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Rose Angel
Parte 1
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Recordava que no final da tarde anterior havia recebido um telegrama
em seu trabalho. Dizia o seguinte: “Senhorita Cristine Dupret Torres,
favor entrar em contato urgente com Dr. Mendes. Assunto de seu
interesse. Escritório de Advocacia Mendes e Winter Ltda.” Logo depois
se lia o número do telefone do escritório. Movida pela curiosidade
Cristine discou o número cujo prefixo era do Estado do Rio Grande do
Sul e uma voz com timbre de tenor atendeu do outro lado da linha:
- Alô, Escritório de Advocacia.
- Por favor, o Dr. Mendes se encontra?
- Pois não, sou eu mesmo.
- Eu sou Cristine Torres e recebi um telegrama seu.
- Senhorita – disse o advogado suspirando profundamente, visivelmente
aliviado pelo contato – Solicitei um contato urgente, pois um de meus
clientes é parente seu, o Sr. Artur Diaz Torres...
- Sim, é um tio meu. Na verdade eu pouco tenho contato com ele, acho
que o vi somente umas três ou quatro vezes em minha vida.
- Bom, senhorita, lastimo informá-la, mas o seu tio veio a falecer no dia
de hoje.
- Alô... Senhorita...
- Sim... Estou ouvindo...
- Bem... Como testamenteiro de seu finado tio estou entrando em
contato com a senhorita para informá-la de que será aberto o
testamento de seu tio dentro em breve e seria imprescindível a sua
presença.
- A minha presença?
- Sim.
- Mas, por qual motivo?
- Bem, a senhorita consta no testamento.
- Como?
- Seu tio lhe deixou alguns bens.
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- Se me permite sugiro que venha para o funeral de seu tio, que será
amanhã.
- Mas... Como?... Eu não me preparei...
- Infelizmente senhorita a morte não manda avisos e sempre nos pega
desprevenidos. Se me permite ainda posso providenciar passagens
aéreas e transporte para trazê-la em tempo de despedir-se do falecido.
Também devo lhe informar que poderá ficar na casa de seu tio.
- Eu não sei... Preciso pensar... Me organizar...
- Não há tempo para isso, senhorita.
Era pouco mais de dez horas da noite quando o telefone em seu criado-
mudo tocou. Estava tomando banho, no entanto conseguiu ouvir
quando a secretária eletrônica capturou o seguinte recado: “Senhorita
Cristine, aqui quem fala é Mendes. Está tudo resolvido. A senhorita
embarca no Galeão às seis horas da manhã e nós lhe buscaremos no
Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. De lá seguimos para Doze
Colinas a tempo de acompanhar o sepultamento de seu tio. Favor
entrar em contato comigo tão logo receba esta mensagem”.
Cristine foi trazida de volta à realidade pelo toque suave em seu ombro
da comissária de bordo:
- Aceita uma bebida?
- Água, por favor.
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bordo quando uma turbulência mais forte a fez empalidecer. “Calma
Tine”, pensava ela, “é assim mesmo, isso é normal, vai passar”. E de
fato passou. A viagem de quase duas horas foi tranquila e quando o
avião pousou em solo Rio-grandense, e os motores das turbinas
inverteram seu giro a fim de desacelerar a velocidade da aeronave,
Cristine suspirou aliviada. O barulho ensurdecedor era de fato um
bálsamo para seus ouvidos, pois era sinônimo de contato com o solo
abençoado e firme. O desembarque foi até rápido, mais rápido do que
ela supunha que fosse. Ao dirigir-se à porta envidraçada visualizou ao
longe um homem alto, com alguns cabelos grisalhos despontando em
suas têmporas, aparentando cerca de cinquenta anos, um tipo
realmente interessante, segurando uma discreta placa com seu nome.
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foi colocada a bagagem de Cristine. No curto trajeto até o carro Cristine
pôde sentir o frio cortante a invadir-lhe os poros através das poucas
partes de seu corpo que estavam sem proteção. Puxou a gola de seu
casaco para cima tentando proteger mais seu pescoço e as orelhas,
sentindo seu corpo encolher-se instintivamente, na tentativa de
amenizar a sensação gélida. O cabelo loiro esvoaçava com as rajadas
de vento que cruzavam os corredores do estacionamento. A porta do
carro foi aberta pelo motorista, Henrique, que trajava um impecável
uniforme marinho, com um pesado sobretudo negro que lhe chegava
até as canelas, deixando à mostra somente a barra da calça e os
sapatos cuidadosamente engraxados.
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- De fato... – ponderou Dr. Mendes – Senhorita, eu respeito seus
sentimentos, e coloco-me à sua inteira disposição para lhe colocar a par
de todas as circunstâncias que envolveram o falecimento de seu tio.
Basta a senhorita assim o desejar. Não quero forçar uma conversa que
a faça sofrer. Qualquer coisa que deseje saber é só me perguntar,
certo?
- Seu tio era um homem circunspeto, de poucos amigos. Mas era uma
pessoa pela qual eu nutria uma especial amizade e admiração.
Convivíamo-nos desde que me conheço por gente. Quando eu era ainda
um meninote o Sr. Artur já era um jovem gerenciador da propriedade
herdada de seu pai e dos escritórios da família. A minha origem era
muito humilde e um belo dia eu disse ao Sr. Artur que pretendia ser
advogado – sorriu entristecido – e ele me ergueu nos braços e disse
que faria de mim o melhor advogado da região. E assim o fez. Pagou
todos os meus estudos até que me formasse. Desde então defendo os
interesses dele como defenderia os de meu próprio pai. Por isto
senhorita, empenhei-me tanto em localizá-la, pois sou sabedor de que
este seria um dos desejos dele.
- Mas ele mal me conhecia... Nem consigo me lembrar do rosto dele... –
disse Cristine com um tom de amargura na voz. – Porque ele não me
procurou antes? Enquanto estava vivo? O senhor tem idéia do que é
não ter ninguém na vida? – desabafou Cristine – O senhor sabe o que é
sentir-se sem ninguém?
- Não... Não sei... – respondeu Dr. Mendes pousando delicada e
respeitosamente sua mão por sobre a de Cristine – mas posso
imaginar... Porém garanto-lhe que seu tio deve ter tido seus motivos
para fazê-lo. Não o culpe por isso, por favor...
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percebeu as pequenas vielas sem asfalto que convergiam todas até a
estrada principal, na qual trafegavam, e que era coberta por
paralelepípedos de pedra e ferro, irregulares e gastos, mais pelo tempo
de uso do que pelo fluxo de veículos. Era uma cidade pequena, com
alguns estabelecimentos comerciais e pouquíssimo movimento. A chuva
intensa e o frio haviam esvaziado as ruas e todos procuravam um
abrigo seco e quente.
Cristine olhou seu relógio de pulso e viu que já passava das dez horas
da manhã. Percebendo seu movimento Dr. Mendes falou:
- O enterro está marcado para as onze horas. Chegaremos a tempo,
fique tranquila.
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do novo patrão sem cogitar a possibilidade de retornar para sua terra
natal. Havia se adaptado bem ao país e ao clima, cujo inverno lhe
lembrava os rigores do inverno europeu.
James saiu da sala deixando Sr. Artur e Dr. Mendes sozinhos. Este
último sorriu e disse:
- Artur, Artur... Tente controlar sua impaciência. Tu pegas muito pesado
com o rapaz – disse referindo-se a James.
- Mas ele consegue me tirar do sério, Adroaldo. Sempre tem um palpite
furado para dar. E quando é preciso não sabe tomar as decisões
adequadas. Não poderia nunca tocar os negócios para frente.
- Mas quem sabe agora tenhas a pessoa certa...
- Quem sabe. – respondeu Artur secamente e apressando-se em mudar
de assunto – e então, como me saí?
- Acho que acertou na escolha. – respondeu Mendes sorrindo
discretamente e tornando a ler a página das publicações legais de seu
jornal. – Agora me sinto mais tranquilo.
- Eu também... – respondeu Artur em voz baixa, mais para si mesmo
do que para o amigo.
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- Artur, - disse Adroaldo Mendes agora deixando transparecer
preocupação na voz – tem certeza que não seria melhor conversar com
o Munhoz sobre o incidente do carro?
- Acho que não. Realmente foi uma falha mecânica. Podia acontecer
com qualquer um.
- Mas foi contigo.
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mortuária, cercando-a solenemente, embora mantendo certa distância,
como que reservando um espaço para sua entrada.
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Um homem mais jovem que a acompanhava amparou-a pelos ombros
puxando-a delicadamente para trás. Os presentes, espantados,
aguardavam em silêncio o desenrolar da cerimônia, momentaneamente
interrompida. O padre tossiu discretamente, lançando um olhar de
desaprovação para a loira, que se abraçou ao rapaz que a acompanhava
enquanto soluçava mais discretamente, secando suas lágrimas com um
lenço de seda vaporoso e lilás. Dr. Mendes e o delegado Munhoz
entreolharam-se rapidamente mantendo, contudo, a fisionomia
impassível. Passado o impacto inicial o padre seguiu com a
encomendação. Cristine não conseguia entender o que se passava. E
por certo não era o momento de dissipar suas dúvidas, afinal passaria
alguns dias naquela cidade e poderia tomar ciência de toda a situação.
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Vagarosamente o cortejo fúnebre partiu em direção à sepultura
previamente preparada pelo coveiro local. A procissão seguia sob a
forte chuva que caía insistente. O pequeno mar de guarda-chuvas
negros parecia ondular ao som dos pingos de chuva que ensopavam o
cortejo e faziam escorrer pequenos córregos pela madeira envernizada
do caixão. Ouviam-se somente as batidas secas dos solados dos
calçados de encontro à rigidez das pedras assentadas no caminho
principal do cemitério, além do ruído abafado das gotas de chuva que
ecoavam no pano dos guarda-chuvas e nas lápides esbranquiçadas de
cal.
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Cristine observava em silêncio. Somente ela e Dr. Mendes ainda
estavam defronte ao jazigo. Até mesmo o coveiro já havia encerrado
sua função naquela manhã chuvosa. Por um instante a atenção de
Cristine voltou-se para um ponto atrás da sepultura, onde um arbusto
dava a impressão de esconder um vulto nas sombras. Apurando mais a
visão pareceu à Cristine avistar um rosto por entre as folhas molhadas,
um olhar a observá-la atentamente. Percebendo-se também observado
o vulto furtivo esgueirou-se pela vegetação espessa e sumiu do campo
de visão da jovem. Cristine empertigou-se, como que tentando definir a
veracidade daquela cena. Ficou em dúvida se realmente havia alguém
ali ou se tal impressão havia sido fruto de sua imaginação, ainda sob o
efeito dos últimos acontecimentos. Seu devaneio foi interrompido pela
voz do Dr. Mendes.
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- Mas então, por direito, os bens de titio pertencem a ele. Eu não tenho
o que fazer aqui. Porque o senhor me trouxe?
- Porque seu tio assim o desejou.
- Como assim? Ele sabia que iria morrer? – questionou Cristine.
Dr. Mendes pigarreou e continuou:
- Não... Não sabia...
- Mas então?... – continuou Cristine.
- Senhorita, com certeza temos muito ainda o que conversar, mas creio
que este não é o momento. Vamos para casa, a senhorita se instala,
descansa, se alimenta, e posteriormente retomamos esta conversa. –
respondeu em tom categórico, ao qual Cristine não se sentiu em
condições de contra-argumentar.
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Cristine começou a se dar conta que descendia de uma família de
excêntricos e chegou a achar graça disto. Recordou-se de uma fantasia
sua, de infância, na qual sonhava ser uma princesa e morar num
castelo encantado, cujo portão principal era vigiado por um temível
dragão de duas cabeças. Imaginava que um valente príncipe montado
num cavalo branco mataria o dragão e a pediria em casamento,
transformando o castelo imaginário num lar próspero e feliz. Porém
sempre despertava e se deprimia ao perceber a realidade das paredes
esbranquiçadas dos vários colégios internos nos quais passou. Muito
mais tarde, após incontáveis sessões de análise, conseguiu entender a
simbologia de seu dragão imaginário, seu castelo encantado e de seu
príncipe, que na verdade custou a aceitar que seria uma princesa, uma
bela e sedutora princesa num corcel negro.
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mesura e um português impecável, ainda que carregado de um sotaque
europeu:
- Mademoiselle. Faço minhas as palavras de Morris. E apesar das
circunstâncias trágicas lhe desejo boas-vindas.
- Obrigada – respondeu Cristine.
- Este é James – falou o advogado dirigindo-se ao jovem que descia as
escadas com pressa – o afilhado do Sr. Artur do qual já lhe falei.
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é jovem como a senhorita, com certeza lhe será uma companhia
agradável, com assuntos condizentes com a sua realidade e juventude.
- Dr. Mendes, por favor, não fale como se fosse um ancião... – riu-se
discretamente Cristine.
- Por certo ainda não o sou... Mas quase. – emendou brincando – Mas
afirmo-lhe que Angélica lhe será uma companhia melhor do que os
demais. Ela, gentilmente, se dispôs a lhe mostrar a propriedade e ficar
à sua disposição por estes dias.
- Eu também posso fazer companhia à Cristine, isso me daria muito
prazer e me ajudaria a superar a dor que estou sentindo. – interveio
James.
- Obrigada, James. – disse Cristine.
- Muito gentil de sua parte James – disse Dr. Mendes - Mas com certeza
as moças devem querer conversar sobre assuntos tipicamente
femininos, o que foge de sua alçada, meu caro.
- Mas mesmo assim, Cristine, pode contar comigo para o que precisar.
– reafirmou James.
- Novamente agradeço. – disse Cristine - Só não quero incomodar, nem
impor minha presença para ninguém.
- Não é incômodo algum, - continuou James – É um prazer.
- Tudo bem, então. – concordou tímida.
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deveria ser o quarto de seu tio, agora relegado a ser provavelmente um
cômodo abandonado.
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Anemary a deixou sozinha, pedindo licença para se retirar.
Logo após o almoço Dr. Mendes sugeriu à Cristine que fosse repousar
um pouco.
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gostaria de conversar um pouco mais sobre meu tio... – continuou
tentando justificar-se.
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Na tentativa de localizar alguém rumou por uma porta que dava para os
fundos da casa. Um corredor mais curto levava à cozinha, a qual
Cristine localizou pelo odor agradável de café recém-passado. Ao cruzar
o portal de acesso àquela peça deparou-se com uma cozinha ampla e
clara, com as luzes fluorescentes ligadas e um bule fumegante
repousando num canto de um fogão à lenha. A luminosidade e a
energia daquele local destoavam do resto do castelo. De costas para a
porta, remexendo uma panela de ferro, Cristine viu uma figura de baixa
estatura e cabelos grisalhos presos debaixo de uma touca de tecido
xadrez esverdeado. Como que percebendo sua entrada a mulher mais
velha virou-se e sorriu-lhe amorosamente:
- Boa tarde. A senhorita deve ser a sobrinha do Sr. Artur... Eu sou
Regina, a cozinheira.
- Boa tarde, Regina. E muito prazer. – respondeu Cristine.
- Igualmente. E queira aceitar meus sentimentos pela perda de seu tio.
- Obrigada.
- Com certeza foi uma grande perda... – disse a cozinheira – Meu
marido está inconsolável. Eles eram mais que patrão e empregado,
eram amigos...
- Eu lamento.
Antes que Regina terminasse de servir Cristine a porta que dava acesso
à rua abriu-se e uma figura esguia praticamente saltou para dentro,
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espanando-se a fim de tirar a água de cima de sua capa plástica.
Regina disse:
- Minha filha! Tu estas igual a um pinto molhado! Tira essa capa e deixa
ali no canto.
- Oi mãe! – disse dirigindo-se à Regina, sapecando-lhe um beijo nas
faces, e logo em seguida à Cristine – Olá!
- Olá. – respondeu Cristine.
- Esta é minha filha, Angélica. – apresentou Regina – Ela está passando
as férias aqui conosco.
- Dr. Mendes já havia me falado nela. – disse Cristine educadamente.
- Muito prazer, Cristine. – disse Angélica estendendo-lhe a mão num
cumprimento formal.
- Igualmente.
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faces. O rosto, apesar de anguloso, ostentava feições bastante
delicadas. A pele de uma tonalidade moreno-clara era aveludada e
aparentava maciez ao toque.
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disso. E era recíproco. Eu era afilhada dele, de batismo, e sempre
tivemos muito em comum. Mas eu o respeitava nas esquisitices e ele
me respeitava no meu jeito de ser.
- Bom, vocês querem que eu faça uns bolinhos de chuva? – perguntou
Regina tentando desviar o rumo da conversa.
- Acho ótima idéia! – respondeu Cristine.
- Eu idem – disse Angélica.
- Então vou por mãos à obra. Angélica, pega a farinha pra mim, na
prateleira de cima. E tu, Cristine, me alcança dois ovos ali do balcão. –
disse Regina tratando de pegar uma bacia ovalada para fazer a massa.
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O velho senhor nada conseguiu dizer. Apenas apertou a mão de Cristine
para logo em seguida secar algumas lágrimas que lhe brotaram dos
olhos.
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- Mãe, ele precisa de tempo... Só isso. A gente supera tudo na vida. Só
precisa dar tempo ao tempo.
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Novamente James enrubesceu de fúria. Cristine interveio:
- Olha só, eu agradeço a atenção dos dois. É muito gentil da parte de
vocês, muito obrigada mesmo. Mas não quero causar nenhum
constrangimento, por favor.
Conscientizando-se da situação a que Cristine estava sendo exposta
Angélica abrandou o tom de voz:
- Desculpe... Eu não quis constrangê-la – disse levantando-se da mesa.
- Nem eu. – emendou James – Desculpe-me.
- Tudo bem... – respondeu Cristine.
Angélica continuou:
- Bem, eu vou fazer o seguinte: vou até a biblioteca e deixo vocês à
vontade para conversarem. Cristine, se precisar de mim estou na
segunda porta à esquerda, depois da escadaria. Com licença.
- Não. – disse Cristine instintivamente, ao que Angélica estancou.
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- Beeem... Ééé... Livros. Você falou em biblioteca e eu fiquei curiosa.
Tenho certa predileção por livros. É isso.
- Ah, bom. – respondeu Angélica mantendo firme o olhar em Cristine.
- Além do quê eu não pretendia ficar no meio do arranca-rabo de
vocês...
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cujos vidros encontravam-se escondidos por um espesso acortinado de
veludo negro. Cristine teve a impressão de que aquela janela jamais
devesse ter sido aberta, pois tudo no ambiente cheirava a
confinamento. Defronte à cascata ondulada do tecido cor de ébano
havia uma mesa de tampo de madeira, muito comprida, com os pés
torneados, ladeada por quatro cadeiras de espaldar alto, e estofado
aveludado, do mesmo tecido das cortinas. Angélica continuou sua
caminhada pelo aposento e passou a acionar interruptores dispostos ao
longo das prateleiras e que acendiam lâmpadas fluorescentes dispostas
simetricamente entre uma estante e outra.
Como que por encanto a atmosfera sombria foi substituída por uma
luminosidade que chegava a ofuscar a visão ambientada à penumbra
inicial. Desta feita Cristine passou a se deslocar pelo salão e a ter uma
imagem mais fiel do ambiente que a cercava.
Angélica sorriu:
- Ironicamente, não. O padrinho era um... Pode-se dizer pacifista. Era
incapaz de ferir alguém, ou algum animal.
- Mas então... Porque as estátuas? E a coleção de armas? Eu não
entendo... – disse Cristine.
- Isso são reminiscências do pai dele e do avô, objetos de família que
ele resolveu manter. Eu cresci ouvindo o padrinho falar: “Queres
conhecer verdadeiramente um homem? Dê-lhe o poder... e uma arma.
O sábio a guardará em lugar seguro, pois sua fortaleza vem de dentro,
enquanto que o covarde a ostentará aonde for, para que todos vejam o
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quanto é poderoso”. E lembro quando ele me pegava no colo e
apontava para estas estátuas e dizia: “Estás vendo aquele ali? Tira-lhe
o rifle que a onça o devora. E aquele outro? Desarma-o que é capaz de
disparar de medo da lebre. O sábio respeita a onça em seu território, e
não permite que ela se aproxime a ponto de expor ambos a um risco
desnecessário, e aprende com a lebre a agilidade de fugir da onça”. Por
muitos anos eu não entendi a mensagem. Hoje entendo.
Cristine riu-se:
- Então você se sente em casa aqui!
- Pois é...
- E você trabalha aonde? – continuou Cristine em seu interrogatório.
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- Isso que eu chamo de organização! – disse Cristine – Aposto que foi
você que organizou.
- Ledo engano – riu-se Angélica – Foi o padrinho. Isso é datado de
antes do meu nascimento, se duvidar antes do nascimento de
Matusalém!
Cristine franziu a testa, mas não quis ser invasiva e mudou de assunto:
- Será que o Dr. Mendes vem mesmo hoje?
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- Ele te disse que viria?
- Disse.
- Então vem. Ele costuma cumprir o que diz.
- Que bom. Tenho muito que conversar com ele...
- Imagino... – respondeu Angélica – Vamos descer então. Quem sabe
ele já esteja lá embaixo.
- Vamos.
- Boa tarde. – disse Anemary – Angélica, por acaso viste a tua mãe?
- Não, eu estava na biblioteca com Cristine. Por quê?
- Preciso falar-lhe acerca da ceia. Senhorita, – disse a governanta
dirigindo-se a Cristine – teria alguma preferência para o jantar?
- Não... – titubeou Cristine, desacostumada com tantas mesuras – por
favor, não quero causar transtornos... Qualquer coisa está bom para
mim.
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- Anemary gosta de agradar aos hóspedes – disse James adentrando na
cozinha – quero dizer, nesse caso, aos patrões – e sorriu cordialmente
para Cristine.
- Bom, eu vou chamar a minha mãe. – disse Angélica dirigindo-se para
a porta – Eu volto para o jantar. – e piscou para Cristine,
desconcertando-a.
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Novamente deixaram o ambiente agradavelmente aquecido da cozinha
para adentrar no frio úmido do hall de entrada. O salão de jogos ficava
no térreo, perto da porta de acesso aos fundos do castelo. A calefação
estava funcionando bem, para a satisfação de Cristine. Havia uma mesa
de bilhar num dos cantos do aposento. No outro, uma mesa redonda
coberta por uma toalha de veludo verde-musgo para jogos de cartas e
afins e uma mesa de pingue-pongue mais ao centro. Perto da janela,
também coberta por um acortinado escuro, um balcão de bar defronte a
uma prateleira de bebidas parecia convidar a um drinque. Os copos
enfileirados simetricamente pareciam ter sido limpos há poucos
minutos.
Um silêncio pesado caiu sobre eles. Cristine não sabia o que dizer. Não
partilhava da intensidade da dor dos dois homens à sua frente, porém
era como se houvesse perdido uma pessoa com a qual estivesse
acostumada a conviver.
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O advogado a fitou por instantes, desviou os olhos, tomou mais gole de
sua bebida e a deixou sem resposta.
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Regina, que começava a servir o jantar, tossiu discretamente,
controlando-se para não responder a James em defesa da filha.
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- Prazer. – respondeu Cristine surpresa com a cena que se desenrolava.
Definitivamente o dia vinha se superando em surpresas para ela.
- Olha, quer saber? Essa aí é uma oportunista que dava pro padrinho.
Pronto, falei.
- Angélica! Por favor! – repreendeu Regina.
- Mas mãe, é verdade! Essa mulher é uma vagabunda.
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Cristine olhou para Angélica com o semblante deixando transparecer
decepção frente às suas colocações. Angélica olhou para Cristine e
sorriu amenizando sua expressão:
- Olha só... Eu não to querendo dizer que eu concordava ou não com o
relacionamento deles... Mas esse relacionamento de fato existiu, não se
pode negar. E eu já te falei que o padrinho e eu nos entendíamos bem,
cada um aceitava o outro com a sua forma de pensar e agir. É isso.
- Eles ficaram juntos muito tempo? Estavam juntos agora?
- Acho que tiveram um caso durante uns cinco ou seis anos. Fazia mais
ou menos seis meses que o padrinho rompeu com ela. Acho que
cansou. Sei lá. Só sei que ela nunca aceitou o rompimento e seguido
vinha até aqui para torrar a paciência do pobre. Acabava ficando uma
noite ou outra e levava um dinheirinho pra casa no final das contas.
Mas era só.
- E esse irmão dela? Você conhecia?
Angélica riu:
- Irmão? Ta me gozando, né? Se esse cara for irmão da Valesca eu
mudo de nome!
- Mas então...
- É óbvio que é “casinho” dela. E não é de agora! Eu conhecia sim. Ele
vinha aqui com ela nos últimos tempos.
- Será que é por isso que o tio Artur rompeu com ela?
- Não... Com certeza não. Ele nunca se iludiu com a “fidelidade” da
Valesca. Acho que realmente saturou da cara dela.
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Enquanto isso no escritório a conversa se desenrolava
tempestivamente.
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- Vou pedir pra Regina providenciar algo pra vocês comerem. Ela já
deve ter tirado a mesa.
- Obrigada.
- Vem, vou te apresentar pra Cristine.
- Bom, com licença então, eu vou até a cozinha ver se Regina consegue
algo para comermos. Mesmo triste não perco a fome. – disse Valesca
dirigindo-se para a porta lateral.
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Dr. Mendes fitou Angélica com um olhar desaprovador frente a seu
comentário.
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Quando Cristine despertou levou alguns segundos até concatenar-se
com a realidade à sua volta. Esfregou os olhos, espreguiçou-se e jogou
o edredom macio que a cobria para o lado. Como de costume deu um
tempo a seu corpo, não gostava de acelerar seu despertar. No entanto
sua mente não acatou o comando de despertar gradativamente. Tão
logo seus olhos visualizaram a claridade difusa que transformava em
vultos os móveis ao seu redor foi como se seu cérebro detonasse uma
torrente de pensamentos. Recapitulou em segundos o dia anterior e as
emoções a fizeram sentar na cama, com uma sensação de angústia.
Calçou seu par de chinelos de dedo que havia deixado ao lado da cama
e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho, achando-se abatida e com
olheiras. “Também... pudera...”, pensou. Lavou o rosto sendo que não
conseguiu dissipar o mal estar. Resolveu então que o melhor para
reanimá-la seria um bom banho. E assim o fez.
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- Que bom. – respondeu Cristine, rumando para a cozinha.
- Senta aí, minha filha – disse Regina – Queres tomar café ou preferes
esperar pelo almoço?
- Que horas é costume servir o almoço? – perguntou Cristine.
- Ao meio dia, em ponto. Seu Artur sempre gostou do almoço
pontualmente.
Ao dizer isto Regina calou-se, dando-se conta que nunca mais teria o
patrão na cabeceira da mesa. Suspirou.
- Acho então que vou dar uma enganada no estômago, afinal falta
menos de meia hora pro almoço... – disse Cristine pegando uma
banana do cesto de frutas e sentando-se perto do fogão à lenha.
- E Angélica? – questionou Cristine.
- Está estudando com o irmão. Mas disse que vem almoçar aqui. Deve
estar chegando.
- E você, Adelaide? Mora aqui perto? – perguntou Cristine.
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- Muito. Aqui todos sempre foram muito bons pra mim... O Seu Artur
até pagou o estudo pra mim. Eu terminei o segundo grau no ano
passado. A escola é pública, mas o material era caro, eu não conseguia
comprar...
- Mas o teu salário é tão pouco? – provocou Cristine.
- Não... Não é isso... Mas é que eu gasto muito com o meu pai, que é
doente. A minha mãe não consegue trabalhar, pois cuida dele, e os
meus irmãos são pequenos ainda.
- O pai de Adelaide teve um derrame há mais de sete anos e ficou
praticamente vegetativo. – comentou Regina.
- Deve ser uma barra pesada... – conjeturou Cristine.
- Se é... – disse Adelaide - mas a gente vai levando.
- Adelaide tem irmãos gêmeos, de nove anos, uns encantos. – disse
Regina.
- O Jorge e o Joel, são meio que como filhos meus, ajudei a criar. –
completou Adelaide.
- Deve ser muito bom ter irmãos... – disse Cristine.
- É bom. – riu-se Adelaide – às vezes dá vontade de amarrar os dois
numa árvore, por causa das molecagens, mas no fundo é muito
divertido.
- Imagino... – riu Cristine.
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“Chega a dar inveja...” pensou Cristine divertida. “Aliás, a irmã dele
parece que deve ter a mesma maneira de se distrair”, continuou
pensando Cristine, lembrando-se das tiradas e dos olhares de Angélica.
“E como ela fica linda assim irritadinha”...
Angélica a fitou encantada com seu sorriso. Aliás, o que mais fizera
desde o dia anterior havia sido se encantar com os trejeitos de Cristine.
Em outra ocasião aquilo não a deixaria tão desassossegada, porém na
situação que estava vivenciando sentia uma inquietação palpitante a
cada vez que se percebia a admirar a loirinha. Instantaneamente
tentava direcionar toda sua energia ao seu objetivo naquele momento.
Tinha plena consciência do que estava em jogo, e do quanto precisava
ficar atenta.
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- Pois é. O padrinho queria fazer isso há tempo... – complementou
James.
- Mas vamos nos sentar – disse Dr. Mendes, desconversando e
gentilmente puxando a cadeira para Cristine sentar. Logo em seguida
repetiu o mesmo gesto para Angélica.
Logo após o almoço Dr. Mendes referiu que voltaria para a cidade, pois
precisava dar andamento em alguns processos que tomariam grande
parte de seu tempo naquela tarde. Disse ainda que não poderia dormir
no castelo naquela noite, sendo que retornaria somente no final da
tarde do dia seguinte. Despediu-se e foi levado por Henrique até a
cidade, pois havia deixado seu carro numa oficina, para revisão.
- Toma, coloca por cima, senão tu vai tomar um banho até lá em casa.
É perto, mas essa chuvinha ta molhando pra valer.
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Cristine jogou a capa por cima de sua vestimenta enquanto Angélica
ajeitava a sua e abria o guarda-chuva. A morena passou o braço por
cima dos ombros de Cristine trazendo-a de encontro ao próprio corpo,
com o intuito de protegê-la das gotas que se projetavam das nuvens
carregadas. Cristine aninhou-se bem junto a Angélica e passou o braço
por sua cintura, para conseguir acompanhar sua marcha e ficar o mais
embaixo possível da proteção do pano do guarda-chuva. Cristine podia
sentir o perfume dos cabelos de Angélica cujos fios soltos, fustigados
pelo vento, batiam de encontro a seu rosto provocando-lhe uma
agradável sensação de carícia.
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Angélica continuou com a mesma marcha, obrigando-a a seguir com
ela, tentando ainda desviar a conversa. Nem bem haviam avançado
alguns metros e novamente Cristine percebeu um movimento nos
arbustos e teve a nítida impressão de avistar um vulto disforme à
observá-las. Sobressaltou-se.
Andaram mais um pouco e a mata densa cedeu lugar a uma clareira aos
pés de um morro, onde uma casa de madeira pintada de azul
encontrava-se com a porta da frente aberta, como que num convite a
abrigarem-se da chuva. Por instantes Cristine parou em frente à
residência, encantando-se com a mesma. Era uma casa singela, em
estilo polonês, toda de madeira e cuja cobertura de telhas francesas
conferia um ar de antiguidade à construção. De fato era uma casa
bastante velha, porém em ótimo estado de conservação. As tábuas
dispostas verticalmente ostentavam uma barra decorativa logo abaixo
do nível das janelas, com pinturas de flores amareladas. Nas paredes
laterais externas pequenas armações com vasos de flores adornavam
toda a extensão, dispostas assimetricamente e conferindo um ar
primaveril àquela paisagem de inverno. As janelas não possuíam
venezianas, somente vidraças com armações pintadas de um azul
escuro cujo arremate interno de cortinas brancas e rendadas dava a
impressão de uma casa de bonecas. Ao redor das janelas também havia
um contorno pintado, retratando flores e folhas coloridas. Havia um
sótão onde duas janelas, estas com venezianas de madeira, se abriam
49
para a frente da residência. Todo o telhado da casa era circundado por
lambrequins de madeira pintados de branco, arremate tipicamente
polonês. Uma chaminé de metal projetava-se do meio do telhado e
expelia golfadas de fumaça, sinal de que alguém mantinha o fogão à
lenha aceso.
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- Muito prazer, Ariel. – disse Cristine.
- Igualmente. – respondeu o garoto.
Ele aparentava não ter mais do que 16 anos, era alto como Angélica,
porém as semelhanças terminavam por aí. Ariel era claro, muito magro,
com olhos esverdeados e as feições da mãe. Tinha um sorriso lindo
como o de Angélica, ostentando uma dentição perfeita e uma covinha
no queixo.
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- Pois eu acho que foi um dos iluminados do planeta! – disse Cristine.
- Ta me gozando, né? – disse Ariel.
- Não to não.
- Mas me diz onde é que eu vou usar esse raio de matemática na vida?
- Bom, no meu caso eu uso direto... Eu fiz arquitetura. Mas a gente usa
sempre. O que é que você gosta de fazer?
- Nadar! – respondeu Ariel com os olhos brilhantes.
- E você nada como amador?
- Não. Eu participo de competições. – disse Ariel orgulhoso.
- Bom, então uma das aplicações práticas da matemática poderia ser
para calcular quantas braçadas você teria que dar para atravessar uma
piscina olímpica e quanto tempo levaria para ser mais rápido do que os
teus adversários.
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Ariel permanecia concentrado e empenhado em resolver as próximas
questões de seu caderno.
- Tu me respeita, guri!
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Logo em seguida Israel também chegou. Estivera trabalhando na
estufa, na tentativa de se distrair. Continuava com aspecto triste e
abatido, mas parecia disposto a reagir.
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- O que?
- Porque é que a tua mãe não faz as refeições conosco? Pelo que você
conta ela é quase da família.
- Bom, isso é coisa dela... Desde cedo ela sempre foi a cozinheira da
casa. Apesar de conhecer o padrinho de longa data eles sempre
mantiveram certa distância. O amigo mesmo do padrinho é o meu pai.
E este sempre passou mais tempo fora do castelo do que dentro.
- Mas como você se sente com sua mãe a servi-la na “mesa do patrão”?
E me desculpe a pergunta, eu não quero causar constrangimento nem
criar polêmicas, só quero entender... – disse Cristine.
- Pois é... Parece estranho, mas eu me acostumei com isso... Na
verdade eu nunca me preocupei com isso, pois para mim, comer na
cozinha, na sala, quarto, no escritório, tanto faz. Eu não ligo para essas
coisas. Eu sempre costumei circular por todos os espaços desta
propriedade, sem restrições. E sempre tentei entender e aceitar as
pessoas daqui como elas são, com suas virtudes, manias e encucações.
- Eu te admiro por isso... – conjeturou Cristine. – Não sei se
conseguiria...
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Logo em seguida, depois de instantes que pareceram horas, onde uma
angústia latente parecia querer saltar do peito de Cristine, Angélica
desconversou:
- Vamos descer? Daqui a pouco o jantar vai ser servido. Pontualidade
britânica, lembra?
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- Ora, ora, se não é a princesinha descendo de seus aposentos – disse
Valesca, com uma naturalidade que não soava de forma nenhuma a
deboche.
As três sorriram.
- E olha que o cabeçudo até pediu mais umas aulas! – emendou
Angélica.
- Não acredito... – disse Regina.
- Mas é verdade! – falou Angélica. – Com certeza Cristine ganhou o céu
com este feito! – e riu-se.
- Agora vão indo lá que eu vou servir o jantar. – disse Regina.
- Regina... – disse Cristine - ...você não gostaria de jantar conosco?
- Mas eu vou jantar...
- Eu falo conosco, na mesa, agora. – continuou Cristine.
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Angélica deu de ombros, afinal já sabia como aquela conversa
terminaria. Deixou as duas e foi para a sala de jantar.
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sorriu ternamente e a deixou parada e estática, de pé ao lado da mesa
de jantar, sem conseguir esboçar nenhum tipo de reação. Por instantes
sentiu-se uma colegial descobrindo os estranhos e deliciosos prazeres
da carne. Tratou de dissipar aquela sensação e rumou para seu quarto,
disposta a dormir profundamente. Seu intento, porém custou um pouco
a se realizar, uma vez que ficou durante muito tempo ruminando as
sensações que a proximidade de Angélica lhe causavam. Resolveu
deixar de lado suas “pirações”, como costumava dizer. Deixaria as
coisas acontecerem a seu tempo e conforme o acaso lhe reservasse.
Deu-se conta que nas últimas horas o que mais havia feito era deixar-
se levar pela canoa do destino. Enfim adormeceu.
Parte 2
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pessoas seria uma tarefa execrável e nefasta. Para Guilherme, no
entanto, era um trabalho como outro qualquer. Cuidava daquele
campo-santo desde que tinha vinte anos, e agora beirando os sessenta,
costumava dizer em tom de brincadeira que tinha a vantagem de ter
um serviço onde ninguém o incomodava e nem tagarelava aos seus
ouvidos. Para esta função bastava sua esposa em casa, emendava rindo
da própria piada.
Tal atitude deixou Morris tal qual uma estátua de gesso. Pálido e teso
não moveu um músculo sequer do rosto. Simplesmente recolocou a
cadeira em seu lugar e voltou à sua costumeira posição de sentido.
Anemary não disfarçou o ar de desaprovação. Adelaide apressou-se em
seguir Cristine, empunhando a bandeja de prata polida.
- Estou para ver cebolas mais fortes que estas... – comentou passando
o avental nos olhos.
- Quase que dá para sentir daqui. – respondeu Cristine.
- Mas então vai lá pra sala, vai, - disse Regina – estão esperando para
servir o teu café, menina.
- Eu vou tomar café aqui na cozinha. Gosto mais.
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cheiro e lavou-as em seguida com sabão líquido. Enquanto isso Adelaide
corria para trazer a louça francesa da mesa para a cozinha.
- E Angélica? Já acordou?
- Já. Acordou e saiu muito cedo. – respondeu Regina.
- Ah... – anuiu Cristine com ar de quem não havia ficado satisfeita com
a resposta.
- E não tenho nem idéia pra onde aquela menina foi... – continuou
Regina.
Conversaram ainda durante algum tempo até que Regina pediu licença
para ir até a despensa pegar alguns mantimentos para o almoço.
Cristine resolveu dar uma bisbilhotada no castelo. Como que por
encanto Anemary e Morris desapareceram de sua vista. Às vezes era
como se simplesmente evaporassem, reaparecendo quando menos se
esperava. Morris tinha passos de felino, dos quais não se conseguia
ouvir a aproximação. Anemary também conseguia ser muito discreta, e
Cristine não saberia dizer como conseguia abafar o barulho do salto de
seus sapatos. Cristine chegou a conjeturar a hipótese dos dois terem
61
um caso amoroso, afinal desapareciam e ressurgiam como que num
passe de mágica! Poderiam encontrar-se furtivamente nos corredores
sombrios, esvair-se em atos libidinosos e logo em seguida reaparecer
como se nada tivesse acontecido. Cristine foi obrigada a rir do próprio
pensamento e da cena que imaginara. Não. Com certeza não seria
possível a ambos deixarem-se levar pelos prazeres mundanos, pelo
menos os dois juntos, seria talvez um caso de amor platônico, para não
amarrotar os uniformes e despentear o coque da governanta.
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e dourada. Apresentava um relevo ao redor que facilitava o contato,
impedindo que as mãos resvalassem com a umidade natural da pele.
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meias e as cuecas repousavam alinhadas dentro das gavetas, dispostas
por cores. Esta organização com certeza deveria ser obra de Anemary,
no entanto o seu tio parecia que colaborava na manutenção da mesma.
Havia uma porta lateral que dava para um banheiro amplo. A mesma
organização do quarto se repetia no banheiro. As loções pós-barba, os
perfumes e os desodorantes masculinos se encontravam dispostos
simetricamente no balcão da pia, em frente a um enorme espelho
retangular.
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pincéis como que numa dança pictórica. Nada se encontrava alinhado,
nem tão pouco obedecia a uma lógica simétrica. Tudo ali era improviso
e sentimento. “O outro lado do tio Artur”, pensou Cristine, “e por certo
o mais encantador”.
Ainda observando seu redor Cristine percebeu mais uma porta que dava
acesso a outra peça. Esta, porém, mais baixa que as demais, mais
estreita também. Parecia mais um alçapão vertical do que uma porta. A
loirinha aproximou-se com curiosidade. Desta feita a chave jazia
pendurada num prego enferrujado cravado no centro da estrutura de
madeira. Era uma chave antiga com um símbolo de um pentagrama
esculpido em sua extremidade. Pendurada, a chave deixava à mostra o
pentagrama invertido. Cristine não gostou do que viu. Conhecia alguma
coisa de magia e sabia que o pentagrama invertido era associado à
magia negra. Um calafrio percorreu-lhe a coluna. No entanto, movida
pela curiosidade em conhecer a fundo o seu falecido tio, Cristine pegou
a chave, mesmo que relutante, e descerrou aquela pequena porta de
acesso. Instantaneamente um odor fétido e forte chegou-lhe às narinas,
o qual a jovem não saberia conceituar. Recuou um pouco, inspirando
profundamente para em seguida trancar a respiração e adentrar no
breu. Procurou um interruptor de luz na escuridão daquele covil e ao
encontrá-lo foi acometida por um sobressalto. A luz amarelada de uma
lâmpada escurecida pelo pó mostrou à Cristine uma verdadeira cena de
horror a qual a jovem observou por poucos segundos antes de sair
correndo daquele lugar. Alguns ganchos de metal pendiam do forro e
das paredes de pedra irregular, num cenário que lembrava um açougue
insalubre. Uma mesa central ostentava carcaças ouriçadas de animais
que pareciam querer saltar sobre quem se atrevesse a entrar ali. Os
olhos das pequenas feras pareciam vivos pelo efeito da luz, porém o
negrume da morte estava estampado na rigidez facial daqueles seres
que certamente pertenciam a outro mundo. Algumas lâminas, facas e
adagas encontravam-se espalhadas no tampo de madeira. Cristine
65
abafou um grito de desespero e saltou dali o mais rápido que pôde.
Fechou a porta atrás de si, trancando-a com a chave de metal.
Depositou aquele símbolo nefasto no lugar onde estava e recuou
assustada. De repente o atelier onde estava assumiu um ar ameaçador
e Cristine sentiu o frio do medo percorrendo sua pele. Tratou de sair
dali e trancar a porta, recolocando a cortina a esconder aquela
passagem, que desejou não ter conhecido. Devolveu a chave à caixa de
madeira no criado-mudo e abriu a porta do quarto vagarosamente,
espiando o corredor antes de sair sorrateiramente e dirigir-se para seu
quarto.
Estava tão absorta em sair dali o quanto antes que nem percebeu o par
de olhos que a espiavam sorrateiramente pela fresta de uma das portas
daquele vasto corredor.
Ficou em seu quarto até a hora em que uma voz familiar veio bater à
porta e chamá-la para o almoço: era Angélica.
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A resposta hesitante de Cristine não convenceu Angélica. A morena era
perspicaz e observadora. Sabia que algo não estava dentro dos
conformes, todavia achou melhor deixar que Cristine lhe contasse
quando tivesse vontade.
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- É meio lenta essa encrenca! – sorriu Angélica. – Eu vivia dizendo pro
padrinho comprar um equipamento melhor, mas ele dizia que este
estava bom para o que ele queria...
- Não deixa de ser coerente... – riu-se Cristine.
- E isso é bom?...
- Ôôô... Muito...
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Parecia admirá-lo muito para conceber a idéia de um Artur nefasto, cujo
lado negro escondia-se atrás das cortinas de um inofensivo atelier de
pintura. Ou quem sabe a Angélica que lhe acompanhava não era essa
pessoa que se apresentava? Quem sabe não só tinha conhecimento
como participava sabe-se lá do quê naquele covil imundo e insalubre,
que parecia a entrada do submundo, mais ainda, parecia o próprio
antro das trevas? Dúvidas, incertezas, perguntas sem respostas...
Enquanto não descobrisse a verdade sobre aquele lugar seria melhor
manter-se em um prudente silêncio. Com estas incertezas turvando-lhe
os pensamentos continuava sua marcha ao lado de Angélica. Tratou de
desviar os pensamentos para evitar que Angélica percebesse sua
expressão de aflição. Mas já era tarde. A morena já percebera que algo
estava correndo fora do normal, e o que era pior, alheio a seus planos
e, por conseguinte fora de seu controle. Esforçou-se para manter a
calma. Puxou conversa sobre o mais comum dos assuntos: o tempo.
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para dentro daquela casa, era como se qualquer angústia e medo se
dissipasse. Respirou profundamente, aliviada.
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- Eu estou encantada com esta cabana... – disse Cristine.
- Como faz frio aqui nesta terra! – disse Cristine esfregando as mãos.
- A gente acaba acostumando e nem sente tanto assim. Na verdade
hoje a sensação térmica está mais baixa por causa do vento.
- Pode ser... – concordou Cristine – Será que o Dr. Mendes chega cedo
hoje?
- Não sei... Conforme o movimento do escritório.
- E o James? Onde será que se meteu? Eu não o vi o dia todo... – disse
Cristine.
- Não faço a mínima idéia – respondeu Angélica secamente.
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- Vocês realmente não se fecham, não é mesmo?
- Não. É como eu já te contei. Coisas de infância.
- Mas vocês poderiam ter superado isso, não?
- Poderíamos. Mas não superamos. Digamos que deva ser uma antipatia
inata.
- Eu vi quando vocês passaram para cá, mas tava num plá com uma
mina no telefone...
- Imagino... – disse Angélica.
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- Bom, aí terminei o meu léro com ela e pensei: estudo ou não estudo?
– continuou Ariel.
- Acho que a pergunta é: “perturbo ou não perturbo a Cristine”? –
emendou Angélica.
- Começou a implicância, viu?... Se eu não estudo sou rebelde, se
resolvo estudar sou “perturbante”... Vai entender as irmãs mais
velhas!!! – disse Ariel.
Cristine gargalhou.
- Deixa ela – disse a loirinha – Vamos dar uma pegada na matéria sim!
- Quer um chocolate, ô cabeça de vento? – perguntou Angélica.
- Demorou pra oferecer, ein??? – provocou Ariel.
- Olha garoto...
Ariel abriu sua pasta e espalhou seu material sem cerimônias sobre a
mesa da cozinha. Cristine estudou com ele por quase três horas.
Eventualmente a loirinha percebia os olhares de Angélica para ela e
mais de uma vez surpreendeu-a lançando-lhe um disfarçado sorriso
sedutor.
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- Mas chato. E convenhamos... Inoportuno – disse a morena à meia
voz.
Cristine suspirou.
- Tudo bem.
- Não vejo a hora! – interpelou Valesca – O meu querido Artur por certo
se lembrou de mim...
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seu pai num exame médico. Cristine chegou a cogitar a possibilidade de
pedir que Angélica subisse com ela, mas achou prudente não fazê-lo,
tanto para evitar especulações por parte da morena quanto para não
demonstrar quão intensamente tinha reagido à aproximação desta. De
modo que suspirou aliviada ao ver que Adelaide a acompanhava. O que
menos tinha vontade naquele momento era circular à noite sozinha
naqueles corredores.
*******
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Cristine deu de ombros e o advogado continuou:
- Creio que James e eu possamos colocá-la a par, mais tarde, no
escritório.
- Por mim tudo bem. Só não sei se vai servir para alguma coisa... –
disse Cristine.
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Angélica sorriu tristemente, baixando os olhos.
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- Oi pai. – disse Angélica.
- Olá. – respondeu o velho.
- Senhor, que belo trabalho desenvolve aqui! – elogiou Cristine.
- Que é isso... – respondeu Israel – Eu só auxilio um pouco essa
maravilhosa natureza que nos cerca, a mão verde de Deus.
- Não se subestime – continuou Cristine – Eu soube de fonte segura que
o senhor é quem mantém este lugar lindo, além de tê-lo construído.
Passaram quase que toda a tarde ali, sem que Cristine tivesse visto
tudo que havia para ser conhecido naquele lugar. Por volta de cinco
horas Israel convidou-as para tomar um café, em casa.
- Vai indo, pai, eu ainda quero mostrar o meu xodozinho para Cristine.
– disse Angélica.
- Aqui está a minha seção favorita deste lugar – disse Angélica colhendo
um dos morangos, retirando seu pequeno caule e colocando-o sob a
água corrente de uma torneira próxima.
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- Huuuummm... Que delícia! – exclamou.
- Minha vez...
Sem desviar os olhos de Cristine, Angélica pegou outro fruto, desta vez
menor e o levou à boca da loirinha. Esta o abocanhou completamente,
também extrapolando os limites do fruto e aprisionando os dedos de
Angélica entre seus lábios. A morena deixou-se prender por aquela boca
sedenta e permitiu que Cristine lambesse delicadamente seu indicador,
depois passasse a língua languidamente por seu polegar, sugando o
caldo que escorria por ele. De olhos fechados Cristine pode sentir
quando os dedos de Angélica libertaram-se de seus lábios e
escorregaram na direção de sua nuca segurando-a com firmeza e
trazendo-a para junto de si. A sensação que sentiu a seguir foi um
misto de prazer e êxtase. A boca de Angélica tocou a sua com
suavidade e doçura. Em princípio os lábios movimentaram-se
contornando os seus próprios, beijando-os suavemente.
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Os corpos colaram-se como que envoltos por fios invisíveis. Elas podiam
sentir a incandescência da pele. As mãos passeavam pelos contornos e
curvas, numa viagem exploratória e prazerosa.
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- Eu topo. Mas agora eu quero mais um pouquinho desses suculentos
morangos... – disse Cristine colando novamente sua boca à de Angélica.
Depois de mais algumas carícias as duas mulheres conseguiram,
mesmo que a contragosto, desvencilharem-se uma da outra. Angélica
acompanhou Cristine até o castelo e combinou de buscá-la dentro de
uma hora e meia.
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- Oi. – disse com a cara mais deslavada do mundo.
- Oi. – respondeu Cristine.
- E aí? Pronta pra ser minha cobaia? – perguntou a morena.
- Como assim? Você nunca fez um fondue antes? – questionou Cristine
– “Ou será que pensa que eu nunca fui com uma mulher para a cama?”,
pensou divertida.
- Calma... É que vou estrear um aparelho de fondue novo. Espero que
seja bom.
- Vai ser... – disse Cristine, deixando transparecer segundas intenções
na voz, percebidas somente por Angélica, que disfarçou.
- Vamos então? – disse a morena.
- Vamos.
- Ô mãe... Não comenta com o Ariel que a gente vai fazer fondue,
senão o cabeçudo vai se enfiar lá em casa e torrar a paciência da
Cristine. – pediu Angélica.
- Pode deixar, eu não comento não – disse Regina rindo – Aquele
moleque enche o saco mesmo de vez em quanto!
- Valeu mãe!
- Tchau Regina! – disse Cristine.
- Tchau guriazinhas.
- Ta com frio?
- To.
- Chega pertinho então... Eu te esquento...
- Isso é uma promessa?
- Ou uma ameaça! – completou Angélica em tom de brincadeira.
- Olha só, vamos dar um drible no Ariel, senão a gente vai ter
companhia no fondue... – disse Angélica pegando Cristine pela mão e
fazendo um pequeno desvio no trajeto.
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Depois de fecharem a porta à chave Angélica tirou seu casacão e
ajudou Cristine a desvestir o seu. Penduraram os casacos na guarda de
uma cadeira e foram para a sala. Ali na mesinha de centro, defronte à
lareira, o aparelho de fondue já esperava as mulheres famintas. Uma
tábua de frios preparada aguardava ao lado de uma garrafa de vinho.
- Saúde. – brindaram
Angélica vestia uma calça jeans e um suéter cor de telha. Havia tirado
as botas e estava somente de meias, assim como Cristine, que deixara
seu calçado junto à porta da rua. Todo o assoalho da casa de Angélica
era de madeira, o que tornava aquele ambiente aconchegantemente
quente.
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Cristine olhou para ela com imenso carinho. Sentia sinceridade em suas
palavras. Mordeu a fruta saboreando-a lentamente.
Cristine sentiu todo seu corpo se acender e levou sua boca até a de
Angélica. Apertou os lábios contra os delas e ambas sentiram a doçura
da fruta escorrendo nas bocas. Entrelaçaram-se e beijaram-se com
urgência e ardor. As línguas de fogo da lareira crepitavam no mesmo
ritmo frenético que as línguas das amantes.
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intenção de encaixar Cristine entre elas. Ambas sentiram-se totalmente
molhadas. E queriam mais.
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dedos moveram-se escorregadios para dentro daquela cavidade morna
e macia. Cristine emitiu um gemido gutural e abocanhou a boca de
Angélica, num beijo ardente. Iniciou um movimento de pressão contra
os dedos da morena que a penetrava ritmicamente. Angélica continuava
os movimentos de vai e vem quando sentiu que Cristine ajoelhou-se
sobre ela fazendo com que seus dedos saíssem de dentro de seu sexo.
Cristine puxou Angélica para cima, a fim de que ficasse na mesma
posição que ela, ajoelhada à sua frente. Colou seu corpo ao da morena
e colocou seus dedos ágeis diretamente sobre o ponto de prazer da
morena. Cristine sentiu o volume rosado aumentar de tamanho em sua
mão e massageou-o com habilidade, arrancando sussurros de prazer da
boca da morena.
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- Você conseguiu fazer todo este contratempo da minha vida valer a
pena, sabia?
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- Porque as paredes daquele castelo devem ter ouvidos... E olhos... E
acho que não pega bem eu ficar aqui... Faz só quatro dias que o tio
Artur faleceu... Sei lá... Não acho adequado...
- Mas quem é que vai saber da gente?...
- Eu sei.
- Sabe de uma coisa? Eu não sei como vou entrar no castelo... – disse
Cristine pensativa.
- Pela porta, ora!
- Mas com que chave?
Angélica gargalhou:
- Fica tranquila que aqui a gente costuma deixar as portas
destrancadas. Ainda dá pra fazer isso. – disse a morena.
- Mas pelo que pude perceber a senhorita trancou suas portas à
chave... – provocou Cristine.
- Bom... Convenhamos que não seria muito adequado que meu
inocente irmãozinho te visse em trajes de Eva gozando em cima de
mim...
- Boba! – disse Cristine, jogando um guardanapo na morena que se
esquivou do arremesso.
Angélica retornou para casa que era só sorrisos. Apesar de tudo que
estava se passando sentia-se flutuar. No caminho pensava, “tudo bem,
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isso é só uma pequena mudança na ordem das coisas... não me
impedirá de cumprir o que me propus fazer, muito pelo contrário...”. No
entanto, ao mesmo tempo em que se sentia envolvida e leve, uma
sensação de preocupação a afligia. Sabia perfeitamente o que ocorria
não muito longe dali.
**********
89
entender certas situações, nem tão pouco conseguia penetrar mais a
fundo em questões familiares, que envolviam sua própria história de
vida. Percebia que as pessoas ao seu redor sabiam mais do que lhe
contavam. Aquele ambiente se descortinava estranho e desconhecido.
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direcionou o foco de luz. Outro raio iluminou a noite e desta vez Cristine
nada percebeu.
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suas mãos. Lentamente foi se aproximando da sepultura de seu tio
Artur. Na penumbra percebeu que algo estava diferente. Novamente
seus batimentos cardíacos aceleraram-se. Prudentemente parou uns
instantes e apurou o ouvido. Silêncio, absoluto silêncio.
Estática, sentiu suas pernas cedendo com o peso de seu corpo. Fez um
esforço quase que sobre-humano e conseguiu controlar a sensação de
desmaio que a invadia. Novamente deu um passo para frente e a luz
fraca da lanterna, auxiliada por um relâmpago fugaz, não deixou
dúvidas em Cristine: a catacumba estava vazia!
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Chegou à porta dos fundos do castelo ofegante e totalmente
aterrorizada. Entrou e fechou a porta atrás de si, passando uma pesada
tranca nos suportes de metal no lado de dentro da porta.
Com o pouco de senso lógico que lhe restava tirou as botas, para poder
correr em silêncio pelos corredores desertos. Subiu as escadas quase
que de dois em dois degraus. Abriu a porta de seu quarto, entrou e a
chaveou logo atrás de si. Desta feita colocou novamente uma cadeira
para escorar o trinco por dentro, deixando-a ali, como um fiel guarda-
costas a zelar por sua integridade. Também correu até a janela
fechando os tampos de madeira e cerrando as tramelas por dentro.
Pronto. Sentia-se ao menos parcialmente protegida.
Por volta de sete horas percebeu que o dia havia amanhecido e deu
graças a Deus. Talvez por relaxar frente ao término da escuridão
acabou pegando no sono e dormiu até quase dez horas da manhã.
Acordou de sobressalto.
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banheiro. Suas botas também estavam molhadas, por isto optou por
calçar tênis. Decidiu que não falaria com ninguém sobre a noite
anterior, somente com Angélica. “Preciso aparentar naturalidade
quando descer” pensou, tentando controlar seus nervos.
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Aos poucos Cristine foi relaxando. Baixou o pedaço de madeira e
respondeu:
- Tudo bem... É que não estou acostumada a andar assim pelo meio do
mato... E me assustei.
- A senhorita gostaria que eu a acompanhasse a algum lugar?
- Não. Não precisa. Eu to indo ali na casa da Angélica.
- A senhorita é quem sabe. Se precisar de algo é só chamar. Com
licença.
Cristine deu o lado para o rapaz passar e este rumou pelo mesmo
caminho, porém seguindo em frente, na direção do capão de mato mais
cerrado. Cristine percebeu que ele tinha um facão na cintura e um saco
de linhagem pendurado. De fato parecia estar disposto a buscar lenha.
Pelo menos se quisesse poderia ter lhe atacado, sendo que não o fez. Já
havia ouvido Dr. Mendes se referir a ele, embora não o tivesse visto
ainda. Precisava controlar seus nervos. Seguiu em frente.
Contornou a residência dos pais da morena pelos fundos, não queria ser
vista por ninguém. Percebeu fumaça na chaminé da lareira, respirando
aliviada pelo indício de Angélica estar em casa. Bateu na porta dos
fundos da cabana.
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Angélica sabiamente permaneceu calada, somente abraçando Cristine e
passando a mão sobre as suas, numa atitude de carinho e proteção. A
loirinha respirou fundo e continuou:
- Olha só.... O que eu vou te falar vai parecer loucura... Mas eu juro
que é verdade... Ontem à noite eu não conseguia dormir...
- Eu também custei a dormir... – disse Angélica amorosamente,
tentando descontrair sua interlocutora – Fiquei pensando numa certa
pessoinha adoravelmente sedutora e linda...
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Quando deu por encerrada sua história Angélica permaneceu como que
em estado de choque, fitando-a com uma expressão de extrema
preocupação.
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Angélica pegou um casaco escuro que chegava quase que aos joelhos
da loirinha. Apesar de sobrar Cristine dentro dele era infinitamente
melhor do que sentir frio. Isso sem falar no cheiro de Angélica,
entranhado no tecido, que exalava como um bálsamo para os sentidos
de Cristine. A morena também emprestou uma touca de lã para a
loirinha, que a enterrou na cabeça a fim de proteger suas orelhas.
- Mas tava aberto! Essa pedra não estava aqui! Ele não está aqui
embaixo! Eu vi! – Num impulso tentava inutilmente mover a pesada
lápide que tinha as cravelhas fortemente parafusadas unindo-a à
mureta de pedras do jazigo.
Cristine ainda olhou mais uma vez para a lápide e balançou a cabeça
incrédula. Dirigiu ainda um olhar de súplica aos anjos de pedra, como
que numa tentativa de que pudessem acenar a verdade para Angélica.
A trilha de onde surgira o ser horrendo que a atacara continuava ali,
aparentando ser inofensiva.
98
Por um momento chegou a cogitar a possibilidade de estar
enlouquecendo.
- Ta... – continuou Cristine – Não vamos mais falar disso. Outro dia
quem sabe.
- Eu acho melhor. – Assentiu a morena.
- E Ariel? – perguntou Cristine mudando intencionalmente de assunto.
- Ta ótimo. O cabeçudo perguntou por ti hoje bem cedo.
Cristine sorriu.
- Pois é... A aula particular dele foi adiada ontem por motivos de força
maior... – brincou a loirinha.
- Mas em compensação tu deste e recebeste uma aula e tanto, ein? Ou
preferias matemática? – provocou Angélica.
- De forma alguma... Digamos que... Anatomia é muito mais
interessante...
- Concordo plenamente. – disse a morena enquanto abraçava Cristine e
a envolvia num beijo amoroso.
Entre afagos e carícias Angélica lembrou-se de perguntar:
99
- Tu ta em jejum? – perguntou Angélica.
- Pois é... Mas eu descobri que teus beijos têm o poder de me
alimentar...
- Não debocha! Eu to falando sério. – disse a morena.
- Eu também...
100
se e preparando um sanduíche de presunto e queijo para enganar o
estômago de Cristine.
- É... Eu preciso dar uma saída... Jogo rápido. Se quiseres podes ficar
aqui.
- Ta tudo bem? – questionou Cristine.
- Ta. Tudo legal.
- Por que essa cara de preocupação? – insistiu Cristine.
- Preocupação? Impressão tua. Ta tudo bem, tudo normal.
Cristine não quis ser invasiva e controlou-se para não perguntar aonde
Angélica iria. Como que adivinhando seus pensamentos a morena disse
com voz branda:
- Eu vou até a cidade. Preciso resolver umas pendências. Mas eu não
demoro.
- Eu não conheço a cidade... – arriscou Cristine, envergonhando-se em
seguida de sua ousadia.
- Outro dia eu te levo para conhecer, ok? Hoje não dá.
- Desculpe, eu não quis... – tentou dizer Cristine, porém um beijo de
Angélica não permitiu que concluísse a frase.
- Eu sei... – respondeu a morena.
101
- Tu que sabe. – disse Angélica.
Elas ainda trocaram um beijo ardente e cada qual seguiu seu caminho
naquele início de tarde de domingo.
****************
102
- NÃO! Tem uma cobra aí dentro!
- Como?
- Tem uma cobra aí dentro!
- A senhorita Cristine diz que tem uma cobra dentro desta caixa! – disse
Anemary para o mordomo.
- Mas como veio parar aqui? – perguntou Morris recuperando seu tom
de voz pausado e sua postura inexpressiva.
- Ora Morris, francamente! – respondeu Cristine irritada – Você acha
que eu costumo encaixotar cobras para ficar gritando de susto?
- Desculpe mademoiselle... – disse o mordomo.
- Se eu soubesse que havia uma cobra aí dentro eu não teria aberto
esse raio de caixa! – continuou Cristine.
103
- Cristine, eu não sei como esse bicho peçonhento pode ter vindo parar
aqui, mas eu vou descobrir! Eu garanto. Pode ter sido um descuido...
Ou uma brincadeira de mau gosto...
- Brincadeira de mau gosto??? Quem por aqui é dado a esse tipo de
humor negro???
- Eu realmente não sei... – disse o advogado brandamente. – Mas eu
vou descobrir. Pode confiar no que te digo: eu vou descobrir.
- Eu vou até a cozinha. – disse Cristine – Preciso beber uma água com
açúcar...
- Vá, minha filha, vá... Eu desço logo em seguida.
104
- Tudo. Eu disse que não vou deixar que nada te aconteça.
- Mas você sabe de algo que possa me acontecer??? – questionou
Cristine.
- Não... Não sei... Mas... – titubeou Angélica – Se eu não tivesse ido à
cidade tu estarias lá em casa, comigo.
105
- Pronto. Agora está tudo bem... – disse a morena enquanto afagava os
cabelos de Cristine.
106
Angélica aproximou-se e rastejou sobre ela, deixando que seus seios
tocassem o sexo de Cristine, que arqueou o corpo num gemido.
Encaixou-se sobre a pequena mulher pressionando seu púbis contra o
dela. Novamente Cristine sentiu o jorro quente que vinha de dentro da
morena a escorrer-lhe por entre as pernas, misturando-se à sua própria
umidade. Angélica beijou a boca de Cristine com possessão e lascívia.
Deixava-se invadir pela língua de Cristine e percorria cada canto de sua
boca com a própria.
Desceu mais um pouco e sentiu a loirinha abrir mais suas pernas, num
convite explícito a posicionar-se entre elas. No mesmo ritmo lento e
sensual com o qual beijara os seios, Angélica passou a mordiscar os
arredores do sexo de Cristine. Quando sentiu que esta movimentava o
ponto central de seu prazer na direção de seus lábios, abocanhou-o de
uma vez, com sofreguidão e desejo. Sentiu o gosto daquela mulher em
sua boca e sorveu de sua essência como quem se serve de um néctar
dos deuses. Cristine tinha um gosto ímpar, um cheiro excitante e um
toque que fazia Angélica perder o chão. Aquilo por certo deveria ser
amor...
107
começou a lambê-lo ritmicamente, sentindo-o aumentar de tamanho
enquanto a morena estremecia a cada passada de língua. Disposta a
não castigar muito aquela mulher, que a havia feito gozar como
nenhuma outra, e sentindo que ela queria mais, abocanhou seu ponto
de prazer, passando a sugá-lo com avidez, cada vez mais rápido. Não
precisou de muito tempo para Angélica segurar-se na cabeceira da
cama, arquear o corpo e emitir um gemido gutural e espasmódico,
gozando na boca de Cristine.
Desta vez foi a loirinha quem sorriu e deitou a seu lado. Abraçaram-se
com força. Angélica puxou Cristine para cima dela, queria senti-la bem
perto. Aos poucos a respiração da morena foi se normalizando e elas
olharam-se nos olhos e sorriram, em silêncio. Naquele momento as
palavras eram dispensáveis.
108
- Oi... – disse a morena com voz sonolenta.
- Oi... – respondeu Cristine beijando-lhe suavemente os lábios.
- Ta olhando o quê?... – perguntou Angélica sorridente.
- Você...
- E...?...
- E estou admirando esta bela mulher que está deitada ao meu lado...
- Olha que assim eu fico mais convencida do que naturalmente sou...
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- Desculpa...
- Eu sempre coloquei a razão antes do sentimento, mas contigo não
consegui. E eu estou assustada com isso.
110
Novamente Cristine sorriu.
- Que é isso? Assim eu fico sem jeito... – disse a loirinha enrubescendo.
- Mas é verdade... – disse Angélica sapecando-lhe um beijo na testa. -
Vem, vamos comer.
111
Desta vez foi Cristine quem pousou sua mão sobre a de Angélica e falou
com seriedade:
- E agora sou eu que te digo que você precisa confiar em mim, acreditar
no que eu digo.
“Pois sim...” pensou Cristine, “se aquilo é tranquilidade o que será uma
noite agitada para essa mulher!”, e balançou a cabeça fazendo uma
careta para Angélica, aproveitando-se que Regina estava de costas. A
morena fez uma cara marota.
As três riram.
112
- Então acho melhor a gente almoçar por aqui mesmo. – disse Cristine.
- Pelo amor de Deus, meu filho! O que foi que houve? Aconteceu
alguma coisa com o teu pai??? – perguntou Regina ansiosa.
Angélica respirou fundo, segurou o irmão pelos ombros e fez com que
ele se sentasse.
113
chuva que fica pendurada ali na porta, tava indo pros fundos... Eu dei oi
pra ela e perguntei aonde ela ia. Ela me disse que ia buscar temperos lá
na horta. Eu me ofereci pra ir junto, pra pegar os temperos pra ela, pra
ela não precisar sujar as mãos na terra... É que eu acho a Adelaide um
tesão de mulher... Ela tem uns peitões...
- Ariel!!! – repreendeu Regina.
- Deixa ele contar mãe! – interveio Angélica – E aí, mano?
- Bom... Ela nunca me deu bola mesmo. E dessa vez não foi diferente.
Perguntou se eu não me enxergava e me chamou de garotinho. Aí eu
disse que não era um garotinho, que já era um homem! E que ela não
devia me tratar assim, que eu estava somente sendo gentil. Aí ela riu
pra mim e me disse: “quem sabe outro dia”... Bom, eu fiquei olhando
ela ir e pensei, pensei, pensei... “outro dia nada, eu vou hoje mesmo”,
eu só queria ajudar ela, e conversar, assim quem sabe um dia ela me
olhasse com outros olhos...
- Quanta pretensão, ein, galinho? – disse Regina em tom de
reprovação.
- Aí eu quis ir atrás dela, - continuou o jovem sem levar em
consideração a repreensão da mãe - mas começou a chover e eu entrei
na cozinha pra pegar um guarda-chuva pra mim. E um pra Adelaide,
pra ela não molhar os cabelos, pois tava só de capa... Depois fui atrás
dela. Só que eu fui devagar, para não assustar ela e também pra ela
não me botar pra correr... Fiquei só espiando ela de longe, meio
escondido. Ela tava lá, tão linda...
- Que coisa feia, meu filho! Espiando os outros! – repreendeu Regina
novamente.
- Mas mãe... Não era “outros”, era a Adelaide!
- Ta, e aí? – quis saber Angélica.
- Aí tudo aconteceu muito rápido. Ela tava de pé e parece que olhou na
direção dos fundos da propriedade... Como se visse alguma coisa... Sei
lá... Pode ter sido só impressão, não sei... Aí eu ouvi um barulho alto. E
me dei conta que era um tiro quando ela caiu igual uma jaca podre...
- Ariel! Pelo amor de Deus! – disse Regina.
- MÃE, pelo amor de Deus a senhora! Deixa o Ariel falar! Não
interrompe! – disse Angélica exaltada.
- Eu fiquei todo borrado de medo e me abaixei. Fiquei quieto, espiando
por entre os arbustos, mas eu não consegui ver mais nada. Só ela lá,
caída, sem se mexer. Aí eu saí correndo sem olhar pra trás. Parecia que
eu ia levar um tiro também. Fiquei com muito medo... Eu acho que ela
morreu.
- Santo Cristo! – exclamou Regina despencando numa das cadeiras de
madeira crua.
114
- Não, por favor, não vai! – pediu Cristine instintivamente, segurando-a
pelo braço.
- E tu fica aqui também! Não sai daqui! – respondeu a morena para
Cristine, determinada, já caminhando em direção à porta.
- Não vai minha filha! – disse Regina também a segurando pelo braço.
- O que é isso? Agora eu tenho duas babás? – perguntou a morena
irritada.
- Não! Tem apenas pessoas que se preocupam contigo! – respondeu
Cristine no mesmo tom.
- E que te amam... E não suportariam que nada de mal te
acontecesse... – emendou a mulher mais velha.
- Tudo bem... – falou Angélica tentando manter a calma – Me
desculpem...
- Todos estamos estupefatos com esta notícia, mas vamos manter a
calma. – ponderou Regina – Eu vou chamar Morris e ligar para o Dr.
Mendes e para o Delegado.
115
- Calma, querido... – disse Angélica enquanto caminhavam – O que
quer que tenha acontecido não vai se repetir. Qualquer pessoa que
tenha feito algo brutal contra Adelaide não vai fazer o mesmo com esse
bando de gente por perto, principalmente tendo o delegado junto. Tenta
ficar calmo...
116
Angélica tratou de amparar o irmão e percebeu a figura musculosa de
Henrique curvar-se sobre si mesmo, valendo-se também de um tronco
de árvore para conseguir manter-se em pé. O motorista
silenciosamente esgueirou-se pelo caminho de volta ao castelo,
alternando seus passos como um autômato, cabisbaixo e visivelmente
abalado.
Como não havia mais nada que pudessem fazer ali Angélica conduziu
Ariel de volta ao castelo. Dr. Mendes os acompanhou. James ficou
estático onde estava, como se a cena houvesse lhe paralisado os
movimentos.
- Me parece seguro.
- Então está resolvido. – disse Cristine – Eu vou ligar para a minha
amiga.
117
- Calma. – disse Angélica – Daqui não. Vamos ligar lá de casa, depois.
Do meu celular.
118
- É a vida do meu irmão que está em jogo. E ninguém coloca a vida das
pessoas que eu amo em risco. - disse Angélica categórica, mais para si
mesma do que para os outros.
James disse:
- Eu vou com o senhor. Depois temos o dever moral de providenciar um
funeral para a moça. A família dela é muito carente.
- Obrigado por me acompanhar, James. – disse o advogado.
119
para a cozinha para comer alguma coisa. Alegavam estar com fome,
pelo fato de haverem acordado tarde, não tomando o café da manhã.
Anemary, excepcionalmente, tratou de providenciar o almoço, muito
embora no que as pessoas menos pensavam naquele momento era
comer, excetuando-se a dupla que ainda não havia feito o desjejum.
- Muito obrigada.
- De nada. Mas você não tem porque que me agradecer.
- Tenho sim. Tu estás me ajudando a proteger o meu irmão. O meu
único irmão.
- E o meu aluno preferido.
Angélica concordou:
- Pode ser. De hoje para amanhã eu não desgrudo o olho do cabeçudo.
120
Às treze horas em ponto o delegado Munhoz adentrou na biblioteca
seguido do Dr. Mendes. Instalou-se na grande escrivaninha alinhando
um bloco de papel cujas páginas estavam em branco, um lápis com a
ponta muito fina e uma caneta dourada, a qual usaria para proceder as
anotações que se fizessem necessárias. O delegado era um homem
metódico.
Dr. Mendes sentou-se à sua frente e lhe disse com voz abatida:
- Que tarefa ingrata, Munhoz... Avisar a família da moça foi muito
desgastante.
- Eu imagino Adroaldo. Mas me ofereci para mandar um dos meus
homens.
- Mas não seria de bom tom. – referiu o advogado.
- Realmente...
- Munhoz, eu estou muito preocupado. As coisas estão ficando fora de
controle. E nós dois bem sabemos o que está havendo, ou pelo menos
suspeitamos.
O delegado coçou a careca e respondeu:
- Mas precisamos ter certeza.
- Eu temo pela vida dela, Munhoz.
- Mas Detetive Dacosta está de olho nela. – disse o delegado.
- Sim, eu sei, mas mesmo assim tenho meus temores. – continuou o
advogado – E ela já está suspeitando de alguma coisa, acredito que até
mesmo de Dacosta.
- Será?...
- Obviamente. Ela é uma moça esperta. E isso sem falar no episódio da
cobra.
- Realmente Adroaldo, precisamos chegar a conclusões. E agora mais
essa morte! De fato estamos correndo contra o tempo.
121
- Vamos precisar...
122
- O que foi Regina? O que te chamou a atenção?
- Henrique. Ele conversou de canto com a Adelaide. Mas eles pareciam
tranquilos. Conversaram amigavelmente, baixinho, mas de uma forma
aparentemente... Branda. Mas eu não ouvi o que disseram, e logo em
seguida ele saiu.
- E depois?
- Bom, depois continuamos com nossos afazeres. Até que eu disse que
era preciso pegar alguns temperos na horta... – disse Regina com voz
entristecida. – Se eu não tivesse dito aquilo a menina ainda estaria
viva...
- Não se culpe Regina. Ninguém tem bola de cristal para adivinhar o
futuro.
- Ela logo se prontificou a ir... Até me pareceu que ficou feliz. – disse a
cozinheira.
- Pois então... – assentiu o delegado. – Vai saber...
123
- Me mande o Thomaz aqui, por favor.
124
- Mas enquanto ela estiver por aqui, pode ficar tranquilo, eu estou
atento.
- Assim espero. – disse o delegado. – Me chama a Valesca.
O rapaz levantou-se apagando o toco de cigarro no cinzeiro.
125
- É. – concordou Valesca baixando os olhos. – Quer dizer, não é. Não é
meu irmão.
- E ele é o quê?
- Um amigo.
- Que divide o quarto contigo?
126
- Eu nunca desrespeitei o Artur. – disse Valesca em tom baixo – Nunca.
Quer acredites nisso ou não. Aqui neste lugar, enquanto ele era vivo, eu
só trepei com ele. Mesmo quando João Vítor vinha junto. Nunca tive
coragem de transar com ele sabendo que Artur estava no quarto ao
lado. Pode não parecer, mas eu tenho a minha ética. E embora não
devas acreditar nisso, é a verdade.
127
deteve-se mais em questionamentos acerca do passado do que
propriamente do presente, até que o jovem questionou:
- Dr. Munhoz, por que tantas perguntas sobre o falecido?
- Para entender a história como um todo.
- Como assim? O falecido tinha algo a ver com a copeira? Vai me dizer
que a garota também tinha um caso com ele?!!
- Mantenha-se, meu jovem! – vociferou o delegado.
- Mas pelo que o senhor coloca...
- Limite-se a responder às perguntas, e não tente tirar conclusões sobre
o que nem imagina!
- Desculpe.
- E hoje pela manhã? Tu viste algo que pudesse estar associado à
morte de Adelaide?
- Nada. Acordamos tarde.
- Isso eu já sei. – disse o delegado secamente.
- Bom, então porque perguntou?
- Para evitar detalhes sórdidos... – respondeu o delegado com uma cara
enfezada.
- Bem, o senhor quer saber se vi algo diferente?
- Isso.
- Não.
- Aliás...
- O quê? – empertigou-se o delegado.
- Nada. Nada não...
- Nada o quê??? Fale. Qualquer detalhe pode ajudar.
- Bom. Eu tenho um sono muito leve. E uma coisa que eu ouvi foi um
baque seco, no andar de cima, como se fosse em cima do nosso quarto.
Mas não deve ter sido nada.
128
- Não me diga que é... – gaguejou o delegado.
- Exatamente. – disse o advogado categoricamente.
- Isso limita um pouco as coisas.
- Talvez. Mas chega a ser assustador. – disse Dr. Mendes pensativo.
- Mais tarde, sem maiores alardes, eu gostaria de subir até o quarto de
Artur. – disse o delegado.
129
- Eu tive meus motivos, senhor.
- E eu poderia saber quais são?
130
- E o que fizeste desde a manhã?
- O mesmo de sempre. Acordei por volta de seis horas, tomei banho,
me vesti e desci para iniciar minhas atividades. Encontrei Regina e
Adelaide na cozinha, e Anemary na sala de jantar. A mesa foi posta
para o café e James desceu por volta das oito horas. Mal tocou no café,
alegando indisposição. Disse que subiria para seu quarto. Pediu que lhe
levasse o jornal, pois pretendia ler no quarto, talvez dormir mais um
pouco. A senhora Valesca e o senhor João Vítor não vieram para o
desjejum, nem vi sinal dos dois. Acredito que estivessem em seus
aposentos. Após pedi a Henrique que fosse até a cidade buscar uns
mantimentos para a despensa, coisa pouca, que ele faria em menos de
meia hora. Ele me pareceu meio contrariado, mas foi. Depois vi quando
Regina pediu a Adelaide que fosse buscar uns temperos na horta.
- E isso era que horas?
- Umas nove e meia, nove e quarenta e cinco, mais ou menos. –
respondeu Morris.
- E depois?
- Bom, depois fui organizar a sala de jantar, a biblioteca e o escritório,
até que Regina veio falar comigo, muito nervosa, referindo que achava
que tivessem matado Adelaide. Fui com ela até a cozinha e encontrei a
senhorita Cristine, Angélica, Ariel, Anemary e Thomaz.
- E Henrique?
- Ele chegou logo em seguida.
- E Valesca e João Vítor?
- Acredito que tenham ouvido o burburinho, pois quando fui chamá-los
eles já estavam vindo.
- E isso era que horas? – perguntou o delegado.
- Mais de dez, com certeza. Acredito que umas dez e meia.
- Sei... – disse o delegado fazendo algumas anotações.
- E James, você o viu quando?
- Quando bati na porta de seu quarto para avisá-lo do ocorrido.
- E ele estava dormindo?
- Acredito que sim. Bati duas vezes até ele atender. Estava com seu
pijama ainda, o cabelo estava despenteado, creio que havia pegado no
sono novamente. Esse rapaz não anda bem nos últimos dias. Desde que
o tio morreu ele não conseguiu se aprumar, coitado... Às vezes eu o
pego chorando pelos corredores. E eu entendo o que é não ter mais
ninguém...
131
- Morris, houve alguma coisa que lhe tivesse chamado a atenção? Algo
diferente, tipo algum barulho?... – perguntou o delegado.
- Como assim?
- Algum ruído diferente no castelo?... – continuou o delegado.
- Não... Nada que me tenha chamado a atenção, senhor.
- Então está. Muito obrigado Morris. – disse o delegado calando-se em
seguida.
- Quer que eu chame mais alguém?
- Não. Preciso de dez minutos para um cafezinho...
- Vou providenciar senhor. – disse o mordomo pegando o cinzeiro sujo
e retirando-o dali para limpá-lo.
- E então? Progressos?
- Mais ou menos. Digamos, informações promissoras... Vamos ver.
132
- Estávamos na cozinha, com a Regina, recém havíamos chegado
quando Ariel irrompeu na cozinha, muito nervoso, despejando toda
aquela história.
- E a senhorita por acaso não viu nada que pudesse ter lhe chamado a
atenção?
- Não... – respondeu Cristine.
- Nem no caminho que fizeram até aqui?
- Não, nada... Não encontramos ninguém.
- Bem, a horta fica no outro extremo da propriedade mesmo. – disse o
delegado – Para a sorte de vocês...
Cristine empalideceu.
- Desculpe – disse Munhoz – Não queria assustá-la.
- Tudo bem... Mas é que eu não havia pensado por este aspecto...
- Mas deveria. – disse o delegado.
- Por quê??? – perguntou a jovem.
- Por nada, por nada. Só acho aconselhável ficar com os olhos bem
abertos por esses dias, todos por aqui, não só a senhorita.
- Ah... Bom... – disse Cristine, embora não sentisse muita convicção no
complemento da colocação do delegado.
Ficou apreensiva e foi invadida por uma sensação de frio interno. Era
medo.
- A senhora...
- Senhorita.
- Pois bem, a senhorita viu alguma movimentação diferente na casa
hoje pela manhã?
- Não senhor. – respondeu a governanta categoricamente.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Poderia me descrever como foi sua manhã?
- Sim. Levantei-me pontualmente às seis e meia. Tomei meu banho,
arrumei-me e fui tratar dos meus afazeres.
- Senhorita... Os seus aposentos ficam no térreo?
- Sim. Nas dependências dos serviçais, na ala norte.
- E por acaso a senhorita ouviu algum barulho diferente nesta manhã?
- Que tipo de barulho?
- Portas batendo... Marteladas... Estrondos.
- Não senhor. Não ouvi nada. Só o ronco do carro, quando Henrique foi
até a cidade, e depois quando voltou.
- E isso foi que horas?
- Huumm... Acho que lá pelas nove e meia.
133
- Certo, certo... – disse o delegado fazendo mais alguns apontamentos
em suas folhas – E... Senhorita, viu mais alguém circulando pela casa
pela manhã?
- Não. A senhorita Cristine eu só vi por volta das dez horas. O senhor
James foi para o quarto depois do café da manhã. E aqueles...
Aqueles... Parasitas, só levantaram depois da notícia da morte de
Adelaide.
- Eu senti um certo... Desacordo com a presença de Valesca e João
Vítor aqui no castelo? – perguntou o delegado.
- Desculpe. Falei sem pensar. Mas até mesmo o senhor soube a quem
me referia...
- Soube... – concordou o delegado.
134
A governanta levantou-se injuriada.
- Como ousa???
- Sente-se senhorita... E acalme-se.
- Como posso me acalmar??? Quem o senhor pensa que é para me
dizer algo assim?
- Alguém que achou isto junto com seus pertences. – respondeu o
delegado estendendo um pedaço de papel para a mulher à sua frente.
135
as lágrimas, ou o que quer que fosse, na manga do uniforme. Pegou o
lenço e assuou o nariz. O delegado fez uma cara de nojo. Por certo não
usaria mais aquele lenço, pelo menos sem lavá-lo. Um pouco mais
calma a governanta se pôs a falar:
- Delegado, de fato eu sempre fui apaixonada pelo Sr. Artur, mas ele
nunca me olhou com os mesmos olhos apaixonados, aliás, acho que
nunca percebeu meu amor. Pensava tratar-se de dedicação. Na verdade
ele nunca teve ninguém, até que essa uma apareceu na vida dele. Eu
nunca entendi o que ele via nela... Tão vulgar... Tão, tão
desclassificada... Mas mesmo assim eu nunca lhe disse nada... Eu não
tinha o direito. E quando ele a mandou embora, duas semanas antes de
morrer, eu fiquei radiante e pensei: eis uma atitude acertada. Mas aí
aconteceu aquela tragédia... E o fantasma de Valesca voltou para
atormentar o pobre do Sr. Artur.
- Senhorita, eu não acho que ela o atormentava. Muito pelo contrário,
acho que ela o distraía bastante...
- Vocês homens são todos iguais! – disse Anemary com amargura – São
incapazes de ver as qualidades de uma mulher de verdade e se perdem
por um par de pernas e seios.
- Senhorita! Mantenha-se. – repreendeu o delegado.
136
- Pois bem, minha filha, é só isso então. E... Angélica...
- Sim?
- Cuide-se.
- Pode deixar.
137
- Bom, se lembrares de algum detalhe que possa ajudar a solucionar
esse caso, por favor, me procure.
- Com certeza, delegado. Seria só isso?
- Sim.
- Então, com licença. Eu vou voltar para o meu quarto. Preciso me
deitar.
- Tu devias procurar um médico, rapaz. Deves estar anêmico, ou sei lá
o quê.
- Vou seguir o seu conselho, delegado, talvez na semana que vem...
- Ótimo. Por favor, mande entrar o motorista.
138
- Vocês estavam tendo um caso?
- Namoro. Como ela gostava de dizer. – respondeu o motorista.
- Que seja. E daí?
- Bom. É... Eu queria... Contar pra ela algumas coisas da minha vida...
Coisas que ela não sabia ainda.
- Do tipo?
- Que eu não poderia casar com ela. – respondeu Henrique.
- E por quê?
- Por que eu sou casado, delegado. Eu só trabalho aqui por
necessidade. O Sr. Artur paga, quero dizer, pagava bem, mas tenho
mulher e filhos na capital. E vou acabar voltando para lá.
- Mas Adelaide não sabia disso?
- Não. Não consegui contar. Na verdade acho que ela não queria ouvir.
- Por favor, rapaz, me poupe. Apenas relate os fatos.
- Bom, delegado – continuou o motorista – Adelaide estava me
pressionando para casar...
- Mas isso porque tu deste esperança a ela! – bradou o delegado.
- Não só por isso. Adelaide estava grávida...
- E por isso tu a mataste, desgraçado??? – bradou o delegado
esmurrando a mesa.
- Não senhor! Eu não mataria ninguém, muito menos uma mulher que
carregava um filho meu! – disse o motorista caindo num choro
compulsivo.
- Pode ir. – disse o homem mais velho – E feche a porta ao sair, por
favor.
139
- Eu vou pra casa, Adroaldo. Estou cansado. Mas antes quero fazer uma
vistoria tu bem sabes aonde.
- Tudo bem. Eu vou contigo. – disse o advogado.
- Mas convém não alardearmos muito.
- Vamos fazer o seguinte. Fique para a janta que aí a gente tem a
desculpa de circulares por aí. Eu vou ficar por aqui hoje. Acho prudente.
- Certo. E fique de olhos bem abertos, amigo.
- Pode deixar.
**************
- Ariel...
- O quê?
- Eu estive pensando... Aliás, a gente esteve pensando – disse Angélica
olhando para Cristine – Que talvez fosse melhor tu ficares uns dias
fora...
- Tão querendo me tirar de circulação?
- Não... Sim... – titubeou Angélica.
- Eu não sou idiota, mana. Eu to ligado no que ta acontecendo. Seja lá
quem fez isso com a Adelaide pode querer me apagar também, não é?
140
Ariel baixou os olhos e suspirou.
- Mas a gente não vai deixar nada te acontecer, entendeu? Nada! –
disse a morena categoricamente – Eu te prometo, meu querido.
141
- Eu te amo mana. – disse Ariel dando um aperto ainda mais forte em
Angélica.
- Eu também te amo... Muito... – respondeu a morena sapecando um
beijo nas faces do garoto, dando-lhe em seguida uma chave de pescoço
e um croque nas orelhas.
- Ai, ai, ai... Ta vendo só como ela me trata, Cristine??? – resmungou
Ariel sorrindo e tentando se desvencilhar daquela prisão amorosa.
Ariel sorriu.
- Não leva roupa de lã, não. – disse Cristine ao vê-lo separar alguns
suéteres.
- Tu é um bocó de mola mesmo, - brincou Angélica – querendo levar
roupa de lã pro Rio.
- Mas eu nunca fui lá... – justificou o jovem – Não sei como é o clima.
- E tu não assiste televisão, não? – continuou a morena provocando-o.
- Assisto, mas não me liguei...
- Ariel, - disse Cristine – basta um moletom e uma jaqueta. Leva mais
camisetas e bermudas mesmo. E um calção pra você pegar uma praia.
- Taí... Tô gostando disso. Praia, sol, mulher de biquíni, peitos e
bundas... To indo pro paraíso...
Tão logo Ariel terminou de arrumar suas coisas, que se limitaram a uma
mochila e a uma sacola de viagem, Regina abraçou o filho e despediu-
se dele. Enquanto Ariel arrumava suas coisas Angélica havia conversado
com os pais.
142
- Vai com Deus, meu filho, - disse a mãe – e te cuida! Não pega muito
sol, passa filtro, não entra sozinho no mar, não vai no fundo, não sai
sozinho, não vai te perder naquela cidade grande...
- Credo, mãe, isso até parece um mau agouro! Eu sei me cuidar... Já
sou um homem!
- Sei... – disse Regina – Que Deus te abençoe.
- Fica com Deus também, mãe. E fica tranquila. Eu to legal.
- Que bom...
- Tchau, pai! – disse Ariel abraçando Israel.
- Vai com Deus meu filho. E lembre-se do que a tua mãe te disse. E não
vai me fazer passar vergonha na casa dos outros! Come com modos,
não limpa a boca na toalha de mesa, toma banho todos os dias, penteia
esse cabelo e escova esses dentes!
- Sim senhor, general! – disse Ariel batendo continência para o pai.
- E não me debocha, guri!
143
- Fica tranquila... – disse Angélica enquanto ouvia o barulho do chuveiro
sendo ligado – eu conheço o meu eleitorado. O tempo do banho e da
punheta é suficiente pra gente matar as saudades...
- Angélica, pelo amor de Deus, não faz isso... – disse Cristine enquanto
Angélica capturava sua boca num beijo sôfrego e descia sua mão na
direção de seu sexo.
144
prazer. Ao percebê-la prestes a gozar deteve-se com movimentos
circulares de língua, intercalados com sugadas intensas, no seu clitóris
intumescido. A morena projetou seu púbis para frente e Cristine
abocanhou-a de vez, sentido a explosão do prazer em sua boca. O jorro
quente em seu queixo fez com que se sentisse poderosa. Só uma
mulher poderosa seria capaz de fazer aquela deusa grega gozar em sua
boca tão rapidamente. Lambeu sua cavidade vagarosamente, sentindo
seu gosto e sua textura na própria língua. Estremeceu de prazer ao
sentir aquele sabor. E se deu conta de que nunca havia feito amor
daquela forma. Com tanta urgência, completude, sincronia e
cumplicidade. Levantou os olhos e mergulhou nas gemas azuis que a
fitavam amorosamente. Esgueirou-se e sentou-se montada no colo de
Angélica, de frente para ela, que a envolveu pela cintura, beijando-lhe a
boca.
Desta vez foi Cristine quem lhe acertou uma travesseirada. Angélica
continuou:
- Vê se não vai dar um beijinho de boa noite no meu irmão... – riu-se a
morena.
- Debochada... Pois fique sabendo que este néctar é maravilhoso para a
pele, ta?...
- Bom, no que depender de mim tu podes dar continuidade a esse
tratamento... Sem problemas.
- Isso é uma promessa ou uma ameaça? – instigou Cristine.
- Depende...
- Do quê?
- Se vai te causar prazer... Ou dor... – respondeu Angélica.
- Bom... Prazer me causará sempre... Dor, só se eu resolver morder... E
não vai ser em mim a dor...
- Aaaiii... – disse Angélica levando suas mãos entre suas pernas.
145
Ambas riram. Neste momento Ariel saiu do banheiro já vestindo um
pijama azul marinho. Cristine mal conseguiu disfarçar, e antes que o
rapaz desse "boa noite" entrou no banheiro, fechando a porta atrás de
si. Angélica riu para si mesma.
146
Antes das dez horas estavam de volta ao castelo. Angélica entrou na
propriedade por um acesso lateral e muito pouco utilizado. Estacionou
seu carro ao lado de sua cabana e juntamente com Cristine se dirigiram
ao cemitério, para o velório de Adelaide.
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Adelaide auxílio no sustento da casa e na educação dos filhos pequenos,
isto não traria sua filha de volta.
- Tine, eu vou precisar dar uma saída de novo. Mas não demoro.
- Tudo bem...
- Mas te peço que fiques no castelo, de preferência com a minha mãe,
ou com o Dr. Mendes.
- Mas porque essas recomendações todas? – quis saber a loirinha.
- Nada. Só prudência.
- Angélica, eu realmente não entendo algumas coisas que estão
acontecendo aqui. Você poderia me explicar?
- Explicar? Eu não tenho nada para explicar... Não sei do que estás
falando... – respondeu Angélica tentando disfarçar.
148
- Tudo bem... – desistiu Cristine, que já havia percebido que quando
Angélica se fechava não adiantava tentar capturar seus pensamentos.
Era impossível fazê-lo.
**********
De fato após o almoço, que saiu por volta de uma hora, Cristine subiu
para seu quarto. Estirou-se em sua cama, porém não conseguiu pregar
o olho. Virou-se de um lado para outro, intercalando pensamentos
bons, onde os momentos de amor vividos com Angélica a faziam sentir-
se nas nuvens, com outros pensamentos de angústia, onde o fantasma
de seu tio parecia saltar da sepultura vazia pedindo-lhe ajuda.
Não conseguia relaxar. Olhou seu relógio e viu que marcava quase
quatro horas. A chuva havia se dissipado, mas o tempo continuava
carregado.
149
Parou defronte ao portão de grades altas com arremates de metal
pontiagudos. Respirou fundo, olhou em volta e descerrou a pesada
grade. Não havia mais ninguém ali. No chão do caminho principal ainda
podia ver algumas pétalas de flores que foram levadas para serem
depositadas sobre o túmulo de Adelaide.
150
direção da mão que a içava do chão deparou-se com a visão de olhos
azuis tão conhecidos.
151
d’água que estava por desabar. Angélica pegou Cristine pelo braço tão
logo percebeu um movimento na parte lateral do cemitério, coberta por
um capão de mato denso. Pareceu-lhe ouvir um estalar de passos sobre
um galho seco. Empertigou-se observando em volta atentamente, com
a adrenalina invadindo sua corrente sanguínea.
Angélica acelerou o passo, olhando para trás por vezes. Cristine mal
conseguia acompanhá-la. Angélica aguçou o ouvido e percebeu
passadas rápidas atrás delas. Iniciou uma corrida pelo meio do mato,
arrastando Cristine que a acompanhava assustada e sem entender o
que se passava.
152
depois dela. Ao erguer-se pegou novamente a loirinha pela mão e
continuou a correr, desta vez na estradinha de chão batido que as
conduziu até a cabana de Angélica, a salvo.
153
O que foi que ela viu e eu não? Se eu não a conhecesse diria que estava
tentando, no mínimo, me matar, nem que fosse de susto..."
Enquanto isso Angélica foi para a cozinha e botou água para esquentar.
Assim que ouviu o barulho da água do chuveiro no andar de cima
espiou na escada e pegou seu telefone celular. Discou um número da
memória e assim que seu interlocutor atendeu relatou rapidamente o
ocorrido, tomando o cuidado de que Cristine não a ouvisse. Desligou o
telefone, guardando-o na bolsa. Tomou um cafezinho preto e subiu para
o quarto levando uma bandeja com um chocolate quente e um lanche
para Cristine.
Não muito longe dali, quando a noite já ia alta, dois homens se falavam
ao telefone, num tom de voz exaltado.
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- É claro que me dei conta! Mas aconteceu! Eu não tenho bola de
cristal. Foi muito azar!
- Eu diria que no final das contas foi sorte! Sorte de vocês dois! Sorte
dela por não ter morrido e tua também, para não teres remorso pelo
resto da vida!
- O senhor está levando a coisa pro lado pessoal, delegado.
- Não estou não! Estou somente zelando pela segurança de uma pessoa
em situação de risco. Abra esses olhos Thomaz! O cerco está se
fechando e quem fez isso está se dando conta do que está acontecendo
e do quanto estamos perto da verdade! Agora todo o cuidado é pouco.
Entendeu?
- Entendi senhor. Pode confiar em mim.
- Vou tentar...
O homem mais velho desligou o telefone e enxugou o suor da testa.
155
- Pois eu gostaria de ter essa certeza toda. – disse Cristine – E tem esse
monte de coisas acontecendo... A morte da Adelaide, entre outras
coisas...
- Vamos fazer o seguinte, - respondeu Angélica tentando desconversar -
vamos tomar o nosso café, tentar relaxar e aguardar a abertura do
testamento. Deixa pra te preocupares depois... Se é que terás motivo
para preocupações.
- Ta bom... – respondeu Cristine sorrindo timidamente.
156
Pontualmente às duas horas o tabelião abriu o envelope escuro e
lacrado que continha o testamento do tio Artur.
- ..."e assim, eu, Artur Diaz Torres, deixo meus bens em testamento da
seguinte forma: Para meus amigos Israel e Regina deixo dez hectares
de terras, contíguas à propriedade destes, na fronteira leste, com tudo
o que ali houver, desde plantações até os animais e toda e quaisquer
construção que haja naquele local".
Israel secou uma lágrima que rolava por sua face, sendo consolado por
Regina. O tabelião continuou:
- "Para Anemary, esta pessoa tão querida que dedicou tantos anos
cuidando deste velho rabugento, deixo o apartamento em Londres, para
que, quem sabe, retorne para sua terra, suas origens, uma vez que
nada mais a mantém presa a esta longínqua pátria".
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com um montante de vinte mil reais. Vivi bons momentos a teu lado
Valesca, e tenho certeza que, do nosso modo, fomos felizes juntos".
158
acirrada a partir dali, ela bem o sabia, embora isto em nada a
preocupasse.
- "E deixo este castelo e todos os meus demais bens móveis e imóveis,
além de uma carta que se encontra em anexo a este testamento, para
minha única filha, Cristine Amèlie Dupret Torrez. E na falta desta ou na
impossibilidade de assumir seu patrimônio deixo o que lhe cabe à minha
afilhada Angélica Bandera. E deixo expresso meu pedido de perdão à
Cristine pelo tempo perdido em vão e por não ter conseguido chamá-la
de filha ainda em vida".
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Com o envelope nas mãos Cristine subiu para seu quarto. Angélica e Dr.
Mendes se entreolharam e suspiraram. Naquele momento nada podiam
fazer por Cristine. Ela precisava descobrir a verdade, dita através do
próprio pai, mesmo que depois de sua morte.
************
Tudo começou há trinta anos atrás, numa das minhas viagens à França,
a negócios. Nesta ocasião conheci a mais bela camponesa daquelas
paragens, a tua mãe, Juliet. Confesso que me apaixonei perdidamente
pelos seus olhos verde-esmeralda, aliás, iguais aos teus... Bem, ela
também se dizia apaixonada e eu a trouxe para o Brasil. Ela era de uma
família humilde e acreditava que teria mais chances num país
estrangeiro do que em seu próprio. Ela não tinha dimensão do quanto
eu realmente possuía em termos de bens materiais aqui no Brasil, meus
pais no caso. O fato é que eu a trouxe para cá e estava disposto a viver
com ela para sempre. Porém, como nem tudo na vida são flores,
aconteceu o inevitável: sua mãe acabou conhecendo meu irmão
Ademir, dez anos mais jovem que eu, mais bonito, mais vistoso, enfim,
infinitamente mais sedutor para as mulheres do que eu. E o que eu
mais temia aconteceu. Tua mãe acabou envolvida com ele. Eu fiquei
160
desesperado, mas não adiantou. Ademir sempre foi persistente nos
seus objetivos, muito diferente de mim. Eu, covardemente, desisti de
lutar por tua mãe e me conformei em perdê-la. Ademir tratou de deixar
nossa casa levando tua mãe junto, foram correr o mundo com o
dinheiro de papai e mamãe. Depois de um ano eu soube que eles
haviam tido uma filha. Eles nunca retornaram para casa. Enquanto
havia dinheiro viajavam. Meus pais sempre superprotegeram Ademir e
o mimaram por demasia. Isto fez dele um homem egocêntrico e
irresponsável. E assim ele viveu e morreu. Depois de dois meses que
eles foram embora recebi a primeira carta de sua mãe. Assim como a
recebi a coloquei no fundo de uma gaveta, intocada, sem ter coragem
de lê-la e ao mesmo tempo sem coragem suficiente para incinerá-la.
Logo em seguida veio a segunda carta, e a terceira e a quarta... E
assim, durante longos dois anos vieram cinco cartas. E todas elas
permaneceram intocadas durante vinte e nove anos dentro de uma
gaveta sombria.
Na primeira carta tua mãe me falava nos problemas que vinha tendo
com Ademir, com o desencanto que vinha sentindo, desde a primeira
bebedeira deste, até o primeiro tapa que levara. Na segunda carta se
161
dizia arrependida e pedia para voltar para mim, principalmente porque
tinha um motivo muito forte para isso: esperava um filho. Na terceira
carta reafirmava que me amava e que o filho que carregava não era de
Ademir, era meu. Na quarta carta contava que havia dado à luz uma
menina e colocado o nome de Cristine Amèlie, e que era a criança mais
linda que já existira, e que era minha filha, mesmo que eu não
acreditasse nisso. Implorava para voltar com o bebê e falava sobre a
vida doidivanas que levava com Ademir. Questionava o porquê de eu
não responder suas cartas. Pedia que ao menos eu lhe dissesse se a
perdoava ou não. Na quinta carta disse que tu estavas cada dia mais
linda, e que não escreveria mais. Disse que esperava que um dia a vida
me fizesse ver que ela falava a verdade. Pedia novamente que a
perdoasse e desejava me ver feliz. E nunca mais escreveu uma única
linha. Bom, aí eu só soube notícias de vocês depois do acidente.
162
tenhamos coragem e ânimo para enfrentar os obstáculos e para lutar
pelo que acreditamos. E mais que isso, hoje posso te dizer que acredito
na mágica energia que move o mundo: o amor. E isto somente pelo
fato de existires, afinal tu és o fruto do meu grande amor... E a minha
continuidade nesta existência. Através de ti, Cristine, percebi que de
fato Deus existe.
Rogo sim pelo teu perdão. Que tenhas a grandeza de espírito para
entender a burrice e a pobreza da alma deste velho afligido por
fantasmas imaginários por tantos anos. Desejo que sejas sempre a
meiga criatura que és. E desejo que sejas feliz. E quero que tenhas a
plena certeza que te amo, do fundo do meu coração, mais que tudo que
imaginei nesta vida.
Seja imensamente feliz, minha filha, e lute pelo que amas. Peço-te que
faças isto por tua mãe e por mim. Fica em paz.
Agora tinha outro pai. E uma história de vida. Triste, mas uma história.
E não mais fragmentos de lembranças de um passado remoto e de um
acidente que rompera todo seu contato com o que se podia chamar de
família.
163
Passou-se mais de hora até que Cristine conseguiu acalmar-se e decidiu
descer para conversar com Dr. Mendes. Queria saber a verdade. Toda a
verdade. E aquele era o momento.
164
Cristine empalideceu:
- A arma que matou Adelaide... – disse a loirinha a meia voz.
- Não sabemos ainda, afinal a arma não foi localizada. Também houve
um episódio em maio, quando Artur perdeu os freios da caminhonete
que dirigia. Ele acreditou ser uma simples falha mecânica, eu tenho lá
minhas dúvidas.
- Mas então... Tio Ar... Meu pai pode ter sido... Assassinado?
- Não sabemos. Cristine, Artur tinha problemas cardíacos e vinha sendo
acompanhado pelo médico da família há bastante tempo. Parece que
sofreu um infarto.
- Parece??? Como parece??? É preciso ter certeza!
- Bom, depois houve a morte de Adelaide.
- E pode ter havido alguma relação com a do meu pai?
- Também não sabemos...
- Como não, Dr. Mendes??? E o delegado faz o quê neste raio de
cidade???
- Cristine, não temos evidências, só suspeitas... Talvez infundadas.
165
tinha acesso a toda a documentação de Artur. E até mesmo Angélica...
Angélica herdaria a fortuna do padrinho se ela não tivesse aparecido. E
James? James não era um parente direto, mas nutria uma relação
doentia e simbiótica com o tio. E Morris? Sempre tão infiltrado em todos
os lugares... Sempre tão invisível. E Valesca? Valesca desejava herdar a
fortuna de Artur e não fazia rodeios acerca disso. E João Vítor? Seria
capaz de matar na tentativa de enriquecer a amante? E se seu pai
houvesse sido morto? Como saber? Dúvidas... Cristine estava
mergulhada em dúvidas... E receios.
Resolveu subir para seu quarto. Queria descansar. Pediu licença para
Dr. Mendes e se retirou do escritório. No corredor cruzou com Angélica
que se dirigiu a ela com o olhar brando e amoroso.
166
corredor de acesso ao quarto de Cristine. O final de tarde e a noite
prometiam ser longos e sua vigília desta vez seria ininterrupta, a menos
que recebesse alguma nova ordem do delegado.
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Na manhã seguinte Cristine despertou quando o relógio marcava mais
de dez horas. Havia pegado no sono por volta das dezenove horas do
dia anterior e acordado antes da meia noite. Nesta ocasião perdera o
sono e revirara-se na cama até a madrugada, adormecendo quando já
eram quase cinco horas. Chegou a pensar em descer para comer
alguma coisa durante a noite, porém sentiu medo, preferindo ficar na
aparente segurança de seu quarto. Também não quis perturbar o
descanso da criadagem.
- Gurias, vocês podem ir indo para a mesa, o almoço já vai ser servido
– disse Regina.
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As duas mulheres obedeceram prontamente e quando se instalaram à
mesa já estavam presentes o Dr. Mendes, James, Valesca e João Vítor.
Foi Valesca quem puxou conversa.
- Nós vamos embora depois do final de semana... Nada mais me prende
a esse lugar.
- Eu já imaginava. – disse Dr. Mendes – E considero adequado.
- Pois então... Vamos viajar na segunda-feira, à tarde.
- Henrique pode levar vocês ao aeroporto. – disse o advogado.
- Que bom. – respondeu Valesca.
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Encarando aqueles olhos de um azul intenso Cristine não poderia dizer
não. Sorriu e assentiu em acompanhá-la.
170
esfregavam-se aumentando o ritmo e a intensidade. O líquido quente
que escorria e se misturava fazia com que os sexos deslizassem um de
encontro ao outro com facilidade. Em dado momento elas não
conseguiram mais segurar a iminente explosão de prazer e passaram a
realizar movimentos de quadris cada vez mais rápidos e intensos,
pressionando-se e gemendo alto. Angélica emitiu um gemido grave e
gutural projetando-se para frente num espasmo de pura delícia e
êxtase. Cristine, por sua vez gritou alto e contorceu-se num gozo
prolongado e pleno. Fitaram-se nos olhos, cada qual encantada com a
outra, e sorriram...
Por volta das cinco horas da tarde Cristine despertou e passou a fitar o
rosto da mulher adormecida a seu lado. A beleza de Angélica a
encantava. De fato era a mulher mais linda que já vira na vida. E o que
sentia ao amá-la chegava a doer, de tão intenso. E isto a estava
deixando, no mínimo, preocupada em relação ao futuro. Sabia que
deveria viver sabiamente o momento presente, porém não conseguia
deixar de pensar no amanhã, principalmente quando se dava conta que
desejava cada vez mais ter Angélica presente em sua vida. E embora a
conhecesse há tão pouco tempo era como se já convivesse com ela
toda uma vida.
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- E posso saber por quê???
- Sei lá... Pelo teu jeito assim... Solto... Espontâneo.
- Isso não quer dizer nada... Conheço muita carinha de santa que me
dá de dez à zero...
- Isso é alguma indireta? – perguntou Cristine fingindo indignação.
- Imagina... – respondeu Angélica num tom de deboche.
172
movimentos cada vez mais intensos as mulheres não conseguiram mais
segurar o gozo. E gritos de prazer ecoaram naquele final de tarde
chuvoso. Depois do orgasmo desmoronaram nas cobertas, exauridas e
satisfeitas.
Angélica sorriu:
- E eu só posso te dizer que é recíproco.
- E isso é bom?... – instigou Cristine.
- Eu acredito que sim... – sorriu Angélica – É pelo menos, promissor.
- Que ótimo.
- Vou tomar um banho. Depois vou descer pra fazer alguma coisa pra
gente comer. Eu to com fome. – disse a morena.
- Eu também to com fome.
- É só um instantinho que eu já providencio alguma coisa apetitosa.
- Outra? – brincou Cristine.
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calcinhas, meias, sutiãs, cachecóis. Fechou as gavetas e foi até uma
escrivaninha. Abriu a gaveta central e viu folhas em branco, canetas,
material de escritório. Na gaveta superior lateral mais alguns materiais
como canetas coloridas, clipes, cola, etc. Na do meio alguns
documentos e fotos. Ao tentar abrir a gaveta de baixo percebeu que
estava trancada. Abriu novamente a gaveta central procurando por
algum indício de chave. Levou sua mão até o fundo da gaveta e
encontrou um pequeno vidro decorado com algumas chaves dentro.
Pegou a primeira e nada. A segunda também não. E foi tentando uma a
uma. O barulho d’água permanecia contínuo. Quando faltavam somente
mais duas chaves Cristine sentiu que a penúltima encaixou-se na
pequena fechadura. Girou a chave tomando o cuidado de não fazer
barulho e a fechadura de metal abriu-se com um estalido baixo e seco.
Cristine prendeu a respiração. Olhou novamente na direção do
banheiro, Angélica continuava seu cantarolar. Novamente envergonhou-
se do que estava fazendo, mas era preciso. Aliás, estava se
especializando em espionar segredos alheios, pensou enrubescendo ao
lembrar-se da incursão no quarto de Artur.
Acabara de fazer amor com uma pessoa que parecia querer eliminá-la.
Não podia deixar o pânico tomar conta dela. Vestiu-se apressadamente
e quando ouviu o chuveiro sendo desligado já estava pronta para descer
a escadaria na direção da rua. Sem fazer barulho desceu rapidamente e
saiu pela porta da frente, tomando o cuidado de não deixá-la bater após
a sua passagem. Correu o mais rápido que pôde para o castelo. A noite
já caíra sobre Doze Colinas. A garoa continuava ininterrupta, porém
menos densa.
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Subiu e trancou a porta do quarto por dentro.
Por precaução foi até o castelo, para verificar se Cristine estava bem.
Sua mãe lhe disse que ela havia subido ainda há pouco, e que estava
indisposta e havia pedido para jantar no quarto. E não queria ver
ninguém.
Angélica ficou um pouco mais tranquila. Resolveu voltar para sua casa.
Precisava realizar alguns contatos e pensar no que faria.
***********
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praticamente em claro. Estava se sentindo um lixo, no sentido amplo da
palavra. Dormira pouco e tivera um sono povoado de pesadelos,
fantasmas e ameaças de morte. Sentia-se desprotegida e temerosa,
sem um porto seguro, sem ninguém para recorrer. Estava pálida e com
olheiras escuras. Se não tomasse uma atitude por certo enlouqueceria.
Respirou fundo e tomou sua decisão: iria embora dali. Nada mais a
prendia naquele lugar. Não havia por que ficar num local onde se sentia
ameaçada e solitária. Voltaria para sua casa no Rio, para a rotina de
sua vida e de seu trabalho e tentaria colocar uma pedra sobre os
acontecimentos dos últimos dias. E nada nem ninguém poderiam detê-
la. Estava decidida.
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Após entrarem na biblioteca Angélica fechou a porta, o que causou um
estremecimento em Cristine e uma onda de temor interno.
177
- Tenho certeza que posso confiar no senhor e em você, James.
Gostaria que vocês dois tocassem os negócios para mim. Eu vou
embora, vou voltar para a minha casa, para a minha vida. Está
decidido.
- Bom... – disse James – ...no que depender de mim, pode contar
comigo, prima.
- E comigo também, Cristine. – respondeu Dr. Mendes.
- Agora se me dão licença, eu vou voltar para o meu quarto, preciso
começar a arrumar minhas coisas.
- E essa agora? – disse James – Eu não imaginei que ela fosse embora.
Pensei que ficaria aqui, tomando conta do que agora é dela.
- Eu também. – concordou o homem mais velho.
- Mas se ela quer ajuda, eu me proponho a dar, afinal somos uma
família.
- É. – respondeu Dr. Mendes pedindo licença e também se retirando
para seus aposentos.
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Novamente do lado de fora de seu quarto uma figura escondida na
escuridão começava sua vigília silenciosa.
No sábado Cristine despertou cedo, antes das oito horas, apesar de ter
custado a pegar no sono na noite anterior. Novamente sentia-se mal.
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Cristine terminou seu desjejum e subiu até seu quarto. Pegou um
agasalho mais quente e desceu novamente. Ao cruzar pelo corredor e
cozinha não encontrou nem sinal do Dr. Mendes, James, Valesca, João
Vítor ou quem quer que fosse. Somente Regina estava na cozinha,
dando início aos preparativos do almoço.
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Bem perto dali um rádio de comunicação foi acionado e vozes tensas
puderam ser ouvidas:
O delegado secou a testa suada e fez uma ligação para seu celular:
Passaram-se cerca de vinte minutos até que novo contato pelo rádio se
fez ouvir:
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- Algo não corre bem, mudança de planos. Thomaz não responde.
Acione seus homens já! Estou indo para lá agora! Câmbio final.
- Dacosta, espere, ouça... Dacosta! Dacosta! ... – nada mais se ouvia,
porém mesmo assim o delegado concluiu a frase - ...Cuide-se.
Naquele momento uma figura esguia com os batimentos cardíacos
acelerados e uma sensação de angústia no peito cruzava a mata nativa
correndo o mais rápido que podia.
182
- O que significa isso? – perguntou Cristine tentando se soltar.
- Calma... Vem comigo. – respondeu Angélica secamente e olhando
nervosa para os lados.
- Como assim? Me deixa. Me larga. – disse Cristine agitando-se.
Angélica a segurou firme pelos ombros e a fez encará-la:
- Escuta aqui... Por favor... Me ouve! Vamos embora daqui. E fica perto
de mim. – disse abraçando-a junto ao peito.
183
estampido ensurdecedor dos disparos e sentiu quando um corpo
projetou-se sobre elas, abraçando-as e tentando servir de escudo para
protegê-las.
Como o barulho dos tiros havia cessado Cristine virou-se e viu o homem
que supostamente a atacara no cemitério. O mesmo semblante não lhe
parecia assustador naquele momento. O casaco preto, até os joelhos,
continuava a cobrir o corpo disforme, porém nada ameaçador naquele
instante.
184
Cristine permanecia estática e encarava surpresa a figura que segurava
sua mão e lhe sorria amigavelmente, enquanto um filete de sangue
ensopava o casaco negro na altura do ombro. Como pudera se enganar
tanto, pensava consigo mesma. Ao mesmo tempo sua preocupação com
Angélica não a deixava raciocinar direito. Também se enganara a
respeito dela... De fato estava se sentindo uma cega. Não conseguira
distinguir o que estava a um palmo de seu nariz. Sentia-se com um
peso na consciência por não haver confiado na mulher que a amara de
forma tão doce e intensa, e que poderia ter perdido a vida para
protegê-la. Sentia-se um monstro...
185
- Não vai ser preciso, delegado, espere e verá. A gente pega ele sem
problemas. Quero ver esse crápula apodrecer na cadeia. Morrer é
pouco...
- Cuidado Dacosta... – advertiu o delegado.
James suava frio. Baixou sua arma e deu um passo para trás, sem se
dar conta que se aproximava do abismo de pedras.
Aos poucos James foi baixando sua arma. Continuava trêmulo e à beira
do descontrole. Angélica também baixou a arma.
- O QUE MAIS TU QUER DE MIM, DESGRAÇADA???!!! – gritou James –
TU ME ROUBOU TUDO!!!
- Eu não te roubei nada, James, e tu sabes disso.
- Roubou sim, maldita! Roubou o carinho e a atenção do padrinho! Tudo
era pra ti! O melhor presente, o brinquedo diferente, a atenção! Tudo
era pra ti! Eu sempre fui o rejeitado, o coitado, o feio, o burro, o
desajeitado...
- Tu estás sendo injusto com o padrinho...
- AQUELE VELHO MISERÁVEL NUNCA GOSTOU DE MIM!!!
- E foi por isso que tu o mataste?
- EU NÃO FIZ NADA!
- Fez sim, James... E nós sabemos que fez... A tua consciência sabe que
fez... E faria novamente. Tu querias matar a Cristine.
- Aquela outra vagabunda??? Queria sim! E daí? Ela veio terminar de
roubar o que era meu! – novamente James deu um passo atrás.
- Joga a arma no chão e te entrega. É melhor pra ti. – disse Angélica
dando um passo na direção dele.
- PARADA AÍ! – gritou James – NEM MAIS UM PASSO! OU EU ATIRO!
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- EU PENSEI QUE FOSSE A OUTRA MISERÁVEL! A USURPADORA! A
FILHA BASTARDA!
- Ela não é bastarda, James... Tu és.
- CALA A BOCA!!! – gritou James tapando os próprios ouvidos – EU NÃO
QUERO OUVIR NADA DISSO!!! EU VOU CONTAR TUDO PRO PADRINHO!
TU VAI VER SÓ... ELE VAI TE BOTAR DE CASTIGO!!!
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Chico continuava ao lado de Cristine, sem arredar o pé. Neste momento
Dr. Mendes veio ao encontro deles.
**************
Cristine por sua vez não conseguiu pregar o olho. Continuava meio que
em estado de choque. Também tomou um banho para relaxar, mas
permaneceu acordada e pensativa. Logo mais saberia de toda a
verdade. E sentia-se culpada por haver duvidado de Angélica, ao
mesmo tempo em que sentia mágoa por Angélica não ter lhe contado a
verdade desde o início, qualquer que fosse. Estava ansiosa para falar
com a morena.
188
A morena acomodou-se ao lado de Cristine, que lhe sorriu
afetuosamente e disse:
- Eu ainda não tive oportunidade de te agradecer...
- Não tem o que me agradecer.
- Tenho sim. Você salvou minha vida... E quase perdeu a sua.
- É o meu trabalho. São ossos do ofício. – respondeu Angélica a meia
voz.
- Bom... – disse o advogado dirigindo-se à Cristine – então tu já sabes
que Angélica trabalha na polícia, é na verdade a detetive Dacosta.
- Dacosta?... – perguntou Cristine – o sobrenome de teu pai não é
Bandeira?
- É. Dacosta é por parte de mãe. Eu sou Angélica Dacosta Bandeira.
- Você nunca me disse...
- Tu nunca perguntou.
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Respirando fundo Dr. Mendes continuou:
- Depois de dar falta das armas Artur conversou comigo e com Munhoz.
A custo conseguimos convencê-lo de contratar um segurança, no caso
Thomaz, que também é policial, e de confiança do delegado. Na
verdade concordou em contratá-lo após seu carro perder o freio. Nesse
dia Artur começou a conjeturar que poderia ser algo sério, que poderia
ter um inimigo dentro de casa. Provavelmente James percebeu a
mudança no comportamento de Artur e passou a tomar cuidado com
seus atos. Tudo parecia estar correndo bem até que Artur faleceu
repentinamente, parecendo ser um ataque cardíaco. E não suspeitamos
de James, pois nesse dia ele havia ficado na cidade o dia todo, não
poderia ter feito nada. E Artur não tinha sintomas de envenenamento,
nem de qualquer anormalidade. Angélica estava aqui no castelo, tirando
uns dias de férias. Por uma questão de precaução resolvemos designá-
la para ficar vigiando os teus passos, pois nosso temor era de que a
pessoa que tivesse alguma coisa contra Artur pudesse atentar contra a
tua vida. Até então não sabíamos quem era. Podia ser qualquer pessoa
que circulasse pelo castelo, e os motivos poderiam ser os mais
variados. Infelizmente não conseguimos salvar o meu amigo... – Dr.
Mendes engoliu em seco – E o pior é que o motivo foi o mais óbvio de
todos: dinheiro.
- Eu diria que não foi só isso Dr. Mendes... - interveio Angélica – Na
verdade James queria mais que o dinheiro, queria o universo do
padrinho. Ele era um doente, sempre foi. E eu sempre soube disso, mas
confesso que subestimei o maldito... Não acreditei que ele fosse capaz
de matar.
- Mas como foi que ele matou meu pai? – insistiu Cristine.
- Eu já chego lá. – continuou o advogado – No dia seguinte ao enterro
de Artur fui procurado por Angélica, que me trouxe um frasco de
remédio para o coração que Chico havia achado enterrado no jardim.
- Só um aparte – disse Angélica – Chico mora aqui na cidade desde que
nasceu. A mãe dele era uma andarilha e morreu quando ele era
pequeno. Chico ficou um tempo na casa paroquial, até que pediu um
serviço para o padrinho, para conseguir algum dinheiro. E acabou
ficando por aqui. Ele é deficiente mental, mas tem autonomia e mora
numa casinha nos fundos do cemitério. Por sua deficiência física, como
vistes, ele é muito retraído e raramente sai da propriedade do castelo.
Mas é um bom amigo, um fiel amigo...
- E eu pude ver o quanto... – respondeu Cristine emocionada.
190
lugar do remédio Munhoz pediu a exumação do corpo para autópsia,
que não havia sido feita por total falta de evidências de crime. E foi esta
movimentação que percebeste no cemitério à noite. Não queríamos
fazer alarde, nem assustá-la, pois as evidências começavam a apontar
para a possibilidade de um crime. Quando saíste do castelo para ir até o
cemitério foste avistada por Chico, que correu na frente e nos avisou.
Por isto não tivemos tempo de fechar a lápide. Queríamos poupá-la e
também não levantar suspeitas e alertar o possível criminoso. Pedimos
que Chico a detivesse antes de chegar à sepultura, mas foste mais
rápida...
- Ele quase me matou de susto. Pensei que fosse... Sei lá...
- Um monstro?... – instigou Angélica.
- É. – respondeu Cristine envergonhada.
- O resultado da autópsia foi o esperado. Não havia sinais da medicação
que Artur fazia uso regularmente. Ou seja, James o matou de uma
forma perversa, privando-o sem saber do remédio que poderia mantê-
lo vivo e bem. Trocou o remédio por placebo sabe-se lá há quanto
tempo. E isso jamais saberemos.
- Mas... Como é que passaram a desconfiar dele? – perguntou Cristine.
- Pequenas coisas... Mas tivemos a confirmação com o depoimento de
João Vítor. Ele referiu ter ouvido um ruído estranho no andar de cima
no dia da morte de Adelaide. E o quarto dele ficava bem embaixo do de
Artur. Aí Angélica se lembrou da passagem de acesso à rua, através do
atelier e do quarto anexo.
"O quarto dos horrores", pensou Cristine, "mas então eles sabem da
existência daquela aberração e acham normal!"...
- Aí foi muito fácil concluir quem poderia saber de sua existência, ter
tido tempo de usá-la e estar perto o suficiente para fazê-lo sem ser
visto.
- James... – disse Cristine à meia voz – o quarto dele é defronte ao do
meu pai...
- Isso mesmo. – concordou Dr. Mendes – Tratamos de fazer uma busca
ali na primeira ocasião em que James foi para a cidade. Encontramos as
armas escondidas no corredor de aceso à rua. Inclusive a arma que
matou Adelaide. Tentamos verificar a existência de digitais, mas não
havia nenhuma. O miserável foi cuidadoso, deve ter manuseado com
luvas. Logo, não tínhamos provas suficientes para enquadrá-lo. Era
preciso dar corda para que se enforcasse. E foi o que fizemos. Dacosta
e Thomaz redobraram a vigilância, zelando por tua segurança Cristine.
Até que resolvestes ir embora. James não podia mais esperar. Ele tinha
conseguido eliminar Artur. Precisava eliminar a ti para herdar a fortuna
do tio, tendo em vista é claro, acabar com Angélica também. A última
parte do testamento de Artur foi mudada muito recentemente, deixando
para Angélica os bens na falta da filha. Acho que Artur sabia quem era
seu inimigo e queria dificultar as coisas caso algo lhe acontecesse, além
191
de proteger as pessoas que mais amava: vocês duas. Bom, aí
esperamos James agir. Ele estava sendo seguido de perto por Thomaz,
porém subestimamos sua capacidade intelectual. Ele deve ter percebido
alguma movimentação e pôs Thomaz a nocaute, na mata. Por sorte não
matou o rapaz, estava com pressa, o alvo dele era outro. O resto da
história tu já conheces Cristine.
- Mas como você conseguiu chegar antes dele, Angélica? – perguntou
Cristine.
- Thomaz deixou de responder pelo comunicador e vi que algo não
corria bem. – a morena encarou Cristine – e senti medo. E corri pelos
atalhos que tão bem conheço...
192
- Eu sou bibliotecária! E ultimamente tenho trabalhado no setor
administrativo sim. Eu não menti. Só não podia falar toda a verdade
para não colocar a tua vida em risco! É muito difícil de entender isso???
- Não sei... Tem algumas coisas que eu não sei...
- Mas então pergunta que eu te respondo!
- Angélica, por que tu me arrastaste pelo meio do mato, feito uma louca
naquele dia que eu estava lá no cemitério?
- Porque queriam fazer uma peneira de ti!
- Como???
- Eu dei falta de mais uma coisa no castelo, outra arma, o arco e flecha
do padrinho. E se eu não chego naquela hora a senhorita estaria igual a
uma almofada de costureira!
- E por que me deixaste pensar que eu estava enlouquecendo, quando
eu realmente vi o túmulo vazio??? Você não podia ter me deixado
naquela angústia!
- Tine... Eu não podia te contar... Eu precisava te proteger... Pelo amor
de Deus, entenda isso!
- Como me proteger??? Me deixando crer que estava ficando louca???
- Não. Simplesmente não deixando aquele maldito desconfiar de que
estávamos na cola dele. A gente precisava pegar o crápula... E tu sabe
disso.
193
- Então me explica o que significam aqueles animais mortos e o
pentagrama invertido na chave da porta.
- Bom, pentagrama invertido eu não me lembro, deve ter sido colocado
de forma errada pelo próprio James, sei lá, pendurado ao contrário na
pressa... E quanto aos animais, bem o teu avô era taxidermista.
- Taxidermista???
- É. E o padrinho tinha horror daquilo. Ele gostava dos animais vivos e
não empalhados. Mas era uma atividade até que instrutiva. O vovô
costumava distribuir exemplares, principalmente pássaros, para as
escolas e para a universidade, para estudo das espécies.
Olhou Cristine nos olhos, deu meia volta e saiu, deixando-a sozinha
com seus pensamentos. Cristine desabou num choro compulsivo.
Soluçou por bastante tempo.
194
- Mas a senhorita precisa comer algo. Eu levo uma sopinha no quarto,
pode ser?
- Pode. Eu vou subir.
- Eu levo a sopa já, já.
- Obrigada.
*****************
195
A bordo da aeronave a sensação de Cristine não era só de desconforto,
era de mágoa, angústia e solidão. Pensara que se sentiria melhor
voltando para casa, mas se dava conta naquele momento que isto não
passava de uma ilusão.
*************
196
- Eu preciso me organizar, querido. A minha vida é aqui... – respondeu
Cristine.
- Mas eu ia gostar se tu fosse morar lá! – insistiu o adolescente.
- Ta interessado numa professora de graça, né moleque? – brincou
Cynthia tentando mudar o foco da conversa. – Quem sabe você vem
para cá?
- Eu bem que queria, mas só se o pai, a mãe e a mana viessem junto. E
eles não saem de lá!
197
quase morreu pra te salvar! Acorda, mané! Não ta te dando conta que
essa mulher te ama, não? Para de sentir pena de ti mesma. Tudo bem
que a história da tua família é uma história fudida mesmo, mas a
Angélica não tem culpa disso! E se ela não te contou tudo o que sabia
foi pra te proteger, ô cabeça dura!
O sol desapareceu de vez por trás dos prédios e a praia foi invadida
pelas cores da noite. As luzes de neon, o calor e o burburinho da cidade
grande eram como um bálsamo para Cristine, mas lhe faltava algo para
sentir-se completa. Desejava estar nos braços da mulher que deixara
em Doze Colinas, e que poderia não querer voltar a vê-la novamente.
198
óbvio: Angélica havia somente cumprido sua missão a contento, que
era protegê-la e zelar por sua segurança. Mais que isso, havia sido
muito mais que uma profissional, tinha agido como uma pessoa que
ama acima de tudo. E cada vez que pensava nela um aperto no peito a
fazia sentir medo de nunca mais sentir o abraço da morena, os beijos,
os afagos, a proteção...
Cada vez que se lembrava de que havia saído sem despedir-se sentia
vontade de esmurrar o próprio rosto e repetia para si mesma: burra,
burra, burra. Inúmeras vezes nas duas semanas que se passaram havia
pegado o telefone para falar com Angélica, mas não teve coragem.
Chegara a discar o número e quando a voz melodiosa e grave do outro
lado da linha respondia "alô", desligava sem conseguir pronunciar
palavra alguma.
Por fim decidira que voltaria para Doze Colinas. Precisava falar com
Angélica pessoalmente, e qualquer fosse a reação da morena precisava
procurá-la. Estava disposta a pedir perdão se preciso fosse e aceitar
qualquer condição ou crítica... Sentia a necessidade de tentar
reconstruir sua vida. Com este propósito fizera suas malas no dia
anterior. Havia tido tempo de colocar os negócios do escritório em
ordem e combinar seu afastamento por alguns dias com Cynthia, ou
quem sabe por meses...
199
Levou a mão à maçaneta e a porta estava aberta. Espiou para dentro e
disse baixinho:
- Ô de casa...
200
tentava concentrar seus sentidos atrás de si, ainda sem fazer menção
de se virar.
201
defronte a ela, fitando-a de cima, olhos nos olhos. Cristine estancou seu
discurso. Angélica a encarou profundamente e num gesto firme, ainda
em silêncio, a envolveu pela cintura trazendo-a para junto de si e
praticamente erguendo-a no ar, junto a seu corpo. Segurou-a pela nuca
enquanto capturava seus lábios com sofreguidão e loucura. Cristine
abandonou-se naquele beijo e seus medos todos se dissiparam como
que por encanto. Sentiu a boca de Angélica ávida pela sua, as línguas
sedentas procuravam contato num bailado frenético. As mãos pareciam
querer capturar cada curva, cada pedaço do corpo. Os corações batiam
descompassadamente.
Aos poucos foram diminuindo o ritmo ávido do beijo, dando lugar a uma
carícia mais suave. Por fim olharam-se nos olhos e sorriram.
202
Dessa vez foi Cristine quem segurou a morena com firmeza e
abocanhou o fruto maduro, cujo caldo adocicado escorria pelos cantos
das bocas de ambas, enquanto novo beijo ardente fazia os corpos
esfregarem-se com avidez.
- Pois é... Eu sou uma boba mesmo... Teria sido muito mais fácil ter
confiado em ti... Ter deixado de lado minha autopiedade, ter percebido
o quanto você fez por mim...
- Mas o importante é que estás aqui. – interrompeu a morena – E eu
estou imensamente feliz em tê-la assim... Nos meus braços.
203
- Nem tanto... Mas vamos sim... Eu quero poder ficar mais à vontade...
- Isso é uma proposta?
- Como quiser... – respondeu a loirinha sorrindo.
- Mas então vamos escapar em silêncio, pois se o Ariel sonha que estás
aqui não arreda mais o pé!
Ambas riram do garoto. Angélica continuou enquanto caminhavam para
a cabana:
- Aquele cabeça-de-vento não incomodou muito lá no Rio?
- De forma alguma. A Cynthia mal via o Ariel. Ele arrumou uns amigos
no prédio e passava a maior parte do tempo na praia.
- O cabeçudo sabe se virar! – riu-se a morena.
- Isso sem falar das inúmeras conquistas do garoto! – continuou
Cristine – To começando a acreditar que o sorriso sedutor é genético!
- Pode ser... Quem puxa aos seus...
Cristine gargalhou.
- Ta bom...
- Tu almoçaste?
- Almocei. Na estrada.
- E ta com fome?
- To.
- Então eu vou preparar um lanche. – disse Angélica.
- Não precisa – respondeu Cristine enquanto envolvia a morena pela
cintura – A minha fome é outra...
204
O domingo amanheceu ensolarado e sem nuvens. Por volta das dez
horas da manhã Cristine despertou e deparou-se com Angélica a
contemplar seu rosto com um sorriso sereno e amoroso.
205
seus dedos com suavidade sobre o sexo da morena, fazendo-a abrir
suas pernas receptivamente - E se abre... E geme quando eu a
penetro... – neste momento Cristine introduziu dois dedos na cavidade
quente e úmida, fazendo a morena se contorcer e gemer baixinho.
- Hããããn... To começando a imaginar quem seja... – sussurrou Angélica
à meia voz - ...mas me dá mais... hããã... Algumas pistas....
- Ela é simplesmente a mulher mais gostosa que eu já tive... –
respondeu Cristine com a boca colada ao ouvido de Angélica e
movimentando seus dedos ritmicamente – e goza quando eu a toco...
Assim...
- Hãããããã... Delícia... – gemeu a morena.
- E pede mais...
- Hãããã... Mais... Eu quero mais... Assim... huuummm. Continua...
hããããã...
Ambas gargalharam.
- Escuta, que tal se a gente levantar? – perguntou Cristine.
- Tudo bem. Só me deixa recuperar o fôlego, por favor. Dois
minutinhos. E, Tine...
- O que?
- Tira a mão do meio das minhas pernas.
206
- Mãe, Cristine chegou ontem, mas como passou lá em casa primeiro e
estava muito cansada, pois veio de carro, acabou adormecendo e só
acordou agora há pouco. Por isso foi como se tivesse chegado de fato
agora há pouco... E por isso só viemos pra cá agora.
- Ah, bom... – respondeu Regina olhando para as duas com uma
expressão desconfiada, porém sorridente – Mas que bom que voltastes,
guriazinha – continuou dirigindo-se a Cristine – a gente acabou se
acostumando contigo. E agora aqui é a tua casa. O Dr. Mendes sabia
que virias?
- Não. – respondeu Cristine – Eu quis fazer uma surpresa.
- Ele está lá no escritório. Eu já ia servir o almoço.
- Então a gente vai até lá, dar um abraço nele. – disse Cristine.
207
Cristine suspirou e sorriu tristemente.
- Mas com certeza ela terá mais lembranças dele do que eu...
- Imagine esta mulher com o teu rosto – disse Angélica – e pronto: eis
o retrato da tua mãe.
- Eu gostaria de saber por que ele não fez o rosto...
- Ele fez. Mas desfez inúmeras vezes... E refez novamente, e desfez de
novo. Até que um dia desistiu de tentar imaginar como estaria o rosto
deste retrato.
- Será que ele terminaria o quadro algum dia?
- Quem sabe... Talvez olhando pro teu rosto...
Cristine sorriu tristemente e emendou:
- Apesar de tudo fico confortada em saber que de alguma forma fui
amada pelo meu pai... E minha mãe também.
- E é isso que importa Tine... E tenha a certeza que tu conseguiste
transformar a essência do teu pai. O homem amargo cedeu lugar a um
ser esperançoso e confiante na providência divina. O homem descrente
passou a acreditar que existe muito mais do que nossos sentidos
possam perceber.
- Que bom.
208
madeira da porta havia a marca original da figura mística da chave,
com uma das pontas voltada para o alto, lembrando o contorno do
Homem Vitruviano, de Da Vinci. Riu-se de sua capacidade de
materializar fantasmas e monstros imaginários. Levou sua mão à porta
e empurrou a pesada estrutura para dentro. Instintivamente deu um
passo atrás quando a lufada de ar saturado e mofo invadiu suas
narinas. Angélica passou à sua frente e fez a mesma coisa que fizera no
atelier: abriu as janelas, escondidas atrás de uma pesada cortina negra,
e deixou a luz do sol entrar. Desta vez Cristine pôde observar o
aposento atentamente. A mesa de tampo de madeira desgastada pelo
tempo ostentava ferramentas e alguns animais empalhados. Nas
prateleiras aéreas também havia vários espécimes de pássaros
inanimados. Havia inclusive uma pequena onça e um gato-do-mato,
cuja expressão feroz amedrontaria até mesmo o mais valente dos
mortais.
209
- Calma. – disse a morena – É assim mesmo. Vamos.
***************
210
Angélica seguiu Cristine que enveredou para os lados do cemitério. No
trajeto Cristine pôde novamente observar a luminosidade daquela tarde
de início de primavera. Era como se, no tempo em que estivera
ausente, o Criador houvesse derramado cores e matizes onde antes só
existia o cinza. Uma escala policromática substituía a coloração
monocromática no cenário à volta, como que exorcizando a tristeza e a
monotonia dos dias de chuva intensa. Até mesmo o muro de pedras do
cemitério parecia diferente. Ao cruzarem o portal de ferro as
catacumbas também não pareciam as mesmas. O sol refletia no
mármore branco lavado pela chuva inundando o ambiente com uma
coloração esbranquiçada, que poderia chegar a ofuscar a visão, não
fosse a moldura natural formada pela vegetação esverdeada da mata
nativa.
****************
211
Cinco meses depois...
212
- A propósito, a mãe mandou dizer que o ônibus da escola chegou! – e
continuou sua corrida para o castelo.
213
O mais difícil foi convencer Morris a ficar e participar daquele trabalho.
Ele se achava incapaz de participar daquela atividade. Cristine ainda
recordava a conversa que tivera com ele, onde Morris lhe abrira o
coração:
- Senhorita, eu gostaria de agradecer a sua confiança em me deixar
continuar trabalhando aqui, mesmo sabendo do meu passado... Bem...
Que eu matei um homem...
- Morris, se meu pai confiava em você eu também confio.
- Eu gostaria, se a senhorita me permitir, explicar o ocorrido...
- Sou toda ouvidos.
- Bom... Aconteceu há muito tempo... Eu tive somente uma filha, e
quando ela era bem pequena a mãe dela foi embora. Ficamos somente
nós dois. Eu a criei com o maior esmero, ela estudou nas melhores
escolas, teve toda a minha dedicação, para compensar a falta da mãe.
Acontece que aos dezenove anos ela engravidou. O sujeito desapareceu
e ela ficou em desespero. Como eu a amava muito lhe falei que
criaríamos o bebê sem problemas. Ela não tivera mãe e seu filho não
teria pai, mas teria um avô. E isso bastaria. Bom, senhorita... Acontece
que minha filha morreu no parto. E eu fiquei com minha neta,
novamente sozinho com uma criança pequena. Pietra era uma criança
linda... Como a mãe. E morava comigo, na casa de meus ex-patrões.
Um dia, quando ela tinha oito anos, e morávamos na América, eu fui
buscá-la na escola e ela não estava lá. E ninguém soube explicar quem
a havia levado antes de eu chegar... – Morris calou-se engolindo em
seco e demonstrando sofrimento – Desculpe-me, mas é que nunca
contei isto para ninguém nos últimos anos... A não ser para o Sr.
Artur... Mas... Acionei a polícia e... E ela não foi localizada naquele dia...
e nem nos outros... Ficou desaparecida por duas semanas e quando a
localizaram... – novamente Morris estancou – ela... Estava morta.
- Sinto muitíssimo, Morris... – disse Cristine passando a mão no ombro
do mordomo que enxugava uma lágrima do canto dos olhos.
- Depois de alguns dias tudo levava a crer que houvessem capturado o
bandido. Era um jovem de família rica, muito rica, mas era um drogado.
E nada ficou provado... E ele ficou em liberdade... Em qualquer lugar do
mundo a justiça e a impunidade têm seu preço... Ele estuprou a
menina, matou e ocultou o cadáver. E eu sabia que foi ele, de fonte
segura. Como nada seria feito eu mesmo fiz justiça. O resto da história
a senhorita já deve ter ouvido falar.
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- Pois bem, senhorita, vou tentar. – respondeu recompondo-se e
reassumindo a postura formal e ereta.
- Obrigada, Morris.
- Bom, parece que não temos nada a fazer aqui. Está tudo
encaminhado. – disse Cristine sorridente.
- Tem razão. Quem sabe vamos dar uma caminhada por aí, lá pros
lados do belvedere?
- Vamos nessa. – concordou a loirinha – Assim a gente aproveita e
namora um pouquinho vendo a paisagem...
- Ta bom... – riu-se Angélica.
- Amor...
- O que?
- Você não está sentindo falta da tua vida de antes? Da rotina do teu
trabalho na policia, da tua casa na capital?
- Tine, tu sabes que eu já estava trabalhando mais na parte
administrativa mesmo. Além do que se eu enjoar dessa nova atividade
de "empresária do ramo do entretenimento infanto-juvenil" eu peço a
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revogação da minha licença e volto para a ativa. E tem mais uma
coisa...
- O que? – quis saber Cristine curiosa.
- Além de o meu salário ser bem mais... Digamos... Gratificante, a
minha nova patroa é infinitamente mais sedutora do que o delegado
Munhoz.
Ambas gargalharam e se deram as mãos, caminhando na direção dos
fundos da imensa propriedade.
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cascata, o canto dos pássaros, o som do vento nas copas das árvores, o
silvo agudo das cigarras, o relinchar longínquo dos cavalos, a
movimentação dos pequenos animais na mata.
Fim
217