapso, o que reverberou na quantidade de gente
sem teto atualmente.
Em Manaus, 53% das famílias vivem em aglomerados
subnormais e os acontecimentos políticos dos cinco últimos anos,
incluindo o golpe que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder
e a pandemia, causaram mudanças que acentuaram a fome crôni-
ca. Com o nível de desemprego em alta, com quase um terço da
população local sem carteira assinada, e os encerramentos ou cor-
tes orçamentários em programas sociais, além das contra-reformas
propostas pelo governo, a pobreza e a extrema pobreza aumentaram
significativamente.
A extrema pobreza é uma situação em que um indivíduo
ganha menos de US$ 1,90 de renda domiciliar per capita por dia ou
R$ 136,00/mês18. A alta da extrema pobreza aconteceu em todas as
regiões brasileiras, indo de 20% na região Norte (1,95 milhão para
1,99 milhão de pessoas) a 24% na região Centro-Oeste (4,4 milhões
para 5,5 milhões). Mas é preciso tomar cuidado com as elevações
relativas. O Nordeste, por exemplo, teve alta de 10,8% na pobreza
extrema, um pouco abaixo da média nacional, mas concentra mais
da metade das pessoas nessas condições. Em Estados com histórico
de baixas taxas de pobreza, altas absolutas menores no número de
indivíduos pobres geraram saltos chocantes: Paraná (37%), Distrito
Federal (61%) e Mato Grosso do Sul (70%). Houve queda do núme-
ro de pessoas em pobreza extrema em Rondônia (-18,7%), Tocan-
tins (-14%), Santa Catarina (-9,7%), Amapá (-1,6%), Ceará (-1,5%),
Mato Grosso (-1,3%) e Paraíba (-1%) de 2016 para 2020.

18 A referência de renda que define pobreza é do Banco Mundial e usa dólar em paridade de poder
de compra, uma medida que equaliza o valor de bens e serviços nos diferentes países.

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Tratando da nossa região, Manaus e Belém são os prin-
cipais centros urbanos do Norte. São polos que foram sedimenta-
dos na época áurea da economia da borracha e até hoje conservam
histórias de época, as quais são ricas em volume de dados. No caso
manauara, há que se atentar para o fato de que muito da infraestru-
tura urbana da cidade se configura ainda com as reformas que se de-
ram entre 1890 e 1910. Modificações urbanas como calçamentos de
ruas, aterramentos de igarapés, expansão de avenidas, iluminação
elétrica, construção de praças, rede de água e esgoto, construção de
pontes, prédios públicos, casarões particulares, além de uma ampla
rede de serviços urbanos, foram percebidos no passado e se fazem
sentir no presente, com alguns poucos virtuosos bons exemplos (cf.
Prosamin).
Manaus almejava ser a vitrine dos avanços do capital no
norte do país. Uma cidade, como relata Costa (2014), visível, que
teria que ser mostrada, assemelhando-se a cidades europeias, prin-
cipalmente Paris.

O direcionamento da modernização citadina caminhou no sen-


tido de trazer para a dimensão pública segmentos sociais da
elite mercantil e política que se encantavam com as cidades eu-
ropeias. A monumentalidade dos prédios públicos, o ajardina-
mento de praças, a construção de grandes avenidas, a tentativa
de recriação de um espaço cultural europeu com restaurantes
de cardápio francês e lojas de luxo nortearam as ações do po-
der público e privado (COSTA, 2014, p. 110).

O urbano manauara, para a autora, foi um espaço privi-


legiado a afortunados do fausto da borracha. Dessa forma, a segre-
gação entre ricos e pobres norteou intervenções no espaço urbano,
o mesmo pensado para a elite local. Só que ações do poder público
de Manaus da virada do século XIX para o XX buscavam discipli-
nar costumes com a ajuda da polícia (Código de Posturas)19 e de
médicos sanitaristas (higienizadores). Com atitudes de exclusão de
moradias rudimentares no centro da cidade, a população pobre, ge-
ralmente formada por trabalhadores de baixa renda, foi empurrada
para a periferia ou bairros distantes do centro.
19 Decreto-Lei nº 3.688/1941, considerava a mendicância contravenção penal, sujeita a prisão de
15 dias a 3 meses.

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Em 1910, a maior parte das reformas urbanas já tinha se rea-
lizado e o poder público conseguira algumas vitórias sobre a
habitação popular. A condenação do uso da palha levou a popu-
lação pobre, e mesmo os proprietários de cortiços, a substituí-
-la pelo zinco ou alumínio. Tanto que o Código de Postura [...]
não fazia referência à cobertura das edificações. A palha não
era considerada apenas como antiestética ou insalubre. Ela
carregava consigo o pecado de trazer à memória toda uma civi-
lização que se buscava a desterrar: a indígena. Manaus, cidade
construída sobre o cemitério de índios, entre os quais da tribo
Manaós que lhe emprestou o nome, é lugar das constantes ten-
tativas do processo de aterramento progressivo dessa memó-
ria. A habitação popular do perímetro urbano, um dos aspectos
físicos que ainda podia, vez ou outra, lembrar esse passado foi
sendo paulatinamente condenada pelo poder público e pelas
elites, na mesma proporção com que se almejava uma arquite-
tura mais próxima aos moldes europeus (COSTA, 2014, p. 116).

No tocante à urbanização, anos depois, já na segunda


metade do século XX, foi implantada a Zona Franca de Manaus e
outros grandes projetos na Amazônia, o que impactou o fluxo mi-
gratório e o consequente desenvolvimento da infraestrutura local
foi estrangulada. O número de pessoas vindas para a zona urbana
acelerou tanto que o processo de expansão na capital amazonense
colapsou. Para suprir o déficit habitacional, surgiram diversas ocu-
pações irregulares (denominadas de invasões), que se expandiram
principalmente nas proximidades do bairro Distrito Industrial e nos
extremos das zonas leste e norte, ampliando o espaço urbano de for-
ma não organizada.
Em reportagem do jornal A Crítica de 28/01/1990, intitu-
lada “Miséria, o outro lado da moeda chamada Zona Franca”, cha-
ma-nos atenção os contrastes de Manaus. Para aquela época, última
década do século XX, o Brasil, já uma das 20 maiores economias do
mundo, apresentava ainda diferenças inimagináveis entre regiões.
Relata a reportagem que o Amazonas, por exemplo, com o maior
polo de eletroeletrônico do país e a Zona Franca em Manaus, a ren-
der uma média de US$ 6,3 bilhões/ano, era um dos Estados com
piores índices no ranking nacional de distribuição de riqueza. A
reportagem destaca que aglomerados subnormais (favelas) prolife-

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raram no início da década de 1970 e passaram a ser ocupados por
migrantes que chegavam em busca do sonho do Distrito Industrial,
mas não houve repartimento social dos lucros do polo, o que levou
à completa falência e pauperização de grande parte da classe traba-
lhadora local.
Como destaque do que afirmamos temos o bairro Tancre-
do Neves, surgido em razão plena de ocupações de áreas localizadas
na estrada que ligava o bairro São José Operário à Cidade Nova,
hoje Avenida Grande Circular, em meados da década de 1980, em
Manaus. Igualmente aos demais bairros da Zona Leste, o Tancredo
Neves foi ocupado transversalmente. Em 1986 já contava com cerca
de dez mil famílias, sendo grande parte delas originária do interior
do Estado. Desde o começo da constituição do bairro os moradores
exigiam infraestrutura urbana, como água encanada, energia elé-
trica, escolas, postos médicos e transporte coletivo, como em certa
medida foi feito no São José, de onde veio um bom volume de ha-
bitantes do Tancredo Neves20. E nessa mesma perspectiva de reivin-
dicações surgem também no início da década de 1980 os bairros
Zumbi dos Palmares, Armando Mendes, Jorge Teixeira, Mauazinho
e Vila da Felicidade, dentre outros.
Em reportagem de A Crítica, de 28/01/1990, temos um
ponto de vista de uma dona de casa.

Mãe de quatro filhas, Lurdima Saraiva, 22 anos, mora no Maua-


zinho (rua São Francisco, 25) e é apenas uma das milhares de
pessoas que residem nas dezenas de bairros surgidos em Ma-
naus nos últimos anos. A filha mais velha (sete anos, as outras
têm três anos, quatro anos e cinco meses respectivamente)
ainda não frequenta a escola e, somente com o salário do mari-
do, que trabalha numa fábrica do Distrito Industrial, comprar
alimentos para a família se torna cada dia mais difícil. Lurdima
votou em Collor de Melo e espera que o presidente melhore a
situação do país, corrigindo as distorções. “Acho que essa é a
esperança de todos”, disse ela (Trecho extraído da reportagem
do Jornal A Crítica de 28/01/1990, intitulada Miséria, o outro
lado da moeda chamada Zona Franca).

20 Conferir edição comemorativa “Manaus 342” do Jornal do Commercio de 23, 24, 25 de outubro
de 2011.

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Para além de estudos de expansão urbana ligados a fluxos
de desenvolvimento da região, pesquisas relacionadas à Amazônia,
atualmente, tendem a incidir sobre temáticas correlatas, como é a
questão das PSR no centro de Manaus. Além de o desenvolvimento
pretendido para a região pouco proporcionar garantias de direitos
individuais e coletivos, reconhecimentos territoriais, simbólicos, re-
ligiosos, de costumes, crenças, hábitos e valores étnicos e socioam-
bientais, ocasionou problemas associados a desconhecimento sobre
esse “outro Brasil desenvolvido”. As maiores falhas, cremos, se dão
no contexto da não implantação de meios de instrumentalização
científico-tecnológica para saberes nativos, aliada a supostos conhe-
cimentos tradicionais que não se fazem sentir efetivamente. Todo
esse pensamento, necessariamente sistêmico, tenderia a ser uma
tentativa de aplicar estudos que consideram externalidades (polí-
ticas nacionais e internacionais) e afetam de forma sistemática as
realidades locais, como é o caso das pessoas em situação de rua.
Entrementes, a falta de políticas públicas tem levado ao
que chamamos também de descentrados sociais, ou seja, pessoas
deslocadas do centro da sociedade formal em direção à marginali-
dade. Hall (2006) quando fala em descentrados refere-se a identida-
des modernas fragmentadas ou deslocadas, afirmando que a perda
de um sentido de si pode ser apontada como um deslocamento ou
descentramento do sujeito. O autor diz que o duplo deslocamento
ou descentramento dos indivíduos, tanto de seu lugar no mundo
social e cultural quanto em relação a si mesmos, constitui uma crise
de identidade.
Em razão do que foi exposto, importou sublinhar que tan-
to amazonidades quanto caracterizações sobre a Amazônia, algumas
das quais se tentou abarcar no tópico, implicam na escolha do estu-
do: a problemática das pessoas em situação de rua em Manaus. Ora,
se acreditamos que a ambientação na Amazônia e as construções do
pensamento social amazônico influenciaram em crenças, atitudes,
valores e ideologias em geral entre povos do bioma, é crível destacar
que o universo das PSR assume importância seja por se tratar de
indivíduos fragmentados em face a cidades e também por apresen-
tarem um complexo de estruturas socioeconômicas em moldes de

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capitalismo tardio, temático e altamente singular. Uma construção
que diz respeito a conjunturas nativas na Amazônia, mas que tam-
bém dialoga com urbanidades próprias da região.
Entendemos, por isso, que a invisibilidade das PSR não
é um fenômeno exclusivamente das grandes cidades Europeias, da
América do Norte etc. No interior da Amazônia já se faz constante
a presença de PSR, como foi destacado aqui. Nossa aposta, assim, é
de um tratamento múltiplo a essa perspectiva, notando os sem teto
enquanto fenômeno com dinâmica própria. Desta feita, o instinto
do comum entre as PSR pode convergir para uma situação distinta,
fazendo com que elas sejam visibilizadas e nesse caso fomentando a
visibilidade como grupo ou gerando solidariedade interna, empatia.
Em geral, as PSR, como coletividade, configuram-se como pessoas
que se unem porque escolheram singularidades na vida, ou seja, os
diferentes se igualam nas suas diferenças. A formação desses gru-
pos, portanto, acontece por afinidade.
Suas histórias de vida, na maioria das vezes, assemelham-
-se por contradições, escolhas, fracassos ou esperanças. Daí que a
formação de grupos efêmeros de sem-teto comunga, em suma, com
a instabilidade e o acaso, dentro de uma seara da desindividualiza-
ção (MAFFESOLI, 1987), que formar categoria como sendo parte
do que o autor chama de comunidade emocional. Maffesoli escla-
rece que grandes características atribuídas a comunidades de PSR
podem ser relativas a i) aspecto efêmero, ii) composição cambiante,
iii) inscrição local, iv) ausência de organização institucional e v) es-
trutura quotidiana.
Por conta dessas classes de ação ou reação afetivas, no tó-
pico que segue direcionamos nossos esforços para a delimitação da
formação de lugares efêmeros onde estão comumente dispostas as
PSR no espaço urbano.

3.2 Heterotopias, espaços públicos e cidades


Arantes (1994), em Guerra dos lugares, fala da formação
de espaços sociais efêmeros, erigidos em meio a conflitos e sociabili-
dades conflitantes em praças e ruas de grandes cidades. Há uma dis-
puta pela manutenção de lugares (espaços afetivos) e, nessa querela,

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as PSR conseguem se estabelecer defendendo seus pertencimentos,
seus pedaços afetivos, fazendo com que outros as respeitem, mas não
sem a observação de contendas violentas. A partir da divisão social
latente que tende a marcar as falas de pessoas e suas posturas, se-
gundo descrição na obra de Arantes, fica evidenciada a segregação,
tal como é posto por meio da narrativa de um pintor de carro, de-
sempregado, quando este diz que “somos parte de um mundo só.
Estamos todos juntos, mas não estamos no mesmo mundo. Você, se
entrar no meu mundo, é estranho; eu, se entrar no seu sou estranho”.
E complementa: “[...] você não ia me aceitar se soubesse que tenho
passagem na polícia e eu não ia te aceitar sabendo que você nunca
roubou. Você tem um mundo e eu tenho outro. Os nossos mundos
estão em guerra. É isso!” (ARANTES, 1994, p. 259).
O espaço público urbano é um lugar de conflitos porque
nele se entrecruzam a moral contraditória e os cenários da invisibi-
lidade controversa. Lá se estabelece a crise do sistema e a margem
do concreto; lá se apartam a carne e a pedra. O urbano é vivido pelas
PSR em função da realidade que lhes resta, do cotidiano contingen-
cial, que é um anti-padrão. Para Sennett (1999, 2003), tendemos a
idealizar a vida perfeita, o corpo perfeito, o padrão da sociedade
ideal. Quando há a desobediência a esse padrão, corre-se o risco
de haver uma negação às formas destoantes, principalmente nos
grandes centros urbanos. Em nosso caso de análise, essa realida-
de se aproxima do que vivenciam as PSR, muitas das quais não se
adequam ao paradigma das normas do cuidado corporal, mental e
da sanidade do psíquico. Mas é interessante perceber como o cor-
po, geralmente cansado, maltratado pela vida na rua, dialoga dire-
tamente com seu habitat, comumente degradado, e como a mente
responde a estímulos e faz com que o entendimento de si e da vida
se mantenha.
Os abrigos improvisados, as casas abandonadas e os ter-
renos a esmo parecem estar ligados aos baldios, pois são onde essas
experiências complexas se associam à vida de seus habitantes. Toda-
via, a marginalidade, a invisibilidade e, por vezes, a criminalidade
fazem com que exatamente esses baldios sejam associados pejo-

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rativamente a pessoas vagabundas, perigosas e sujas. Sennett (ID.,
op. cit.) reflete sobre o corpo e a cidade na civilização ocidental,
com engendramentos à mente e a imaginações integradas ao eu e
ao outro, remetendo-nos a pensar acerca das representações da car-
ne (corpo) integradas pela pedra (cidade), ou seja, os sofrimentos
físicos e psíquicos suportados por homens e mulheres no cenário
de urbes.
Estar na rua é seguir um caminho diferente do trilha-
do por outras pessoas, uma escolha difícil em meio a uma vida
que pode se tornar efêmera, e há momentos de extrema angústia
existencial, pois são vidas que têm como núcleo o sofrimento. Na
rua ou em qualquer outro lugar, tão ruim quanto a violência física é
a violência psicológica e as PSR são atingidas física e psiquicamente.
No presente, em nosso Brasil distópico, no que se refere às PSR, não
se almeja justiça social, mas procura-se por vingança a partir da
violência física ou simbólica. Na rua, higiene social, linchamento e
agressões muitas vezes gratuitas fazem com que se reviva a lei de ta-
lião: “[...] olho por olho e dente por dente”. São práticas recorrentes.
Nesse sentido, notamos a presença do ideário de higienismo que se
traduz em violência.
As PSR vivem em estado de constante medo. São propen-
sas a adoecerem mentalmente por não serem tratadas como seres
humanos. Em alguns casos constatados por nós em campo, um
abraço e uma conversa valem tanto quanto um prato de comida. A
necessidade de apoio emocional em busca de equilíbrio e paz é uma
necessidade. Daí, questionamos: em que medida são concebíveis
apropriações de espaços públicos de âmbito coletivo em sentidos
vários? Até que ponto supomos reapropriações de espaços ante dife-
rentes intenções? Estar na rua é uma escolha que tende a ser tomada
por profusões de significados paralelos entre si, mas multiformes
comparativamente? São questões que auxiliaram nas interpretações
de campo e foram postas a nós para ajudar na avaliação etnográfica,
as quais se distribuíram em razão de cenários formados por pessoas,
comidas, bebidas, lixos, odores, músicas, violências, drogas, sexos,
amores, afetos, dramas e felicidades.

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Foram distintas cenas da vida cotidiana das PSR experi-
mentadas, em tantos cenários híbridos e em diferentes lugares de
trabalho, descanso ou lazer. Tudo fazendo parte do desfecho de um
dia no centro velho da cidade de Manaus, em busca de lugares que
poderiam ser espaços de heterotopia (FOUCAULT, 2003b), enten-
didos a partir do que concerne aos afetos humanos, sendo um con-
ceito que apresenta o seguinte significado possível: tratam-se de es-
paços de liberdade, de multiplicidade de saberes e fazeres, que estão
para além do físico. Na concepção foucaultiana, heterotopia tende a
significar um espaço de convivência de todos, onde novas formas de
comportamentos e significados — construídos a partir da realidade
de pessoas que vivem nas ruas frente ao uso dos espaços públicos —,
criam novos apontamentos para espaços que podem ser compreen-
didos utilizando-se o próprio conceito de heterotopia.
No centro de Manaus podemos identificar lugares que não
deixam de ser também espaços de heterotopia, tal como o definido
por Foucault em contraposição à utopia. Se a utopia representa o es-
paço maravilhoso e bem ordenado, as heterotopias “[...] inquietam,
sem dúvida por que solapam secretamente a linguagem, porque
impedem de nomear isto ou aquilo [...] as heterotopias dessecam
o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam desde
a raiz todas as possibilidades da gramática” (FOUCAULT, 2003b,
p. XIII). Assim, no contexto estudado, o espaço público pode nos
remeter a um caráter não oficial de liberdade que se pretendeu des-
crever. Para esse espaço converge a vida das PSR.
No espaço público, especialmente à noite, as PSR gozam
inequivocamente de passe-livre, rompendo, dessa forma, com a or-
dem estabelecida pelo Estado e as megalomanias do capital. Essa
invisibilidade ante a lei, em diferentes aspectos, é acentuada ou fa-
vorecida ao anoitecer. A noite lhes confere o direito subjetivo à de-
linquência, o convite à desobediência civil e à desqualificação da
ideologia normatizadora da sociedade. Constrói-se, dessa forma,
um universo paralelo de representações e divergente do oficial, mas
ainda convergente nas suas especificidades ao universo dos baldios.
Várias camadas diferentes e conflitantes de humanas-exis-
tências convivem em um mesmo espaço de heterotopia, ou seja, em

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condições não-hegemônicas e libertárias. Foucault (IB., op. cit.) ela-
bora o conceito de heterotopia para mostrar que o espaço do outro,
do diferente, tendeu a ser esquecido e ofuscado pela cultura ociden-
tal. Na sociedade moderna, projeta-se a uniformização, a padroni-
zação, o mais do mesmo, que para Foucault é a razão universal oci-
dental utópica do uno medíocre. A heterotopia, ao contrário da uno
utopia, designa lugares reais, porém não aceitos pela sociedade, pois
em certa medida estão fora do controle e expõem comportamentos
e condutas diferentes. No texto Outros espaços, em original de 1967,
com tradução em 1984 (2003b), Foucault conceitua a heterotopia
como conceito que abrange as diversas oposições à utopia, ou seja,
na heterotopia os lugares são absolutamente diferentes de todos os
posicionamentos que refletem a estandartização.

[...] espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, em-


bora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por
serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos
que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em
oposição às utopias, de heterotopias; e acredito que entre as
utopias e estes posicionamentos absolutamente outros, as he-
terotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência
mista, mediana, que seria o espelho. O espelho, afinal, é uma
utopia, pois é um lugar sem lugar (FOUCAULT, 2003b, p. 415).

Esses conceitos continuam atuais, sendo discutidos e apli-


cados em nosso caso para tecer ponderações teóricas sobre a con-
juntura agregada aos participantes do estudo, os baldios, levantando
questões sobre outros espaços de vivência no centro velho de Ma-
naus e também demais autores, como Dehaene e De Cauter (2008a,
2008b), resgatam o conceito de heterotopia para estudos de teoria
urbana contemporânea e espaço público/privado. Nessa relação
entre espaço público e privado ressaltamos a genealogia da palavra
“público”, que nos remete ao bem comum, a ambientes de gover-
nabilidade e visibilidade, coletivos, criados para atender a todos. Já
espaços privados se destacam por atender a uma parcela restrita de
pessoas, de privilegiadas, familiares e de amigos íntimos.
Confrontam-se espaços públicos, relacionados a sentidos
históricos, ou seja, ambientes de convivência de todos, e espaços pri-

- 77 -
vados, com características identitárias, onde se assume esse público
como privativo. Sobre o disposto, Defert (2009), Johnson (2013),
Sohn (2008) e Martins (2002) fizeram apropriações para seus es-
tudos empregando conceituações referentes a diferentes campos
de pesquisa que articulam saberes e poderes. Defert (2009) e Sohn
(2008) trabalham com a ideia de heterotopia de Foucault (2003) e
observam que o termo traz implícitos sentidos de heterogeneidade e
diferença, sugerindo um estado de anomalia que é ao mesmo tempo
espacial e morfológico.
Martins (2002) colabora quando discute as concepções de
tempo, espaço e história em Foucault (2003), igualmente destacan-
do heterotopias em oposição a utopias e designando alocações que
fogem do conceito de lugar real, indicando possibilidades de espa-
ços outros que podem ser essenciais, apesar de fundamentalmente
irreais. Johnson (2013) disserta a respeito do uso do termo na críti-
ca literária, espraiando a explicação para diferentes áreas de estudo,
como o trabalho com ilustrações de heterotopia.
A significação do conceito de heterotopia, enfim, espraia-
-se por sobreposições de elementos em um mesmo tempo e espa-
ço, formando múltiplas espacialidades que coexistem e dão vazão
a diversas construções, projetos de várias interpretações possíveis,
sonhos, dramas, tragédias e/ou comédia. Nas palavras de Foucault
(2009, p. 415), “há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer
cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos e lu-
gares delineados na própria instituição da sociedade que são espé-
cies de contra posicionamentos”. O autor aposta, em razão da afir-
mativa, que existem lugares de fala distantes de lugares efetivamente
ocupados enquanto posição social. Sugere, assim, “que se pode en-
contrar no interior da cultura lugares que estão fora de todos os lu-
gares, embora eles sejam efetivamente localizáveis” (IB., op. cit.).
Para dispormos da ideia de heterotopia, foram assumi-
das as seguintes perguntas como componentes do estudo: Qual a
finalidade utópica do espaço público? Seriam lugares harmônicos
ou desarmônicos, de convivência, lazer, trabalho, entretenimento
ou beleza estética? Quais antagonismos podem ser sugeridos para

- 78 -
espaços públicos e privados? E, por fim, até que ponto o espaço pú-
blico é incorporado por setores privados, utilizando-os como tal
para fins pessoais? Respostas possíveis para as questões podem ser
indicadas a partir da noção de que o Estado e o livre mercado, em
ampla medida, contribuem para a eugenia usada como higienismo
público dentro de concepções de progresso, de civilização e pure-
za de raça, caracterizadas por indivíduos saudáveis e por controles
de espaços públicos mediante a utilização de aparatos repressivos
(STEPAN, 2004).
Nessa mesma linha de ordenação de espaço, Foucault
(1985) fala de formas de controle do tempo e do espaço, além da
vigilância do olhar disciplinador. Nos seus estudos procura mostrar
a intenção do adestramento das pessoas com o intuito de construir
uma disciplina para seus corpos (eugenia/higiene), que também po-
deria funcionar como forma de submissão. Segundo ele, a possibi-
lidade de higienização de espaços e corpos associada ao progresso
tentou, nesse âmbito, criar corpos dóceis, mais afeitos a obedecer e
trabalhar (IB., op. cit.).
Atualmente acompanhamos esse tipo de mentalidade sen-
do reafirmada por meio de ações truculentas, muitas vezes arbitrá-
rias, contra dependentes químicos e/ou usuários de psicotrópicos
do centro velho da cidade de Manaus. Isso quer dizer que espaços
públicos tiveram e ainda têm seu uso destinado a uma parcela da
população apenas e não a outrem. São intervenções assépticas e se-
gregadoras que concorrem para descaracterizar o sentido de espaço
público, ou seja, o sentido de espaço dialético, onde se exercita a ex-
teriorização dos conflitos e das discordâncias (LEITE, 2002). Sobre
o tema, Bakhtin (2010) trabalha espaço público notando tendências
a sociabilidades, ou seja, percebendo que encontros de habitantes
de cidade se dão em espaços com visibilidades privilegiadas. Mas
quando a cidade cresce há uma disposição a privatizar esses espa-
ços, que vão ficando cada vez mais reduzidos para o fim ao qual se
destinaram originalmente.
Sennett (1999), especificamente, discute a morte do espa-
ço público na sociedade contemporânea, assinalando a valorização

- 79 -
exacerbada da vida privada em detrimento à vida pública esvaziada.
O autor expressa certa desesperança na humanidade e notamos que
suas ideias colaboram com nosso trabalho quando pensamos em
espaço público como ambiente de precaução e sociabilidade de bal-
dios. Principalmente nos espaços públicos essas pessoas deveriam
se conectar com a consciência de si ante o outro, porém o que acon-
tece é que acabam se afastando de outros indivíduos por se julgarem
diferentes, preferindo relacionamentos entre pares na tentativa de
se prevenir contra tudo de ruim que a rua supostamente representa.
Bakhtin (2010), margeando a problemática, supõe que
espaços públicos se tornaram obstáculos para a convivência e a in-
teração de ideias na atualidade. Percebemos, portanto, a descarac-
terização da funcionalidade do espaço público enquanto território
afetivo. Por essas e outras razões, denunciamos o declínio e a morte
da pessoa pública sem-teto no centro velho de Manaus. Uma de-
núncia ancorada nas mudanças substanciais causadas pelas trans-
formações capitalistas na segunda metade do século XIX na capital
amazonense, a qual gerou o aumento da industrialização juntamen-
te com a densidade demográfica, o que pareceu projetar uma ten-
dência de fuga das pessoas dos espaços públicos.
O disposto as compeliu a se protegerem em alguns espa-
ços privados, onde acreditaram estarem livres de desordens sociais.
O domínio público passou, então, a ser visto como lugar de des-
regramento, espaço de permissividade, contrastando com o lugar
privado, da decência, do moralmente correto, do familiar (SEN-
NETT, 1999). Para Foucault (1985), urbanizar, ao ter o sentido de
policiar, controlar a partir do Estado e do mercado a circulação e o
fluxo de pessoas e mercadorias, caracteriza-se como ato de controle
e vigilância. Na conceituação (IB., op. cit.), “policiar” e “controlar”
integram a ideia da sociedade civil que almeja a ordem. O conceito,
porém, vai além e correlaciona-se à ideia de ordenamento moral do
espaço público a partir da força, ou ainda, da regulação da vida na
cidade pela administração pública.
O significado foucaultiano do que estudamos em Manaus
reporta modos de controle e punição para pessoas indesejáveis, que

- 80 -
estão fora de cárcere, por exemplo, mas continuam sem aceitação
perante a sociedade. Ou seja, para o pensador francês a noção de
prisão não se configura necessariamente encerrada por barreiras
físicas, em uma cadeia, mas, sobretudo, é entendida enquanto po-
lítica de Estado institucionalizada em atos de punição, correção e
controle. Há semelhanças entre urbanizar e policiar. O nascimento
das zonas habitáveis pelos baldios no centro de Manaus, assim sen-
do, veio acompanhado do policiamento como parte da organização
espacial e de controle. Principalmente em meios coletivos, os dis-
positivos locais de segurança (polícia) prometeram garantir a vida
e a paz coletiva, mas cada vez mais estão a exercer vigilância (vide
câmeras de segurança). A cidade passa a ser assegurada por vigília,
assemelha-se a uma cidade antiga, com muros em volta, com guar-
das rondando, para evitar invasores inimigos.
Na história, em quase todo o Oriente Médio, do Egito An-
tigo ao Vale do Indo, as estruturas das cidades seguiram modelos
que privilegiaram a segurança associada a controle e punição de ha-
bitantes. Assim aconteceu também na Acrópole Grega Antiga e na
Roma Ocidental e Oriental, além da cidade de Constantinopla, a
qual seus muros resistiram dez séculos aos invasores. As aldeias se
transformaram em cidades com o aparelhamento privilegiado das
autoridades, estabelecendo-se grupos de dominantes e hordas de
subalternos. Entre esses espaços públicos e privados se desenvolve-
ram as tensões nas cidades pós-liberais. Hoje, as edificações estão
cada vez mais sendo construídas com o uso de grades e espessos
vidros em paredes, portas e janelas, quem sabe em uma tentativa de
aproximação do privado como continuidade do público (BENEVO-
LO, 1997).
O crescimento urbano ao longo dos séculos foi forçado
principalmente pelo aumento populacional, por sua vez impulsio-
nado pelas melhorias de condições de vida da população, ou ao me-
nos a tentativa disso. As cidades cresceram estimuladas por vários
fatores, como i) desenvolvimento da medicina; ii) diminuição de
taxas de mortalidade; iii) reordenação urbana; iv) criação de leis;
v) desenvolvimento industrial; vi) serviços públicos; vii) melhor

- 81 -
perspectiva de vida; viii) êxodo rural e xix) avanços tecnológicos
na agropecuária (maior oferta de alimentos). Dessa forma, a ideia
de urbanização, que deu origem a grandes regiões metropolitanas,
concretizou as ações do Estado como sendo reguladoras de políticas
de segurança.
Acerca do tema, Le Goff (1998, p. 72) assegura que “[...] a
cidade é, com relação ao campo, à estrada e ao mar, um polo de atra-
ção de segurança”. De outra forma, Lefebvre (2001) sugere a diferen-
ciação entre a cidade e o urbano, onde o primeiro termo comporta
a realidade arquitetônica, presente, imediata e dada. Já o urbano
seria a concepção da realidade composta de relações subliminares,
criadas, erguidas ou reconstruídas a partir do pensamento. Lefebvre
(2001, p. 48) define a cidade como uma rede de circulação e consu-
mo. Para ele, a cidade é o centro de decisões, que podem ser arbi-
trárias e perigosas. Mas, sobretudo, a cidade é de todos e todos têm
o direito à cidade, dado que são vários os processos de intervenção
urbana (de urbanização) a fugir da legalidade para legitimar a ideia
de ordem em urbes.
Esses processos são orientados por estados de medo dis-
farçados de atos legais, que promovem expurgos de indesejáveis,
disciplinamento de apartados e ordenamento de desviantes. Criam
atos de segurança invocados como meios de intervenção ante um
suposto caos urbano, acionando dispositivos balizados por violência
e impetuosidade, duas condições essenciais para que, segundo essa
visão de mundo, na sociedade civil sejam levantadas as bandeiras de
liberdade e a humanidade. Na prática, as redes de controle tendem a
representar a consolidação de espaços policiados pelo Estado, com
fins de transformação do teor coletivo em espaço de privações por
meio do estabelecimento de regras nos seus usos e costumes.
Essas modificações no meio urbano tendem a não consi-
derar espaços estabelecidos pelo outro, aqui estudado mediante a
óptica das pessoas em situação de rua no centro velho de Manaus. O
espaço do outro, o baldio, é desconstruído para dar lugar ao espaço
legitimado pelo poder público. A gênese da palavra heterotopia (he-
tero: diferente, topia: lugar, espaço) remete a lugares reais, apesar de
serem lugares que não são aceitos, de onde emergem conflitos e ten-

- 82 -
sões relacionados ao poder de uma sociedade que se quer determi-
nante. A sociedade, então, produz heterotopias (FOUCAULT, 2003,
2009) que auxiliam na proposição de respostas para o disposto a
partir da alegoria do espelho. Em Estética: literatura e pintura, mú-
sica e cinema, essa alegoria é descrita da seguinte forma: é um lugar
sem lugar, é uma imagem projetada, não real, pois o que se vê na
frente do espelho é apenas uma projeção virtual de onde estamos,
um não lugar refletido no vidro, onde não posso estar porque na
verdade estou aqui e não lá. “É a partir do espelho que me descubro
ausente no lugar em que estou porque eu só me vejo lá longe” (FOU-
CAULT, 2009, p. 415).
A utopia do espelho nos permite olhar para onde estamos
ausentes, mas antagonicamente nos dá, nessa mesma ausência, a
nossa própria visibilidade. Enxergamo-nos e nosso olhar de qual-
quer forma é direcionado a nós mesmos, materializando-nos aqui
e além, no real e no irreal. Para Foucault, “[...] o espelho funciona
como uma heterotopia no sentido em que se torna esse lugar que
ocupo no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo
absolutamente real em relação com todo o espaço que o envolve”
(2009, p. 415). E complementa: “[...] o espelho também é absoluta-
mente irreal, já que as pessoas são obrigadas, para serem percebidas,
a passarem por aquele ponto virtual que está lá longe” (IB., op. cit.).
Consideremos ainda acerca dos baldios de Manaus a he-
terotopia pensada por Johnson (2013), que incentiva o estudo de lu-
gares outros em uma atividade de contestação ao espaço onde vive-
mos, dado que “encoraja que tais lugares outros sejam usados como
pontos de partida para a pesquisa tanto enquanto objetos como
enquanto conceituação, rompendo com ideias, práticas e subjeti-
vidades estabelecidas”21 (ID., op. cit., p. 800). Poder-se-ia falar em
variadas formas de heterotopia, mas para enfocar no propósito do
estudo as duas principais utilizadas foram: i) heterotopias de crise
e ii) heterotopias de desvio. A primeira ocorre nas sociedades “pri-
mitivas”, onde há lugares privilegiados, ou sagrados, ou proibidos,
21 Citação contida no trabalho Outros espaços e tempos, heterotopias. Luiz Guilherme Rivera de
Castro FAU Mackenzie, São Paulo, Brasil. E-mail: luizguilherme.castro@mackenzie.br no evento 1º
CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇOS PÚBLICOS realizado nos dias 19, 20, 21 e 22 de outubro de
2015, no Centro de Eventos do Prédio – 41. Campus Central da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre.

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reservados a indivíduos que se encontram, em relação à sociedade e
ao meio humano no interior do qual vivem em estado de crise.
Nesse caso estamos falando de adolescentes, mulheres na
época da menstruação, mulheres de resguardo e velhos. Para subs-
tituir essa heterotopia de crise, que tende a desaparecer, destacamos
a outra forma, que é a heterotopia de desvio. Como o próprio nome
indica, representa a alteração de comportamento em relação à mé-
dia ou mesmo à norma estabelecida pela sociedade. Ao determinar
a norma, o Estado e o mercado exercem poder e controle de corpos
e mentes. Portanto, os desvios de comportamento são entendidos
como desvios da norma, passíveis de punições e acontecem princi-
palmente em hospitais, clínicas psiquiátricas, prisões e até casas de
repouso e asilamento. Embora não tenha usado com muita frequên-
cia o termo, Foucault baseou boa parte de suas obras nas ideias de
heterotopia.
Em Microfísica do poder (1985), Vigiar e punir: nascimento
da prisão (1987), As palavras e as coisas (1999), A vida dos homens
infames (2003a), Outros espaços (2003b) e Segurança, território e
população (2008), dentre outras, ele descreveu a problemática, tra-
zendo o disposto para a questão na tese, em paralelo ao que afirma-
mos: justamente são em espaços singulares, de rua, ou seja, espaços
diferentes daqueles formais, cotidianos, onde se erguem espaços de
heterotopia. Em ambientes não formais, e assim ocorre no centro
velho de Manaus, há outras lógicas de funcionamento, que fogem
a padrões tradicionais. Nestes espaços, onde se dão práticas e com-
portamentos de baldios, formam-se micropoderes que vão além de
regras e normas estabelecidas pelo Estado e pela força do mercado.
As pessoas em situação de rua estabelecem espaços outros,
de transgressão, na forma de heterotopia, sendo que seus espaços se
contrapõem a espaços da cidade que se quer utópica, uma cidade
ordenada, limpa, urbanizada, saneada e bela. Uma cidade utópica
que não existe. Enfim, os espaços da cidade podem servir a diversi-
ficados propósitos, desde o ir e vir até a ociosidade em determina-
dos pontos, além da contemplação e da peregrinação (ao flâneur e
ao outsider), acomodando diferentes territórios e temporalidades,

- 84 -
constituindo-se como lugares sobrepostos que ganham seus pró-
prios significados com a vivência de cada um de seus moradores. E
ao trabalharmos com indivíduos heterogêneos na cidade manauara,
que dentro da sua invisibilidade tentam sobreviver ao sistema que
os exclui, notamos que eles forjam espaços de heterotopia porque
assumem novas exterioridades como meio de vida urbana.
O urbanismo no centro velho de Manaus se refere a modi-
ficações na cidade, a intervenções no sentido de restituir uma deter-
minada população dos espaços públicos enquanto lugares de frui-
ção. Por meio da urbanização, há a requalificação da cidade, ou seja,
a modificação de espaços que facilitam a mobilidade, promoven-
do o embelezamento (com a abertura de ruas e avenidas), em uma
tendência a promover a socialização dos fazeres (trabalho e lazer).
Porém, o urbanismo também forma imbricamentos para compor
o cenário da marginalidade e da invisibilidade, pois mexe na arru-
mação de trajetos a partir de onde prevalece um sistema próprio
de convivência. Assim sendo, partindo de um viés antropológico,
vimos grupos de sujeitos que perambulam pelo centro velho como
componentes de uma história local, a história dos baldios.
A batalha deles para existir é premente, mesmo dentro dos
espaços de heterotopia criados nas ruas e calçadas manauaras, onde
a invisibilidade ora funciona como mazela, ora como elemento de
existir nos espaços simbólicos formados pelas PSR. Dentro dessa
seara de complexidade, tentamos perceber a configuração dos espa-
ços simbólicos situando-os no campo dos signos e dos significados
concernentes à integração social — o que remete esses espaços a
espaços de subversão e de poder imagético, como aponta Bourdieu
(2002) quando fala do poder das palavras, especialmente das pala-
vras de ordem, implicando diretamente em poder de manter a or-
dem ou de subvertê-la. É a crença da legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia que lhes confere poder.
Os espaços de subversão aproximam-se dos espaços simbó-
licos no âmbito das práticas e das preferências constituintes de signos
distintivos, através dos quais agentes sociais se reconhecem. Dessa for-
ma, espaços simbólicos apareceram no nosso trabalho até aqui como
espaços de ressignificação e de poder no centro da cidade velha, onde

- 85 -
as PSR interferem neles em nível estrutural e com seus sentimentos e
sensações de pertencimento, de valores, de crenças e de cultura. Ao fa-
zerem uso da rua como lar os baldios incorporam elementos de ligação
íntima com esses espaços por meio da percepção e da representação.
Eles se aproximam de tendências envolvendo topofilia22, almejando
ainda a adição de sentimentos positivos sobre o lugar, imprimindo
além da forma afetiva o sentido existencial (TUAN, 2012).
Em analogia às representações sociais, apresentamos a im-
portância da percepção sob a ótica de Merleau-Ponty, que relaciona de
alguma forma o mundo-vivido a sentidos do ser-aí-no-mundo-com-
-os-outros. Ou seja, o mundo vivido só pode ser percebido de modo
pleno por meio do movimento de relação com ele, com os outros, ex-
perimentando a realidade (MERLEAU-PONTY, 1984, 1990, 1999).
Os baldios do centro velho, assim sendo, parecem tentar e de alguma
forma fazer a sobreposição dos espaços simbólicos em meio aos papeis
funcionais desses espaços. Porém, elas comunicam-se diretamente com
suas memórias afetivas, sem intermediários, com os vínculos emocio-
nais ligados à sociabilidade. A partir dessa ligação direta, desenvolvem
fortemente o pertencimento a um grupo com características afins, con-
seguindo sobreviver em meio a um inferno de problemas.

22 Entendido como sendo “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico”.

- 86 -
CAPÍTULO IV
Os marginais e invisíveis que nos vigiam

4.1 O trabalho e os espaços de fuga das PSR


O título do capítulo contém uma provocação acadêmica
categórica. As denominações “marginais” e “invisíveis” são propo-
sitais para afirmar que pessoas em situação de rua vivem exatamen-
te assim, sendo consideradas pela sociedade em razão do âmbito
do seu trabalho e de suas escolhas de vida. Tanto a marginalidade
quanto a invisibilidade a elas atribuídas implicam na construção de
uma ideia de gente nociva, baldia, que está no mundo apenas por
causa de seus espaços de fuga e da sua suposta vagabundagem. Em
função da premissa, há a inconstância estrutural do Estado e do ca-
pital privado em atender minimamente a condições de reparação
e assistência a esses coletivos violentados. O movimento político-
-econômico no Brasil, pelo mesmo caminho, na recente década,
principalmente, aprofundou cortes orçamentários e ampliou a falta
de postos de trabalho para as PSR, que estão sendo fechados cons-
tantemente e fazem surgir meios ainda mais propícios à exclusão e
ao anonimato social.
Dessa maneira, inferimos: em que medida representações
sociais criadas pela elite capitalista, pela classe média e pelo Estado,
este em boa monta sequestrado pelos interesses do capital priva-
do, tentam colocar o trabalho como sustentáculo à moralidade ética
do trabalhador? É uma conjuntura problemática porque as PSR se
inserem e são vistas como perigosas porque oferecem ilusórios pro-
blemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem
pública. Estar em situação de rua, por isso, sempre tem a ver com o
fato da caminhada por um terreno fértil para a desigualdade e a ex-
clusão sociais. Dessa forma, alocando no desemprego os princípios
de negação e objetificação do outro, do marginal, da não-pessoa,
trabalhamos o estigma de Goffman (2011), quando relata que gente
“normal” age com gente “estigmatizada” como se esta guardasse em

- 87 -
si mesma todo um bojo de despersonalizações e desrealizações, em
suma não existindo.
Como é duro e humilhante carregar a fama de um homem
desempregado! Quando saio, baixo os olhos porque me sinto
totalmente inferior. Quando ando na rua, parece-me que não
posso ser comparado a um cidadão comum, que todo mundo
está me apontando. Instintivamente evito encontrar qualquer
pessoa. Conhecidos e amigos antigos de melhores épocas não
são mais tão cordiais. Quando nos encontramos, eles me saú-
dam com indiferença. Não me oferecem mais cigarros e seus
olhos parecem dizer ‘você não tem valor porque você não tra-
balha’ (GOFFMAN, 1980, p. 18).

O que parece é que a significação do papel do indivíduo


na sociedade se configura por aquilo que o sujeito oferece a essa
mesma sociedade, ou seja, sua produção dentro dela por meio do
trabalho. Quanto maior a produção e mais significado tem para o
meio onde vive um sujeito, igualmente o poder e a visibilidade au-
mentam e também a recíproca é verdadeira. O que personifica ou
despersonifica uma pessoa em situação de rua, aos olhos da socie-
dade, na nossa percepção, talvez seja a forma de viver. Se destoa do
que se espera de mim, então não se trata de uma pessoa, mas sim
de um objeto. E o que a torna invisível? Talvez pensemos que esses
sujeitos (os baldios) não querem ser vistos ou só são vistos quando
sua mão de obra se torna necessária. Engano nosso. Estão aí para
serem notados. Querem visibilidade, sim.
Jackson, 34 anos, pessoa em situação de rua que vive no
centro velho de Manaus diz o que sente. “Estou todo dia aqui, no
centro, e vejo as pessoas passarem e algumas ficam me olhando e
olham pra cara da gente com nojo, mas eu nem ligo. Eu não ando
rasgado, não, senhor! Ganho roupa nova toda semana e fico pre-
sença” (Jackson, PSR, 34 anos). Nessas palavras, percebemos uma
rede de construção de identidade própria às PSR. A solidariedade
dessa rede, por assim destacar, advém também de Igrejas Católicas e
Evangélicas; Grupos Espíritas; ONGs e de iniciativas particulares de
grupos de cidadania. Observamos pessoas que exercem a caridade e
compreendemos que não é só o estigma, o desvio e a marginalidade
que existem. Na rua se trabalha, e muito.
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Há o lado de compreender o outro como ser humano que
necessita ser ajudado para além de situações ligadas ao ato de esmo-
lar (manguear). Concluímos que devemos atentar para o fato de que
talvez a invisibilidade aconteça de fora para dentro, ou seja, partin-
do de um acusador que pode ser aquele residente fora desse meio,
externo aos baldios. Entre indivíduos que convivem no mesmo
espaço público e compartilham de similar vida social, não há essa
barreira aparente. Nossa proposta investigativa resultou em ponde-
ração sobre a vida social de interatividade entre os pares sem-teto na
partilha de biscates, trabalhos, alimentação, jogos, abrigo, proteção,
mulheres, homens, sexo, afetos, drogas e bebidas. Se círculos sociais
são formados por afinidade ou encerrados por disrupção, é certo
afirmar que todos fazem parte de processos de socialização.
O interlocutor contatado por nós ponderou que não pos-
sui amizades “só da hora da cachaça”. Perguntamos ao nosso entre-
vistado e ele destacou que “morar na rua fica difícil porque não há
banho, proteção e teto”. O questionamento foi feito ao maranhense
Jackson, que vive no Estado do Amazonas desde 2013 está nas ruas
do centro velho de Manaus já há algum tempo.
Compreendemos ser escolha dura desfrutar da “liberda-
de” que a rua oferece. Apesar das pretensas facilidades vistas pelo
senso comum, como a vida por doações e esmolas, sem ter que dar
satisfação a ninguém e não pagar impostos, nem de longe é tarefa fá-
cil a adaptação às exposições à chuva, sol, calor, frio, fome, doenças,
sem higiene e privacidade alguma. A vida na rua cobra um preço
alto, da indiferença e do menosprezo. A situação se torna grave pela
falta de trabalho formal, que coloca as PSR no conjunto de pessoas
transgressoras da ordem estabelecida. A própria denominação já
entrega: são baldios. Será que se vive sem trabalho? Ora, encontrar-
-se sem trabalho não significa ser desocupado, muito menos viver
uma vida sem tensões. As pessoas em situação de rua, por exemplo,
despertam com a cidade, logo cedo, em um constante cotidiano de
excitação, ansiedade e medo. A situação é tão recorrente que mal
dormem ou dormem em estado de vigília. Quando muito, descan-
sam em média quatro horas por noite, segundo relato do nosso en-
trevistado.

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Nos depoimentos e observações no centro velho perce-
bemos que se sentem mais seguros, os baldios, dormindo durante
o dia e ficando acordados à noite. Por esse motivo é cena comum
vê-los aboletados sob marquises durante o sol a pino. Analisando a
situação, passamos a entender os motivos que levam as PSR a dor-
mirem mais em função da claridade que da escuridão, o que mostra
a controvérsia perante a situação comum acerca da qual a socie-
dade lhes imprime a denominação de vagabundos, preguiçosos e
indolentes. Esse foi o começo da primeira lição que aprendemos nas
conversas nas ruas do centro velho de Manaus: compreendemos que
viver na rua cansa, esgota e deprime.
A exposição da vida ao público, fazendo de ruas, praças,
mercados, puxadinhos e locais abandonados os cômodos da própria
casa, consolida-se como realidade na medida em que a construção
de uma casa imaginária é realizada a partir de um desafio diário.
Outro questionamento que acompanha a questão do lar foi sobre
as pessoas em situação de rua viverem sem trabalhar formalmente.
Esta é uma visão errada, uma falsa dicotomia entre ter ou não traba-
lho, porque a rua é o próprio labor cotidiano, a própria experiência
de emprego. É o trabalho em si concretizado diante de uma ocu-
pação para a subsistência, por exemplo, de carregador, flanelinha,
catador de material reciclável ou juntador de sacolão. Enfim, são
ações para se conseguir principalmente a cachaça e a comida que,
em suma, molda a vida dos sem-teto.
Inclusive o próprio ato de manguear (esmolar) é uma ati-
vidade que se coloca como categoria fluida de ocupação, fazendo os
baldios do mangueio transitarem de maneira instável pelo mundo
do trabalho e flertarem com qualquer ato remunerado que possa
aparecer. Algumas características mais fortes que essas pessoas car-
regam é exatamente a identificação com o trabalho incerto e espo-
rádico; com o pedir ou roubar; com a aposta em jogos e lazer; com
a marginalidade e a invisibilidade para manterem-se vivas. Nesse
contexto, o trabalho ou o não-trabalho das PSR, em um sentido
atribuído pela sociedade de controle, passa a ser um mecanismo efi-
ciente de vigilância social porque no momento em que se coloca a

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imagem das PSR associada à vagabundagem ou marginalidade, logo
esses se defendem.
Na fala de um dos nossos interlocutores é recorrente a jus-
tificativa para o uso da palavra “trabalho”. “[...] Eu reparo carro pra
comprar alguma coisinha pra ela (sua companheira Cristiane). Eu
trabalho. Se tem alguma coisa pra carregar, eu carrego. Mas sempre
eu tenho meu trabalho fixo, pra ganhar minha mixaria e não mexer
nada de ninguém” (Daniel da Silva, PSR, 36). Como a vida das PSR
se constitui pela resistência ao controle, pela desobediência civil e
pela marginalidade e invisibilidade estratégicas, o trabalho, mesmo
que informal, funciona como um dos únicos laços que os mantêm
conectados à ordem formal. Então, se por um lado buscam a vida
nas ruas para se manterem libertas, por questões pessoais, por outro
lado têm temporariamente que transitar pelo mundo do trabalho,
tornando-se útil e visível.
Uma indagação possível acerca do mundo do trabalho das
PSR se estabelece assim: como pensar um espaço privado no do-
mínio público? Para tentar respondê-la, buscaremos o significado
de espaço público em Arendt (2007) quando ela destaca que tudo
aquilo oriundo do público, do Estado, pode ser visto e escutado pela
sociedade em geral, tendo grande divulgação e aceitação. A autora
se refere ao mundo comum, onde há vínculos e relações entre indi-
víduos e, para ela, o espaço onde se apresentam inúmeros aspectos
e perspectivas do mundo comum, onde todos podem ser vistos e
ouvidos em ângulos diferenciados por outros, é a vida pública. “O
termo ‘público’ significa o próprio mundo, na medida em que é co-
mum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (ID.,
op. cit., p. 62).
O entendimento se aproxima do que aponta Bakhtin
(2010) quando observa o universo da vida, da praça, das feiras e
do carnaval, estabelecendo concepções relacionadas ao “baixo cor-
poral”, um conceito oriundo do universo rabelaisiano que institui
o realismo grotesco do avesso, caracterizado por escárnio, ironia,
exagero das formas e de ser, estando tudo em maior ou menor vo-
lume no meio social, igualmente como ocorre nas atitudes das PSR.

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Na rua, a extravagância é visível, faz parte do cotidiano de liberdade
dessas pessoas baldias. Nas idas a campo, percebemos os excessos
na comida, na bebida, nas drogas e nos usos dos corpos como refú-
gio. Quando chegam voluntários distribuindo alimento, por exem-
plo, alguns comem até quase vomitar porque não sabem quando
irão comer novamente.
Foi o caso de Breno (PSR, 46 anos, paraibano, marcenei-
ro), que presenciamos jantando por quatro vezes e tentando, mesmo
sem vontade, comer pela quinta vez e finalizar um pet de dois litros
de refrigerante sozinho. Breno comia, ria e falava com amigos ao
mesmo tempo. Estava feliz e saciado com a comilança porque tinha
passado fome nos últimos quatro dias, segundo ele. Breno repre-
sentava a si mesmo dentro daquilo que Rabelais anunciava como
“sujeito de baixo corporal”, ou seja, uma pessoa que se mostrava a
partir de uma dimensão do excesso. A comida renovava a imagem
de si, ora apagada, mas para a sociedade o excesso é considerado
deplorável (BAKHTIN, 2010).
No centro velho de Manaus os espaços atuam como fissu-
ras que vão se abrindo cada vez mais em oposição ao poder estabe-
lecido e às ideologias cristalizadas da sociedade formal. No interior
das práticas discursivas das PSR acontecem inúmeras manifestações
do “baixo corporal”. Elas se dão nas praças, nas ruas, nas esquinas
e nos guetos. Sacodem, desestabilizam, achincalham e zombam das
estruturas ideológicas do poder. A partir dessas ações dos “sujeitos
de baixo corporal” vemos práticas de resistência. Vemos uma recon-
formação dos espaços públicos e uma nova montagem para as for-
mas de vivências. As pessoas baldias, assim, vinculam-se a lugares
públicos ao ponto em que atribuem caráter não oficial às ruas onde
se instalam, trazendo toda uma carga simbólica para suas habita-
ções. E ao trazerem suas vidas privadas para o espaço público — a
cama de papelão, o abrigo improvisado, os animais de estimação, as
plantas e os utensílios domésticos — tentam estabelecer uma resso-
nância entre o público e o privado.
Estão dispostos no espaço público, transformando-o em
alguma medida em privado. Mas é como se não estivessem, como

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se não existissem. O produto do progresso social deveria ser uma
sociedade justa, igualitária, mas o que percebemos no processo his-
tórico é que direitos são conquistados por meio de lutas de classe.
Não fazer parte de uma classe social organizada equivale a não ter
quem represente seus direitos, ou seja, é ser desclassificado nas lu-
tas sociais. Se não bastasse essa situação, a desqualificação aliada à
baixíssima remuneração cria situações crônicas que maximizam o
estigma da desclassificação. E o pior é que a situação pode evoluir
para quadros de degradação humana, onde o sujeito vagueia pelas
ruas, sem esperança, dependendo da caridade alheia para comer,
beber e vestir.

4.2 A informalidade é o próprio desenquadramento


Característica importante que limita e distingue as PSR é
questão do trabalho informal na constituição da vivência cotidia-
na no centro velho de Manaus. Por pressão coletiva ou necessidade
individual, a lógica da ocupação remunerada se faz presente no ter-
ritório ocupado temporariamente porque, embora não diretamente
pensem na acumulação de bens, os coletivos sem teto orbitam mun-
dos do trabalho mesmo em razão de seu desenquadramento. Como
desenquadrados, esses coletivos optam por manguear dia após dia,
granjeando pequenos ganhos, pois precisam de dinheiro para seus
prazeres fortuitos, e para, principalmente, manterem a autopreser-
vação requerida pelas ruas. Importa frisar que podem ganhar dos
seus pares bebida alcoólica, cigarro, drogas, alento e segurança em
alguma medida, mas, por coerção, dádiva ou retribuição a favores
tendem a ser mais aceitos quando há dinheiro envolvido.
Significa dizer que necessitam em muitos momentos de
conseguir dinheiro para não serem pessoas consideradas “escoro-
nas”, parasitas dos seus grupos. O dinheiro, não raro, é conseguido
com muita dificuldade e seu ganho é uma tática de sobrevivência
que pode garantir a manutenção da própria vida. O que se mostra
nesse complexo cenário constitui o ethos de uma mentalidade onde
a lógica capitalista do trabalho assalariado carrega consigo um quê
de status quo entre os baldios de Manaus. A sociedade cria pressu-

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postos voltados a virtudes do homem e da mulher trabalhadores e o
crescimento e o desenvolvimento são propagandeados como fruto
do trabalho.
Bendassolli (2007, p. 117), acerca do tema, destaca que,
especificamente, a carreira trabalhista foi eleita a via principal para
a definição da identidade de uma pessoa na atualidade, bem como
o critério pelo qual outrem poderia avaliar se seu itinerário de vida
havia sido, retrospectivamente, bem ou mal sucedido. “A carreira
tornou-se a principal fonte de autoconfiança e incerteza, de autos-
satisfação, autoreprovação, orgulho e vergonha”. Percebemos a re-
jeição social do outro e ao outro em função da carreira. O não ser
visto, ignorado, o não ser percebido, indiferente a tudo aquilo que
queremos entrar em contato, está atrelado à carreira. É como nosso
próprio entrevistado no centro velho já afirmou anteriormente: “[...]
todo mundo que passa aqui olha pra cara da gente e discrimina [...]
é o buraco mesmo, não tem mais solução” (Jackson, PSR).
Nas falas, em geral, e também na linguagem corporal,
tentamos capturar angústias e desamparos das PSR da capital ama-
zonense. Outra pessoa contatada, Mariana23, desabafou sobre essa
típica lógica do vencedor abordada por Bendassolli (ID. op. cit.). “O
sistema te cobra muito e não te oferece nada em troca”. Ao mesmo
tempo, ao ser perguntada se achava que alguém estava preocupado
com pessoas baldias, como ela, balançou a cabeça veementemente,
de forma negativa e sua fala traduziu muito do que outros indiví-
duos sem-teto já estavam confirmando em campo para nós, a ideia
de invisibilidade. A vida, porquanto, em um mundo globalizado
para si, mas a um só tempo invisível, pautado pela ideologia capita-
lista, onde o trabalho é naturalizado como parte do cotidiano cons-
titutivo da vida das pessoas, pode ser desagregadora. O capitalismo,
hoje, tem construto orientado ao labor febril como disciplina, como
dogma formativo, pois se estruturou na América segundo produto
de concepções luteranas e calvinistas, fixadas na Europa do Sécu-
lo XIX, vindo a se consolidar na contemporaneidade manauara em
função de rigores produtivos que baseiam a vida moderna (MILLS,
1969; MARX, 1971; WEBER, 1996).
23 Nome fictício, pois a pessoa em situação de rua não quis se identificar. Aparentava ter entre qua-
renta a quarenta e cinco anos, interveio várias vezes na conversa que estávamos tendo com outra PSR.

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A construção de mundos do trabalho, ao perpassar por
elementos históricos, sociológicos, psicológicos, religiosos e filosó-
ficos, toma como referência um modelo de atividade ocupacional
do passado, quando gregos já evitavam a mecanização, porém glori-
ficavam a disciplina. Para eles, “o trabalho [tecnicista] embrutecia o
espírito, tornando o homem incapaz para a prática da virtude, mas
podia levar à retidão” (MILLS, 1969, p. 223). O trabalho e o ócio,
assim, foram assuntos polêmicos, principalmente quando debatidos
no meio religioso da antiguidade até a Idade Moderna. O não-tra-
balho esteve associado ao pecado em religiões de linhagem judai-
co-cristã, com suposto fundamento em Gênesis 3:19, “[...] Do suor
do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra”, e em Gênesis
3:17, “[...] Maldita é a terra por causa de ti; e com dor comerás dela
todos os dias da tua vida”. Em parte, mudanças ocorreram a partir
de Santo Agostinho, quando “[...] o trabalho deveria ser alternado
com oração e realizado apenas na medida suficiente para satisfazer
as reais necessidades da comunidade” (MILLS, 1969, p. 234).
O monge revolucionou quando não atrelou o labor neces-
sariamente a pecado e sofrimento, colocando no mesmo plano o
intelectual e o braçal24. Mais tarde, com a ascensão burguesa e a Re-
forma Protestante, a mentalidade mudou mais uma vez. Lutero de-
fendeu o trabalho como virtude e salvação e o ócio como perdição.
Para Lutero, sem trabalho não há vida. As pessoas que não traba-
lham são excluídas, punidas e rotuladas. Não têm estatuto humano,
não têm lugar na sociedade, não têm pertencimento ou identidade.
A religião protestante, assim, foi a grande âncora do capitalismo
moderno e da ideia de atividade laboral, dado que associou a salva-
ção com a labuta e a vontade de Deus para que o outro não cobice o
fruto do trabalho alheio.
Para a nossa atualidade, Marx e pensadores notáveis como
Adam Smith e Max Weber foram os que mais contribuíram no sen-
tido do trabalho, que passou a ser visto como elemento regulador
das riquezas das nações. Ao longo da história, foram se construindo
no imaginário popular representações da pessoa trabalhadora e da
24 Verificar em SALAMITO, Jean-Marie. Trabalho e trabalhadores na obra de Santo Agostinho. In:
MERCURE, Daniel e SPURK, Jan (org.). O Trabalho na história do Pensamento Ocidental. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2005.

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pessoa vadia. Essas representações atenderam a ideias de consolida-
ção do sistema capitalista. No momento em que revoluções burgue-
sas quebraram paradigmas do antigo regime, subjugando a nobreza
e o clero, a nova ordem se solidificou. Usura passou a não ser vista
de forma tão veemente, como pecado. Poder-se-ia lucrar a vontade.
A possibilidade do ganho tornou a ascensão econômica e social viá-
vel (BENDASSOLLI, 2007). Foi o triunfo de uma classe social que
ora mantinha tratamentos com classes diferenciadas.
Aos não burgueses, o povo em geral, homens, mulheres e
crianças, em pouco tempo se projetava a domesticação de corpos e
mentes para o trabalho em manufaturas de linha produtiva fabril na
Inglaterra. Foi o início das rupturas de costumes familiares. Agru-
pamentos de parentelas inteiras foram para as fábricas, onde os do-
nos de meios de produção ditavam normas e condutas, alicerçando
o domínio patrão-empregado. Assim, ao ritmo das transformações
da antiguidade greco-romana, da Idade Média, da Renascença e da
contemporaneidade, percebem-se mudanças na história e nos mun-
dos do trabalho, especialmente nos dois últimos séculos. As cidades
já não eram as mesmas.
Ficaram barulhentas, agitadas, cadenciadas pelo trânsi-
to de pessoas, carros, ônibus, metrôs e motos. Arranha-céus eram
construídos com o advento do aço, ruas eram alargadas e pavimen-
tadas. Imensas pontes foram feitas. O progresso girava em torno do
ideal de cidade moderna movida a trabalho. Ações eram direciona-
das a determinada classe social enriquecida, o que concorria para
aprofundar diferenças sociais e conflitos. As cidades ficaram mar-
cadas por contrastes socioeconômicos. Processos inquietantes de
controle e interferência na vida privada fincavam-se como ideais de
processos civilizatórios em oposição à barbárie (ELIAS, 1993, 1994).
Nos estudos de Max Weber em A ética protestante e o espí-
rito do capitalismo (1864-1920) o trabalho é retratado como modelo
de condição humana. Esse modelo, também compreendido como
vinculado a uma modernidade internacionalizada, foi expandido
com o imperialismo e a globalização, interferindo fortemente nas
economias e culturas dos continentes africano, asiático e americano.

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Eurocentrismo, darwinismo social, eugenia e higienismo foram al-
gumas formas de controle, dominação e exclusão. Para além do tra-
balho e suas peculiaridades históricas, correlacionemos o destaque
com a finalidade de entender um pouco a respeito de sentimentos e
sofrimentos causados ao corpo e à mente das PSR.
E para exemplificar o nosso destaque, temos que o movi-
mento literário conhecido como romantismo popularizou um tipo
de visão pessimista do mundo, extrapolando o sentimento de amor,
mas também a tristeza advinda do desamor e da pobreza. Foi aí
que poetas e romancistas, além de pintores e musicistas românticos
morreram jovens, entregues a males do mundo, à solidão, ao desâ-
nimo e à bebida. Ou tombaram em decorrência de doenças como
sífilis e tuberculose.
Desta feita, de modo parecido, equidistante temporalmen-
te, o sofrimento psíquico das PSR na atualidade, no centro velho de
Manaus, pode ser percebido pela resignação e pelo escapismo. Mas
não sem interjeições particulares. Para a temática das PSR no con-
texto do sofrimento, temos o termo alemão weltschmerz que denota
a dor do mundo e a fadiga por se estar diante da realidade factual. O
termo foi formulado pelo escritor alemão Jean Paul Richter (1827),
na sua obra Selina ou sobre a imortalidade, que retrata um tipo de
sentimento experimentado por alguém que entende a realidade físi-
ca como impossível de satisfazer as exigências da mente. Esse pen-
samento é percebido por Büchmann (1898) como uma dor psicoló-
gica causada pela tristeza, por processos de fragilização enfrentados
por alguém que não se adequa à crueldade física e mental do agora.
A conjuntura traz, portanto, essa interpretação para a nos-
sa seara de análise. Parece a nós que o pessimismo, ao tomar conta
das contingências da existência, rebaixa, diminui e macula a reali-
dade. Mas é tudo direcionado às PSR. E assim queremos destacar
um pouco da ideia de Richter porque ele foi um dos precursores do
tédio da vida e da náusea do mundo enquanto ponto de percepção
da realidade, ambos pensamentos típicos do romantismo do século
XIX e depois do existencialismo. Weltschmerz, nesse sentido de apli-
cabilidade às PSR de Manaus no presente, pode ser um sentimento

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relacionado a depressão, renúncia e fuga, sendo problema provoca-
do em razão da vida na contemporaneidade.
Semelhante a esse termo alemão está a anomia, que de-
signa a falta de objetivos e regras, bem como a fragmentação da
identidade em face de mudanças que ocorrem no mundo moderno.
Podem ser essas alterações de ordem econômica, social ou cultural,
dentre outras, que abalam as pessoas e trazem angústia. Há uma es-
pécie de ruptura com o lugar comum que destrói o mundo como ele
se apresentava, cedendo espaço a um mundo novo que não coloca
como primordial a manutenção de valores, crenças tradicionais ou
identidades de pessoas. Tudo que pareceria sólido de repente de-
saparece ou se torna fugidio. As transformações advindas da con-
temporaneidade, como aventura paradoxal, assim sendo, colocam
as pessoas em unidade, mas ao mesmo tempo em um ambiente con-
flitante e contraditório (BERMAN, 1986).
Mudanças rápidas ocorridas na modernidade não foram
acompanhadas de valores condizentes com o todo, esvaziando o
sentido existencial para muitos indivíduos e aflorando sentimentos
negativos em relação a seu lugar no mundo do trabalho. Sentimen-
tos como agressividade, aflição, angústia, apatia, desapontamento,
dó, decepção, culpa, egoísmo, frieza, frustração, gula, euforia, his-
teria, hostilidade, incômodo, indiferença, indecisão, ira, isolamen-
to, mágoa, mau humor, medo, melancolia, ódio, pânico, pena, pre-
guiça, raiva, remorso, resignação, saudade, solidão, tédio, tristeza e
vergonha, cada um deles, é uma resposta esquizóide que demonstra
a inconsciência de pessoas abandonadas à própria sorte, que esco-
lheram a rua como fuga estratégica. E assim, retomando a temática
do trabalho em relação às PSR, percebemos que o labor braçal, ação
que explora ao máximo a força física, e que, via de regra, é relegada
aos menos favorecidos, mostra-se como repetição do trabalho for-
çado de outrora, da época sombria da escravidão.
No referente ao centro velho da cidade de Manaus, ressal-
tamos que estamos falando de um processo de apropriação e con-
trole feito pelo capitalismo após sua chegada tardia na Amazônia,
como ocorreu em toda a América Latina (JAMESON, 2007), estru-

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turando interesses exclusivos da produção de riqueza para determi-
nado tipo elitista de transformação na dinâmica das classes sociais.
Ademais, considerada a fase de desdobramento da época impe-
rialista e do capitalismo monopolista, o capitalismo tardio, como
estudo teórico marxista, especialmente depois da Segunda Guerra
Mundial, foi marcado pelo crescimento da força produtiva mundial
que engloba principalmente países subdesenvolvidos ou em desen-
volvimento. Com isso, percebemos que o materialismo histórico
não foi suficiente para entender ou explicar modificações provoca-
das por esse modelo de dinâmica de capital (MANDEL, 1976, 1990;
HABERMAS, 1987; MARX, 2004, 2008).
Foram transformações que afetaram diretamente o traba-
lho e o trabalhador em todo o mundo e, lógico, também na cidade
de Manaus. Por vezes, longe do trabalho formal, o trabalhador in-
formal manauara encontrava-se por conta própria, aventurando-se
na ilegalidade para ganhar a vida. E assim ocorreu também com
as PSR. O trabalho, por vezes, para elas, era sinônimo de progres-
so, de existência, mas o não-trabalho, exatamente aquele executa-
do nas ruas, era representado erroneamente como a decadência de
tudo isso. Na capital do Amazonas, a massa de “empregáveis” po-
dia não ter ocupação laboral formalizada, entretanto contava com
algum trabalho remunerado desde sempre: o pescador, o caçador,
o agricultor, o seringueiro, o juteiro, o camaroeiro, o piaçabeiro, o
mateiro, o coletor de castanha, o extrator de pau rosa, enfim, todos
os agrupamentos humanos nativos que detinham expertise aliada a
ocupações tradicionais.
Essas ocupações não estavam necessariamente sob o julgo
direto do capital, embora se nutrisse dele em termos controversos.
Verificamos, assim, que existiram, desde sempre, formas peculiares
de ocupabilidade na Manaus de meados do século XX, que recorria
a culturas tradicionais das terras baixas da América do Sul inseridas
historicamente no âmbito das estratégias de sobrevivência dos po-
vos da floresta. Foram indivíduos e coletivos que mantiveram ativi-
dades em regime artesanal, regionalmente, reforçando a identidade
amazônica, os laços sociais e de afinidade. E muito embora houvesse

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diferenças regionais, o discurso oficial do new deal tendeu não raro
a homogeneizar todos como “trabalhadores”, reforçando a padroni-
zação quanto a ocupações empregáveis e remuneradas.
A padronização, inclusive, esteve contida na frase “o tra-
balho dignifica o homem”. Essa sentença carregada de apelo em ter-
mos da moral capitalista protestante representou, ano após ano, o
slogan do modelo ideal de homem provedor, mantenedor da família
por meio do denominado “trabalho digno”. Esse homem, que arcava
com deveres parentais diretos e significava exemplo para a socieda-
de, era exaltado como bom marido, bom pai, patrão e chefe do lar,
além de honrado e leal. Só que ele contrastava com aquilo que é feito
para mostrar o avesso, que é a falta de trabalho, representado no
indivíduo ocioso, vagabundo, indolente, alcoólatra, desempregado,
preguiçoso, desocupado, que não serve e não existe como pessoa.
Aqui vemos, mormente, uma ambiguidade entre virtude e vício.
A partir dessa óptica, tornava-se necessário, com a ZFM
principalmente, ancorar o discurso positivista de “ordem e progres-
so” para defender o privilégio das classes detentoras de poder, de
propriedade privada e dos meios de produção. O trabalho se tor-
nava, desta feita, o centro de gravidade para a forma comum de
enriquecimento do patronato. As PSR, em campo oposto, ficaram
com o não-trabalho e passaram a ser casos de polícia, pois estavam
indo de encontro à política de progresso e civilização. Não trabalhar
era um modo pejorativo de vida, caracterizado pela vadiagem. Era
uma contraposição à ordem moral, à sobriedade e solidez espiritual.
Esses vadios, baldios, tornavam-se protagonistas da desordem so-
cial, moral e ética.
Fraga Filho (1996), inclusive, pontua críticas acerca do
que seria a tal função do Estado de Direito Brasileiro, que queria
civilizar e restituir a ordem transformando as PSR em “úteis” pes-
soas que enveredaram pelo mundo da “vadiagem”. Uma missão e
tanto. E em Manaus toda essa problemática teve sua espacialidade
deslocada para o centro velho da cidade. As pessoas em situação
de rua na capital amazonense, em boa monta, passaram a reprodu-
zir uma situação global de invisibilidade, marginalidade e rebeldia

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diante da forma com que o ordenamento do universo do entorno
se apresentava a elas. Assim, teceram identidades em justaposição
a suas realidades dramáticas e perturbadoras e, ainda que de forma
estigmatizada, entraram em conflito com o capitalismo ao tomarem
as ruas do centro como lar.
Essas pessoas passaram a fazer parte da paisagem urbana e
ao mesmo tempo se apropriaram dela como mobiliário de convívio,
como estratégia de sobrevivência, tendendo a camuflar suas exis-
tências. Em alguns momentos, quanto mais invisíveis melhor. Esta
era a meta, tendo em vista produzir as próprias contradições para a
autopreservação.
Manaus, hoje, como o sétimo maior município em núme-
ro de habitantes do Brasil, tem mais de dois milhões de moradores e,
com esse volume populacional, a metrópole desenvolveu problemas
similares aos das maiores metrópoles do Brasil, ao longo dos anos,
no que se refere ao trato com os sem teto (KESSLER e USTUN,
2014), sobretudo aqueles impactados por efeitos de sofrimentos psí-
quicos. E, como supomos, foi a partir de alterações nos mundos do
trabalho e nos modos de vida que contradições do espaço urbano se
pronunciaram no centro velho da cidade, impulsionando a ocorrên-
cia de diferentes enfrentamentos.
Sobre essas contradições e os rebatimentos delas, aqui as-
sumimos que as PSR mesmo enfrentando situações adversas se man-
têm na resistência na atualidade. Carregam histórias e realidades
atribuladas dentro de um espaço de invisibilidade no centro, confi-
gurado historicamente como condição crônica de permanência. De
forma espontânea ou não, nessas ruas conhecidas permanecem em
face de uma distinta apropriação do espaço público como lócus do
agora. Nos ambientes de marginalidade construídos, transitam e es-
tabelecem relações de apropriação, domínio, afetividade e cuidado,
criando laços de pertencimento e moldando suas territorialidades.
A territorialidade passou a ser entendida como assimilação senti-
mental do espaço, apropriação em forma de afeto, enquanto termo
geográfico também de apropriação identitária (RAFFESTIN, 1993).
Constituiu-se, assim, um espaço ressignificado.

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Notemos os casos narrados a seguir.

Benedito25, aproximadamente 65 anos, alega morar nas


ruas há mais de quatro décadas. Estabeleceu como espaço de mo-
rada o corredor de paradas de ônibus da Praça da Matriz, centro
da cidade de Manaus. Lá é seu lugar de pertencimento. Sente-se em
casa naquele ambiente, como se dele fosse parte integrante, segun-
do afirma. Cabelos e barbas esbranquiçados, corpo franzino, apre-
sentava quando nos falamos uma grande ferida no pé direito que o
forçava a ficar boa parte do tempo sentado em um papelão, pedin-
do esmola. Não muito longe desse corredor de paradas de ônibus,
na calçada lateral do mercado Adolpho Lisboa, também no centro,
encontramos Dona Tude, uma senhora que aparenta uns 60 anos,
trajando roupas rasgadas e sujas, cabelos desgrenhados, descalça,
com pele bastante queimada de sol e sem dentes. Apontada pelos
companheiros da rua como a mais antiga moradora desses espaços
de invisibilidade, parece estabelecer alta relação de intimidade com
o lugar. Pelas informações dadas por colegas, são aproximadamente
30 anos na beira do mercado, seu lugar preferido. Segundo nossas
entrevistas, ambos costumam beber muita cachaça e “bodar”26 ali
mesmo, passando o dia inteiro dormindo no local.
Benedito e Tude vivenciam suas marginalidades e invisi-
bilidades dentro de um ambiente onde o trabalho formal está longe
de acontecer para eles, onde a rotina dessa tal formalidade é inexis-
tente. Nas territorialidades dele e dela, o factual opera as condições
de vida, principalmente na beira do mercado municipal Adolpho
Lisboa. Benedito e Tude apresentam vivência diária orientada pela
formação de uma invisibilidade não programada, mas sim moldada
segundo redes de relações complexas, marginais, que são condições
sine qua non para suportar a dinâmica do centro velho. Configu-
ram-se em territórios de anonimato, de esquiva e esconderijo, que
ao se transformarem em territorialidade sentimentalizada apreen-
dem não apenas o espaço geográfico, mas abrem diálogo direto com

25 Os nomes serão modificados para preservar a identidade dos interlocutores.


26 Termo utilizado para quem, de porre, é tomado pelo cansaço extremo e “apaga” (dorme) em
qualquer lugar.

- 102 -
o espaço da sociabilidade traduzido em espaço de liberdade, com tra-
balho, jogo, lazer, identidade, alteridade, convívio e subjetividade.
Ao expressarem seus sentimentos em relação ao lugar as
PSR atribuem sentidos particulares à rua de forma geral. As terri-
torialidades ajudam a desenvolver processos adaptativos de sobre-
vivência, fortalecendo laços sociais muitas vezes indetectáveis para
quem está fora desses grupos. Por meio das territorialidades são
estabelecidos códigos próprios de interação. O escopo de abrangên-
cia desses laços não só permite que se contemplem características e
dinâmicas estruturais próprias, regulares e fortemente recorrentes
entre as PSR, mas também inspira que se problematizem conjuntos
de questões próprias sobre as especificidades de um tema que é um
verdadeiro caleidoscópio, a vida nas ruas, a partir do qual se apre-
sentam diversos mosaicos de heterogeneidades.
Para os baldios, benefícios e recursos da sociedade mo-
derna se tornam escassos por conta de processos de constituição do
trabalho. São processos que excluíram a parcela considerável dos
universos de ocupação laboral em termos lato, forçando, de certa
forma, as PSR a sobreviverem em meio a imposições do sistema,
com as sobras das atividades remuneradas. A formação de espaços
de marginalidade e invisibilidade, assim, perpassa não só a questão
da vida sem um teto, mas vem muito antes dela, sendo anterior à
existência despersonalizada e desrealizada.
A mecânica dos ambientes marginais e invisíveis em Ma-
naus foi a mesma orientada pelo capitalismo tardio latino-america-
no instado entre ditaduras em boa parte patrocinadas pelos EUA,
que concorreram para a instauração de estratégias próprias de so-
brevivência de homens e mulheres que vivem na rua e da rua. A
ordem e a disciplina positivistas se tornam dominantes em escala
continental, apoiadas em grande parte em sua infraestrutura pelo
Estado, que passou a promover o grande mercado em detrimen-
to liberal ao bem-estar social, pouco respondendo a necessidades
coletivas, especialmente dos mais pobres. No caso manauara, essa
composição estrutural foi explicada na otimização manufatureira
do Polo Industrial da Zona Franca de Manaus, que reproduziu as

- 103 -
transformações do capital monopolista, mas não garantiu ampla in-
clusão alimentar e educação na capital amazonense.
O período após a Segunda Guerra até a década de 1980
é conhecido pelos neomarxistas como época do capitalismo tar-
dio27. Nesse momento histórico, em meio a guerras setoriais entre
nações, com alta exponencial de concentração de renda mesmo
ante perspectivas de revolução socialista, também se reconhecia a
diversidade daquela era dos extremos (HOBSBAWM, 2010), em que
paradoxos eram notados quanto ao ideal de globalização. A partir
da ZFM, na segunda metade da década de 1960, desenvolveu-se no
Amazonas um modelo econômico pautado por desigualdade social
e pela “gestação de bandidos” (HOBSBAWM, 1975), que alavancava
a economia a partir da ideia de acumulação primitiva e dos polos
de atração.
Quando falamos em “gestação de bandidos” nos referimos
ao modo de vida que se espelhava no american way of life, no qual o
livre mercado e o consumismo eram o slogan principal, bem como
o trabalho em fábricas em busca de uma vida supostamente calma
e ordenada. Todavia, tudo isso foi arquitetado por transformações
econômicas alavancadas por empréstimos estrangeiros e bancários,
que geraram uma falsa sensação de desenvolvimento social no país
inteiro, além de aumentar as dívidas interna e externa, solapando
a independência e a autonomia brasileira de um modo geral. Na
Amazônia, isso se traduziu nos grandes projetos de investimento
(GPIs) nada sustentáveis para a região.
Vivemos, na época, no bioma, um processo intenso de
mudanças violentas que se materializou com a ditadura civil-militar
instalada em 1964, concretizando o modelo econômico, político e
social de desenvolvimentismo. As transformações econômicas afe-
27 A expressão “capitalismo tardio” (spätkapitalismus) foi usada pela primeira vez por Werner Som-
bart na sua obra de 1902 Der Moderne Kapitalismus, na qual distinguia três fases do capitalismo:
o capitalismo primitivo, o auge do capitalismo e o capitalismo tardio. A expressão ressurgiu após a
crise de 1929 e passou a ser usada pelos socialistas europeus entre o final dos anos 1930 e os anos
1940, quando muitos acreditavam que o capitalismo estava condenado. No final da Segunda Guerra
Mundial, economistas importantes, como Joseph Schumpeter e Paul Samuelson, acreditavam mes-
mo que o fim do capitalismo estaria próximo, em razão de problemas econômicos insuperáveis.Mais
tarde, já nos anos 1960, a expressão voltou a ser usada, principalmente na Alemanha e na Áustria,
pelos marxistas ocidentais ligados à tradição da escola de Frankfurt e do austromarxismo, para des-
crever a sociedade contemporânea.

- 104 -
taram frontalmente a vida cotidiana e as formas de sociabilidade.
Com isso, a sociedade e suas relações entraram em mutação ante as
mudanças históricas. Para Mello e Novais (2009), as dimensões des-
sas mudanças não foram imediatamente percebidas. A real situação
só se configurou notória a partir de 1968, finalmente com a nova
realidade da alta recessão, das depressões cíclicas na Amazônia
(borracha, juta, malva, madeira), da inflação, do desemprego e da
pobreza aliada ao atraso científico e tecnológico.
Os autores (ID., op. cit.) apontam como a industrialização
brasileira foi criada em bases frágeis e tragada por uma sociedade
mercantil ufanista, que nunca investiu pesadamente em ciência e
tecnologia, muito menos em inovação nos moldes dos trópicos,
sendo vítima do capitalismo tardio como apontamos. Consequente-
mente, este mesmo capitalismo se apropriou da capacidade de reor-
ganizar nossa sociedade emergente em consonância com o que essa
sociedade tinha para produzir e consumir: commodities. Fora desses
diagramas estiveram sempre as pessoas em situação de rua, que se
configuram hoje como consequência dessas transformações.
As mutações geradas pelo capitalismo tardio na sociabili-
dade de urbes amazônicas traduziram-se a partir da dura vida coti-
diana imposta pela economia que norteava os Estados mínimos de
um Brasil desconhecido. Esse mesmo capitalismo tardio teve como
meta imediata grandes lucros e privatizações, em enorme escala,
deixando em segundo plano as melhorias coletivas. Um dos refle-
xos foi a perda de postos de emprego, assim como a dissolução de
direitos conquistados por trabalhadores ao longo da história e a mo-
dificação de relações sociais, levando muitos a escolherem formar
outros espaços de atuação, na marginalidade e na invisibilidade.
Atualmente, ainda que serviços (setor terciário) já superem a esfera
industrial em vários pontos (informação, comunicação, transporte),
caracterizando o pós-modernismo, é persistente o desenho de uma
sociedade pós-industrial que se mostra ao mesmo tempo pujante e
caótica.
Jameson (2007) revela que houve, com o pós-modernis-
mo, a mutação do próprio espaço construído em Manaus, surgindo

- 105 -
um hiperespaço, desvinculando as pessoas corporalmente e mental-
mente de uma forma perceptiva sobre o ambiente que as circunda.
As pessoas passaram a não mais se reconhecerem cognitivamente
em um mundo voltado a acumulação primitiva. Mesmo na chama-
da aldeia global que se tornara a ZFM foi bem difícil mapear todas
as teias de comunicação a que fomos aprisionados. Para Habermas
(1987), foram mudanças não explicáveis apenas em função do mate-
rialismo histórico, dado que existiam incongruências em categorias
da teoria quando transpassadas diretamente para a realidade pre-
sente, de capitalismo tardio do Amazonas.
Mandel (1990) trabalhou com as categorias clássicas do
marxismo, as quais exprimiam manifestações das contradições ine-
rentes do capital. De todo modo, os autores veem momentos ímpa-
res não apenas de transformações sociais mundiais, mas também
em sociedades localizadas em biomas tropicais subdesenvolvidos,
como foi o caso de Manaus, onde ocorreram transformações pro-
fundas pautadas pelo capitalismo. Por fim, para não enveredarmos
em demasia para longe do nosso foco de pesquisa, finalizamos aler-
tando para o fato de que nenhuma das fases do capitalismo nem de
longe conseguiu sanar contradições suscitadas nas sociedades nor-
tistas brasileiras em relação às PSR. A sanha liberal sempre gerou
incoerências insuperáveis entre produtores de mais-valia e aqueles
que lhes extorquem essa mais-valia.
Restou desse sistema perverso a exploração dos elos mais
frágeis da cadeia, abrindo imensos espaços de exclusão e invisibi-
lidade (HABERMAS, 1987; MANDEL, 1990; JAMESON, 2007;
MELLO e NOVAIS, 2009). Esses espaços formaram-se em cidades
como Manaus, que atraem e repelem indivíduos com uma facilida-
de muito grande, tanto porque o agravamento da questão social na
capital amazonense pôs boa parte da metrópole em um contexto de
pobreza urbana cíclica, tornando frequente a existência de pessoas
em situação de rua ou em entidades assistenciais. Em Manaus, por
exemplo, foi fácil constatar bolsões de pessoas na linha da miséria
na periferia ou mesmo em volta do centro velho, pois por via fluvial
deparávamo-nos com a cidade das palafitas. E muito embora te-

- 106 -
nham existido projetos de reurbanização da vida em igarapés, como
o Prosamim28, que no entorno central fez um trabalho de requali-
ficação na moradia de quase 300 mil pessoas, tornou-se necessário
investir em melhoria na qualidade de vida para minimizar a falta de
acesso a trabalho formal.
Nessa mesma linha de raciocínio, temos que além de fa-
tores ligados ao sistema capitalista, citados anteriormente, houve
questões da ruptura de laços familiares e de sociabilidades. O sis-
tema do capital impôs às PSR fortes sentimentos de rejeição, infe-
rioridade, baixa autoestima, solidão e fracasso diante da ordem lo-
cal. Com isso, foram criados espaços de não pertencimento. Bentes
(2014) enfatizou que na capital do Amazonas pessoas em situação
de rua perambulam desde sempre em logradouros do centro comer-
cial ou próximos a ele, sendo expostas a intempéries e agressões à
integridade física e mental, além de perigos que rondam esses espa-
ços de sobrevivência.
Exemplificamos reportagem do Jornal A Crítica de
01/02/1990, com o título “Setrabes levanta número e situação de men-
digos”, onde se descreveu o problema da “mendicância” em Manaus
como consequência direta do caos na saúde e na educação do Esta-
do. Segundo o material, na capital a situação foi ainda mais agravada
pela alta incidência de hanseníase, doença que foi estigmatizada e
interferiu no processo social tanto pelo lado do doente como do
lado da sociedade. Nessa época, a Setrabes realizou pesquisa junto
a “mendigos” para tentar acompanhar e interferir positivamente na
problemática, tentando caracterizar grupos e encaminhar soluções.
Mas o que notamos foi um reforço no preconceito em relação à
doença como suposto estopim gerador da situação de miséria.
Durante a pesquisa, percebemos que foram feitos inúme-
ros censos pelo Estado com as PSR, mas os resultados ficaram ape-
nas nos dados. Desconhecemos medidas efetivas para minimizar
28 O Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim) foi concebido em 2003 e
contabiliza investimentos de US$ 930 milhões. O Programa já construiu quase 130 km de rede de
esgoto só na Zona Sul de Manaus; construiu pontes, novas vias para escoamento nos 15 bairros onde
possui intervenções de obras. Restaurou e recuperou a centenária Ponte Benjamim Constant. Tão
logo passaram a residir nestes parques residenciais aproximadamente 10 mil pessoas deixaram de
lançar diretamente, nos igarapés, aproximadamente 800.000 litros de esgoto sanitário e 8 mil quilos
de lixo doméstico.

- 107 -
a situação na época. A constatação de que ex-hansenianos seriam
em sua maioria “mendigos” de Manaus, feita em 1990, refletiu as
perspectivas sobre as PSR pelo viés da doença e da apartação. De
acordo com Pereira (2011), o padrão de distribuição da hanseníase
em Manaus acompanhou a urbanização, que apresentava as zonas
sul e oeste como as de maior incidência. Por isso, foram criados er-
radamente bairros como Colônia Antônio Aleixo, Puraquequara e
Mauazinho, afastados do centro da cidade, somente para mantê-los
isolados, na tentativa de evitar o contato com a população afetada
pelo mal. A experiência não foi eficaz e ainda piorou o estado de so-
frimento psíquico das PSR. Mais e mais personagens surgiram com
suas histórias de vida ora dramáticas, ora trágicas.
Na mesma época, grande parte da exclusão vivida se deu
também porque o modelo ZFM, aplicado com bases tayloristas-
-fordistas, de linhas de montagem, veio no seu projeto base como
proposta de agregação da modernidade a modos de vida locais,
mediante supostas tecnologias importadas. Era uma forma de inte-
grar o amazônida à aldeia global da mimética capitalista, mas não
foi exatamente assim que aconteceu. Alguns dos chamados mega
GPIs na Amazônia foram: i) o projeto Manganês, o projeto Jari e
o Polamazônia. Esses projetos de exploração de recursos naturais
não trouxeram benefícios esperados pela população. Ao contrário,
geraram degradação socioambiental e tiveram como consequência a
migração desordenada, a destruição de espaços naturais e a intensi-
ficação de conflitos entre fazendeiros, posseiros, grileiros, empresas,
latifundiários, Estado, pistoleiros e moradores tradicionais. Foram
projetos capitaneados na sua maioria pela ditadura, incluindo-se
Trombetas, Rondonópolis e o Grande Carajás. Os erros ocorreram
em grande parte devido ao não enquadramento à realidade local
(RODRIGUES et al., 2010). Mesmo assim, o Estado brasileiro vis-
lumbrou a possibilidade de ganhar duplamente.
Primeiro, a floresta amazônica significava lucros imedia-
tos. Segundo, resolveria tensões por causa de terras cultiváveis, além
de problemas relacionados ao fluxo monetário. Para isso, prepara-
ram ao menos duas grandes estruturas de investimento, que ficaram

- 108 -
conhecidas como Programa de Integração Nacional (PIN) e Plano
de Desenvolvimento Nacional (I PND). Rodovias, ferrovias, usinas
hidrelétricas, portos, aeroportos, infraestrutura de comunicação,
energia elétrica e rodovias foram erigidos com objetivos claros de
explorar recursos naturais. A Amazônia passou a ser a salvação para
todos os problemas econômicos, sociais e geopolíticos brasileiros,
desde o desenvolvimento industrial até o pagamento da dívida ex-
terna (GARFIELD, 2009).
Todo o esforço empreendido resultou em tragédias sociais
relacionadas a etnocídio e migrações desordenadas de povos tradi-
cionais, além de tragédias ambientais concernentes a degradações
florestais e contaminações de solos e rios. Foram sucessões de erros
que afetaram a vida de milhões de pessoas. Nota-se, portanto, que a
marginalidade das PSR de Manaus, diante desse cenário macro, não
surgiu gratuitamente, mas, sobretudo, por pressões diretas e indi-
retas resultantes de Grandes Projetos de Investimento para a Ama-
zônia. A crise no capitalismo mundial, aliada ao baixo crescimento
econômico do Brasil, tem levado, principalmente a partir de 1990, a
uma forte retração no número de empregos formais (excetuando-se
de 2003 a 2014).
Manaus, que voltou a registrar altas taxas de desemprego
do país desde 201629, viu como consequência danosa para toda a
sociedade a pobreza em nível escalar, na medida em que cresceram
a insegurança e a informalidade. A sensação de perda do emprego
tem provocado angústia, desespero, ansiedade e depressão desde
sempre. É uma situação dramática. Considerando o cenário des-
crito, a formação de espaços de invisibilidade no centro velho de
Manaus vem sendo fruto de contraposições conscientes ao sistema
e de inconformismos diante da realidade socioeconômica da época.
Significa dizer que um grande contingente de pessoas, ao se apro-
priar de espaços públicos, fez deles novos usos e optou por um estilo
de vida marginal como válvula de escape.

29 A capital amazonense está desde 2016 entre as capitais do país com maior índice de desemprego.
Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua)
e foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta quinta-feira
(19/05/2016).

- 109 -
Se essas pessoas estão condenadas ou felizes, inquietas ou
acomodadas, não cabe aqui juízo de valor. As PSR vivem suas vi-
das enfrentando dificuldades diárias, males que afetam sua saúde
física e mental, especialmente provocados por crises familiares e\
ou empregatícias e econômicas. São dois sustentáculos quebrados
que alteram diretamente suas vivências psicofísicas. A tessitura da
invisibilidade no espaço urbano manauara, assim, suscitou diferen-
ças sociais e de pertencimento, e isso foi acrescido pelo advento do
sistema capitalista no norte brasileiro que, de forma opressora, ex-
cluiu indivíduos que não se adaptaram ao modus operandi da linha
de produção do mercado de trabalho vigente nas cidades.
Segundo Scherer e Oliveira (2009), o termo exclusão, na
Amazônia, pode ser expresso, de modo amplo, em relação à renda,
educação, condições da população infantil, carências habitacionais
e formas de moradia, além de acesso à saúde e perspectivas de ocu-
pação da força de trabalho. Nesse sentido foi que procuramos pen-
sar as marginalidades e as invisibilidades contínuas e duradouras de
Manaus, que coloca pessoas em mundos opostos. Portanto, a forma-
ção de espaços de invisibilidade no centro velho foi tomada como
microcosmo do que ocorre em processos contínuos e similares de
reterritorialização30 enquanto reconstituição de poder e desterrito-
rialização na perspectiva de abertura e engajamento em linhas de
fuga e até em saídas de curso e auto-destruição (DELEUZE e GUA-
TTARI, 1997).
Posicionamento aproximado possui Saquet (2007, 2011),
que trabalha território no nível do pensamento e aspectos de sua
formação no real e no simbólico, destacando dimensões sociais de
efetivação nos ritmos e temporalidades. Destaca mudanças e per-
manências, relações multiescalares e superpostas, ligações geográ-
ficas e centralidades do enraizamento das articulações territoriais
como processos simultâneos e complementares. A questão, enfim,
30 A desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território e a reterritorialização é o
movimento de construção do território (DELEUZE e GUATTARI, 1997:224). No primeiro movimento,
agenciamentos se desterritorializam. No segundo, reterritorializam-se como novos agenciamentos
maquínicos de corpos e coletivos de enunciação. Deleuze e Guattari afirmam que a desterritoria-
lização e a reterritorialização são processos indissociáveis. Se há um movimento de desterritoria-
lização, teremos também um movimento de reterritorialização. Esse movimento concomitante de
desterritorialização e reterritorialização está expresso no primeiro teorema da desterritorialização
ou “proposição maquínica”.

- 110 -
discutida aqui, mediante auxílio de Saquet (ID., op. cit.) foi o espaço
da rua, pujante e caótico, enquanto lar, considerando que buscamos
refletir acerca da existência de um segmento social difícil de mapear
por conta da sua invisibilidade e marginalidade. Todavia, pensamos
nós, a invisibilidade, mediante o teórico, também pode ser vista
como estratégia para práticas marginais e de desvio dos outsiders, à
custa, é claro, de uma economia flutuante. Os lugares de interação,
de fala, de silêncio, de trabalho e lazer, descanso e mangueio, além
de alimentação, são os domínios simbólicos que a rua proporciona
aos baldios.
Por fim, para encerrarmos por hora nosso debate e fe-
charmos este Volume 1 no que tange a nossas impressões primeiras
acerca da vida nas ruas do centro velho de Manaus, temos que a
proposta em destaque buscou adensar interpretações sobre o cami-
nho por onde as PSR transitam na capital amazonense, fazendo suas
perambulações e vivências em meio ao caos. E se neste tomo de dis-
cussão abordamos variações sobre o estar na rua e seus significados,
no Volume 2 avançaremos e detalharemos trajetos percorridos pelos
baldios segundo suas práticas de invisibilidade e marginalidade, em
Manaus, pontuando em que medida esse caminhar nos territórios
percorridos são percalços estratégicos de sobrevivência.
Por hora, temos por certo que complementamos as análi-
ses primeiras aqui contidas destacando que se trata de um proble-
ma não resolvido o abordado por nós. Por isso, as PSR devem ser
melhor categorizadas e segundo análises mais bem investigadas, em
busca da não superficialidade, de maneira recorrente e aprofunda-
da. Apenas promovendo amplas reflexões é que alcançaremos mais
sabedoria para pensar a questão com sobriedade, juntos, e em co-
letividade.

- 111 -
- 112 -
POSFÁCIO
Experiências e relatos de vida nas ruas
Francisco Alcicley Andrade31

A obra Baldios: os invisíveis desapossados da cidade - Vol.1 é


resultado de investigação da tese do doutorado em Sociedade e Cultura
na Amazônia – Universidade Federal do Amazonas do primeiro autor
Noélio Martins em parceria com o prof. Dr. Renan Albuquerque, am-
bos membros do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambiente Amazô-
nico (NEPAM/CNPq).
O livro teve o objetivo de demonstrar as experiências e os
relatos de vida de pessoas em situação de rua, com a utopia de melhoria
de vida na grande capital, Manaus/AM, pois muitos deles vêm de áreas
rurais da região metropolitana e de municípios do interior dos Esta-
dos do Amazonas e Pará. No texto, eles são reconhecidos como gru-
pos heterogêneos constituídos por indivíduos que exercem atividades
produtivas nas ruas, com vínculos familiares rompidos e a ausência de
referência de moradia digna.
A invisibilidade e marginalidade desses indivíduos, propos-
tas pelos autores, nem sempre estão atreladas a conflitos familiares.
Também podem se desdobrar a partir de rompimentos afetivos com o
mundo, impulsionando muitas pessoas a morarem, mesmo que tem-
porariamente, nas ruas. As tipificações sociais fragmentadoras a partir
das quais são caracterizados esses indivíduos se diversificam, gerando
exclusão e revolta entre esses grupos.
Muitos desses indivíduos têm como ‘válvula de escape’ para
esquecer os mais diversos problemas a participação em festas e bares,
regada a excessivas bebidas alcoólicas e abuso de entorpecentes, mas
também têm importantes trajetórias de vidas, singulares a seus termos.
Trazemos aqui o poema ‘Moradores de Rua’, de Lupercinio Lima, para
metaforizar essa triste realidade de vivência em meio ao caos.
31 Doutorando em Ambiente e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP/
IFCH/ NEPAM. Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPGCASA - UFAM.
É professor da Universidade Federal do Amazonas - Campus Parintins.

- 113 -
[...]
Nunca quis morar na rua,
Mas a vida obrigou.
Tinha sonho como qualquer pessoa,
Mas um dia fracassou.

Tentei um dia me mudar,


Para buscar melhor condição.
Mas que engano da minha cabeça,
Fiquem sem abrigo, sem teto e sem chão.
[...]

A rua passa a ser um subterfúgio por conta dessa falta de


reconhecimento social, atrelado à ausência de políticas públicas efe-
tivas voltadas à inclusão dos baldios perante a sociedade. Inclusive,
durante a pandemia do coronavírus e a necessidade do isolamen-
to social para mitigar a propagação de infecção pelo SARS-CoV-2,
interessou uma questão icônica e complexa sobre esses indivíduos:
como ficar em casa se minha casa é a rua?
Aproveito a oportunidade para agradecer ao convite rea-
lizado pelo líder do Nepam, Prof. Dr. Renan Albuquerque, para a
escrita deste posfácio, e estendo meus cumprimentos igualmente ao
Prof. Dr. Noélio Martins. De pronto, já convido leitores/as a apre-
ciarem e aguardarem a compilação do Volume 2, que dará conti-
nuidade à descrição dos resultados desse estudo, que será lançada
brevemente.

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SOBRE OS AUTORES
Noélio Martins
Possui licenciatura em História pela Universidade Federal
do Amazonas (2001), especialização em História Cultural no Cla-
retiano Rede de Educação (2014), mestrado em Sociedade e Cul-
tura na Amazônia pela Ufam (2005) e doutorado em Sociedade e
Cultura na Amazônia também pela Ufam (2019). É pesquisador
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Ne-
pam), da Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, é Profes-
sor Efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Amazonas (IFAM/Campus Manaus), onde atua como docente
e pesquisador. Trabalhou como professor bolsista na Universidade
do Estado do Amazonas (UEA), no Plano Nacional de Formação de
Professores (Parfor) e no curso de especialização em Metodologia
do Ensino de História da UEA.

Renan Albuquerque
É Professor Adjunto IV da Faculdade de Informação e
Comunicação (FIC) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Possui graduação em Comunicação Social pela UniNiltonLins (2001),
especializações em Psicopedagogia pela Universidade Cândido
Mendes/RJ (2002), Comunicação Empresarial pela UniNiltonLins
(2004) e Psicologia Social também pela UniNilltonLins (2005). É
mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba
(2008) e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Univer-
sidade Federal do Amazonas (2013). Tem pós-doutorado em Antro-
pologia pela PUC-SP (2017), com período de intercâmbio na Uni-
versidade Nacional da Colômbia (UNAL). No presente, desenvolve
estágio de pós-doutoramento em Psicologia Social pela PUC-SP
(2019-21) e em Humanidades na Universidade de São Paulo (2021).
Na Ufam, é Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/Ufam). Coorde-
nou o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
(2018-20). Orienta pesquisas em nível de mestrado e doutorado.

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Lidera o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazôni-
cos (Nepam/CNPq) e chefia o Laboratório de Editoração Digital do
Amazonas (Leda/Ufam). Foi membro do Conselho Consultivo da
Compós (2018-2020). Tem experiência em pesquisas sobre conflitos
na Amazônia e impactos socioambientais, desenvolvendo estudos
em áreas rurais, ribeirinhas, indígenas e com atingidos por barra-
gens. Recebeu em 2007 o prêmio de Menção Honrosa, outorgado
pelo corpo parlamentar da Assembleia Legislativa do Estado do
Amazonas, pelas atividades desenvolvidas no âmbito jornalístico do
bioma Amazônia.

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Este livro foi compilado a partir de incentivos técnicos
do Laboratório de Editoração Digital do Estado do Amazonas
(LEDA), vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq).

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