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A herdeira

Rose Angel
Parte 1

Uma história de Rose Angel


roseangelys@yahoo.com.br
Agosto de 2006

Cristine caminhava apressadamente pelo corredor de embarque do


Aeroporto Galeão, no Rio de Janeiro, tão absorta em seus pensamentos
que mal percebia a intensa movimentação ao seu redor. O burburinho
das pessoas que estavam chegando e partindo, o vai-e-vem de malas e
bagagens empurradas nos carrinhos metálicos, a voz grave, aveludada
e compassada que emanava dos alto-falantes e anunciava a saída e
chegada de novos vôos; nada disso prendia a atenção da jovem que se
dirigia à aeronave da TAM, que já recebia os primeiros passageiros em
seu interior imenso. Voar era sempre a mesma angústia para Cristine.
Desde a primeira vez que andara de avião a sensação era a mesma:
desconforto. A pressurização a incomodava e fazia seus ouvidos e
maxilares parecerem de cristal, como se fossem se quebrar ao mais
suave toque. Ficava com a boca seca e as mãos suadas.

Portando apenas uma valise de mão instalou-se num dos bancos


centrais, longe das janelas. Colocou seu cinto de segurança e abriu uma
revista de bordo tentando distrair a mente. No entanto, seu
pensamento vagava entre a ansiedade de estar prestes a ficar a
incontáveis metros acima do chão e a expectativa frente ao que lhe
reservava seu destino.

Tão logo o avião fez a primeira manobra ainda em terra, posicionando-


se de frente para a pista de decolagem, Cristine colocou um chiclete de
hortelã na boca, para tentar aliviar a torrente de explosões em seus
ouvidos que por certo iniciariam no momento em que o trem de pouso
saísse do chão. A aeronave iniciou sua corrida veloz e Cristine fechou os
olhos, sentindo a pulsação de seu coração na garganta. Em segundos
sentiu o habitual frio no estômago e tomou ciência de que já não estava
mais em terra firme.

Ainda de olhos fechados tentou recapitular os últimos acontecimentos, a


surpresa com o telegrama e o telefonema que recebera no dia anterior
e que a fizera estar ali naquela situação tão inusitada. Sentia-se “sem
chão” no sentido amplo da palavra, literal e metaforicamente.

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Recordava que no final da tarde anterior havia recebido um telegrama
em seu trabalho. Dizia o seguinte: “Senhorita Cristine Dupret Torres,
favor entrar em contato urgente com Dr. Mendes. Assunto de seu
interesse. Escritório de Advocacia Mendes e Winter Ltda.” Logo depois
se lia o número do telefone do escritório. Movida pela curiosidade
Cristine discou o número cujo prefixo era do Estado do Rio Grande do
Sul e uma voz com timbre de tenor atendeu do outro lado da linha:
- Alô, Escritório de Advocacia.
- Por favor, o Dr. Mendes se encontra?
- Pois não, sou eu mesmo.
- Eu sou Cristine Torres e recebi um telegrama seu.
- Senhorita – disse o advogado suspirando profundamente, visivelmente
aliviado pelo contato – Solicitei um contato urgente, pois um de meus
clientes é parente seu, o Sr. Artur Diaz Torres...
- Sim, é um tio meu. Na verdade eu pouco tenho contato com ele, acho
que o vi somente umas três ou quatro vezes em minha vida.
- Bom, senhorita, lastimo informá-la, mas o seu tio veio a falecer no dia
de hoje.

Fez-se um silêncio na linha. Nem Cristine nem o advogado sabiam o


que dizer. Na verdade Cristine não tinha vínculo algum com seu tio e
seria hipócrita se dissesse estar lamentando seu óbito. Mas também
fora assolada por um estranho sentimento de vazio, de perda.
Novamente perdas. Havia perdido os pais ainda pequena, tragicamente.
Ficara sozinha desde então. Sabia da existência de seu tio paterno,
porém este nunca fizera menção de uma aproximação maior com ela.
Crescera em colégios internos. Com ótima formação, porém sempre
solitária. E naquele momento a sensação de estar sozinha novamente
afligiu seu coração.

- Alô... Senhorita...
- Sim... Estou ouvindo...
- Bem... Como testamenteiro de seu finado tio estou entrando em
contato com a senhorita para informá-la de que será aberto o
testamento de seu tio dentro em breve e seria imprescindível a sua
presença.
- A minha presença?
- Sim.
- Mas, por qual motivo?
- Bem, a senhorita consta no testamento.
- Como?
- Seu tio lhe deixou alguns bens.

Novo silêncio se fez na linha telefônica. Desta vez o advogado


continuou.

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- Se me permite sugiro que venha para o funeral de seu tio, que será
amanhã.
- Mas... Como?... Eu não me preparei...
- Infelizmente senhorita a morte não manda avisos e sempre nos pega
desprevenidos. Se me permite ainda posso providenciar passagens
aéreas e transporte para trazê-la em tempo de despedir-se do falecido.
Também devo lhe informar que poderá ficar na casa de seu tio.
- Eu não sei... Preciso pensar... Me organizar...
- Não há tempo para isso, senhorita.

Cristine inspirou profundamente e respondeu movida pelo impulso:


- Tudo bem então. Eu vou... Mas, para onde mesmo?
- Para Doze Colinas, aqui no Rio Grande do Sul. Eu providencio o que
for necessário e lhe telefono para dar os detalhes dentro em breve.
- Tudo bem.

Cristine passou seus telefones de contato para o Dr. Mendes e tratou de


ir para casa a fim de arrumar sua mala. Antes conversou com sua sócia
da firma de engenharia e arquitetura, Cynthia, e combinaram que ela
tomaria conta dos negócios em sua ausência, que pretendia que fosse
breve.

Era pouco mais de dez horas da noite quando o telefone em seu criado-
mudo tocou. Estava tomando banho, no entanto conseguiu ouvir
quando a secretária eletrônica capturou o seguinte recado: “Senhorita
Cristine, aqui quem fala é Mendes. Está tudo resolvido. A senhorita
embarca no Galeão às seis horas da manhã e nós lhe buscaremos no
Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. De lá seguimos para Doze
Colinas a tempo de acompanhar o sepultamento de seu tio. Favor
entrar em contato comigo tão logo receba esta mensagem”.

Assim que terminou de secar-se e vestir-se Cristine retornou a ligação e


falou com Dr. Mendes anotando o número do vôo e demais detalhes
necessários para identificar o advogado em sua chegada.

Cristine foi trazida de volta à realidade pelo toque suave em seu ombro
da comissária de bordo:
- Aceita uma bebida?
- Água, por favor.

Ainda se encontrava num estado letárgico, misto de espanto e


incredulidade. Da noite para o dia havia perdido o único familiar que
ainda lhe restava, embora que distante, e poderia estar herdando sabe-
se lá o quê. Um grande ponto de interrogação pairava em seus
pensamentos. Decidiu tentar distrair-se novamente com a revista de

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bordo quando uma turbulência mais forte a fez empalidecer. “Calma
Tine”, pensava ela, “é assim mesmo, isso é normal, vai passar”. E de
fato passou. A viagem de quase duas horas foi tranquila e quando o
avião pousou em solo Rio-grandense, e os motores das turbinas
inverteram seu giro a fim de desacelerar a velocidade da aeronave,
Cristine suspirou aliviada. O barulho ensurdecedor era de fato um
bálsamo para seus ouvidos, pois era sinônimo de contato com o solo
abençoado e firme. O desembarque foi até rápido, mais rápido do que
ela supunha que fosse. Ao dirigir-se à porta envidraçada visualizou ao
longe um homem alto, com alguns cabelos grisalhos despontando em
suas têmporas, aparentando cerca de cinquenta anos, um tipo
realmente interessante, segurando uma discreta placa com seu nome.

Sabedora dos rigores do inverno gaúcho, Cristine precavida, havia


deixado um agasalho de lã à mão. Vestiu seu casacão antes de
desembarcar e ao primeiro contato com o ar sulista sentiu sua pele
arrepiar-se de frio. O contraste com o clima carioca era gritante.
Acostumada com uma temperatura mais quente, onde se podia
frequentar as areias da praia do Leblon inclusive no inverno sem
maiores problemas, aquela aragem gélida em suas faces a fez ficar
corada e com o nariz avermelhado. Aquele mês de agosto estava se
superando no frio e no volume de chuvas. Chovia há aproximadamente
dez dias, incessantemente. Neste período raras vezes uma nesga de
luminosidade parecia querer furar as nuvens cinzentas e deixar
transparecer o azul celeste, no entanto logo a massa compacta das
nuvens despejava uma nova enxurrada de espessas gotas,
transformando em lamaçal as estradas não asfaltadas das cidadezinhas
do interior e criando um caos no centro da cidade, na capital.

Enquanto dirigia-se ao Dr. Mendes a jovem não podia deixar de pensar


no que a aguardaria nos próximos dias. Ao aproximar-se do advogado
este esboçou uma mesura com a cabeça, estendendo-lhe a mão e
dizendo:
- Senhorita Cristine?
- Sim.
- Meus pêsames, senhorita.
- Obrigada – respondeu Cristine.
- O carro está nos aguardando no estacionamento. A senhorita gostaria
de tomar um café antes de partirmos?
- Não, obrigada. Estou sem fome.
- Neste caso, vamos indo. Por gentileza. – disse o Dr. Mendes
gentilmente pegando a mala de Cristine e indicando a direção do
estacionamento com um gesto discreto.

Dr. Mendes era um homem reservado, de poucas palavras, no entanto


bastante elegante e gentil, um verdadeiro cavalheiro. Em menos de dez
minutos estavam defronte ao ômega azul marinho em cujo porta-malas

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foi colocada a bagagem de Cristine. No curto trajeto até o carro Cristine
pôde sentir o frio cortante a invadir-lhe os poros através das poucas
partes de seu corpo que estavam sem proteção. Puxou a gola de seu
casaco para cima tentando proteger mais seu pescoço e as orelhas,
sentindo seu corpo encolher-se instintivamente, na tentativa de
amenizar a sensação gélida. O cabelo loiro esvoaçava com as rajadas
de vento que cruzavam os corredores do estacionamento. A porta do
carro foi aberta pelo motorista, Henrique, que trajava um impecável
uniforme marinho, com um pesado sobretudo negro que lhe chegava
até as canelas, deixando à mostra somente a barra da calça e os
sapatos cuidadosamente engraxados.

- Senhorita Cristine, este é Henrique, o motorista do falecido senhor seu


tio.
- Meus pêsames, senhorita. – disse Henrique tirando seu quepe e
inclinando-se respeitosamente num cumprimento, evidenciando estar
de fato bastante entristecido pela morte do Sr. Artur.
- Obrigada.
– E muito prazer em conhecê-la. Este criado está ao seu dispor para o
que precisar. – continuou o motorista.
- Obrigada novamente. – respondeu Cristine.
- Então vamos. Infelizmente uma ingrata e dolorosa tarefa nos
aguarda... – disse Dr. Mendes segurando a porta enquanto Cristine
embarcava.

O carro pôs-se em movimento e, em silêncio, Cristine observava a


paisagem cinzenta que se descortinava ao longo do caminho. Espessas
gotas de chuva teimavam em chocar-se violentamente contra o vidro do
carro, turvando a visão de Cristine. Quando a chuva cedia por instantes
podia observar um pouco as curvas da estrada. O vento fustigava o
arvoredo e a vegetação do acostamento. Perdida em seus devaneios
sentia-se como se estivesse num sonho, como parte de um filme cuja
película pudesse ser parada a qualquer momento. Porém a voz do Dr.
Mendes deu-lhe a dimensão de que estava presa à realidade.

- A senhorita já conhecia este lugar?


- Não... Só de ouvir falar. Lembro remotamente que meu pai contava
histórias de sua infância aqui... Mas são lembranças muito vagas.
- Entendo... – respondeu o advogado. – Faz muito tempo que ele
faleceu, não é mesmo?
- Faz.

Fez-se um silêncio, novamente quebrado pelo Dr. Mendes:


- Tem feito uns dias muito chuvosos... O tempo de fato não está
ajudando em nada.
- Como se o tempo pudesse ajudar em alguma coisa neste caso... –
disse Cristine, mais para ela mesma do que para o advogado.

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- De fato... – ponderou Dr. Mendes – Senhorita, eu respeito seus
sentimentos, e coloco-me à sua inteira disposição para lhe colocar a par
de todas as circunstâncias que envolveram o falecimento de seu tio.
Basta a senhorita assim o desejar. Não quero forçar uma conversa que
a faça sofrer. Qualquer coisa que deseje saber é só me perguntar,
certo?

Cristine olhou o advogado nos olhos e sentiu franqueza em suas


palavras. Com um aceno de cabeça assentiu e tornou a olhar para a
paisagem da estrada. Passados cerca de trinta minutos Cristine
perguntou:
- Meu tio estava doente há mais tempo?
- Que eu soubesse não. Fazia controle médico sistemático devido a
problemas cardíacos, mas nada que pudesse indicar algo mais sério.
- E qual foi a causa da morte?
- Infarto. Fulminante.

Cristine calou-se novamente.

- Seu tio era um homem circunspeto, de poucos amigos. Mas era uma
pessoa pela qual eu nutria uma especial amizade e admiração.
Convivíamo-nos desde que me conheço por gente. Quando eu era ainda
um meninote o Sr. Artur já era um jovem gerenciador da propriedade
herdada de seu pai e dos escritórios da família. A minha origem era
muito humilde e um belo dia eu disse ao Sr. Artur que pretendia ser
advogado – sorriu entristecido – e ele me ergueu nos braços e disse
que faria de mim o melhor advogado da região. E assim o fez. Pagou
todos os meus estudos até que me formasse. Desde então defendo os
interesses dele como defenderia os de meu próprio pai. Por isto
senhorita, empenhei-me tanto em localizá-la, pois sou sabedor de que
este seria um dos desejos dele.
- Mas ele mal me conhecia... Nem consigo me lembrar do rosto dele... –
disse Cristine com um tom de amargura na voz. – Porque ele não me
procurou antes? Enquanto estava vivo? O senhor tem idéia do que é
não ter ninguém na vida? – desabafou Cristine – O senhor sabe o que é
sentir-se sem ninguém?
- Não... Não sei... – respondeu Dr. Mendes pousando delicada e
respeitosamente sua mão por sobre a de Cristine – mas posso
imaginar... Porém garanto-lhe que seu tio deve ter tido seus motivos
para fazê-lo. Não o culpe por isso, por favor...

Cristine suspirou profundamente, engolindo uma sensação de choro


contido, e respondeu brandamente:
- Tudo bem...

Percorreram o restante do trajeto em silêncio. A viagem até Doze


Colinas levou cerca de duas horas. Ao entrarem na cidade Cristine

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percebeu as pequenas vielas sem asfalto que convergiam todas até a
estrada principal, na qual trafegavam, e que era coberta por
paralelepípedos de pedra e ferro, irregulares e gastos, mais pelo tempo
de uso do que pelo fluxo de veículos. Era uma cidade pequena, com
alguns estabelecimentos comerciais e pouquíssimo movimento. A chuva
intensa e o frio haviam esvaziado as ruas e todos procuravam um
abrigo seco e quente.

Cristine olhou seu relógio de pulso e viu que já passava das dez horas
da manhã. Percebendo seu movimento Dr. Mendes falou:
- O enterro está marcado para as onze horas. Chegaremos a tempo,
fique tranquila.

O veículo continuava sua marcha rumo ao pequeno cemitério local.


Cristine sentia avolumar-se a sensação de gelo interior, porém não
sabia definir com certeza se seria pelo clima ou pelo nervosismo.

TRÊS MESES ANTES...

Sentado em seu escritório o introspectivo Artur Diaz Torres analisava


detalhadamente os documentos com as referências pessoais dos cinco
candidatos para a vaga de serviços gerais que precisava contratar ainda
naquele dia. Era observado por James, seu secretário pessoal e
afilhado, e por Morris, o sisudo mordomo da propriedade. Dr. Mendes
também estava presente, porém lia o jornal local distraidamente,
atendo-se às publicações legais por serem de seu interesse profissional.

- James, - disse Sr. Artur – selecionei estes dois candidatos. Quero


entrevistá-los agora. Dispense os outros. Me encaminhe primeiro este
aqui – e estendeu a ficha para o secretário.

Morris abriu a porta para a passagem de James e permaneceu em sua


costumeira posição de sentido. Parecia que em seu íntimo ouvia
constantemente a melodia do hino nacional, tamanha sua retidão na
postura e seriedade. Raramente sorria e respondia sempre em
monossílabos, em um tom de voz baixo, grave e respeitoso. Parecia
olhar o mundo de cima de um pedestal. Apesar da aparência arrogante,
Sr. Artur gostava dele. Era considerado um serviçal exemplar pelo
patrão. Parecia adivinhar os pensamentos deste e não raras vezes
atendia as suas vontades antes mesmo que fossem expressas
verbalmente. Morris demonstrava fidelidade e discrição, virtudes
indispensáveis no conceito do Sr. Artur. Contratado em uma das
viagens de Artur à França, desempenhava suas funções na propriedade

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do novo patrão sem cogitar a possibilidade de retornar para sua terra
natal. Havia se adaptado bem ao país e ao clima, cujo inverno lhe
lembrava os rigores do inverno europeu.

O primeiro candidato selecionado adentrou na sala pedindo licença e


respeitosamente tirando a touca de lã que lhe cobria os cabelos
cuidadosamente aparados. Tinha um aspecto limpo e um discurso
adequado. Respondeu ao que lhe era perguntado de forma direta, sem
rodeios, o que agradou o Sr. Artur.

O segundo candidato aparentou maior nervosismo, principalmente ao


ser observado pelo possível futuro patrão dos pés à cabeça. Não lhe foi
dirigida a palavra mais do que duas ou três vezes.

Após a saída deste, Artur disse secamente a James:


- Já fiz a minha escolha. Quero o primeiro – disse olhando novamente
para a ficha do rapaz – o Thomaz. Ele pode começar agora mesmo.
- Tem certeza, padrinho? – questionou James.
- Absoluta. Encaminhe-o aos seus aposentos, por favor, Morris.
- Pois não, senhor. – respondeu o Mordomo saindo do recinto.
- Eu ainda acho que o segundo candidato seria o mais adequado,
padrinho, afinal mora aqui na cidade, é gente conhecida...
- Mas tu não és pago para achar nada. Aqui quem acha sou eu, e gostei
do que escolhi. – disse Sr. Artur secamente.
- Desculpe... – assentiu James em voz baixa.
- Não se desculpe, James. Mas tente guardar seus palpites para si
mesmo, e só os dê quando eu pedir.
- Sim senhor, padrinho. Com licença. Vou dar as orientações que o
rapaz precisa.
- Isso. Vá, vá...

James saiu da sala deixando Sr. Artur e Dr. Mendes sozinhos. Este
último sorriu e disse:
- Artur, Artur... Tente controlar sua impaciência. Tu pegas muito pesado
com o rapaz – disse referindo-se a James.
- Mas ele consegue me tirar do sério, Adroaldo. Sempre tem um palpite
furado para dar. E quando é preciso não sabe tomar as decisões
adequadas. Não poderia nunca tocar os negócios para frente.
- Mas quem sabe agora tenhas a pessoa certa...
- Quem sabe. – respondeu Artur secamente e apressando-se em mudar
de assunto – e então, como me saí?
- Acho que acertou na escolha. – respondeu Mendes sorrindo
discretamente e tornando a ler a página das publicações legais de seu
jornal. – Agora me sinto mais tranquilo.
- Eu também... – respondeu Artur em voz baixa, mais para si mesmo
do que para o amigo.

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- Artur, - disse Adroaldo Mendes agora deixando transparecer
preocupação na voz – tem certeza que não seria melhor conversar com
o Munhoz sobre o incidente do carro?
- Acho que não. Realmente foi uma falha mecânica. Podia acontecer
com qualquer um.
- Mas foi contigo.

Artur calou-se pensativo e continuou:


- Não... Ainda acho que foi coincidência...
- Eu não tenho essa certeza – respondeu o advogado. – E as armas da
coleção? Conseguiste achá-las?
- Ainda não, devo ter guardado em algum lugar por aí.
- Será? Metódico como és não poderias ter simplesmente esquecido...
- Mas tu chega a ser um mau agouro, ein, Adroaldo! – retrucou Artur.
- Sou apenas um amigo preocupado...
- Ta bom, ta bom... – retrucou o homem mais velho com irritação.

*************

Quando o carro parou em frente ao cemitério da cidadezinha Cristine


sentiu novamente a sensação de frio no estômago avolumar-se. O
cemitério era cercado por um muro alto, de pedras, por sobre o qual se
conseguia avistar os mausoléus de família e as imagens dos anjos e
santos de mármore cuja função era velar o sono eterno dos que ali, em
paz, repousavam pela eternidade. A chuva novamente voltara a castigar
a cidade e caía abundantemente, precipitada com força pelas nuvens
escuras e carregadas que pareciam querer abafar as copas das árvores
mais altas.

O automóvel cruzou o portão de ferro do campo-santo e rumou por um


curto caminho de paralelepípedos até a pequena capela mortuária.

Dr. Mendes desceu do carro e abriu um guarda-chuva negro, fazendo a


volta para acolher Cristine e protegê-la da chuva espessa. Henrique já
abrira a porta do carro e a jovem sentira o frio novamente assolando
sua cútis clara e sensível. Sentiu o coração disparar. Estava prestes a
presenciar o funeral do único familiar que ainda sabia existir e do qual
não tinha sequer a menor recordação. Apesar disso sentia o coração
enlutado, com um sentimento de perda que não saberia definir. Ao
desembarcar, Dr. Mendes passou o braço por cima de seus ombros,
acolhendo-a junto a si e conduzindo-a para a porta de madeira que se
encontrava totalmente aberta. Neste momento o sino começou a tocar,
em badaladas rítmicas e melancólicas, anunciando que o momento da
despedida final se aproximava. Cristine pôde ver a movimentação
dentro do pequeno recinto, onde as pessoas se aproximavam da urna

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mortuária, cercando-a solenemente, embora mantendo certa distância,
como que reservando um espaço para sua entrada.

Por um momento Cristine estancou, sendo tocada com suavidade no


ombro pelo advogado da família, como que a encorajando a aproximar-
se. Retomou a marcha lentamente e chegou até os pés do caixão que
repousava sobre um rústico cavalete de madeira escura.

Cristine sentiu que todos os olhares se dirigiram do falecido para ela,


porém era como se estivesse fazendo parte de outro cenário. Por
instantes era como se somente ela e o tio, inerte naquela urna de
mogno envernizado, fizessem parte da mesma dimensão. Sua mão
percorreu a borda do caixão, desde a parte de baixo, e pousou sobre as
mãos do falecido, cruzadas sobre seu peito e tendo um único adorno no
dedo anular esquerdo, uma aliança de prata desgastada pelo tempo.
Sentiu o frio soturno da morte sob seus dedos, advindo daquele corpo
agora sem vida.

Observou os contornos de seu rosto e não pôde deixar de notar a


semelhança com os traços de seu pai, ou do que se lembrava dele,
imagens avivadas pelas fotos de família. Tinha os cabelos grisalhos e as
têmporas eram totalmente embranquecidas. As sobrancelhas espessas
emolduravam um olhar que jamais veria. “Qual seria a cor de seus
olhos?”, pensou Cristine. Aparentava ter sido um homem de porte físico
grande, ombros largos, porém as mãos eram delicadas e os dedos eram
longos. E ali jazia inerte e sem vida. Sentiu uma ponta de dor na alma,
um misto de saudade e solidão. Uma lágrima escorreu do canto de seus
olhos umedecendo-lhe o canto da boca. Era como se estivesse
enterrando ali toda sua família, e sua história. Dr. Mendes estendeu-lhe
um lenço ao perceber a trajetória daquela gota que escorria pelo rosto.

Neste momento o padre adentrou no recinto e todos fizeram o sinal da


cruz. O padre, com sua batina longa e negra, iniciou o ritual da
encomendação do corpo. Antes que terminasse a primeira oração ouviu-
se o ruído do motor de outro veículo que estacionava em frente à
capela mortuária.

Em silêncio e de soslaio todos os presentes dirigiram o olhar para a


figura esguia, alta, loira e pouco discreta que desembarcava, quase que
teatralmente, do carro. Vestida de negro, com um chapéu de veludo de
abas largas e um véu rendado a cobrir-lhe o rosto, aproximou-se
chorando do corpo inanimado.

- Nããão... Artur... Nããão... – disse debruçando-se sobre o caixão e


abraçando o falecido.

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Um homem mais jovem que a acompanhava amparou-a pelos ombros
puxando-a delicadamente para trás. Os presentes, espantados,
aguardavam em silêncio o desenrolar da cerimônia, momentaneamente
interrompida. O padre tossiu discretamente, lançando um olhar de
desaprovação para a loira, que se abraçou ao rapaz que a acompanhava
enquanto soluçava mais discretamente, secando suas lágrimas com um
lenço de seda vaporoso e lilás. Dr. Mendes e o delegado Munhoz
entreolharam-se rapidamente mantendo, contudo, a fisionomia
impassível. Passado o impacto inicial o padre seguiu com a
encomendação. Cristine não conseguia entender o que se passava. E
por certo não era o momento de dissipar suas dúvidas, afinal passaria
alguns dias naquela cidade e poderia tomar ciência de toda a situação.

O ritual transcorreu como de costume. Procedidas as orações e a


bênção final a pesada tampa de madeira foi colocada sobre o ataúde,
não antes dos presentes fazerem sua última despedida do morto. A
loira foi a mais tempestuosa, abraçando-se ao corpo e chegando a pedir
que o falecido a levasse com ele, numa cena que chegava a ser
patética, não fosse a tragicidade do momento. Sempre amparada pelo
homem mais novo, que Cristine comparou a um verdadeiro Adônis pelo
porte físico e beleza, a loira foi mantida à distância e impedida de
extrapolar na demonstração de desconsolo e afeto pelo finado.

Cristine observou ainda quando outra figura digna de ser comparada a


uma divindade aproximou-se do esquife e respeitosamente depositou
uma flor logo abaixo das mãos cruzadas do Sr. Artur. Numa oração
silenciosa contemplou o falecido e deixou cair uma lágrima perceptível
somente após passar pela barreira da lente escura dos óculos que
impediam que se visse o seu olhar. Fora isso nenhum músculo de seu
rosto se moveu, demonstrando autocontrole e discrição. Era uma
mulher muito alta, cabelos escuros que pendiam soltos cortados em
camadas até a altura dos ombros. A pele era morena, mas parecia mais
clara no contraste com a roupa negra.

Nesta feita Cristine, já um pouco mais tranquila, passou a observar o


seu redor. Não havia muitas pessoas ali, talvez umas vinte. Seu tio
parecia não ser muito popular, mesmo considerando-se morar numa
cidade pequena.

Após ser depositada a tampa do ataúde os cravos foram parafusados,


um a um, num silêncio sepulcral quebrado apenas pelo soluçar da loira.
O crucifixo de metal incrustado na tampa do esquife reluzia à chama
tremulante das quatro velas que circundavam o morto. Cristine logo
reparou nas velas, estranhando o fato, uma vez que nos funerais
contemporâneos costumava-se utilizar luminárias artificiais. As velas,
com seu tremular tristonho, conferiam uma atmosfera antiga e mais
solene à cerimônia e ao local.

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Vagarosamente o cortejo fúnebre partiu em direção à sepultura
previamente preparada pelo coveiro local. A procissão seguia sob a
forte chuva que caía insistente. O pequeno mar de guarda-chuvas
negros parecia ondular ao som dos pingos de chuva que ensopavam o
cortejo e faziam escorrer pequenos córregos pela madeira envernizada
do caixão. Ouviam-se somente as batidas secas dos solados dos
calçados de encontro à rigidez das pedras assentadas no caminho
principal do cemitério, além do ruído abafado das gotas de chuva que
ecoavam no pano dos guarda-chuvas e nas lápides esbranquiçadas de
cal.

Enquanto o cortejo ia sem pressa o sino da capela novamente soou


naquele cenário cinzento. Batia devagar e compassadamente sua
melodia funesta. Seu tinir sorumbático ecoava ao longe e parecia
penetrar na mente de Cristine e dizer-lhe sombriamente: adeus.

Tão logo o ataúde desceu ao jazigo, atado por espessas cordas, e a


lápide de mármore foi colocada por sobre a abertura, o diminuto cortejo
foi se dissipando gradualmente. Cristine não chegou a ser
cumprimentada por ninguém, uma vez que não conhecia nenhuma das
pessoas presentes. Ficou parada onde estava, um pouco afastada do
jazigo, sem fazer menção de sair dali. A mulher morena e alta que
depositou uma flor nas mãos de seu tio passou por ela e dirigiu-lhe um
olhar escondido sob as lentes escuras. Com um movimento de cabeça
cumprimentou-a formal e seriamente, porém não lhe dirigiu a palavra.
Com a mesma seriedade Cristine devolveu a mesura.

Ainda amparada por Dr. Mendes permaneceu ali, ao lado da sepultura


da família, e pela primeira vez pôde ver onde estava uma parte de seus
ancestrais. Aproximou-se e observou a lápide de mármore escuro onde
se lia em letras gravadas na própria pedra o nome dos seus avós
paternos. Mais abaixo, em letras de metal dourado, o nome de seu tio,
Artur Diaz Torres, e a inscrição já desgastada pelo tempo, ainda do
tempo de seus avós: descanse em paz. Na parte superior do jazigo se
erguia um pedestal que servia de base para os pés de dois anjos
esculpidos num mármore mais claro. O primeiro impunha uma trombeta
e parecia anunciar aos quatro ventos a entrada triunfal daqueles mortos
no reino dos céus. O outro, sentado sobre o pedestal, segurava um
crucifixo com uma mão e com a outra, estendida na direção da terra,
parecia querer auxiliar os espíritos a deixar a cova sombria e irromper a
barreira da vida e da morte. A garoa espessa e contínua fazia com que
as pontas das asas dos anjos gotejassem e filetes de água corrente
descessem pelas faces das estatuetas, como se estas tivessem vida e
derramassem um pranto silencioso sobre a lápide fria. Logo abaixo dos
anjos se lia: “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará, mesmo que eu
ande pelo vale da morte nada temerei, pois o Senhor me conduz pela
mão e me leva a descansar”.

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Cristine observava em silêncio. Somente ela e Dr. Mendes ainda
estavam defronte ao jazigo. Até mesmo o coveiro já havia encerrado
sua função naquela manhã chuvosa. Por um instante a atenção de
Cristine voltou-se para um ponto atrás da sepultura, onde um arbusto
dava a impressão de esconder um vulto nas sombras. Apurando mais a
visão pareceu à Cristine avistar um rosto por entre as folhas molhadas,
um olhar a observá-la atentamente. Percebendo-se também observado
o vulto furtivo esgueirou-se pela vegetação espessa e sumiu do campo
de visão da jovem. Cristine empertigou-se, como que tentando definir a
veracidade daquela cena. Ficou em dúvida se realmente havia alguém
ali ou se tal impressão havia sido fruto de sua imaginação, ainda sob o
efeito dos últimos acontecimentos. Seu devaneio foi interrompido pela
voz do Dr. Mendes.

- Cristine, vamos para casa? – disse o advogado brandamente.

A jovem assentiu com um movimento de cabeça e rumou em silêncio


para o carro que continuava estacionado no mesmo lugar. Henrique
estava a postos no volante e apressou-se a abrir a porta para ela. Antes
que o carro se pusesse em movimento a jovem disse:
- E agora, Dr. Mendes? – questionou Cristine, rompendo o silêncio.
- Agora precisamos dar andamento nas nossas vidas... Temos
providências práticas a tomar.
- Sim, eu sei... Mas como vai ser?
- Cristine, tu ficarás na casa do teu tio, que também é tua, e daqui a
uma semana abriremos o testamento do falecido, conforme sua
vontade.
- Não sei... Acho que prefiro ficar num hotel... – respondeu Cristine.
- De forma alguma. Seu tio ficaria ofendido se a ouvisse cogitar essa
possibilidade.
- Mas eu fico constrangida...
- Constrangida com o que? – quis saber o advogado.
- As pessoas não me conhecem... Fica parecendo que estou aqui por
causa da herança do tio Artur... – argumentou Cristine.
- Mas nós sabemos que não é assim. Além do mais não compete aos
serviçais julgarem a conduta de seus patrões. E agora a senhorita é a
patroa.
- Como assim?
- Bom, a senhorita é a familiar mais próxima de seu tio. Além do James.
- Quem é James? – questionou Cristine.
- É o afilhado do Sr. Artur. Na verdade é filho de uma prima em
segundo grau do seu tio que morreu quando ele era pequeno e o Sr.
Artur acabou assumindo-o na adolescência, quando tomou
conhecimento de sua existência. O pai do rapaz é desconhecido e ele
passou dos cinco aos doze anos num orfanato. Quando seu tio soube
dele fez questão de terminar de criá-lo. É quase um filho.

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- Mas então, por direito, os bens de titio pertencem a ele. Eu não tenho
o que fazer aqui. Porque o senhor me trouxe?
- Porque seu tio assim o desejou.
- Como assim? Ele sabia que iria morrer? – questionou Cristine.
Dr. Mendes pigarreou e continuou:
- Não... Não sabia...
- Mas então?... – continuou Cristine.
- Senhorita, com certeza temos muito ainda o que conversar, mas creio
que este não é o momento. Vamos para casa, a senhorita se instala,
descansa, se alimenta, e posteriormente retomamos esta conversa. –
respondeu em tom categórico, ao qual Cristine não se sentiu em
condições de contra-argumentar.

******************

O veículo seguiu por uma estradinha de chão batido, transformada pela


ação da chuva num lamaçal avermelhado, e não levou mais do que três
minutos para entrar no portão principal da propriedade de Artur Diaz
Torres. Na verdade o local ficava quase que ao lado do cemitério, sendo
que o terreno destinado ao campo-santo havia sido doado pela família
Diaz há mais de um século.

Cruzaram um imenso portal de pedras onde pendia uma placa de


madeira entalhada em baixo relevo com a seguinte inscrição: Rincão
dos Diaz. Quase toda a propriedade era cercada por um muro de pedras
brutas, artesanalmente dispostas sem nenhum tipo de cimento,
utilizando-se apenas o formato natural de cada uma delas, como se
fosse um quebra-cabeça gigante. Formavam um paredão de cerca de
dois metros de altura e circundavam o Rincão dos Diaz conferindo-lhe
um ar medieval.

Seguiram por uma alameda cujo calçamento irregular, também de


pedras arredondadas, fazia trepidar o veículo. A estrada era ladeada por
pinheiros plantados simetricamente em quase toda sua extensão. As
copas das árvores tocavam-se no alto, formando um túnel verde. O
caminho era na verdade um aclive tortuoso, cuja tonalidade cinzenta do
dia conferia uma atmosfera lúgubre.

A construção principal ficava na encosta de um morro e o carro


empreendeu uma subida íngreme até a casa, chamada pelos serviçais e
pela população da cidade de “castelo”. Tão logo Cristine desembarcou
entendeu o porquê daquela alcunha. A construção parecia realmente
um castelo. Havia sido projetada pelo bisavô de Cristine, porém quem
de fato a edificara havia sido o pai de seu tio Artur.

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Cristine começou a se dar conta que descendia de uma família de
excêntricos e chegou a achar graça disto. Recordou-se de uma fantasia
sua, de infância, na qual sonhava ser uma princesa e morar num
castelo encantado, cujo portão principal era vigiado por um temível
dragão de duas cabeças. Imaginava que um valente príncipe montado
num cavalo branco mataria o dragão e a pediria em casamento,
transformando o castelo imaginário num lar próspero e feliz. Porém
sempre despertava e se deprimia ao perceber a realidade das paredes
esbranquiçadas dos vários colégios internos nos quais passou. Muito
mais tarde, após incontáveis sessões de análise, conseguiu entender a
simbologia de seu dragão imaginário, seu castelo encantado e de seu
príncipe, que na verdade custou a aceitar que seria uma princesa, uma
bela e sedutora princesa num corcel negro.

Cristine foi trazida de volta à realidade quando o carro estancou em


frente à porta principal da morada. O castelo era de fato gigantesco,
deveria ter inúmeras dependências em seu interior suntuoso. Todo
construído com pedras regulares de uma coloração cinza-rosada, tinha
duas torres na parte da frente. As aberturas eram em forma de arco e
lembravam um pouco as antigas igrejas em estilo renascentista. Vistas
de fora as venezianas de madeira maciça escondiam-se atrás das
vidraças quadriculadas alojadas em armações de madeira escura. A
porta principal abria-se em duas partes e tinha cerca de três metros de
altura por quase dois e meio de largura. Era também de espessa
madeira maciça, lisa, sem nenhum tipo de trabalho na parte externa,
somente com uma aldrava de metal em forma de carranca, de cujo
nariz pendia uma pesada argola de ferro que servia para bater à porta.

Naquele momento a chuva havia estiado um pouco e somente uma


garoa fina insistia em umedecer e acinzentar a paisagem.

Como que adivinhando a chegada deles a porta abriu-se vagarosamente


emitindo um rangido de metal ressecado. Cristine arrepiou-se com
aquele barulho, porém não saberia dizer o porquê.

Do vão da porta surgiu a figura austera de Morris, em sua habitual


postura ereta. Dr. Mendes conduziu Cristine para a entrada e
apresentou-a ao mordomo.

- Morris, esta é a senhorita Cristine, a qual aguardávamos.


- Encantado, senhorita – disse Morris seriamente – E meus sinceros
pêsames pelo senhor seu tio.
- Obrigada.
Morris deu o lado aos dois para que entrassem na casa. Ainda no
saguão, aos pés da escadaria suntuosa Cristine foi apresentada aos
demais serviçais da casa. Anemary Frank, a governanta inglesa, de 57
anos, porte elegante e vestimenta engomada cumprimentou-a com uma

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mesura e um português impecável, ainda que carregado de um sotaque
europeu:
- Mademoiselle. Faço minhas as palavras de Morris. E apesar das
circunstâncias trágicas lhe desejo boas-vindas.
- Obrigada – respondeu Cristine.
- Este é James – falou o advogado dirigindo-se ao jovem que descia as
escadas com pressa – o afilhado do Sr. Artur do qual já lhe falei.

James dirigiu-se à Cristine abraçando-a e tentando controlar as


lágrimas:
- Muito prazer, prima. Embora eu quisesse imensamente tê-la
conhecido numa outra circunstância. – disse enxugando uma lágrima
que lhe escorria nas faces.
- Muito prazer, James. E tenha a certeza de que eu também.

Cristine observou que James era um tipo bastante comum, muito


magro, estatura mediana, cabelos pretos e cortados bem curtos, nariz
adunco, óculos de lentes grossas e aro de acrílico escuro, rosto bastante
marcado por cicatrizes, provavelmente de acne ou catapora.
Aparentava cerca de trinta anos, sendo que mais tarde Cristine
descobriu ter trinta e quatro anos. Parecia estar arrasado com a morte
do tio, “também pudera, era um pai para ele”, pensou Cristine.

Assim que James deu um passo para trás o advogado continuou.

- Ainda temos a Regina e o Israel – continuou Dr. Mendes – que são a


cozinheira e o nosso jardineiro, além de Adelaide, a arrumadeira e
copeira, e Thomaz, nosso encarregado de serviços gerais. Adelaide está
de folga hoje e Thomaz deve estar em seus aposentos. Regina deve ter
ido providenciar algo para comermos e Israel com certeza recolheu-se
em sua casa, nos fundos desta propriedade. Deve estar muito abalado
com o falecimento do Sr. Artur, afinal, mais do que um empregado
Israel era um amigo do seu tio. Eles se criaram praticamente juntos. O
pai de Israel trabalhava com o pai do Sr. Artur nesta mesma
propriedade e ambos nasceram aqui.

- Imagino como ele deve estar se sentindo... – ponderou Cristine


educadamente.
- Bom, ainda vive nesta propriedade o filho de Regina e Israel, o jovem
Ariel, um adolescente que estuda na cidade e eventualmente auxilia o
pai nas atividades deste. Também está aqui no momento a filha mais
velha deles, Angélica, que mora na capital, mas está passando uns dias
de férias com os pais. Eu tomei a liberdade de convidá-la para vir aqui
hoje, para que a conheça. É uma moça encantadora e pedi que lhe
fizesse companhia por estes dias. Sei que deves estar te sentindo
afligida por estar aqui, considerando-se esta situação toda, e acredito
que Angélica possa ajudá-la a superar este momento desagradável. Ela

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é jovem como a senhorita, com certeza lhe será uma companhia
agradável, com assuntos condizentes com a sua realidade e juventude.
- Dr. Mendes, por favor, não fale como se fosse um ancião... – riu-se
discretamente Cristine.
- Por certo ainda não o sou... Mas quase. – emendou brincando – Mas
afirmo-lhe que Angélica lhe será uma companhia melhor do que os
demais. Ela, gentilmente, se dispôs a lhe mostrar a propriedade e ficar
à sua disposição por estes dias.
- Eu também posso fazer companhia à Cristine, isso me daria muito
prazer e me ajudaria a superar a dor que estou sentindo. – interveio
James.
- Obrigada, James. – disse Cristine.
- Muito gentil de sua parte James – disse Dr. Mendes - Mas com certeza
as moças devem querer conversar sobre assuntos tipicamente
femininos, o que foge de sua alçada, meu caro.
- Mas mesmo assim, Cristine, pode contar comigo para o que precisar.
– reafirmou James.
- Novamente agradeço. – disse Cristine - Só não quero incomodar, nem
impor minha presença para ninguém.
- Não é incômodo algum, - continuou James – É um prazer.
- Tudo bem, então. – concordou tímida.

Com certeza Dr. Mendes e James estavam bem intencionados e


desejavam que sua estadia naquele castelo fosse o mais agradável
possível, embora em seu íntimo preferisse ficar sozinha mesmo. Mas
não quis ser desagradável com o advogado, nem com James,
mostrando-se pouco sociável ou ermitã. Há seu tempo daria um jeito de
dispensar educadamente o primo James e a amiga arranjada para ela,
ou não... Quem sabe.

- Senhorita, por favor, queira me acompanhar – disse a governanta –


lhe mostrarei os seus aposentos. A senhorita poderá tomar um banho e
tão logo o almoço esteja pronto eu lhe chamo.

James fez menção de pegar a pequena mala de Cristine que estava no


chão ao lado do Dr. Mendes, porém Morris antecipou-se a ele, dizendo:
- Pode deixar senhor, eu levo.

Cristine foi conduzida pela escadaria que levava ao segundo pavimento


do prédio. Tudo ali lhe fazia lembrar um castelo medieval, a decoração
dos ambientes, as luminárias dos corredores, as portas de madeira
maciça e o pé direito altíssimo da construção. O ambiente todo era
sombrio, com poucas luzes artificiais acesas. As paredes de pedra, com
uma atmosfera mais úmida e sombria devido ao tempo nublado,
chegavam a ter um ar fantasmagórico. Cristine percebeu que o longo
corredor abrigava inúmeras portas cerradas. Uma delas por certo

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deveria ser o quarto de seu tio, agora relegado a ser provavelmente um
cômodo abandonado.

O amplo corredor fazia uma curva à esquerda e outros tantos aposentos


com aberturas lacradas por escurecidas madeiras de lei pareciam
querer intimidar os transeuntes.

Cristine não pôde deixar de notar a figura que se movimentava à sua


frente. Anemary Frank era uma mulher alta, com os cabelos grisalhos
presos num coque no alto da cabeça, onde nenhum fio de cabelo
aparentava estar fora do lugar. Seus passos eram firmes e curtos,
ecoando ritmicamente pelos corredores devido ao salto pontiagudo do
calçado. A vestimenta negra demonstrava o luto pela perda do patrão,
embora parecesse à Cristine que aquela mulher jamais usasse outra cor
de roupas, que não fossem as escuras.

Anemary estancou defronte a uma das portas descerrando-a com


facilidade. A porta deslizou para a direita suavemente, sem emitir o
menor rangido, dando a conhecer um espaçoso quarto que em nada
condizia com a austeridade dos corredores. Apesar das paredes de
pedra o quarto tinha um ar jovial. Móveis de cerejeira, cuidadosamente
polidos e sem o menor resquício de qualquer partícula de pó, estavam
dispostos harmoniosamente. A cama imensa, com um colchão de molas
confortável, tinha uma armação de madeira clara que sustentava um
vaporoso mosquiteiro de tule branco. Cristine parecia estar defronte à
cama de uma rainha francesa. O edredom de seda alaranjado exibia a
borda de um lençol imaculadamente branco, com um bordado à mão de
flores e borboletas em um fio dourado. Uma das paredes era coberta de
fora a fora com uma cortina de seda, também alaranjada, que ia do teto
ao chão e parecia quebrar a austeridade das paredes de pedra. Um
móvel no canto do aposento sustentava um aparelho de TV de 29
polegadas, um decodificador de antena parabólica e um DVD, além de
um aparelho de som. Uma confortável poltrona estofada, estilo Luís XV,
estava estrategicamente posicionada de frente para a televisão. O
roupeiro era amplo e estava totalmente vazio, permitindo à Cristine
acondicionar seus pertences com muita comodidade. Em ambos os
lados da cama havia criados-mudos com uma luminária em cada um. O
quarto tinha o necessário para que ela se instalasse confortavelmente.
O que mais havia chamado a atenção de Cristine naquele lugar era a
temperatura agradavelmente aquecida. Percebeu que um sistema de
calefação mantinha a temperatura do quarto entre 20° e 24°C, uma
maravilha se comparada à temperatura do lado de fora do castelo e dos
corredores deste.

À esquerda da suíte havia uma porta que levava ao quarto de banho e


Cristine observou que na parede oposta à cama havia outra porta,
provavelmente levando para uma sacada.

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Anemary a deixou sozinha, pedindo licença para se retirar.

Cristine desfez rapidamente sua mala e entrou no banheiro, disposta a


tomar uma ducha reconfortante. O que a admirou naquele toalete foi o
fato de ter uma grande banheira esmaltada, daquelas antigas, porém
adaptada para hidromassagem e com um cardal que a mantinha
aquecida ao gosto do usuário. Não se fez de rogada, afinal o que mais
precisava naquele momento era relaxar um pouco. Ligou a água e
esperou que a banheira ficasse quase transbordando para mergulhar
naquela água quente e borbulhante. Relaxou a ponto de quase
adormecer dentro d’água. Fechou os olhos e desejou estar de volta ao
seu apartamento no Leblon e ao seu escritório no centro da cidade
maravilhosa. Depois de cerca de meia hora de molho, secou-se e
vestiu-se com uma de calça de lã escura. Colocou uma segunda-pele
por baixo de uma camiseta de algodão e arrematou o conjunto com um
suéter de lã verde-musgo. As meias de lã que comprara por insistência
de sua sócia, Cynthia, agora estavam lhe servindo em muito. Ainda
pegou um agasalho estofadinho que usara uma única vez em uma
viagem a Buenos Aires. Sentia-se agora preparada para enfrentar o
rigor do frio.

Quando já eram quase duas horas da tarde Anemary bateu à porta


avisando que o almoço estava servido. Aguardou Cristine e a conduziu
até a sala das refeições.

A imensa mesa estava posta e James já estava instalado à direita da


cabeceira, cuja cadeira de espaldar alto se encontrava vazia. Dr.
Mendes aguardava Cristine aos pés da escadaria e acompanhou-a até a
mesa. Morris indicou-lhe um lugar puxando a cadeira para que se
sentasse. Logo em seguida Dr. Mendes acomodou-se a seu lado. O
clima era de consternação frente ao lugar vazio na cabeceira da mesa.
Em silêncio Morris serviu o almoço. James mal tocou na comida, assim
como ela e Dr. Mendes. Cristine continuava com uma sensação de
angústia, que lhe impedia de conseguir comer. Forçou algumas
garfadas, ciente de que precisava alimentar-se para não piorar a
situação.

Logo após o almoço Dr. Mendes sugeriu à Cristine que fosse repousar
um pouco.

- Senhorita, seria bom se descansasse por um tempo.


- Acho que realmente estou precisando me recostar um pouco. –
respondeu Cristine.
- Eu preciso resolver algumas questões no escritório agora à tarde.
- Mas o senhor vai voltar depois e ficar aqui hoje, não vai? – questionou
Cristine deixando transparecer um tom de súplica na voz – É que

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gostaria de conversar um pouco mais sobre meu tio... – continuou
tentando justificar-se.

Na verdade Cristine sentia-se bem ao lado do Dr. Mendes, embora o


conhecesse somente há algumas horas. Ele lhe passava um sentimento
genuíno de confiança e segurança.

- Venho sim, pode ficar tranquila. – anuiu o advogado, para o alívio da


jovem.

Cristine agradeceu e dirigiu-se ao seu quarto. Tirou as botas de cano


curto e deitou-se na cama, sobre o edredom. Adormeceu quase que
instantaneamente. Teve um sono agitado, povoado por imagens difusas
e acinzentadas. Um trovão mais alto, que ecoou por entre as paredes
de pedra, despertou-a de sobressalto. Sentou-se na cama custando um
pouco a se conectar com a realidade e entender onde estava.
Gradualmente os acontecimentos das últimas horas voltaram à sua
memória. Suspirou profundamente.

A chuva continuava incessante e as espessas gotas eram jogadas


violentamente contra a vidraça. A veneziana estava aberta e Cristine foi
até a janela. A única coisa que conseguia visualizar eram os filetes de
água que escorriam externamente de encontro aos vidros, formando
arabescos tremulantes e úmidos. Aproximou o rosto da vidraça e com a
palma da mão limpou o vidro embaçado, livrando-o da camada interna
de gotas microscópicas que turvavam a visão, na tentativa de observar
a paisagem da rua. Conseguiu distinguir somente uma neblina densa
que limitava a visibilidade a alguns poucos metros da casa. Um caminho
pavimentado com pedras irregulares circundava o castelo e bifurcava-se
de quando em quando estendendo as pequenas vielas na direção dos
arredores da propriedade. Cristine não conseguia ver para onde aqueles
caminhos conduziam.

Os trovões ecoavam estridentes e faziam com que a jovem se


encolhesse a cada som mais alto, cuja vibração fazia trepidar os vidros
da janela. Instintivamente Cristine apertava os braços cruzados à frente
do corpo. Resolveu descer e procurar alguma viva alma naquele imenso
e lúgubre castelo.

Calçou novamente suas botas que possuíam um revestimento de lã de


ovelhas e cruzou os corredores sombrios rumo à escadaria principal.
Desceu os degraus ouvindo o ruído dos trovões e da chuva torrencial
que abafavam o som dos próprios passos. Percebeu que o hall de
entrada assim como a sala estavam vazios. Uma sensação de
desconforto a invadiu.

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Na tentativa de localizar alguém rumou por uma porta que dava para os
fundos da casa. Um corredor mais curto levava à cozinha, a qual
Cristine localizou pelo odor agradável de café recém-passado. Ao cruzar
o portal de acesso àquela peça deparou-se com uma cozinha ampla e
clara, com as luzes fluorescentes ligadas e um bule fumegante
repousando num canto de um fogão à lenha. A luminosidade e a
energia daquele local destoavam do resto do castelo. De costas para a
porta, remexendo uma panela de ferro, Cristine viu uma figura de baixa
estatura e cabelos grisalhos presos debaixo de uma touca de tecido
xadrez esverdeado. Como que percebendo sua entrada a mulher mais
velha virou-se e sorriu-lhe amorosamente:
- Boa tarde. A senhorita deve ser a sobrinha do Sr. Artur... Eu sou
Regina, a cozinheira.
- Boa tarde, Regina. E muito prazer. – respondeu Cristine.
- Igualmente. E queira aceitar meus sentimentos pela perda de seu tio.
- Obrigada.
- Com certeza foi uma grande perda... – disse a cozinheira – Meu
marido está inconsolável. Eles eram mais que patrão e empregado,
eram amigos...
- Eu lamento.

Regina sorriu tristemente, mas logo tratou de alegrar sua expressão e


perguntar amistosamente:
- Está com fome? Quer alguma coisa? Morris me falou que a senhorita
mal tocou na comida.

Cristine percebeu-se com um pouco de fome.

- Não quero dar trabalho – respondeu a jovem.


- Não é trabalho algum, senhorita.
- É... Regina... Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro.
- Não me chame de senhorita. Acho tão formal... Prefiro que me chame
pelo nome, Cristine.
- Pois não, senhori... Digo, Cristine.

A cozinheira indicou-lhe uma cadeira junto à mesa de tampo de


madeira envernizada.

- Senta aqui, então. Vou te servir um lanchinho. – disse sorridente.


Enfim Cristine sentia-se próxima a alguém naquele lugar sombrio. Havia
simpatizado com Regina assim que a viu. E esta também sentira a
mesma coisa a seu respeito. A cozinheira tinha uma energia boa, um
astral luminoso apesar das circunstâncias.

Antes que Regina terminasse de servir Cristine a porta que dava acesso
à rua abriu-se e uma figura esguia praticamente saltou para dentro,

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espanando-se a fim de tirar a água de cima de sua capa plástica.
Regina disse:
- Minha filha! Tu estas igual a um pinto molhado! Tira essa capa e deixa
ali no canto.
- Oi mãe! – disse dirigindo-se à Regina, sapecando-lhe um beijo nas
faces, e logo em seguida à Cristine – Olá!
- Olá. – respondeu Cristine.
- Esta é minha filha, Angélica. – apresentou Regina – Ela está passando
as férias aqui conosco.
- Dr. Mendes já havia me falado nela. – disse Cristine educadamente.
- Muito prazer, Cristine. – disse Angélica estendendo-lhe a mão num
cumprimento formal.
- Igualmente.

Angélica tinha um aperto de mão firme e Cristine sentiu o olhar desta


fixo no seu. Pareceu-lhe momentaneamente ser aquele um
cumprimento por segundos mais longo do que necessitaria ter sido.
Manteve o olhar fixo em Angélica e esta disse soltando sua mão:
- Eu lamento pelo seu tio...
- Obrigada – respondeu Cristine.
- Eu gostava muito dele, muito mesmo... – disse Angélica deixando
transparecer consternação na voz.
- Eu imagino...
- Dr. Mendes me pediu que te fizesse companhia e cá estou. – disse
Angélica sorrindo afetivamente para Cristine.
- Olha... Eu não quero dar trabalho...
- Tudo bem... Eu to de férias mesmo. E não será trabalho algum te
fazer companhia – disse Angélica novamente olhando Cristine
diretamente nos olhos.

Sem querer Cristine enrubesceu e desviou o olhar.

Angélica sentou-se à mesa, de frente para Cristine e serviu-se de uma


xícara de café quente. Precisava tomar algo que lhe esquentasse por
dentro. Envolveu a caneca fumegante com as mãos no intuito de
aquecê-las. Estava com os nós dos dedos descoloridos pela pouca
circulação sanguínea devido ao frio.

Discretamente Cristine passou a observá-la. Deu-se conta de haver sido


ela quem lhe cumprimentara discretamente logo após o enterro de seu
tio naquela manhã. Continuou seu exame minucioso. Angélica era uma
mulher bastante alta, cujos cabelos escuros, cortados em camadas
caíam-lhe displicentemente sobre os ombros escapando pelas bordas de
sua touca de lã negra. Os olhos, de um azul incrivelmente vivo,
contrastavam com a tonalidade escura dos cílios longos. A boca com
dentes imaculadamente brancos era afilada e um sorriso de revés fazia
com que aparecessem os esboços do que seriam pequenas covinhas nas

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faces. O rosto, apesar de anguloso, ostentava feições bastante
delicadas. A pele de uma tonalidade moreno-clara era aveludada e
aparentava maciez ao toque.

Por instantes Cristine teve o ímpeto de tocar naquelas mãos que


seguravam avidamente a caneca de café quente. Como que temendo
que lessem seus pensamentos tratou de desviá-los para outro enfoque.

- Chove sempre assim nesta época do ano? – perguntou Cristine.


- Geralmente não tanto. Nosso inverno é sempre muito frio, já chegou
inclusive a nevar há alguns anos atrás, mas fazia tempo que não chovia
tanto! – respondeu Regina.
- E o frio também está se superando este ano, não é mesmo mãe? –
emendou Angélica.
- Ô se está! – disse Regina – Mas neve não caiu.
- E espero que não caia! – retrucou Angélica – Quero mais é que o
verão chegue logo!
- Eu confesso que estou bastante preocupada. Acho que não
sobreviverei uma semana por aqui. – disse Cristine em tom de
desalento.
- Sobrevive sim. A gente se acostuma. – disse Angélica.
- Espero... – retrucou Cristine.
- É uma lástima que tenhas vindo para cá numa situação como esta... –
falou Angélica – Afinal esta é uma bela cidadezinha para se descansar.
- Pois é... – anuiu Cristine.
- Mas caso a chuva dê uma trégua podemos andar por aí amanhã. –
continuou Angélica – Te mostro a propriedade e os arredores do
castelo.

Cristine riu e comentou:


- É muito engraçada a naturalidade com que vocês se referem a esta
casa como “castelo”...
- Mas é isso que ela é. – riu-se Angélica – Ou tu tens um nome mais
apropriado?
- Acho que não. – respondeu Cristine pensativa.
- Esquisitices do padrinho... – disse Angélica.

Regina fuzilou-a com o olhar e tentou remendar:


- Na verdade o Sr. Artur era um excêntrico...
- Esquisito, mãe! Mas eu o adorava e tu sabes bem o quanto. E não
quero precisar de meias palavras para falar dele só porque ele morreu...
- Por favor, Angélica... – disse a mulher mais velha.

Cristine tentou amenizar o clima de desconforto e disse:


- Ele parecia ser de fato bastante... Diferente.
- Na melhor das hipóteses, Cristine. – respondeu Angélica – Mas era
uma pessoa pela qual eu nutria um especial afeto. E a minha mãe sabe

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disso. E era recíproco. Eu era afilhada dele, de batismo, e sempre
tivemos muito em comum. Mas eu o respeitava nas esquisitices e ele
me respeitava no meu jeito de ser.
- Bom, vocês querem que eu faça uns bolinhos de chuva? – perguntou
Regina tentando desviar o rumo da conversa.
- Acho ótima idéia! – respondeu Cristine.
- Eu idem – disse Angélica.
- Então vou por mãos à obra. Angélica, pega a farinha pra mim, na
prateleira de cima. E tu, Cristine, me alcança dois ovos ali do balcão. –
disse Regina tratando de pegar uma bacia ovalada para fazer a massa.

Cristine pegou os ovos e ao se virar pôde constatar as curvas


arredondadas do corpo de Angélica que se esticava para alcançar na
prateleira superior. Por certo Regina jamais alcançaria ali sem o auxílio
de um banquinho, assim como ela própria. Mas para Angélica era uma
tarefa bastante fácil. A morena tinha o corpo muito bem definido, pelo
que podia perceber por sob a calça jeans apertada e a blusa de lã
colada ao corpo. Calçava botas de couro de cano alto e tonalidade
marrom escura. Movia-se com a elegância de uma leoa. Novamente
Cristine tratou de desviar os pensamentos, dirigindo sua atenção aos
ovos que estendia cuidadosamente para Regina.

A mulher mais velha preparou a massa enquanto colocava uma


pequena panela de ferro com óleo para aquecer. Cristine notou que
Angélica em quase nada se parecia com sua mãe. Excetuando-se os
olhos que tinham a mesma tonalidade e o sorriso que evidenciava
covinhas na face, em mais nada se pareciam. Isso, porém, sem levar
em conta a simpatia. Tanto Angélica quanto Regina pareciam ser
pessoas de fácil convívio, espontâneas e encantadoras.

Antes de Regina servir os bolinhos, enquanto ainda os passava numa


mistura de açúcar com canela, a porta dos fundos novamente se abriu
dando passagem para um senhor de meia idade, ao qual Cristine não
precisaria ser apresentada, visto logo saber de quem se tratava: Israel,
o pai de Angélica. A filha era a cópia xérox numa versão feminina do
pai. O mesmo porte avantajado, o mesmo tom de pele e de cabelos, as
mesmas feições, enfim, um caso que dispensava qualquer teste
laboratorial de paternidade, bastava apenas uma olhadela e pronto. O
homem caminhava lentamente e cabisbaixo. Ostentava uma expressão
de desconsolo e tinha os olhos avermelhados como se houvesse
chorado ainda há pouco. Ao ver Cristine dirigiu-se para ela estendendo-
lhe a mão.

- Pai, esta é Cristine, a sobrinha do padrinho... – disse Angélica.

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O velho senhor nada conseguiu dizer. Apenas apertou a mão de Cristine
para logo em seguida secar algumas lágrimas que lhe brotaram dos
olhos.

- Desculpe, senhorita... – disse Israel – Mas não consigo me


conformar...
- Eu imagino... Soube que vocês eram muito amigos... – respondeu
Cristine.
- Pois é... Eu perdi um irmão.
- Eu lamento. – disse Cristine.
- Vem aqui meu velho – disse Regina carinhosamente – Vou te servir
um café.
- Eu não quero. – respondeu o velho.
- Pai... O senhor tem que comer alguma coisa... Por favor... – pediu
Angélica.
- Me dá um cafezinho preto então... – anuiu Israel.
- Toma aqui, come um bolinho também – pediu Regina – Só um...

O jardineiro pegou um dos bolinhos a contragosto e pôs-se a comê-lo


vagarosamente, com o olhar perdido na direção da parede.

- O velho Israel aqui é um exímio conhecedor de botânica, sabia


Cristine? – disse Angélica, referindo-se às habilidades de seu pai.
- Não exagera Angélica... – respondeu o velho tentando esboçar um
sorriso.
- Mas é verdade! – continuou a morena – Se quiseres saber qualquer
coisa sobre qualquer planta desta região é só perguntar pra ele.
- Essa menina aumenta as coisas... – disse Israel.
- Não aumento nada. O senhor é que é modesto.
- É verdade – emendou Regina – o Israel é conhecedor de todas as
plantas daqui das redondezas. E o jardim da propriedade é lindo!
Quando parar de chover terás a oportunidade de vê-lo.
- Com certeza. – respondeu Cristine.

Israel sorriu tristemente e depois de sorver sua taça de café pediu


licença e saiu na direção dos fundos, pegando uma sacola com algumas
ferramentas de jardim que estava atrás da porta e dizendo que
retornaria para casa.

Tão logo o velho saiu Regina suspirou tristemente.


- Eu não posso ver o Israel assim... Me corta o coração. Nem quando
ele perdeu o pai ficou tão abalado.
- Mas mãe, o vovô estava doente há muito tempo... E o papai sabia que
ele morreria dentro em breve. Só que no caso do padrinho foi
diferente...
- Eu sei, minha filha... Mas me dói...

26
- Mãe, ele precisa de tempo... Só isso. A gente supera tudo na vida. Só
precisa dar tempo ao tempo.

Novamente Regina suspirou. Cristine ficou observando como Angélica


era ponderada. Aparentava ser uma pessoa muito carinhosa, porém
prática e decidida frente aos contratempos da vida. Deixava
transparecer firmeza e segurança, exatamente os sentimentos que
Cristine precisava para se manter naquele momento. Decididamente a
idéia do Dr. Mendes em pedir que a morena lhe fizesse companhia
havia sido providencial. Percebeu-se com vontade de ficar perto de
Angélica, até mesmo porque estava gostando muito de observar os
trejeitos daquela bela mulher.

Neste momento James entrou nas dependências da cozinha e


cumprimentou as três mulheres. Cristine percebeu o tom de frieza com
o qual se dirigiu à Angélica, para logo em seguida sorrir amavelmente
para ela própria.

- Como está, prima? – perguntou James – Conseguiu descansar um


pouco?
- Consegui sim.
- Que bom. Mas... – continuou dirigindo-se formalmente à Regina -
...porque não foi servido o lanche da senhorita Cristine na sala de
jantar? A cozinha não me parece ser o lugar mais adequado para
recepcionar um hóspede da casa.

Regina não respondeu. Limitou-se a baixar os olhos. Angélica saltou em


defesa da mãe:
- Pelo que me conste ela não é hóspede. É a dona desta casa! Ou estou
enganada? Logo, ela come aonde quiser. – disse a morena
desafiadoramente.

James ficou rubro, deixando transparecer irritação. Cristine tentou


apaziguar os ânimos:
- James, fui eu que pedi para ficar aqui. Eu não me importo, muito pelo
contrário. Aqui está quentinho por causa do fogão... O hall e a sala de
jantar estão muito frios.
- É a maldita calefação! – respondeu James – Precisamos consertá-la o
quanto antes. O padrinho estava providenciando isso...

Fez-se um silêncio. James continuou:


- Angélica, se quiser voltar para casa ficarei com Cristine. Obrigada por
ter vindo.
- Mas eu não pretendo ir. Vim para fazer companhia pra ela e vou fazer.
A não ser que ela me peça para ir. – respondeu Angélica em tom baixo
e categórico.

27
Novamente James enrubesceu de fúria. Cristine interveio:
- Olha só, eu agradeço a atenção dos dois. É muito gentil da parte de
vocês, muito obrigada mesmo. Mas não quero causar nenhum
constrangimento, por favor.
Conscientizando-se da situação a que Cristine estava sendo exposta
Angélica abrandou o tom de voz:
- Desculpe... Eu não quis constrangê-la – disse levantando-se da mesa.
- Nem eu. – emendou James – Desculpe-me.
- Tudo bem... – respondeu Cristine.

Angélica continuou:
- Bem, eu vou fazer o seguinte: vou até a biblioteca e deixo vocês à
vontade para conversarem. Cristine, se precisar de mim estou na
segunda porta à esquerda, depois da escadaria. Com licença.
- Não. – disse Cristine instintivamente, ao que Angélica estancou.

Fez-se um instante de constrangimento entre eles. Regina deixou o


avental no encosto de uma das cadeiras e disse que iria até a despensa,
saindo do recinto. Angélica encarou Cristine nos olhos. James disse:
- Bem, neste caso, sou eu que vou deixá-las à vontade. Desculpe
novamente Cristine, eu só quis ajudar.
- Eu sei James, e agradeço. Mas preciso ver umas questões com
Angélica... – desculpou-se.
- Tudo bem... Se precisar de qualquer coisa estou no meu quarto. Com
licença. – disse James e saiu da cozinha.

Depois que o rapaz saiu Angélica, colocando as mãos na cintura, disse:


- Putz, desculpa, foi mal. Mas é que esse cara me dá nos nervos!
- Tudo bem, só que comigo ele foi muito receptivo e amável...
- Mas não te ilude. Isso aí é um adulador barato! – desabafou Angélica,
para logo em seguida abrandar a voz – Olha, eu sei que não deves ter
entendido nada, mas eu te explico, ok?
- Por favor. – anuiu Cristine.
- É que desde que James veio para cá nós sempre tivemos uma relação
digamos que... Conflituosa. Ele sempre teve ciúmes do padrinho, queria
atenção exclusiva. Tudo bem, eu entendo que ele tem uma história de
vida e de infância muito triste, mas não justifica as atitudes dele... Pelo
menos hoje. O padrinho sempre foi muito ligado a mim e James passou
a competir comigo cada centímetro de espaço afetivo junto ao tio. E aí
se originaram todos os nossos conflitos. Coisas de infância...
- Entendo. – disse Cristine.
- Mas... – continuou Angélica em tom maroto - qual é a questão que tu
precisas ver comigo mesmo?

Cristine novamente ruborizou-se, divertindo Angélica com seu


desconcerto.

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- Beeem... Ééé... Livros. Você falou em biblioteca e eu fiquei curiosa.
Tenho certa predileção por livros. É isso.
- Ah, bom. – respondeu Angélica mantendo firme o olhar em Cristine.
- Além do quê eu não pretendia ficar no meio do arranca-rabo de
vocês...

Angélica foi obrigada a sorrir lembrando-se da saia justa de Cristine.


Novamente tratou de desculpar-se:
- Me desculpa de novo, ok? Não vai mais acontecer.
- Tudo bem. – respondeu Cristine.
- Bom, mas então quem sabe a gente vai até a biblioteca. – sugeriu
Angélica.
- Ótima idéia. – concordou Cristine.

****************

Angélica conduziu Cristine pela escadaria e pelo álgido corredor de


acesso ao segundo piso do castelo e parou defronte a uma das
imponentes portas de madeira, escura e maciça, que ocultava um
universo até então desconhecido para Cristine. Angélica empurrou a
porta e o que se descortinou foi um ambiente escuro onde reinava o
mais absoluto silêncio e em cujo ar pairava um odor morno de papéis
envelhecidos e de bolor. Cristine estancou na porta, temendo adentrar
na escuridão do aposento e esbarrar em algum móvel ou objeto.
Angélica moveu-se tranquilamente na escuridão, familiarizada com o
ambiente. Dirigiu-se para a parede à esquerda da porta de acesso e
levou sua mão diretamente ao interruptor acendendo as fracas luzes de
um grande candelabro que pendia no centro do teto. Assim que o
espaço foi iluminado, ainda que parcamente, Cristine pôde ver a
dimensão daquela biblioteca. Tratava-se de um salão imenso, cuja
extensão deveria exceder cento e sessenta metros quadrados. Como as
demais peças daquele castelo o pé direito era bastante alto e a parede
lateral direita ostentava prateleiras de livros que iam do chão ao teto.
Da mesma forma havia mais três fileiras de prateleiras de livros que
cruzavam o recinto longitudinalmente, porém deveriam medir, no
máximo, dois metros de altura cada uma. Em toda a extensão da
parede do lado esquerdo da biblioteca havia armários envidraçados
ostentando a coleção de moedas e de armas pertencentes ao excêntrico
Artur. Mais próximo à porta havia uma infinidade de moedas antigas
dispostas metodicamente e catalogadas conforme o ano de cunhagem.
Ao longo da prateleira envidraçada encontravam-se vários tipos de
armas, desde rifles antigos, espingardas de caça, revólveres, pistolas,
até arcos e flechas, punhais, espadas e adagas. Todas as peças
pareciam em ótimo estado de conservação, com os metais reluzindo à
claridade do candelabro. Bem no final do imenso salão havia uma janela

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cujos vidros encontravam-se escondidos por um espesso acortinado de
veludo negro. Cristine teve a impressão de que aquela janela jamais
devesse ter sido aberta, pois tudo no ambiente cheirava a
confinamento. Defronte à cascata ondulada do tecido cor de ébano
havia uma mesa de tampo de madeira, muito comprida, com os pés
torneados, ladeada por quatro cadeiras de espaldar alto, e estofado
aveludado, do mesmo tecido das cortinas. Angélica continuou sua
caminhada pelo aposento e passou a acionar interruptores dispostos ao
longo das prateleiras e que acendiam lâmpadas fluorescentes dispostas
simetricamente entre uma estante e outra.

Como que por encanto a atmosfera sombria foi substituída por uma
luminosidade que chegava a ofuscar a visão ambientada à penumbra
inicial. Desta feita Cristine passou a se deslocar pelo salão e a ter uma
imagem mais fiel do ambiente que a cercava.

Foi até o fundo, sendo acompanhada em silêncio por Angélica. Estancou


ao lado da enorme mesa e reparou nas esculturas que a rodeavam. Em
ambos os lados da mesa, parecendo incrustadas em pedestais de
mármore, estátuas de bronze em tamanho natural de caçadores
exibindo a caça abatida pareciam ter vida própria. Um deles segurava
uma lebre pelas orelhas e Cristine sentiu repulsa pela imagem
pensando em como alguém poderia ter coragem de matar um
animalzinho tão indefeso. Na outra o caçador repousava seu pé sobre
uma onça prostrada, enquanto que com as mãos impunha o rifle que
vitimara o animal. Da mesma forma Cristine sentiu-se angustiada frente
àquela representação, mesmo sabedora de tratar-se apenas de uma
obra de arte. Como que adivinhando os pensamentos de Cristine,
Angélica quebrou o silêncio:
- Eu também não gosto delas. – disse absorta.
- Pois é... – respondeu Cristine - ...por mais que argumentem eu não
consigo ver a caça como esporte. Para mim é só uma matança cruel.
- Eu também acho.

Fez-se um silêncio até que Cristine perguntou:


- O tio Artur caçava?

Angélica sorriu:
- Ironicamente, não. O padrinho era um... Pode-se dizer pacifista. Era
incapaz de ferir alguém, ou algum animal.
- Mas então... Porque as estátuas? E a coleção de armas? Eu não
entendo... – disse Cristine.
- Isso são reminiscências do pai dele e do avô, objetos de família que
ele resolveu manter. Eu cresci ouvindo o padrinho falar: “Queres
conhecer verdadeiramente um homem? Dê-lhe o poder... e uma arma.
O sábio a guardará em lugar seguro, pois sua fortaleza vem de dentro,
enquanto que o covarde a ostentará aonde for, para que todos vejam o

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quanto é poderoso”. E lembro quando ele me pegava no colo e
apontava para estas estátuas e dizia: “Estás vendo aquele ali? Tira-lhe
o rifle que a onça o devora. E aquele outro? Desarma-o que é capaz de
disparar de medo da lebre. O sábio respeita a onça em seu território, e
não permite que ela se aproxime a ponto de expor ambos a um risco
desnecessário, e aprende com a lebre a agilidade de fugir da onça”. Por
muitos anos eu não entendi a mensagem. Hoje entendo.

Cristine ficou encantada em conhecer aquele lado de seu tio. E começou


a admirá-lo naquele momento. Continuou a observar o seu redor e ver
a imensidão de livros existentes ali.

- Deve ter milhares de livros aqui... – conjeturou Cristine.


- Realmente. – concordou Angélica – E a maioria destes foi o padrinho
quem adquiriu. Ele costumava frequentar as livrarias e os sebos atrás
do que chamava de raridades. Eu acho que ele leu quase tudo isso aqui.
- Impossível! – disparou Cristine.
- Para o padrinho não. Ele passava a maior parte do tempo aqui. Lia
quase que um livro por dia.
- Ele não tinha amigos?
- Poucos. Muito poucos. Ele era um solitário.
- E por quê? – quis saber Cristine.
- Isso eu não sei... – desconversou Angélica – Qual o tema que mais te
atrai para leitura?
- Muitos... Principalmente arte. Por causa da minha profissão.
- E qual é?
- Arquitetura. – respondeu Cristine.
- Legal.
- E a tua? – questionou a loirinha com curiosidade.

Angélica pareceu titubear por um segundo antes de responder:


- Bibliotecária.

Cristine riu-se:
- Então você se sente em casa aqui!
- Pois é...
- E você trabalha aonde? – continuou Cristine em seu interrogatório.

Novamente Angélica pereceu hesitar antes de responder:


- Numa escola. – disse secamente, desviando o olhar de Cristine e
tratando de desconversar – Se quiseres procurar qualquer livro tem um
fichário completo aqui.

Angélica apontou para um arquivo bem no canto da sala, perto da


janela, meio que ocultado pelo caçador com a lebre.

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- Isso que eu chamo de organização! – disse Cristine – Aposto que foi
você que organizou.
- Ledo engano – riu-se Angélica – Foi o padrinho. Isso é datado de
antes do meu nascimento, se duvidar antes do nascimento de
Matusalém!

Ambas sorriram. Cristine passou a admirar a vasta coleção de armas.


Enquanto olhava atentamente a coletânea era observada discretamente
por Angélica. A morena percebeu o quanto sua interlocutora era
atraente. O cabelo loiro e curto aparentando displicência devido ao
corte moderno e picotado exalava um olor perfumado e doce. Alguns
fios pendiam desordenados sobre a testa de pele alva. O nariz pequeno
e arrebitado era emoldurado por feições suaves e por uma boca
sensual. Na nuca aparecia uma pequena e discreta tatuagem de uma
borboleta alçando vôo. A estatura mediana estava aumentada em cerca
de cinco centímetros pelo salto das botas. Mesmo com roupas de
inverno Angélica podia perceber as curvas suaves do corpo de Cristine,
o volume dos seios pequenos por sob o suéter de lã e a curvatura
delicada dos quadris. Respirou fundo e pensou: “Não posso desviar o
foco meu objetivo... raio de mulher gostosa!”.

Cristine tagarelou mais uma meia dúzia de perguntas que Angélica


respondeu mais no instinto, uma vez que seus pensamentos teimavam
em se desviar para as curvas do corpo da loirinha.

Angélica acompanhou o movimento dos olhos de Cristine na prateleira


de armas e de repente deixou de ouvir os questionamentos desta
última. Sua atenção voltou-se para um dos nichos que se encontrava
vazio. Fechou os olhos e tentou visualizar aquele local da última vez
que o vira e sua recordação lhe causou um calafrio. Decididamente algo
fora retirado dali, e ela bem sabia o que era. Circunspeta passou a
rememorar a data em que estivera ali pela última vez. Havia sido duas
semanas antes do falecimento de seu padrinho, com certeza. Restava
saber se havia sido ele que tirara o objeto que faltava. E esta
informação ela não tinha como obter. Seu semblante assumiu um ar de
preocupação. Foi trazida de volta à realidade por um toque suave em
seu braço.

- Angélica... Aconteceu alguma coisa?


- Não. Nada. Por quê?
- É que eu to falando com você há horas... E você não responde...
- Desculpe. É que me distrai... – respondeu Angélica.
- Pensando no quê? – quis saber Cristine.
- Nada... Nada de importante. Bobagens.

Cristine franziu a testa, mas não quis ser invasiva e mudou de assunto:
- Será que o Dr. Mendes vem mesmo hoje?

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- Ele te disse que viria?
- Disse.
- Então vem. Ele costuma cumprir o que diz.
- Que bom. Tenho muito que conversar com ele...
- Imagino... – respondeu Angélica – Vamos descer então. Quem sabe
ele já esteja lá embaixo.
- Vamos.

Angélica fez um gesto para que Cristine tomasse a frente no corredor


onde estavam. Seguiu logo atrás dela apagando as luzes e por último
desligou o interruptor do candelabro, deixando novamente a biblioteca
mergulhada na mais absoluta escuridão.

Desceram as escadarias conversando sobre assuntos banais e dirigiram-


se novamente à cozinha, pois estava quase que insuportável
permanecer na sala de visitas devido ao frio.

Cristine olhou o relógio de parede que marcava dezessete horas. A


chuva continuava intermitente e a escuridão da noite já ensaiava seu
pouso sobre aquela parte do continente. As nuvens escuras acabavam
por acelerar a incursão do breu e escondiam, numa cortina densa e
impenetrável, o brilho das estrelas.

A cozinha estava vazia, e enquanto Angélica servia um cafezinho para


ambas ouviram o som de passos aproximando-se cadenciadamente. Era
o Dr. Mendes seguido de Morris que vinha segurando a pasta de couro
do advogado. Ao vê-las o homem grisalho sorriu-lhes afavelmente.

- Boa tarde, mocinhas.


- Boa tarde. – responderam ambas.
- E então senhorita Cristine, como está se sentindo? Conseguiu
repousar um pouco?
- Consegui. Me sinto melhor. E Angélica me fez companhia, mostrou-me
a biblioteca.
- É um belíssimo acervo... – conjeturou Dr. Mendes.

Neste momento a governanta entrou na cozinha, dirigindo um


cumprimento formal a todos.

- Boa tarde. – disse Anemary – Angélica, por acaso viste a tua mãe?
- Não, eu estava na biblioteca com Cristine. Por quê?
- Preciso falar-lhe acerca da ceia. Senhorita, – disse a governanta
dirigindo-se a Cristine – teria alguma preferência para o jantar?
- Não... – titubeou Cristine, desacostumada com tantas mesuras – por
favor, não quero causar transtornos... Qualquer coisa está bom para
mim.

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- Anemary gosta de agradar aos hóspedes – disse James adentrando na
cozinha – quero dizer, nesse caso, aos patrões – e sorriu cordialmente
para Cristine.
- Bom, eu vou chamar a minha mãe. – disse Angélica dirigindo-se para
a porta – Eu volto para o jantar. – e piscou para Cristine,
desconcertando-a.

***************

Que mulher era aquela, pensava Cristine, que conseguia deixá-la


atrapalhada com um simples olhar ou com uma mera piscadela? É certo
que sempre fora tímida, porém com Angélica estava se superando.
Naquele pouco tempo em que conversaram percebeu-se sem jeito em
duas ou três ocasiões. Estava começando a ficar preocupada com
aquilo. Isso sem falar nos predicados físicos da moça, que a haviam
deixado bastante impressionada.

Nesta feita lembrou-se de Mariana. Precisava telefonar para ela, afinal


viajara sem ao menos entrar em contato com ela. Tudo bem que não
tinham mesmo nenhum compromisso mais sério, porém não custava
nada ter certa consideração. Conhecera Mariana num congresso e se
encantara com sua beleza. E nem sabia dizer o porquê daquela beldade
haver olhado para ela e ter feito uma investida direta. Os olhos
castanho-esverdeados a desnudaram no primeiro encontro e elas
acabaram num motel no mesmo dia em que se conheceram. Cristine
jamais tinha agido daquela forma, porém Mariana despertava seu lado
mais instintivo e lascivo. No entanto, a mesma sempre fora muito direta
e objetiva com Cristine, desencorajando-a a alimentar quaisquer
expectativas acerca de um relacionamento mais “sério”. E contrariando
todos os seus princípios Cristine resolveu “ficar” com sua bela Mariana.
Não podia negar que inicialmente tinha a esperança de transformar
aqueles encontros em um casamento, porém depois de quase onze
meses de caso estava quase que perdendo as esperanças e
conformando-se com a situação. Fingia não saber que Mariana por
vezes saía com outras companhias. Preferia não pensar para não sofrer,
mas no fundo aquela situação a incomodava. Já havia pensado em dar
um basta, no entanto ao vislumbrar o encantador sorriso emoldurado
por aqueles olhos brilhantes acabava protelando seu intento.

- Cristine, gostarias de tomar um drinque antes do jantar? – perguntou


James – E o senhor, Dr. Mendes?
- Eu aceito. – respondeu o advogado.
- Eu também. Para espantar o frio.
- Então vamos até o salão de jogos – convidou James.

34
Novamente deixaram o ambiente agradavelmente aquecido da cozinha
para adentrar no frio úmido do hall de entrada. O salão de jogos ficava
no térreo, perto da porta de acesso aos fundos do castelo. A calefação
estava funcionando bem, para a satisfação de Cristine. Havia uma mesa
de bilhar num dos cantos do aposento. No outro, uma mesa redonda
coberta por uma toalha de veludo verde-musgo para jogos de cartas e
afins e uma mesa de pingue-pongue mais ao centro. Perto da janela,
também coberta por um acortinado escuro, um balcão de bar defronte a
uma prateleira de bebidas parecia convidar a um drinque. Os copos
enfileirados simetricamente pareciam ter sido limpos há poucos
minutos.

- O que vai ser? – perguntou James ao Dr. Mendes e à Cristine.


- Eu te acompanho no que fores tomar – respondeu o advogado.
- E tu, Cristine?
- Eu quero um licor.
- Temos um de amoras que é delicioso. Era o preferido do padrinho. –
disse James enquanto pegava um cálice para servir Cristine.
- Mas eu tenho certeza que Cristine vai gostar mais deste outro aqui –
disse o advogado tirando a garrafa de licor de amoras das mãos de
James e substituindo-a por uma garrafa de licor de Amarula.

O advogado serviu o licor e o estendeu à moça. James serviu duas


doses de conhaque para eles. Sorveram a bebida em silêncio, cada qual
perdido em seus próprios pensamentos. Foi James quem externou seu
sentimento:
- Eu custo a acreditar que nunca mais vou sentar aqui com o
padrinho... – e encheu os olhos de lágrimas.
- Realmente é uma sensação muito estranha. – concordou Dr. Mendes –
Pensar que ontem pela manhã meu amigo estava aqui e agora...

Um silêncio pesado caiu sobre eles. Cristine não sabia o que dizer. Não
partilhava da intensidade da dor dos dois homens à sua frente, porém
era como se houvesse perdido uma pessoa com a qual estivesse
acostumada a conviver.

- Eu não me conformo... – disse James.


- Mas é preciso. – argumentou Dr. Mendes – Não há nada que se possa
fazer para mudar o que passou. E Artur está morto.
- Dr. Mendes, meu tio era religioso? – quis saber Cristine.
- Porque a pergunta? – quis saber o advogado.
- Curiosidade...
- Não. Artur era ateu. Pode ter acreditado em Deus um dia, porém
depois de um tempo acho que passou a desacreditar.
- E por quê?

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O advogado a fitou por instantes, desviou os olhos, tomou mais gole de
sua bebida e a deixou sem resposta.

Cristine não conseguia conceber o que poderia fazer alguém


desacreditar de Deus. E ela própria era prova disso. Apesar de sua vida
nunca haver sido um mar de rosas não conseguia desacreditar de uma
força superior capaz de auxiliar nos momentos mais difíceis. Mas enfim,
cada um, cada um... Pensou.

- Afinal, o que fazes da vida, prima? – perguntou James, com o claro


objetivo de mudar o rumo da conversa.
- Eu sou arquiteta.
- Aaah... Eu fiz Administração de Empresas, para trabalhar com o
padrinho.
- Que bom...
- Sempre moraste no Rio? - continuou James.
- Não. Morei em muitos lugares, principalmente depois que meus pais
morreram. Estou no Rio há cinco anos. Gosto de lá.
- Eu sempre morei aqui no sul. Depois que a minha mãe morreu eu
fiquei durante anos num abrigo, em Porto Alegre. O padrinho me
localizou através de um parente distante e me trouxe pra cá quando eu
tinha 12 anos. Aí fiquei sempre com ele... – novamente um soluço
embargou a voz de James.
- Parece que temos histórias parecidas... – disse Cristine.
- Pois é... – respondeu James tristemente.
- Só que com a diferença que eu não tive um “padrinho” que me
acolhesse – respondeu Cristine mais para ela mesma do que para seu
interlocutor.
- Bom, mas isso são águas passadas – interveio Dr. Mendes quebrando
seu estado meditativo – Mas me conta, o que achaste da biblioteca,
Cristine?

Passaram a discorrer sobre as coletâneas e as raridades que se


encontravam minuciosamente catalogadas na biblioteca. Dr. Mendes
contou a Cristine fatos interessantes relacionados a aquisições de
alguns volumes garimpados por seu tio. Ao enveredar para este lado a
conversa seguiu animada até o momento em que Morris veio bater à
porta e avisar que o jantar estava servido. Passava um pouco das
dezenove horas.

Novamente dispuseram-se à mesa nos mesmos lugares que haviam


ocupado no almoço. Cristine percebeu o lugar de Angélica vazio e antes
que pudesse questionar James disparou:
- Angélica como sempre atrasada...
- Ela deve ter tido seus motivos. – argumentou Dr. Mendes.

36
Regina, que começava a servir o jantar, tossiu discretamente,
controlando-se para não responder a James em defesa da filha.

Após breves instantes Angélica irrompeu na sala, desculpando-se pelo


atraso:
- Mil perdões, mas é que perdi a hora supervisionando os deveres da
escola de certo adolescente em sua fase de rebeldia...
- Quem? – questionou Cristine.
- Ariel, meu irmão. Um rebelde sem causa... Se não der uma
caprichada não vai se formar neste ano. E o danado é muito inteligente,
mas anda com os hormônios falando muito mais alto que os neurônios.
– e riu-se.

Todos tiveram que rir, até mesmo James.

O jantar transcorreu normalmente e no momento em que Regina servia


a sobremesa ouviu-se uma batida seca ecoando no hall de entrada.
Alguém havia tocado a aldrava de metal.

Morris dirigiu-se à porta da frente para atender quem chegava.

- Quem será? – perguntou James com um tom de curiosidade.


- Não faço a mínima idéia – respondeu Dr. Mendes.

Passados alguns instantes ouviu-se um burburinho de vozes vindas na


direção dos presentes. Passadas curtas e rápidas entrecortadas pela voz
de Morris que tentava interceptar os visitantes:
- Senhora, por favor, aguarde no hall... Senhora... Por favor...
- Morris! Eu sou de casa! Pode deixar que eu mesma me anuncio! –
disse uma voz feminina e decidida.

Valesca Scolari irrompeu na sala de jantar com a intensidade de uma


tempestade tropical. Ainda trajava o mesmo vestido com o qual estivera
pela manhã no enterro do Sr. Artur. Logo atrás dela o mesmo deus
grego que a acompanhava pela manhã, a qual a loira oxigenada fez
questão de apresentar logo de chegada:
- Boa noite! Este é o meu irmão, João Vítor. – disse esbaforida – Dr.
Mendes, nós viemos para ficar!
- Como assim? – questionou o advogado levantando-se abruptamente e
jogando o guardanapo de linho por sobre a mesa.
- Ora, ora, Dr. Mendes... O senhor bem sabe o quanto Artur e eu
éramos íntimos... E por certo ele gostaria que eu estivesse aqui neste
momento difícil, para prestar minha solidariedade! E esta bonequinha
linda, quem é? – perguntou Valesca dirigindo seu olhar para Cristine.
- É Cristine, minha prima e sobrinha do tio Artur – interpelou James,
também levantando-se.
- Muito prazer, Valesca Scolari.

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- Prazer. – respondeu Cristine surpresa com a cena que se desenrolava.
Definitivamente o dia vinha se superando em surpresas para ela.

Dr. Mendes dirigiu-se aos visitantes e apontou para o corredor,


indicando o escritório do falecido Artur.

- Por favor, me acompanhem, precisamos conversar. – disse o


advogado denotando irritação na voz e logo em seguida olhou para
Cristine complementando – Eu já retorno.

James também os acompanhou. Morris e Anemary seguiram atrás e


postaram-se como fiéis cães de guarda do lado de fora da porta do
escritório, que se fechou após a passagem de James.

Quando saíram Cristine olhou para Angélica e questionou:


- O que é que está acontecendo?
- Sei lá...
- Mas quem é essa mulher?
- Bom... É uma... Amiga do padrinho.
- Amiga?
- É... Amiga íntima...
- Aah... Entendo. – disse Cristine.

Regina tossiu discretamente, fuzilando a filha com o olhar.

- Olha, quer saber? Essa aí é uma oportunista que dava pro padrinho.
Pronto, falei.
- Angélica! Por favor! – repreendeu Regina.
- Mas mãe, é verdade! Essa mulher é uma vagabunda.

Regina balançou a cabeça e retirou-se da sala, enquanto Angélica dava


algumas garfadas em sua sobremesa, uma porção de pêssegos em
calda com cobertura de creme de leite.
- Ela era amante do tio Artur?
- Era. Mas eu não vejo nada de mais nisso. Ele tinha o que ela queria:
dinheiro. Em troca lhe dava o que ele precisava: a sensação de estar
vivo.
- Isso parece tão... Superficial... – disse Cristine pensativa – sem
querer pregar falso moralismo...
- Olha Cristine, cada um procura a felicidade do jeito que pode...
- Mas o tio Artur precisava que fosse assim?...
- Assim como?
- Assim... Com essa pessoa que não parece ser muito... Digamos, aah...
Sei lá... Não quero julgar sem conhecê-la.
- Cristine, o padrinho era homem. E tu sabe como é. Pro que ele queria
a Valesca servia.

38
Cristine olhou para Angélica com o semblante deixando transparecer
decepção frente às suas colocações. Angélica olhou para Cristine e
sorriu amenizando sua expressão:
- Olha só... Eu não to querendo dizer que eu concordava ou não com o
relacionamento deles... Mas esse relacionamento de fato existiu, não se
pode negar. E eu já te falei que o padrinho e eu nos entendíamos bem,
cada um aceitava o outro com a sua forma de pensar e agir. É isso.
- Eles ficaram juntos muito tempo? Estavam juntos agora?
- Acho que tiveram um caso durante uns cinco ou seis anos. Fazia mais
ou menos seis meses que o padrinho rompeu com ela. Acho que
cansou. Sei lá. Só sei que ela nunca aceitou o rompimento e seguido
vinha até aqui para torrar a paciência do pobre. Acabava ficando uma
noite ou outra e levava um dinheirinho pra casa no final das contas.
Mas era só.
- E esse irmão dela? Você conhecia?

Angélica riu:
- Irmão? Ta me gozando, né? Se esse cara for irmão da Valesca eu
mudo de nome!
- Mas então...
- É óbvio que é “casinho” dela. E não é de agora! Eu conhecia sim. Ele
vinha aqui com ela nos últimos tempos.
- Será que é por isso que o tio Artur rompeu com ela?
- Não... Com certeza não. Ele nunca se iludiu com a “fidelidade” da
Valesca. Acho que realmente saturou da cara dela.

Cristine ficou pensativa. Descobrira mais uma faceta do falecido tio.


- Ta pensando o que? – quis saber a morena.
- No dia de hoje... Nunca imaginei que minha vida pudesse dar uma
reviravolta dessas em tão pouco tempo.
- E o que ta achando? – questionou Angélica.
- Confesso que não sei... De ontem para cá eu descobri e perdi meu
familiar mais próximo. Me sinto num mundo à parte... Conheci
pessoas...
- E gostou?... De conhecer essas “pessoas”? – questionou Angélica
fixando o olhar em Cristine e sorrindo sedutoramente.

Cristine manteve o olhar, retribuiu o sorriso e respondeu:


- Gostei...

Neste momento Anemary retornou para a sala de jantar:


- Deseja mais alguma coisa, senhorita? – disse dirigindo-se à Cristine.
- Não, obrigada.
- E tu, Angélica?
- Também não, obrigada.
- Então vou pedir que Regina tire a mesa. Com licença. – disse a
governanta.

39
Enquanto isso no escritório a conversa se desenrolava
tempestivamente.

- Ora Adroaldo! Quem tu pensa que és para pensar em me expulsar


daqui? – dizia Valesca com ambas as mãos na cintura, numa pose
desafiadora.
- Eu sou o representante legal do falecido, pelo menos por enquanto.
- Por enquanto??? – ironizou Valesca.
- É. Por enquanto. Tão logo seja aberto o testamento o novo
proprietário desta casa passará a administrá-la.
- E quem garante que não seja eu??? – provocou Valesca.

Dr. Mendes respirou fundo e olhou para a loira.

- Valesca, vamos ser civilizados – disse abrandando a voz – tu sabes


que não tenho nada contra ti, nunca tive...
- Mas então me deixa ficar Adroaldo... Só até a abertura do testamento.
Olha, eu fui despejada, estou com uma mão na frente e outra atrás...
Eu tenho certeza que Artur tinha uma estima especial por mim e deve
ter me incluído como beneficiária... Se não o fez eu prometo que vou
embora sem criar caso.

O advogado respirou fundo, olhou para James que deu de ombros e


ponderou:
- Tudo bem, Valesca. Mas só até a abertura do testamento. Isso se
Cristine não se importar.
- Tenho certeza que aquele anjo de candura não se importará de me
hospedar por uns dias...
- Eu espero não me arrepender por isso... – ponderou o advogado.
- Fica tranquilo, Adroaldo. Eu não vim para criar caso, no fundo eu
sempre amei o Artur...
- Ta... Vais querer me convencer disso??? – disse Dr. Mendes dirigindo
um olhar inquiridor para o acompanhante de Valesca.
- Eu o amava sim... Do meu jeito. Mas amava. E tu não tens o direito
de duvidar. – disse Valesca agora em tom sério.

O advogado a encarou em silêncio. James disse:


- A senhora pode ficar num dos quartos de hóspedes do térreo, o seu
“irmão” no outro.
- Tudo bem. – respondeu Valesca.
- Vou pedir que Morris pegue as malas de vocês. – disse James saindo
do recinto e sendo acompanhado por João Vítor.
- Valesca, por favor, procure ser discreta... Respeite a memória do meu
amigo. – pediu o advogado num tom de voz brando, deixando
transparecer sofrimento.
- Eu já falei: não te preocupes. – respondeu Valesca no mesmo tom.

40
- Vou pedir pra Regina providenciar algo pra vocês comerem. Ela já
deve ter tirado a mesa.
- Obrigada.
- Vem, vou te apresentar pra Cristine.

Valesca seguiu ao lado do advogado e entrou na sala de jantar quando


Cristine e Angélica se levantavam da mesa.

- Cristine, gostaria de te apresentar Valesca, uma pessoa... Estimada


por Artur.

Angélica mal conseguiu disfarçar um sorriso irônico.


- Muito prazer, doçura. – disse Valesca.
- Igualmente – respondeu Cristine.
- Como vai, Angélica? – perguntou Valesca.
- Indo... – respondeu a morena sem deixar transparecer nenhuma
emoção.
- Cristine... – continuou o advogado – caso não te importes Valesca
poderia ficar hospedada aqui até a abertura do testamento de Artur?
- Por mim, tudo bem. – respondeu Cristine.
- Eu não te falei, Adroaldo? Essa menina não tem somente carinha de
anjo, ela É um anjo, uma alma caridosa. – disse Valesca teatralmente.
- Menos, Valesca, menos... – disse Angélica.
- Mas é verdade! – continuou a loira oxigenada – Eu costumo não me
enganar com as pessoas. Da mesma forma que sei que entendes bem o
relacionamento que tive com Artur, não é mesmo Angélica?

A morena pareceu ter sido pega no contrapé e limitou-se a responder


um sim com um gesto de cabeça.

- Bom, com licença então, eu vou até a cozinha ver se Regina consegue
algo para comermos. Mesmo triste não perco a fome. – disse Valesca
dirigindo-se para a porta lateral.

Dr. Mendes coçou a cabeça e disse:


- Achei melhor não criar caso com Valesca, pelo menos por estes dias.
Ela está passando por uma situação difícil, foi despejada, e acredita que
Artur a tenha incluído no testamento...
- Sei... – disse Angélica.
- Acredito que ela não vá perturbar – continuou o advogado – E logo
depois da abertura do testamento ela irá embora, me prometeu que irá.
- E tu acreditas nisso? – perguntou Angélica.
- Acredito. Por incrível que pareça, eu acredito.
- Por mim tudo bem... – disse Cristine – Ela me pareceu uma pessoa...
Divertida.
- Ôôô se é... – emendou Angélica.

41
Dr. Mendes fitou Angélica com um olhar desaprovador frente a seu
comentário.

- Desculpa... – disse Angélica – escapou.


- Eu preciso me recolher. – disse Cristine – Estou muito cansada. O dia
foi muito estressante para mim.
- Para todos nós. – emendou Dr. Mendes. – Eu também preciso me
recostar.
- Nos vemos amanhã então?
- Sim. – respondeu o advogado – Eu vou sair cedo, acredito que ainda
estarás dormindo, mas venho almoçar contigo.
- Obrigada.
- Boa noite então – disse o advogado subindo as escadas em direção a
um dos quartos no andar superior.
- Eu também vou indo – disse Angélica –Olha só, essa propriedade toda
tem uma série de ramais interligando os aposentos e as casas. Tem
uma listagem no teu quarto. Se precisar de qualquer coisa é só chamar,
ok?
- Pode deixar. Qualquer coisa eu prendo o grito.
- Boa noite então... – disse Angélica estendendo a mão para Cristine
num cumprimento formal.

O toque naquela mão macia e quente fez a morena sentir um arrepio a


percorrer-lhe o braço. Cristine também sentiu uma energia diferente
naquele toque. E gostou. Novamente Angélica fitou Cristine nos olhos e
sorriu sedutoramente. Soltou a mão da loirinha e dirigiu-se para a porta
dos fundos, deixando Cristine a observar a cadência de seus passos e
as curvas de seu corpo movendo-se com a elegância de um felino.
Pressentindo o olhar de Cristine fixo em seus quadris Angélica sorriu
para si mesma, caminhando sem olhar para trás na direção de sua
casa.

Já em seu quarto Cristine colocou seu pijama e enfiou-se sob as


cobertas quentinhas. Adormeceu sem nem ao menos se lembrar de
telefonar para Mariana. Seus pensamentos estavam todos direcionados
para outro foco.

Angélica custou muito a dormir. Em sua cabeça um turbilhão de


pensamentos fervilhavam concomitantemente. Pensava em seu
padrinho, na chegada de Valesca, em seu objetivo maior, em Cristine...
Precisava ordenar os pensamentos.

**********

42
Quando Cristine despertou levou alguns segundos até concatenar-se
com a realidade à sua volta. Esfregou os olhos, espreguiçou-se e jogou
o edredom macio que a cobria para o lado. Como de costume deu um
tempo a seu corpo, não gostava de acelerar seu despertar. No entanto
sua mente não acatou o comando de despertar gradativamente. Tão
logo seus olhos visualizaram a claridade difusa que transformava em
vultos os móveis ao seu redor foi como se seu cérebro detonasse uma
torrente de pensamentos. Recapitulou em segundos o dia anterior e as
emoções a fizeram sentar na cama, com uma sensação de angústia.

Pegou seu relógio de pulso que estava sobre o criado-mudo e percebeu


já ser bastante tarde, comparando-se ao horário em que costumava
acordar. Passava das onze horas da manhã. Aguçou o ouvido, porém
não conseguia escutar nada mais do que o monótono barulho da chuva
que não havia dado uma trégua sequer desde o dia anterior.

Calçou seu par de chinelos de dedo que havia deixado ao lado da cama
e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho, achando-se abatida e com
olheiras. “Também... pudera...”, pensou. Lavou o rosto sendo que não
conseguiu dissipar o mal estar. Resolveu então que o melhor para
reanimá-la seria um bom banho. E assim o fez.

Depois de vestir-se com roupas bem quentes sentiu-se melhor e até


considerou estar com uma aparência bem melhor do que há de poucos
minutos atrás. Para apurar mais um pouco seu visual colocou um
batonzinho discreto, que veio a realçar a suavidade da curva de seus
lábios.

Abriu a janela do quarto e a luz difusa do dia chuvoso invadiu o recinto


permitindo à vista de Cristine captar os contornos dos móveis e dos
objetos ao seu redor. Ao olhar para fora se deparou com o mesmo
cenário do dia anterior, porém com um pouco mais de visibilidade
apesar da chuva. Naquele momento quase não havia neblina e pôde
observar melhor os arredores do castelo, com suas vielas de acesso a
lugares que passou a ter curiosidade de conhecer. Percebeu que
daquele ponto podia avistar ao longe, no vale, o pequeno cemitério
onde tio Artur havia sido sepultado. Mais ainda, conseguia divisar os
anjos de pedra que guardavam a catacumba da família. Suspirou ao
lembrar-se de sua chegada no dia anterior e da despedida do tio.

Fechou a janela novamente e percebeu-se com uma pontinha de fome.


Dirigiu-se ao corredor sombrio e desceu as escadas vagarosamente.
Percebeu movimentação no andar térreo. Cruzou por James que dava
algumas ordens a dois homens portando ferramentas e escada.

- Bom dia, prima – disse James – Estou providenciando o conserto de


parte da calefação. Tem feito muito frio.

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- Que bom. – respondeu Cristine, rumando para a cozinha.

Ao entrar naquela peça tão agradável sentiu novamente o clima quente


mantido pela temperatura do fogão. Regina estava empenhada em
cozinhar, tendo como ajudante uma moça a quem não conhecia ainda.

- Bom dia – disse Cristine.


- Bom dia – responderam ambas as mulheres, sendo que a mais velha
se apressou em fazer as apresentações.
- Cristine, esta é Adelaide, que também trabalha aqui conosco.
- Encantada, senhorita – disse a mulher mais jovem, baixando os olhos,
sorrindo timidamente e ficando rubra até a raiz dos cabelos.
- Muito prazer, Adelaide. – respondeu Cristine.

Adelaide tratou de dar andamento no que estava fazendo: descascando


uma bacia de batatas cozidas. Cristine achou engraçada a postura da
moça. Aparentava uma grande timidez, porém era muito graciosa.
Tinha a pele clara como Cristine e o cabelo era da mesma cor do dela.
Os olhos, porém eram escuros como duas jabuticabas. Os cabelos de
Adelaide também eram curtos, todavia com cumprimento suficiente
para dar suporte a um elástico colorido que lhe prendia os fios loiros. A
estatura e o tipo físico também lembravam Cristine que, no entanto,
deveria medir alguns centímetros a menos que a moça, porém esta
diferença era compensada pelo salto de sua bota. Poderiam passar por
irmãs. Cristine divertiu-se com a semelhança.

- Senta aí, minha filha – disse Regina – Queres tomar café ou preferes
esperar pelo almoço?
- Que horas é costume servir o almoço? – perguntou Cristine.
- Ao meio dia, em ponto. Seu Artur sempre gostou do almoço
pontualmente.

Ao dizer isto Regina calou-se, dando-se conta que nunca mais teria o
patrão na cabeceira da mesa. Suspirou.

- Acho então que vou dar uma enganada no estômago, afinal falta
menos de meia hora pro almoço... – disse Cristine pegando uma
banana do cesto de frutas e sentando-se perto do fogão à lenha.
- E Angélica? – questionou Cristine.
- Está estudando com o irmão. Mas disse que vem almoçar aqui. Deve
estar chegando.
- E você, Adelaide? Mora aqui perto? – perguntou Cristine.

Novamente a copeira foi acometida por uma onda de rubor antes de


responder:
- Moro. Moro na cidade.
- E gosta de trabalhar aqui?

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- Muito. Aqui todos sempre foram muito bons pra mim... O Seu Artur
até pagou o estudo pra mim. Eu terminei o segundo grau no ano
passado. A escola é pública, mas o material era caro, eu não conseguia
comprar...
- Mas o teu salário é tão pouco? – provocou Cristine.
- Não... Não é isso... Mas é que eu gasto muito com o meu pai, que é
doente. A minha mãe não consegue trabalhar, pois cuida dele, e os
meus irmãos são pequenos ainda.
- O pai de Adelaide teve um derrame há mais de sete anos e ficou
praticamente vegetativo. – comentou Regina.
- Deve ser uma barra pesada... – conjeturou Cristine.
- Se é... – disse Adelaide - mas a gente vai levando.
- Adelaide tem irmãos gêmeos, de nove anos, uns encantos. – disse
Regina.
- O Jorge e o Joel, são meio que como filhos meus, ajudei a criar. –
completou Adelaide.
- Deve ser muito bom ter irmãos... – disse Cristine.
- É bom. – riu-se Adelaide – às vezes dá vontade de amarrar os dois
numa árvore, por causa das molecagens, mas no fundo é muito
divertido.
- Imagino... – riu Cristine.

Neste momento Angélica entra na cozinha pela porta dos fundos,


aparentando irritabilidade.

- Bom dia – disse em tom sério.


- Bom dia – respondeu Cristine estranhando aquela cara amarrada.
- O que foi que houve? – perguntou Regina sem nem olhar para a filha,
afinal conhecia seu humor somente pelos passos.
- Aquele teu filho cabeçudo! Deixei ele lá, brigando com os cálculos!

Todas tiveram de rir, menos Angélica que as fitou ainda séria.


- Isso... Vão rindo... Isso porque não são vocês que tem de tentar
colocar um pouco de raciocínio dentro daquela cachola que só pensa em
seios e bundas!
- Mas isso é próprio da idade... – ponderou Regina.
- Com certeza, depois passa. – disse Cristine.
- Mas até lá o moleque vai ficar repetindo de ano! – exclamou Angélica.
- Tu estás sendo injusta – disse Regina – o teu irmão nunca rodou.
- Isso porque eu tenho pegado o cabeça-oca em quase todos os finais
de semana ... Nos últimos dois anos!
- Coitado. Deve ser por isso. – provocou Cristine.
- Engraçadinha... – disse Angélica, sendo obrigada a sorrir da
espiritualidade da loirinha.
- Afinal, no que é que ele está tendo dificuldades? – quis saber Cristine.
- Em TUDO! – respondeu Angélica – Em tudo que não seja mulher...

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“Chega a dar inveja...” pensou Cristine divertida. “Aliás, a irmã dele
parece que deve ter a mesma maneira de se distrair”, continuou
pensando Cristine, lembrando-se das tiradas e dos olhares de Angélica.
“E como ela fica linda assim irritadinha”...

- Afinal, qual é a matéria que ele menos entende? – insistiu Cristine.


- Exatas. Matemática e Física. O cara é um jumento! Tudo bem que eu
também não sou lá muito boa nessas coisas, mas pelo menos eu
sempre fui esforçada! – completou Angélica.
- Que bom, assim não fico complexada por ter dois filhos jumentos! –
disse Regina em tom de deboche.
- Mãããe, eu to falando sério! Tanto a mãe quanto o pai dão muito mole
pra esse guri. – disse Angélica à Cristine.

Esta última sorriu:


- Deve ser coisa de filho caçula...
- É...
- Olha só... – continuou Cristine - ...se você quiser eu posso dar uns
toques pra ele, em matemática.
- Não precisa se incomodar com isso não... – respondeu Angélica.
- Não seria incômodo algum, afinal preciso ocupar o meu tempo
mesmo, pelo menos até semana que vem. E eu gosto cálculos,
lembra?...
- Bom, sendo assim, tudo bem... Embora eu ache que seja malhar em
ferro frio. – disse Angélica.
- Não subestime o seu irmão... – disse Cristine sorrindo.

Angélica a fitou encantada com seu sorriso. Aliás, o que mais fizera
desde o dia anterior havia sido se encantar com os trejeitos de Cristine.
Em outra ocasião aquilo não a deixaria tão desassossegada, porém na
situação que estava vivenciando sentia uma inquietação palpitante a
cada vez que se percebia a admirar a loirinha. Instantaneamente
tentava direcionar toda sua energia ao seu objetivo naquele momento.
Tinha plena consciência do que estava em jogo, e do quanto precisava
ficar atenta.

- Adelaide, tu já podes pôr a mesa. – disse Regina – O almoço está


quase pronto.
A copeira tratou de enfileirar pratos e talheres na mesa da sala de
refeições. Mal havia terminado e James se juntou a elas.

- Finalmente o hall de entrada e o corredor ficarão aquecidos. Esse


pessoal é bom no que faz – disse James referindo-se aos homens que
ainda trabalhavam no conserto da calefação.
- Até que enfim... – disse o Dr. Mendes, que chegava naquele momento
a tempo de ouvir o comentário de James.

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- Pois é. O padrinho queria fazer isso há tempo... – complementou
James.
- Mas vamos nos sentar – disse Dr. Mendes, desconversando e
gentilmente puxando a cadeira para Cristine sentar. Logo em seguida
repetiu o mesmo gesto para Angélica.

James e o advogado também se instalaram e Regina serviu o almoço.

Comeram quase que em silêncio, tecendo somente alguns poucos


comentários acerca do tempo chuvoso.

Logo após o almoço Dr. Mendes referiu que voltaria para a cidade, pois
precisava dar andamento em alguns processos que tomariam grande
parte de seu tempo naquela tarde. Disse ainda que não poderia dormir
no castelo naquela noite, sendo que retornaria somente no final da
tarde do dia seguinte. Despediu-se e foi levado por Henrique até a
cidade, pois havia deixado seu carro numa oficina, para revisão.

James também pediu licença justificando necessitar trabalhar um pouco


no escritório. “Negócios que precisam ser tocados para frente”,
argumentou.

Regina e Adelaide ocuparam-se na cozinha enquanto Morris e Anemary


cuidavam cada qual de seus afazeres de rotina.

Angélica sorriu para Cristine e disse:


- Parece que sobramos só nós duas.
- Pois é... – concordou Cristine – E, por curiosidade, cadê a Valesca e o
irmão?
- Sei lá! Devem estar por aí. A mãe deve saber... Escuta, quem sabe a
gente vai até lá em casa, para conheceres?
- E iniciar a árdua tarefa de ensinar matemática a um rebelde? –
brincou Cristine.
- Nem me lembre disso que o sangue me ferve nas veias! – disse
Angélica.

Cristine achou graça do rompante de Angélica. A morena conduziu


Cristine na direção da porta dos fundos, que dava para a rua. Num
pequeno corredor de acesso havia um cabide com alguns capotes de
chuva e numa imitação de um vaso da dinastia Ming repousava um
enorme guarda-chuva, com o qual Angélica havia se protegido da garoa
fria que caía ininterruptamente. Angélica pegou uma das capas e
estendeu outra para Cristine.

- Toma, coloca por cima, senão tu vai tomar um banho até lá em casa.
É perto, mas essa chuvinha ta molhando pra valer.

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Cristine jogou a capa por cima de sua vestimenta enquanto Angélica
ajeitava a sua e abria o guarda-chuva. A morena passou o braço por
cima dos ombros de Cristine trazendo-a de encontro ao próprio corpo,
com o intuito de protegê-la das gotas que se projetavam das nuvens
carregadas. Cristine aninhou-se bem junto a Angélica e passou o braço
por sua cintura, para conseguir acompanhar sua marcha e ficar o mais
embaixo possível da proteção do pano do guarda-chuva. Cristine podia
sentir o perfume dos cabelos de Angélica cujos fios soltos, fustigados
pelo vento, batiam de encontro a seu rosto provocando-lhe uma
agradável sensação de carícia.

As passadas firmes de Angélica conduziam Cristine em segurança,


desviando-a das poças d’água que se formavam ao longo do caminho.

Angélica podia sentir o perfume que emanava de Cristine. Os cabelos


recém-lavados e a pele alva exalavam um olor suave que estava
deixando Angélica entorpecida de prazer. A morena tratou de centrar
seu pensamento no trajeto, e nas poças d’água...

Conforme iam se movimentando, afastando-se do castelo rumo à casa


de Angélica, Cristine pôde observar um pouco da paisagem ao redor,
mesmo tendo seu campo de visão restrito devido ao diâmetro do
guarda-chuva. Rumavam por uma viela ladrilhada com pedras
arredondadas e desgastadas pelo tempo. Precisavam tomar cuidado em
alguns trechos, pois o limo nascido sobre as pedras, umedecido pela
chuva, transformava-as em armadilhas perigosas para os mais
distraídos. Isto não chegava a ser um problema para Cristine, pois a
mesma sentia a firmeza do braço de Angélica ao redor de seus ombros,
e tinha a certeza que, mesmo que escorregasse, seria prontamente
amparada por aqueles braços fortes.

A vegetação densa ao redor estava encharcada e as poucas flores


existentes pareciam verter água pelas pétalas arriadas pelo peso das
gotas de chuva.

Conforme iam se afastando do castelo o cenário ao redor parecia ficar


mais selvagem, com a vegetação parecendo querer fechar-se ao redor
delas. Os ladrilhos de pedras irregulares cederam lugar a uma viela sem
nenhum tipo de revestimento, cuja terra avermelhada e amassada
pelos pés dos passantes continuava escorregadia e predisposta a
derrubar os desavisados em suas poças de água lamacenta. Durante
todo o trajeto Cristine pareceu ouvir passos atrás delas, todavia preferiu
pensar tratar-se de fruto de sua imaginação. Em dado momento,
porém, foi como se um dos arbustos fizesse um movimento diferente
dos demais, tocado pelas rajadas de vento. Pareceu ainda à Cristine
que Angélica também havia visto o mesmo que ela, porém pareceu
disfarçar sua impressão. Cristine quis diminuir o passo, no entanto

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Angélica continuou com a mesma marcha, obrigando-a a seguir com
ela, tentando ainda desviar a conversa. Nem bem haviam avançado
alguns metros e novamente Cristine percebeu um movimento nos
arbustos e teve a nítida impressão de avistar um vulto disforme à
observá-las. Sobressaltou-se.

- O que foi? – perguntou Angélica.


- Tem alguém seguindo a gente.
- Como?
- Tem alguém seguindo a gente! Tem alguém ali no mato olhando pra
gente!!! – respondeu Cristine deixando transparecer medo na voz.
- Impressão tua, quem poderia ser? Fica calma. Ta tudo bem. –
desconversou Angélica.
- Mas eu vi um vulto, não sei o que era...
- Cristine, deve ter sido um animal silvestre, fica calma...
- Mas era grande! Eu juro! Porque não acredita em mim???
- Calma... Eu acredito. Mas é que podes ter visto uma capivara, que são
grandes, e tem muitas por aqui.
- Será?
- Claro. Afinal aqui não tem mais ninguém além de nós.
- Tem certeza? – questionou Cristine.
- Absoluta.

Cristine suspirou e Angélica sentiu que ela se aconchegou mais junto a


seu peito e tratou de apurar o passo, instintivamente. A morena lançou
um olhar de soslaio para o mato e viu o mesmo vulto que Cristine
avistara. Com um olhar significativo fez o vulto desaparecer mata
adentro.

Andaram mais um pouco e a mata densa cedeu lugar a uma clareira aos
pés de um morro, onde uma casa de madeira pintada de azul
encontrava-se com a porta da frente aberta, como que num convite a
abrigarem-se da chuva. Por instantes Cristine parou em frente à
residência, encantando-se com a mesma. Era uma casa singela, em
estilo polonês, toda de madeira e cuja cobertura de telhas francesas
conferia um ar de antiguidade à construção. De fato era uma casa
bastante velha, porém em ótimo estado de conservação. As tábuas
dispostas verticalmente ostentavam uma barra decorativa logo abaixo
do nível das janelas, com pinturas de flores amareladas. Nas paredes
laterais externas pequenas armações com vasos de flores adornavam
toda a extensão, dispostas assimetricamente e conferindo um ar
primaveril àquela paisagem de inverno. As janelas não possuíam
venezianas, somente vidraças com armações pintadas de um azul
escuro cujo arremate interno de cortinas brancas e rendadas dava a
impressão de uma casa de bonecas. Ao redor das janelas também havia
um contorno pintado, retratando flores e folhas coloridas. Havia um
sótão onde duas janelas, estas com venezianas de madeira, se abriam

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para a frente da residência. Todo o telhado da casa era circundado por
lambrequins de madeira pintados de branco, arremate tipicamente
polonês. Uma chaminé de metal projetava-se do meio do telhado e
expelia golfadas de fumaça, sinal de que alguém mantinha o fogão à
lenha aceso.

Ao chegarem à área da frente, protegidas pelo telhado que se projetava


da parede principal, Angélica soltou Cristine e fechou o guarda-chuva.

A loirinha olhou em volta e exclamou:

- Que encanto de casa! Uma legítima casa em estilo polonês!


- Pois é... Meus avós maternos vieram da Polônia e foram eles que
construíram essa casa.
- Mas essas terras não são do tio Artur? – perguntou Cristine.
- Sim e não.
- Como assim? – quis saber Cristine.
- Bom, minha família trabalha com a tua há muitos anos, desde que os
meus avós imigraram. Esta parte da propriedade fica bem no limite e
foi comprada pelos meus avós, dos teus. Histórias de família... Um dia
eu peço pra mãe te contar.
- Ta. – sorriu Cristine.
- Mas vamos entrar – disse Angélica, indicando o caminho com a mão.

A sala era uma peça ampla, com o assoalho de madeira envernizado e


as paredes internas pintadas de azul bem claro. A decoração era
simples e aconchegante. Parecia não haver ninguém em casa, salvo
pelo barulho ao longe do crepitar da lenha no fogão da cozinha.
Angélica pediu que Cristine a acompanhasse. Ao entrarem na cozinha
Cristine viu um rapaz sentado de costas para elas, sendo que nem
percebeu a entrada das mesmas devido a um fone de ouvidos que lhe
tapava as orelhas. Estava sentado em frente a vários livros e um
caderno aberto, porém saracoteava-se ao som da música que somente
ele escutava no momento. Angélica respirou fundo, balançou a cabeça e
aproximou-se dele por trás, lentamente. Ao alcançar o pequeno rádio
aumentou o volume de supetão, fazendo o garoto dar um pulo e
arrancar o fone de ouvido.

- O que é isso? Enlouqueceu? Quer me deixar surdo? – exclamou o


rapaz, fuzilando Angélica com o olhar.

Instantaneamente se deu conta de que não estavam sozinhos.


Aprumou-se e tratou de se desculpar.

- Desculpe, eu não sabia que essa megera tinha vindo acompanhada.


- Tudo bem – disse Cristine tentando não rir da situação.
- Esta é Cristine – apresentou Angélica – Ariel, meu irmão.

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- Muito prazer, Ariel. – disse Cristine.
- Igualmente. – respondeu o garoto.

Ele aparentava não ter mais do que 16 anos, era alto como Angélica,
porém as semelhanças terminavam por aí. Ariel era claro, muito magro,
com olhos esverdeados e as feições da mãe. Tinha um sorriso lindo
como o de Angélica, ostentando uma dentição perfeita e uma covinha
no queixo.

- Ô cabeçudo, eu já não te disse pra desligar esse rádio na hora de


estudar? – repreendeu Angélica.
- Mas eu me concentro melhor com música – respondeu o rebelde, não
querendo encompridar aquela discussão.

Angélica balançou a cabeça.

- Queres um cafezinho? – perguntou Angélica à Cristine.


- Aceito.
- Eu também quero – disse Ariel.

Angélica dirigiu-se ao fogão à lenha pegando um bule vermelho


esmaltado que se encontrava bem no canto, e cujo conteúdo era
mantido na temperatura ideal pelo calor constante da chapa de ferro.
Serviu três canecas daquele líquido fumegante, alcançando-as a seus
respectivos destinatários. Sentaram-se à mesa arredando alguns livros.
Cristine perguntou:
- Época de provas?
- É. – respondeu Ariel.

Angélica manteve-se quieta.

- E como vão as notas? – perguntou Cristine.


- Essa uma aí já não fez fofocas a meu respeito? – perguntou Ariel
referindo-se à Angélica.
- Por quê? Deveria? – instigou a morena.
- Não, mas sabe como é... Vive implicando... – emendou Ariel.
- Com motivo ou sem? – perguntou Angélica.
- Claro que sem! – disse Ariel.
- Mas afinal, - interpelou Cristine – ta bem ou mais ou menos?
- Mais ou menos... – anuiu Ariel.
- Vejo que você está estudando matemática... – disse Cristine olhando
para o caderno aberto.
- Pois é... To apanhando pra caramba...
- Com licença, - disse Cristine virando o caderno para ela – Ah, ta
explicado, trigonometria...
- Eu poderia matar quem inventou esse raio de matemática! – disse
Ariel.

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- Pois eu acho que foi um dos iluminados do planeta! – disse Cristine.
- Ta me gozando, né? – disse Ariel.
- Não to não.
- Mas me diz onde é que eu vou usar esse raio de matemática na vida?
- Bom, no meu caso eu uso direto... Eu fiz arquitetura. Mas a gente usa
sempre. O que é que você gosta de fazer?
- Nadar! – respondeu Ariel com os olhos brilhantes.
- E você nada como amador?
- Não. Eu participo de competições. – disse Ariel orgulhoso.
- Bom, então uma das aplicações práticas da matemática poderia ser
para calcular quantas braçadas você teria que dar para atravessar uma
piscina olímpica e quanto tempo levaria para ser mais rápido do que os
teus adversários.

Ariel a olhou pensativo e respondeu depois de um tempo:


- Eu nunca tinha pensado nisso...

Cristine pegou uma folha e um lápis e começou a rabiscar:


- Bom, quanto mede a piscina que você treina?
- Vinte e cinco metros.
- E qual a tua média de tempo?

Ariel ia respondendo e Cristine ia fazendo um gráfico de distância e


tempo. Angélica observava. Cristine conseguiu prender a atenção de
Ariel que acompanhava sua linha de raciocínio atentamente, juntando
num mesmo papel noções de matemática e física. Ao terminar Ariel
estava boquiaberto, Angélica também. Cristine conseguira prender a
atenção do rapaz nos estudos por quase meia hora, num simples
conversar sobre natação.

- As ciências exatas são facílimas quando se entende a lógica da coisa...


– continuava Cristine – Olha só, você entende o porquê dessa fórmula
de calcular a área desse triângulo retângulo?
- Não. – disse Ariel.
- É simples, basta...

E Cristine se dispôs novamente a discorrer sobre fórmulas matemáticas.


Tinha um conhecimento invejável e uma didática mais invejável ainda.
Ao ouvi-la falar tudo parecia mais fácil. Por incrível que pudesse parecer
Ariel estava gostando de rever aquela matéria com ela. De fato o
mundo havia perdido uma ótima professora de matemática, pensava
Angélica. Ariel permaneceu absorto durante quase duas horas. Angélica
chegava a desconhecer o irmão, sempre disposto a terminar logo as
lições e tratar de pegar alguma revista de mulheres nuas ou ligar o
rádio e curtir as músicas do momento.

- E é isso! – Finalizou Cristine.

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Ariel permanecia concentrado e empenhado em resolver as próximas
questões de seu caderno.

- Nossa! Nunca ninguém tinha me explicado isso dessa maneira! – dizia


Ariel boquiaberto. – Realmente não é difícil...
- Não falei? – disse Cristine.
- Bom, mas agora a Cristine precisa dar um tempo... – disse Angélica –
Afinal ela já se formou e não precisa rever essa matéria...
- Amanhã tu me dá mais uns toques, Cristine? – perguntou Ariel
ansiosamente.
- Claro.
- Ariel, tu não vai torrar a paciência da visita, vai? – disse Angélica.
- Para mim é um prazer. – disse Cristine.
- Credo, cada um se diverte como pode mesmo... – disse Angélica em
tom de brincadeira.
- Ta vendo Cristine? Essa daí é mais jumenta que eu! – disse Ariel
implicando com a irmã.

Angélica pegou o garoto e lhe aplicou um cascudo na orelha, levando na


esportiva sua provocação.

- Tu me respeita, guri!

Cristine riu deles.

- Que tal a gente fazer umas pipocas? – disse Ariel.


- Acho ótimo! – exclamou Cristine.
- Tudo contigo, pivete – disse Angélica – Teve a idéia, executa!
- Pra já! – disse Ariel saltando de onde estava e pegando uma panela
grande que estava no armário embaixo da pia.

Em poucos minutos estavam saboreando uma baciada de pipocas


regadas a chocolate quente feito por Angélica. O trio conversava sobre
vários assuntos e em dado momento uma guerra de pipocas foi
desencadeada na cozinha, onde cada qual procurava acertar a caneca
de chocolate de seu adversário. Em instantes o chão da cozinha ficou
tomada por uma camada de flocos brancos, parecendo neve. Era como
se eles já se conhecessem há bastante tempo. As horas passaram
despercebidas.

Quando já passava das cinco horas da tarde Regina chegou em casa,


porém a bagunça da cozinha já havia sido limpa, sem haver sobrado
vestígio da confusão armada.

53
Logo em seguida Israel também chegou. Estivera trabalhando na
estufa, na tentativa de se distrair. Continuava com aspecto triste e
abatido, mas parecia disposto a reagir.

Angélica levou Cristine de volta ao castelo. Enquanto aguardavam a


hora do jantar ficaram conversando no escritório que fora do tio. James
já não estava mais trabalhando lá.

O aposento era simples. As paredes de pedra ostentavam uma


decoração discreta onde quadros a óleo retratavam o que Cristine
constatou serem paisagens da propriedade onde estavam. No entanto o
que mais lhe causou surpresa foi a assinatura dos quadros: “A Torres”.
A assinatura rebuscada deixou Cristine em dúvidas quanto à autoria das
telas. Angélica olhou para ela, novamente adivinhando seus
pensamentos e disse:
- São do padrinho.
- São lindos... – disse Cristine contemplativamente.
- Essa era uma das distrações dele.

Era incrível como Angélica conseguia saber o que Cristine pensava.


Havia uma sintonia inata entre ambas. Cristine suspirou, andou em
volta do aposento. Passou sua mão delicadamente pela borda da mesa
cujo tampo de vidro protegia a madeira avermelhada. Observou a
cadeira de espaldar alto e assento de palha, onde uma almofada de
veludo azulada e desgastada pelo tempo de uso ainda repousava de
encontro ao encosto.

- Eu tenho sentido tantas coisas diferentes nessas últimas horas... –


disse Cristine, mais para si mesma do que para Angélica.
- Eu imagino. – disse a morena.
- A cada instante eu me surpreendo mais com o meu tio... – continuou
Cristine - ...isso – disse apontando para os quadros – é totalmente
diferente do Artur que eu imaginava: frio e distante. Esses quadros
contrastam com essa casa, esse castelo. A sensibilidade destas telas
não condiz com a frieza deste lugar. As pessoas são formais, eu não
consigo entender isso.
- Como assim? – perguntou Angélica.
- Por exemplo, o Morris. Parece um boneco empalhado. Ele nunca sorri?
Aliás, ele consegue demonstrar algum sentimento? Ele me deu os
pêsames com a mesma expressão que chama para o jantar... E
Anemary. Ela também é esquisita. Aparenta um gosto exagerado por
disciplina e por regrinhas.
- Bom, isso eu sou obrigada a concordar. – disse Angélica – Mas é que
eles vêm de outra realidade. Morris é francês, veio com o padrinho já
há bastante tempo. E Anemary também veio “importada”, é inglesa. E
tu sabes como são esses gringos. É gente esquisita mesmo.
- Mas tem outras coisas que eu não entendo...

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- O que?
- Porque é que a tua mãe não faz as refeições conosco? Pelo que você
conta ela é quase da família.
- Bom, isso é coisa dela... Desde cedo ela sempre foi a cozinheira da
casa. Apesar de conhecer o padrinho de longa data eles sempre
mantiveram certa distância. O amigo mesmo do padrinho é o meu pai.
E este sempre passou mais tempo fora do castelo do que dentro.
- Mas como você se sente com sua mãe a servi-la na “mesa do patrão”?
E me desculpe a pergunta, eu não quero causar constrangimento nem
criar polêmicas, só quero entender... – disse Cristine.
- Pois é... Parece estranho, mas eu me acostumei com isso... Na
verdade eu nunca me preocupei com isso, pois para mim, comer na
cozinha, na sala, quarto, no escritório, tanto faz. Eu não ligo para essas
coisas. Eu sempre costumei circular por todos os espaços desta
propriedade, sem restrições. E sempre tentei entender e aceitar as
pessoas daqui como elas são, com suas virtudes, manias e encucações.
- Eu te admiro por isso... – conjeturou Cristine. – Não sei se
conseguiria...

Angélica sorriu e completou:


- Se fosse obrigada a conviver com gente esquisita desde tenra idade
aposto que aprenderia!

Desta vez foi Cristine quem teve de sorrir. Depois de um período de


silêncio continuou:
- De repente eu me dei conta que eu gostaria de ter convivido com o
meu “tio esquisito”...

Angélica ficou em silêncio. Cristine foi até um canto e observou o


quadro onde uma menina de longos cabelos negros parecia levantar
vôo, suspensa por um balanço de cordas atado numa frondosa figueira.
A menina sorria e, de olhos fechados, parecia sorver a energia de um
raio de sol que lhe iluminava o rosto. Cristine passou a ponta dos dedos
pelo contorno do rosto da menina e sorriu melancolicamente.

- Quem é? – perguntou à Angélica, embora já soubesse a resposta.


- Sou eu. – respondeu a morena.

Cristine se voltou para ela e perguntou, deixando transparecer tristeza


na voz:
- Por que será que ele nunca me procurou?...

Angélica baixou os olhos e respondeu a meia voz, sem encarar Cristine:


- Não sei...

55
Logo em seguida, depois de instantes que pareceram horas, onde uma
angústia latente parecia querer saltar do peito de Cristine, Angélica
desconversou:
- Vamos descer? Daqui a pouco o jantar vai ser servido. Pontualidade
britânica, lembra?

Cristine somente assentiu com um gesto de cabeça, tristemente.


Sempre que tentava aprofundar a questão do seu relacionamento com o
tio percebia que seu interlocutor desconversava, quer fosse Angélica ou
o Dr. Mendes. Era como se uma parte da história do tio, e por
consequência da sua própria história, não pudesse lhe ser revelada. Ali
de pé, segurando as mãos em frente ao corpo, com os olhos fitando o
nada, Cristine sentiu-se frágil e desamparada. Algumas lágrimas
teimaram em se formar em seus olhos e Angélica, num rompante,
abraçou-a afetuosamente de encontro ao peito, sem falar nada.
Confortada por aquele abraço Cristine permitiu-se chorar. Soluçou
baixinho, silenciosamente. Angélica passou a mão pelos cabelos loiros e
aninhou-a de encontro a si, numa atitude protetora e de consolo. Sentiu
as lágrimas quentes de Cristine umedecendo seu peito e os espasmos
daquele corpo diminuto a cada soluço que tentava em vão engolir.
Quando percebeu que ela gradativamente parara de chorar levantou
sua face puxando-a delicadamente pelo queixo. Seus olhos verdes
estavam mais brilhantes do que o normal, devido ao reflexo das
lágrimas. Passou a mão em suas faces, secando-lhe as lágrimas.
Cristine a olhou nos olhos e o que viu foi um genuíno sentimento de
solidariedade e afeto. Seu toque era quente e aconchegante. Teve o
desejo de beijar a boca de Angélica, porém ficou estática admirando o
azul cristalino de seus olhos fitando-a tão de perto. A morena, por sua
vez, também desejou capturar aqueles lábios e beijar aqueles olhos.
Mais que isso, queria poder mudar a realidade, queria que aquela
situação não estivesse acontecendo, queria dizer-lhe muitas coisas...
Mas não podia.

- Vamos descer então? – disse Angélica amorosamente.


- Vamos... – respondeu Cristine - ...e me desculpe...
- Não tenho o que desculpar.

Elas se entreolharam e sorriram com cumplicidade. Desceram as


escadas, porém antes Cristine quis passar em seu quarto e lavar o
rosto, para dissipar qualquer vestígio das lágrimas que vertera ainda há
pouco. Angélica desceu na frente dela e a esperou na cozinha.

Valesca e seu “Adônis” conversavam com James na mesa de jantar


enquanto aguardavam que fosse servida a ceia. Quando Cristine desceu
e passou por eles sentia-se melhor. Havia lavado o rosto e colocado um
pouco de maquiagem.

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- Ora, ora, se não é a princesinha descendo de seus aposentos – disse
Valesca, com uma naturalidade que não soava de forma nenhuma a
deboche.

Cristine teve de sorrir do comentário.


- Princesa? Eu? Por quê? – quis saber.
- Ora, tu já te olhaste no espelho? – disse Valesca – Com essa carinha
angelical e tua delicadeza poderias bem ser uma princesa de contos de
fadas.
- Que é isso... – respondeu Cristine sem jeito.
- Mas isto é verdade. – anuiu James – De fato tu és muito bela, prima.
- Por favor, eu estou ficando constrangida...
- Ai que amor! – bradou Valesca – Além de tudo é tímida! Mas vem
aqui, vem, sente-se. Regina já vai servir o jantar.

Cristine olhou em volta e imaginou que Angélica estaria na cozinha.


Disse:
- Eu vou até a cozinha, estou com sede.

Morris, de sua posição de sentinela, disse enfaticamente:


- Pode deixar, senhorita, eu pego a água.
- Não Morris, eu mesma vou até lá. – respondeu Cristine rumando para
a cozinha.

A governanta inglesa fez um ar de quem discordava daquilo. Para ela


era inconcebível a patroa servir-se de água, e ainda mais na cozinha.
No entanto permaneceu com a fisionomia impassível. Tinha consciência
de que não era paga para questionar as atitudes dos patrões.

Cristine encontrou Angélica recostada no balcão da louça, conversando


com a mãe. Contava a proeza de Cristine ao conseguir manter Ariel
concentrado sobre seu caderno de matemática por mais de duas horas.

- Minha filha – exclamou Regina – eu nem sei como te agradecer!


- Que é isso Regina? Não precisa agradecer nada, pois não me custou
nada. Foi, digamos, um momento de lazer.

As três sorriram.
- E olha que o cabeçudo até pediu mais umas aulas! – emendou
Angélica.
- Não acredito... – disse Regina.
- Mas é verdade! – falou Angélica. – Com certeza Cristine ganhou o céu
com este feito! – e riu-se.
- Agora vão indo lá que eu vou servir o jantar. – disse Regina.
- Regina... – disse Cristine - ...você não gostaria de jantar conosco?
- Mas eu vou jantar...
- Eu falo conosco, na mesa, agora. – continuou Cristine.

57
Angélica deu de ombros, afinal já sabia como aquela conversa
terminaria. Deixou as duas e foi para a sala de jantar.

- Minha filha, eu não consigo...


- E por quê?
- Porque não estou acostumada...
- Mas você é quase da família...
- Mas não sou. Eu sou a cozinheira da casa.
- Mas é a comadre do dono!
- Por favor, Cristine, não insista. – pediu Regina com voz branda.

Cristine percebeu que era inútil argumentar, pelo menos naquela


ocasião. Sorriu afavelmente para Regina e dirigiu-se à sala de jantar.
Instalou-se à mesa, defronte a Angélica, e balançou a cabeça. A morena
fez um movimento de ombros, como a lhe dizer: “eu te falei...”.

O jantar transcorreu em um clima agradável. Valesca era uma mulher


bastante falante e Cristine não podia negar que seu discurso era
eloquente e acabava envolvendo seus ouvintes. De fato, até poderia ser
uma oportunista, porém começou a entender o que seu tio havia visto
nela. Apesar de aparentar superficialidade Valesca tinha opiniões sobre
a vida e a existência que chegavam a surpreender, isso sem falar nos
seus atributos físicos. Apesar de ser uma mulher de meia idade
ostentava ainda um porte elegante, seios fartos e quadris largos,
pernas bem torneadas e pele mantida fresca com cremes e emplastos.
Na verdade Valesca costumava viver cada dia como se fosse o último.
Era dada a aproveitar o máximo que a vida poderia lhe oferecer. E
Cristine compreendeu assim o que Angélica havia falado sobre a
amante de Artur.

Somente James passou o jantar taciturno, respondendo com


monossílabos ao que lhe era perguntado. Cristine reparou que ele e
Angélica quase não se falavam, embora tentassem manter um clima
cordial.

Terminada a refeição James, Valesca e João Vítor pediram licença e


foram se recolher. Angélica levantou-se da mesa e também se despediu
de Cristine. Somente as duas estavam na sala de jantar e a morena
aproximou-se de Cristine e colocou ambas as mãos em seus ombros.
Olhou-a nos olhos e disse:
- Fica bem. Amanhã a gente se vê, ok?
- Ok.

Angélica debruçou-se e Cristine teve a nítida impressão de que ela lhe


beijaria os lábios. No entanto a morena desviou o trajeto de sua boca e
deu um suave beijo na face de Cristine, que sentiu seu rosto e seu
corpo pegarem fogo com aquele breve contato. Angélica ainda lhe

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sorriu ternamente e a deixou parada e estática, de pé ao lado da mesa
de jantar, sem conseguir esboçar nenhum tipo de reação. Por instantes
sentiu-se uma colegial descobrindo os estranhos e deliciosos prazeres
da carne. Tratou de dissipar aquela sensação e rumou para seu quarto,
disposta a dormir profundamente. Seu intento, porém custou um pouco
a se realizar, uma vez que ficou durante muito tempo ruminando as
sensações que a proximidade de Angélica lhe causavam. Resolveu
deixar de lado suas “pirações”, como costumava dizer. Deixaria as
coisas acontecerem a seu tempo e conforme o acaso lhe reservasse.
Deu-se conta que nas últimas horas o que mais havia feito era deixar-
se levar pela canoa do destino. Enfim adormeceu.

Em seu quarto Angélica também tentava conciliar o sono, com os


pensamentos girando a milhares de rotações por minuto. De repente
Angélica ouviu um som seco, como o de uma pedra jogada ao encontro
de sua janela. Apurou o ouvido e depois de alguns segundos novamente
o mesmo ruído. Saltou da cama e jogou um casaco grosso por cima de
seu pijama. Sem fazer qualquer ruído entreabriu a janela e avistou
somente a escuridão absoluta. Em silêncio esgueirou-se até a porta da
frente e espiou para fora. Percebeu um vulto disforme e familiar
escondido nas sombras da mata. Respirou fundo e saiu na direção do
breu, desaparecendo encoberta pela escuridão da noite.

Parte 2

A sexta-feira amanheceu como havia sido a alvorada nos dias


anteriores: taciturna e chuvosa. Cristine acordou cedo, por volta de oito
horas. Desta vez despertou totalmente consciente de onde estava. O
som da água da chuva escorrendo pelo telhado e batendo no chão
úmido aliado ao uivo do vento que soprava entre as montanhas e copas
das árvores convidava a permanecer mais um tempo sob as cobertas
quentes e aconchegantes, porém Cristine não se intimidou. Jogou o
edredom para o lado e calçou um par de pantufas de lã, que a
governanta havia gentilmente providenciado para amenizar a sensação
de frio nos pés. Cristine repetiu o gesto do dia anterior abrindo a janela
e espiando para fora. Novamente divisou a paisagem dos fundos da
propriedade e bem ao longe o cemitério. Era como se os anjos
guardiões da tumba de sua família atraíssem o olhar de Cristine.
Aguçou a vista e lhe pareceu observar alguma movimentação junto ao
túmulo. Deveria ser o coveiro cuidando de seus afazeres na
manutenção dos túmulos, atividade esta que para a maior parte das

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pessoas seria uma tarefa execrável e nefasta. Para Guilherme, no
entanto, era um trabalho como outro qualquer. Cuidava daquele
campo-santo desde que tinha vinte anos, e agora beirando os sessenta,
costumava dizer em tom de brincadeira que tinha a vantagem de ter
um serviço onde ninguém o incomodava e nem tagarelava aos seus
ouvidos. Para esta função bastava sua esposa em casa, emendava rindo
da própria piada.

Cristine vestiu-se e desceu a escadaria rumo ao andar térreo do castelo.


A mesa posta para o café a aguardava. Como que possuidor de uma
bola de cristal que o informasse dos passos de todos os que o
rodeavam, Morris se encontrava de prontidão junto à mesa. Anemary
encontrava-se postada do outro lado e Adelaide empunhava uma
bandeja com café e leite quente, pronta para servi-la. Eles pareciam ter
adivinhado que estava descendo. Nem bem havia entrado na sala de
refeições Morris disse solenemente:

- Bom dia, senhorita.


- Bom dia Morris.

As mulheres também a cumprimentaram. A loirinha percebeu que


estava sozinha ali, não havia nem sinal de James, Valesca, João Vítor e
nem tão pouco de Angélica. Sabia que Dr. Mendes só viria à noite.

O mordomo apressou-se em puxar a cadeira para Cristine, que lhe


sorriu e passou direto, caminhando na direção da cozinha.
- Vou tomar café na cozinha – disse Cristine em tom amigável.

Tal atitude deixou Morris tal qual uma estátua de gesso. Pálido e teso
não moveu um músculo sequer do rosto. Simplesmente recolocou a
cadeira em seu lugar e voltou à sua costumeira posição de sentido.
Anemary não disfarçou o ar de desaprovação. Adelaide apressou-se em
seguir Cristine, empunhando a bandeja de prata polida.

Ao entrar na cozinha Cristine cumprimentou Regina, que sentada num


canto descascava algumas cebolas. Estava com os olhos vermelhos e
marejados por conta da acidez dos tubérculos.

- Estou para ver cebolas mais fortes que estas... – comentou passando
o avental nos olhos.
- Quase que dá para sentir daqui. – respondeu Cristine.
- Mas então vai lá pra sala, vai, - disse Regina – estão esperando para
servir o teu café, menina.
- Eu vou tomar café aqui na cozinha. Gosto mais.

Regina deu um sorriso e depositou a bacia com as cebolas na pia,


deixando-as em água corrente. Passou limão nas mãos para tirar o

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cheiro e lavou-as em seguida com sabão líquido. Enquanto isso Adelaide
corria para trazer a louça francesa da mesa para a cozinha.

- Não te estressa Adelaide, eu vou tomar café nessa caneca aqui


mesmo – disse Cristine enquanto pegava uma caneca de louça do
suporte de madeira em cima da mesa central. Logo em seguida tratou
de sentar-se e deixou Adelaide servir-lhe o café, enquanto Anemary a
observava desencantada com sua postura pouco aristocrática. “Tão
diferente do tio”, pensava a governanta.

Com um tom de voz tentando deixar transparecer indiferença Cristine


perguntou:

- E Angélica? Já acordou?
- Já. Acordou e saiu muito cedo. – respondeu Regina.
- Ah... – anuiu Cristine com ar de quem não havia ficado satisfeita com
a resposta.
- E não tenho nem idéia pra onde aquela menina foi... – continuou
Regina.

Era engraçado ouvir Regina referindo-se à filha como “aquela menina”.


Angélica tinha trinta e três anos, porém Regina se referia a ela como se
ainda fosse uma garotinha. Fazia a mesma coisa com Ariel, guardadas
as devidas proporções. Cristine sentiu uma ponta de melancolia,
lembrou-se de sua mãe, aliás, do pouco que conseguia se recordar dela.
Havia perdido a conta das vezes em que desejara ter a mãe presente
em sua vida, cúmplice em suas traquinagens, compreensiva em suas
dúvidas e angústias nos tempos de adolescente. Suspirou.

- O que foi minha filha? – perguntou Regina ao perceber o ar tristonho


de Cristine.
- Nada... Lembranças do passado... Nada de importante.

Regina a encarou ternamente.

- Queres um pedaço de bolo de laranja? – disse afetuosamente.


- Quero!

Conversaram ainda durante algum tempo até que Regina pediu licença
para ir até a despensa pegar alguns mantimentos para o almoço.
Cristine resolveu dar uma bisbilhotada no castelo. Como que por
encanto Anemary e Morris desapareceram de sua vista. Às vezes era
como se simplesmente evaporassem, reaparecendo quando menos se
esperava. Morris tinha passos de felino, dos quais não se conseguia
ouvir a aproximação. Anemary também conseguia ser muito discreta, e
Cristine não saberia dizer como conseguia abafar o barulho do salto de
seus sapatos. Cristine chegou a conjeturar a hipótese dos dois terem

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um caso amoroso, afinal desapareciam e ressurgiam como que num
passe de mágica! Poderiam encontrar-se furtivamente nos corredores
sombrios, esvair-se em atos libidinosos e logo em seguida reaparecer
como se nada tivesse acontecido. Cristine foi obrigada a rir do próprio
pensamento e da cena que imaginara. Não. Com certeza não seria
possível a ambos deixarem-se levar pelos prazeres mundanos, pelo
menos os dois juntos, seria talvez um caso de amor platônico, para não
amarrotar os uniformes e despentear o coque da governanta.

Também não havia sinais de James, Valesca e seu “Adônis”. Estava


momentaneamente abandonada por todos.

Sentiu falta de Angélica. Queria ouvi-la chegar e escutar sua voz.


Queria sentir seu perfume e o toque de suas mãos. Deu-se conta que
queria aquela mulher. Mais que isso, percebeu que há dois dias nem
sequer pensava em Mariana e isso lhe fez um bem enorme, levantando
sua auto-estima. Mariana conseguia fazer com que sempre ficasse
esperando por ela, tinha se deixado transformar numa “refém
emocional”. E o pior é que já havia se dado conta disso em suas
sessões de análise, mas ainda não conseguira efetivamente transformar
aquela relação e o seu sentimento. E como que por encanto Angélica
conseguira lhe despertar a consciência de sentir-se observada e
desejada. E isso estava lhe fazendo um bem enorme, apesar de todo o
estresse que foram os últimos dois dias em sua vida.

Cristine caminhou vagarosamente pelos longos corredores do castelo,


observando as portas que se enfileiravam em ambos os lados. Como
que “tirando a sorte” num jogo ia abrindo algumas, aleatoriamente. Em
sua maioria eram quartos. Acomodações amplas e com móveis
obedecendo a um mesmo estilo clássico, cuja madeira escura conferia
um ar de austeridade a todo aquele local. Com a calefação funcionando
podia se dar ao luxo de andar sem encolher-se de frio. Subiu a
escadaria observando mais atentamente os detalhes do teto naquela
parte do castelo. Havia uma forração de madeira escura e envernizada
e detalhes de uma pintura descascada ornavam a meia-cana de fora a
fora. Uma barra retratando folhas de louro e punhais repetia-se em
toda a volta. Bem defronte ao topo da escada havia uma tapeçaria
gigantesca, com cerca de três metros de largura por cinco de altura
retratando um brasão, que Cristine imaginou ser o de sua família. Em
cores desgastadas pelo tempo podiam-se ver os fios dourados e
prateados que circulavam os contornos das armas do brasão.

Já no segundo piso Cristine continuou a vasculhar curiosamente. Uma


das portas chamou sua atenção. Era um pouco diferente das demais.
Embora de mesma dimensão e material, tinha uma maçaneta diferente
das demais. Enquanto as outras eram longitudinais aquela era esférica

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e dourada. Apresentava um relevo ao redor que facilitava o contato,
impedindo que as mãos resvalassem com a umidade natural da pele.

Cristine teve o pressentimento de que aquele era o quarto de seu tio.


Olhou para ambos os lados e certificou-se de que continuava sozinha.
Sentiria-se constrangida caso fosse surpreendida naquela incursão
exploratória não autorizada. Vagarosamente levou a mão ao metal
reluzente e girou a maçaneta no sentido anti-horário. A fechadura girou
com um suave ranger que fez Cristine sobressaltar-se e olhar
novamente ao seu redor. A porta descerrou-se para a esquerda e
Cristine adentrou lentamente naquele recinto. A penumbra reinava
absoluta naquele lugar e Cristine pôde divisar a claridade do contorno
da janela bem à frente da porta, na outra extremidade do quarto, mais
para a sua direita. Fechou cuidadosamente a porta atrás de si e, envolta
pelas sombras, rumou na direção da cortina de veludo ocre que impedia
a luz do dia de entrar pelas vidraças embaçadas. Com movimentos
lentos puxou a cortina para o lado, deixando o aposento ser invadido
pela claridade natural do dia. Bem no meio havia uma cama imensa,
cuja colcha de seda na mesma tonalidade da cortina ostentava bordado
em seu centro o mesmo brasão da tapeçaria da escada. Cristine teve a
certeza de que aquele era o quarto de seu tio.

Na delegacia de Doze Colinas o delegado Munhoz coçava o queixo,


pensativo. Aguardava um fax da capital. Montando guarda ao lado do
aparelho não esperou o segundo toque para levantar o fone do gancho
e ouvir uma voz feminina dizer com gentileza:
- Fax para o delegado Munhoz, poderia me dar o sinal, por favor?
Instantaneamente o delegado apertou o botão de “receber” e recolocou
o fone no gancho. Apenas uma folha foi sendo expelida aos poucos,
sendo destacada avidamente assim que o sinal do término do envio
soou com agudez. Munhoz leu atentamente o conteúdo daquele
documento e secou o suor de sua testa com um lenço amarelado.
Deixou-se cair em sua cadeira macia e pegou o telefone:
- Alô, Adroaldo? Munhoz. Preciso que venhas até aqui. Agora.

Cristine continuava sua incursão secreta pelo quarto do tio. De modo


geral lhe parecia um quarto normal. Apresentava um ar austero e
masculino, sendo que um odor de perfume de pinho achava-se
entranhado no ambiente. Não conteve sua curiosidade e abriu as portas
do guarda roupas do falecido tio. A organização do interior do móvel
chegou a lhe causar certo constrangimento, principalmente ao
compará-lo com o seu próprio armário e ao lembrar-se de como
precisava se esquivar dos desmoronamentos de pilhas de roupas que
vinham abaixo cada vez que abria as portas rapidamente. Os ternos
estavam alinhados por cores e os pulôveres de lã impecavelmente
dispostos em pilhas simétricas. As camisas também pendiam
enfileiradas por tonalidades e comprimento de mangas. Até mesmo as

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meias e as cuecas repousavam alinhadas dentro das gavetas, dispostas
por cores. Esta organização com certeza deveria ser obra de Anemary,
no entanto o seu tio parecia que colaborava na manutenção da mesma.

Havia uma porta lateral que dava para um banheiro amplo. A mesma
organização do quarto se repetia no banheiro. As loções pós-barba, os
perfumes e os desodorantes masculinos se encontravam dispostos
simetricamente no balcão da pia, em frente a um enorme espelho
retangular.

Todo aquele lugar dava a impressão de esperar o dono adentrar a


qualquer momento. Cristine suspirou ao lembrar que o tio jamais
entraria ali.

De volta ao quarto pôde observar que a espessa cortina escondia algo


mais do que simplesmente as vidraças da janela. Uma porta trancada à
chave escondia sabe-se lá o quê, numa peça que parecia não ser muito
visitada. Cristine instintivamente começou a procurar uma chave que
pudesse descerrar aquela passagem. Olhou em volta e imaginou que o
melhor lugar para se esconder uma chave seria num fundo falso de
gaveta, ou entre as meias. Mas pensou melhor e resolveu procurar num
lugar mais óbvio. Abriu a gaveta do criado-mudo e o que encontrou foi
uma pequena caixa de madeira. Retirou a caixa e abriu a tampa
cuidadosamente. Dentro havia abotoaduras douradas, um relógio
também de ouro, uma corrente de prata com um pingente em forma de
flor de lis e, bingo, uma chave antiga que Cristine sabia de antemão em
qual fechadura se encaixaria.

Pegou a chave e foi até a porta atrás da cortina. Introduziu a chave e


girou-a trezentos e sessenta graus. Ouviu o estalar metálico da lingueta
da fechadura liberando o acesso ao quarto contíguo.

Cristine sentiu seu coração se acelerar dentro do peito. Deu um passo à


frente e sentiu um odor de mofo, de coisas velhas, de poeira. O
aposento estava escuro e Cristine precisou de alguns minutos até sua
vista se adaptar à penumbra. Tateou os lados da porta até localizar um
interruptor de luz. Ao acendê-lo pôde enfim visualizar o que aquela
peça escondia. Espantou-se ao constatar que ali havia um atelier de
pintura. Várias telas encontravam-se escoradas numa das paredes,
algumas com trabalhos inacabados, algumas concluídas e outras tantas
ainda virgens. As prateleiras laterais estavam tomadas por latas de
tinta, solventes e bisnagas coloridas, além de flanelas e pedaços de
tecidos usados para a limpeza dos pincéis. Também havia inúmeras
espátulas, pedaços de ripas de madeira, pincéis, lápis, aquarelas e tudo
o mais que se podia imaginar para dar vida e cor àquelas telas. Aquele
atelier em nada lembrava o quarto do tio. Tudo se encontrava disposto
aleatoriamente. As bisnagas coloridas se misturavam aos potes e

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pincéis como que numa dança pictórica. Nada se encontrava alinhado,
nem tão pouco obedecia a uma lógica simétrica. Tudo ali era improviso
e sentimento. “O outro lado do tio Artur”, pensou Cristine, “e por certo
o mais encantador”.

Sua atenção voltou-se para o centro do aposento, onde um cavalete de


madeira rústica suportava uma tela coberta por um tecido que caía até
o chão. Cristine puxou o pano e descobriu a tela. Era o retrato do que
Cristine julgou ser uma camponesa, sentada num tronco de árvore, com
um pomar de pessegueiros floridos ao fundo. A jovem mulher segurava
um ramalhete de lírios. O que deixou Cristine intrigada era que seu
rosto estava disforme, como um borrão. Era como se o autor houvesse
tentado modificar os traços da jovem e para tal tivesse que apagar o
original. No lugar do rosto havia apenas uma mancha indistinta. Os
cabelos da mulher eram longos, lisos e loiros, e esvoaçavam com a
brisa. A pele era alva como a neve. As mãos eram delicadas e os dedos
longos tinham um único adorno na mão direita: uma aliança de
noivado. Por algum motivo que desconhecia aquela figura lhe parecia
familiar.

Ainda observando seu redor Cristine percebeu mais uma porta que dava
acesso a outra peça. Esta, porém, mais baixa que as demais, mais
estreita também. Parecia mais um alçapão vertical do que uma porta. A
loirinha aproximou-se com curiosidade. Desta feita a chave jazia
pendurada num prego enferrujado cravado no centro da estrutura de
madeira. Era uma chave antiga com um símbolo de um pentagrama
esculpido em sua extremidade. Pendurada, a chave deixava à mostra o
pentagrama invertido. Cristine não gostou do que viu. Conhecia alguma
coisa de magia e sabia que o pentagrama invertido era associado à
magia negra. Um calafrio percorreu-lhe a coluna. No entanto, movida
pela curiosidade em conhecer a fundo o seu falecido tio, Cristine pegou
a chave, mesmo que relutante, e descerrou aquela pequena porta de
acesso. Instantaneamente um odor fétido e forte chegou-lhe às narinas,
o qual a jovem não saberia conceituar. Recuou um pouco, inspirando
profundamente para em seguida trancar a respiração e adentrar no
breu. Procurou um interruptor de luz na escuridão daquele covil e ao
encontrá-lo foi acometida por um sobressalto. A luz amarelada de uma
lâmpada escurecida pelo pó mostrou à Cristine uma verdadeira cena de
horror a qual a jovem observou por poucos segundos antes de sair
correndo daquele lugar. Alguns ganchos de metal pendiam do forro e
das paredes de pedra irregular, num cenário que lembrava um açougue
insalubre. Uma mesa central ostentava carcaças ouriçadas de animais
que pareciam querer saltar sobre quem se atrevesse a entrar ali. Os
olhos das pequenas feras pareciam vivos pelo efeito da luz, porém o
negrume da morte estava estampado na rigidez facial daqueles seres
que certamente pertenciam a outro mundo. Algumas lâminas, facas e
adagas encontravam-se espalhadas no tampo de madeira. Cristine

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abafou um grito de desespero e saltou dali o mais rápido que pôde.
Fechou a porta atrás de si, trancando-a com a chave de metal.
Depositou aquele símbolo nefasto no lugar onde estava e recuou
assustada. De repente o atelier onde estava assumiu um ar ameaçador
e Cristine sentiu o frio do medo percorrendo sua pele. Tratou de sair
dali e trancar a porta, recolocando a cortina a esconder aquela
passagem, que desejou não ter conhecido. Devolveu a chave à caixa de
madeira no criado-mudo e abriu a porta do quarto vagarosamente,
espiando o corredor antes de sair sorrateiramente e dirigir-se para seu
quarto.

Estava tão absorta em sair dali o quanto antes que nem percebeu o par
de olhos que a espiavam sorrateiramente pela fresta de uma das portas
daquele vasto corredor.

Ao fechar a porta atrás de si e visualizar a mobília familiar do seu


dormitório Cristine respirou fundo, aliviada. Seus batimentos cardíacos
estavam acelerados e suas pernas trêmulas pela descoberta inesperada
e sinistra.

Custava a crer no que vira. Três ambientes totalmente contraditórios,


fazendo parte da vida de uma mesma pessoa. Novamente Cristine
sentiu desconhecer o tio. Quando pensava conhecê-lo um pouco,
vislumbrando uma pessoa sensível, novas descobertas a levavam a crer
na existência de um homem dúbio e perverso, seguidor de sabe-se lá
qual doutrina. Cristine estava confusa, e assustada. Despiu-se e deixou-
se envolver por uma torrente de água morna e revigorante. Os jatos
direcionados com força pela torneira metálica pareciam tirar um peso
de cima dos ombros da jovem e davam a impressão de lavar as
recordações de minutos antes. Depois do banho Cristine sentiu-se um
pouco melhor.

Ficou em seu quarto até a hora em que uma voz familiar veio bater à
porta e chamá-la para o almoço: era Angélica.

Cristine saltou de sua cama e girou a chave na fechadura, destrancando


a porta do quarto. Havia fechado a porta à chave instintivamente e
Angélica percebeu o ruído metálico. Ao ver o rosto de Cristine sorriu-lhe
afetuosamente, percebendo, no entanto, pela expressão da jovem, que
algo havia acontecido.

- Oi. – disse Angélica – Tudo bem?


- Tudo. Tudo bem. – titubeou Cristine sem querer comentar com a
amiga o que havia acontecido. Não queria parecer enxerida, indiscreta
ou invasiva. Para ela entrar no quarto de alguém sem ser convidada era
algo muito desrespeitoso. Ainda mais naquela situação. Resolveu
guardar aquilo como seu segredo, pelo menos por enquanto.

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A resposta hesitante de Cristine não convenceu Angélica. A morena era
perspicaz e observadora. Sabia que algo não estava dentro dos
conformes, todavia achou melhor deixar que Cristine lhe contasse
quando tivesse vontade.

- E então? O que fizeste durante a manhã? – questionou Angélica.


- Nada. – respondeu Cristine de supetão. – Quer dizer... Quase nada.
Fiquei descansando aqui no quarto.
- Que bom. É ótimo quando se consegue relaxar um pouco...
- Pois é... Mas vamos descer?
- Vamos.

Almoçaram sem a presença do Dr. Mendes e de James. Somente


Valesca e João Vítor estavam à mesa com elas. Conversaram sobre
temas diversos. O tio Artur acabava sendo citado a cada novo assunto
que abordavam. Ao término da refeição Valesca pediu licença e foi para
seu quarto, seguida de seu deus grego. Angélica olhou a dupla se
afastando, balançou a cabeça e deu um sorrisinho amarelo.

- Você tem certa restrição à presença de Valesca aqui, não é mesmo? –


disse Cristine.
- Mais ou menos...
- Você não gosta dela?
- Não gosto e nem desgosto. Ela é indiferente. Já te falei o que eu acho.
- Mas então qual o motivo do desconforto?
- É que acho muito desagradável essa mulher vir com o amante dela. O
padrinho nem esfriou no túmulo e ela já veio se instalar aqui, e
acompanhada. Acho falta de respeito com a memória dele.
- Mas Valesca garante que João Vítor é seu irmão... – argumentou
Cristine.
- Sim... E eu acredito em Papai Noel... – disse Angélica.
- É... Acho que você tem razão... Mas ao menos ela tem ficado na dela,
e prometeu ir embora depois da abertura do testamento.
- Ao menos isso. Mas a presença dela não chega a me perturbar não...
- Que bom. Alguns sentimentos são piores para quem sente, do que
para quem é alvo... – conjeturou a loirinha.
- Com certeza – concordou Angélica – E se o padrinho não se importava
com essa situação quem sou eu para me importar...

Cristine assentiu com um gesto de cabeça. Mudando de assunto disse:


- Eu precisaria usar a internet...
- Podes usar o computador do escritório, vem que eu te acompanho. –
respondeu Angélica.

Defronte ao monitor de tela plana o Windows abria-se com uma


velocidade abaixo do que Cristine estava acostumada a utilizar.

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- É meio lenta essa encrenca! – sorriu Angélica. – Eu vivia dizendo pro
padrinho comprar um equipamento melhor, mas ele dizia que este
estava bom para o que ele queria...
- Não deixa de ser coerente... – riu-se Cristine.

Ao tentar uma conexão Cristine percebeu que o programa não


respondia. Angélica testou o aparelho telefônico do recinto e funcionava
perfeitamente.
- Deve ter queimado o modem – disse Angélica – Nos últimos dias
houve muitas descargas de raios. Mas vamos fazer o seguinte: vamos
até lá em casa. O meu PC ta conectando legal.
- Se não for te causar nenhum incômodo... – disse Cristine.
- Incômodo algum... – respondeu Angélica fitando-a nos olhos – Muito
pelo contrário, poderá me causar prazer...

Novamente Cristine sentiu as faces coradas, porém sustentou o olhar e


respondeu com um sorriso maroto:

- E isso é bom?...
- Ôôô... Muito...

Cristine se virou e seguiu para a porta dos fundos do castelo, seguida


por Angélica que observava o gingado de seu caminhar. Sentindo-se
perscrutada Cristine tratou de valorizar cada passada, acentuando o
movimento dos quadris, numa atitude provocativa velada. Em seu
íntimo estava gostando daquilo.

Rumaram lado a lado na direção da casa de Angélica. Desta feita não


estavam sob a proteção do vasto guarda-chuva que as havia deixado
tão próximas em ocasião anterior. Não chovia, porém o tempo
permanecia pesado e nebuloso. Um vento cortante impelido em fortes
rajadas desgrenhava os cabelos das mulheres. Cristine, precavida,
havia colocado um gorro de lã vermelho, o qual enterrava na cabeça
cada vez que o vendaval fustigava seu rosto. Uma manta também de lã
auxiliava a manter aquecido seu pescoço. Não havia o menor indicativo
de que fosse parar de chover por aqueles dias. Instintivamente Cristine
percebeu-se olhando desconfiada para a vegetação cerrada onde havia
visto um vulto suspeito no dia anterior. Angélica notou seu gesto,
todavia fingiu não perceber.

Na cabeça de Cristine fervilhavam as imagens mais recentes que


registrara. Uma sensação de medo a invadiu novamente. Olhava a
figura esbelta que caminhava a seu lado e lhe transmitia serenidade e
segurança. Imaginava se Angélica conhecia ou não aquele verdadeiro
“quarto dos horrores”. Mais ainda, conjeturava se a morena tinha
conhecimento da finalidade daquele lugar. Até onde será que conhecia
verdadeiramente o “padrinho”, como costumava referir-se ao seu tio?

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Parecia admirá-lo muito para conceber a idéia de um Artur nefasto, cujo
lado negro escondia-se atrás das cortinas de um inofensivo atelier de
pintura. Ou quem sabe a Angélica que lhe acompanhava não era essa
pessoa que se apresentava? Quem sabe não só tinha conhecimento
como participava sabe-se lá do quê naquele covil imundo e insalubre,
que parecia a entrada do submundo, mais ainda, parecia o próprio
antro das trevas? Dúvidas, incertezas, perguntas sem respostas...
Enquanto não descobrisse a verdade sobre aquele lugar seria melhor
manter-se em um prudente silêncio. Com estas incertezas turvando-lhe
os pensamentos continuava sua marcha ao lado de Angélica. Tratou de
desviar os pensamentos para evitar que Angélica percebesse sua
expressão de aflição. Mas já era tarde. A morena já percebera que algo
estava correndo fora do normal, e o que era pior, alheio a seus planos
e, por conseguinte fora de seu controle. Esforçou-se para manter a
calma. Puxou conversa sobre o mais comum dos assuntos: o tempo.

- E a chuva parece que não quer dar tréguas...


- É... – respondeu Cristine olhando para cima, para as pesadas nuvens
que pareciam querer desabar sobre o mundo impiedosamente. Na
verdade era assim que Cristine estava se sentindo naquele exato
momento: desprotegida e ameaçada por sabe-se lá o quê.

Angélica continuou discursando sobre a chuva, tentando distrair a sua


acompanhante, que lhe parecia tensa e ansiosa:

- O que me consola é que já estamos em meados de agosto, e no mês


que vem já é primavera. Aí tu precisa ver o que é uma bela paisagem.
As montanhas aqui parecem que criam vida própria. Vais gostar.
- Espero... – respondeu Cristine sem muita convicção na voz.
- Bom, já estamos chegando. – falou Angélica.

Para surpresa de Cristine elas não entraram na casa onde haviam


estado no dia anterior. Após passarem pelo portão da frente Angélica
desviou da casa de madeira azul e conduziu Cristine para os fundos
daquele terreno, utilizando uma entrada lateral e independente. Cerca
de trinta metros adiante havia outra construção, também de madeira,
porém uma cabana.

- Por aqui, senhorita. – brincou Angélica apontando a porta da frente


para Cristine.
- Esta casa é tua? – perguntou Cristine, já mais animada e menos
tensa.
- É. – respondeu a morena com um sorriso no canto dos lábios.

O sorriso de Angélica tinha o poder de devolver à Cristine a confiança.


Era como se a morena irradiasse uma aura luminosa ao sorrir e ao fixar
seus olhos da cor do céu de verão. Instantaneamente, ao ser conduzida

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para dentro daquela casa, era como se qualquer angústia e medo se
dissipasse. Respirou profundamente, aliviada.

Cristine olhou ao redor enquanto adentrava na casa. O andar térreo era


uma peça ampla, dividida em sala e cozinha, além de um pequeno
lavabo. Uma lareira de pedra chamou a atenção de Cristine,
ostentando, estendido à sua frente, um espesso pelego de lã em cor
natural. Aquele recanto como que convidava a sentar em boa
companhia...

Cristine tirou seu cachecol e seu gorro enquanto observava cada


detalhe com atenção. Aquela casa tinha a cara de Angélica. Era simples,
porém deixava transparecer um bom gosto indescritível em cada
detalhe da decoração. Tudo ali era claro e iluminado. A escuridão
parecia não conseguir penetrar naquele ambiente. E isso agradou
Cristine.

- Vamos subir? O computador ta lá em cima. – disse Angélica.

Subindo a escada de madeira descortinava-se um amplo e único


aposento, tendo apenas uma divisória onde havia um banheiro bem
maior do que o do andar térreo. Uma sacada frontal dava uma visão de
parte da mata nativa ao redor, além de se poder visualizar os detalhes
da casa dos pais de Angélica e parte do vale.

- Que casa bonita. – comentou Cristine.


- Obrigada. Mas é muito simples...
- Mas é linda.
- Digna de uma linda visitante... – disse Angélica provocativa.

Cristine sorriu. Angélica dirigiu-se a um móvel de canto ligando seu


computador.

- Pronto. Ao seu dispor. – disse Angélica cedendo lugar para Cristine.

A loirinha sentou-se e pôs-se a digitar. Fez o que precisava em menos


de trinta minutos, enquanto a morena a aguardava sentada na sacada
do quarto. Apesar do frio, Angélica gostava daquele canto. Costumava
deitar-se numa rede que estendia em ganchos de metal fixados nos
pilares da estrutura de madeira. Devido à chuva, no entanto, optou por
simplesmente sentar-se na armação de madeira que servia de limite da
sacada. Montada na madeira grossa dirigia olhares de viés à mocinha
que usava seu computador concentradamente.

Ao terminar seu trabalho Cristine foi se juntar à Angélica na sacada.


Arrastou um banquinho de madeira e sentou ao lado da morena,
olhando-a de baixo para cima.

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- Eu estou encantada com esta cabana... – disse Cristine.

Angélica limitou-se a sorrir. Cristine continuou:


- Faz tempo que você mora aqui?
- Uns oito anos.
- Mas foi você que construiu este lugar?
- Obviamente que não. Foram os pedreiros.
- Engraçadinha... – riu-se Cristine – Você entendeu a pergunta!
- Foi. Tem uma hora em que se precisa de um pouco de privacidade.
- Para???
- Trazer quem bem se entende para casa. – disse Angélica sem
meandros.

Apesar de ter provocado, Cristine não esperava uma resposta tão


direta. De fato esta era uma das virtudes de Angélica, ou defeito: não
fazia rodeios. Cristine desconversou:
- Você disse que está de férias?
- Estava.
- Estava? E agora?
- To tirando uns dias de licença... De saúde.
- Você não ta bem?
- To. Quero dizer, mais ou menos.
- O que é que você tem? – questionou Cristine demonstrando
preocupação.
- Nada sério... Estresse.
- Aãh... Mas isso é mais comum do que se pensa. Eu mesma já tive
várias crises de estresse. É próprio dos dias atuais.
- Pois é... Mas, e aí? Conseguiste ver o que querias? – desconversou
Angélica.
- Consegui. Muito obrigada por ter me emprestado teu computador.
- Não há de quê! – sorriu Angélica encantadoramente. – Tu queres um
café? Ou um chocolate quente?
- Quero.

Angélica saltou de seu poleiro e Cristine levantou de seu banquinho.


Desceram a escadaria de madeira e Angélica colocou leite para ferver.
Haviam decidido tomar um chocolate quente.

- Como faz frio aqui nesta terra! – disse Cristine esfregando as mãos.
- A gente acaba acostumando e nem sente tanto assim. Na verdade
hoje a sensação térmica está mais baixa por causa do vento.
- Pode ser... – concordou Cristine – Será que o Dr. Mendes chega cedo
hoje?
- Não sei... Conforme o movimento do escritório.
- E o James? Onde será que se meteu? Eu não o vi o dia todo... – disse
Cristine.
- Não faço a mínima idéia – respondeu Angélica secamente.

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- Vocês realmente não se fecham, não é mesmo?
- Não. É como eu já te contei. Coisas de infância.
- Mas vocês poderiam ter superado isso, não?
- Poderíamos. Mas não superamos. Digamos que deva ser uma antipatia
inata.

Cristine teve que sorrir.


- Ta rindo do quê? – quis saber Angélica.
- Dessa situação.
- E posso saber por quê???
- Angélica, vocês já são adultos... É estranho que adultos não consigam
resolver picuinhas de infância.
- Pode até ser, mas realmente eu não consigo me dar bem com o
James. E ele também não se esforça... Acho que vamos passar a vida
toda assim. Mas o bom é que a gente se cruza pouco. Ele estava
sempre na sombra do padrinho. Agora não sei o que vai fazer...
- Ele parece estar bem perdido... – disse Cristine.
- Parece... Mas ele sabe se virar. – disse Angélica num tom de voz que
dava por encerrado o assunto James. – O chocolate ta pronto!
- Oba! O cheirinho ta maravilhoso! – disse Cristine.

Angélica serviu a bebida fervente em cuja mistura havia colocado, além


de outras coisas, canela em pó e estendeu uma das canecas
fumegantes para Cristine. Ao pegar a louça com ambas as mãos
Cristine acabou envolvendo os dedos de Angélica com os seus. Os olhos
se cruzaram e permaneceram unidos numa mágica atração. As mãos
foram baixando, ainda se tocando, enquanto a caneca era depositada
suavemente na mesa de fórmica amarelada. Sentindo um calor
repentino Cristine permitiu que Angélica se aproximasse dela. Sentiu a
respiração ofegante da morena aproximando-se de seu rosto.
Entreabriu os lábios na intenção de receber a boca de Angélica de
encontro à sua. Chegou a imaginar a maciez do contato daquela língua
e o pulsar daqueles lábios nos seus. Porém no momento em que as
bocas estavam prestes a se entregar num ósculo desejado por ambas
ouviram passadas na área da frente e o barulho de alguém abrindo a
porta, sem cerimônias. Separaram-se num sobressalto.

- Ã-rããã... Achei vocês! – disse Ariel ostentando um sorriso de orelha a


orelha e tendo sua pasta com material escolar debaixo do braço.
- Ora, ora, se não é o meu aluno favorito! – brincou Cristine.

Angélica sorriu amarelo para o irmão, mal conseguindo disfarçar a


expressão de frustração.

- Eu vi quando vocês passaram para cá, mas tava num plá com uma
mina no telefone...
- Imagino... – disse Angélica.

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- Bom, aí terminei o meu léro com ela e pensei: estudo ou não estudo?
– continuou Ariel.
- Acho que a pergunta é: “perturbo ou não perturbo a Cristine”? –
emendou Angélica.
- Começou a implicância, viu?... Se eu não estudo sou rebelde, se
resolvo estudar sou “perturbante”... Vai entender as irmãs mais
velhas!!! – disse Ariel.

Cristine gargalhou.
- Deixa ela – disse a loirinha – Vamos dar uma pegada na matéria sim!
- Quer um chocolate, ô cabeça de vento? – perguntou Angélica.
- Demorou pra oferecer, ein??? – provocou Ariel.
- Olha garoto...

Os três sorriram enquanto Angélica servia o irmão e alcançava sua


caneca de chocolate, enquanto o envolvia num abraço e sapecava-lhe
um sonoro beijo na bochecha. Os três sorveram a bebida fumegante e,
talvez pelo efeito da canela em pó, os rostos assumiram uma coloração
avermelhada, onde as bochechas pareciam ostentar plastas de rouge.
As duas mulheres sentiram um calor diferente, e cada vez que os olhos
se encontravam um fogo interno parecia reacender a cor das faces.
Cristine colocou a culpa na bebida, já Angélica pensava no quê aquela
criaturinha conseguia fazer com ela...

Ariel abriu sua pasta e espalhou seu material sem cerimônias sobre a
mesa da cozinha. Cristine estudou com ele por quase três horas.
Eventualmente a loirinha percebia os olhares de Angélica para ela e
mais de uma vez surpreendeu-a lançando-lhe um disfarçado sorriso
sedutor.

Quando a “professora” por fim demonstrou sinais de cansaço, Angélica


a acompanhou até o castelo. Ariel ficou em casa, embora tenha se
convidado para ir junto:

- Posso ir jantar com vocês?


- Te toca guri! – respondeu Angélica – Tu já encheste o saco da Cristine
o suficiente hoje...
- Mas eu não quero mais estudar, só conversar mesmo!
- Já falei que não. Cristine tem assuntos sérios para tratar com o Dr.
Mendes. – respondeu Angélica categoricamente.

Ariel deu de ombros e despediu-se delas:


- Ta bom então... Tchauzinho, Cristine... E até amanhã.
- Até. – respondeu Cristine afagando a cabeleira loira de Ariel.
- Não dá muita confiança pra esse guri, senão ele não te deixa mais em
paz! – disse Angélica.
- Tudo bem, ele é um amor...

73
- Mas chato. E convenhamos... Inoportuno – disse a morena à meia
voz.

Cristine baixou os olhos e sorriu. No trajeto não comentaram


absolutamente mais nada sobre o quase beijo.

Quando chegaram ao castelo Dr. Mendes já estava lá. Jantaram na


companhia de Valesca e João Vítor. James continuou sem aparecer.
Cristine, durante o jantar, perguntou por ele:
- Morris, você sabe onde está James?
- Em seus aposentos, senhorita. Sr. James esteve indisposto durante o
dia e pediu que levássemos seu jantar no quarto. Pede desculpas por
não estar acompanhando a senhorita.
- Tudo bem, eu só fiquei preocupada com ele... – disse Cristine.
- Cristine, nós vamos proceder a abertura do testamento na quarta-
feira, dia vinte, as quatorze horas. – disse Dr. Mendes.

Cristine suspirou.
- Tudo bem.
- Não vejo a hora! – interpelou Valesca – O meu querido Artur por certo
se lembrou de mim...

Dr. Mendes e Angélica simplesmente ignoraram o comentário. Cristine


achou por bem também não estender aquele assunto. Dr. Mendes
tratou de mudar o rumo da prosa.

- Amanhã já é sábado... – disse o advogado – o tempo parece


realmente voar...
- Pois é... – concordou Cristine.
- Amanhã se tu quiseres eu te levo pra conhecer a estufa – disse
Angélica – É um lugar muito bonito.
- É mesmo. – concordou Dr. Mendes.
- Eu adoraria. – respondeu Cristine.
- Então, está combinado. – disse a morena.
- Combinadíssimo.

Depois do jantar Angélica despediu-se do grupo e foi para sua casa,


recordando a sensação que a proximidade com a boca de Cristine lhe
causara. No entanto, uma ruga de preocupação lhe surgiu na testa, e
não era por causa da atração que sentira...

Em seu quarto Cristine rememorava sua expedição matinal. Causava-


lhe mal estar saber que ali bem perto havia um aposento macabro que
jazia nas sombras daquele castelo. Ao dirigir-se ao seu dormitório deu
graças aos céus por Adelaide tê-la acompanhado portando toalhas
limpas para trocar, uma vez que não o havia feito no turno da manhã. A
arrumadeira esteve fora a manhã toda, alegando estar acompanhando

74
seu pai num exame médico. Cristine chegou a cogitar a possibilidade de
pedir que Angélica subisse com ela, mas achou prudente não fazê-lo,
tanto para evitar especulações por parte da morena quanto para não
demonstrar quão intensamente tinha reagido à aproximação desta. De
modo que suspirou aliviada ao ver que Adelaide a acompanhava. O que
menos tinha vontade naquele momento era circular à noite sozinha
naqueles corredores.

Antes de entrar em seu quarto Cristine não conseguiu deixar de lançar


um olhar amedrontado para a porta do quarto de seu tio, que ficava no
final do corredor, Oxalá bem depois do dela. Logo após a arrumadeira
retirar-se Cristine chaveou a porta. Por via das dúvidas encostou uma
cadeira pelo lado de dentro, escorando-a logo abaixo da maçaneta. Isso
evitaria qualquer tentativa de entrarem em seu quarto. Sentou-se na
cama e percebeu-se com medo. Respirou fundo e tentou racionalizar.
“O que é isso Tine?”, pensou, “Não viaja... Ta com medo do quê afinal?
De fantasmas? Assombrações? Isso não existe! E o que quer que
existisse naquele quarto morreu com o tio Artur”. Cristine levantou-se e
retirou a cadeira que havia colocado junto à porta. Um pouco mais
tranquila tomou um banho e aconchegou-se sob as cobertas quentes.
Antes de pegar no sono, instintivamente, puxou as cobertas tapando
sua cabeça. Sempre repetia aquele gesto quando sentia medo, desde a
infância, nas inúmeras noites mal dormidas nos orfanatos onde viveu.
Quase entregue aos braços de Morfeu se lembrou da boca de Angélica e
adormeceu com um sorriso nos lábios.

*******

No sábado pela manhã Cristine encontrou Dr. Mendes instalado na


mesa das refeições tomando seu café da manhã. James estava com ele
e conversavam sobre negócios. Cristine inteirou-se das atividades da
família e teve uma breve noção do que a aguardaria, conforme o que
estivesse estipulado no testamento do tio. Artur tinha uma firma de
importação de produtos eletrônicos, peças e componentes. Quem
estava administrando tudo naqueles dias era James. O rapaz parecia
abatido, pálido e com olheiras.

- Você está melhor, James? – perguntou Cristine.


- Estou. Foi só uma indisposição. Mas já me sinto bem. Desculpe-me
não tê-la acompanhado nas refeições ontem...
- Ora, por favor, nem se desculpe por isto. – respondeu Cristine.
- Minha filha – disse Dr. Mendes – Acredito que seja interessante
tomares um pouco mais de conhecimento acerca dos escritórios e das
representações do falecido.

75
Cristine deu de ombros e o advogado continuou:
- Creio que James e eu possamos colocá-la a par, mais tarde, no
escritório.
- Por mim tudo bem. Só não sei se vai servir para alguma coisa... –
disse Cristine.

Fez-se um silêncio e Cristine continuou:


- Não seria mais lógico esperar a abertura do testamento? Acredito que
dentro de cinco dias eu partirei, assim como cheguei aqui... E retomarei
a minha vida de antes.

Novamente o advogado preferiu o silêncio. Somente anuiu:


- Tu que sabes...

James permanecia calado, como se aquela conversa não lhe dissesse


respeito. Ele tinha uma aparência de pessoa triste, pensou Cristine. Ela
imaginou como devesse ter sido a vida dele antes de estar ali, e sentiu
compaixão. E tentou conceber também como deveria ter sido a relação
dele com o tio. Pelo que ouvira falar, novamente foi tomada por um
sentimento de pena. James deixava transparecer justamente isso:
fragilidade e tristeza. Provavelmente a tristeza estivesse acentuada com
a perda do tio, que deveria ser o seu norte. Cristine continuou a
observá-lo discretamente. Havia algo em seu olhar que deixava Cristine
mobilizada. Não saberia definir ao certo. Sempre fora boa observadora
da natureza humana, mas James parecia ter uma redoma que impedia
qualquer tentativa de entender seu interior. Talvez porque custasse a
encarar as pessoas. Costumava falar desviando os olhos do seu
interlocutor. Era, de fato, uma incógnita.

Ao término do café James disse que precisaria ir até a cidade, sendo


que só retornaria à noite. Cristine preferiu ir até a biblioteca para
procurar algo para ler. Dr. Mendes a acompanhou. Distraíram-se na
busca e quando deram por si já era quase hora do almoço.

Quando desceram e sentaram-se na sala de estar até o almoço ser


servido Angélica se juntou a eles.

- Bom dia. – disse a morena.


- Bom dia. – responderam ambos, sendo que Cristine continuou –
Pensei que eu tivesse sido convidada para conhecer certa estufa...
- Mas o dia recém-começou, senhorita afobada... – respondeu com um
sorriso de viés que deixou Cristine sem jeito. – Depois do almoço
podemos passar a tarde lá. Tem muita coisa para se ver...
- Que bom! O senhor também vem Dr. Mendes? – quis saber Cristine.
- Não... Eu já conheço a estufa, detalhadamente, aliás... Artur vivia
metido lá, dando palpites no trabalho de Israel...

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Angélica sorriu tristemente, baixando os olhos.

- Mas você vai realmente ficar encantada – continuou o advogado.


- Pelo discurso de vocês creio já estar encantada!

Almoçaram tendo Valesca e João Vítor como companhias. Valesca


estava visivelmente ansiosa com a proximidade da abertura do
testamento, porém não fez nenhum comentário acerca disto. Manteve
um silêncio respeitoso. Depois do almoço, como de costume, Valesca e
seu suposto irmão desapareceram das vistas dos demais.

Dr. Mendes foi para o escritório e as duas mulheres seguiram para a


estufa. Conversavam animadamente. Cristine havia acordado melhor. A
sensação de medo e desconforto havia se amenizado. Provavelmente
porque sonhara, não com fantasmas, mas com anjos... De lindos olhos
azulados.

Garoava naquele início de tarde e Cristine não pôde deixar de alegrar-


se com aquilo, pois novamente foi acolhida no abraço de Angélica que
segurava seu guarda-chuva negro sobre a cabeça de ambas.

A estufa ficava no outro extremo da propriedade, na direção oposta à


casa de Angélica. Seguiram por outra viela por cerca de trezentos
metros. A estufa constituía-se de uma enorme armação de madeira
revestida por um plástico transparente e espesso. Aquele sistema
permitia que no verão o revestimento fosse suspenso deixando o
ambiente arejado e na temperatura ideal para as espécies que
abrigava. O telhado baixo era coberto por telhas francesas, tendo
algumas unidades de telhas transparentes, o que permitia utilizar
iluminação natural.

Em seu interior havia uma variedade imensa de flores, folhagens,


mudas de árvores ornamentais, nativas e frutíferas, enfim, incontáveis
vasinhos enfileirados em prateleiras em formato de arquibancadas. O
local todo deveria ter mais de quatrocentos metros quadrados.

Cristine observava boquiaberta a infinidade e a beleza das espécies ali


existentes. Havia orquídeas que, segundo Angélica, devido ao sistema
de calefação floresciam durante todo o ano. As araucárias bebê
enfileiradas simetricamente pareciam miniaturas de pinheiros de natal.
As variedades de samambaias que projetavam suas folhas como longos
braços esverdeados rumo ao chão encantaram Cristine.

Numa prateleira central encontraram Israel colocando terra adubada


numa fileira de vasos, ainda vazios, preparando-os para receberem uma
vida verde em seu seio.

77
- Oi pai. – disse Angélica.
- Olá. – respondeu o velho.
- Senhor, que belo trabalho desenvolve aqui! – elogiou Cristine.
- Que é isso... – respondeu Israel – Eu só auxilio um pouco essa
maravilhosa natureza que nos cerca, a mão verde de Deus.
- Não se subestime – continuou Cristine – Eu soube de fonte segura que
o senhor é quem mantém este lugar lindo, além de tê-lo construído.

Israel sorriu. Logo em seguida Cristine submeteu o pai de Angélica a


toda sorte de perguntas sobre aquelas plantas, ao que o velho
pacientemente respondia em detalhes. Na verdade era um prazer para
ele falar sobre seu trabalho, principalmente quando percebia o real
interesse de alguém. Israel explicava a origem de cada planta, sua
floração, peculiaridades, nome científico, enfim, informações de quem
conhecia com propriedade tudo aquilo.

Passaram quase que toda a tarde ali, sem que Cristine tivesse visto
tudo que havia para ser conhecido naquele lugar. Por volta de cinco
horas Israel convidou-as para tomar um café, em casa.

- Vai indo, pai, eu ainda quero mostrar o meu xodozinho para Cristine.
– disse Angélica.

O velho assentiu e dirigiu-se para casa, deixando-as sozinhas naquela


imensidão esverdeada.

- Vem aqui. – disse Angélica seguindo por um dos corredores estreitos


sendo acompanhada de perto por Cristine.

Desta feita foi a vez de Cristine observar sem cerimônias o gingado do


caminhar de Angélica. Balançou a cabeça e tratou de observar as
plantas.

Quase no final do corredor havia uma prateleira exclusivamente


destinada a uma plantação de morangos. Cristine arregalou os olhos.
Adorava morangos!

- Aqui está a minha seção favorita deste lugar – disse Angélica colhendo
um dos morangos, retirando seu pequeno caule e colocando-o sob a
água corrente de uma torneira próxima.

Levou o fruto avermelhado à boca e fez uma expressão de deleite ao


saboreá-lo e sentir a doce acidez de sua polpa. Em seguida colheu outro
e repetiu o gesto, porém estendeu o fruto na direção da boca de
Cristine. A loirinha entreabriu os lábios e deu uma mordiscada no
morango enorme, deixando o caldo doce escorrer do canto de sua boca.
Mastigou a polpa adocicada de olhos fechados.

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- Huuuummm... Que delícia! – exclamou.

Angélica estendeu-lhe a outra metade do morango e quando Cristine


abocanhou a parte de baixo do fruto não pôde evitar o contato de sua
boca com a ponta dos dedos de Angélica. Esta sentiu a maciez dos
lábios de Cristine na ponta de seus dedos e uma sensação de excitação
a invadiu. Intencionalmente Cristine demorou mais do que seria
necessário para abocanhar a fruta. Deixou propositalmente seus lábios
em contato com os dedos de Angélica, chegando a sugar delicadamente
a ponta de seu indicador. Sentiu o estremecimento da morena e
encarou-a com certa dose de malícia. Angélica manteve o olhar,
sentindo um fogo subir-lhe pelo corpo. Com movimentos lentos colheu
outro morango, lavou-o e novamente o levou aos lábios de Cristine. Só
que desta vez, quando a loirinha fez menção de abocanhá-lo, afastou-o
um pouco de seus lábios, numa brincadeira sensual. Aproximou-se dela,
entregou o morango em suas mãos e disse:

- Minha vez...

Cristine não se fez de rogada. Pegou o fruto suculento e o levou na


direção da boca de Angélica, que lhe sorria lascivamente. A morena
mordeu uma parte dele e também fechou os olhos, sentindo seu caldo
escorrer-lhe no canto da boca. Cristine levantou sua mão livre
interceptando aquele filete adocicado que escorria dos lábios da mulher
à sua frente. Angélica emitiu um gemido baixo ao sentir o toque de
Cristine em seu rosto, afagando aqueles dedos com um movimento
lateral de rosto. Ainda com a mão livre Cristine contornou a boca de
Angélica com a ponta dos dedos, enquanto esta abria os olhos e
entreabria a boca, como que suplicando o restante do fruto. Cristine
levou a polpa avermelhada novamente aos lábios de Angélica, que
desta vez extrapolou os limites da fruta, passando os lábios
sensualmente nos dedos da loirinha, que sentiu uma excitação
crescente dentro de si.

Sem desviar os olhos de Cristine, Angélica pegou outro fruto, desta vez
menor e o levou à boca da loirinha. Esta o abocanhou completamente,
também extrapolando os limites do fruto e aprisionando os dedos de
Angélica entre seus lábios. A morena deixou-se prender por aquela boca
sedenta e permitiu que Cristine lambesse delicadamente seu indicador,
depois passasse a língua languidamente por seu polegar, sugando o
caldo que escorria por ele. De olhos fechados Cristine pode sentir
quando os dedos de Angélica libertaram-se de seus lábios e
escorregaram na direção de sua nuca segurando-a com firmeza e
trazendo-a para junto de si. A sensação que sentiu a seguir foi um
misto de prazer e êxtase. A boca de Angélica tocou a sua com
suavidade e doçura. Em princípio os lábios movimentaram-se
contornando os seus próprios, beijando-os suavemente.

79
Os corpos colaram-se como que envoltos por fios invisíveis. Elas podiam
sentir a incandescência da pele. As mãos passeavam pelos contornos e
curvas, numa viagem exploratória e prazerosa.

Cristine entreabriu os lábios, exigindo mais. Queria a maciez da língua


de Angélica em contato com a sua. Uma umidade invadiu as duas
mulheres que se acariciavam abraçadas. Cristine passava sua língua no
céu da boca de Angélica, penetrando-a agora com urgência e volúpia. E
Angélica correspondia plenamente aos estímulos daquela pequena
mulher. E lhe dava o que ela, através dos sentidos, lhe implorava.

Aquele beijo intenso, molhado e quente foi a melhor sensação que


Cristine já experimentara na vida. Nunca ninguém a havia beijado com
aquela intensidade, com aquela entrega. Nunca, através de um simples
beijo, sentiu-se tão desejada como naquele momento. Quando encarou
Angélica viu o fogo e o desejo latente em seus olhos. Sorriu-lhe com
sensualidade enquanto sentia novamente a pressão da boca de Angélica
na sua e o movimento de sua língua buscando dar e receber prazer.

Angélica desejou que aquele beijo durasse uma eternidade. Teve


vontade de beijar aquela boca assim que a viu pela primeira vez.
Embora isso pudesse interferir em seus planos estava disposta a
arriscar-se para viver plenamente aquele momento. Queria aquela
mulher, toda, inteira. Seu corpo tremia de excitação e sua respiração
ofegava de encontro à língua colada na sua.

Ambas sentiam a vontade quase que incontrolável de arrancar todas


aquelas roupas que impediam que seus corpos se tocassem. Sentiam-se
arder e os sexos latejavam.

Pouco a pouco foram aliviando a pressão das bocas e encararam-se


amorosamente, uma mergulhada nos braços da outra.

- Eu adoro morangos, sabia? – brincou Cristine.


- Deu pra perceber... – respondeu Angélica sorrindo.
- Mas confesso que nunca haviam me servido assim...
- Assim como? – provocou Angélica.
- De uma forma tão... Deliciosa.
- Folgo em saber – riu-se a morena – E por acaso a senhorita gosta de
outras frutinhas também?...
- Depende...
- Depende??? De quê?
- De como me são servidas... – respondeu Cristine com malícia.
- Ããh... Eu estava me referindo a um fondue... De frutas.
- Adoro!
- Então que tal a gente fazer um lá em casa... Daqui há pouco?

80
- Eu topo. Mas agora eu quero mais um pouquinho desses suculentos
morangos... – disse Cristine colando novamente sua boca à de Angélica.
Depois de mais algumas carícias as duas mulheres conseguiram,
mesmo que a contragosto, desvencilharem-se uma da outra. Angélica
acompanhou Cristine até o castelo e combinou de buscá-la dentro de
uma hora e meia.

Neste meio tempo a morena providenciou o que precisava para o


fondue e tomou um banho. Perfumou-se e escolheu uma roupa que
valorizava seus contornos. Queria estar especial naquele fim de tarde.
Cristine, mergulhada na água quente da banheira de seu quarto, estava
ansiosa para estar de novo com Angélica. Queria sentir aquela boca
novamente. E muito mais. Queria ser tocada com a mesma intensidade
daqueles beijos. De fato não conseguia lembrar-se de nenhuma
sensação igual. As noites de intimidade com Mariana ultimamente
estavam limitadas a uma meia dúzia de beijos e a um orgasmo, e
pronto. Cada qual se vestia, pagavam o motel e iam para suas casas. A
sua “ficante” não queria maiores envolvimentos. E Cristine não sentia
mais reciprocidade nas carícias, nem tão pouco um ardor como vira nos
olhos de Angélica. Deu-se conta que merecia muito mais do que vinha
tendo, não queria mais nenhuma migalha afetiva. Queria uma mulher
inteira, de corpo e alma numa relação, nem que fosse somente por uma
noite, mas queria uma mulher plena.

Depois que saiu da água e secou-se vestiu um blusão de lã verde oliva


de gola role e uma calça preta. Passou a mão pelos cabelos molhados
ajeitando-os como costumava fazer sempre, sem usar pente. “As
vantagens do cabelo liso”, pensava. Colocou seu perfume preferido e
enrolou o pescoço num cachecol de lã. Calçou um par de luvas, pois a
temperatura estava caindo muito. Jogou seu casaco pesado por cima,
depois de calçar as botas. Olhou-se no espelho e viu uma mulher
diferente da que acordara naquela manhã. A donzela submissa havia
cedido lugar à mulher decidida a gozar as delícias do prazer e da
sedução. Com esses pensamentos desceu as escadarias de pedra com
passos decididos e firmes, sem nem se lembrar do que vira no final
daquele corredor pela manhã.

Encontrou Regina na cozinha e lhe disse:


- Regina, eu não vou jantar aqui hoje. A Angélica me convidou para um
fondue na casa dela.
- Aquela menina vive inventando coisas... Mas esse negócio é bom
mesmo! – riu-se Regina.
- Poderias avisar o Dr. Mendes e o James? Para que não se preocupem.
- Pode deixar que eu aviso.

Quando Angélica chegou ao castelo Cristine já a guardava na cozinha,


conversando com sua mãe.

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- Oi. – disse com a cara mais deslavada do mundo.
- Oi. – respondeu Cristine.
- E aí? Pronta pra ser minha cobaia? – perguntou a morena.
- Como assim? Você nunca fez um fondue antes? – questionou Cristine
– “Ou será que pensa que eu nunca fui com uma mulher para a cama?”,
pensou divertida.
- Calma... É que vou estrear um aparelho de fondue novo. Espero que
seja bom.
- Vai ser... – disse Cristine, deixando transparecer segundas intenções
na voz, percebidas somente por Angélica, que disfarçou.
- Vamos então? – disse a morena.
- Vamos.
- Ô mãe... Não comenta com o Ariel que a gente vai fazer fondue,
senão o cabeçudo vai se enfiar lá em casa e torrar a paciência da
Cristine. – pediu Angélica.
- Pode deixar, eu não comento não – disse Regina rindo – Aquele
moleque enche o saco mesmo de vez em quanto!
- Valeu mãe!
- Tchau Regina! – disse Cristine.
- Tchau guriazinhas.

Elas seguiram a pé para a cabana de Angélica, sem a proximidade


oportunizada pelo guarda-chuva. Ironicamente a chuva havia estiado
embora o céu permanecesse encoberto. Eram seis e meia, porém a
noite já havia espalhado suas sombras pelas montanhas e pelo vale.
Somente uma tênue luminosidade no poente parecia lutar contra a
noite que caía abruptamente. O mesmo vento cortante da tarde
continuava fustigando o rosto e teimando em penetrar pelas dobras das
vestimentas. Cristine encolheu-se devido ao ar gelado e Angélica
passou o braço ao redor de seus ombros.

- Ta com frio?
- To.
- Chega pertinho então... Eu te esquento...
- Isso é uma promessa?
- Ou uma ameaça! – completou Angélica em tom de brincadeira.

As duas gargalharam, aproveitando o momento de descontração para


se aproximarem bem, e caminharam agarradinhas até perto do portão.

- Olha só, vamos dar um drible no Ariel, senão a gente vai ter
companhia no fondue... – disse Angélica pegando Cristine pela mão e
fazendo um pequeno desvio no trajeto.

Ao invés de seguirem pelo caminho principal contornaram a propriedade


pelos fundos, procurando não fazer barulho. Na casa de Angélica
também entraram pela porta dos fundos.

82
Depois de fecharem a porta à chave Angélica tirou seu casacão e
ajudou Cristine a desvestir o seu. Penduraram os casacos na guarda de
uma cadeira e foram para a sala. Ali na mesinha de centro, defronte à
lareira, o aparelho de fondue já esperava as mulheres famintas. Uma
tábua de frios preparada aguardava ao lado de uma garrafa de vinho.

- Só falta descascar algumas frutas... – disse Angélica.


- Eu te ajudo – falou Cristine arregaçando as mangas do blusão e
lavando as mãos na pia da cozinha.

Angélica também lavou as mãos e elas se puseram a descascar e picar


as bananas, as laranjas, o mamão, as mangas, o melão e as maçãs. Os
morangos e as uvas já estavam lavados e colocados em tigelinhas. Com
as frutas dispostas em pratinhos foram para a sala. Angélica acendeu o
aparelho de fondue e abriu a garrafa de vinho.

- Tu tomas vinho? – perguntou a morena.


- Tomo.
- Se preferires outra bebida...
- Eu te acompanho no vinho. – disse Cristine.

Angélica serviu duas taças e inclinou-se, oferecendo uma à Cristine.

- Saúde. – brindaram

Ambas bebericaram o vinho devagar, sentadas uma em frente à outra


no pelego de lã, tendo a lareira acesa como fonte de luminosidade
naquele canto da sala. Angélica havia deixado o ambiente à meia luz.
Elas observaram-se mutuamente à luz tremulante das labaredas que se
agitavam atiçadas pelos nós de pinho.

Angélica vestia uma calça jeans e um suéter cor de telha. Havia tirado
as botas e estava somente de meias, assim como Cristine, que deixara
seu calçado junto à porta da rua. Todo o assoalho da casa de Angélica
era de madeira, o que tornava aquele ambiente aconchegantemente
quente.

Degustaram os frios e quando o chocolate já havia derretido na


cumbuca ovalada passaram a espetar as frutas e mergulhá-las naquele
recipiente refratário.

- Huuummm... Isso é um alimento dos deuses... – disse Cristine.


- Digno de uma deusa... – respondeu Angélica lhe estendendo um
morango com chocolate.

83
Cristine olhou para ela com imenso carinho. Sentia sinceridade em suas
palavras. Mordeu a fruta saboreando-a lentamente.

Angélica aproximou-se dela, deitando-se de lado no pelego e apoiando-


se no cotovelo. Ficou de frente para Cristine e pegou outro pequeno
morango, desta vez com a mão, mergulhando sua extremidade no
chocolate quente tomando o cuidado de não queimar seus dedos.
Repetiu o gesto da tarde e levou a fruta na direção dos lábios de
Cristine. Novamente quando esta quis abocanhá-lo afastou o fruto em
sua direção, obrigando a loirinha a aproximar-se e ficar quase que em
cima dela. Sorriram.

- Vem pegar – disse Angélica – segurando o morango entre os próprios


lábios.

Cristine sentiu todo seu corpo se acender e levou sua boca até a de
Angélica. Apertou os lábios contra os delas e ambas sentiram a doçura
da fruta escorrendo nas bocas. Entrelaçaram-se e beijaram-se com
urgência e ardor. As línguas de fogo da lareira crepitavam no mesmo
ritmo frenético que as línguas das amantes.

Deitadas de lado, uma em frente à outra, acariciavam-se enquanto as


bocas faziam jogos amorosos. Num clima de namoro adolescente
ficaram um bom tempo brincando com as frutas e o chocolate.
Lambuzaram-se com o doce e com a polpa das frutas. Lambiam as
bocas e os arredores numa brincadeira divertida e sensual.

O azul dos olhos de Angélica refletia as chamas alaranjadas da lenha


que ardia e esquentava o ambiente. Sorriam uma para a outra como
duas jovens descobrindo a paixão. Cristine acariciava o rosto da morena
acompanhando o contorno daquela face angulosa e a linha levemente
arrebitada de seu nariz. A boca simétrica por vezes ria com um dos
cantos mais contraído que o outro, conferindo um charme todo especial
àquele sorriso que emoldurava a dentição perfeita.

Quando a calda de chocolate terminou no recipiente elas relegaram a


segundo plano aquele divertimento. Saciada a fome queriam mais...

Angélica puxou Cristine para bem perto de si. Deitou-se de costas na


maciez do pelego de lã e fez a loirinha deitar-se sobre ela, acariciando
suas costas por sobre a textura aveludada de sua blusa de lã. Cristine
sentiu o ardor do corpo daquela mulher sob o seu e intencionalmente
começou a fazer uma pressão com seus quadris de encontro ao púbis
da morena. A reação de Angélica foi imediata. Sentiu agigantar-se o
desejo dentro dela. Seus olhos semicerraram-se e ela segurou os
quadris de Cristine com firmeza, movimentando-os vagarosa e
ritmicamente contra os seus, abrindo levemente suas pernas, na

84
intenção de encaixar Cristine entre elas. Ambas sentiram-se totalmente
molhadas. E queriam mais.

As vestes pesadas tornaram-se barreiras a serem transpostas. Sentindo


um rubor de excitação nas faces Cristine sentou-se sobre Angélica, que
permanecia deitada, e a fitou com fogo nos olhos. Sorriu lascivamente.
Levou suas mãos ao seu blusão puxando-o para cima e descobrindo seu
torso, que não tinha mais nada a cobri-lo além da lã verde oliva.
Angélica contemplou os seios pequenos e desnudos expondo-se sem
pudores e oferecendo-se a ela. Levou suas mãos até os mamilos
rosados e rijos e contornou a ambos, fazendo Cristine gemer de prazer.
Ainda insatisfeita Cristine desabotoou sua calça e num movimento ágil
se desfez dela e da calcinha rendada também. Angélica estava com a
boca seca e os sentidos totalmente entorpecidos pela visão daquela
deusa em forma de gente que, sentada nua sobre ela, esfregava-se
implorando ser tocada. Podia ver o reflexo do rastro molhado que
Cristine estava deixando em sua calça jeans. Os pelos louros
encharcados continuavam a se mover ritmicamente contra seus
quadris.

Num movimento ousado Angélica descerrou o zíper de sua calça e


Cristine a puxou para baixo, enquanto a morena se desfazia da parte de
cima de sua vestimenta. Totalmente nua sentiu a maravilhosa sensação
do contato do sexo de Cristine com o seu e gemeu alto, contorcendo-se.
Sentiu o jorro que escorria de Cristine misturando-se ao seu próprio.
Estava prestes a gozar com aquele simples contato. Respirou fundo e
controlou sua explosão iminente. Sentiu o olhar de Cristine fixo em seus
peitos morenos e gemeu novamente quando a loirinha inclinou-se e
abocanhou cada um deles, suavemente, sugando-os um a um, sem
pressa. Apoiou-se nos cotovelos para facilitar o acesso de Cristine a
seus mamilos intumescidos. A cada movimento da língua de Cristine,
Angélica gemia baixinho.

Num movimento mais brusco a morena sentou-se e abraçou Cristine,


encaixando-a sentada entre suas pernas. Passou as mãos pelas suas
costas, sentindo-a arrepiar-se por completo. Levou sua boca até os
peitos da loirinha sugando-os com suavidade. Cristine arqueou seu
corpo para trás, segurando a cabeça de Angélica enquanto esta lhe
lambia os mamilos. Apertou sua cabeça de encontro aos seios exigindo
que os sugasse com vigor, o que Angélica prontamente fez. Desta vez
foi Cristine quem gemeu alto.

Deliciando-se com as reações da mulher sentada sobre ela Angélica


baixou sua mão acariciando as nádegas e, por trás, chegou até o sexo
de Cristine. Neste momento sentiu a mulher movimentar seus quadris
para trás, na direção de seus dedos, como que implorando para ser
penetrada. Angélica sentiu o quanto Cristine estava encharcada e seus

85
dedos moveram-se escorregadios para dentro daquela cavidade morna
e macia. Cristine emitiu um gemido gutural e abocanhou a boca de
Angélica, num beijo ardente. Iniciou um movimento de pressão contra
os dedos da morena que a penetrava ritmicamente. Angélica continuava
os movimentos de vai e vem quando sentiu que Cristine ajoelhou-se
sobre ela fazendo com que seus dedos saíssem de dentro de seu sexo.
Cristine puxou Angélica para cima, a fim de que ficasse na mesma
posição que ela, ajoelhada à sua frente. Colou seu corpo ao da morena
e colocou seus dedos ágeis diretamente sobre o ponto de prazer da
morena. Cristine sentiu o volume rosado aumentar de tamanho em sua
mão e massageou-o com habilidade, arrancando sussurros de prazer da
boca da morena.

- Aããhhh... ããããhh... ããããhhh...


- Você quer aqui?... – gemeu Cristine no ouvido de Angélica.
- Quero... Assim... Mais... Isso... Mexe... ãããã... ãããã...

Cristine se deliciou com a súplica de Angélica, que arregaçava suas


pernas expondo cada vez mais seu sexo incandescente, rogando ser
possuída.

A morena também colocou sua mão entre as pernas de Cristine e


sentiu-a estremecer. Iniciou um movimento firme de vai e vem no
botão carnudo e totalmente escorregadio pelos sumos de sua excitação.
Elas não estavam aguentando mais e concomitantemente aceleraram a
fricção, gemendo alto e mexendo os quadris. A explosão do orgasmo
veio quase que imediata. Espasmos agitaram os corpos das amantes
enquanto as chamas crepitavam na lareira. Com as pulsações ainda
aceleradas e sentindo todo o corpo latejar de prazer, abraçaram-se
fortemente. Permaneceram de joelhos, naquele abraço pleno de
intimidade e de compartilhar.

Beijaram-se com suavidade e doçura enquanto se deitavam abraçadas,


esperando que as respirações e os batimentos cardíacos voltassem ao
ritmo normal.

Olharam durante um tempo para as labaredas que crepitavam,


acariciando-se em silêncio, até que Cristine falou:
- Você sempre seduz mulheres indefesas com esta estratégia do
fondue? – brincou.
- Não... Somente aquelas que acho que não cederão aos encantos dos
meus belos olhos.
- Bom... Então eu fui seduzida pelos dois... – respondeu Cristine
sorrindo.

Angélica beijou-a com suavidade. Cristine continuou:

86
- Você conseguiu fazer todo este contratempo da minha vida valer a
pena, sabia?

Angélica a apertou com força contra o peito. Cristine continuou:


- Mais que isso, você fez com que eu me sentisse mulher de novo.
Depois de tanto tempo...
- Como assim? – quis saber Angélica.
- Fazia bastante tempo que eu não sentia esse... Esse ardor, esse tesão
todo.
- Isso eu duvido... Como o mundo pode ser cego a ponto de não te
desejarem assim? Tu és uma mulher maravilhosamente bela... Tenho
certeza que um batalhão de mulheres e de homens gostaria de estar
aqui no meu lugar agora...

Cristine riu-se evidenciando não crer naquelas palavras.


- Você é exagerada...
- E tu te subestimas muito. Te olha no espelho, guria! Tu és linda sim.
Por fora e por dentro...
- Você me conhece pouco...
- Mas raramente me engano. E agora eu tenho a certeza. O que eu vi
em ti assim desnuda, e eu falo de nudez de máscaras, foi a plena
certeza de estar com uma fada nos braços... Uma pessoa do bem.

Cristine emocionou-se e apertou Angélica contra o peito.


- Mas tem uma coisa me incomodando agora... – disse Angélica
enigmaticamente.
- O quê? – perguntou Cristine com uma ruga de preocupação
estampada na testa.
- Muita conversa. Eu quero mais ação. – respondeu a morena
reiniciando as carícias mais ousadas em sua parceira, fazendo
reacender-se o fogo e o desejo de dar e receber prazer.

Após amarem-se com uma volúpia beirando a devassidão continuaram


deitadas em frente à lareira, recostadas em almofadas de um tecido
acetinado, prazeroso ao tato. As chamas haviam se extinguido e
restavam brasas incandescentes que ainda mantinham o ambiente
aquecido. Angélica colocou mais lenha no fogo e as labaredas
reavivaram-se tremulantes. A luz amarelada refletia-se nos cabelos
loiros de Cristine, conferindo-lhe um ar angelical. O relógio de parede
marcou meia noite. Cristine se deu conta do adiantado da hora.

- Eu preciso ir... – disse a loirinha demonstrando pouca vontade de sair


do aconchego daqueles braços.
- Fica... Passa a noite aqui comigo...
- Não posso...
- Por quê? – perguntou Angélica.

87
- Porque as paredes daquele castelo devem ter ouvidos... E olhos... E
acho que não pega bem eu ficar aqui... Faz só quatro dias que o tio
Artur faleceu... Sei lá... Não acho adequado...
- Mas quem é que vai saber da gente?...
- Eu sei.

Angélica assentiu, e teve de dar a mão à palmatória. Aquela pequena


mulher tinha, além de todos os encantos que provara, bom senso e
ética. E ela gostava disso. A contragosto desvencilhou-se dela e vestiu-
se novamente.
- Ta com fome? – Perguntou Angélica.
- To... Com muuuuita... Você conseguiu esgotar as reservas energéticas
desse corpinho aqui.

Angélica riu e foi para a cozinha enquanto Cristine se vestia.

- Sabe de uma coisa? Eu não sei como vou entrar no castelo... – disse
Cristine pensativa.
- Pela porta, ora!
- Mas com que chave?

Angélica gargalhou:
- Fica tranquila que aqui a gente costuma deixar as portas
destrancadas. Ainda dá pra fazer isso. – disse a morena.
- Mas pelo que pude perceber a senhorita trancou suas portas à
chave... – provocou Cristine.
- Bom... Convenhamos que não seria muito adequado que meu
inocente irmãozinho te visse em trajes de Eva gozando em cima de
mim...
- Boba! – disse Cristine, jogando um guardanapo na morena que se
esquivou do arremesso.

Fizeram um lanche e Angélica acompanhou Cristine até o castelo.


Despediram-se com um beijo roubado e discreto. Cristine abriu a porta
da cozinha bem devagar, sendo que a mesma emitiu um rangido baixo.
Olhou para dentro e o ambiente estava vazio, na penumbra, havendo
somente uma claridade tênue vinda dos corredores. Ela se deslocou
silenciosamente na direção da escadaria e nem percebeu que uma
figura esguia, discretamente posicionada atrás de um dos pilares de
pedra, a observou caminhar rumo ao seu quarto. O vulto oculto nas
sombras franziu o cenho preocupado. “O que estaria Cristine fazendo na
rua àquela hora?”, pensava, “Será que ela percebeu alguma coisa?”...
“Caso tenha percebido será necessário tomar uma atitude mais
urgente”...

Angélica retornou para casa que era só sorrisos. Apesar de tudo que
estava se passando sentia-se flutuar. No caminho pensava, “tudo bem,

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isso é só uma pequena mudança na ordem das coisas... não me
impedirá de cumprir o que me propus fazer, muito pelo contrário...”. No
entanto, ao mesmo tempo em que se sentia envolvida e leve, uma
sensação de preocupação a afligia. Sabia perfeitamente o que ocorria
não muito longe dali.

**********

Cristine também ostentava um sorriso no rosto e tinha uma sensação


de leveza e bem-estar. Caminhou pelos corredores sombrios sem medo,
pensando no toque de Angélica, e entrou em seu quarto sem nem
sequer lembrar-se do que havia mais adiante, na peça contígua ao
quarto do falecido tio. Tirou a roupa e deitou-se nua, ainda sentindo o
cheiro de Angélica em seu corpo. Estava por demais mexida, pensando
na delicadeza da mulher com a qual fizera amor. Rememorava cada
gesto, cada sensação, cada toque... E não conseguia conciliar o sono.
Olhou para o relógio de pulso e o marcador luminoso marcava uma e
meia da madrugada. Levantou-se e serviu-se de um copo d’água que
Adelaide deixara ao lado de uma jarra de cristal, numa bandeja de
prata, em seu criado-mudo. Sorveu a água avidamente e jogou um
roupão atoalhado por cima do corpo nu. Foi até sua janela, cujos vidros
estavam fechados em virtude do frio, e puxou a cortina pesada para o
lado. Olhou na direção da escuridão e abriu um dos lados da vidraça,
para sentir a aragem da noite. O vento gelado e cortante fez com que
um arrepio lhe percorresse o corpo, pois contrastava com a
temperatura amena do quarto, mantida pelo sistema de calefação.

Cristine respirou o ar úmido da noite, de olhos fechados, ainda


recordando os momentos de amor que vivenciara ainda há pouco. Abriu
os olhos lentamente, tentando divisar os contornos da natureza, uma
vez que parara de chover e a noite estava clara, apesar da
nebulosidade. A lua quase cheia teimava em espargir uma fraca
luminosidade que vencia a barreira das nuvens. Cristine conseguiu ver
os contornos das montanhas e, mais ao fundo, as silhuetas do arvoredo
do vale.

Neste estado contemplativo percebeu algo diferente naquela paisagem


noturna. Bem ao longe, dentro dos muros do cemitério, e bem perto
dos anjos guardiões, Cristine percebeu uma movimentação estranha.
Havia luzes no local. E os quase imperceptíveis focos luminosos
moviam-se nas sombras da noite. A loirinha fixou os olhos, tentando
entender o que se passava. Afinal, quem poderia estar no cemitério à
uma hora daquelas? E por quê? Estas perguntas ficaram lhe martelando
na cabeça. Muitas coisas estavam confusas para ela. Não conseguia

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entender certas situações, nem tão pouco conseguia penetrar mais a
fundo em questões familiares, que envolviam sua própria história de
vida. Percebia que as pessoas ao seu redor sabiam mais do que lhe
contavam. Aquele ambiente se descortinava estranho e desconhecido.

Num ímpeto fechou a janela, tirou seu roupão e vestiu-se


apressadamente. Estava disposta a tirar aquela história a limpo.

Cristine deixou seu medo de lado e mergulhou na escuridão da noite


munida apenas de uma lanterna que havia pegado no pequeno móvel
que ficava ao lado da porta de saída da cozinha. Tinha um senso de
direção bastante aguçado e lembrava-se perfeitamente do pequeno
trajeto feito no dia do enterro de seu tio.

Estava vestida com seu pesado casacão de lã e havia colocado uma


touca para aquecer-lhe as orelhas. Suas botas de cano curto
resvalavam na lama da estradinha de chão. Alternava os passos
cuidadosamente. Caminhava com pressa, sentindo em suas faces as
rajadas do vento cortante da madrugada. O silêncio era sepulcral.
Ouvia-se apenas o uivo fantasmagórico do vento. As árvores
balançavam como que numa dança ritual, todas juntas, formando uma
enorme onda de vegetação que parecia querer agarrar Cristine, num
abraço prisional.

Conforme ia avançando em direção ao campo-santo a impulsividade


que motivou Cristine a rumar naquela direção foi cedendo lugar a um
sentimento crescente de temor. Instintivamente diminuiu suas passadas
e tentou fazer o menor ruído possível em seu deslocamento. Àquela
altura já estava na metade do caminho e embora seu bom senso lhe
dissesse para retornar decidiu seguir em frente.

Apontava o facho de luz para o chão, evitando qualquer armadilha no


caminho irregular. Seu olhar alternava-se entre o solo, a vegetação à
sua volta e o cenário à sua frente. Ao aproximar-se mais e avistar o
limite gradeado do cemitério estancou e olhou para trás, parecendo-lhe
haver percebido o estalar de uma passada. Foi parcialmente dominada
por uma sensação de pânico e encostou-se de costas no muro de
pedras, alto e gelado, que circundava o cemitério, como que tentando
proteger sua retaguarda. Direcionou o foco de luz para o caminho atrás
de si e o que viu foi somente a escuridão vazia. Respirou fundo
tentando fazer com que seus batimentos cardíacos diminuíssem de
intensidade. Deixou-se escorregar de encontro ao muro até ficar de
cócoras. Naquele momento um relâmpago iluminou tudo ao seu redor e
logo em seguida um estrondo ensurdecer e seco ecoou nos céus de
agosto. Cristine arregalou os olhos, pois pensou ter visto um vulto entre
as sombras do caminho, fitando-a de longe. Prendeu a respiração e

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direcionou o foco de luz. Outro raio iluminou a noite e desta vez Cristine
nada percebeu.

Mais um raio e um forte trovão se fizeram ouvir. Instantaneamente foi


como se as comportas dos céus houvessem sido abertas. As gotas
espessas começaram a cair tempestuosamente. Uma sucessão de raios
e trovões fez Cristine se encolher sobre si mesma, excomungando-se
por estar ali naquela situação. Tentou racionalizar, não podia deixar o
pânico tomar conta dela e falar mais alto que sua razão.
Levantou-se e seguiu adiante, acompanhando o muro de pedras. Ao
chegar defronte à entrada levou sua mão ao portão de ferro que, para
sua surpresa, rangeu alto e abriu-se pesadamente.

Cristine quase podia escutar as batidas do próprio coração. Pé ante pé


entrou esgueirando-se entre as catacumbas. As figuras de pedra que
adornavam as sepulturas pareciam criar vida a cada vez que os raios
iluminavam seus contornos frios e encharcados pela chuva. O túmulo de
seu tio ficava mais para o final do corredor principal. Estrategicamente
optou por mover-se entre as lápides, mesmo que por vezes tropeçasse
em algumas delas. Ainda na metade do trajeto se deu conta que o
facho de luz de sua lanterna começava a ficar mais fraco, dando sinais
de que a bateria estava se extinguindo. Deu uma parada em sua
marcha e respirou fundo. Sentiu suas mãos geladas e seu corpo tremer
de medo. Mal conseguia controlar suas pernas. Mesmo assim seguiu em
frente.

Neste momento Cristine ouviu um baque seco, um barulho alto, como


se fosse o de uma rocha contra o chão de terra. Estancou e encolheu-se
amedrontada entre duas catacumbas de pedra. Instintivamente
desligou a lanterna. Não sabia o que fazer. Estava quase que paralisada
de pavor. Ficou naquela posição por quase quinze minutos, sem ter
coragem de se mover. Fechou os olhos e desejou que Angélica
estivesse ali com ela. Queria estar aninhada em seus braços. A morena
conseguia lhe transmitir tanta segurança...

A chuva já havia encharcado sua roupa e o casaco que usava dobrara


de peso devido à água acumulada no tecido. O frio a fazia tiritar, aliado
ao medo. O som de sua respiração ofegante se misturava ao ruído da
chuva que caía.

“E agora, Cristine?”, pensava ela, “você é uma mulher ou um rato?”,


“levanta e anda! Vai ver o que está acontecendo!”... Ordenava para si
mesma.

Conseguindo dominar seus temores ergueu-se com cuidado. Sua vista


havia se acostumado à escuridão e passou a mover-se como um animal
preste a dar um bote. Segurava fortemente a lanterna apagada em

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suas mãos. Lentamente foi se aproximando da sepultura de seu tio
Artur. Na penumbra percebeu que algo estava diferente. Novamente
seus batimentos cardíacos aceleraram-se. Prudentemente parou uns
instantes e apurou o ouvido. Silêncio, absoluto silêncio.

Deu mais alguns passos e estancou horrorizada com a visão à sua


frente. O pesado tampo de mármore estava totalmente deslocado para
o lado, pendendo num ângulo de cerca de quarenta graus e escorado na
parede lateral do jazigo. Movida pelo instinto Cristine direcionou a
lanterna para o buraco escuro do túmulo e ligou a luz, cujo facho tênue
iluminou o interior vazio da cova. Assustada deu um passo para trás,
abafando um grito de pavor. Levou sua mão à boca, como que tentando
segurar seu coração dentro do peito. Os anjos guardiões como que
surpreendidos na noite, pareciam ostentar semblantes de incredulidade,
assim como Cristine.

Estática, sentiu suas pernas cedendo com o peso de seu corpo. Fez um
esforço quase que sobre-humano e conseguiu controlar a sensação de
desmaio que a invadia. Novamente deu um passo para frente e a luz
fraca da lanterna, auxiliada por um relâmpago fugaz, não deixou
dúvidas em Cristine: a catacumba estava vazia!

Cristine não sabia o que pensar. Teve a sensação de estar dentro de um


filme de terror. Parecia estar aprisionada num pesadelo horrendo e
desejou, com todas as suas forças, acordar de sobressalto e perceber-
se protegida nos braços de Angélica. Mas não era sonho.

Enquanto esses pensamentos borbulhavam em sua mente um novo


relâmpago, seguido de um estampido imediato, iluminou a noite e fez
com que Cristine visse nitidamente a figura que se aproximava dela,
estendendo-lhe os braços. Sem conseguir se conter emitiu um grito
apavorado que ecoou na noite, sendo abafado pelo som da tempestade.

À sua frente e avançando vagarosamente em sua direção havia uma


figura disforme, um ser envergado pelo peso do próprio corpo, uma
parte do rosto descolorido e cadavérico aparecia por baixo da aba larga
do chapéu de feltro encharcado. As mãos estendidas em sua direção
davam a impressão de querer aprisioná-la em algum calabouço
medieval. Um gesto mais brusco daquele ser horrendo, cujo capote
escuro lhe chegava até os pés e o chapéu negro escondia parte de seu
semblante, fez Cristine derrubar a lanterna e disparar correndo na
direção do castelo. Num vôo cego pela noite, levava pela frente pedaços
de galhos de árvores e vegetação rasteira. No percurso tropeçou
inúmeras vezes e chegou a cair em duas ocasiões, levantando-se logo
em seguida, movida única e exclusivamente pela adrenalina, que
aguçara o seu instinto de sobrevivência. Não saberia precisar como
conseguiu transpor o portal do campo-santo tão rapidamente.

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Chegou à porta dos fundos do castelo ofegante e totalmente
aterrorizada. Entrou e fechou a porta atrás de si, passando uma pesada
tranca nos suportes de metal no lado de dentro da porta.

Com o pouco de senso lógico que lhe restava tirou as botas, para poder
correr em silêncio pelos corredores desertos. Subiu as escadas quase
que de dois em dois degraus. Abriu a porta de seu quarto, entrou e a
chaveou logo atrás de si. Desta feita colocou novamente uma cadeira
para escorar o trinco por dentro, deixando-a ali, como um fiel guarda-
costas a zelar por sua integridade. Também correu até a janela
fechando os tampos de madeira e cerrando as tramelas por dentro.
Pronto. Sentia-se ao menos parcialmente protegida.

Ali, na segura claridade de seu quarto, desmoronou por completo. Seus


joelhos se dobraram e ela deixou-se cair sobre o peso do corpo,
soluçando compulsivamente. Sentia-se sozinha e com medo. Naquele
momento seu porto seguro não estava longe dali, porém uma distância
escura e ameaçadora a separava dela. Tinha vontade de ir até a casa de
Angélica, mas estava sem coragem de ir além dos limites daquele
quarto. Pensou em ligar para ela, mas temia por sua segurança caso se
deslocasse sozinha até o castelo. Sabia que algo terrível estava
acontecendo lá fora, mas não sabia o quê.

Novamente tentou racionalizar e percebeu que o mais coerente seria


esperar o dia amanhecer. Deu-se conta que tremia de frio em virtude
das roupas totalmente molhadas. Tomou um banho e colocou um
pijama.

Aninhou-se sob as cobertas quentes e tapou sua cabeça, como sempre


fazia quando tinha medo. Já eram quase três horas da madrugada.

Embora tentasse dormir seus sensores internos de perigo a fizeram


ficar de olhos abertos a noite toda, vigilante e apreensiva. Milhares de
coisas passaram em sua cabeça. Idéias mirabolantes, cenários
demoníacos, paisagens lúgubres, sensações temerosas.

Por volta de sete horas percebeu que o dia havia amanhecido e deu
graças a Deus. Talvez por relaxar frente ao término da escuridão
acabou pegando no sono e dormiu até quase dez horas da manhã.

Acordou de sobressalto.

Cristine sentou-se na cama e olhou o relógio. Marcava nove horas e


cinquenta e sete minutos. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi
Angélica. Precisava falar com ela. Vestiu-se apressadamente,
sobrepondo dois blusões de lã, uma vez que o único casaco mais
pesado que havia levado estava totalmente ensopado no chão do

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banheiro. Suas botas também estavam molhadas, por isto optou por
calçar tênis. Decidiu que não falaria com ninguém sobre a noite
anterior, somente com Angélica. “Preciso aparentar naturalidade
quando descer” pensou, tentando controlar seus nervos.

Desceu a escadaria do castelo e percebeu que a sala das refeições


estava vazia. Ficou aliviada. Passou pela cozinha e espiou para dentro
vendo que Regina e Adelaide estavam distraídas com o almoço. Elas
nem perceberam sua espiadela furtiva. Silenciosamente dirigiu-se para
a porta da frente. Saiu para a rua sentindo um calafrio ao receber uma
lufada de vento gélido no rosto. Encolheu-se toda abraçando o próprio
ventre e encurvando-se para enfrentar as investidas das rajadas de
vento. Não estava chovendo, porém o tempo continuava carregado.
“Acho que o sol nunca brilha neste lugar”, pensou Cristine enquanto
caminhava apressadamente na direção da casa de Angélica.

Embora tentasse relaxar estava apreensiva e tensa, com os nervos à


flor da pele. Já passava da metade do caminho quando escutou
nitidamente passos atrás de si. Disfarçadamente tentou perceber
alguma movimentação com o olhar periférico e viu claramente um vulto
tentando se esconder na vegetação, ao perceber seu movimento.
Cristine sentiu um misto de medo e raiva. Estava odiando estar ali
naquela situação. Embora houvesse conhecido Angélica, que era seu
único alento naquele lugar, sentia-se como um peixe fora d’água, na
verdade um peixe ornamental num tanque com tubarões. Nesta feita o
caminho de chão batido fazia uma curva mais acentuada. Cristine não
teve dúvidas: agachou-se e armou-se com um pedaço de tora de
madeira seca. Quem quer que fosse não encostaria as mãos nela, pelo
menos sem luta. Ficou na espreita e tão logo escutou o ruído leve dos
passos se aproximando pulou na frente do vulto, esperando ver a
garatuja da noite anterior, e gritou, tentando amedrontá-lo:

- Parado aí! Se não quiser conhecer minha ira!

A cena chegou a ser teatral. Cristine tentava convencer a si mesma


antes de quem quer que fosse.

Instantaneamente a figura à sua frente estancou e levantou os braços.

- Calma moça! – disse o rapaz.


- Quem é você?
- Thomaz. Eu trabalho aqui.
- E porque está me seguindo? – intimou Cristine ainda com a tora em
punho, ameaçadoramente.
- Eu não estou seguindo a senhorita. Estou indo buscar lenha. –
respondeu o rapaz brandamente. – Me desculpe se a assustei, não foi
minha intenção.

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Aos poucos Cristine foi relaxando. Baixou o pedaço de madeira e
respondeu:
- Tudo bem... É que não estou acostumada a andar assim pelo meio do
mato... E me assustei.
- A senhorita gostaria que eu a acompanhasse a algum lugar?
- Não. Não precisa. Eu to indo ali na casa da Angélica.
- A senhorita é quem sabe. Se precisar de algo é só chamar. Com
licença.

Cristine deu o lado para o rapaz passar e este rumou pelo mesmo
caminho, porém seguindo em frente, na direção do capão de mato mais
cerrado. Cristine percebeu que ele tinha um facão na cintura e um saco
de linhagem pendurado. De fato parecia estar disposto a buscar lenha.
Pelo menos se quisesse poderia ter lhe atacado, sendo que não o fez. Já
havia ouvido Dr. Mendes se referir a ele, embora não o tivesse visto
ainda. Precisava controlar seus nervos. Seguiu em frente.

Contornou a residência dos pais da morena pelos fundos, não queria ser
vista por ninguém. Percebeu fumaça na chaminé da lareira, respirando
aliviada pelo indício de Angélica estar em casa. Bateu na porta dos
fundos da cabana.

Angélica abriu a porta e a fitou com uma expressão inquiridora ao


perceber seu evidente nervosismo. Sorriu-lhe afetuosamente e abriu os
braços. Cristine se jogou neles e se pôs a soluçar. Angélica limitou-se a
abraçá-la e trazê-la para dentro de casa, fechando a porta atrás de si.

- Minha querida, o que foi que houve?... – perguntou a morena


amorosamente após alguns segundos.

Cristine mal conseguia falar.

- Vem aqui... – disse Angélica – Senta... Tenta te acalmar e me diz o


que foi que houve.

Angélica percebeu que Cristine estava gelada e com pouca roupa.


Tratou de servir um café recém passado e pegou um cobertorzinho de
lã na sala, cobrindo-lhe os ombros e aconchegando-a junto de si.

Aos poucos Cristine foi se acalmando e sentindo novamente o sangue


esquentar dentro das veias.

- E agora... Já consegue me contar o que houve? – perguntou a


morena.
Cristine anuiu com um movimento de cabeça.
- Me desculpa a entrada assim... Tempestiva... Mas é que... É que... – e
fez silêncio.

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Angélica sabiamente permaneceu calada, somente abraçando Cristine e
passando a mão sobre as suas, numa atitude de carinho e proteção. A
loirinha respirou fundo e continuou:

- Olha só.... O que eu vou te falar vai parecer loucura... Mas eu juro
que é verdade... Ontem à noite eu não conseguia dormir...
- Eu também custei a dormir... – disse Angélica amorosamente,
tentando descontrair sua interlocutora – Fiquei pensando numa certa
pessoinha adoravelmente sedutora e linda...

Cristine sorriu, continuando logo em seguida.

- Eu abri a janela do meu quarto e vi luzes no cemitério.


- No cemitério?
- É. Parece mentira, mas é verdade. E eu fui até lá.
- Tu foste no cemitério sozinha de madrugada? – perguntou Angélica
demonstrando incredulidade. – A troco de quê???
- Eu precisava ver o que estava acontecendo!

Angélica levou as mãos à cabeça, assumindo um semblante


preocupado.

- Tu não devias ter feito isso!


- Por quê? – quis saber Cristine.
- Bom... Por que... Porque é perigoso, ora essa! Andar sozinha de
madrugada na rua! E ainda mais num lugar ermo como o cemitério.
- Mas você falou que aqui não tem perigo... – disse a loirinha.
- Bom... Não tem perigo até ali... Mas não se deve arriscar... Cristine,
isso é loucura!
- Loucura é o que eu vou te contar agora... Mas eu juro que é verdade.
- O que é... Diga.
- A sepultura do tio Artur está vazia! A lápide foi removida e o caixão
não está lá.

Angélica engoliu em seco e ficou estática.

- Como é que é???... – perguntou a morena com a voz entrecortada.


- Vou te contar toda a história. – disse a loirinha.

Tentando não atropelar as palavras Cristine contou a Angélica tudo o


que ocorrera na noite anterior. A morena ouviu tudo no mais absoluto
silêncio. Certa feita pareceu à Cristine que Angélica não estava tão
espantada com sua história quanto esperava que ficasse. Porém
convenceu-se de que se tratava somente de uma impressão,
provavelmente pelo impacto que seu relato lhe causara, considerando-
se o vínculo que tinha com o padrinho.

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Quando deu por encerrada sua história Angélica permaneceu como que
em estado de choque, fitando-a com uma expressão de extrema
preocupação.

- Diz alguma coisa. – pediu Cristine.


- Eu não sei o que dizer...
- Mas ao menos você acredita em mim? – perguntou Cristine.
- Não sei... Quero dizer, sim, acredito...
- Eu não senti firmeza – disse Cristine demonstrando decepção.
- Olha... – disse Angélica tentando se retratar – Não é que eu duvide...
Mas tu já paraste pra pensar sobre isso? Isso não tem cabimento. A
gente viu o caixão sendo colocado lá...
- Mas alguém tirou!
- Mas por qual motivo? – perguntou Angélica.
- Isso eu não sei! – respondeu Cristine se exaltando – Mas se você ta
duvidando vamos lá para ver!
- Eu não estou duvidando de ti. Só cogito a possibilidade de um
engano... De uma ilusão de ótica, sei lá...
- ILUSÃO DE ÓTICA O ESCAMBAU, ANGÉLICA!!! EU TENHO CERTEZA
DO QUE VI!!! – disse Cristine beirando o descontrole.
- Tudo bem... Tudo bem... – disse Angélica num tom brando, abraçando
Cristine e aconchegando-a junto ao peito – Me desculpa. Eu acredito em
ti. Me desculpa.
- Eu tive tanto medo... – disse Cristine – Eu desejei estar contigo aqui,
assim, protegida.
- E agora está. E eu quero que tu me prometas uma coisa, prometas
não, quero que jures...
- O que? – quis saber Cristine.
- Nunca mais, nun-ca-ma-is, saia sozinha assim pela noite. Se quiser ir
me chama que eu vou junto. Mas não vai mais sozinha... Jura?
- Juro. – disse Cristine olhando Angélica nos olhos.
- Eu não quero que nada de mal te aconteça, nunca... – disse a morena
enquanto capturava os lábios de Cristine num beijo apaixonado.

Cristine sentiu como que se todos os seus temores e receios se


acabassem com aquele beijo e com aquele abraço. De fato jamais
sentira tamanha confiança em nenhuma outra pessoa. Em nenhum
abraço sentiu-se tão acolhida, em nenhum beijo sentiu-se tão desejada.
Seus medos pareciam infantis e infundados ao lado de Angélica, tinha a
confiança de que ela não deixaria nada de mal lhe acontecer.

- Angélica... Vamos até o cemitério? Eu posso provar que estou dizendo


a verdade, que não é fantasia minha, que não foi sonho... – pediu
Cristine.
- Tudo bem. Vamos lá sim. Mas antes eu vou te emprestar um casaco.
- O meu ficou ensopado.
- Imagino...

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Angélica pegou um casaco escuro que chegava quase que aos joelhos
da loirinha. Apesar de sobrar Cristine dentro dele era infinitamente
melhor do que sentir frio. Isso sem falar no cheiro de Angélica,
entranhado no tecido, que exalava como um bálsamo para os sentidos
de Cristine. A morena também emprestou uma touca de lã para a
loirinha, que a enterrou na cabeça a fim de proteger suas orelhas.

Num clima de expectativa e tensão rumaram para o cemitério.

O imenso portão com suas barras paralelas de ferro enegrecido pelo


tempo estava ali como na noite anterior: fechado, porém destrancado.
Novamente Cristine ouviu o mesmo rangido lúgubre assim que Angélica
empurrou as grades para o lado dando passagem às duas. Conforme
iam se aproximando da sepultura de Artur, Cristine ia apertando mais a
mão de Angélica. Esta última podia ouvir a respiração acelerada de
Cristine e segurou sua mão com firmeza, encarando-a com confiança.

Cristine animou-se e seguiu em frente. Quando por fim chegaram à


catacumba Cristine empalideceu e cambaleou, necessitando ser
amparada por Angélica.

A lápide de mármore estava intacta, colocada sobre o jazigo como no


dia do sepultamento. Num ímpeto Cristine correu na direção da pedra,
debruçando-se sobre ela e tentando movê-la para o lado. Beirando o
descontrole dizia:

- Mas tava aberto! Essa pedra não estava aqui! Ele não está aqui
embaixo! Eu vi! – Num impulso tentava inutilmente mover a pesada
lápide que tinha as cravelhas fortemente parafusadas unindo-a à
mureta de pedras do jazigo.

Angélica aproximou-se dela e abraçou-a com firmeza tirando-a de cima


do túmulo. Cristine agarrou-se a ela desesperadamente, enquanto
repetia sem parar:

- Eu vi... Eu juro que vi... Eu não estou louca... Estava aberto... Eu


juro... Eu vi... Eu tenho certeza...
- Tudo bem... Calma... Cristine, calma... Por favor...
- Mas eu juro... – disse Cristine chorando baixinho.
- E eu acredito. – respondeu Angélica – Mas vem, vamos pra casa.
Vamos sair daqui.

Cristine ainda olhou mais uma vez para a lápide e balançou a cabeça
incrédula. Dirigiu ainda um olhar de súplica aos anjos de pedra, como
que numa tentativa de que pudessem acenar a verdade para Angélica.
A trilha de onde surgira o ser horrendo que a atacara continuava ali,
aparentando ser inofensiva.

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Por um momento chegou a cogitar a possibilidade de estar
enlouquecendo.

Angélica conduziu Cristine para sua cabana. Durante todo o trajeto


nada disseram. Caminharam lado a lado, Angélica com o braço sobre os
ombros de Cristine, amparando-a.

Quando por fim instalaram-se no sofá da sala Angélica quebrou o


silêncio:
- Cristine... Para tudo existe uma explicação lógica. E a gente vai achar,
ok? Eu te prometo.
- Mas eu não entendo... Eu vi. A lápide não estava lá, daquele jeito...
Tava no lado. E a cova tava vazia. O caixão não tava lá...
- Minha querida, tenta ficar calma. Vamos racionalizar. Alguma
explicação deve haver. Mas tenta manter a calma.
- Será que eu to enlouquecendo?...
- Claro que não! Mas tu tiveste muitas emoções de uns dias para cá...
Sei lá... Vamos fazer o seguinte: vamos tentar não nos
impressionarmos com isso. Vamos tentar conversar sobre outras
coisas... Outro dia a gente retoma esse assunto, quando a lembrança
dele não te causar o que te causa hoje.
- Tudo bem... Acho que você tem razão. Mas tem outra coisa. Tem o tal
monstro. Eu não posso ter imaginado. Eu vi.

Angélica suspirou e baixou os olhos.

- Ta... – continuou Cristine – Não vamos mais falar disso. Outro dia
quem sabe.
- Eu acho melhor. – Assentiu a morena.
- E Ariel? – perguntou Cristine mudando intencionalmente de assunto.
- Ta ótimo. O cabeçudo perguntou por ti hoje bem cedo.

Cristine sorriu.
- Pois é... A aula particular dele foi adiada ontem por motivos de força
maior... – brincou a loirinha.
- Mas em compensação tu deste e recebeste uma aula e tanto, ein? Ou
preferias matemática? – provocou Angélica.
- De forma alguma... Digamos que... Anatomia é muito mais
interessante...
- Concordo plenamente. – disse a morena enquanto abraçava Cristine e
a envolvia num beijo amoroso.
Entre afagos e carícias Angélica lembrou-se de perguntar:

- Escuta, tu vieste direto pra cá hoje pela manhã?


- Vim.
- Comeste alguma coisa antes de vir?
- Não.

99
- Tu ta em jejum? – perguntou Angélica.
- Pois é... Mas eu descobri que teus beijos têm o poder de me
alimentar...
- Não debocha! Eu to falando sério. – disse a morena.
- Eu também...

Ambas sorriram. Angélica desvencilhou-se do abraço de Cristine e a


puxou para a cozinha.

- Vem cá, vamos comer alguma coisa.

Angélica abriu a geladeira e perguntou:

- O que a senhorita gostaria de comer?

Cristine olhou-a de cima a baixo sedutoramente e simplesmente sorriu.

- Amadinha, esse corpo moreno não está no cardápio, pelo menos


agora... – e riu-se. – Diz aí, vai querer o quê?
- Sei lá. Que horas são?
- E por acaso tu come conforme a hora?
- Não é isso, sua boba! É que já ta quase na hora do almoço e eu não
quero atrapalhar...
- Tu estás sempre preocupada em não atrapalhar. Eu já te disse que
jamais me atrapalhas. Muito pelo contrário.

Cristine sorriu lisonjeada e respondeu:


- Eu não queria almoçar lá no castelo... Prefiro ficar aqui.
- Tu que manda. Quer o quê, afinal?
- Qualquer coisa...
- Ta a fim de almoçar direto?
- Pode ser.
- Bom, então, eu sugiro algo bem prático e que requer pouquíssima
habilidade...
- O que??? – quis saber Cristine, curiosa.
- Lasanha. Congelada!
- Cardápio aprovado! – respondeu Cristine.
- Vem aqui escolher então. Eu confesso que adoro lasanha e meu
freezer tem sempre um lote!
- Huuummm... Quero essa aqui, com molho branco.
- Ótima escolha, madame! – disse Angélica teatralmente retirando a
lasanha da embalagem e a colocando no forno. – Prontinho. Mais meia
hora e esta gostosura estará pronta para ser devorada!
- Aliás, falando em devorar... – provocou Cristine abraçando Angélica
pela cintura.
- Que mocinha sapeca... – respondeu Angélica beijando Cristine com
paixão. – Mas saco vazio não pára em pé! – continuou desvencilhando-

100
se e preparando um sanduíche de presunto e queijo para enganar o
estômago de Cristine.

Ficaram divagando sobre vários assuntos enquanto esperavam a


lasanha ficar pronta. Namoraram como adolescentes comportadas e
quando por fim o almoço foi servido, comeram avidamente. Cristine
lembrou de ligar para o castelo e avisar que almoçaria com Angélica.

A loirinha ajudou a lavar a louça e quando finalmente se deitaram


abraçadas no sofá da sala o telefone celular de Angélica tocou. Esta se
levantou num sobressalto, atitude que causou estranheza em Cristine,
acostumada a ver uma Angélica menos ansiosa.

A morena atendeu ao telefone e seu semblante se modificou


instantaneamente assim que viu o número que estava registrado na
memória de seu aparelho.

- Sim. Ta. Tudo bem. Entendi.

Angélica ouvia atentamente e respondia com monossílabos. Tentava


não demonstrar emoções, mas Cristine percebeu que a mesma ficara
tensa, com uma expressão no mínimo preocupada. Assim que desligou
o telefone tentou recobrar-se e disse:

- É... Eu preciso dar uma saída... Jogo rápido. Se quiseres podes ficar
aqui.
- Ta tudo bem? – questionou Cristine.
- Ta. Tudo legal.
- Por que essa cara de preocupação? – insistiu Cristine.
- Preocupação? Impressão tua. Ta tudo bem, tudo normal.

Cristine não quis ser invasiva e controlou-se para não perguntar aonde
Angélica iria. Como que adivinhando seus pensamentos a morena disse
com voz branda:
- Eu vou até a cidade. Preciso resolver umas pendências. Mas eu não
demoro.
- Eu não conheço a cidade... – arriscou Cristine, envergonhando-se em
seguida de sua ousadia.
- Outro dia eu te levo para conhecer, ok? Hoje não dá.
- Desculpe, eu não quis... – tentou dizer Cristine, porém um beijo de
Angélica não permitiu que concluísse a frase.
- Eu sei... – respondeu a morena.

Cristine sorriu timidamente e disse:


- Eu vou para o castelo, quando você chegar me avisa?
- Aviso. Mas não preferes ficar aqui?
- Prefiro, mas não quero ficar dando bandeira.

101
- Tu que sabe. – disse Angélica.

Elas ainda trocaram um beijo ardente e cada qual seguiu seu caminho
naquele início de tarde de domingo.

****************

Quando Cristine entrou em seu quarto deparou-se com sua roupa,


outrora ensopada, limpa e seca, dobrada sobre sua cama. Suas botas
também haviam sido limpas e secas. Por certo Adelaide havia
providenciado aquilo sob a supervisão de Anemary. O bom de se ter
aqueles serviçais ao dispor era que eles não questionavam nada,
simplesmente executavam tarefas. E naquela situação o que Cristine
menos queria fazer era dar explicações.

Cristine envolveu o casaco de Angélica com um abraço e inalou a


fragrância agradável de seu perfume. Ficou matutando o que teria ido
fazer na cidade. Quem teria ligado para ela? Seria alguma mulher?
Teria Angélica algum caso amoroso mal resolvido? Ou ainda por
resolver? Decidiu não pensar sobre aquilo, no entanto a expressão
circunspeta de Angélica lhe deixava com o coração apertado. Pressentia
que algo não corria bem. Tentou controlar sua imaginação que já estava
transbordando de pensamentos confusos.

Evitou abrir a janela. Não queria avistar o cemitério novamente, pelo


menos naquele dia. Por volta de três e meia resolveu procurar o Dr.
Mendes, para conversar um pouco com ele. Ao sair de seu quarto
avistou uma caixa de papelão colocada da soleira da porta. Achou
bastante estranho ter uma caixa assim no corredor, principalmente
defronte a seu quarto. A caixa era recoberta com papel de presente
azul. Seria uma surpresa de Angélica? Olhou para os lados e não havia
ninguém no corredor. Com curiosidade pegou a caixa e a colocou sobre
sua cama. Ao abrir a tampa Cristine não conseguiu controlar um grito
de pavor. No interior da caixa uma serpente enrosquilhada agitava-se
nervosamente. Movida por puro reflexo fechou a caixa rapidamente,
sem dar tempo para o ofídio dar o bote.
Descolorida pelo choque Cristine saltou e se colocou em pé, encostada
na parede. Neste momento Anemary entrou no quarto de Cristine,
atraída por seu grito.

- O que houve senhorita?

Cristine, muda, apontava para a caixa. Quando a governanta fez


menção de abrir a tampa de papelão Cristine gritou:

102
- NÃO! Tem uma cobra aí dentro!
- Como?
- Tem uma cobra aí dentro!

A governanta se retesou. Morris adentrou correndo no quarto.

- Senhorita! Está tudo bem? Eu ouvi um grito.

Era a primeira vez que Cristine percebia uma entonação diferente na


voz do mordomo. Estaria de fato preocupado com ela?

- A senhorita Cristine diz que tem uma cobra dentro desta caixa! – disse
Anemary para o mordomo.
- Mas como veio parar aqui? – perguntou Morris recuperando seu tom
de voz pausado e sua postura inexpressiva.
- Ora Morris, francamente! – respondeu Cristine irritada – Você acha
que eu costumo encaixotar cobras para ficar gritando de susto?
- Desculpe mademoiselle... – disse o mordomo.
- Se eu soubesse que havia uma cobra aí dentro eu não teria aberto
esse raio de caixa! – continuou Cristine.

Neste momento foi Dr. Mendes que se juntou a eles.

- O que está havendo aqui? – perguntou preocupado.

Cristine, tentando manter a calma, explicou o que acontecera. Morris e


Dr. Mendes aproximaram-se da caixa, abrindo-a com cuidado. Em seu
interior a cascavel agitava seu guizo freneticamente. O advogado
empalideceu e pediu a Morris:
- Leve-a daqui. Deixe em lugar seguro que eu vou dar destino nela
depois.
- Sim senhor.

Anemary seguiu Morris. Assim que desceram as escadas Cristine


exclamou:

- Afinal, que raio de lugar é esse??? Quem me daria uma cobra de


presente??? O que é que está acontecendo??? Alguém quer me matar
ou me enlouquecer!
- Calma, minha filha... – disse o advogado.
- Calma nada! Ou o senhor me diz o que está havendo por aqui ou eu
vou embora hoje mesmo!
- Mas eu não sei sobre o que estás falando...
- Sobre uma tentativa de assassinato! O meu! Ou vai querer me
convencer que alguém me enviou uma cobra como souvenir???

103
- Cristine, eu não sei como esse bicho peçonhento pode ter vindo parar
aqui, mas eu vou descobrir! Eu garanto. Pode ter sido um descuido...
Ou uma brincadeira de mau gosto...
- Brincadeira de mau gosto??? Quem por aqui é dado a esse tipo de
humor negro???
- Eu realmente não sei... – disse o advogado brandamente. – Mas eu
vou descobrir. Pode confiar no que te digo: eu vou descobrir.

Cristine respirou fundo. Dr. Mendes parecia sincero em suas palavras.


Duvidava que tivesse conhecimento do “quarto dos horrores”, ou que
estivesse envolvido na violação da sepultura do tio. Parecia ser um
homem franco.

- Eu vou até a cozinha. – disse Cristine – Preciso beber uma água com
açúcar...
- Vá, minha filha, vá... Eu desço logo em seguida.

Tão logo Cristine desapareceu no vão da escada Dr. Mendes tirou um


telefone celular do bolso. Quando atenderam do outro lado da linha o
advogado falou baixo:

- A situação está ficando fora de controle. Quero vigilância redobrada.

Na hora do jantar Angélica apareceu no castelo. Cristine estava


amuada. Aguardou seu telefonema a tarde toda. Durante o jantar
falaram pouco. Ninguém mencionou o episódio da cobra. James chegou
da cidade praticamente na hora da refeição e logo em seguida recolheu-
se aos seus aposentos. Valesca e João Vítor pediram para jantar no
quarto. Logo depois da ceia Dr. Mendes, Angélica e Cristine foram
tomar um licor na biblioteca. O advogado, alegando cansaço, deixou as
moças após uma única dose de licor de anis. Quando ficaram sozinhas
Angélica falou:

- Eu acabei me atrasando na cidade... – tentou se justificar, mesmo


sem Cristine ter feito nenhuma cobrança verbal.

A loirinha deu de ombros e respondeu:


- Esta tarde as coisas ficaram meio tumultuadas por aqui.
- Como assim? – perguntou Angélica.

Cristine contou sobre o incidente da cascavel. Angélica ouviu em


silêncio e fechou o cenho, numa atitude de preocupação. Ao final do
relato de Cristine a morena a fitou meditabunda e falou mais para si
mesma do que para a loirinha:

- E eu não estava aqui...


- Mas o que isso tem a ver?

104
- Tudo. Eu disse que não vou deixar que nada te aconteça.
- Mas você sabe de algo que possa me acontecer??? – questionou
Cristine.
- Não... Não sei... Mas... – titubeou Angélica – Se eu não tivesse ido à
cidade tu estarias lá em casa, comigo.

Cristine a fitou com olhar perscrutador e perguntou em seguida:


- E você conseguiu resolver sua... Pendência?
- Consegui. - respondeu Angélica secamente.
- Que bom.
- Cristine, tu vem comigo lá pra casa. – disparou Angélica – Digam o
que disserem, tu não fica mais aqui sozinha.
- Angélica, assim você está me assustando.
- Não há do que se assustar – disse Angélica brandamente – Mas é
que... Bom... Eu pensei que talvez a gente pudesse... Estudar mais um
pouco de anatomia... – e sorriu sedutoramente.
- Bom... Usando esse tipo de argumento, não me resta alternativa que
não seja aceitar.
- Ótimo. Mas vamos fazer o seguinte: vamos sair na camufla, ok?
- Ok.
- Pega o que quiseres e vamos. Há essa hora o pessoal já foi dormir.

Cristine foi até seu quarto e pegou alguns pertences pessoais


colocando-os numa pequena valise de mão, assim como algumas
poucas peças de roupa. Entreabriu a porta de seu quarto e espiou para
fora. O corredor estava vazio, somente Angélica a vigiava do topo da
escada. Cristine caminhou sem fazer barulho, pegou na mão de
Angélica e foram para a cabana.

Durante o trajeto Cristine teve a impressão de que Angélica estava


tensa. Por vezes surpreendia a morena lançando um olhar em volta,
como um radar silencioso. Aquilo a deixou com uma sensação de aperto
no peito. Afinal quem era de fato aquela mulher que a escoltava até sua
casa e com a qual havia tido o melhor sexo de sua vida? O que
verdadeiramente Angélica sabia? O que evitava contar-lhe e por quê?
Por vezes tudo eram dúvidas, no entanto ao mergulhar no abraço da
morena e fitar o fundo de suas pupilas azuladas suas incertezas se
transformavam como que num passe de mágica em segurança e
conforto, mais que isso, em fogo, desejo e paixão. Angélica lhe
despertava sentimentos até então adormecidos. Queria estar ao lado
dela, sempre. Queria seus abraços e seus beijos como porto seguro
naquela situação, quiçá por muito mais tempo...

Ao entrarem na cabana Cristine respirou aliviada ao constatar que


Angélica trancara as portas. Tirou o pesado casaco de lã e virou-se para
a morena, sorrindo-lhe amorosamente. Angélica a abraçou com carinho,
aconchegando-a junto a seu peito.

105
- Pronto. Agora está tudo bem... – disse a morena enquanto afagava os
cabelos de Cristine.

A loirinha levantou seus olhos e sorriu languidamente. Com doçura


passou a beijar o peito de Angélica e em seguida seu pescoço. Seus
lábios subiram mais um pouco, e deram suaves mordiscadas no lóbulo
da orelha da morena. Instantaneamente Angélica se acendeu, deixando
transparecer a excitação. Sua respiração acelerou-se e ela apertou
Cristine com força de encontro a seu corpo.

As mãos ávidas das duas mulheres passaram a se explorar


voluptuosamente, buscando curvas e pontos de prazer. Sem
desvencilharem-se uma da outra subiram a escada que levava até o
quarto de Angélica. O trajeto da subida demorou mais do que o
necessário, pois ambas encontravam-se com a atenção totalmente
voltada para as carícias da outra.

Angélica procurava não errar os degraus, segurando firme o corpo


incandescente que se roçava nela sem pudores. Aquela pequena mulher
sabia como despertar sua fera interior, o animal adormecido ávido por
dar e receber prazer. Naquele momento se deu conta que nunca havia
desejado tanto se dar para alguém, no sentido literal e metafórico.
Ansiava fundir-se com aquele pequeno ser e fazê-la o mais plena de
amor possível.

Cristine sentia as mãos firmes de Angélica a sustentá-la e conduzi-la


em segurança até o andar de cima. Durante a subida havia arrancado
parte da roupa de Angélica que ficara espalhada pela escada de
madeira. Ao chegarem ao quarto, Angélica já estava com o torso nu.
Cristine abocanhava seus mamilos escuros com avidez e sugava-os
excitada com a rigidez destes.

Angélica tratou de tirar a roupa de Cristine, sempre abraçada nela, não


conseguindo descolar seu corpo daquela mulher que a acariciava com
voracidade. Excitava-se ao perceber a figura ponderada, que
aparentava tranquilidade e classe, transformada naquela mulher
dominada pela luxúria e pela volúpia. Chegava à beira do descontrole
ao ver a loirinha oferecendo-se toda a ela, sem pudores e sem reservas.
Num ímpeto atirou Cristine, completamente despida, de costas sobre o
edredom macio da cama. De pé, aos pés da cama, abriu o zíper de sua
calça jeans e baixou-a juntamente com a sua calcinha, desnudando-se
por inteiro.

Cristine mordeu o próprio lábio ante aquela visão e esgueirou-se de


costas na direção da cabeceira da cama. Ajeitou-se sobre os
travesseiros e abriu as pernas, oferecendo seu sexo totalmente
molhado para a mulher à sua frente.

106
Angélica aproximou-se e rastejou sobre ela, deixando que seus seios
tocassem o sexo de Cristine, que arqueou o corpo num gemido.
Encaixou-se sobre a pequena mulher pressionando seu púbis contra o
dela. Novamente Cristine sentiu o jorro quente que vinha de dentro da
morena a escorrer-lhe por entre as pernas, misturando-se à sua própria
umidade. Angélica beijou a boca de Cristine com possessão e lascívia.
Deixava-se invadir pela língua de Cristine e percorria cada canto de sua
boca com a própria.

Com um movimento lento Angélica desceu pelo colo de Cristine


beijando e sugando seus mamilos rosados. Enquanto com uma das
mãos acariciava um seio, com a língua percorria o contorno do outro,
culminando por abocanhá-lo completamente, deixando Cristine a gemer
baixinho.

Desceu mais um pouco e sentiu a loirinha abrir mais suas pernas, num
convite explícito a posicionar-se entre elas. No mesmo ritmo lento e
sensual com o qual beijara os seios, Angélica passou a mordiscar os
arredores do sexo de Cristine. Quando sentiu que esta movimentava o
ponto central de seu prazer na direção de seus lábios, abocanhou-o de
uma vez, com sofreguidão e desejo. Sentiu o gosto daquela mulher em
sua boca e sorveu de sua essência como quem se serve de um néctar
dos deuses. Cristine tinha um gosto ímpar, um cheiro excitante e um
toque que fazia Angélica perder o chão. Aquilo por certo deveria ser
amor...

Cristine movia seus quadris de encontro à boca de Angélica que a


sugava ritmicamente. A loirinha estava tão excitada que não conseguiu
adiar a explosão que a acometeu de uma forma brusca e incontrolável.
Seu grito de prazer ecoou nas paredes do quarto. Angélica sorriu
satisfeita amando senti-la gozar daquela forma. Esgueirou-se sobre ela
envolvendo-a num abraço e beijando-lhe a boca.

Cristine olhou para sua amante deixando-se desfalecer por instantes em


seus braços, sentindo seu próprio gosto na boca de Angélica. No
entanto, logo se recobrou e girou o corpo sobre a morena dizendo-lhe
sedutoramente:

- Agora sou eu que quero sentir o teu gosto...

Angélica não se fez de rogada. Abriu suas pernas e ofereceu-se toda


para Cristine. A loirinha mergulhou naquele triângulo de pelos escuros,
cuidadosamente aparados e cujo odor a deixava desvairada de tesão.
Sem rodeios mergulhou na maciez da carne que se movia a cada toque
de sua boca. Penetrou-a com a língua sentindo o calor que vinha de
dentro dela. Desta vez era Angélica quem gemia e se contorcia de
prazer. Cristine moveu sua língua na direção do clitóris de Angélica e

107
começou a lambê-lo ritmicamente, sentindo-o aumentar de tamanho
enquanto a morena estremecia a cada passada de língua. Disposta a
não castigar muito aquela mulher, que a havia feito gozar como
nenhuma outra, e sentindo que ela queria mais, abocanhou seu ponto
de prazer, passando a sugá-lo com avidez, cada vez mais rápido. Não
precisou de muito tempo para Angélica segurar-se na cabeceira da
cama, arquear o corpo e emitir um gemido gutural e espasmódico,
gozando na boca de Cristine.

Desta vez foi a loirinha quem sorriu e deitou a seu lado. Abraçaram-se
com força. Angélica puxou Cristine para cima dela, queria senti-la bem
perto. Aos poucos a respiração da morena foi se normalizando e elas
olharam-se nos olhos e sorriram, em silêncio. Naquele momento as
palavras eram dispensáveis.

A noite recém começava e as amantes trocaram carícias, afagos e


abraços pela madrugada adentro. Gozaram uma para a outra por
diversas vezes, e cada gozo superava o anterior pela intensidade e
prazer. Cada qual, perdida nos próprios devaneios antes de adormecer,
se deu conta que estava abraçada à mulher de sua vida, à mulher pela
qual valia a pena sonhar e fazer planos para o futuro.

Mas o futuro a Deus pertence...

Cristine acordou por volta de oito horas da manhã, completamente


aconchegada no corpo nu da mulher que ainda dormia a seu lado. A
claridade do dia invadia as frestas da janela e penetrava pelo vidro
fechado da clarabóia do teto, abertura esta que Cristine nem havia
reparado quando subira com Angélica na noite anterior. “Também...
com tantas coisas mais interessantes para ver...”, riu-se a loirinha.

Cristine passou a reparar em Angélica adormecida. O rosto anguloso, de


linhas marcantes, tinha uma candura ímpar. O cabelo negro escorrido
emoldurava a face cujos olhos azuis estavam ferrados no sono. A boca
de Angélica era sensual e o sorriso era o mais belo que Cristine já vira.
O cheiro de Angélica quando fazia amor conseguia deixar Cristine
entorpecida e despertava seu lado instintivo, seu lado irracional. Estava
se apaixonando por aquela mulher. Na verdade já se apaixonara, isto
quando provara seu primeiro beijo. E não sabia o que aconteceria dali
para frente. Aliás, seu futuro naquele momento lhe era uma incógnita. E
tudo dependia de um documento, um simples papel que poderia
transformar sua vida, um último desejo de um parente que nem sequer
conhecia.

Angélica despertou de seu sono pressentindo o movimento de Cristine.


Ao abrir os olhos viu um par de pupilas verde esmeralda fixa nas suas.
Sorriu-lhe com amor.

108
- Oi... – disse a morena com voz sonolenta.
- Oi... – respondeu Cristine beijando-lhe suavemente os lábios.
- Ta olhando o quê?... – perguntou Angélica sorridente.
- Você...
- E...?...
- E estou admirando esta bela mulher que está deitada ao meu lado...
- Olha que assim eu fico mais convencida do que naturalmente sou...

Ambas riram. Cristine continuou:


- Você deve estar pensando que eu sou meio... Sei lá... Leviana, vulgar,
né?
- Por quê?! – empertigou-se Angélica.
- ...Porque a gente mal se conhece e eu já estou na tua cama...
- Sim... E tu estás pensando o mesmo de mim???
- Nããão...
- Dois pesos e duas medidas?
- Não, já disse! Não me confunde!
- Então seja mais clara... – provocou Angélica apertando Cristine de
encontro ao peito.
- Bom... É que... Eu... Bem...
- Desembucha mulher! – brincou Angélica.
- Você pode até me achar careta, mas é que eu nunca fui pra cama com
uma mulher assim...
- Assim como?
- Assim sem quase conhecê-la!
- Não seja por isso, eu me apresento! – brincou a morena – Angélica
Bandera, ao seu inteiro dispor, uma sua criada para serviços bem leves,
de preferência prazerosos e eróticos...
- Sua boba! – disse Cristine deitando-se sobre ela e sapecando-lhe
vários beijos no rosto.

Angélica retribuiu os beijos e num giro aprisionou Cristine sob seu


corpo. A morena a fitou com seriedade e disse:

- Eu não te acho vulgar, nem leviana. Eu só vejo uma mulher


aprendendo a não ter medo de viver. E viver, por vezes, é saltar no
abismo com as mãos vazias... Apenas confiando nos instintos e na
Providência Divina.
- Às vezes eu acho que você é uma bruxa! – respondeu Cristine - Você
deve ter alguma bola de cristal!
- Não tenho não... Eu só conheço um pouco da natureza humana...
- Sabe? Eu sempre fui muito racional... Mas desde que eu te vi pela
primeira vez estou me desconhecendo. É verdade quando digo que
nunca fui pra cama com uma mulher antes de sair algumas vezes com
ela.
- Garota difícil, ein??? – brincou Angélica.
- Não debocha que é sério...

109
- Desculpa...
- Eu sempre coloquei a razão antes do sentimento, mas contigo não
consegui. E eu estou assustada com isso.

Angélica deixou-se cair ao lado de Cristine e a envolveu com doçura,


afagando seus cabelos e trazendo-a para bem perto de si.

- Cristine, eu não quero que nada em mim te cause receio, ou medo...


- Mas eu não estou assustada contigo. Estou assustada comigo, com o
que eu estou sentindo...
- Vamos combinar uma coisa? – disse Angélica amorosamente,
passando os dedos numa mecha de seus cabelos loiros.
- O quê?
- Vamos viver o hoje... Um dia por vez... Intensamente... Sem medos.
E quando o amanhã chegar a gente o vive também, pois não será mais
amanhã, será o hoje.

Cristine sorriu tranquila e respondeu:


- Vou tentar...
- Outra coisa... Haja o que houver confie em mim. Ok?

Cristine franziu o cenho e perguntou:


- O que poderá haver?...
- Sei lá... – desconversou Angélica – Só quero que se lembre disso.
- Ta bom.
- E sabe do que mais? – disse a morena.
- O quê?
- To com fome, esse nosso despertar ta muito filosófico e pouco
nutritivo!
- Concordo plenamente!

Elas tomaram um banho rápido, se vestiram e desceram. Enquanto


Angélica preparava o café Cristine colocava a mesa. O cheirinho do café
recém-passado espargiu-se no ambiente, assim como o odor das
torradas com queijo colonial.

- O café está pronto, dona Tine! – disse Angélica.

A loirinha riu amorosamente para ela. Angélica perguntou:


- O que foi?
- Você me chamou de Tine...
- E daí?
- É que as pessoas mais íntimas me chamam de Tine. Eu já havia
comentado contigo?
- Não. Mas acho bonitinho... Um apelido bonitinho para uma pessoa
bonitinha... Aliás, linda...

110
Novamente Cristine sorriu.
- Que é isso? Assim eu fico sem jeito... – disse a loirinha enrubescendo.
- Mas é verdade... – disse Angélica sapecando-lhe um beijo na testa. -
Vem, vamos comer.

Sentaram para tomar o café da manhã.


- Angélica... Você conhece um rapaz chamado Thomaz? Que trabalha
aqui? – perguntou Cristine.
- Conheço. Por quê?
- Por nada... É que eu achei que ele estava me seguindo ontem, quando
eu vinha para cá.

Angélica fez um movimento quase que imperceptível apertando seu


maxilar, porém respondeu com naturalidade.

- Com certeza foi impressão.


- É. Foi sim. Ele me disse que estava indo buscar lenha. E ele estava
com um facão e um saco de linhagem, logo...
- Pois então. Mas por que tu pensaste que ele te seguia?
- Ai, Angélica, eu nem sei... Eu ando com os nervos à flor da pele. E
depois daquele presente macabro que me deram ontem... Desconfio até
da minha própria sombra.

Angélica pousou sua mão sobre a de Cristine e disse olhando fixo em


seus olhos:
- Eu já te falei pra confiar em mim. Nada de mal vai te acontecer. Isso
dessa cobra aparecer assim, do nada, com certeza foi algum mal
entendido e a gente vai descobrir quem foi o responsável.
- Mas e a sepultura vazia?
- Não sei... Realmente não sei o que pensar. Mas te garanto que tudo
isso ficará no passado.
- Angélica...
- O que?
- Eu to muito ansiosa com a abertura do testamento. – disse a loirinha
baixando os olhos.
- Eu imagino.
- A minha vida pode mudar completamente.
- Eu sei.
- Posso ir embora como cheguei ou herdar uma fortuna imensa...
- Mesmo que não herdes uma fortuna, jamais deixarás este lugar como
chegaste... – respondeu a morena encarando-a com um ar de
melancolia por sua colocação.

Dando-se conta da gafe cometida Cristine remendou em seguida:


- Não. Claro que não. Eu me referia à situação financeira e trabalho,
não a sentimento.
- Que bom. – disse a morena desviando o olhar.

111
Desta vez foi Cristine quem pousou sua mão sobre a de Angélica e falou
com seriedade:
- E agora sou eu que te digo que você precisa confiar em mim, acreditar
no que eu digo.

Angélica assentiu com um maneio de cabeça e um sorriso tímido:


- Eu acredito.

Terminaram o café e decidiram ir até o castelo. Já passava das dez


horas da manhã e encontraram Regina começando os preparativos do
almoço.

- Bom dia mãe! – disse Angélica.


- Bom dia Regina! – falou Cristine.
- Bom dia guriazinhas! – respondeu Regina sorridente – Como
passaram a noite?
- Bem. – respondeu Cristine de supetão, ficando corada até a raiz dos
cabelos.

Angélica riu internamente e respondeu com mais calma:


- Tudo bem, mãe... Tudo tranquilo.

“Pois sim...” pensou Cristine, “se aquilo é tranquilidade o que será uma
noite agitada para essa mulher!”, e balançou a cabeça fazendo uma
careta para Angélica, aproveitando-se que Regina estava de costas. A
morena fez uma cara marota.

- Vocês querem tomar café? – perguntou Regina.


- Não mãe, a gente já tomou lá em casa.
- Bom, ao menos essa menina está te tratando bem! – disse Regina
para Cristine.
Novamente a loirinha desconcertou-se visivelmente e respondeu
desviando os olhos de Angélica.

- Sim. Muito bem.

Angélica pegou uma maçã na fruteira e jogou outra para Cristine,


treinando seu reflexo. Esta última conseguiu aparar a maçã no ar.

- Vocês vão almoçar aqui? – quis saber Regina.


- Acho que vamos. – respondeu Angélica – Depende de Cristine, se ela
quiser... Eu gostaria de levá-la até a cidade, mas o tempo continua essa
nháca que vem sendo nos últimos dias...
- Pois é. – concordou Regina – Parece que São Pedro anda sem reguleta
nas comportas do céu!

As três riram.

112
- Então acho melhor a gente almoçar por aqui mesmo. – disse Cristine.

Neste momento ouviram o som de passos correndo e adentrando pela


porta dos fundos. Era Ariel que entrara esbaforido na cozinha, pálido e
trêmulo. Angélica correu na direção do irmão.

- O que foi, Ariel? – perguntou Angélica.

Por instantes o garoto permaneceu mudo, como que em estado de


choque.

- Pelo amor de Deus, meu filho! O que foi que houve? Aconteceu
alguma coisa com o teu pai??? – perguntou Regina ansiosa.

Ariel balançou a cabeça negativamente. Aos poucos entreabriu os lábios


e disse:

- O pai ta legal. Ta lá na estufa...


- Mas então o que foi que houve??? – exaltou-se Angélica.
- A Adelaide...
- O que tem a Adelaide??? – perguntou Regina – Ela foi pegar uns
temperos na horta...
- Acho que ela ta morta... – disse Ariel empalidecendo mais.
- COMO??? – gritou Angélica.
- Eu acho que mataram ela...

Angélica respirou fundo, segurou o irmão pelos ombros e fez com que
ele se sentasse.

- Senta aqui Ariel e me conta o que aconteceu – pediu Angélica


tentando manter a calma.
Cristine deixou-se cair numa cadeira, também empalidecendo. Ariel
engoliu em seco, suas mãos tremiam e ele transpirava muito. Angélica
pediu à mãe que desse um copo d’água para ele. Após beber alguns
goles e depositar o copo sobre a mesa ele olhou para Angélica
abraçando-a e soluçando alto.

- Calma, querido, calma... – dizia a morena – Ta tudo bem... Tudo


bem...
- Não ta bem não! Mataram a Adelaide!!! – disse o rapaz.
- Ariel, tenta ficar calmo e me conta o que aconteceu, certo?

Ele assentiu com a cabeça. Tentou respirar pausadamente e começou


seu relato.

- Eu tava vindo pra cá... Queria ver se encontrava a Cristine, para


estudar. Aí eu vi a Adelaide saindo daqui. Ela tava com aquela capa de

113
chuva que fica pendurada ali na porta, tava indo pros fundos... Eu dei oi
pra ela e perguntei aonde ela ia. Ela me disse que ia buscar temperos lá
na horta. Eu me ofereci pra ir junto, pra pegar os temperos pra ela, pra
ela não precisar sujar as mãos na terra... É que eu acho a Adelaide um
tesão de mulher... Ela tem uns peitões...
- Ariel!!! – repreendeu Regina.
- Deixa ele contar mãe! – interveio Angélica – E aí, mano?
- Bom... Ela nunca me deu bola mesmo. E dessa vez não foi diferente.
Perguntou se eu não me enxergava e me chamou de garotinho. Aí eu
disse que não era um garotinho, que já era um homem! E que ela não
devia me tratar assim, que eu estava somente sendo gentil. Aí ela riu
pra mim e me disse: “quem sabe outro dia”... Bom, eu fiquei olhando
ela ir e pensei, pensei, pensei... “outro dia nada, eu vou hoje mesmo”,
eu só queria ajudar ela, e conversar, assim quem sabe um dia ela me
olhasse com outros olhos...
- Quanta pretensão, ein, galinho? – disse Regina em tom de
reprovação.
- Aí eu quis ir atrás dela, - continuou o jovem sem levar em
consideração a repreensão da mãe - mas começou a chover e eu entrei
na cozinha pra pegar um guarda-chuva pra mim. E um pra Adelaide,
pra ela não molhar os cabelos, pois tava só de capa... Depois fui atrás
dela. Só que eu fui devagar, para não assustar ela e também pra ela
não me botar pra correr... Fiquei só espiando ela de longe, meio
escondido. Ela tava lá, tão linda...
- Que coisa feia, meu filho! Espiando os outros! – repreendeu Regina
novamente.
- Mas mãe... Não era “outros”, era a Adelaide!
- Ta, e aí? – quis saber Angélica.
- Aí tudo aconteceu muito rápido. Ela tava de pé e parece que olhou na
direção dos fundos da propriedade... Como se visse alguma coisa... Sei
lá... Pode ter sido só impressão, não sei... Aí eu ouvi um barulho alto. E
me dei conta que era um tiro quando ela caiu igual uma jaca podre...
- Ariel! Pelo amor de Deus! – disse Regina.
- MÃE, pelo amor de Deus a senhora! Deixa o Ariel falar! Não
interrompe! – disse Angélica exaltada.
- Eu fiquei todo borrado de medo e me abaixei. Fiquei quieto, espiando
por entre os arbustos, mas eu não consegui ver mais nada. Só ela lá,
caída, sem se mexer. Aí eu saí correndo sem olhar pra trás. Parecia que
eu ia levar um tiro também. Fiquei com muito medo... Eu acho que ela
morreu.
- Santo Cristo! – exclamou Regina despencando numa das cadeiras de
madeira crua.

Angélica levantou-se num pulo e disse:


- Mãe fica aqui com o Ariel que eu vou até lá para ver o que houve. Liga
pro Delegado agora. E Ariel, não sai daqui nem por decreto, entendeu?
– disse Angélica dirigindo-se com seriedade ao irmão.

114
- Não, por favor, não vai! – pediu Cristine instintivamente, segurando-a
pelo braço.
- E tu fica aqui também! Não sai daqui! – respondeu a morena para
Cristine, determinada, já caminhando em direção à porta.
- Não vai minha filha! – disse Regina também a segurando pelo braço.
- O que é isso? Agora eu tenho duas babás? – perguntou a morena
irritada.
- Não! Tem apenas pessoas que se preocupam contigo! – respondeu
Cristine no mesmo tom.
- E que te amam... E não suportariam que nada de mal te
acontecesse... – emendou a mulher mais velha.
- Tudo bem... – falou Angélica tentando manter a calma – Me
desculpem...
- Todos estamos estupefatos com esta notícia, mas vamos manter a
calma. – ponderou Regina – Eu vou chamar Morris e ligar para o Dr.
Mendes e para o Delegado.

Regina saiu na direção da sala e deixou Angélica, Ariel e Cristine


sentados na cozinha, em total silêncio. Não sabiam o que dizer ou
pensar.

Em menos de vinte minutos todos estavam mobilizados com a notícia.


Angélica não se conteve enquanto não foi até a estufa certificar-se que
seu pai estava bem, sendo acompanhada por Thomaz que chegara logo
em seguida, após ser contatado por Morris. Angélica convenceu o pai a
ir com eles para o castelo. Quando entraram pela porta dos fundos o
delegado Munhoz e o Dr. Mendes recém haviam chegado. Todos
estavam na sala, inclusive Valesca, João Vítor, James e o motorista
Henrique. Este último estava visivelmente abatido e inquieto. As
expressões eram de incredulidade com a notícia ainda não confirmada.

O delegado disse ao advogado e a três homens que o acompanhavam:


- Vamos até lá para averiguar o que realmente houve. Tu poderias nos
acompanhar Ariel? – perguntou dirigindo-se ao adolescente com voz
calma.

Ariel anuiu com um balanço de cabeça, lançando um olhar assustado


para a irmã.

- Tudo bem, Ariel, eu vou contigo. – Disse Angélica passando o braço ao


redor dos ombros do irmão.

Morris, James e Henrique também acompanharam o grupo. Cristine,


Regina, Israel, Valesca, João Vítor, Anemary e Thomaz permaneceram
no castelo.

Ariel estava visivelmente amedrontado, olhando ao redor assustado.

115
- Calma, querido... – disse Angélica enquanto caminhavam – O que
quer que tenha acontecido não vai se repetir. Qualquer pessoa que
tenha feito algo brutal contra Adelaide não vai fazer o mesmo com esse
bando de gente por perto, principalmente tendo o delegado junto. Tenta
ficar calmo...

Ariel abraçava firme a irmã. Tentava ao máximo controlar-se. Angélica


sentia as mãos frias do irmão envolvendo-a pela cintura. Afagava-o
carinhosamente, tentando transmitir-lhe segurança.

Em poucos minutos chegaram ao local referido por Ariel. Este, ao


aproximar-se, instintivamente diminuiu a marcha, sendo quase que
empurrado por Angélica.

- Olha... – disse o jovem – Eu estava ali atrás daquele matinho... E ela


ta caída ali, mais adiante.

O grupo apurou o passo e a cena que se descortinou era bastante forte.


A jovem copeira jazia deitada de bruços imersa numa poça de sangue e
água da chuva. Os cabelos loiros estavam tingidos de rubro e pedaços
de sua massa encefálica se misturavam ao solo argiloso e escorregadio.
O delegado verificou seus sinais vitais sem mover a jovem, embora pelo
aspecto da vítima fosse totalmente desnecessário, e afirmou em tom
lúgubre, dirigindo-se aos homens que o acompanhavam:

- Está morta. Podem fazer o que é necessário.

A equipe de técnicos da polícia iniciou os procedimentos de praxe nos


casos como aquele. Fotografaram o corpo, examinaram o local e no
momento em que viraram a jovem de frente todos deram um passo
para trás, prendendo a respiração. Embora numa distância considerável
puderam ver que o rosto de Adelaide tinha sido totalmente dilacerado
por um tiro. A face estava irreconhecível, na verdade inexistente.

Ariel enterrou o rosto no pescoço de Angélica, não conseguindo encarar


a cena. James empalideceu como se fosse desmaiar. Seu semblante
esquálido ficou muito mais descolorido do que o normal. Sua testa
ensopou-se de suor instantaneamente e ele precisou escorar-se num
tronco de árvore para não cair. Morris permaneceu impassível como
sempre, não fosse pelo seu olhar que se esbugalhou no momento em
que o corpo de Adelaide foi virado, poderia se dizer que ele estava até
acostumado a presenciar situações como aquela quase que diariamente.
Dr. Mendes tentava não esmorecer, no entanto dava sinais de que não
aguentaria ficar olhando aquela cena. Virou-se de costas e respirou
fundo, engolindo em seco.

116
Angélica tratou de amparar o irmão e percebeu a figura musculosa de
Henrique curvar-se sobre si mesmo, valendo-se também de um tronco
de árvore para conseguir manter-se em pé. O motorista
silenciosamente esgueirou-se pelo caminho de volta ao castelo,
alternando seus passos como um autômato, cabisbaixo e visivelmente
abalado.

Como não havia mais nada que pudessem fazer ali Angélica conduziu
Ariel de volta ao castelo. Dr. Mendes os acompanhou. James ficou
estático onde estava, como se a cena houvesse lhe paralisado os
movimentos.

Chegando ao castelo Angélica deixou o irmão na cozinha com a mãe e


levou o pai para o escritório de Artur, sendo acompanhada pelo
advogado e por Cristine, esta última ansiosa para saber o que
realmente houvera. Valesca e João Vítor tentaram acompanhá-los,
porém Angélica fechou a porta bruscamente e sem cerimônias antes
deles entrarem no recinto, dizendo:
- Com licença, assunto de família.

Os dois entreolharam-se incrédulos com a atitude de Angélica, mas


acharam por bem não polemizar e voltar para a sala, para saber das
novidades mais tarde.

No interior do escritório o clima era de tensão e Angélica começou seu


relato.

- Bom... Realmente alguém matou aquela moça. E de uma forma


brutal. Arrebentaram a cara dela com um tiro. – disse a morena
pausadamente – E o que mais me assusta agora é que seja lá quem
tenha sido, vai saber que Ariel viu a cena, mesmo que de longe. E não
vai saber o que realmente o guri viu, melhor dizendo, não vai saber SE
o guri o viu, ou não...
- Meu Deus... – exclamou Israel entendendo a gravidade da situação.
- Pois é, pai. A gente precisa tirar o mano daqui. – completou Angélica
com um ar muito preocupado.
- Mas isso não é problema. – emendou Cristine – A gente pode mandá-
lo lá para o Rio, para a casa de uma amiga minha, sem problemas. Seja
lá quem for não vai ter acesso ao endereço, pois não é o meu.
- O que é que o senhor acha pai? – perguntou Angélica.

Israel sentou-se cabisbaixo escorando o rosto nas mãos e pensou por


uns instantes, antes de responder:

- Me parece seguro.
- Então está resolvido. – disse Cristine – Eu vou ligar para a minha
amiga.

117
- Calma. – disse Angélica – Daqui não. Vamos ligar lá de casa, depois.
Do meu celular.

Cristine encarou Angélica e conjeturou como ela conseguia ser


ponderada naquela situação. Parecia que pensava em tudo. E o pior é
que sua colocação deixava claro uma certeza que Cristine preferia não
ter: Angélica desconfiava de alguém de dentro do castelo.

- Bom, resolvido o problema do Ariel – continuou a morena – Temos o


problema de estarmos com um assassino solto por aqui.
- Mas qual será o motivo pelo qual acabaram com a vida daquela pobre
moça? – perguntou Cristine – Eu conversei com ela, não me pareceu
uma pessoa que tivesse inimigos, era tranquila, calma, pacata até...
- Se soubéssemos não seria um problema... – respondeu Angélica.
- Mas não pode ter sido acidente? – insistiu Cristine – Sei lá... Um tiro
acidental, algum caçador, que tenha disparado sem intenção de alvejá-
la e fugiu com medo das consequências de sua irresponsabilidade...
- Cristine, se aquele rombo na cara dela foi acidental imagine o que a
mesma pessoa faria se tivesse intenção de acertar alguém... – ironizou
Angélica – E além do mais ninguém caça por aqui. É proibido.
- Mas algum contraventor, quem sabe...

Angélica limitou-se a balançar a cabeça e respondeu calmamente:


- A gente não pode se negar de ver o óbvio.

Israel, que sempre fora homem de poucas palavras, suspirou


pronunciando:
- Meu Deus! Eu custo a creditar... Perdi meu melhor amigo, matam uma
moça bem dizer aqui dentro de casa e o meu filho passa a correr risco
de vida... Isso deve ser um pesadelo.
- Não é, pai. Infelizmente não é. – respondeu Angélica.

Dr. Mendes permanecia calado. Ouvia e matutava. Muitos pensamentos


lhe passavam pela mente. Idéias que lhe tiravam o sossego e o
enchiam de receios e temores. Angélica também estava tensa.

Novamente Cristine fora assolada pela sensação de estar num cenário


surreal, onde se misturavam pesadelos e realidade. Sua mente
fervilhava.

Angélica quebrou o silêncio:


- Olha só, essa ida do Ariel para o Rio fica só aqui entre nós, entendido?
Ninguém mais pode saber. Ninguém. Talvez a mãe.

Os três assentiram com a cabeça e responderam:


- Pode deixar. Ninguém saberá.

118
- É a vida do meu irmão que está em jogo. E ninguém coloca a vida das
pessoas que eu amo em risco. - disse Angélica categórica, mais para si
mesma do que para os outros.

Neste meio tempo a polícia procedeu à remoção do corpo de Adelaide e


o delegado se dirigiu ao castelo. Encontrou as pessoas reunidas na sala.
Todos, excetuando-se Henrique, aguardavam-no reunidos no amplo
salão, no mais absoluto silêncio. Eram cerca de onze horas da manhã.

O delegado Munhoz adentrou no recinto cumprimentando a todos com


um maneio de cabeça discreto. Iniciou seu pronunciamento num tom
técnico e impessoal:
- Já procedemos à remoção do corpo. Alguém já avisou os familiares da
moça?

Todos se entreolharam e acenaram um não com a cabeça.


- Alguém aqui se dispõe a fazê-lo ou preferem que eu peça a um dos
meus homens?
- Acredito que seja mais adequado que um de nós o faça – respondeu
Dr. Mendes – Eu me prontifico a fazê-lo.
- Ótimo. – anuiu o delegado. – Solicito que ninguém deixe esta
propriedade até segunda ordem. A partir da primeira hora da tarde
pretendo conversar com cada um dos presentes.
- O quê??? Quer dizer que matam alguém aqui dentro e eu não posso ir
embora??? – exaltou-se Valesca – Por acaso estou numa prisão
domiciliar??? Ninguém vai me obrigar a ficar presa aqui!!! Eu não sou
obrigada a ficar sob o mesmo teto que um assassino!!!
- Controle-se, senhora. – disse o delegado calmamente – Eu não disse
que há um assassino aqui, nem tão pouco que vocês estão “presos”. Só
preciso conversar com vocês, todos, sem exceção. Entendido?

Um pesado silêncio se fez na sala. O delegado continuou:


- Estarei aqui às treze horas e peço que todos estejam aqui também.
Com licença.

Delegado Munhoz retirou-se da sala. Logo em seguida Dr. Mendes


levantou-se, pesaroso, vergado pelo pesado fardo que carregava nos
ombros: anunciar aos familiares de Adelaide o seu falecimento.

James disse:
- Eu vou com o senhor. Depois temos o dever moral de providenciar um
funeral para a moça. A família dela é muito carente.
- Obrigado por me acompanhar, James. – disse o advogado.

Tão logo eles deixaram a sala de estar o restante do grupo se


dispersou. Os serviçais foram cuidar de seus respectivos afazeres.
Regina e Israel foram com Ariel para casa. Valesca e João Vítor foram

119
para a cozinha para comer alguma coisa. Alegavam estar com fome,
pelo fato de haverem acordado tarde, não tomando o café da manhã.
Anemary, excepcionalmente, tratou de providenciar o almoço, muito
embora no que as pessoas menos pensavam naquele momento era
comer, excetuando-se a dupla que ainda não havia feito o desjejum.

Angélica e Cristine rumaram para a cabana.

No interior seguro da casa de Angélica elas se jogaram cada qual em


uma das extremidades do sofá. Cristine estirou-se fitando as tábuas do
forro. Angélica sentou-se com as pernas entreabertas, os cotovelos
apoiados nos joelhos e as mãos enterradas nos cabelos e sustentando a
cabeça cujos olhos estavam voltados para o chão. Após alguns minutos
do mais absoluto silêncio, onde cada qual estava mais perdida que a
outra nos próprios devaneios, a loirinha pegou o celular e disse:
- E aí? Vamos organizar a ida do Ariel pro Rio?
- Vamos. – respondeu Angélica demonstrando cansaço na voz.

Cristine discou um número e uma voz conhecida a atendeu no outro


lado da linha. Não precisou muitas explicações para que a pessoa se
colocasse à inteira disposição para auxiliar no que fosse preciso.
Combinaram que tão logo tivessem o horário e o número do vôo
entrariam em contato novamente. Assim que Cristine desligou Angélica
disse:

- Muito obrigada.
- De nada. Mas você não tem porque que me agradecer.
- Tenho sim. Tu estás me ajudando a proteger o meu irmão. O meu
único irmão.
- E o meu aluno preferido.

Angélica riu amorosamente enquanto se aproximava de Cristine


envolvendo-a num abraço e lhe beijando os lábios.

Quando se desvencilharam, novamente Cristine foi racional:


- Segunda parte de nossa tarefa: fazer as reservas no vôo para o Rio.
Acho melhor tentarmos o de amanhã, afinal hoje o delegado nos quer
aqui.

Angélica concordou:
- Pode ser. De hoje para amanhã eu não desgrudo o olho do cabeçudo.

Cristine sorriu e estendeu o telefone à Angélica para que fizesse a


ligação para a companhia aérea. Marcaram passagem para o vôo das
oito horas da manhã do dia seguinte. Cristine fez novo contato com sua
amiga e sócia, Cynthia, e passou os detalhes da chegada de Ariel.
Estava tudo acertado.

120
Às treze horas em ponto o delegado Munhoz adentrou na biblioteca
seguido do Dr. Mendes. Instalou-se na grande escrivaninha alinhando
um bloco de papel cujas páginas estavam em branco, um lápis com a
ponta muito fina e uma caneta dourada, a qual usaria para proceder as
anotações que se fizessem necessárias. O delegado era um homem
metódico.

Dr. Mendes sentou-se à sua frente e lhe disse com voz abatida:
- Que tarefa ingrata, Munhoz... Avisar a família da moça foi muito
desgastante.
- Eu imagino Adroaldo. Mas me ofereci para mandar um dos meus
homens.
- Mas não seria de bom tom. – referiu o advogado.
- Realmente...
- Munhoz, eu estou muito preocupado. As coisas estão ficando fora de
controle. E nós dois bem sabemos o que está havendo, ou pelo menos
suspeitamos.
O delegado coçou a careca e respondeu:
- Mas precisamos ter certeza.
- Eu temo pela vida dela, Munhoz.
- Mas Detetive Dacosta está de olho nela. – disse o delegado.
- Sim, eu sei, mas mesmo assim tenho meus temores. – continuou o
advogado – E ela já está suspeitando de alguma coisa, acredito que até
mesmo de Dacosta.
- Será?...
- Obviamente. Ela é uma moça esperta. E isso sem falar no episódio da
cobra.
- Realmente Adroaldo, precisamos chegar a conclusões. E agora mais
essa morte! De fato estamos correndo contra o tempo.

O advogado assentiu denotando desânimo.


- Tu achas que o corpo de Adelaide será liberado ainda hoje? –
perguntou Dr. Mendes.
- Acredito que sim. Provavelmente por volta das dez horas da noite já
estará liberado.
- Então podemos providenciar o enterro para amanhã. A família quer
velar o corpo.
- Mas o caixão será lacrado. Até porque tu viste o estado que a moça
ficou.
- Eu sei.
- Bom... Vou começar a ouvir essa gente. – disse o delegado.

Dr. Mendes se levantou e disse:


- Quem tu queres que eu chame?
- O Ariel.
- Tudo bem. – respondeu o advogado. Antes de sair virou-se e
complementou – Munhoz, boa sorte.

121
- Vamos precisar...

Ariel entrou na biblioteca aparentando nervosismo. O delegado tentou


acalmá-lo:
- Ariel, eu sei que a situação ocorrida hoje é bastante traumática, mas
eu preciso conversar sobre ela... Para que possamos pegar quem fez
isso com a Adelaide.
- Eu sei... – respondeu o adolescente – E como é que eu posso ajudar?
- Bom, eu gostaria que me contasses o que aconteceu hoje pela manhã,
tudo o que conseguires lembrar, cada detalhe, pode ser?
- Pode. – disse Ariel, iniciando um relato minucioso do que já contara
anteriormente.

O delegado ouvia e fazia alguns apontamentos em suas folhas dispostas


simetricamente sobre a escrivaninha. Por vezes secava o suor da testa
com um lenço de seda azulado. Apesar do frio o delegado transpirava
bastante.

Ao final do relato de Ariel o delegado ainda perguntou:


- E, Ariel, tu conseguiste ver alguém, além de Adelaide?
- Não.
- Nem algum movimento, um vulto, uma peça de roupa?
- Não. Depois que eu ouvi o tiro e vi a Adelaide caindo eu fiquei
apavorado e disparei pra casa. Eu fiquei com medo de morrer.
- Eu entendo. – assentiu o delegado – Então é só isso, Ariel. Obrigado
pela colaboração.
- De nada. O que eu puder fazer para pegar o desgraçado que fez
aquilo, pode contar comigo.
- Eu sei... – respondeu o delegado – Poderias chamar a tua mãe?
- Tudo bem.

Regina sentou defronte ao delegado e cruzou as mãos sobre o avental


xadrez. Estava visivelmente abatida. Seu depoimento não durou mais
do que quinze minutos, visto que referia ter permanecido na cozinha do
castelo desde as sete horas da manhã, tomando conhecimento de toda
a situação pelo filho, no momento que o mesmo irrompera correndo na
cozinha. Sua versão foi confirmada mais tarde por Angélica e Cristine,
que estavam com ela quando Ariel chegara apavorado.

- Regina, quem esteve na cozinha contigo?


- Todos os que costumam estar de manhã: o Morris, a Anemary, o
Thomaz, o Henrique, a Adelaide... Depois o James desceu pra tomar
café e subiu de novo logo em seguida. E só.
- Algum deles conversou com Adelaide?
- Todos. Comigo também. – respondeu Regina – Só que... – e calou-se.
- Só que???... – quis saber o delegado.
- Nada. Bobagem.

122
- O que foi Regina? O que te chamou a atenção?
- Henrique. Ele conversou de canto com a Adelaide. Mas eles pareciam
tranquilos. Conversaram amigavelmente, baixinho, mas de uma forma
aparentemente... Branda. Mas eu não ouvi o que disseram, e logo em
seguida ele saiu.
- E depois?
- Bom, depois continuamos com nossos afazeres. Até que eu disse que
era preciso pegar alguns temperos na horta... – disse Regina com voz
entristecida. – Se eu não tivesse dito aquilo a menina ainda estaria
viva...
- Não se culpe Regina. Ninguém tem bola de cristal para adivinhar o
futuro.
- Ela logo se prontificou a ir... Até me pareceu que ficou feliz. – disse a
cozinheira.
- Pois então... – assentiu o delegado. – Vai saber...

O seguinte a ser ouvido foi Israel. O jardineiro sentou-se cabisbaixo e


suspirou profundamente. O delegado o encarou com seriedade e disse:
- Um doce pelo teu pensamento, meu amigo.
- A vida às vezes é injusta...
- Será? – questionou o delegado.
- Com certeza. Artur está morto, agora a Adelaide também. E depois? E
o meu filho que presenciou parte do incidente? E seja lá quem fez isso
irá ter a certeza que o menino não o viu? Ou pensa que Ariel é um risco
para sua identidade? O que é que vamos fazer delegado???
- Eu ainda não sei, mas te garanto que vamos saber. E o mais breve
possível.
- Eu espero. Pelo bem de todos, eu espero.
- Israel, tu viste alguma coisa que possa nos ajudar? Onde tu estavas
hoje pela manhã?
- Como faço todos os dias, eu fui para a estufa logo depois do café. Saí
de lá quando a Angélica e o Thomaz foram me buscar contando...
Aquilo tudo.
- E alguém esteve lá contigo?
- Não. Ninguém.
- E tu imaginas quem possa ter feito isso? – continuou o delegado.
- Não faço idéia. As pessoas que vivem aqui são de confiança.
- Tem certeza?
- Acho que sim...
- Pois eu tenho as minhas dúvidas...

Israel suspirou novamente.

- Se lembrares de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, me fale, por


favor. – disse o delegado – Às vezes um mero detalhe pode ser de
muita utilidade.
- Pode deixar – respondeu Israel.

123
- Me mande o Thomaz aqui, por favor.

O jardineiro levantou-se e dirigiu-se para a porta, curvado pelo peso da


angústia. Lamentava a morte de seu amigo, e de Adelaide, porém
naquele momento temia pela segurança do próprio filho.

Na ampla sala do castelo os presentes encaravam-se a cada vez que


alguém saía de dentro da biblioteca. O nome do seguinte a ser ouvido
era aguardado com ansiedade pelos demais. Thomaz levantou-se e
entrou na biblioteca, fechando a porta atrás de si.

O delegado o fitou amistosamente e apontou a cadeira à sua frente.

- E então? – perguntou o delegado.


- Por esta não esperávamos – disse o rapaz enquanto pegava um
cigarro e o colocava na boca – Importa-se que eu fume?
- Não.
- Eu realmente estou espantado com o que houve.
- Nem me fale – respondeu o delegado também acendendo um cigarro.
– E aí? Tu viste alguma coisa?
- Nada. Absolutamente nada.
- Onde estavas pela manhã?
- Fazendo o que me pediste. Mas acho que ela está desconfiada de que
algo não está nos conformes... – disse o rapaz.
- E por que tu achas isto?
- Ela me questionou se eu a estava seguindo ontem...
- Puta que pariu Thomaz! – bradou o delegado batendo na mesa – Tu
estás perdendo o jeito da coisa?
- Claro que não Munhoz, mas a garota é esperta. – retrucou o moço – E
vamos combinar que basta ter somente dois neurônios para ver que
algo não vai bem... É impossível não ver o que está diante dos olhos...
- Então por que será que NÓS não conseguimos ver um pouco além do
que está diante dos olhos???...

Thomaz soltou uma baforada de fumaça observando o bailado da névoa


que se dissipava no ambiente e disse pensativo:

- Não sei... Realmente não sei...


- E é isso que temos o dever de descobrir, guri. – emendou o delegado.

Fez-se um silêncio na sala. O delegado continuou:


- Onde Cristine ficou desde ontem?
- Na casa da Angélica. Vieram direto pra cá hoje de manhã.
- Isso é bom. – disse o delegado. – Quero essa menina o mais longe
possível do castelo. Esse lugar tem muitos segredos...

Thomaz assentiu com a cabeça:

124
- Mas enquanto ela estiver por aqui, pode ficar tranquilo, eu estou
atento.
- Assim espero. – disse o delegado. – Me chama a Valesca.
O rapaz levantou-se apagando o toco de cigarro no cinzeiro.

Quando Valesca ouviu seu nome sendo pronunciado chegou a prender a


respiração. João Vítor lhe deu um aperto suave nas mãos, como que a
encorajando a levantar. Com gestos que beiravam a teatralidade a loira
se pôs em pé, ajeitou os cabelos por sob o chapéu de veludo verde-
musgo e dirigiu-se à biblioteca, como se estivesse desfilando numa
passarela, passos cadenciados e lentos. Adentrou e sentou-se na
cadeira de espaldar alto, na frente do delegado, sem que este houvesse
lhe indicado o lugar. Cruzou as pernas. Fitaram-se em silêncio, um
silêncio quase perturbador. O delegado a perscrutava de cima a baixo.
Valesca se mexeu na cadeira, inquieta, e disparou:

- E então, delegado? O que quer saber?


- Algumas coisas... – respondeu o homem mais velho pacientemente,
coçando o queixo, incitando a inquietação desta.
- O quê, mais precisamente? – perguntou Valesca.
- Bom... Começando por algumas dúvidas como... Vejamos... – disse o
delegado remexendo numa pasta de papelão que estava num canto da
escrivaninha – Valesca... Valesca... da Silva dos Santos. Esse nome lhe
diz algo?

A mulher loira empertigou-se:


- Sim. É o meu nome de batismo. Scolari é um nome... Artístico.
- De guerra... É o que quer dizer?
- Que seja Munhoz! Mas o que isso tem a ver com o assassinato dessa
moça?
- E quem disse que foi assassinato? – perguntou o delegado.
- Francamente, Munhoz, ninguém se suicida fazendo um rombo na cara!
E a pobre teria enfiado a arma aonde?!
- Pode ter sido um acidente.
- Que seja! Mas o que é que EU tenho há ver com isso?
- Pois é isso que EU quero saber. SE tu tens algo a ver com isso.
- Claro que não! Eu mal conhecia a moça.
- Bom... Mas voltando às minhas pequenas... Dúvidas. Vejamos... João
Vítor... Mascarenhas. Ele é teu irmão, não é mesmo? – instigou o
delegado.

Valesca ficou em silêncio.

- Não deveria ter o mesmo sobrenome? Ou um deles?

Novo silêncio de Valesca.


- Isso me leva a crer que este rapaz é qualquer coisa, menos teu irmão.

125
- É. – concordou Valesca baixando os olhos. – Quer dizer, não é. Não é
meu irmão.
- E ele é o quê?
- Um amigo.
- Que divide o quarto contigo?

Valesca riu e respondeu ironicamente:


- Se imaginasses quantos já "dividiram" o quarto comigo, meu
querido...
- Eu imagino. – respondeu o delegado. – Eu imagino... Eu só não
consigo entender o que o Artur via em ti...
- Bom... Aí nós já vamos partir para um assunto particular, que não te
diz respeito.
- Pode ser que te enganes. Os últimos dias de Artur podem me dizer
respeito sim!

Valesca assumiu um semblante sério instantaneamente.

- O que é que estás querendo dizer com isso?


- Nada. Ou tudo. Depende. – disse o delegado.
- Munhoz... A morte dessa moça tem algo a ver com a morte de Artur?
- Aqui sou eu quem faz as perguntas. – respondeu o delegado
secamente.
- Mas pelas tuas colocações...
- Não tire conclusões Valesca. Deixe isso pra mim. Limite-se a
responder o que te pergunto.
- Tudo bem. – assentiu a loira.
- Onde estavas hoje pela manhã?
- No quarto. Acordamos tarde.
- E estavas sozinha? – perguntou o delegado.

Valesca o fitou com um ar de deboche:


- O que é que tu achas???
- Eu não acho nada. Quero que respondas.
- Com o João Vítor. E antes que perguntes: estávamos trepando. Aliás,
uma trepada maravilhosa... As de ontem à noite também. Pode ser até
que alguém tenha escutado alguma coisa... – respondeu Valesca
ironizando.
- E as vezes que "trepaste" com esse sujeito nas barbas do Artur,
também foram "trepadas maravilhosas"? Ou tiveste a decência de não
gemer alto o suficiente para que ele percebesse??? – disparou o
delegado alterando seu tom de voz, deixando transparecer indignação.

Novamente a loira empertigou-se tomando ciência da inadequação de


sua colocação.

126
- Eu nunca desrespeitei o Artur. – disse Valesca em tom baixo – Nunca.
Quer acredites nisso ou não. Aqui neste lugar, enquanto ele era vivo, eu
só trepei com ele. Mesmo quando João Vítor vinha junto. Nunca tive
coragem de transar com ele sabendo que Artur estava no quarto ao
lado. Pode não parecer, mas eu tenho a minha ética. E embora não
devas acreditar nisso, é a verdade.

O delegado permaneceu calado, olhando aquela figura quase


carnavalesca à sua frente. De fato era difícil acreditar nela. Respirou
fundo e continuou com suas perguntas:

- Tu viste alguma coisa hoje pela manhã? Mesmo que da janela do


quarto?
- Não... Nada.
- Valesca... – disparou o delegado – Tu achas que Artur deixou alguma
coisa pra ti em testamento?
- Não sei...
- E o que fazes aqui então?
- Vim tirar a prova dos nove! Vamos ver o quanto fui importante na
vida de Artur.
- Vamos ver... – respondeu o delegado pensativo.
- Seria só isso? – perguntou a loira.
- Só. Por favor, peça para aquele moço entrar.
- Ele tem nome.
- Vá. – disse o delegado.

Valesca levantou-se e alcançou a maçaneta da porta com a mão, porém


antes de sair virou-se para o delegado e disse num tom de voz
denotando emoção:

- Munhoz, eu sempre respeitei o Artur... E sabe por quê?


- Não.
- Porque a recíproca sempre foi a mesma. Nunca homem nenhum me
tratou como ele, com respeito, mesmo sabendo quem de fato eu fui... E
o que eu já fiz na vida. E isso ninguém além dele seria capaz de
entender. Nem tu.

E saiu fechando a porta atrás de si. Munhoz ficou meditabundo e fez


algumas anotações.

João Vítor respondeu às perguntas do delegado com desenvoltura. Em


nenhum momento negou o envolvimento amoroso com Valesca, nem
tão pouco ocultou o fato de ter um caso com Valesca há bastante
tempo, mesmo quando ela ainda estava com Artur. Referiu a admiração
que a amante sentia pelo falecido, mesmo alegando nunca haver
entendido direito a relação que mantinham. Parecia mais um pacto do
que um romance, para ele. Não saberia definir ao certo. O delegado

127
deteve-se mais em questionamentos acerca do passado do que
propriamente do presente, até que o jovem questionou:
- Dr. Munhoz, por que tantas perguntas sobre o falecido?
- Para entender a história como um todo.
- Como assim? O falecido tinha algo a ver com a copeira? Vai me dizer
que a garota também tinha um caso com ele?!!
- Mantenha-se, meu jovem! – vociferou o delegado.
- Mas pelo que o senhor coloca...
- Limite-se a responder às perguntas, e não tente tirar conclusões sobre
o que nem imagina!
- Desculpe.
- E hoje pela manhã? Tu viste algo que pudesse estar associado à
morte de Adelaide?
- Nada. Acordamos tarde.
- Isso eu já sei. – disse o delegado secamente.
- Bom, então porque perguntou?
- Para evitar detalhes sórdidos... – respondeu o delegado com uma cara
enfezada.
- Bem, o senhor quer saber se vi algo diferente?
- Isso.
- Não.

O delegado olhou para o teto e respirou fundo.

- Aliás...
- O quê? – empertigou-se o delegado.
- Nada. Nada não...
- Nada o quê??? Fale. Qualquer detalhe pode ajudar.
- Bom. Eu tenho um sono muito leve. E uma coisa que eu ouvi foi um
baque seco, no andar de cima, como se fosse em cima do nosso quarto.
Mas não deve ter sido nada.

O delegado franziu uma sobrancelha e pediu:


- Por favor, tente descrever o barulho.
- Uma porta. Isso. Tipo uma porta batendo. Uma batida seca. Abafada.
Como se fosse madeira.
- Entendo... Mais alguma coisa?
- Não. Mais nada. Depois eu continuei...
- Obrigado. Eu imagino o que deva ter continuado.
- Eu voltei a dormir delegado... – disse o jovem com seriedade.
- Muito bem. É só isto. Me chame o Dr. Mendes, por gentileza.
- Pois não.

O advogado sentou-se e ouviu atento o relato do amigo.

- Qual o quarto que eles estão ocupando, Adroaldo?


- O da ala leste, no térreo... O penúltimo à esquerda...

128
- Não me diga que é... – gaguejou o delegado.
- Exatamente. – disse o advogado categoricamente.
- Isso limita um pouco as coisas.
- Talvez. Mas chega a ser assustador. – disse Dr. Mendes pensativo.
- Mais tarde, sem maiores alardes, eu gostaria de subir até o quarto de
Artur. – disse o delegado.

O advogado assentiu com a cabeça.

- Agora quero falar com o Morris. – disse Munhoz.

O mordomo permanecia em pé diante do delegado, como se estivesse


preste a servi-lo. O olhar treinado para fixar-se num ponto qualquer e
permanecer impassível até que recebesse alguma ordem.

- Por favor, sente-se Morris.

O mordomo pareceu ficar desconfortável com o pedido, porém mesmo a


contragosto instalou-se ereto na cadeira, com as mãos postas lado a
lado sobre a calça de uniforme cuidadosamente frisada.
- Morris... Há quanto tempo trabalhas aqui mesmo?
- Há muitos anos, senhor, mais de dez.
- És natural da França mesmo?
- Sim senhor.
- E como aprendeu o idioma tão facilmente?
- Eu já falava português. Trabalhei durante anos na casa de um amigo
do Sr. Artur, brasileiro, que vivia em Paris com a família. Depois fomos
para os Estados Unidos por um ano. E de lá eu vim para o Brasil.
- E poderia me dizer por que veio de tão longe?
- Por que fui convidado pelo Sr. Artur para trabalhar aqui.
- Mas deixou tudo por lá? Sua família...
- Eu não tenho ninguém, senhor.
- Hum... Entendo. Bem... Morris... – disse o delegado novamente
remexendo em seus papéis – Pelo que vejo aqui tu tiveste um problema
bastante sério antes de vir para cá.

O mordomo sentiu as faces perdendo a cor gradativamente, porém


manteve a postura.

- O que tem a me dizer sobre isso? – continuou o delegado.


- Foi um acidente, senhor.
- Não me parece que esfaquear alguém até a morte e cortar-lhe
algumas partes do corpo possa ser considerado um acidente... –
conjeturou o delegado.
- Mas foi em legítima defesa.
- Legítima defesa de quem? Pelo que me conste a vítima não estava
armado, aliás, nem teve tempo de se defender.

129
- Eu tive meus motivos, senhor.
- E eu poderia saber quais são?

Morris baixou os olhos e calou-se por um tempo, para depois


responder:
- O que posso lhe dizer é que aquele sujeito não valia nada. E teve o
que mereceu. Eu fiz justiça. Mas prefiro não falar sobre isso. Faz parte
do passado. E o passado é irrelevante no momento.
- Será mesmo, Morris??? – questionou o delegado aproximando-se dele
para forçá-lo a levantar os olhos.

O mordomo encarou o delegado e pela primeira vez este último


percebeu um lampejo de emoção na figura do homem à sua frente.
Seus olhos ficaram marejados de lágrima e ele respondeu quase que a
meia voz.

- Com toda a certeza, senhor. O passado não importa mais. Não há


como mudá-lo, ou voltar atrás para fazer diferente... Depois desse...
Incidente, o Sr. Artur me convidou para vir com ele para o Brasil. Eu
aceitei, afinal nada mais me prendia por lá... Em lugar nenhum...
- A não ser a justiça. – disparou o delegado – E a pena de morte. Tu
vieste para o Brasil fugindo da justiça americana. Com direito a
passaporte falso e tudo o mais! E Artur foi conivente com isso???
- Foi. – respondeu o mordomo secamente.

O delegado balançou a cabeça.

- Por favor, Morris, me faça entender essa história.


- Senhor, eu não quero falar sobre isso. Não posso... Não consigo... O
que lhe asseguro é que o Sr. Artur conhecia meus motivos e me trouxe
para cá. E desde então eu devo a minha vida a ele, incondicionalmente.
Quando ele se foi eu senti a solidão de não ter mais ninguém
novamente...
- Novamente?...

O mordomo fechou-se como um cofre de banco. Sua expressão assumiu


a costumeira frieza e rigidez. Perguntou com o mesmo tom de voz
grave e sem emoção:

- Deseja saber mais alguma coisa?


- Sim. Por acaso viste alguma movimentação diferente hoje pela
manhã?
- Que tipo de movimentação?
- Qualquer uma que fugisse à rotina. – respondeu o delegado.

O mordomo pensou e respondeu:


- Que tenha me chamado a atenção não.

130
- E o que fizeste desde a manhã?
- O mesmo de sempre. Acordei por volta de seis horas, tomei banho,
me vesti e desci para iniciar minhas atividades. Encontrei Regina e
Adelaide na cozinha, e Anemary na sala de jantar. A mesa foi posta
para o café e James desceu por volta das oito horas. Mal tocou no café,
alegando indisposição. Disse que subiria para seu quarto. Pediu que lhe
levasse o jornal, pois pretendia ler no quarto, talvez dormir mais um
pouco. A senhora Valesca e o senhor João Vítor não vieram para o
desjejum, nem vi sinal dos dois. Acredito que estivessem em seus
aposentos. Após pedi a Henrique que fosse até a cidade buscar uns
mantimentos para a despensa, coisa pouca, que ele faria em menos de
meia hora. Ele me pareceu meio contrariado, mas foi. Depois vi quando
Regina pediu a Adelaide que fosse buscar uns temperos na horta.
- E isso era que horas?
- Umas nove e meia, nove e quarenta e cinco, mais ou menos. –
respondeu Morris.
- E depois?
- Bom, depois fui organizar a sala de jantar, a biblioteca e o escritório,
até que Regina veio falar comigo, muito nervosa, referindo que achava
que tivessem matado Adelaide. Fui com ela até a cozinha e encontrei a
senhorita Cristine, Angélica, Ariel, Anemary e Thomaz.
- E Henrique?
- Ele chegou logo em seguida.
- E Valesca e João Vítor?
- Acredito que tenham ouvido o burburinho, pois quando fui chamá-los
eles já estavam vindo.
- E isso era que horas? – perguntou o delegado.
- Mais de dez, com certeza. Acredito que umas dez e meia.
- Sei... – disse o delegado fazendo algumas anotações.
- E James, você o viu quando?
- Quando bati na porta de seu quarto para avisá-lo do ocorrido.
- E ele estava dormindo?
- Acredito que sim. Bati duas vezes até ele atender. Estava com seu
pijama ainda, o cabelo estava despenteado, creio que havia pegado no
sono novamente. Esse rapaz não anda bem nos últimos dias. Desde que
o tio morreu ele não conseguiu se aprumar, coitado... Às vezes eu o
pego chorando pelos corredores. E eu entendo o que é não ter mais
ninguém...

O delegado o olhou perscrutadoramente. Morris manteve o olhar firme à


sua frente.

- E depois? – quis saber o delegado.


- Bom, depois foi tudo muito confuso, um entra e sai... A polícia
chegando, o Dr. Mendes com o senhor... Enfim... O senhor estava aqui
e viu.

131
- Morris, houve alguma coisa que lhe tivesse chamado a atenção? Algo
diferente, tipo algum barulho?... – perguntou o delegado.
- Como assim?
- Algum ruído diferente no castelo?... – continuou o delegado.
- Não... Nada que me tenha chamado a atenção, senhor.
- Então está. Muito obrigado Morris. – disse o delegado calando-se em
seguida.
- Quer que eu chame mais alguém?
- Não. Preciso de dez minutos para um cafezinho...
- Vou providenciar senhor. – disse o mordomo pegando o cinzeiro sujo
e retirando-o dali para limpá-lo.

Morris era de fato um perfeccionista, quase tanto quanto ele próprio,


pensou o delegado. Nesta feita Dr. Mendes entrou na biblioteca e
instalou-se em frente ao amigo.

- E então? Progressos?
- Mais ou menos. Digamos, informações promissoras... Vamos ver.

Morris bateu na porta da biblioteca suavemente, quase que


imperceptivelmente, antes de entrar com a bandeja de café. "Não me
admira que as pessoas não ouçam suas batidas na porta pela manhã",
pensou o delegado.

Munhoz e Mendes sorveram a bebida quente e o delegado acendeu


mais um cigarro, sujando novamente o cinzeiro recém-limpo por Morris.

Já passava das quatro horas da tarde e Munhoz queria conversar com


todos da casa. A seguinte foi Cristine.

A jovem estava visivelmente abatida. O delegado seria breve com ela.

- A senhorita poderia me dizer onde estava hoje pela manhã?

Cristine desconcertou-se, porém respondeu a pergunta.


- Na casa de Angélica. Eu... Dormi lá. – disse a loirinha com a
impressão de que o delegado pudesse ler seus pensamentos e descobrir
o quanto gostara de dormir lá.

Desviou o olhar na direção da parede. O advogado atribuiu sua reação


ao nervosismo. Mal sabia ele.

- E depois vocês vieram para cá?


- Sim, lá pelas dez horas, um pouco mais talvez.
- E o que ocorreu então?

132
- Estávamos na cozinha, com a Regina, recém havíamos chegado
quando Ariel irrompeu na cozinha, muito nervoso, despejando toda
aquela história.
- E a senhorita por acaso não viu nada que pudesse ter lhe chamado a
atenção?
- Não... – respondeu Cristine.
- Nem no caminho que fizeram até aqui?
- Não, nada... Não encontramos ninguém.
- Bem, a horta fica no outro extremo da propriedade mesmo. – disse o
delegado – Para a sorte de vocês...

Cristine empalideceu.
- Desculpe – disse Munhoz – Não queria assustá-la.
- Tudo bem... Mas é que eu não havia pensado por este aspecto...
- Mas deveria. – disse o delegado.
- Por quê??? – perguntou a jovem.
- Por nada, por nada. Só acho aconselhável ficar com os olhos bem
abertos por esses dias, todos por aqui, não só a senhorita.
- Ah... Bom... – disse Cristine, embora não sentisse muita convicção no
complemento da colocação do delegado.
Ficou apreensiva e foi invadida por uma sensação de frio interno. Era
medo.

A próxima a ser ouvida foi Anemary. A governanta, assim como Morris,


não conseguiu relaxar ao ser convidada a sentar-se onde somente os
patrões se acomodavam. Sentia-se desconfortável pelo local e pelo teor
da conversa. O delegado repetiu a pergunta que fez aos demais:

- A senhora...
- Senhorita.
- Pois bem, a senhorita viu alguma movimentação diferente na casa
hoje pela manhã?
- Não senhor. – respondeu a governanta categoricamente.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Poderia me descrever como foi sua manhã?
- Sim. Levantei-me pontualmente às seis e meia. Tomei meu banho,
arrumei-me e fui tratar dos meus afazeres.
- Senhorita... Os seus aposentos ficam no térreo?
- Sim. Nas dependências dos serviçais, na ala norte.
- E por acaso a senhorita ouviu algum barulho diferente nesta manhã?
- Que tipo de barulho?
- Portas batendo... Marteladas... Estrondos.
- Não senhor. Não ouvi nada. Só o ronco do carro, quando Henrique foi
até a cidade, e depois quando voltou.
- E isso foi que horas?
- Huumm... Acho que lá pelas nove e meia.

133
- Certo, certo... – disse o delegado fazendo mais alguns apontamentos
em suas folhas – E... Senhorita, viu mais alguém circulando pela casa
pela manhã?
- Não. A senhorita Cristine eu só vi por volta das dez horas. O senhor
James foi para o quarto depois do café da manhã. E aqueles...
Aqueles... Parasitas, só levantaram depois da notícia da morte de
Adelaide.
- Eu senti um certo... Desacordo com a presença de Valesca e João
Vítor aqui no castelo? – perguntou o delegado.

Anemary tossiu discretamente.

- Desculpe. Falei sem pensar. Mas até mesmo o senhor soube a quem
me referia...
- Soube... – concordou o delegado.

Novamente remexeu em seus papéis e fitou a governanta tentando


penetrar em seus pensamentos.

- Senhorita, há quanto tempo trabalha aqui?


- Há mais de dezoito anos. – referiu orgulhosa.
- E veio parar aqui como?
- Bem, como o senhor sabe, eu sou inglesa. – respondeu a mulher
empinando o nariz – E fui contratada pelo Sr. Artur numa de suas idas
ao exterior.
- E o que a senhorita fazia na sua terra?
- Bem... Eu era... Acompanhante... De idosos.
- Acompanhante?...
- Sim.
- E ganhava bem para isso?
- O suficiente para me manter.
- E conheceu Artur como?
- Num café. Eu estava com uma amiga e ela conhecia o Sr. Artur, que
estava de passagem por nossa cidade.
- E então?
- Então ele me fez um convite para trabalhar com ele. Na época a
falecida senhora mãe dele ainda era viva. E eu vim para cuidar dela. E
acabei cuidando de tudo.
- Dele inclusive?
- Como assim? – disse a governanta rispidamente.
- Por favor, não me interprete mal. Eu me referia a casa e aos serviçais.
- Ah, bom. Sim. Acabei ficando responsável por tudo. Pelo menos até a
vinda de Morris. Aí pude partilhar as responsabilidades com ele.
- E a senhorita... É... Digamos... Nutria algum sentimento por seu
patrão?
- Naturalmente. Admiração.
- Não... Eu me refiro a algo mais... Substancial. Paixão.

134
A governanta levantou-se injuriada.

- Como ousa???
- Sente-se senhorita... E acalme-se.
- Como posso me acalmar??? Quem o senhor pensa que é para me
dizer algo assim?
- Alguém que achou isto junto com seus pertences. – respondeu o
delegado estendendo um pedaço de papel para a mulher à sua frente.

Anemary pegou o que o delegado lhe estendia e ficou lívida. Deixou-se


cair novamente na cadeira. O delegado lhe estendeu mais alguns
papéis. O primeiro era uma foto de Artur com Valesca, sendo que a loira
estava completamente riscada, tendo o rosto desfigurado pela ponta da
caneta esferográfica, sendo possível, no entanto, reconhecê-la pelo
estilo. Os outros se tratavam de fotos do falecido, todas
cuidadosamente guardadas dentro de um envelope perfumado.

- Como ousa mexer nas minhas coisas... – disse a governanta com a


voz entrecortada – O senhor não tinha o direito...
- Tinha sim. Desde que fatos estranhos tenham acontecido a polícia
pode investigar sim.
- Eu não estou entendendo...
- Senhorita, uma moça pode ter sido brutalmente assassinada.
- Mas o que ISTO tem há ver com ela?... – perguntou a governanta
levantando as fotos na direção do delegado.

Munhoz sentiu pena dela. A mulher forte estava fragilizada a ponto de


quase desabar num choro compulsivo. Os olhos presos às fotos e as
mãos acariciando o contorno do rosto que lhe sorria no papel em preto
e branco.

- Eu... Eu sinto tanta saudade... – disse a mulher.


- Todos nós sentimos. – completou o delegado.
- Todos nada! Essa desclassificada aí só está interessada na herança do
senhor Artur. Ela só o fez sofrer! Ela nunca mereceu o homem que
teve! E tem o desplante de trazer o amante para cá! É ela que merecia
estar morta, não a Adelaide!
- A senhorita matou a pessoa errada?

Novamente Anemary levantou-se num pulo:


- Eu não matei ninguém!!! Eu juro! Eu estava aqui trabalhando!
- Sente-se senhorita.

A governanta despencou na cadeira e começou a soluçar baixinho. O


delegado estendeu-lhe seu lenço de seda azul, mesmo já estando
ensopado de suor. Não tinha mais nada por perto mesmo que pudesse
servir para secar suas lágrimas. E Anemary não era mulher que secaria

135
as lágrimas, ou o que quer que fosse, na manga do uniforme. Pegou o
lenço e assuou o nariz. O delegado fez uma cara de nojo. Por certo não
usaria mais aquele lenço, pelo menos sem lavá-lo. Um pouco mais
calma a governanta se pôs a falar:
- Delegado, de fato eu sempre fui apaixonada pelo Sr. Artur, mas ele
nunca me olhou com os mesmos olhos apaixonados, aliás, acho que
nunca percebeu meu amor. Pensava tratar-se de dedicação. Na verdade
ele nunca teve ninguém, até que essa uma apareceu na vida dele. Eu
nunca entendi o que ele via nela... Tão vulgar... Tão, tão
desclassificada... Mas mesmo assim eu nunca lhe disse nada... Eu não
tinha o direito. E quando ele a mandou embora, duas semanas antes de
morrer, eu fiquei radiante e pensei: eis uma atitude acertada. Mas aí
aconteceu aquela tragédia... E o fantasma de Valesca voltou para
atormentar o pobre do Sr. Artur.
- Senhorita, eu não acho que ela o atormentava. Muito pelo contrário,
acho que ela o distraía bastante...
- Vocês homens são todos iguais! – disse Anemary com amargura – São
incapazes de ver as qualidades de uma mulher de verdade e se perdem
por um par de pernas e seios.
- Senhorita! Mantenha-se. – repreendeu o delegado.

Anemary baixou os olhos, envergonhada.


- É só isso delegado? Posso me retirar?
- Pode. E peça para Angélica entrar, por favor.

Antes de sair a governanta guardou cuidadosamente as fotos no bolso


de seu uniforme, secou as lágrimas, aprumou-se e devolveu o lenço ao
delegado. Este o depositou numa gaveta da escrivaninha, para não
correr o risco de, impulsivamente, utilizá-lo novamente para secar a
testa.

Angélica instalou-se na cadeira por onde os demais haviam passado.


Fitou o delegado seriamente:

- Eu estou preocupada com o meu irmão.


- Eu imagino que esteja.
- Nós vamos tirá-lo de circulação por um tempo. – disse Angélica.
- É aconselhável. – respondeu o delegado – Angélica, Cristine estava
contigo desde ontem?
- Estava. Lá em casa.
- Certo. E tu não viste nenhum movimento suspeito hoje pela manhã?
- Nada. Até porque acordamos tarde – disse Angélica tossindo para
disfarçar seu titubear – e só chegamos ao castelo depois das dez horas.
E logo em seguida o Ariel chegou contando tudo aquilo.
- Sei, sei. E na vinda para cá? Alguém no caminho? Algo que tenha
chamado a tua atenção?
- Nada. Absolutamente nada. – disse Angélica.

136
- Pois bem, minha filha, é só isso então. E... Angélica...
- Sim?
- Cuide-se.
- Pode deixar.

O próximo a ser ouvido foi James. Este se apresentou ao delegado mais


descolorido do que o normal. Estava quase que transparente. Sua testa
transpirava e suas mãos estavam trêmulas.

- Sente-se James, fique à vontade. – disse o delegado.


- Eu estou muito angustiado com essa situação toda...
- Todos estamos James. – respondeu o delegado – Mas vamos ver se
conseguimos tirar essa história toda a limpo, certo?
- Certo. No que eu puder ajudar...
- Me diga, tu reparaste em algo diferente nesta manhã?
- Nada, delegado.
- Onde estavas?
- No meu quarto. Desci para tomar café, mas quase não consegui
comer... Depois subi novamente, pois não me sentia bem. Deitei e
dormi até que Morris veio me chamar contando... Contando que... –
James suspirou – o senhor sabe.
- E tu não foste a mais nenhum lugar antes das dez horas?
- Não. Eu estava dormindo, já disse.
- Ótimo. E... James... Percebeste alguma atitude suspeita em alguém?
Hoje, ou em algum outro dia...
- Eu não estou lhe entendendo, delegado – respondeu o jovem
empertigando-se na cadeira.
- Eu quero dizer desde antes de seu tio falecer.
- O senhor está me dizendo que a morte do tio Artur está ligada a de
Adelaide?
- Eu não estou dizendo nada. Apenas fiz uma pergunta. E aguardo uma
resposta.
- Mas foi uma pergunta evasiva. Que tipo de atitude suspeita?
- Não sei bem... Digamos algo que tenha lhe chamado a atenção.
- Sei lá. Na verdade tudo e todos por aqui sempre foram meio
esquisitos. Veja o Morris, parece um personagem de filme de terror, um
"senhor Adams". A Anemary tem jeito de psicopata. O Henrique é
aquele sujeito caladão, não diz nada, não sabe de nada. O Thomaz a
gente mal conhece. O Tio Artur vivia no mundo dele. Aquela tal de
Angélica vive metendo o nariz onde não é chamada. A Valesca e o João
Vítor chegam a ser cômicos, de tão burlescos que são. A Cristine eu
também não conheço bem, não tenho opinião formada. Bom, e eu não
sou um tipo que se possa dizer que é muito sociável. Logo...

O delegado esboçou um sorriso:


- Belo panorama que traçaste...
- Mas é a pura verdade. Aqui, de perto, ninguém é normal.

137
- Bom, se lembrares de algum detalhe que possa ajudar a solucionar
esse caso, por favor, me procure.
- Com certeza, delegado. Seria só isso?
- Sim.
- Então, com licença. Eu vou voltar para o meu quarto. Preciso me
deitar.
- Tu devias procurar um médico, rapaz. Deves estar anêmico, ou sei lá
o quê.
- Vou seguir o seu conselho, delegado, talvez na semana que vem...
- Ótimo. Por favor, mande entrar o motorista.

Henrique estava visivelmente nervoso. Esfregava as mãos e não


conseguia parar de balançar as pernas, num movimento repetitivo.

- Nervoso, Henrique? – perguntou o delegado.


- Um pouco...
- E por qual motivo?
- Nada...
- Nervoso por nada?
- Nada não. É por tudo. Por essa situação toda.
- Entendo... – disse o delegado. – Me diga onde estiveste hoje pela
manhã. Mais precisamente após as oito horas.
- Eu tomei café antes das oito, na cozinha. – Henrique tossiu – depois
fui para a garagem, até que Morris me pediu para ir até a cidade. Fui
num pé e voltei no outro. E logo que cheguei Morris veio me falar
sobre... Sobre a Adelaide.
- Tu havias marcado de encontrá-la? – questionou o delegado.

Henrique ficou pálido e respondeu com um sinal afirmativo de cabeça.

- Ficamos de nos encontrar no meio da manhã...


- Aonde? – perguntou o delegado.
- Nos fundos do castelo.
- E posso saber por quê?

Henrique respirou fundo e se pôs a falar:

- Bem delegado, eu vou contar tudo. O senhor vai acabar descobrindo


mesmo, todos vão, então...
- Descobrir o quê?
- Bem, o corpo... Foi para autópsia, não é verdade?
- Foi. – respondeu o delegado.
- Então... Bom... A Adelaide e eu... Nós... Nós estávamos nos
encontrando de vez em quando.
- De vez em quando?
- É. Muitas vezes, na verdade. Ela estava apaixonada por mim. E era
uma moça bonita... Aí o senhor sabe como é...

138
- Vocês estavam tendo um caso?
- Namoro. Como ela gostava de dizer. – respondeu o motorista.
- Que seja. E daí?
- Bom. É... Eu queria... Contar pra ela algumas coisas da minha vida...
Coisas que ela não sabia ainda.
- Do tipo?
- Que eu não poderia casar com ela. – respondeu Henrique.
- E por quê?
- Por que eu sou casado, delegado. Eu só trabalho aqui por
necessidade. O Sr. Artur paga, quero dizer, pagava bem, mas tenho
mulher e filhos na capital. E vou acabar voltando para lá.
- Mas Adelaide não sabia disso?
- Não. Não consegui contar. Na verdade acho que ela não queria ouvir.
- Por favor, rapaz, me poupe. Apenas relate os fatos.
- Bom, delegado – continuou o motorista – Adelaide estava me
pressionando para casar...
- Mas isso porque tu deste esperança a ela! – bradou o delegado.
- Não só por isso. Adelaide estava grávida...
- E por isso tu a mataste, desgraçado??? – bradou o delegado
esmurrando a mesa.

Henrique se levantou num pulo.

- Não senhor! Eu não mataria ninguém, muito menos uma mulher que
carregava um filho meu! – disse o motorista caindo num choro
compulsivo.

O delegado sentou-se novamente. Henrique também desabou na


cadeira.

- Eu não seria capaz de fazer nada contra ela, delegado. Eu gostava


muito dela. E ia assumir a criança. Eu já tenho três filhos com minha
mulher e mais dois fora do casamento. E assumi todos. Com este não
seria diferente. Eu só não iria casar com ela. Eu amo a minha esposa.
- O senhor, ein??? – disse o delegado.
- Delegado, o senhor é homem, sabe como são essas coisas...
- Sei... Mas convenhamos que tu não fostes muito... Ético.
- E quando se tem tesão a gente lá se lembra de ética, doutor? – disse
Henrique.
O delegado respirou fundo e apoiou a cabeça na mão.

- Pode ir. – disse o homem mais velho – E feche a porta ao sair, por
favor.

O delegado juntou suas anotações e as organizou na pasta, após


proceder uma leitura de todo o material. Dr. Mendes entrou na
biblioteca depois de alguns minutos.

139
- Eu vou pra casa, Adroaldo. Estou cansado. Mas antes quero fazer uma
vistoria tu bem sabes aonde.
- Tudo bem. Eu vou contigo. – disse o advogado.
- Mas convém não alardearmos muito.
- Vamos fazer o seguinte. Fique para a janta que aí a gente tem a
desculpa de circulares por aí. Eu vou ficar por aqui hoje. Acho prudente.
- Certo. E fique de olhos bem abertos, amigo.
- Pode deixar.

Ao passar pela sala de estar o delegado olhou os presentes que ainda


estavam sentados e reunidos no amplo aposento.

- Senhores, obrigado pela colaboração. Todos estão dispensados.

**************

Cada qual tomou seu rumo.

Angélica e Cristine ficaram juntas e foram para a casa da primeira,


levando Ariel com elas. Passava um pouco das seis horas da tarde. O
dia já estava acabando. De novo chovia torrencialmente.

Ao entrarem na cabana tiraram as capas de chuva e o casaco pesado


que Angélica havia emprestado à Cristine. Os guarda-chuvas ficaram
escorrendo na pequena área de serviço.

Angélica acendeu a lareira para abrandar o frio e a umidade. Em poucos


minutos o ambiente aquecido ficou mais acolhedor do que quando
chegaram. Cristine e Ariel ajudaram Angélica a preparar um lanche para
eles. Enquanto comiam foi a morena quem iniciou a conversa com o
irmão:

- Ariel...
- O quê?
- Eu estive pensando... Aliás, a gente esteve pensando – disse Angélica
olhando para Cristine – Que talvez fosse melhor tu ficares uns dias
fora...
- Tão querendo me tirar de circulação?
- Não... Sim... – titubeou Angélica.
- Eu não sou idiota, mana. Eu to ligado no que ta acontecendo. Seja lá
quem fez isso com a Adelaide pode querer me apagar também, não é?

Angélica respirou fundo e assentiu com um maneio de cabeça.


- É.

140
Ariel baixou os olhos e suspirou.
- Mas a gente não vai deixar nada te acontecer, entendeu? Nada! –
disse a morena categoricamente – Eu te prometo, meu querido.

Ariel sorriu melancolicamente.


- E o que foi que vocês pensaram? – quis saber o adolescente.
- Bem... – respondeu Cristine – A gente pensou numa viagem ao... Rio
de Janeiro.

Instantaneamente os olhos de Ariel se acenderam.


- Rio de Janeiro??? Tão brincando comigo, né?
- Não. Estamos falando sério! – disse Cristine – Eu até já falei com uma
amiga minha que prontamente se dispôs a te hospedar.
- Amiga boazuda???
- Ariel! Faz favor! – repreendeu Angélica dando um safanão no braço do
irmão.

Cristine gargalhou e respondeu:


- Posso te assegurar que é um mulherão!
- Beleza! – disse Ariel ostentando um sorriso de orelha a orelha.
- Mas que não vai te dar a menor bola! – emendou Cristine também
sorrindo – Ela é comprometida.

Ariel fez uma careta. Continuou:


- Mas que as cariocas se cuidem, afinal, vai ter Ariel na área!...
- Quanta pretensão num corpo só!!! – disse Angélica sorridente.
- Eu que sei, maninha... Eu que sei... – respondeu Ariel debochado.
- Ariel, - continuou Angélica desta vez com um tom de voz sério – tem
uma coisa...
- O quê?
- Que isso fique só entre nós, entendido? Mais ninguém.
- Tudo bem.
- E também não quero que comentes isso no castelo. As paredes têm
ouvidos. – continuou a morena – Deixa que pro pai e pra mãe conto eu,
ok?
- Por mim tudo bem. E eu vou quando?
- Amanhã bem cedo. A gente sai daqui antes das cinco horas. Tu
embarca as oito, no Salgado Filho.
- Eu vou de avião???
- Não, de asa delta, ô bocó! – respondeu Angélica.

Ariel levantou de onde estava e abraçou a irmã pelo pescoço, cobrindo-


a de beijos.

- Sai pra lá, ô babão! – disse Angélica abraçando-o com firmeza,


fazendo as palavras destoarem completamente dos seus atos.

141
- Eu te amo mana. – disse Ariel dando um aperto ainda mais forte em
Angélica.
- Eu também te amo... Muito... – respondeu a morena sapecando um
beijo nas faces do garoto, dando-lhe em seguida uma chave de pescoço
e um croque nas orelhas.
- Ai, ai, ai... Ta vendo só como ela me trata, Cristine??? – resmungou
Ariel sorrindo e tentando se desvencilhar daquela prisão amorosa.

Depois que terminaram o lanche os três se dirigiram à casa dos pais de


Angélica, para Ariel juntar alguns pertences para levar. Enquanto fazia
sua mala o adolescente cogitava:
- Quanto tempo será que eu vou ficar lá?
- Não sei, Ariel... – disse Angélica.
- E como é que vai ficar a escola? Vou perder muita matéria... Ainda
mais agora que eu to arrasando em matemática...
Cristine olhou para o garoto e afagou-lhe os cabelos loiros
carinhosamente.

- Querido, o importante agora é que fiques seguro – respondeu Angélica


– Depois a gente vê o que vai acontecer com a escola. E certamente
não ficarás muito tempo, só mesmo alguns dias. Digamos que são umas
feriazinhas forçadas.

"Pelo menos é o que espero", pensou Angélica.

Ariel sorriu.
- Não leva roupa de lã, não. – disse Cristine ao vê-lo separar alguns
suéteres.
- Tu é um bocó de mola mesmo, - brincou Angélica – querendo levar
roupa de lã pro Rio.
- Mas eu nunca fui lá... – justificou o jovem – Não sei como é o clima.
- E tu não assiste televisão, não? – continuou a morena provocando-o.
- Assisto, mas não me liguei...
- Ariel, - disse Cristine – basta um moletom e uma jaqueta. Leva mais
camisetas e bermudas mesmo. E um calção pra você pegar uma praia.
- Taí... Tô gostando disso. Praia, sol, mulher de biquíni, peitos e
bundas... To indo pro paraíso...

Tanto Angélica quanto Cristine tiveram de rir do garoto. A idéia de


mandá-lo para o Rio acabara atenuando o clima de tensão e fazendo-o
relegar a segundo plano todo o incidente daquele dia, e as implicações
decorrentes dele também.

Tão logo Ariel terminou de arrumar suas coisas, que se limitaram a uma
mochila e a uma sacola de viagem, Regina abraçou o filho e despediu-
se dele. Enquanto Ariel arrumava suas coisas Angélica havia conversado
com os pais.

142
- Vai com Deus, meu filho, - disse a mãe – e te cuida! Não pega muito
sol, passa filtro, não entra sozinho no mar, não vai no fundo, não sai
sozinho, não vai te perder naquela cidade grande...
- Credo, mãe, isso até parece um mau agouro! Eu sei me cuidar... Já
sou um homem!
- Sei... – disse Regina – Que Deus te abençoe.
- Fica com Deus também, mãe. E fica tranquila. Eu to legal.
- Que bom...
- Tchau, pai! – disse Ariel abraçando Israel.
- Vai com Deus meu filho. E lembre-se do que a tua mãe te disse. E não
vai me fazer passar vergonha na casa dos outros! Come com modos,
não limpa a boca na toalha de mesa, toma banho todos os dias, penteia
esse cabelo e escova esses dentes!
- Sim senhor, general! – disse Ariel batendo continência para o pai.
- E não me debocha, guri!

Ariel abraçou o pai amorosamente.


- Deixa com o papai aqui, eu sou um homem educado...

Ariel foi com Angélica e Cristine para a cabana. Combinaram de sair


cedo, para que ninguém os visse, e para não perderem o vôo.
Angélica estendeu um colchão ao lado de sua cama e antes de deitarem
Ariel disse inocentemente:

- Cristine, pode deixar que eu durmo no chão. Dorme na cama com a


Angélica. Mas te prepara pra aguentar o bafo e levar alguns coices
durante a noite.
- Raio de guri abusado! – disse Angélica enquanto jogava um
travesseiro no irmão que se esquivou e entrou no banheiro, trancando a
porta por dentro.

Cristine foi obrigada a rir da cena, Angélica também.

- Vocês sempre se tratam assim tão... Afetivamente? – brincou Cristine.


- Quase sempre, mas nos superamos quando tem platéia. – riu-se
Angélica – Mas se concordas com as colocações dele posso fazer mais
uma caminha no chão... Do outro lado... – continuou Angélica com uma
cara safada, diminuindo o tom de voz.
- Nem pensar... – respondeu Cristine no mesmo tom, falando ao pé do
ouvido da morena. – Mas se a senhorita pensa em ousar me tocar com
seu inocente irmão dormindo ao lado, pode ir tirando o cavalinho da
chuva...

Angélica sorriu maliciosamente, envolvendo Cristine pela cintura. A


loirinha tentou se desvencilhar, olhando para a porta do banheiro,
apreensiva.

143
- Fica tranquila... – disse Angélica enquanto ouvia o barulho do chuveiro
sendo ligado – eu conheço o meu eleitorado. O tempo do banho e da
punheta é suficiente pra gente matar as saudades...
- Angélica, pelo amor de Deus, não faz isso... – disse Cristine enquanto
Angélica capturava sua boca num beijo sôfrego e descia sua mão na
direção de seu sexo.

A morena abriu o fecho da calça de Cristine e deslizou seus dedos na


direção do triângulo de pelos dourados. Cristine arqueou o corpo,
excitando-se com aquele contato intempestivo. Apoiou-se em Angélica
enquanto esta a segurava fortemente e começava a acariciar seu sexo,
já molhado de excitação. Cristine agarrou-se à Angélica, que a
mantinha de pé, porém escorando-a na parede do quarto. Ao sentir a
umidade escorrendo entre seus dedos estremeceu e beijou Cristine
mais intensamente, introduzindo dois dedos naquela cavidade receptiva
e ardente. A loirinha apertou-se contra ela, abrindo mais suas pernas e
facilitando o movimento dos dedos de Angélica. Cristine concentrava-se
para não gritar e nem gemer alto. Quando Angélica retirou os dedos de
dentro dela e passou a estimular seu clitóris Cristine, num movimento
rápido e incontido, levou sua boca ao pescoço de Angélica, sugando-a
enquanto se esvaía em espasmos silenciosos de prazer.

Assim que os movimentos se abrandaram e Angélica sentiu a mulher


em seus braços relaxar gradualmente, deixou-a firmar os pés no chão
enquanto se recompunha. A morena fitou-a nos olhos e sorriu satisfeita.
Logo em seguida levou sua mão ao pescoço e disse no ouvido de
Cristine.

- Acho que esse marcou...

Cristine sorriu e disse:


- Desculpa. Ou gritava ou procurava algo para ocupar a boca... Aliás,
falando em ocupar a boca...

Cristine, também num movimento rápido, segurou Angélica e abriu o


fecho de suas calças, puxando-as para baixo. O barulho do chuveiro
permanecia contínuo e intenso. A morena encarou-a com malícia
entendendo perfeitamente a intenção de sua pequena amante. E
naquele momento o que menos queria era fazer-se de difícil. Não
dispunham de muito tempo. Tirou uma das pernas da calça e sentou-se
numa cadeira perto da porta, de viés para a porta do banheiro. Abriu as
pernas sem cerimônias deixando Cristine cara a cara com o que lhe
parecia um néctar dos deuses. A loirinha ajoelhou-se e abocanhou o
sexo de Angélica, enquanto esta se contorcia e a segurava pelos
cabelos. Sua língua penetrou na cavidade encharcada, bebendo da
fonte dos prazeres e movendo-se para dentro e para fora. Sentia
Angélica conter seus gemidos e controlar seu ímpeto de gritar de

144
prazer. Ao percebê-la prestes a gozar deteve-se com movimentos
circulares de língua, intercalados com sugadas intensas, no seu clitóris
intumescido. A morena projetou seu púbis para frente e Cristine
abocanhou-a de vez, sentido a explosão do prazer em sua boca. O jorro
quente em seu queixo fez com que se sentisse poderosa. Só uma
mulher poderosa seria capaz de fazer aquela deusa grega gozar em sua
boca tão rapidamente. Lambeu sua cavidade vagarosamente, sentindo
seu gosto e sua textura na própria língua. Estremeceu de prazer ao
sentir aquele sabor. E se deu conta de que nunca havia feito amor
daquela forma. Com tanta urgência, completude, sincronia e
cumplicidade. Levantou os olhos e mergulhou nas gemas azuis que a
fitavam amorosamente. Esgueirou-se e sentou-se montada no colo de
Angélica, de frente para ela, que a envolveu pela cintura, beijando-lhe a
boca.

Angélica sentiu o próprio gosto na boca de Cristine. Afagou suas costas


e aconchegou-a junto a si, num abraço carinhoso. Ficaram naquele
estado de inércia por alguns instantes, esperando que os corações
voltassem à pulsação normal. Uma sensação de sonolência gostosa as
invadiu. Olharam-se nos olhos e sorriram.

Neste momento ouviram o chuveiro ser desligado e a voz de Ariel ao


fundo, cantarolando uma música do Biquíni Cavadão. Levantaram-se de
onde estavam e Angélica tratou de vestir as calças, tentando recompor-
se. Cristine também ajeitou suas roupas. Angélica ainda a abraçou
furtivamente, sapecando-lhe mais um beijo na boca. Não resistiu e
disse em tom de brincadeira:

- Depois sou eu que tenho bafo...

Desta vez foi Cristine quem lhe acertou uma travesseirada. Angélica
continuou:
- Vê se não vai dar um beijinho de boa noite no meu irmão... – riu-se a
morena.
- Debochada... Pois fique sabendo que este néctar é maravilhoso para a
pele, ta?...
- Bom, no que depender de mim tu podes dar continuidade a esse
tratamento... Sem problemas.
- Isso é uma promessa ou uma ameaça? – instigou Cristine.
- Depende...
- Do quê?
- Se vai te causar prazer... Ou dor... – respondeu Angélica.
- Bom... Prazer me causará sempre... Dor, só se eu resolver morder... E
não vai ser em mim a dor...
- Aaaiii... – disse Angélica levando suas mãos entre suas pernas.

145
Ambas riram. Neste momento Ariel saiu do banheiro já vestindo um
pijama azul marinho. Cristine mal conseguiu disfarçar, e antes que o
rapaz desse "boa noite" entrou no banheiro, fechando a porta atrás de
si. Angélica riu para si mesma.

Ariel aninhou-se no seu colchão. Depois de Cristine foi a vez de Angélica


tomar seu banho e deitar-se. Cristine já estava encolhida por sob as
cobertas. A morena beijou a testa de seu irmão dando-lhe boa noite.
Levantou as cobertas e deitou-se ao lado de Cristine, encostando-se
nela propositalmente.

Cristine girou o corpo, dando as costas para Angélica. Esta última


apagou a luz do abajur, deu um beijo em sua nuca e disse:
- Boa noite...
- Boa noite. – respondeu a loirinha sem se virar.

Angélica provocativa passou-lhe a mão nas nádegas e em seguida


também lhe deu as costas, porém encostando-se nela. Realmente era
mais seguro dormir naquela posição. Assim que pegou no sono Cristine
instintivamente se virou para Angélica, aconchegando-se a ela.
Sonolenta, a morena também se virou e abraçou-a, aninhando-a junto
ao peito. Dormiram abraçadas quase que toda a noite.

Quando o despertador tocou Angélica levantou-se num pulo,


empertigando-se na cama instintivamente, o coração disparado,
despertando de um sono conturbado onde cenas confusas a faziam
sentir angústia. Seu movimento brusco despertou Cristine. Num
instante a morena se deu conta da realidade a sua volta e levou a mão
ao ombro da loirinha, dizendo a meia voz:
- Vamos levantar, está na hora.

Calçou suas pantufas de lã e chamou Ariel.


- Ariel... Acorde... Vamos nos arrumar. – disse a morena.

Ariel também despertou ligeiro. Estava excitado ante a perspectiva de


viajar e conhecer o Rio de Janeiro. Tomou um banho rápido e vestiu-se.
Quando Ariel desceu sua irmã e Cristine já o aguardavam prontas, com
o café servido.

O relógio marcava 04h19min.

Antes das cinco horas estavam na estrada, no carro de Angélica.


Chegaram ao aeroporto por volta de sete horas. As oito e dez o avião
levantou vôo, levando um adolescente irrequieto rumo ao clima quente
do Rio de Janeiro.

146
Antes das dez horas estavam de volta ao castelo. Angélica entrou na
propriedade por um acesso lateral e muito pouco utilizado. Estacionou
seu carro ao lado de sua cabana e juntamente com Cristine se dirigiram
ao cemitério, para o velório de Adelaide.

Conforme iam caminhando em direção à capela mortuária Cristine foi


sentindo reavivarem-se suas lembranças de uma semana atrás, quando
chegou para o velório do tio. Sentiu-se desconfortável com aquelas
recordações. Caminhavam lado a lado, cada qual segurando um
guarda-chuva preto, pois de novo chovia intensamente. Ao cruzarem o
portão de ferro do campo-santo Cristine sentiu o desconforto avolumar-
se dentro dela. Além do enterro do tio, recordava-se de sua ida furtiva
à catacumba da família, encontrando-a descerrada. Lembrava também
da figura grotesca que a ameaçara, enfim, precisou de todo seu
autocontrole para não sair correndo daquele lugar. Ao menos se sentia
protegida pela presença de Angélica e pela claridade do dia, mesmo
turvado pelas nuvens carregadas.

Angélica e Cristine pararam por um instante na porta da capela.


Inspiraram profundamente tentando coletar forças do fundo da alma
para conseguir cruzar o portal daquele lugar.

O caixão estava colocado no centro, lacrado. Apenas uma coroa de


flores pendia na parede do fundo. Ao lado do caixão, numa cadeira de
assento de vime, uma pequena mulher chorava encolhida e fragilizada
pelo peso do desespero e da perda, e velava o corpo inerte da filha.
Num banco lateral dois meninos de olhos arregalados e expressão
assustada prestavam atenção em todos os movimentos do local, porém
não se moviam de onde estavam. Cristine percebeu logo se tratarem
dos irmãos gêmeos de Adelaide. Conjeturou se as mentes infantis
poderiam ter o exato entendimento do que ocorria naquele local, se
tinham ou não consciência da dimensão da finitude humana, mais
ainda, projetou-se anos atrás quando ainda muito criança fora levada
para ver os pais mortos. Apiedou-se dos meninos e sentiu um nó na
garganta.

Foi Angélica quem teve a iniciativa de entrar e deu o primeiro passo na


direção da mãe de Adelaide. Cristine seguiu logo depois dela, como que
se amparando em sua sombra para conseguir mover-se naquele lugar.

Deram os pêsames para a mãe de Adelaide, que parecia estar em


estado de choque. E não era para menos. Havia perdido além da filha, o
esteio da família naquele momento. O pai de Adelaide fora deixado em
casa, sendo cuidado por um familiar distante. Não haviam contado a ele
sobre a morte da filha, uma vez que alternava momentos de delírio e de
lucidez. Triste situação. E embora Dr. Mendes tenha garantido à mãe de

147
Adelaide auxílio no sustento da casa e na educação dos filhos pequenos,
isto não traria sua filha de volta.

Quando o relógio marcou onze e meia o sino melancólico da capela


soou, ecoando seu badalar monótono e funesto. O padre adentrou no
recinto para fazer a encomendação do corpo. Logo em seguida o cortejo
fúnebre percorreu o mesmo trajeto que Cristine havia percorrido na
semana anterior. Havia apenas meia dúzia de pessoas no local. Os
moradores e funcionários do castelo compareceram em peso, inclusive
Valesca e João Vítor. Henrique parecia o mais abatido de todos. O
delegado acompanhou o enterro de longe e Cristine teve a sensação
que ele observava atentamente os presentes. Os familiares da falecida
eram poucos e tão logo o caixão desceu à sepultura, na parte mais ao
fundo do cemitério, Angélica e Cristine saíram dali. Estavam bastante
cansadas e abatidas. Precisavam descansar.

Ao passarem pelo túmulo do tio Artur, Cristine fez uma observação


minuciosa dos arredores. Tentava vislumbrar, à luz do dia, o local de
onde havia surgido a figura ameaçadora de três dias atrás. Não queria,
porém, chamar a atenção de Angélica nem tão pouco parecer
obstinada, no entanto sentia que aquela situação ainda precisava ser
esclarecida. Apesar de perscrutar o lugar discretamente, o olhar
exploratório de Cristine foi captado por Angélica. Esta última percebeu
que deveria redobrar seus cuidados.

Mal haviam saído das cercanias do campo-santo o celular de Angélica


tocou, indicando que uma mensagem de voz havia sido enviada.
Instantaneamente a expressão da morena assumiu um ar circunspeto e
preocupado. Tentando aparentar tranquilidade ouviu em silêncio a
mensagem enviada. Desligou o aparelho e por instantes ficou em
silêncio. Pareceu à Cristine que tentava procurar uma desculpa
convincente para não deixar que soubesse do que se tratava a
mensagem. Depois de instantes Angélica disse, tentando demonstrar
naturalidade:

- Tine, eu vou precisar dar uma saída de novo. Mas não demoro.
- Tudo bem...
- Mas te peço que fiques no castelo, de preferência com a minha mãe,
ou com o Dr. Mendes.
- Mas porque essas recomendações todas? – quis saber a loirinha.
- Nada. Só prudência.
- Angélica, eu realmente não entendo algumas coisas que estão
acontecendo aqui. Você poderia me explicar?
- Explicar? Eu não tenho nada para explicar... Não sei do que estás
falando... – respondeu Angélica tentando disfarçar.

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- Tudo bem... – desistiu Cristine, que já havia percebido que quando
Angélica se fechava não adiantava tentar capturar seus pensamentos.
Era impossível fazê-lo.

Angélica deixou Cristine na cozinha do castelo, na companhia de sua


mãe, que havia saído antes delas do cemitério. Regina já preparava o
almoço.

- Tine, tenta dormir um pouco depois do almoço. Eu quero ver se


retorno até o final da tarde. Venho direto para cá. Pode ser?
- Pode. – concordou a loirinha que estava de fato cansada e precisava
dormir um pouco.
- Então, tchau. – disse a morena.
- Tchau.

**********

De fato após o almoço, que saiu por volta de uma hora, Cristine subiu
para seu quarto. Estirou-se em sua cama, porém não conseguiu pregar
o olho. Virou-se de um lado para outro, intercalando pensamentos
bons, onde os momentos de amor vividos com Angélica a faziam sentir-
se nas nuvens, com outros pensamentos de angústia, onde o fantasma
de seu tio parecia saltar da sepultura vazia pedindo-lhe ajuda.

Não conseguia relaxar. Olhou seu relógio e viu que marcava quase
quatro horas. A chuva havia se dissipado, mas o tempo continuava
carregado.

Num ímpeto levantou-se e jogou seu casaco de lã por cima. Resolvera


deixar o medo de lado e tirar algumas questões a limpo. Embora
houvesse dito à Angélica que permaneceria no castelo, não podia deixar
que aquelas dúvidas se avolumassem dentro dela, sem tentar
alternativas para dissipar pelo menos algumas.

Desceu as escadarias do castelo e passou pela cozinha novamente. Ao


descer cruzou por Anemary e por James ainda na escadaria. Na ampla
sala de estar Valesca e João Vítor tomavam um chá, servido por Morris.
Ao sair pela porta dos fundos viu quando Henrique acompanhou sua
marcha rumo a estrada principal da propriedade, cumprimentando-a
quando passou por ele.

Cristine caminhou apressada na direção do cemitério, evitando pensar


no que estava preste a fazer, movida mais pelo impulso do que pela
razão. De fato estava indo sozinha a um lugar ermo, onde já havia se
sentido ameaçada anteriormente. No entanto precisava fazer aquilo,
precisava ver aquele lugar à luz do dia.

149
Parou defronte ao portão de grades altas com arremates de metal
pontiagudos. Respirou fundo, olhou em volta e descerrou a pesada
grade. Não havia mais ninguém ali. No chão do caminho principal ainda
podia ver algumas pétalas de flores que foram levadas para serem
depositadas sobre o túmulo de Adelaide.

Caminhou decidida na direção da sepultura do tio, tentando dominar


seus temores internos. Aguçou o ouvido, no entanto escutava apenas o
som seco do solado de suas botas de encontro às pedras dispostas
assimetricamente ao longo do corredor central. Instintivamente
desacelerou sua marcha, detendo sua atenção nas lápides do caminho,
tentando localizar mais algum parente. Quando se deu conta estava
quase em frente ao túmulo do tio. Na claridade do dia o ambiente não
parecia tão assustador. Até mesmo os semblantes dos anjos de pedra
pareciam mais brandos naquele momento.

Cristine circulou ao redor da sepultura, abaixando-se e observando-a


atentamente. Parecia intacta. Mas ela tinha certeza de tê-la visto
aberta, não se enganara. Esmiuçou mais detalhadamente o local até
que sua atenção voltou-se para a borda esquerda do túmulo, onde se
via uma falha na pedra, como se fosse originária de uma batida, ou da
lápide sendo arrastada por sobre ela. Passou a mão na pedra e sentiu a
superfície cortante, logo era uma falha recente na pedra. Se fosse
antiga provavelmente não estaria com uma borda tão incisiva. Além do
quê a coloração da pedra naquela falha estava diferente do resto da
superfície, já escurecida pelas intempéries. Com certeza aquela lasca
havia sido feita há pouco tempo. Naquele instante teve a certeza de que
o túmulo do tio fora violado, pois aquela marca era exatamente onde se
lembrava de ter visto a lápide deslocada. Arregalou os olhos e sentiu
um arrepio percorrer-lhe o corpo. Empertigou-se e olhou em volta.
Pareceu ter percebido um movimento ao fundo, porém logo em seguida
sua atenção voltou-se para o lugar onde havia surgido a figura macabra
que a ameaçara. Viu que a vegetação era cerrada naquele lugar,
possibilitando ocultar alguém facilmente. Aproximou-se vagarosamente
do lugar, com os sentidos em alerta, prontos para reagir a qualquer
movimento ou ruído suspeito. Observou o chão enlameado e não
distinguiu pegadas, afinal o terreno lavado pela chuva não poderia reter
nenhuma evidência de qualquer passante.

Cristine estava tão absorta em seus pensamentos que nem percebeu


uma figura que se aproximava silenciosamente atrás dela.

Ainda tocando o chão umedecido com as mãos Cristine ouviu o ruído de


passos logo atrás dela, abafados pelas poças d’água. Sobressaltou-se,
porém antes que pudesse levantar-se sentiu uma mão firme a segurá-la
pelo braço e puxá-la para cima. Não conseguiu emitir nenhuma palavra,
emudecida pelo inesperado e pelo susto. Empalideceu e ao olhar na

150
direção da mão que a içava do chão deparou-se com a visão de olhos
azuis tão conhecidos.

- A senhorita pode me dizer o que está fazendo aqui sozinha??? –


perguntou Angélica não conseguindo disfarçar a contrariedade e a
irritação – Eu não te pedi para ficar no castelo?

Respirando aliviada Cristine respondeu:

- Você quase me matou de susto!!!


- E tu não respondeste à minha pergunta!
- Eu não te devo satisfações da minha vida! – respondeu Cristine
exaltando-se devido ao tom de voz de Angélica.
A morena abrandou sua expressão e disse:
- Tine, tu não me deve satisfação da tua vida, mas eu te pedi...
- Pediu, mas não me disse o motivo! Eu não sou mais criança, Angélica!
Preciso de explicações!
- Mas eu não tenho explicações... Mas preciso que confies em mim. Por
favor...

Cristine também abrandou seu tom de voz.

- Tudo bem. Me desculpa. Eu to uma pilha de nervos mesmo...


- Vamos embora daqui, vamos para casa. – disse Angélica.
- Eu preciso te mostrar uma coisa, vem aqui. – falou Cristine levando
Angélica para junto do túmulo do tio e mostrando-lhe a falha na pedra.
– Olha aqui... Isso foi feito recentemente. A pedra foi arrastada.
- Não sei... Isso pode ser antigo, já devia estar aí. – disse Angélica.
- Claro que não! Olha a coloração da pedra! E a superfície cortante!
- Bom. Pode ser... Mas não sei como...
- Angélica, pelo amor de Deus!!! Te liga! O túmulo foi violado!

Angélica permaneceu calada. Cristine irritou-se:


- Você não acredita em mim mesmo! Nem vendo uma evidência!
- Eu não disse que não acredito. Só estou pensando...
- Pensando no quê???
- Nessa marca. Mas eu acho que tu podes ter razão sim.
- Ainda bem! Pensei que você continuava me achando louca!
- Eu nunca te achei louca. E tu sabes disso.
- Ta. Desculpa. Já disse que to uma pilha de nervos.
- Olha... Vamos para casa. – disse Angélica olhando em volta,
desconfiada – Depois a gente pensa sobre isso, com calma.
- Tudo bem.

Neste momento um estrondo enorme se fez ouvir, sobressaltando as


duas. Como na noite em que Cristine estivera ali sozinha o céu parecia
querer vir abaixo novamente. Um segundo trovão previu a enxurrada

151
d’água que estava por desabar. Angélica pegou Cristine pelo braço tão
logo percebeu um movimento na parte lateral do cemitério, coberta por
um capão de mato denso. Pareceu-lhe ouvir um estalar de passos sobre
um galho seco. Empertigou-se observando em volta atentamente, com
a adrenalina invadindo sua corrente sanguínea.

- O que foi? – quis saber Cristine.


- Nada. Vamos. – disse Angélica conduzindo a loirinha firmemente pelo
braço, quase que a empurrando na direção oposta, justamente para a
vegetação cerrada de onde havia saído a figura macabra e ameaçadora.
- Pra onde a gente ta indo??? – perguntou Cristine assustada.
- Vamos por aqui. Vamos cortar caminho.
- Eu não quero ir por aí! – disse Cristine empacando ao lado de
Angélica.
- Mas é por aqui que a gente vai! – disse Angélica segurando Cristine
fortemente pelo braço e empurrando-a para dentro da vegetação.

Neste momento a chuva começou a cair intensamente.

Angélica acelerou o passo, olhando para trás por vezes. Cristine mal
conseguia acompanhá-la. Angélica aguçou o ouvido e percebeu
passadas rápidas atrás delas. Iniciou uma corrida pelo meio do mato,
arrastando Cristine que a acompanhava assustada e sem entender o
que se passava.

- O que é que está acontecendo? – gritou Cristine.


- Nada! Cala a boca e corre! Senão vamos tomar aquele banho de
chuva!

Cristine mal conseguia acompanhar a marcha da morena que desviava


dos galhos e dos troncos de árvores. O coração de Angélica estava
disparado e ela tentava correr cada vez mais rápido, puxando Cristine e
mantendo-a bem perto de si. A loirinha tropeçou e Angélica a amparou
na queda. Neste instante Angélica ouviu um zunido passando rente ao
seu ouvido. Seu olhar perspicaz captou o que Cristine não fora capaz de
perceber: uma flecha passara rente a elas. Reconheceu o barulho e viu
o movimento da vegetação ao lado delas sendo atingida. Num ímpeto
suspendeu Cristine e disparou com ela pelo meio do mato. Desta vez
não tomou o cuidado de desviar de galhos e troncos. Com agilidade
pulava sobre eles e levava por diante o que estivesse à sua frente.
Cristine era arrastada como um saco de penas na ventania. A chuva
chegava a turvar a visão delas. O coração de ambas parecia querer
saltar da boca. Correram por mais alguns metros, até que se depararam
com um obstáculo: o muro de pedras do cemitério.

Como um felino Angélica o escalou com um pulo. Pegou Cristine pela


mão e praticamente a fez voar sobre o muro, atirando-se para fora logo

152
depois dela. Ao erguer-se pegou novamente a loirinha pela mão e
continuou a correr, desta vez na estradinha de chão batido que as
conduziu até a cabana de Angélica, a salvo.

Ao entrarem na cabana Angélica trancou a porta atrás delas. Estavam


ensopadas, dos pés à cabeça.

- O que foi que deu em ti, mulher??? – perguntou Cristine.


- Quis fugir da chuva...
- E quase acaba comigo! Olha só, eu to toda lanhada! Aliás, você
machucou o rosto.

Cristine levou sua mão ao rosto de Angélica que tinha um arranhado de


galho seco em toda a extensão da face direita. A pele ferida começara a
arder. Por certo não havia sentido nada ainda pelo efeito da adrenalina.
Agora, mais calma, sentia o corte a incomodá-la.

- Isso não foi nada. – disse Angélica.


- Como não? É preciso lavar e passar algo para limpar esse corte.
- Pode deixar que eu vou lavar no banho. Mas sobe primeiro. Tu estás
ensopada.
- Você também... Pode tomar banho primeiro. – disse Cristine.
- Não. Vai tu.
- E que tal se a gente for junto?... – perguntou Cristine sorrindo-lhe
com uma ponta de malícia, abraçando-a pela cintura.

Angélica retribuiu o sorriso, porém respondeu:

- Acho melhor não... Eu to com um pouco de dor de cabeça...

Cristine a encarou e tentou captar seus pensamentos. Não reconhecia a


Angélica voluptuosa com a qual convivera até então. "Bom, qualquer
um tem direito a ter dor de cabeça de vez em quando...", pensou
Cristine, tentando não polemizar nem encucar com a reação de
Angélica. "E além do mais ela pode estar cansada da corrida",
completou Cristine para si mesma.

- Sobe lá... E pega roupas secas no armário, qualquer roupa. Depois eu


subo. Vou tomar um café com uma neosaldina. Acho que eu to com
TPM... – disse Angélica amorosamente.
- Ta. Mas vem logo. Eu te faço uma massagem nas têmporas depois do
banho. – disse Cristine – E prometo que me comporto!

Angélica sorriu e deu um beijo suave nos lábios de Cristine. A loirinha


subiu e enquanto tomava seu banho pensava no ocorrido: "Que coisa
estranha... Parece que a Angélica fugia de alguma coisa... Mas do quê?

153
O que foi que ela viu e eu não? Se eu não a conhecesse diria que estava
tentando, no mínimo, me matar, nem que fosse de susto..."

Enquanto isso Angélica foi para a cozinha e botou água para esquentar.
Assim que ouviu o barulho da água do chuveiro no andar de cima
espiou na escada e pegou seu telefone celular. Discou um número da
memória e assim que seu interlocutor atendeu relatou rapidamente o
ocorrido, tomando o cuidado de que Cristine não a ouvisse. Desligou o
telefone, guardando-o na bolsa. Tomou um cafezinho preto e subiu para
o quarto levando uma bandeja com um chocolate quente e um lanche
para Cristine.

Assim que Cristine saiu do banheiro Angélica entrou. Tomou um banho


demorado, pensando no incidente de poucos minutos antes. "Foi por
pouco, muito pouco", pensou, angustiando-se com o ocorrido. "Puta que
pariu! Até quando vai esse inferno???", pensou Angélica, "e o pior, ou
melhor, é que ela nem se deu conta do que aconteceu..." A idéia de
perder Cristine a deixou com o peito apertado e uma sensação de
impotência. Estava tensa, com medo, angustiada. Percebeu o quanto
estava gostando de Cristine. Isto, porém, não poderia interferir em seus
planos e em sua missão.

Quando Angélica saiu do banheiro vestindo uma saída de banho


atoalhada Cristine já estava aninhada entre as cobertas, já tendo
devorado seu lanche.

- Vem aqui – disse a loirinha – Senta aqui na minha frente.

Angélica acomodou-se e Cristine posicionou-se atrás dela, fazendo-lhe


uma massagem nos ombros e depois ao redor dos olhos. Aos poucos a
sensação de angústia foi se dissipando. Angélica aninhou-se na cama e
Cristine a envolveu num abraço. Adormeceram após alguns minutos,
quando o relógio marcava pouco mais de seis horas da tarde. A chuva
continuava intensa e elas dormiram direto, até o outro dia, tamanho o
cansaço em que se encontravam. Passaram a noite toda praticamente
aninhadas uma nos braços da outra, instintivamente, numa atitude de
acolhimento e proteção.

Não muito longe dali, quando a noite já ia alta, dois homens se falavam
ao telefone, num tom de voz exaltado.

- Afinal, onde tu estavas metido???


- Eu já disse... Saí do meu posto por uns poucos minutos... Fui ao
banheiro!
- E te deste conta que essa tua mijada podia ter custado a vida dela???
– gritou o homem mais velho.

154
- É claro que me dei conta! Mas aconteceu! Eu não tenho bola de
cristal. Foi muito azar!
- Eu diria que no final das contas foi sorte! Sorte de vocês dois! Sorte
dela por não ter morrido e tua também, para não teres remorso pelo
resto da vida!
- O senhor está levando a coisa pro lado pessoal, delegado.
- Não estou não! Estou somente zelando pela segurança de uma pessoa
em situação de risco. Abra esses olhos Thomaz! O cerco está se
fechando e quem fez isso está se dando conta do que está acontecendo
e do quanto estamos perto da verdade! Agora todo o cuidado é pouco.
Entendeu?
- Entendi senhor. Pode confiar em mim.
- Vou tentar...
O homem mais velho desligou o telefone e enxugou o suor da testa.

A manhã daquela quarta-feira despontou sombria e coberta por uma


densa neblina. Angélica se mexeu na cama e procurou Cristine a seu
lado, porém em vão. Percebeu que a mulher que adormecera a seu lado
não estava mais ali. Sobressaltou-se, jogou um agasalho por cima e
desceu a escada de madeira em passadas rápidas e ágeis. Respirou
aliviada ao encontrar Cristine sentada à mesa, defronte a uma caneca
de café fumegando, em estado tão meditativo que nem mesmo
percebeu sua aproximação. Suavemente abraçou-a pelas costas,
envolvendo-a num abraço apertado. Beijou sua nuca e perguntou
carinhosamente:
- Caiu da cama?
- Não... Só acordei cedo...
- E por que não me chamou?
- Você estava dormindo tão profundamente que não tive coragem de
despertar minha bela adormecida...
- Huuumm... Que princesa mais condescendente... – brincou Angélica.

Cristine virou-se para ela abraçando-a e repousando sua cabeça de


encontro ao ventre da morena, que permanecia de pé. Suspirou
profundamente. Angélica tocou o queixo de Cristine, fazendo com que
ela levantasse os olhos.

- O que foi? Qual o motivo desse suspiro?


- Eu não sei... Quer dizer... Eu sei...
- E o que é?
- O testamento.
- Eu imaginei. – respondeu a morena.
- Daqui a algumas horas o meu mundinho pode virar de ponta cabeça...
– murmurou a loirinha.
- Fica tranquila. Tudo vai acontecer da melhor forma possível. Eu tenho
certeza.

155
- Pois eu gostaria de ter essa certeza toda. – disse Cristine – E tem esse
monte de coisas acontecendo... A morte da Adelaide, entre outras
coisas...
- Vamos fazer o seguinte, - respondeu Angélica tentando desconversar -
vamos tomar o nosso café, tentar relaxar e aguardar a abertura do
testamento. Deixa pra te preocupares depois... Se é que terás motivo
para preocupações.
- Ta bom... – respondeu Cristine sorrindo timidamente.

Angélica abaixou-se e beijou os lábios de Cristine com doçura. Em


seguida serviu uma caneca de café e sentou-se ao lado daquela
pequena mulher de olhos verdes e com expressão apreensiva. Procurou
de todas as formas desviar a atenção de Cristine para assuntos
corriqueiros, porém de quando em quando se deparava com a loirinha
fitando o nada, pensativamente.

Angélica aproveitou a manhã para ligar para Ariel, que já estava


agitando nas areias quentes da praia de Copacabana. Ficou aliviada ao
saber notícias do irmão, e ter certeza de que estava bem e seguro.

A manhã arrastou-se morosamente e quando finalmente o relógio


marcou onze e meia Cristine e Angélica foram para o castelo. Na hora
do almoço estavam todos presentes, inclusive Dr. Mendes. A refeição
ocorreu num clima tenso, onde pouco foi falado. Todos estavam
ansiosos pelo que estava por vir.

Quando faltavam quinze minutos para as duas horas da tarde o tabelião


portando o testamento de Artur chegou ao castelo. A pedido do Dr.
Mendes todos já estavam reunidos na biblioteca, inclusive os serviçais.

O tabelião sentou-se à cabeceira da mesa tendo Dr. Mendes à sua


direita e Cristine à sua esquerda. Na sequência, ao redor da mesa,
estavam Angélica, Valesca, João Vítor, Regina, Israel, Henrique, Morris,
Anemary e James. Thomaz ficou esperando na cozinha, uma vez que se
pressupunha não estar beneficiado no testamento do ex-patrão, uma
vez que o mesmo fora redigido antes de iniciar sua atividade
profissional no castelo.

Os rostos denotavam apreensão e nervosismo, principalmente o de


Cristine e Valesca. Angélica tentava aparentar tranquilidade. Morris
parecia desconfortável em seu lugar à mesa. Por certo se sentiria
melhor de pé, atrás do Dr. Mendes, porém a pedido deste ocupou o
lugar indicado para ele. Valesca esfregava as mãos nervosamente,
tendo os ossos dos dedos esbranquiçados de frio e de ansiedade.
James, sempre pálido, tinha a testa suada e olheiras profundas.

156
Pontualmente às duas horas o tabelião abriu o envelope escuro e
lacrado que continha o testamento do tio Artur.

Podia-se ouvir o menor ruído dentro daquele recinto, inclusive as


respirações aceleradas e os olhares apreensivos que acompanhavam a
abertura daquele envelope cujo conteúdo poderia mudar vários destinos
ao redor daquela mesa.

Solenemente o escrivão pigarreou e se pôs a ler o testamento.


Inicialmente havia os termos legais que de fato não interessavam a
nenhum dos presentes, até que se iniciou a parte que prendeu a
atenção de todos:

- ..."e assim, eu, Artur Diaz Torres, deixo meus bens em testamento da
seguinte forma: Para meus amigos Israel e Regina deixo dez hectares
de terras, contíguas à propriedade destes, na fronteira leste, com tudo
o que ali houver, desde plantações até os animais e toda e quaisquer
construção que haja naquele local".

Israel secou uma lágrima que rolava por sua face, sendo consolado por
Regina. O tabelião continuou:

- "Para Morris, meu "fiel escudeiro", deixo a casa na praia de Torres e


tudo o que há dentro dela. Espero que te aposentes e possas realizar o
teu velho sonho de viver perto do mar, pescando..."

Morris manteve-se estático. Apenas um pequeno e imperceptível


movimento de sua mandíbula fez com que os mais atentos
percebessem um lampejo de emoção naquele homem que parecia feito
de pedras.

- "Para Anemary, esta pessoa tão querida que dedicou tantos anos
cuidando deste velho rabugento, deixo o apartamento em Londres, para
que, quem sabe, retorne para sua terra, suas origens, uma vez que
nada mais a mantém presa a esta longínqua pátria".

Anemary secou as lágrimas e se deu conta que Artur sabia...

- "Para Henrique Romero deixo minha limusine. Acredito que poderá


transformá-la num modo de ganhar dinheiro na capital e dar uma vida
confortável para sua família".

Henrique baixou os olhos, mal acreditando que também tinha herdado


alguma coisa. Sentiu-se agradecido.

- "Para Valesca, minha querida Valesca, deixo o apartamento na praia


do Leblon, que considero a tua cara. Deixo também uma conta bancária

157
com um montante de vinte mil reais. Vivi bons momentos a teu lado
Valesca, e tenho certeza que, do nosso modo, fomos felizes juntos".

Valesca suspirou e sorriu para si mesma, contente por ter um lugar


somente seu para morar e também emocionada pelo que acabara de
ouvir. De fato jamais esqueceria Artur. Poderia até mesmo dizer que
Artur fora, do seu modo, o amor de sua vida.

- "Para o meu melhor amigo, Adroaldo, deixo minha coleção de armas,


sabedor que sou de que nutres uma especial admiração por ela. Deixo
também a casa onde funciona o escritório de advocacia Mendes, na
capital. E deixo o meu mais sincero sentimento de amizade e
consideração, o qual levarei para a eternidade".

Pela primeira vez Cristine viu o advogado derramar abundantes


lágrimas pela perda de um grande amigo. O homem contido não
conseguiu segurar a emoção daquele momento. Era como se Artur
estivesse ali presente. E como saber se de fato, em espírito, não
estaria?

- "Para Angélica, minha querida afilhada, deixo o apartamento em Porto


Alegre e o conjunto de salas e escritórios do centro da capital. Deixo
também tudo o que está no meu atelier, tintas, pincéis e quadros, além
da estatueta da Vênus que tanto admirávamos. Deixo meu profundo
sentimento paternal e levo as lembranças da menina de cabelos negros
que sorrindo voava no balanço de cordas na figueira, a imagem mais
próxima a uma filha que pude ter em vida".

Angélica respirou fundo, e sorriu. As lágrimas que escorreram de seus


olhos azuis eram um misto de agradecimento e saudade.

- "Para James deixo a casa no centro de Doze Colinas e uma conta


bancária com um montante de vinte mil reais. Espero que aprendas a te
virar sozinho, meu rapaz, que a vida te ensine a ter iniciativas e a ser
um homem de verdade, e não mais uma sombra deste velho
amargurado e covarde. Aprenda a ser você mesmo, e não uma cópia
mal feita do que eu fui. Desejo sinceramente que a vida te reserve bons
e felizes momentos".

James não moveu um músculo do rosto. Baixou os olhos e permaneceu


impassível. Pensava consigo mesmo: "como sempre o padrinho preferiu
a Angélica... Pra ela o apartamento de Porto Alegre, e as lojas, pra mim
a casa mixuruca neste fim de mundo... Eu que sempre estive ao lado
dele... Eu que devotei minha juventude e ele..."

Angélica, sentada diante de James, o encarava nos olhos. Tinha quase


certeza sobre o que ele pensava. A rivalidade entre eles ficava mais

158
acirrada a partir dali, ela bem o sabia, embora isto em nada a
preocupasse.

- "E deixo este castelo e todos os meus demais bens móveis e imóveis,
além de uma carta que se encontra em anexo a este testamento, para
minha única filha, Cristine Amèlie Dupret Torrez. E na falta desta ou na
impossibilidade de assumir seu patrimônio deixo o que lhe cabe à minha
afilhada Angélica Bandera. E deixo expresso meu pedido de perdão à
Cristine pelo tempo perdido em vão e por não ter conseguido chamá-la
de filha ainda em vida".

Neste momento todos os presentes entreolharam-se e um burburinho


de vozes se fez ecoar na biblioteca. Cristine empalideceu e antes que
corresse o risco de desfalecer Angélica a amparou, segurando-a pelos
ombros. Boquiaberta, Cristine não sabia o que dizer. Parecia-lhe que a
última frase do testamento repetia-se como um eco dentro de sua
cabeça: "minha única filha, minha única filha, minha única filha, perdão,
perdão, perdão...".

O tabelião estendeu um envelope pardo para Cristine, também lacrado,


o qual a loirinha pegou num gesto mecânico. Todos se levantaram e,
um a um, deixaram o recinto. Somente Cristine ficou sentada, imóvel,
tendo Angélica e o Dr. Mendes a seu lado. Foi o advogado quem
quebrou o silêncio:
- Cristine, tu estás bem?
- Não... – respondeu a loirinha – Eu estou qualquer coisa, menos bem...

Angélica apertou sua mão, num gesto solidário. O advogado continuou:


- Podemos fazer alguma coisa por ti?
- Não... Acho que não...

Novo silêncio se fez.


- Tine... – disse Angélica – Vamos lá pra casa... Aí tu podes ler tua
carta com calma...
- Não... Eu vou ler aqui mesmo... Agora...
- Queres que eu fique? - perguntou Angélica carinhosamente.
- Não... Obrigada... Eu preciso fazer isso sozinha...
- Tudo bem.
- Não é nada pessoal... Só que...
- Eu sei. Eu entendo... – respondeu Angélica.
- Eu vou para o meu quarto. – disse Cristine.
- Eu vou ficar por aqui, ok? – disse Angélica – Se precisares de qualquer
coisa é só chamar.
- Faço minhas as palavras de Angélica. – disse Dr. Mendes.
- Obrigada. – respondeu Cristine levantando-se – Muito obrigada.

159
Com o envelope nas mãos Cristine subiu para seu quarto. Angélica e Dr.
Mendes se entreolharam e suspiraram. Naquele momento nada podiam
fazer por Cristine. Ela precisava descobrir a verdade, dita através do
próprio pai, mesmo que depois de sua morte.

************

Cristine subiu vagarosamente, degrau por degrau, sem conseguir definir


o que de fato estava sentindo naquele momento. Suas idéias estavam
confusas. Pai... Seu pai... Toda a sua história de vida poderia ser
diferente do que imaginava até então. Precisava ler a carta que tinha
nas mãos. Precisava entender sua vida, seu passado, a realidade que a
cercava. Queria saber quem de fato era ela.

Abriu a porta do seu quarto e a fechou-a atrás de si, trancando-a por


dentro. Não queria ser importunada. Sentou-se na cama como se
estivesse com os sentidos anestesiados. Suas mãos estavam trêmulas e
molhadas de suor, apesar do frio.

Lentamente descerrou o lacre e retirou as folhas pautadas e escritas à


mão, com uma caligrafia simétrica e levemente inclinada para frente.
Respirou fundo e iniciou a leitura.

"Minha querida filha...

Se é que me permites chamá-la assim. Não sei bem em qual


circunstância esta carta lhe chegará às mãos. Talvez eu esteja a
esperá-la em Doze Colinas, talvez não... É que alguns acontecimentos
estão fugindo do meu controle nos últimos tempos. Mas isto é
irrelevante perto do que preciso contar-te.

Tudo começou há trinta anos atrás, numa das minhas viagens à França,
a negócios. Nesta ocasião conheci a mais bela camponesa daquelas
paragens, a tua mãe, Juliet. Confesso que me apaixonei perdidamente
pelos seus olhos verde-esmeralda, aliás, iguais aos teus... Bem, ela
também se dizia apaixonada e eu a trouxe para o Brasil. Ela era de uma
família humilde e acreditava que teria mais chances num país
estrangeiro do que em seu próprio. Ela não tinha dimensão do quanto
eu realmente possuía em termos de bens materiais aqui no Brasil, meus
pais no caso. O fato é que eu a trouxe para cá e estava disposto a viver
com ela para sempre. Porém, como nem tudo na vida são flores,
aconteceu o inevitável: sua mãe acabou conhecendo meu irmão
Ademir, dez anos mais jovem que eu, mais bonito, mais vistoso, enfim,
infinitamente mais sedutor para as mulheres do que eu. E o que eu
mais temia aconteceu. Tua mãe acabou envolvida com ele. Eu fiquei

160
desesperado, mas não adiantou. Ademir sempre foi persistente nos
seus objetivos, muito diferente de mim. Eu, covardemente, desisti de
lutar por tua mãe e me conformei em perdê-la. Ademir tratou de deixar
nossa casa levando tua mãe junto, foram correr o mundo com o
dinheiro de papai e mamãe. Depois de um ano eu soube que eles
haviam tido uma filha. Eles nunca retornaram para casa. Enquanto
havia dinheiro viajavam. Meus pais sempre superprotegeram Ademir e
o mimaram por demasia. Isto fez dele um homem egocêntrico e
irresponsável. E assim ele viveu e morreu. Depois de dois meses que
eles foram embora recebi a primeira carta de sua mãe. Assim como a
recebi a coloquei no fundo de uma gaveta, intocada, sem ter coragem
de lê-la e ao mesmo tempo sem coragem suficiente para incinerá-la.
Logo em seguida veio a segunda carta, e a terceira e a quarta... E
assim, durante longos dois anos vieram cinco cartas. E todas elas
permaneceram intocadas durante vinte e nove anos dentro de uma
gaveta sombria.

Um belo dia eu soube do acidente que matou Ademir e Juliet. Soube


também que a filha deles estava viva. A princípio meus pais pensaram
em trazê-la para morar aqui conosco, porém desconfiavam que
poderias não ser filha de Ademir, afinal tua mãe havia trocado um filho
pelo outro, e quem sabe o que mais poderia ter feito por aí. Cheguei a
pensar em argumentar a favor dela, pois eu sabia que havia sido seu
primeiro homem, eu tinha certeza disso, mas como estava com meu
orgulho ferido achei melhor deixar as coisas como estavam. No entanto
passei a custear todas as tuas despesas de moradia, vestuário, escola,
enfim, tudo que precisavas, porém sem nunca ter tido a coragem de te
procurar. Por três ocasiões cheguei a te ver na escola de freiras em que
viveste, no entanto nem sei se lembras... Na verdade, tu me lembravas
tua mãe e eu ainda sentia uma dor muito profunda ao lembrar-me dela.
Assim, na minha ignorância, deixei o tempo passar... E hoje sinto que
perdi os melhores anos de minha vida... Uma pena, mas não se pode
voltar no tempo.

Bom, acontece que o destino nos prega inúmeras peças. As cartas de


tua mãe ficaram guardadas, escondidas durante anos, até que um belo
dia... Eu as reencontrei casualmente ao procurar um documento
importante de um imóvel. E eu nem sei por que tive o ímpeto e a
coragem de abri-las. Eu que sempre fui um fraco, um acovardado, um
perdedor nato que sempre releguei minha vida pessoal a segundo plano
escondendo-me atrás do trabalho, estava ali, diante de simples cartas
que poderiam ter mudado minha vida... Se tivessem sido lidas em
tempo hábil...

Na primeira carta tua mãe me falava nos problemas que vinha tendo
com Ademir, com o desencanto que vinha sentindo, desde a primeira
bebedeira deste, até o primeiro tapa que levara. Na segunda carta se

161
dizia arrependida e pedia para voltar para mim, principalmente porque
tinha um motivo muito forte para isso: esperava um filho. Na terceira
carta reafirmava que me amava e que o filho que carregava não era de
Ademir, era meu. Na quarta carta contava que havia dado à luz uma
menina e colocado o nome de Cristine Amèlie, e que era a criança mais
linda que já existira, e que era minha filha, mesmo que eu não
acreditasse nisso. Implorava para voltar com o bebê e falava sobre a
vida doidivanas que levava com Ademir. Questionava o porquê de eu
não responder suas cartas. Pedia que ao menos eu lhe dissesse se a
perdoava ou não. Na quinta carta disse que tu estavas cada dia mais
linda, e que não escreveria mais. Disse que esperava que um dia a vida
me fizesse ver que ela falava a verdade. Pedia novamente que a
perdoasse e desejava me ver feliz. E nunca mais escreveu uma única
linha. Bom, aí eu só soube notícias de vocês depois do acidente.

Após ler as cartas eu tive vontade de morrer. E vi meu mundo


desmoronar novamente. E vi que por causa da minha covardia eu
condenei à morte a mulher que mais amei na vida. E me dei conta que
afastei de mim o meu bem maior, minha própria filha.

E, infelizmente, um covarde é sempre um covarde. Continuei sem


coragem de te procurar. Não imaginava como reagirias à dura e crua
realidade. Tive medo que me rejeitasses e me culpasses pela morte de
tua mãe, o que não deixaria de ser uma verdade... Assim achei mais
fácil contratar um detetive e fazer um exame de DNA sem que
soubesses de nada. Hoje em dia é tudo muito fácil, a ciência é capaz de
fazer milagres com um único fio de cabelo. E o resultado do teste foi o
que eu já esperava: de fato és minha filha. Esta certeza me encheu de
alegria e de desespero. Quanto tempo perdido... Como tudo poderia ter
sido diferente...

Não tive coragem sequer de tornar público antes esta maravilhosa


realidade: ter uma filha... Minha filha. Apenas poucas pessoas sabem
disso, somente pessoas especiais que partilham há muito tempo as
esquisitices desse velho amargurado. E somente agora consigo te
enviar estes escritos. A única coisa que te peço é que não me queiras
mal. Não peço nem teu amor, nem tua compreensão, afinal não se pode
dispensar estes sentimentos a um desconhecido. E eu tenho consciência
de que é isto que sou para ti. Gostaria que tivesse sido diferente... Mas
não foi.

Quero te afirmar, no entanto, minha querida filha, que graças a ti hoje


sou um homem diferente. Sempre fui um descrente. Um descrente das
pessoas, um descrente dos sentimentos, um descrente de Deus. E hoje
me dou conta de que a vida e as pessoas podem ser maravilhosamente
belas, basta que saibamos nos abrir para a vida. E não sejamos ostras
fechadas sobre nós mesmos, como eu fui a vida toda. É preciso que

162
tenhamos coragem e ânimo para enfrentar os obstáculos e para lutar
pelo que acreditamos. E mais que isso, hoje posso te dizer que acredito
na mágica energia que move o mundo: o amor. E isto somente pelo
fato de existires, afinal tu és o fruto do meu grande amor... E a minha
continuidade nesta existência. Através de ti, Cristine, percebi que de
fato Deus existe.

Rogo sim pelo teu perdão. Que tenhas a grandeza de espírito para
entender a burrice e a pobreza da alma deste velho afligido por
fantasmas imaginários por tantos anos. Desejo que sejas sempre a
meiga criatura que és. E desejo que sejas feliz. E quero que tenhas a
plena certeza que te amo, do fundo do meu coração, mais que tudo que
imaginei nesta vida.

Seja imensamente feliz, minha filha, e lute pelo que amas. Peço-te que
faças isto por tua mãe e por mim. Fica em paz.

Teu pai, Artur Diaz Torres".

Ao terminar de ler a última frase Cristine desabou num choro


compulsivo, abraçada à carta que acabara de ler. Era como se a
torrente de lágrimas que jorravam de seus olhos desse vazão à
explosão dos sentimentos que pareciam brotar-lhe das entranhas, como
a lava de um vulcão em erupção. Por certo se não chorasse seu peito
arrebentaria. Havia ganhado e perdido um pai em menos de meia hora.
Seu sentimento era de luto. Luto pelo sepultamento do que acreditava
ser a sua história de vida. Luto pelo sofrimento de sua mãe e do seu
pai. Luto pelo "eu te amo" escrito e que jamais seria pronunciado pela
figura paterna.

Cristine pôde, entretanto, entender algumas lembranças remotas de


sua infância. Lembrava do rosto e do sorriso de sua mãe, mas havia
quase que esquecido o semblante de quem achava que era o seu pai.
Ademir de fato deveria saber que Cristine não era sua filha, afinal
jamais a tratara como tal. E agora Cristine entendia o porquê. Entendia
o motivo do suposto pai nunca se aproximar dela e esquivar-se de suas
tentativas infantis de aproximação. Pelo menos isto a deixava com
menos sentimento de culpa, com menos sensação de ter feito algo para
o pai, fato que já tratara em terapia sem nunca haver conseguido
elaborar. Neste ponto Artur lhe tirara um peso dos ombros.

Agora tinha outro pai. E uma história de vida. Triste, mas uma história.
E não mais fragmentos de lembranças de um passado remoto e de um
acidente que rompera todo seu contato com o que se podia chamar de
família.

163
Passou-se mais de hora até que Cristine conseguiu acalmar-se e decidiu
descer para conversar com Dr. Mendes. Queria saber a verdade. Toda a
verdade. E aquele era o momento.

Tratou de lavar o rosto e desceu a escadaria de pedra com passos


decididos. Encontrou o advogado instalado no escritório de Artur,
tomando um chá de hortelã. Ao vê-la o homem mais velho foi até ela e
a abraçou com candura. Sentindo-se acolhida novamente Cristine
chorou, copiosa e silenciosamente. Quando novamente recobrou a
calma o advogado serviu-lhe uma xícara de chá. Enquanto sorvia o
líquido quente e adocicado Cristine começou seu interrogatório:
- O senhor por certo conhece o teor da carta que recebi.
- Acredito que sim. Embora não a tenha lido, creio que sei sobre o que
se trata.
- E por que o senhor não me falou antes???
- Eu não tinha esse direito.
- Eu acho que tinha... Aliás, tinha o dever de me falar sobre meu pai.
- Não tinha não, Cristine. E tu sabes que tenho razão. Tu soubeste do
modo como deveria ser, através do teu próprio pai, e não de terceiros.
Cristine baixou os olhos. Dr. Mendes continuou:
- Cristine, as coisas acontecem quando tem que acontecer. Isso é fato.
- Mas tudo poderia ter sido tão diferente...
- Mas não foi. E não adianta lamentar por fatos do passado. É preciso
viver o presente.
- Eu sei, Dr. Mendes. Mas tem sido tão difícil... Eu ganhei e perdi um pai
em muito pouco tempo...

O advogado assentiu com um gesto de cabeça. Cristine continuou:


- E além do mais eu percebo que estão acontecendo coisas estranhas
aqui. E eu preciso saber o que é. O senhor precisa me contar. Agora.

Dr. Mendes respirou fundo. Sabia que cedo ou tarde precisaria


conversar com Cristine sobre as circunstâncias da morte do pai.

- Bom, minha filha, realmente nós precisamos conversar. E acredito que


o momento seja agora.
- Pois bem. Sou toda ouvidos. – disse Cristine enquanto cruzava as
pernas e olhava atentamente para o homem grisalho à sua frente.
- Já faz algum tempo que Artur descobriu ser seu pai. Cerca de seis
meses. Bom, depois desta descoberta ele retificou imediatamente seu
testamento, designando-a como sua herdeira principal. Acontece que
depois disso percebeu haverem mexido em sua gaveta e desconfiou que
alguém pudesse ter lido a cópia do testamento, que ficava guardada em
sua escrivaninha pessoal. Bom, até aí tudo bem. Só que depois disso
Artur deu por falta de duas armas de sua coleção, uma pistola e um
rifle de caça.

164
Cristine empalideceu:
- A arma que matou Adelaide... – disse a loirinha a meia voz.
- Não sabemos ainda, afinal a arma não foi localizada. Também houve
um episódio em maio, quando Artur perdeu os freios da caminhonete
que dirigia. Ele acreditou ser uma simples falha mecânica, eu tenho lá
minhas dúvidas.
- Mas então... Tio Ar... Meu pai pode ter sido... Assassinado?
- Não sabemos. Cristine, Artur tinha problemas cardíacos e vinha sendo
acompanhado pelo médico da família há bastante tempo. Parece que
sofreu um infarto.
- Parece??? Como parece??? É preciso ter certeza!
- Bom, depois houve a morte de Adelaide.
- E pode ter havido alguma relação com a do meu pai?
- Também não sabemos...
- Como não, Dr. Mendes??? E o delegado faz o quê neste raio de
cidade???
- Cristine, não temos evidências, só suspeitas... Talvez infundadas.

Cristine fitou o advogado pensativamente:


- Pois bem, realmente pode ser só coincidência. A morte do meu pai
pode ter sido natural e a morte de Adelaide um acidente...
- Pode. Porém... – emendou o advogado parando a frase no meio,
pensando nas palavras que pronunciaria, afinal o que menos desejava
era assustar Cristine e instaurar o pânico naquele lugar.
- Porém?... – perscrutou Cristine.
- Convém tomarmos certas precauções.
- Como por exemplo? – quis saber Cristine.
- Prestarmos atenção no que nos cerca.
- Dr. Mendes... – continuou Cristine – Se porventura essas suspeitas
forem reais, então... O responsável está aqui ao nosso lado, dentro dos
muros deste castelo?...
- Provavelmente.
- Meu Deus... – exclamou Cristine.
- Calma, minha filha, não vamos entrar em pânico ou paranóias. Vamos
somente agir com cautela, certo?
- Tudo bem. Mas eu preciso que o senhor me mantenha informada de
qualquer novidade.
- Pode deixar. E, Cristine... Tome cuidado.

A loirinha suspirou e uma ruga de preocupação se fez em sua testa. Era


inteligente o bastante para entender a dimensão do que se passava.
Instantaneamente começou a recapitular seus passos desde que
chegara ao castelo e a relação que vinha mantendo com as pessoas
naquele lugar. Muitas dúvidas começaram a assolar sua mente. Em
quem poderia de fato confiar? No Dr. Mendes? Em Angélica? Em Morris?
Em Anemary? Em James? Em Valesca? De fato todos poderiam ter
algum interesse por trás do que aparentavam. O próprio Dr. Mendes

165
tinha acesso a toda a documentação de Artur. E até mesmo Angélica...
Angélica herdaria a fortuna do padrinho se ela não tivesse aparecido. E
James? James não era um parente direto, mas nutria uma relação
doentia e simbiótica com o tio. E Morris? Sempre tão infiltrado em todos
os lugares... Sempre tão invisível. E Valesca? Valesca desejava herdar a
fortuna de Artur e não fazia rodeios acerca disso. E João Vítor? Seria
capaz de matar na tentativa de enriquecer a amante? E se seu pai
houvesse sido morto? Como saber? Dúvidas... Cristine estava
mergulhada em dúvidas... E receios.

Resolveu subir para seu quarto. Queria descansar. Pediu licença para
Dr. Mendes e se retirou do escritório. No corredor cruzou com Angélica
que se dirigiu a ela com o olhar brando e amoroso.

- Eu já estava preocupada. Tu estás bem?


- Você sabia sobre meu pai?
- Sabia.
- E porque não me disse nada?
- Achei que não devia. – respondeu Angélica com tranquilidade.
- Engraçado... Todos se acham no direito de "achar alguma coisa",
mesmo que diga respeito à minha vida!
- Tine... Tu estás abalada, e com razão. Mas por favor, não tente achar
responsáveis por fatos que não podem ser mudados, e nos quais não
tínhamos como intervir...

Cristine baixou os olhos e suspirou.

- Desculpe. Você tem razão. Eu realmente preciso organizar as minhas


idéias.
- Vamos lá pra casa?...
- Eu preciso ficar sozinha... Não é nada pessoal...
- Tudo bem, eu entendo.
- Eu vou ficar aqui. Vou para o meu quarto. Preciso descansar. E
pensar.
- Certo... Olha, eu vou pra minha casa, mas qualquer coisa que
precises, por favor, me chama, ok?
- Ok. – assentiu Cristine.
- Promete?
- Prometo.
- Então até...
- Até...

Angélica se virou e deixou Cristine sozinha, perdida em seus


pensamentos. A loirinha entrou em seu quarto e novamente trancou a
porta por dentro. Seus movimentos foram acompanhados
discretamente por uma figura masculina que ajeitou sua arma de
encontro ao corpo e posicionou-se estrategicamente num vão no

166
corredor de acesso ao quarto de Cristine. O final de tarde e a noite
prometiam ser longos e sua vigília desta vez seria ininterrupta, a menos
que recebesse alguma nova ordem do delegado.

Cristine tomou um banho e deitou-se sob as cobertas macias e quentes.


Não desceria para jantar. Estava sem fome. Talvez mais tarde pedisse
alguma coisa para Anemary. Releu sua carta inúmeras vezes e chorou
outras tantas. Pensava no que estava vivendo, principalmente em sua
relação com o pai morto e seu envolvimento com Angélica. Estava
confusa. Apaixonada e confusa. De fato se apaixonara pela morena de
atitudes arrebatadoras e olhar maroto, porém no momento não sabia se
poderia confiar plenamente nela. Lembrando da transparência de seu
olhar suas dúvidas se dissipavam, no entanto analisando friamente a
questão parecia-lhe que o mais prudente seria tomar cuidado. Acabou
adormecendo, tendo um sono agitado e confuso.

Em sua cabana Angélica estava com o coração apertado. Desejava estar


ao lado de Cristine e tinha consciência do quanto os fatos estavam se
avolumando e do risco que todos estavam correndo. Era preciso fazer
algum movimento nas peças daquele jogo, mas qualquer atitude
impensada ou de imperícia podia por tudo a perder, inclusive vidas...

De seu quarto no castelo Dr. Mendes conversava pelo celular com um


velho conhecido:

- Conversei com ela sobre Artur...


- E?...
- E o quê?
- E ela?
- Reagiu conforme prevíamos. Na verdade é uma moça muito perspicaz
e ficou desconfiada... Desconfiada de tudo e todos. – disse o advogado.
- Isso não deixa de ser bom. Assim ela fica atenta e pode facilitar a
nossa missão.
- Tu tens certeza que ela está segura?
- Absoluta. Tu sabes que eu confio no meu pessoal. E detetive Dacosta
é especial. E está de olho nela.
- Pelo menos isso me tranquiliza.
- Eu sei.
- E o nosso "peixe"? – questionou o advogado.
- Espero que, como todo peixe, morra pela boca. Vamos ter que
esperar, pois infelizmente o próximo passo deve ser dele. Precisamos
somente vigiar e triplicar nossa atenção.
- Tu tens razão... Bom, eu vou tentar dormir.
- Adroaldo... Cuide-se.
- Pode deixar.

167
Na manhã seguinte Cristine despertou quando o relógio marcava mais
de dez horas. Havia pegado no sono por volta das dezenove horas do
dia anterior e acordado antes da meia noite. Nesta ocasião perdera o
sono e revirara-se na cama até a madrugada, adormecendo quando já
eram quase cinco horas. Chegou a pensar em descer para comer
alguma coisa durante a noite, porém sentiu medo, preferindo ficar na
aparente segurança de seu quarto. Também não quis perturbar o
descanso da criadagem.

Espreguiçou-se na cama e foi até a janela, descerrando a cortina


pesada. Mais uma vez avistou um dia nublado e sombrio. Pensou
consigo mesma que naquela parte do mundo nunca deveria haver sol.
De fato chegara há mais de semana e não houvera um único dia sem
chuva e nebulosidade. Tinha a impressão de que havia esquecido como
era a luminosidade solar. Desejou estar em seu apartamento no Rio,
desejou passear no sol e na praia, desejou estar longe...

Angélica olhou-se no espelho antes de tomar seu café da manhã.


Achou-se horrível, com olheiras e um aspecto que deixava transparecer
a noite quase toda em claro. Tomou um banho demorado e fez seu
desjejum com calma. Sentou-se na sala, com os pés estirados
displicentemente por sobre o sofá. Leu o jornal e telefonou novamente
para Ariel. Ficou feliz ao perceber a animação do irmão. Ele estava
adorando as férias forçadas. Pelo menos alguém estava tranquilo
naquele momento.

O banho quente a fez relaxar e Angélica acabou pegando no sono,


deixando cair o jornal das mãos. Dormiu por quase duas horas e ao
despertar sentiu-se bem melhor.

Perto do meio dia foi para o castelo, encontrando Cristine instalada ao


lado do fogão à lenha na cozinha, conversando com Regina.

- Bom dia. – disse Angélica para as duas.


- Bom dia. – responderam ambas.
- Como se sente? – perguntou a morena para Cristine.

Esta suspirou e baixou os olhos antes de responder:


- Nem sei... Bem. Mais ou menos.
- Isso era esperado. Tivestes muitas emoções de ontem para cá.
- Tive muitas emoções desde que desembarquei nesta cidade... –
emendou Cristine encarando Angélica nos olhos – e descobertas.

A morena sorriu-lhe amorosamente.

- Gurias, vocês podem ir indo para a mesa, o almoço já vai ser servido
– disse Regina.

168
As duas mulheres obedeceram prontamente e quando se instalaram à
mesa já estavam presentes o Dr. Mendes, James, Valesca e João Vítor.
Foi Valesca quem puxou conversa.
- Nós vamos embora depois do final de semana... Nada mais me prende
a esse lugar.
- Eu já imaginava. – disse Dr. Mendes – E considero adequado.
- Pois então... Vamos viajar na segunda-feira, à tarde.
- Henrique pode levar vocês ao aeroporto. – disse o advogado.
- Que bom. – respondeu Valesca.

Fez-se um silêncio na mesa. Angélica observava James que evitava


encará-la. Ouvia-se somente o tilintar dos talheres e dos copos. Logo
depois do almoço Cristine foi para a biblioteca sendo acompanhada por
Angélica. Dr. Mendes foi para a cidade e James retirou-se sem dar
satisfações sobre o que faria naquela tarde.

Angélica serviu-se de um licor de Amarula e ofereceu uma dose à


Cristine, que aceitou para acompanhá-la.

- E então? Um pouco mais tranquila agora? – quis saber Angélica.


- Um pouco... De fato não tenho como mudar o que passou. Só posso
lamentar.

Ficaram um pouco em silêncio saboreando a bebida forte e adocicada,


até que Cristine disparou:

- Desde quando você sabia sobre mim?


- Fazem mais ou menos quatro meses.
- E o que foi que ele te disse?
- Que tinha recebido uma confirmação que o transformara num novo
homem. Que se sentia imensamente feliz e ao mesmo tempo
infinitamente revoltado consigo mesmo, por não ter tido uma atitude
diferente há anos atrás.
- Foi exatamente isso que ele deixou por escrito. Angélica... Quem era
de fato o meu pai?
- Eu já te disse. Um homem amargurado, esquisito, mas um bom
homem. Uma pessoa honesta e correta. Uma pessoa com a qual eu
gostava de partilhar vivências. Um ser humano consciente de suas
próprias falhas e um conhecedor da natureza humana.
- Conhecedor tardio... – emendou Cristine.
- Pois é... Mas, Tine, vamos aprofundar esse assunto outra hora. Quem
sabe a gente vai lá pra casa? Vamos conversar fora daqui?
- Por quê?
- Por que eu prefiro. Além do quê lá em casa a gente tem mais...
Privacidade – e sorriu provocativa.

169
Encarando aqueles olhos de um azul intenso Cristine não poderia dizer
não. Sorriu e assentiu em acompanhá-la.

Percorreram o trajeto que separava a cabana de Angélica do castelo


praticamente em silêncio, porém bastante próximas, uma vez que
partilhavam o mesmo guarda-chuva. A garoa que caía era densa e se
misturava à névoa de umidade que emanava da vegetação. Assim que
cruzaram a porta da cabana Angélica abraçou Cristine pela cintura,
trazendo para bem perto de si e afagando suas costas sedutoramente.
Fitou-a nos olhos e sorriu. Cristine mergulhou naquele azul profundo e
novamente suas dúvidas a respeito de Angélica se dissiparam. Quem a
encarava com aquela expressão amorosa e autêntica seria incapaz de
lhe fazer mal, mesmo que isso lhe custasse uma fortuna considerável,
como era o caso.

Cristine retribuiu o abraço e procurou a boca de Angélica com a sua,


ávida pelo beijo ardente que aqueles olhos azuis prometiam. As bocas
se uniram e as línguas passaram a encenar um bailado sincrônico, as
salivas se misturaram e os corpos roçaram-se numa ânsia incontida de
paixão.

- Humm... Eu já tava com saudade desse beijo... – disse Angélica com


os olhos escurecidos de desejo.
- Eu também... Muita...
- Vamos subir... Eu quero te sentir toda...
- Isso é uma ordem?... – perguntou Cristine sedutoramente à meia voz.
- Um pedido... Quase uma súplica...

Cristine novamente capturou os lábios de Angélica com os seus. Entre


afagos e carícias subiram os degraus de madeira com pressa. Assim que
chegaram no quarto Angélica ligou o ar condicionado para esquentar o
ambiente. Despiram-se com a mesma urgência dos beijos. Acariciaram
os corpos sem as barreiras impostas pelas pesadas roupas de inverno.

Angélica sentiu a umidade entre suas pernas aumentar assim que se


deitou de costas na cama e Cristine ajeitou-se sobre ela, beijando seu
colo e sugando seus mamilos intumescidos pela excitação. A loirinha
encaixou seu sexo na coxa direita de Angélica e apertou sua própria
perna de encontro à umidade de sua amante. Gemeram e contorceram-
se de prazer. Mas elas queriam mais. Queriam sentir a essência uma da
outra. Ajeitaram-se de modo que os sexos se tocaram e o jorro quente
do prazer pôde se misturar enquanto os quadris se movimentavam
rítmica e vagarosamente. O sentimento do toque das entranhas era
algo que nenhuma delas conseguiria descrever em palavras e a
sensação de delícia era tamanha que poderiam ficar naquele jogo
erótico por um tempo incomensurável. Cada qual sentia o ponto do
prazer da outra, endurecido e aumentado de tamanho pela excitação, e

170
esfregavam-se aumentando o ritmo e a intensidade. O líquido quente
que escorria e se misturava fazia com que os sexos deslizassem um de
encontro ao outro com facilidade. Em dado momento elas não
conseguiram mais segurar a iminente explosão de prazer e passaram a
realizar movimentos de quadris cada vez mais rápidos e intensos,
pressionando-se e gemendo alto. Angélica emitiu um gemido grave e
gutural projetando-se para frente num espasmo de pura delícia e
êxtase. Cristine, por sua vez gritou alto e contorceu-se num gozo
prolongado e pleno. Fitaram-se nos olhos, cada qual encantada com a
outra, e sorriram...

Abraçaram-se com força, sentindo pouco a pouco a pulsação voltar ao


normal. Beijaram-se com ardor. E elas queriam mais...

Fizeram amor durante mais algum tempo e cochilaram abraçadas,


aninhadas nas cobertas macias e aquecidas pelo calor do ar
condicionado e pelo fogo da paixão que as unia.

Por volta das cinco horas da tarde Cristine despertou e passou a fitar o
rosto da mulher adormecida a seu lado. A beleza de Angélica a
encantava. De fato era a mulher mais linda que já vira na vida. E o que
sentia ao amá-la chegava a doer, de tão intenso. E isto a estava
deixando, no mínimo, preocupada em relação ao futuro. Sabia que
deveria viver sabiamente o momento presente, porém não conseguia
deixar de pensar no amanhã, principalmente quando se dava conta que
desejava cada vez mais ter Angélica presente em sua vida. E embora a
conhecesse há tão pouco tempo era como se já convivesse com ela
toda uma vida.

Angélica, instintivamente sentindo-se observada, despertou de seu


cochilo reparador. Deparou-se com os olhos verdes de Cristine a fitá-la
bem de perto. Sorriu-lhe afetuosamente. A loirinha afagou o rosto de
Angélica com a ponta de seus dedos, contornando a face e os lábios,
vagarosamente.

- Você é a mulher bela que eu já conheci, sabia?

Angélica sorriu timidamente.


- Pára com isso... Assim eu fico sem jeito...
- Mas é verdade... – insistiu Cristine.
- A verdade é que tu és a mais encantadora e bela mulher que eu já
tive.
- E neste teu... Rol, houve muitas? – brincou Cristine.
- Algumas...
- Ããh...
- Deixa de ser boba! Não foram tantas assim... – riu-se Angélica.
- Não é o que parece! – argumentou Cristine.

171
- E posso saber por quê???
- Sei lá... Pelo teu jeito assim... Solto... Espontâneo.
- Isso não quer dizer nada... Conheço muita carinha de santa que me
dá de dez à zero...
- Isso é alguma indireta? – perguntou Cristine fingindo indignação.
- Imagina... – respondeu Angélica num tom de deboche.

Cristine jogou-se sobre ela e começou a mordiscar seu pescoço, numa


brincadeira divertida, tentando imobilizá-la segurando-lhe os braços.
Angélica deixou-se ficar presa e à mercê da investida de sua pequena
amante, até que esta preferiu aprisionar-lhe os lábios e soltar seus
braços vagarosamente, continuando a mantê-la cativa, porém pelos
beijos e não pela força.

- Huum... Eu adoro sentir a tua boca... – disse Angélica repleta de


segundas intenções.

E Cristine sorrindo-lhe maliciosamente limitou-se a dizer:


- Ah é?...

E desceu sua boca lentamente pelo corpo de Angélica, lambendo e


beijando cada parte daquele corpo moreno. Angélica se abriu para ela,
dando-se por inteira para ser devorada por aquela boca ávida do gosto
de seu sexo. Cristine mergulhou na cavidade quente e úmida,
penetrando-a lentamente com a língua. Angélica gemeu alto e segurou
sua cabeça amorosamente, passando-lhe a mão pelos cabelos loiros
enquanto sentia a língua de Cristine a explorar suas entranhas e a
sugar seu ponto de prazer com intensidade. Enquanto lambia e
mordiscava suavemente seu clitóris passou a penetrá-la com seu dedo
médio e indicador, em movimentos de vai e vem ritmados. De fato
Cristine sabia como fazer uma mulher alcançar rapidamente o gozo.
Mas não era isto que ela queria. Queria prolongar o prazer. Quando
sentiu que Angélica estava preste a atingir o orgasmo cessou os
movimentos de sua língua, afastando-se um pouco. A morena riu-se
deliciada, entendendo perfeitamente a intenção de sua amante. Se ela
queria um prazer maior, o teria. Angélica moveu-se rapidamente e
posicionou-se ajoelhada em frente à Cristine, fazendo-a ficar na mesma
posição. Levou sua mão ao sexo da loirinha e penetrou-a com firmeza e
doçura, fazendo-a sentir também o poder e a agilidade de seus dedos.
Sentiu seus dedos encharcarem-se e deslizarem suavemente em
movimentos sincronizados de entra-e-sai. Cristine gemia e apertava seu
sexo de encontro aos dedos de Angélica, fazendo com que a penetrasse
bem fundo. Abria suas pernas e cavalgava nos dedos da morena
avidamente, enquanto sentia a boca de Angélica a sugar-lhe
tempestuosamente os mamilos endurecidos pelo desejo. Naquele
desvario de volúpia Cristine passou a manipular com rapidez o ponto do
prazer de Angélica que latejava a cada toque de seus dedos. Com

172
movimentos cada vez mais intensos as mulheres não conseguiram mais
segurar o gozo. E gritos de prazer ecoaram naquele final de tarde
chuvoso. Depois do orgasmo desmoronaram nas cobertas, exauridas e
satisfeitas.

Depois de uns minutos Cristine olhou para Angélica e disse:


- Eu estou me apaixonando por você... Aliás, já me apaixonei.

Angélica sorriu:
- E eu só posso te dizer que é recíproco.
- E isso é bom?... – instigou Cristine.
- Eu acredito que sim... – sorriu Angélica – É pelo menos, promissor.
- Que ótimo.

Ficaram em silêncio, fitando-se nos olhos. Depois de um tempo Angélica


lentamente levantou-se.

- Vou tomar um banho. Depois vou descer pra fazer alguma coisa pra
gente comer. Eu to com fome. – disse a morena.
- Eu também to com fome.
- É só um instantinho que eu já providencio alguma coisa apetitosa.
- Outra? – brincou Cristine.

Angélica riu-se olhando para Cristine com uma expressão marota.


Entrou no banheiro e ligou a água quente.

Enquanto esperava Angélica tomar seu banho Cristine ficou pensativa.


Se conjeturasse racionalmente a pessoa com maior probabilidade de
querer tirá-la de circulação seria Angélica, afinal isto a tornaria uma
mulher rica. Porém não conseguia conceber uma Angélica ambiciosa e
dissimulada a ponto de fazer amor com ela com a intensidade que vinha
fazendo e não nutrir nenhum tipo de sentimento. Angélica ostentava a
verdade nos olhos. Mas algo nela não era totalmente transparente, e
Cristine não conseguia precisar o quê. Por vezes ficava evasiva e
parecia distante e preocupada.

Num ímpeto de curiosidade Cristine levantou-se e percebendo que o


chuveiro continuava ligado aproveitou para olhar ao redor.
Envergonhou-se por sua ousadia, porém não conseguiu controlar sua
curiosidade, na verdade seu desejo de saber mais sobre Angélica.

Deu uma olhadela na direção do banheiro e percebeu que Angélica


continuava deliciando-se com a água quente e abundante, sendo que
cantarolava alegremente.

Cristine passou os olhos pelo quarto e abriu vagarosamente a porta do


roupeiro, remexeu nas gavetas. Encontrou somente o esperado:

173
calcinhas, meias, sutiãs, cachecóis. Fechou as gavetas e foi até uma
escrivaninha. Abriu a gaveta central e viu folhas em branco, canetas,
material de escritório. Na gaveta superior lateral mais alguns materiais
como canetas coloridas, clipes, cola, etc. Na do meio alguns
documentos e fotos. Ao tentar abrir a gaveta de baixo percebeu que
estava trancada. Abriu novamente a gaveta central procurando por
algum indício de chave. Levou sua mão até o fundo da gaveta e
encontrou um pequeno vidro decorado com algumas chaves dentro.
Pegou a primeira e nada. A segunda também não. E foi tentando uma a
uma. O barulho d’água permanecia contínuo. Quando faltavam somente
mais duas chaves Cristine sentiu que a penúltima encaixou-se na
pequena fechadura. Girou a chave tomando o cuidado de não fazer
barulho e a fechadura de metal abriu-se com um estalido baixo e seco.
Cristine prendeu a respiração. Olhou novamente na direção do
banheiro, Angélica continuava seu cantarolar. Novamente envergonhou-
se do que estava fazendo, mas era preciso. Aliás, estava se
especializando em espionar segredos alheios, pensou enrubescendo ao
lembrar-se da incursão no quarto de Artur.

Com a fechadura liberada Cristine puxou a gaveta com o máximo de


cuidado para não fazer qualquer ruído. Segurando firme o puxador de
madeira envernizada fez a gaveta deslizar para fora suavemente.
Arregalou os olhos quando viu que na gaveta havia nada mais nada
menos do que uma arma, uma arma e munição. Pegou o revólver e sob
o cano de metal escuro e gelado repousava um envelope pardo.
Constatou que estava sem lacre e abriu o mesmo para verificar seu
conteúdo. O que viu fez suas pernas tremerem, mas manteve-se firme.
Viu tratar-se de fotos suas, recentes, tiradas no Rio, na praia, uma
sequência de rosto e corpo num total de oito fotos. E aquela arma a
cobri-las, ameaçadora e gélida. Assustada recolocou as fotos no
envelope e repôs a arma no lugar. Tratou de fechar a gaveta e chaveá-
la novamente. Recolocou a chave no pote e fechou a gaveta central.
Seu coração estava disparado e novamente foi invadida por uma
sensação de medo.

Acabara de fazer amor com uma pessoa que parecia querer eliminá-la.
Não podia deixar o pânico tomar conta dela. Vestiu-se apressadamente
e quando ouviu o chuveiro sendo desligado já estava pronta para descer
a escadaria na direção da rua. Sem fazer barulho desceu rapidamente e
saiu pela porta da frente, tomando o cuidado de não deixá-la bater após
a sua passagem. Correu o mais rápido que pôde para o castelo. A noite
já caíra sobre Doze Colinas. A garoa continuava ininterrupta, porém
menos densa.

Cristine chegou ao castelo empalidecida. Passou por Anemary e pediu-


lhe que levasse seu jantar no quarto. Pediu ainda que não deixasse
ninguém importuná-la. E isso incluía Angélica e o Dr. Mendes.

174
Subiu e trancou a porta do quarto por dentro.

Ao sair do banheiro enrolada na toalha Angélica estranhou o fato de


Cristine não estar aninhada nas cobertas. Sorriu e imaginou que a
loirinha estivesse adiantando alguma coisa na cozinha. Vestiu-se e
desceu.

Ao perceber que Cristine não estava no térreo chamou por ela:


- Tine!

Nenhuma resposta. Chamou novamente:


- Tine!

Só o silêncio. Procurou em volta, no pátio e entrou novamente,


percebendo que a porta da frente estava destrancada. Subiu as escadas
de dois em dois degraus e passou a examinar o quarto. Seu olhar
perscrutador viu que Cristine havia pegado todas as suas roupas.
Continuou sua observação e foi direto para sua escrivaninha, prevendo
o que poderia ter acontecido. Ao abrir a gaveta central já percebeu que
havia sido mexida. O potinho com as chaves não estava exatamente
onde costumava colocá-lo. Angélica tinha uma lógica na arrumação de
suas coisas. Necessidades de sua profissão. Foi direto para a gaveta de
baixo e ao abri-la percebeu que fora mexida também. O envelope e a
arma estavam dispostos assimetricamente.

Fechou a gaveta. Sentou-se e respirou fundo, com uma expressão


séria.
Ficou imaginando o que estaria se passando na cabeça de Cristine,
aliás, sabia perfeitamente o que ela deveria estar cogitando. Agora tudo
ficava mais difícil. O que faria agora? Como poderia remediar as
evidências? Considerou mais adequado deixar as coisas como estavam,
pelo menos naquele momento.

Por precaução foi até o castelo, para verificar se Cristine estava bem.
Sua mãe lhe disse que ela havia subido ainda há pouco, e que estava
indisposta e havia pedido para jantar no quarto. E não queria ver
ninguém.

Angélica ficou um pouco mais tranquila. Resolveu voltar para sua casa.
Precisava realizar alguns contatos e pensar no que faria.

***********

A sexta-feira amanheceu ao som de trovoadas e uma chuva torrencial.


Cristine despertou por volta do meio dia. Havia passado a noite

175
praticamente em claro. Estava se sentindo um lixo, no sentido amplo da
palavra. Dormira pouco e tivera um sono povoado de pesadelos,
fantasmas e ameaças de morte. Sentia-se desprotegida e temerosa,
sem um porto seguro, sem ninguém para recorrer. Estava pálida e com
olheiras escuras. Se não tomasse uma atitude por certo enlouqueceria.
Respirou fundo e tomou sua decisão: iria embora dali. Nada mais a
prendia naquele lugar. Não havia por que ficar num local onde se sentia
ameaçada e solitária. Voltaria para sua casa no Rio, para a rotina de
sua vida e de seu trabalho e tentaria colocar uma pedra sobre os
acontecimentos dos últimos dias. E nada nem ninguém poderiam detê-
la. Estava decidida.

Tomou um banho quente e renovador e desceu para almoçar.


Encontrou a mesa já servida e os presentes já terminavam a refeição.
Dr. Mendes levantou-se, desculpando-se:
- Desculpe-nos, minha querida, não sabíamos se descerias para almoçar
ou se dormirias até mais tarde, por isso não a esperamos.
- Tudo bem... – disse Cristine não conseguindo encarar Angélica que
estava presente e a fitava da extremidade da mesa.

Sentou-se e logo foi servida pelos serviçais. Angélica continuava a


observar Cristine de soslaio, tentando aparentar naturalidade. A loirinha
mal conseguiu tocar na comida. Valesca e João Vítor logo se retiraram
da mesa, seguidos por James. Dr. Mendes tentou puxar conversa com
Cristine, percebendo o clima de tensão que pairava no ar, mesmo sem
entender o verdadeiro motivo deste. Cristine respondia com
monossílabos. Angélica também tentou por duas vezes conversar com
ela, porém as respostas eram mais evasivas do que as dirigidas ao
advogado.

Cristine pediu licença alegando indisposição. Disse que iria para o


quarto. Angélica a interpelou antes que saísse da mesa:

- Eu preciso conversar um minutinho contigo.


- Mas eu não me sinto bem agora. – respondeu Cristine.
- É só um minuto. Vamos até a biblioteca. Por favor.

Dr. Mendes observava as duas mulheres atentamente. Para não


polemizar a situação Cristine assentiu com a cabeça:

- Tudo bem então.

A loirinha pediu licença ao homem grisalho e levantou-se, sendo


seguida por Angélica. No trajeto do corredor Cristine pensava no que
diria à Angélica. Não podia contar o que houvera, sob pena de ficar
exposta e vulnerável. Tentaria arrumar uma desculpa convincente para
justificar suas atitudes.

176
Após entrarem na biblioteca Angélica fechou a porta, o que causou um
estremecimento em Cristine e uma onda de temor interno.

- O que foi? – questionou Angélica – Por que saíste lá de casa ontem?


Eu fiz alguma coisa que te magoou? – continuou Angélica também
tentando não deixar transparecer que sabia o verdadeiro motivo de sua
reação.
- Não... Não é isso... Você não fez nada... – gaguejou Cristine – São
coisas minhas...
- Que coisas?... – continuou Angélica.
- Já disse, coisas minhas, encucações... Sei lá... É que... Preciso pensar
na minha vida no Rio... Nas pessoas que deixei lá...
- Tu tens alguém lá?... – quis saber Angélica, deixando transparecer
receio quanto à resposta da loirinha.
- Tenho. – mentiu Cristine, sem conseguir encarar a morena nos olhos
– E por isso preciso pensar. O que aconteceu entre a gente foi... Foi...
Intenso, mas não sei se foi o mais acertado...
- Entendo... – respondeu Angélica baixando os olhos e se dando conta
de que aquela justificativa era uma desculpa. A morena resolveu
facilitar a situação para as duas fingindo acreditar nas palavras de
Cristine – Eu vou pra casa. Se precisares de alguma coisa...
- Ta. Eu peço. – respondeu Cristine secamente.

Angélica virou-se e saiu da biblioteca sem olhar para trás. Cristine


desmontou. Seu peito parecia querer explodir de dor. Não sabia o que
pensar. Estava apaixonada por aquela mulher e desconfiava que ela
queria matá-la. Sentia medo. E solidão.

Enquanto caminhava na direção de sua cabana Angélica pensava


consigo mesma: "boa desculpa... mas será que é desculpa mesmo? Ou
ela uniu o útil ao agradável e me deu um senhor pé na bunda por conta
de outra lá do Rio? Não... eu sei quando uma mulher faz amor comigo
ou quando está só a fim de uma transa... Mas convenhamos que a
desculpa foi boa... Agora preciso elaborar outra estratégia".

Cristine passou o dia todo em seu quarto. Desceu para o jantar e


encontrou somente o Dr. Mendes e James sentados à mesa. Novamente
a refeição transcorreu quase que em total silêncio. No final foi Cristine
quem disse:
- Eu tomei uma decisão...

Os dois homens a encararam e a loirinha continuou:


- Eu vou embora. No mais tardar segunda-feira. Preciso tocar a minha
vida...
- Mas... E os teus bens?... E esta propriedade? E os negócios? –
questionou o advogado.

177
- Tenho certeza que posso confiar no senhor e em você, James.
Gostaria que vocês dois tocassem os negócios para mim. Eu vou
embora, vou voltar para a minha casa, para a minha vida. Está
decidido.
- Bom... – disse James – ...no que depender de mim, pode contar
comigo, prima.
- E comigo também, Cristine. – respondeu Dr. Mendes.
- Agora se me dão licença, eu vou voltar para o meu quarto, preciso
começar a arrumar minhas coisas.

Os dois homens permaneceram na mesa.

- E essa agora? – disse James – Eu não imaginei que ela fosse embora.
Pensei que ficaria aqui, tomando conta do que agora é dela.
- Eu também. – concordou o homem mais velho.
- Mas se ela quer ajuda, eu me proponho a dar, afinal somos uma
família.
- É. – respondeu Dr. Mendes pedindo licença e também se retirando
para seus aposentos.

De seu quarto o advogado faz uma ligação de seu celular:


- Alô? Sou eu. Precisamos redobrar a vigilância. Ela decidiu ir embora.
- Eu imaginei... – respondeu a voz do outro lado da linha – Mas está
tudo sob controle.
- Eu espero. Espero sinceramente que esteja.
- Está.
- Se tu o dizes... – continuou o advogado – As próximas horas são
decisivas. Nosso alvo vai mexer as peças no tabuleiro, a cobra vai dar o
bote...
- Assim espero. O delegado já sabe da novidade?
- Já. Acabei de ligar para ele.
- Bom, preciso me preparar... A noite e o dia de amanhã prometem...
- É... Boa noite então. – disse o advogado.
- Boa noite.

Cristine tentou ler, porém sua atenção voltava-se constantemente para


a figura de Angélica. Não sabia o que pensar. Aquela mulher era uma
incógnita e isso a afligia quase a ponto do desespero. Mas tinha agido
certo. Precisava se proteger. E isso começava pelo fato de ir embora.
Arrumou alguns pertences e tentou conciliar o sono. Havia conseguido
passagem aérea somente para segunda-feira. Embarcaria às quinze
horas. Tapou o rosto com as cobertas, como que numa tentativa de
esconder-se do mundo e da claridade dos relâmpagos que cortavam o
céu de Doze Colinas. Ouvindo o barulho de trovões e de chuva
abundante acabou pegando no sono.

178
Novamente do lado de fora de seu quarto uma figura escondida na
escuridão começava sua vigília silenciosa.

No sábado Cristine despertou cedo, antes das oito horas, apesar de ter
custado a pegar no sono na noite anterior. Novamente sentia-se mal.

Abriu a cortina de sua janela e viu que a chuva havia estiado. As


nuvens cinzentas pareciam menos carregadas naquela manhã. Apesar
da névoa matinal que ainda cobria os arredores podia perceber que o
dia seria menos chuvoso que o anterior. Arriscava o palpite de que
talvez até mesmo algum raio de sol pudesse dar o ar de sua graça
naquele sábado, mesmo que esmaecido e sem intensidade. Esperaria
para ver...

Desceu para tomar café e respirou aliviada ao perceber que Angélica


não estava à mesa. Somente James, Valesca, João Vítor e Dr. Mendes.
Anemary e Morris, em seus lugares costumeiros, serviam o café da
manhã.

Cristine tomou seu lugar à mesa e serviram-lhe uma xícara de café


fumegante. De sua posição na mesa pôde perceber quando Henrique
cruzou o corredor que levava à cozinha e instalou-se junto ao fogão à
lenha, conversando com Thomaz que tomava um chimarrão com
Regina. Não conseguia ouvir o teor da conversa, porém percebeu que
estavam bastante envolvidos e atentos no diálogo. Após dois goles de
café disse:
- Já estou com as minhas coisas praticamente em ordem para viajar.
- Tu tens certeza do que estás fazendo? – questionou o advogado.
- Absoluta.
- Como eu já disse, podes contar comigo, prima. – disse James.
- Obrigada. Fico tranquila com isto.
- Eu que agradeço a confiança. – respondeu James.

Cristine limitou-se a um balançar de cabeça e a um sorriso sem graça.


Continuou:
- Vou aproveitar que o dia está mais limpo e pretendo ir até o cemitério
agora de manhã. Preciso me despedir...
- Entendo... – disse Dr. Mendes – Eu posso ir contigo.
- Não, obrigada. Eu quero ir sozinha. Preciso me dar esse momento...
- Tudo bem então... – disse o homem mais velho.
- Pois nós também vamos embora na segunda-feira, não é João Vítor? –
disse Valesca.
- Certamente... – respondeu o jovem.
- E eu também quero me despedir de Artur... – suspirou Valesca – Mas
não hoje, talvez amanhã... Quero comprar uma coroa de flores.

179
Cristine terminou seu desjejum e subiu até seu quarto. Pegou um
agasalho mais quente e desceu novamente. Ao cruzar pelo corredor e
cozinha não encontrou nem sinal do Dr. Mendes, James, Valesca, João
Vítor ou quem quer que fosse. Somente Regina estava na cozinha,
dando início aos preparativos do almoço.

Rumou a pé na direção do cemitério. No caminho colheu algumas flores


do campo e seguiu pela estrada compassadamente, enquanto pensava
nas situações que vivenciara nos últimos dias. De fato a manhã
continuava nublada, mas não chovia no momento. No horizonte, bem
ao longe, algumas nuvens escuras novamente pareciam querer aliar
forças para derramar água abundante sobre a terra. Por conta das
nuvens menos carregadas que pairavam sobre o castelo não levou
guarda-chuva, nem tão pouco tomou conhecimento da cor escura do
horizonte.

Caminhava devagar e pensativamente. Desejava ver a figura de


Angélica, ao mesmo tempo em que sentia temor em encontrá-la. Essa
dualidade de sentimentos a consumia por dentro. Se ficasse mais tempo
ali por certo enlouqueceria.

Movia-se sem pressa e observava a paisagem ao seu redor, a mesma


paisagem cinzenta, úmida e carregada, que parecia imutável e
sufocante. Naquele momento não sentia medo, apenas desconforto e
mágoa. Não via a hora de voltar a sentir no rosto os raios do sol de sua
cidade e o calor aconchegante da multidão de passantes que
fervilhavam nas ruas de paralelepípedo do centro e nas amplas
avenidas pavimentadas. Fechando os olhos conseguia quase que ouvir o
burburinho e o tumulto do trânsito do Rio. Sorriu para si mesma. Ao
mesmo tempo seu peito sentiu uma agulhada fininha ao se dar conta
que provavelmente não tornaria a encontrar Angélica. Sua razão
tentava convencê-la de que isto era o melhor para sua segurança,
porém sua emoção lhe incitava à dor e ao sofrimento pela separação.

Foi trazida de volta à realidade de seus devaneios quando uma rajada


de vento mais forte agitou seu casacão de lã e fez revoar seu cabelo
loiro. Estivera caminhando tão pensativa que nem se dera conta de
quão rapidamente as nuvens escuras do horizonte haviam sido
impelidas em sua direção e agora formavam um cobertor espesso e
negro sobre sua cabeça. Resolveu ignorá-las uma vez que já se
encontrava no portal do campo-santo.

Outra vez Cristine ouvia somente o som das próprias passadas de


encontro ao calçamento de pedra do corredor central. Seguiu direto
para a sepultura de seu pai.

180
Bem perto dali um rádio de comunicação foi acionado e vozes tensas
puderam ser ouvidas:

- Alô, detetive Thomaz falando, câmbio.


- Na escuta, pode falar, câmbio – respondeu uma voz masculina e
grave.
- Tudo correndo como o combinado. Nosso peixe está mordendo a isca,
câmbio.
- Não perca de vista em nenhum momento, câmbio.
- Ok. Encerrando, câmbio.

O delegado secou a testa suada e fez uma ligação para seu celular:

- Adroaldo? Sou eu. Tudo está correndo conforme o esperado.


- Pelo amor de Deus, Munhoz, cuidado! Eu não me perdoarei jamais se
algo acontecer a ela.
- Fica tranquilo, está tudo sob controle.
- Eu vou me posicionar onde combinamos.
- Fique atento, Adroaldo. E não me saia desarmado!
- E eu lá sou idiota?

Passaram-se cerca de vinte minutos até que novo contato pelo rádio se
fez ouvir:

- Thomaz, Thomaz, responda, câmbio.


- Na escuta, câmbio.
- Tudo bem? Cambio.
- Tudo...
- Porque esse titubear? Cambio. – exaltou-se a voz no outro lado do
comunicador.
- Movimento inesperado do nosso alvo. Saiu do meu campo de visão...
câmbio.
- COMO ASSIM? E FOI PRA ONDE?
- Parece ter ido para dentro da mata, câmbio.
- PARECE?... É PRECISO TER CERTEZA!
- Vou costear o muro do cemitério, câmbio...

Nesse momento a comunicação foi cortada. Um baque surdo se ouviu


na vegetação rasteira e um corpo inerte foi arrastado para junto de um
arbusto na beira da estradinha de terra.

- ALÔ, CÂMBIO, RESPONDA, THOMÁZ, RESPONDA, CÂMBIO!

Nenhuma resposta se fez ouvir. Nervosamente o aparelho


intercomunicador foi novamente acionado:
- Alô, delegado, câmbio!
- Fale, estou na escuta, câmbio.

181
- Algo não corre bem, mudança de planos. Thomaz não responde.
Acione seus homens já! Estou indo para lá agora! Câmbio final.
- Dacosta, espere, ouça... Dacosta! Dacosta! ... – nada mais se ouvia,
porém mesmo assim o delegado concluiu a frase - ...Cuide-se.
Naquele momento uma figura esguia com os batimentos cardíacos
acelerados e uma sensação de angústia no peito cruzava a mata nativa
correndo o mais rápido que podia.

Cristine parou defronte ao jazigo da família e mais uma vez encarou os


anjos de pedra que guardavam o corpo sem vida de seu pai e seus
avós. Conjeturou consigo mesma o porquê dos destinos de certas
pessoas serem palcos de tamanhos desencontros. Pensava ainda no
quanto talvez pudesse ter sido feliz com seu pai. Lamentou não ser
possível voltar no tempo...

Secou uma lágrima do canto de seus olhos enquanto sentia seus


cabelos esvoaçarem com o vento forte que vinha do sul. Sentiu o cheiro
de um perfume conhecido, mas limitou-se a fechar os olhos e deixar as
lágrimas escorrerem abundantemente, acreditando ser fruto de sua
imaginação. Levou suas mãos ao rosto e chorou copiosamente.

Dacosta corria desenfreada e cautelosamente por entre a vegetação


espessa utilizando atalhos que tão bem conhecia. Sentia o contato rijo
do metal da arma de encontro a seu tórax. Ao avistar os muros do
cemitério parou por instantes e aguçou o ouvido. Silêncio. Tentou novo
contato com Thomaz através do comunicador. Nenhuma resposta.
Esgueirou-se até o sopé do muro e num pulo ágil segurou-se na borda,
içando seu corpo lentamente até conseguir espiar para dentro.
Certificando-se de não estar sendo observada pulou o muro com a
agilidade de um felino e avançou na direção dos fundos quase que
rastejando. De repente avistou os cabelos loiros de Cristine, de pé e
sozinha junto ao túmulo de Artur. Respirou aliviada e aproximou-se
cautelosamente.

O vento começou a soprar em rajadas fortes abafando os passos


determinados e rápidos de Dacosta.

Cristine sentia a ventania a varrer os arredores e agitar seus cabelos e


vestimenta, porém parecia querer ficar mais tempo ali, contemplando o
monumento de pedras que abrigava os restos mortais de sua família.
Encontrava-se tão absorta que nem percebeu a figura que se
aproximava apressadamente por trás.

Sobressaltou-se ao sentir uma pegada firme no braço e tentou


desvencilhar-se quando viu a expressão tensa de Angélica que lhe
encarava e a abraçava imobilizando-a.

182
- O que significa isso? – perguntou Cristine tentando se soltar.
- Calma... Vem comigo. – respondeu Angélica secamente e olhando
nervosa para os lados.
- Como assim? Me deixa. Me larga. – disse Cristine agitando-se.
Angélica a segurou firme pelos ombros e a fez encará-la:
- Escuta aqui... Por favor... Me ouve! Vamos embora daqui. E fica perto
de mim. – disse abraçando-a junto ao peito.

Cristine pôde então observá-la de frente e viu que vestia um colete


preto com um emblema conhecido no peito.

- Me diz o que é que está havendo... – pediu Cristine com um tom de


voz mais brando.
- Eu digo. Prometo. Digo tudo o que quiseres, mas longe daqui. Vem.

Nesse instante o ouvido apurado de Angélica percebeu um ruído atrás


delas e sua visão periférica captou um movimento brusco na vegetação.
Instintivamente puxou Cristine para o lado empurrando-a para trás do
túmulo de Artur e protegendo-a com o próprio corpo, no exato
momento em que um estampido surdo se fez ouvir acima do barulho da
ventania.

Cristine sentiu o baque do corpo de Angélica contra o seu antes delas


caírem no vão entre as duas sepulturas que as cercavam. O colete a
prova de balas impedira o projétil de alojar-se na carne morena, porém
causara um golpe seco que fizera Angélica quase perder a respiração.
Mesmo assim permaneceu deitada sobre Cristine, empurrando-a cada
vez mais na direção da lateral do túmulo. Outros estampidos ecoaram
no vazio e fizeram ambas estremecerem e encolherem-se atrás da
proteção de pedras. Com agilidade Angélica sacou sua pistola e desferiu
dois disparos para o alto, para intimidar o agressor. Ouviram-se passos
e Angélica girou sobre o próprio corpo, mantendo Cristine embaixo de si
e aprontando-se para abater quem quer que se aproximasse. Nisto
escutou uma voz conhecida gritando seu apelido de infância:
- Cacá!!! Cacá!!! Nãããããooo!!!

Angélica respondeu no mesmo tom:


- CHICO, TE ESCONDE!!! FICA AÍ!!!

Mas era tarde. Ouviu passos rápidos e uma sucessão de disparos.


Enraivecida posicionou-se e ao avistar a figura disforme que corria na
direção delas passou a atirar na direção de suas costas, tentando
proteger-lhe a retaguarda.

Cristine não tinha tempo de raciocinar. A adrenalina a fizera perder a


noção das coisas. Naquele momento era só instintos. E seu instinto
maior lhe dizia internamente: "faça o que Angélica disser!". Ouviu o

183
estampido ensurdecedor dos disparos e sentiu quando um corpo
projetou-se sobre elas, abraçando-as e tentando servir de escudo para
protegê-las.

- Chico, tu ta bem? – perguntou Angélica observando um sangramento


na altura do ombro do amigo.
- To! Chico veio cuidar da Cacá...
- Obrigada Chico, mas eu te disse pra ficar escondido...
- Mas tavam atirando na Cacá... E na moça bonita...
- Querido... – disse Angélica passando a mão no rosto do amigo.

Como o barulho dos tiros havia cessado Cristine virou-se e viu o homem
que supostamente a atacara no cemitério. O mesmo semblante não lhe
parecia assustador naquele momento. O casaco preto, até os joelhos,
continuava a cobrir o corpo disforme, porém nada ameaçador naquele
instante.

Ainda sem entender o que se passava Cristine ouviu vozes masculinas


ao fundo e passadas pesadas vindo na direção delas.

- DACOSTA! TU ESTÁS BEM? – gritou o homem grisalho que se


aproximava de arma em punho.
- TUDO BEM! CRISTINE ESTÁ AQUI COMIGO. E O CHICO TAMBÉM...

O delegado se aproximou e chegou até eles. Deu um cutuco na orelha


de Chico e disse:

- Ô cabeçudo de uma figa! Ta querendo morrer???


- Eu nããão... Nem a Cacá...
- Mas a "Cacá" sabe se cuidar, ô cabeça de bagre! – emendou o
delegado.
- Eu que cuido da Cacá....

Angélica sorriu e disse para Chico:


- Chico, olha só... Eu preciso da tua ajuda, pode ser?
- Pode! Chico ajuda!
- Fica aqui com a Cristine. E não desgruda dela! Não deixa ela se meter
em confusão, ok!- e piscou para o amigo.
- Deixa comigo! – riu-se Chico pegando a mão de Cristine entre as suas
– Ela fica junto!

Angélica levantou-se e acompanhou a movimentação de alguns agentes


que corriam para o leste, perseguindo de perto o atirador que havia
atentado contra elas. Neste momento Cristine pôde ver a inscrição da
polícia nas costas do colete de Angélica, enquanto ela se afastava a
passos rápidos, aparentando ainda sentir o baque nas costas.

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Cristine permanecia estática e encarava surpresa a figura que segurava
sua mão e lhe sorria amigavelmente, enquanto um filete de sangue
ensopava o casaco negro na altura do ombro. Como pudera se enganar
tanto, pensava consigo mesma. Ao mesmo tempo sua preocupação com
Angélica não a deixava raciocinar direito. Também se enganara a
respeito dela... De fato estava se sentindo uma cega. Não conseguira
distinguir o que estava a um palmo de seu nariz. Sentia-se com um
peso na consciência por não haver confiado na mulher que a amara de
forma tão doce e intensa, e que poderia ter perdido a vida para
protegê-la. Sentia-se um monstro...

Com as mãos trêmulas empunhando a arma com a qual acabara de


alvejar Angélica e Cristine e tendo a testa banhada de um suor gélido e
pegajoso James corria feito um louco pela mata cerrada, tendo em seu
encalço a equipe do delegado Munhoz.

Eficiente e cuidadosamente os homens se aproximavam cada vez mais,


fechando o cerco ao redor de James. Este em dado momento se viu
encurralado entre uma encosta de terra íngreme e o vazio do
desfiladeiro de pedras que servia de redoma ao vale, muitos metros
abaixo. Virou-se na direção de onde viera e novamente empunhou a
arma, fazendo mais alguns disparos na direção da mata. Ouviu-se o
barulho dos policiais se protegendo atrás dos troncos de árvores e da
vegetação espessa. Fez-se um silêncio. Depois de uns minutos de
extrema tensão para todos, o delegado Munhoz gritou:
- Baixe a arma, James! Entregue-se e tudo acabará bem!
- Bem para quem, delegado??? – gritou James descontrolado,
novamente alvejando o nada.

Angélica rastejando aproximou-se do delegado.

- Deixe-me tentar, delegado.


- Não senhora! Tu já correste perigo suficiente hoje.
- Delegado, eu conheço esse cretino. Deixa pra mim.

O delegado Munhoz coçou a cabeça e respondeu:


- Bom... Me deixe chegar mais perto. Quero esse miserável na mira da
minha arma. Depois é tudo contigo.

Novamente os comunicadores foram acionados e os agentes de Munhoz


colocaram-se estrategicamente. James estava num local vulnerável,
não tinha para onde fugir. Quando finalmente a equipe se posicionou
Munhoz disse para Angélica:
- Agora vai. Mas, Angélica, ao menor esboço desse canalha eu meto
chumbo!

185
- Não vai ser preciso, delegado, espere e verá. A gente pega ele sem
problemas. Quero ver esse crápula apodrecer na cadeia. Morrer é
pouco...
- Cuidado Dacosta... – advertiu o delegado.

Angélica falou em voz alta:


- James, baixa essa arma! Vamos conversar!
- EU NÃO TENHO NADA PRA CONVERSAR, VAGABUNDA!
- Tem sim! E vai ser melhor pra ti baixar a arma. Tu não tem saída,
James.

James suava frio. Baixou sua arma e deu um passo para trás, sem se
dar conta que se aproximava do abismo de pedras.

Angélica ergueu-se e de arma em punho caminhou na direção dele. Ao


vê-la ele novamente apontou a arma em sua direção.

- Negativo James! Tu sabe que a minha pontaria é muito melhor que a


tua, aliás, sempre foi. Tu morre antes de pensar em me acertar!

Aos poucos James foi baixando sua arma. Continuava trêmulo e à beira
do descontrole. Angélica também baixou a arma.
- O QUE MAIS TU QUER DE MIM, DESGRAÇADA???!!! – gritou James –
TU ME ROUBOU TUDO!!!
- Eu não te roubei nada, James, e tu sabes disso.
- Roubou sim, maldita! Roubou o carinho e a atenção do padrinho! Tudo
era pra ti! O melhor presente, o brinquedo diferente, a atenção! Tudo
era pra ti! Eu sempre fui o rejeitado, o coitado, o feio, o burro, o
desajeitado...
- Tu estás sendo injusto com o padrinho...
- AQUELE VELHO MISERÁVEL NUNCA GOSTOU DE MIM!!!
- E foi por isso que tu o mataste?
- EU NÃO FIZ NADA!
- Fez sim, James... E nós sabemos que fez... A tua consciência sabe que
fez... E faria novamente. Tu querias matar a Cristine.
- Aquela outra vagabunda??? Queria sim! E daí? Ela veio terminar de
roubar o que era meu! – novamente James deu um passo atrás.
- Joga a arma no chão e te entrega. É melhor pra ti. – disse Angélica
dando um passo na direção dele.
- PARADA AÍ! – gritou James – NEM MAIS UM PASSO! OU EU ATIRO!

Angélica estancou. O delegado colou o dedo no gatilho, aprontando-se


para disparar um tiro certeiro.

- James, porque mataste a Adelaide?


- Eu não queria fazer aquilo!
- Mas fez...

186
- EU PENSEI QUE FOSSE A OUTRA MISERÁVEL! A USURPADORA! A
FILHA BASTARDA!
- Ela não é bastarda, James... Tu és.
- CALA A BOCA!!! – gritou James tapando os próprios ouvidos – EU NÃO
QUERO OUVIR NADA DISSO!!! EU VOU CONTAR TUDO PRO PADRINHO!
TU VAI VER SÓ... ELE VAI TE BOTAR DE CASTIGO!!!

James havia se descontrolado e falava coisas sem nexo. Virou-se de


frente pro abismo e gritou:

- EU TE ODEIO, ANGÉLICA!!! EU ODEIO AQUELA VAGABUNDA!!! EU


ODEIO A MINHA VIDA!!! PADRINHOOO... ONDE ESTÁ O SENHOR???...
EU QUERO QUE TU MORRAS, DESGRAÇADA!!!

Nesse momento James virou-se para Angélica e sacou a arma. Com


agilidade a morena atirou-se ao chão e girou sobre o próprio corpo. Na
fração de segundos que levou para disparar um tiro viu James pisar em
falso no momento em que o projétil disparado pela arma de Thomaz lhe
perfurou o abdome. Como que em câmera lenta o corpo esquálido
pareceu pairar no vácuo antes de projetar-se nas profundezas do
abismo de pedras. Thomaz ainda sentia a cabeça zonza e dolorida da
pancada que levara pelas costas. Ao acordar amparado pelo delegado
Munhoz recusou-se a voltar para o castelo, alegando condições para
auxiliar na perseguição. Agora sentia que precisava de um médico. A
descarga de adrenalina fizera a dor de cabeça voltar com mais
intensidade. Mas ao menos valera a pena, pensava consigo mesmo,
"acabou-se o verme".

Fez-se um silêncio absoluto até que vagarosamente Angélica conseguiu


levantar-se. Na queda havia ferido a mão esquerda numa pedra
pontiaguda, mas nada grave, apenas um corte superficial. Munhoz e os
outros agentes aproximaram-se da beirada do penhasco. Bem no fundo
o corpo de James jazia disforme e sem vida.

- Acabou. – disse Thomaz enquanto passava o braço ao redor do ombro


de Angélica.
- Pois é... Acabou. – respondeu a morena com o olhar fixo no nada.

Quando Munhoz e Angélica se aproximaram da entrada do cemitério, no


caminho de volta ao castelo, Cristine correu na direção deles e abraçou
Angélica:
- Graças a Deus vocês estão bem! – disse emocionada.

A morena retribuiu o abraço e respondeu:


- Pois eu faço minhas as tuas palavras...

187
Chico continuava ao lado de Cristine, sem arredar o pé. Neste momento
Dr. Mendes veio ao encontro deles.

- Acabou. – disse Munhoz – Ele caiu no precipício.


- Quem afinal caiu no precipício??? – quis saber Cristine.
- James. – respondeu Angélica.
- James??? Mas então...
- Tine... A gente precisa conversar... Eu prometi e vou cumprir. Mas eu
preciso de um banho. E deitar um pouco... Eu vou pra casa agora...
Sozinha. Depois eu vou até o castelo. Vai fazer o mesmo. Descansa um
pouco que a gente tem muito que conversar mais tarde...
- Ta... Angélica, a tua mão... Ta sangrando...
- Isso não é nada. É só superficial. Não te preocupa.
- Angélica tem razão, Cristine – disse o advogado – vá descansar um
pouco. Depois temos muito que conversar.
- Tudo bem...

**************

Na segurança e no aconchego de sua cabana Angélica tomou um banho


demorado e deitou-se em sua cama macia adormecendo
profundamente. Sonhou com Artur, e ele lhe sorria.

Cristine por sua vez não conseguiu pregar o olho. Continuava meio que
em estado de choque. Também tomou um banho para relaxar, mas
permaneceu acordada e pensativa. Logo mais saberia de toda a
verdade. E sentia-se culpada por haver duvidado de Angélica, ao
mesmo tempo em que sentia mágoa por Angélica não ter lhe contado a
verdade desde o início, qualquer que fosse. Estava ansiosa para falar
com a morena.

Por volta de seis horas da tarde Angélica entrou na cozinha do castelo e


abraçou sua mãe, que já estivera em sua cabana para ver se a filha
estava de fato bem.

- E o pessoal? – perguntou com voz cansada.


- No escritório. – respondeu Regina.
- Eu vou até lá.

Angélica encontrou Cristine e Dr. Mendes sentados frente a frente


tomando um café, em silêncio. Entrou e cumprimentou-os com um
aceno de cabeça.

- Sente-se, minha filha – disse o advogado – Estávamos aguardando


por ti.

188
A morena acomodou-se ao lado de Cristine, que lhe sorriu
afetuosamente e disse:
- Eu ainda não tive oportunidade de te agradecer...
- Não tem o que me agradecer.
- Tenho sim. Você salvou minha vida... E quase perdeu a sua.
- É o meu trabalho. São ossos do ofício. – respondeu Angélica a meia
voz.
- Bom... – disse o advogado dirigindo-se à Cristine – então tu já sabes
que Angélica trabalha na polícia, é na verdade a detetive Dacosta.
- Dacosta?... – perguntou Cristine – o sobrenome de teu pai não é
Bandeira?
- É. Dacosta é por parte de mãe. Eu sou Angélica Dacosta Bandeira.
- Você nunca me disse...
- Tu nunca perguntou.

Fizeram-se uns segundos de silêncio e Dr. Mendes continuou:

- Cristine, nós queremos te contar esta triste história desde o começo.


- Por favor... Já não era sem tempo. – disse a loirinha.
- Tu já sabes como o teu pai tomou conhecimento acerca da tua
existência. Bom, foi depois disso que se iniciou a sucessão de fatos que
acabaram culminando com a sua morte.
- Mas então James realmente matou meu pai??? – perguntou Cristine
com a voz entrecortada pela emoção.
- Não... Quero dizer, sim, foi o responsável.
- Como assim???
- Deixe-me fazer o relato cronologicamente – pediu o advogado – Após
ter ciência de tua existência Artur modificou seu testamento. Em
meados de março percebeu que seus documentos haviam sido mexidos.
Ele era um homem metódico e percebeu que alguém mexera em seus
pertences, mais especificamente no testamento, na cópia deste. Ele
ficou intrigado, porém não deu grande importância. Logo em seguida,
no entanto, percebeu o sumiço de duas armas de sua coleção.
- Uma delas foi a que matou Adelaide?... – disse Cristine.
- Exatamente.
- Mas o que é que Adelaide tinha a ver com o testamento?
- Absolutamente nada. – respondeu o advogado, calando-se logo em
seguida e baixando os olhos.

Percebendo o titubear do advogado Angélica continuou o relato:


- Na verdade aquele tiro que a matou não era pra ela... Era pra ti.
- Pra mim???
- James confundiu vocês duas por causa do cabelo loiro e da capa de
chuva. Ele pensou que Adelaide era tu.

Cristine escondeu o rosto com as mãos.


- Que horror!... – disse baixinho.

189
Respirando fundo Dr. Mendes continuou:
- Depois de dar falta das armas Artur conversou comigo e com Munhoz.
A custo conseguimos convencê-lo de contratar um segurança, no caso
Thomaz, que também é policial, e de confiança do delegado. Na
verdade concordou em contratá-lo após seu carro perder o freio. Nesse
dia Artur começou a conjeturar que poderia ser algo sério, que poderia
ter um inimigo dentro de casa. Provavelmente James percebeu a
mudança no comportamento de Artur e passou a tomar cuidado com
seus atos. Tudo parecia estar correndo bem até que Artur faleceu
repentinamente, parecendo ser um ataque cardíaco. E não suspeitamos
de James, pois nesse dia ele havia ficado na cidade o dia todo, não
poderia ter feito nada. E Artur não tinha sintomas de envenenamento,
nem de qualquer anormalidade. Angélica estava aqui no castelo, tirando
uns dias de férias. Por uma questão de precaução resolvemos designá-
la para ficar vigiando os teus passos, pois nosso temor era de que a
pessoa que tivesse alguma coisa contra Artur pudesse atentar contra a
tua vida. Até então não sabíamos quem era. Podia ser qualquer pessoa
que circulasse pelo castelo, e os motivos poderiam ser os mais
variados. Infelizmente não conseguimos salvar o meu amigo... – Dr.
Mendes engoliu em seco – E o pior é que o motivo foi o mais óbvio de
todos: dinheiro.
- Eu diria que não foi só isso Dr. Mendes... - interveio Angélica – Na
verdade James queria mais que o dinheiro, queria o universo do
padrinho. Ele era um doente, sempre foi. E eu sempre soube disso, mas
confesso que subestimei o maldito... Não acreditei que ele fosse capaz
de matar.
- Mas como foi que ele matou meu pai? – insistiu Cristine.
- Eu já chego lá. – continuou o advogado – No dia seguinte ao enterro
de Artur fui procurado por Angélica, que me trouxe um frasco de
remédio para o coração que Chico havia achado enterrado no jardim.
- Só um aparte – disse Angélica – Chico mora aqui na cidade desde que
nasceu. A mãe dele era uma andarilha e morreu quando ele era
pequeno. Chico ficou um tempo na casa paroquial, até que pediu um
serviço para o padrinho, para conseguir algum dinheiro. E acabou
ficando por aqui. Ele é deficiente mental, mas tem autonomia e mora
numa casinha nos fundos do cemitério. Por sua deficiência física, como
vistes, ele é muito retraído e raramente sai da propriedade do castelo.
Mas é um bom amigo, um fiel amigo...
- E eu pude ver o quanto... – respondeu Cristine emocionada.

Dr. Mendes continuou:


- Chico encontrou aquele vidro num pedaço de canteiro revirado
recentemente, bem perto do castelo, e ele achou estranho. Inicialmente
acreditamos tratar-se de algum tipo de veneno, pois continha o rótulo
do remédio que Artur fazia uso. Imediatamente mandamos para análise
na capital. Depois de recebermos o laudo onde constava ser placebo no

190
lugar do remédio Munhoz pediu a exumação do corpo para autópsia,
que não havia sido feita por total falta de evidências de crime. E foi esta
movimentação que percebeste no cemitério à noite. Não queríamos
fazer alarde, nem assustá-la, pois as evidências começavam a apontar
para a possibilidade de um crime. Quando saíste do castelo para ir até o
cemitério foste avistada por Chico, que correu na frente e nos avisou.
Por isto não tivemos tempo de fechar a lápide. Queríamos poupá-la e
também não levantar suspeitas e alertar o possível criminoso. Pedimos
que Chico a detivesse antes de chegar à sepultura, mas foste mais
rápida...
- Ele quase me matou de susto. Pensei que fosse... Sei lá...
- Um monstro?... – instigou Angélica.
- É. – respondeu Cristine envergonhada.
- O resultado da autópsia foi o esperado. Não havia sinais da medicação
que Artur fazia uso regularmente. Ou seja, James o matou de uma
forma perversa, privando-o sem saber do remédio que poderia mantê-
lo vivo e bem. Trocou o remédio por placebo sabe-se lá há quanto
tempo. E isso jamais saberemos.
- Mas... Como é que passaram a desconfiar dele? – perguntou Cristine.
- Pequenas coisas... Mas tivemos a confirmação com o depoimento de
João Vítor. Ele referiu ter ouvido um ruído estranho no andar de cima
no dia da morte de Adelaide. E o quarto dele ficava bem embaixo do de
Artur. Aí Angélica se lembrou da passagem de acesso à rua, através do
atelier e do quarto anexo.

"O quarto dos horrores", pensou Cristine, "mas então eles sabem da
existência daquela aberração e acham normal!"...

- Aí foi muito fácil concluir quem poderia saber de sua existência, ter
tido tempo de usá-la e estar perto o suficiente para fazê-lo sem ser
visto.
- James... – disse Cristine à meia voz – o quarto dele é defronte ao do
meu pai...
- Isso mesmo. – concordou Dr. Mendes – Tratamos de fazer uma busca
ali na primeira ocasião em que James foi para a cidade. Encontramos as
armas escondidas no corredor de aceso à rua. Inclusive a arma que
matou Adelaide. Tentamos verificar a existência de digitais, mas não
havia nenhuma. O miserável foi cuidadoso, deve ter manuseado com
luvas. Logo, não tínhamos provas suficientes para enquadrá-lo. Era
preciso dar corda para que se enforcasse. E foi o que fizemos. Dacosta
e Thomaz redobraram a vigilância, zelando por tua segurança Cristine.
Até que resolvestes ir embora. James não podia mais esperar. Ele tinha
conseguido eliminar Artur. Precisava eliminar a ti para herdar a fortuna
do tio, tendo em vista é claro, acabar com Angélica também. A última
parte do testamento de Artur foi mudada muito recentemente, deixando
para Angélica os bens na falta da filha. Acho que Artur sabia quem era
seu inimigo e queria dificultar as coisas caso algo lhe acontecesse, além

191
de proteger as pessoas que mais amava: vocês duas. Bom, aí
esperamos James agir. Ele estava sendo seguido de perto por Thomaz,
porém subestimamos sua capacidade intelectual. Ele deve ter percebido
alguma movimentação e pôs Thomaz a nocaute, na mata. Por sorte não
matou o rapaz, estava com pressa, o alvo dele era outro. O resto da
história tu já conheces Cristine.
- Mas como você conseguiu chegar antes dele, Angélica? – perguntou
Cristine.
- Thomaz deixou de responder pelo comunicador e vi que algo não
corria bem. – a morena encarou Cristine – e senti medo. E corri pelos
atalhos que tão bem conheço...

Ambas baixaram os olhos. Dr. Mendes continuou:

- E a história toda se resume a isso. E eu me sinto impotente de não ter


podido fazer nada pelo meu amigo... – secou uma lágrima que lhe
escorreu pelo canto dos olhos.

Os três ficaram em silêncio. Depois de um tempo o homem grisalho


pediu licença e se retirou do recinto:

- Preciso me deitar – disse cabisbaixo – amanhã é outro dia e


precisamos tocar a vida para frente.

Angélica se levantou e deu um abraço e um beijo carinhoso no


advogado.

- Boa noite. – disse Dr. Mendes.


- Boa noite – responderam ambas, permanecendo no mesmo lugar.

Quando a porta se fechou atrás do advogado elas se olharam e sorriram


timidamente. Foi Cristine quem iniciou o diálogo:

- A sua mão... Chegou a levar pontos? – perguntou olhando para a


atadura de gaze.
- Não. Não foi nada sério, só um cortezinho. Acidente de trabalho... – e
riu-se.
- Ficar ao meu lado foi só... Trabalho? – perguntou Cristine.
- Não. A princípio foi, depois não mais. Passou a ser uma motivação
para viver.
- E eu posso acreditar nisso?
- Deve. – respondeu Angélica.
- Mesmo entre tantas mentiras?
- Eu não menti.
- Como não???
- Eu só ocultei algumas coisas. E para tua segurança.
- E o que me contaste sobre ti? E o teu trabalho de bibliotecária???

192
- Eu sou bibliotecária! E ultimamente tenho trabalhado no setor
administrativo sim. Eu não menti. Só não podia falar toda a verdade
para não colocar a tua vida em risco! É muito difícil de entender isso???
- Não sei... Tem algumas coisas que eu não sei...
- Mas então pergunta que eu te respondo!
- Angélica, por que tu me arrastaste pelo meio do mato, feito uma louca
naquele dia que eu estava lá no cemitério?
- Porque queriam fazer uma peneira de ti!
- Como???
- Eu dei falta de mais uma coisa no castelo, outra arma, o arco e flecha
do padrinho. E se eu não chego naquela hora a senhorita estaria igual a
uma almofada de costureira!
- E por que me deixaste pensar que eu estava enlouquecendo, quando
eu realmente vi o túmulo vazio??? Você não podia ter me deixado
naquela angústia!
- Tine... Eu não podia te contar... Eu precisava te proteger... Pelo amor
de Deus, entenda isso!
- Como me proteger??? Me deixando crer que estava ficando louca???
- Não. Simplesmente não deixando aquele maldito desconfiar de que
estávamos na cola dele. A gente precisava pegar o crápula... E tu sabe
disso.

Cristine calou-se para depois de instantes continuar:


- Você conhece o atelier do quarto do meu pai?
- Claro que conheço, passei muitos dias da minha infância ali.
- E você sabe quem é a mulher do quadro inacabado?
- Sei.
- Não é você, não é mesmo? É uma mulher loira...
- Não, obviamente que não sou eu.
- E você sabe quem é?... – duvidou Cristine.
- Sei.
- Quem é então?
- A tua mãe.

Cristine calou-se e baixou os olhos. Angélica também permaneceu


calada, encarando Cristine.

- E você conhece a extensão daquele quarto?


- Claro. – respondeu Angélica – É o quarto contíguo que leva a um
corredor subterrâneo de saída.
- E aquele quarto era usado pra que? Pra magia negra? Quem era afinal
meu pai?

Angélica não conseguiu conter o riso.

- Magia negra? O que é isso, Cristine, tu bebeu?

193
- Então me explica o que significam aqueles animais mortos e o
pentagrama invertido na chave da porta.
- Bom, pentagrama invertido eu não me lembro, deve ter sido colocado
de forma errada pelo próprio James, sei lá, pendurado ao contrário na
pressa... E quanto aos animais, bem o teu avô era taxidermista.
- Taxidermista???
- É. E o padrinho tinha horror daquilo. Ele gostava dos animais vivos e
não empalhados. Mas era uma atividade até que instrutiva. O vovô
costumava distribuir exemplares, principalmente pássaros, para as
escolas e para a universidade, para estudo das espécies.

Dessa vez foi Cristine quem teve de rir da própria imaginação.

- Tine, nem tudo é o que aparenta... – disse Angélica sabiamente.


- Mas mesmo assim... Você não tinha o direito de me deixar sem saber
a verdade. – insistiu Cristine.
- A verdade é que eu me envolvi contigo de uma forma que não
consegui controlar, deixando de lado todo o meu "profissionalismo".
Acabei deixando o sentimento prevalecer sobre a razão. E me dei conta
que gostei disso. A verdade, Cristine, é que me apaixonei por ti. De
uma forma intensa e verdadeira. E disso tu não tens o direito de
duvidar. E no que depender de mim essa história está apenas
começando. Eu sinto que podemos ter incontáveis momentos de
felicidade juntas. E não falo de grandes planos pro futuro, eu falo do
presente, eu falo de momentos... A vida é feita de momentos. E é o que
eu sinceramente gostaria que acontecesse. Mas eu não posso mais do
que dizer isto olhando nos teus olhos. Acredite se quiser. E, Cristine, eu
lamento pelo teu pai... Se eu tivesse algum poder sobre a vida e a
morte eu certamente daria outro desfecho nesta história...

Cristine baixou os olhos e calou-se. Deu-se conta que também amava


Angélica, porém estava magoada. Precisava de tempo para pensar.

- Eu preciso pensar... – disse à meia voz.


- Tudo bem. Tu que sabe. Mas tenha a certeza que eu jamais quis te
enganar, ou te magoar, ou te deixar angustiada. Muito pelo contrário:
eu quis te proteger e daria a minha vida para isso.

Olhou Cristine nos olhos, deu meia volta e saiu, deixando-a sozinha
com seus pensamentos. Cristine desabou num choro compulsivo.
Soluçou por bastante tempo.

Quando por fim resolveu sair do escritório encontrou Anemary do lado


de fora da porta, aguardando-a.

- Senhorita, gostaria de comer alguma coisa?


- Não. Não tenho fome.

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- Mas a senhorita precisa comer algo. Eu levo uma sopinha no quarto,
pode ser?
- Pode. Eu vou subir.
- Eu levo a sopa já, já.
- Obrigada.

Cristine subiu e em menos de cinco minutos Anemary batia à sua porta.


Ao sentir o aroma da sopa se deu conta que estava começando a ficar
com fome. Alimentou-se e deitou-se na cama. Adormeceu depois de
muito tempo a olhar para o teto.

Em sua cabana Angélica também fez um lanche e se recolheu. Estava


exausta. Toda a musculatura de seu corpo estava dolorida. Tomou um
analgésico e tentou conciliar o sono. Havia dito o que sentia para
Cristine, toda a verdade. Não podia fazer mais nada além de deixá-la
pensar e resolver suas crises existenciais sozinha. Agora tudo dependia
de Cristine. Decidiu não forçar as coisas e esperar para ver.

*****************

No domingo Cristine permaneceu recolhida em seu quarto. Angélica


também ficou restrita à sua cabana, nem sequer passou pelo castelo
para saber notícias de Cristine. Continuava com seu propósito de dar
tempo ao tempo e deixar Cristine colocar suas idéias em ordem,
embora internamente seu desejo fosse o de bater no quarto da loirinha
e tomá-la nos braços, fortemente.

A noite caiu chuvosa e Cristine observava as gotículas de chuva


escorrendo pela vidraça de sua janela. De seu quarto Angélica também
observava a chuva. Seu peito estava apertado e mal conseguia
controlar sua vontade de procurar Cristine. Mas não o fez.

Na segunda-feira o céu continuava carregado, porém havia teto para o


pouso e decolagem de aviões no Aeroporto Salgado Filho. Uma figura
morena de porte elegante observava de longe a mulher loira passando
pelo portão de embarque e acenando tristemente para o Dr. Mendes.
Angélica havia seguido em seu carro para o aeroporto, bem cedo, antes
mesmo de Cristine. Viu quando ela chegou acompanhada pelo amigo e
ficou a observá-la furtivamente e ao longe, porém sem deixar-se ver.

Quando o avião tomou velocidade e o trem de pouso levantou-se do


chão firme Angélica secou uma lágrima que teimava em escorrer de seu
rosto. Encostou a testa e as palmas das mãos na imensa parede
envidraçada e chorou. Era preciso agora voltar para casa, sozinha, e
continuar a viver. E foi o que fez.

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A bordo da aeronave a sensação de Cristine não era só de desconforto,
era de mágoa, angústia e solidão. Pensara que se sentiria melhor
voltando para casa, mas se dava conta naquele momento que isto não
passava de uma ilusão.

*************

Quando o gigante voador de extensas asas metálicas deixou cair seu


trem de pouso para tocar a pista do Galeão, Cristine suspirou
profundamente. Estava de volta ao lar. Mas que lar?... Seu apartamento
a esperava, assim como seu trabalho, porém agora se sentia parte
também de outro lugar, um lugar longínquo e sombrio, onde uma
mulher morena havia conquistado seu coração e a decepcionado a
ponto de fazê-la desistir de viver um grande amor.

Uma sensação de alívio a invadiu quando o avião diminuiu a velocidade


e por fim estacionou para o desembarque dos passageiros. Sentia-se
segura em terra firme.

Cristine distraiu-se enquanto tentava identificar sua bagagem na esteira


rolante repleta de malas. Depois de localizar e pegar as suas, e colocá-
las no carrinho metálico, dirigiu-se para a saída.
Duas caras conhecidas a esperavam para levá-la para casa. Cynthia e
Ariel acenaram efusivamente tão logo a avistaram. Cristine retribuiu o
aceno. O sorriso de Ariel fez com que Cristine se reportasse
instantaneamente ao rosto de Angélica. Sentiu uma fisgada de mágoa
no peito. Respirou fundo e tratou de abraçá-los tentando disfarçar sua
tristeza. Sentiu o olhar perscrutador de Cynthia.

No trajeto até o apartamento de Cristine, enquanto Cynthia dirigia em


silêncio, Ariel tagarelava sem parar contando as novidades dos últimos
dias.

- Tu não consegue imaginar a quantidade de gatinhas que eu azarei até


agora! – dizia Ariel alegremente – Isso sem falar nas ondas! To
adorando esse lugar. Pena que tenha de voltar para casa daqui a dois
dias, por causa da escola... Mas ainda bem que terminou aquela novela
de terror lá de casa. Eu falei com a mana ontem e ela me contou que foi
o miserável do James que matou a Adelaide. Ainda bem que ele ta
morto também, aquele bandido!
- Pois é... – concordou Cristine com um suspiro – Ainda bem que tudo
terminou...
- Eu pensei que tu ia ficar mais tempo lá. – continuou Ariel – Ainda mais
que o castelo agora é teu.

196
- Eu preciso me organizar, querido. A minha vida é aqui... – respondeu
Cristine.
- Mas eu ia gostar se tu fosse morar lá! – insistiu o adolescente.
- Ta interessado numa professora de graça, né moleque? – brincou
Cynthia tentando mudar o foco da conversa. – Quem sabe você vem
para cá?
- Eu bem que queria, mas só se o pai, a mãe e a mana viessem junto. E
eles não saem de lá!

Cristine olhou para o nada e Cynthia passou a contar as novidades do


escritório, numa clara intenção de mudar o rumo da prosa. Ao
chegarem ao apartamento da loirinha subiram para deixar as malas e
depois trataram de comer fora, pois já passava das duas horas da
tarde.

Logo após o almoçarem Ariel foi para a praia, havia marcado de


encontrar alguns novos amigos. Cynthia convidou Cristine para uma
caminhada na orla. Andando vagarosamente pelas areias do Leblon
Cristine sentia o calor do sol em seu rosto e isso a fazia sentir-se um
pouco melhor, como que energizada pela força do astro-rei.
Caminharam em silêncio até que resolveram tomar uma água de coco.
Depois sentaram na areia, na beira da praia, e Cynthia puxou o
assunto:
- Muito bem, amiga, agora me conta tudo o que houve... Quero saber
tintin por tintin o motivo desses inúmeros suspiros e dessa carinha
triste.

Cristine sorriu melancolicamente e começou seu relato. Estava mesmo


sentindo necessidade de desabafar. Cynthia ouviu toda a história em
silêncio. Por fim, quando o sol já havia se escondido por trás dos
edifícios altos e uma coloração avermelhada indicava que a noite se
aproximava, Cynthia aproveitou a pausa de Cristine e passou do
monólogo ao diálogo.

- Tine, você quer saber a minha opinião a respeito de tudo isso?


- Por favor... – respondeu Cristine.
- Bom, eu te deixei falar, agora quero que me escute, ok?
- Tudo bem.
- Amiga, eu te conheço há um bom tempo... E quer saber?...Você está
com uma crise de autopiedade, está sendo infantil, imatura e
descartando uma possibilidade de ser muito feliz por pura burrice!
- O que é isso Cynthia? Ta contra mim???
- Muito pelo contrário: eu to a favor!
- Mas então você não assimilou nada do que te contei...
- Claro que assimilei! Você me contou uma história de família muito
triste, em contrapartida a uma demonstração de amor incondicional!
Minha amiga, a mulher com a qual você está "imensamente magoada"

197
quase morreu pra te salvar! Acorda, mané! Não ta te dando conta que
essa mulher te ama, não? Para de sentir pena de ti mesma. Tudo bem
que a história da tua família é uma história fudida mesmo, mas a
Angélica não tem culpa disso! E se ela não te contou tudo o que sabia
foi pra te proteger, ô cabeça dura!

Cristine permaneceu em silêncio, olhando o mar. Cynthia continuou:


- Tine, tem situações na vida da gente que não dependem de nós... E a
gente não pode voltar no tempo pra consertar absolutamente nada, ou
para fazer diferente. Mas a gente deve tentar viver bem o presente, e
aproveitar as coisas boas que o destino nos coloca no caminho. Isso
para não lamentarmos depois... E pelo que você está me contando essa
mulher pode te fazer feliz sim... Isso se você der uma chance a vocês
duas.
- Mas, você acha que ainda é tempo?... Eu não consegui nem mesmo
me despedir dela.
- E por quê? Por mágoa ou por não ter certeza de conseguir dizer
adeus???
- Não sei... Acho que os dois... – respondeu Cristine confusa.
- Tine, olha só... Você sabe que eu detesto dar palpites na vida alheia,
mas foi você que perguntou a minha opinião, logo me deu abertura
para isso. Além do que eu sinto um carinho muito grande por você... E
quero te ver feliz.

Cristine virou-se para Cynthia e a abraçou, caindo num choro


compulsivo.

- Eu... Faço... Tudo errado mesmo... – disse Cristine entre soluços.


- Para de chorar, garota. Seca essas lágrimas e vai à luta. Faz alguma
coisa! Só não fica chupando dedo por que a fila anda...

O sol desapareceu de vez por trás dos prédios e a praia foi invadida
pelas cores da noite. As luzes de neon, o calor e o burburinho da cidade
grande eram como um bálsamo para Cristine, mas lhe faltava algo para
sentir-se completa. Desejava estar nos braços da mulher que deixara
em Doze Colinas, e que poderia não querer voltar a vê-la novamente.

Duas semanas depois...

Novamente Cristine era invadida pela mesma sensação de desconforto


ao entrar na aeronave que estava preste a alçar vôo. O que mais fizera
naqueles dias desde que retornara para o Rio fora pensar... Pesara toda
sua vida e se dera conta que Cynthia tinha razão no que lhe colocara.
Havia deixado a autopiedade sobressair-se à capacidade de perceber o

198
óbvio: Angélica havia somente cumprido sua missão a contento, que
era protegê-la e zelar por sua segurança. Mais que isso, havia sido
muito mais que uma profissional, tinha agido como uma pessoa que
ama acima de tudo. E cada vez que pensava nela um aperto no peito a
fazia sentir medo de nunca mais sentir o abraço da morena, os beijos,
os afagos, a proteção...

Cada vez que se lembrava de que havia saído sem despedir-se sentia
vontade de esmurrar o próprio rosto e repetia para si mesma: burra,
burra, burra. Inúmeras vezes nas duas semanas que se passaram havia
pegado o telefone para falar com Angélica, mas não teve coragem.
Chegara a discar o número e quando a voz melodiosa e grave do outro
lado da linha respondia "alô", desligava sem conseguir pronunciar
palavra alguma.

Por fim decidira que voltaria para Doze Colinas. Precisava falar com
Angélica pessoalmente, e qualquer fosse a reação da morena precisava
procurá-la. Estava disposta a pedir perdão se preciso fosse e aceitar
qualquer condição ou crítica... Sentia a necessidade de tentar
reconstruir sua vida. Com este propósito fizera suas malas no dia
anterior. Havia tido tempo de colocar os negócios do escritório em
ordem e combinar seu afastamento por alguns dias com Cynthia, ou
quem sabe por meses...

A amiga havia lhe dado todo o estímulo e apoio de que precisava. E lá


estava ela, novamente à mercê dos caprichos e dos sacolejos daquele
trambolho voador. Se fosse de carro demoraria muito. Depois de
tomada a decisão queria ver Angélica o quanto antes. Havia sondado
sutilmente o Dr. Mendes por telefone e este comentara que Angélica
ainda estava passando uns dias em casa.

Quando o avião fez seu pouso em solo sul-rio-grandense Cristine sentiu


o coração bater-lhe na garganta. Alugou um carro e rumou na direção
de Doze Colinas. Ao longo do trajeto pôde observar a paisagem, agora
iluminada pelos raios do sol, que finalmente deram fim à temporada
chuvosa de dias atrás. Parecia que estava num lugar diferente. Era
engraçado, pensava Cristine, como até mesmo a paisagem pode ser
subjetiva. Clara e límpida como estava naquela manhã de sábado não
parecia a mesma que conhecera anteriormente, tão lúgubre e sombria.

Ao chegar a Doze Colinas também se surpreendeu com o colorido da


vegetação contrastando com o céu de brigadeiro daquele início de
tarde. Havia almoçado na estrada e ao cruzar o portão de sua
propriedade rumou diretamente para a cabana de Angélica. Devido ao
horário todos repousavam e nem perceberam sua chegada. Estacionou
na frente da cabana e bateu suavemente na porta, ninguém atendeu.

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Levou a mão à maçaneta e a porta estava aberta. Espiou para dentro e
disse baixinho:
- Ô de casa...

Nenhuma resposta. Sentiu o cheiro de Angélica na casa, tudo emanava


o perfume da morena. Era como se a aura da casa estivesse a lhe dar
as boas vindas. Sentia um misto de felicidade e medo, afinal não sabia
como a morena reagiria à sua presença. Olhou em volta e
instintivamente caminhou na direção da estufa.

Naqueles poucos dias que a separavam de sua estada anterior naquela


cidade o clima sofrera uma mudança brusca. O inverno cedera lugar de
vez para o romper da primavera. Apesar do clima ainda permanecer
ameno Cristine pôde deixar seu agasalho mais pesado no carro. Apenas
um suéter de lã por sobre uma camiseta de malha conseguia manter a
temperatura de seu corpo num nível agradável. A calça jeans bem justa
cobrindo a bota de couro de búfalo realçava as curvas de seu corpo.
Cristine movia-se vagarosamente e observava tudo ao seu redor, sob a
nova perspectiva daquele dia ensolarado.

A estrutura que abrigava uma quantidade incalculável de espécies da


flora daquele lugar encontrava-se mergulhada na mais absoluta
quietude. Cristine entrou na estufa sem fazer ruído. Numa primeira
impressão pensou que encontraria Israel logo na entrada, porém se deu
conta de que ele deveria estar fazendo a sesta. Caminhou
compassadamente por entre os corredores de prateleiras de madeira e
estancou quando viu a figura esguia e os cabelos negros de Angélica de
costas para ela, abaixada sobre um vaso, parecendo transportar uma
muda de flor.

Cristine prendeu a respiração e sentiu seu coração disparar. Por


instantes teve a sensação de que Angélica poderia escutar o ritmo de
sua pulsação acelerada. Respirou fundo e aproximou-se lentamente.
Não sabia o que dizer.

Angélica, cabisbaixa, remexia na terra fértil, num vaso de violetas de


flores azuladas. Seu ouvido apurado captou passos silenciosos atrás de
si. A princípio pensou tratar-se de Ariel e decidiu deixá-lo pensar que
não o havia percebido. No entanto uma suave rajada de vento fez o
perfume de Cristine deslocar-se ternamente na direção de Angélica até
ser percebido pela morena. Esta estancou o movimento que fazia na
terra e levantou vagarosamente a cabeça sem se virar para trás. Por
breves instantes ficou tentando descobrir se seu olfato a traía ou se
verdadeiramente Cristine estava se aproximando. Percebendo seu
estado de alerta interno Cristine estancou e ficou a admirar a mulher ali
tão perto, com uma vontade quase que incontrolável de se jogar em
seus braços. Angélica também teve seus batimentos acelerados e

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tentava concentrar seus sentidos atrás de si, ainda sem fazer menção
de se virar.

Cristine deu mais um passo na direção da morena e uma nova rajada


da fragrância de seu perfume deu à Angélica a certeza de que ela
estava ali. Lentamente Angélica se virou para trás, olhando para cima e
encarando a mulher que se aproximava devagar. Cristine olhou para ela
e parou, sorriu timidamente, sem conseguir articular palavra. Sem
saber nem mesmo onde colocar as mãos permaneceu com ambas nos
bolsos traseiros da calça jeans, enquanto encarava Angélica que
também lhe sorria em silêncio. Foi a morena quem primeiro tomou a
iniciativa de se levantar e disse:
- Bem vinda...
- Obrigada... – respondeu Cristine ainda timidamente -...eu... Eu nem
sei o que falar...
- Que tal: boa tarde? – disse Angélica tentando quebrar o clima de
desconforto.

Cristine foi obrigada a sorrir e disse:


- Pois é... Boa tarde. E... Como você está?
- Ahn... Bem... Sobrevivendo. E tu?
- Também... Sobrevivendo. Melhor agora. Muito melhor agora. – disse
Cristine.
- E porque?
- Porque te vi. – respondeu Cristine encarando Angélica nos olhos.

A morena desviou os olhos e deu as costas para Cristine, caminhando


na direção do pequeno tanque nos fundos da estufo, ao lado dos
canteiros de morangos. Cristine passou a segui-la e desandou a falar:
- Angélica... Eu... Olha, eu nem sei por onde começar... É que... Bem...
Eu fui uma estúpida em duvidar de você, em não entender que você
estava só me protegendo, em ter ido embora sem nem ao menos me
despedir... Mas é que eu não sei se conseguiria... Eu precisava de
tempo... De tempo para pensar... Tempo para colocar as idéias em
ordem... Tempo para entender que eu fui muito burra... Tempo pra
parar de ter pena de mim mesma e me achar a criatura mais infeliz do
mundo... Tempo pra perceber que eu tive uma mulher maravilhosa que
quase morreu por minha causa e que eu, na minha estupidez e
autopiedade não me dei conta disso... E... Eu não tive coragem nem de
te ligar, até porque eu precisava te dizer isso pessoalmente... Eu não
podia pedir perdão por telefone...

Angélica lavava calmamente as mãos na água corrente. Com a mesma


calma secou as mãos na toalha pendurada ao lado do tanque, ainda de
costas para Cristine que continuava sua enxurrada de palavras que lhe
brotavam de improviso num tagarelar desenfreado. Nesta feita Angélica
virou-se para a loirinha e deu dois passos em sua direção, ficando

201
defronte a ela, fitando-a de cima, olhos nos olhos. Cristine estancou seu
discurso. Angélica a encarou profundamente e num gesto firme, ainda
em silêncio, a envolveu pela cintura trazendo-a para junto de si e
praticamente erguendo-a no ar, junto a seu corpo. Segurou-a pela nuca
enquanto capturava seus lábios com sofreguidão e loucura. Cristine
abandonou-se naquele beijo e seus medos todos se dissiparam como
que por encanto. Sentiu a boca de Angélica ávida pela sua, as línguas
sedentas procuravam contato num bailado frenético. As mãos pareciam
querer capturar cada curva, cada pedaço do corpo. Os corações batiam
descompassadamente.

Aos poucos foram diminuindo o ritmo ávido do beijo, dando lugar a uma
carícia mais suave. Por fim olharam-se nos olhos e sorriram.

- Angélica, eu... Eu pensei que...


- Tine... – interrompeu a morena.
- O que?
- Cala a boca e me beija! – emendou Angélica enquanto capturava
novamente os lábios da mulher em seus braços.

Depois de novamente abrandar-se a ânsia e a sofreguidão das bocas


fitaram-se novamente nos olhos.

- Eu quase morri de saudade... – disse Cristine.


- E eu de angústia... E medo. – respondeu Angélica.
- Medo?
- Medo de que nunca mais voltasses para cá... Para mim.

Cristine sorriu e respondeu:


- Você me perdoa?
- Vou pensar... – disse a morena provocativa.
- E vai demorar muito pra pensar?...
- Depende...
- Do que?
- Do teu esforço em pedir desculpas...
- Huuum... Isso ta me cheirando a algum tipo de... Chantagem?...
- Quem sabe? Eu chamaria de... Estímulo.
- To gostando dessa conversa... – disse Cristine com um sorriso
maroto.

Angélica a soltou e colheu um dos morangos maduros do canteiro.


Lavou-o e fez menção de levá-lo à boca de Cristine, que tentou mordê-
lo. A morena puxou o fruto polpudo em sua direção e o segurou entre
os lábios logo após dizer:
- hã, hã... Vem pegar...

202
Dessa vez foi Cristine quem segurou a morena com firmeza e
abocanhou o fruto maduro, cujo caldo adocicado escorria pelos cantos
das bocas de ambas, enquanto novo beijo ardente fazia os corpos
esfregarem-se com avidez.

Passada um pouco a urgência de ambas abraçaram-se com doçura.


Angélica questionou:
- Alguém sabia que tu virias hoje?
- Ninguém.
- Nem o Dr. Mendes?
- Nem ele. Eu queria fazer uma surpresa...
- Huumm...
- Confesso que eu estava muito... Receosa em relação à recepção que
teria...

Angélica sorriu docemente e perguntou:


- Receosa por quê?
- Sei lá... Eu saí daqui como uma louca desvairada... Fugindo como uma
tola...
- Posso te confessar uma coisa? – perguntou a morena.
- Claro...
- Eu tinha certeza que virias.
- E posso saber como, senhora-sabe-tudo? – perguntou Cristine
colocando as mãos na cintura e fingindo indignação.
- Palpite. Aliado a uma dose de confiança no meu poder de sedução... –
disse sorrindo provocativa.
- Convenciiiida... – emendou Cristine.
- E também por causa de certos telefonemas que recebi, onde a pessoa
não conseguia mencionar uma palavra sequer...
- E posso saber o que te leva a crer que fui eu quem te ligou?
- Novamente a minha intuição. E o fato de que ninguém se engana de
número tantas vezes... E também por causa da bina.

Desta vez foi Cristine quem teve de sorrir encabulada.

- Pois é... Eu sou uma boba mesmo... Teria sido muito mais fácil ter
confiado em ti... Ter deixado de lado minha autopiedade, ter percebido
o quanto você fez por mim...
- Mas o importante é que estás aqui. – interrompeu a morena – E eu
estou imensamente feliz em tê-la assim... Nos meus braços.

Cristine abraçou Angélica com força e encostou seu rosto no peito da


morena. Sentia como se todo o universo pudesse caber dentro daquela
estufa. Parecia que explodiria de felicidade.

- Vamos até lá em casa – disse Angélica – Tu deves estar cansada da


viagem.

203
- Nem tanto... Mas vamos sim... Eu quero poder ficar mais à vontade...
- Isso é uma proposta?
- Como quiser... – respondeu a loirinha sorrindo.
- Mas então vamos escapar em silêncio, pois se o Ariel sonha que estás
aqui não arreda mais o pé!
Ambas riram do garoto. Angélica continuou enquanto caminhavam para
a cabana:
- Aquele cabeça-de-vento não incomodou muito lá no Rio?
- De forma alguma. A Cynthia mal via o Ariel. Ele arrumou uns amigos
no prédio e passava a maior parte do tempo na praia.
- O cabeçudo sabe se virar! – riu-se a morena.
- Isso sem falar das inúmeras conquistas do garoto! – continuou
Cristine – To começando a acreditar que o sorriso sedutor é genético!
- Pode ser... Quem puxa aos seus...

Cristine gargalhou.
- Ta bom...

Caminharam rapidamente até a cabana de Angélica. Cristine colocou o


carro nos fundos, para não ser avistado por ninguém e entrou pela
porta da cozinha. Angélica a esperava estendendo uma toalha na mesa.

- Tu almoçaste?
- Almocei. Na estrada.
- E ta com fome?
- To.
- Então eu vou preparar um lanche. – disse Angélica.
- Não precisa – respondeu Cristine enquanto envolvia a morena pela
cintura – A minha fome é outra...

E passou as mãos maliciosamente pelos seios de Angélica que se virou


e a abraçou intensamente. De novo as bocas se fundiram num beijo
ardente e em poucos instantes estavam no andar de cima, totalmente
nuas e mergulhadas uma nos braços da outra. Sentiam a excitação
brotar em cada poro e em cada pedaço de pele acariciada. A umidade
dos sexos jorrava em cântaros e o desejo tomava forma em espasmos
de prazer. Deram-se uma à outra sem pudores, sem promessas, sem
medos. Amaram-se com ardor e doçura, com ânsia e mansidão, com
total entrega e incondicional confiança. Permaneceram aninhadas até o
sol se por no horizonte e a noite envolver a terra com seu manto
estrelado. Quando a madrugada ia alta resolveram descer para comer
alguma coisa. Estavam exauridas, porém radiantes de felicidade. Depois
de lancharem retornaram à maciez dos lençóis e adormeceram quando
a luz da alvorada já lançava sua coloração avermelhada sobre as
montanhas do leste.

204
O domingo amanheceu ensolarado e sem nuvens. Por volta das dez
horas da manhã Cristine despertou e deparou-se com Angélica a
contemplar seu rosto com um sorriso sereno e amoroso.

- Bom dia... – disse a morena languidamente.


- Maravilhoso dia... – respondeu Cristine beijando os lábios de Angélica
com suavidade – E mais maravilhoso é o fato de eu não estar
sonhando...
- Pois então...
- Angélica... Eu te amo.
- Eu também te amo.
- Eu nunca senti nada parecido antes, por ninguém. Não com essa
intensidade.
- E a tua... Namorada... Lá na tua cidade? – instigou a morena.
- Não era namorada... Era "ficante".
- Moderninha, ein, moça?

Cristine riu-se e respondeu:


- Na verdade era namoro da minha parte, mas não da dela, logo...
- E agora é o que? – quis saber Angélica.
- Não é mais nada. É passado. O meu presente é aqui, contigo. E é só o
que importa.
- Taí. Gosto desse discurso. – disse a morena sorridente – E... O que tu
pensas em fazer daqui por diante? Vai ficar algum tempo por aqui?
- Vou. Pretendo tocar os negócios da família...
- E o teu escritório no Rio, teus trabalhos em andamento?
- A Cynthia vai dando continuidade. Se precisar dou um pulo lá... Mas
volto logo. Agora tenho um motivo especial para não me afastar muito
tempo daqui...
- E posso saber qual é?... – questionou Angélica fitando-a nos olhos.
- Digamos que, além dos negócios obviamente, é... Uma certa mulher
muito especial... A qual eu não posso correr o risco de deixar sozinha...
A qual me fez ver o quanto é possível ser feliz.
- Nossa... Que pessoa especial! E posso saber quem é??? – brincou
Angélica.
- Depende... Você sabe guardar segredo?
- E por que deveria guardar segredo?
- Para que essa pessoa não fique sabendo e com isso não fique muito
convencida, entojada, sobres si, achando que é a última coca-cola do
deserto, sabe como é...
- Huuuummm... Entendi... Mas pode confiar, eu guardo segredo sim.
Me conta.
- Bom... – disse Cristine – Eu vou te dar algumas pistas. É uma mulher
de belos olhos azuis, pele morena, cabelos negros... Já sabe quem é?
- Nem imagino. – respondeu Angélica com um sorriso sedutor.
- É uma mulher que não resiste ao meu toque... – continuou a loirinha
enquanto levava sua mão até o triângulo de pelos negros e resvalava

205
seus dedos com suavidade sobre o sexo da morena, fazendo-a abrir
suas pernas receptivamente - E se abre... E geme quando eu a
penetro... – neste momento Cristine introduziu dois dedos na cavidade
quente e úmida, fazendo a morena se contorcer e gemer baixinho.
- Hããããn... To começando a imaginar quem seja... – sussurrou Angélica
à meia voz - ...mas me dá mais... hããã... Algumas pistas....
- Ela é simplesmente a mulher mais gostosa que eu já tive... –
respondeu Cristine com a boca colada ao ouvido de Angélica e
movimentando seus dedos ritmicamente – e goza quando eu a toco...
Assim...
- Hãããããã... Delícia... – gemeu a morena.
- E pede mais...
- Hãããã... Mais... Eu quero mais... Assim... huuummm. Continua...
hããããã...

Cristine aumentou o ritmo de seus dedos e em instantes a morena


arqueou o corpo num orgasmo intenso. Ainda com os dedos acariciando
suavemente o sexo de Angélica, a loirinha perguntou ao seu ouvido:

- E então? Já adivinhou quem é?

A morena sorriu enquanto a envolvia num abraço fazendo-a deitar-se


sobre ela.

- Acho que sim.


- ACHA???
- Acho... Se disser que tenho certeza tu me chama de convencida.

Ambas gargalharam.
- Escuta, que tal se a gente levantar? – perguntou Cristine.
- Tudo bem. Só me deixa recuperar o fôlego, por favor. Dois
minutinhos. E, Tine...
- O que?
- Tira a mão do meio das minhas pernas.

Ao meio dia Angélica e Cristine entraram no castelo pela porta da


cozinha, surpreendendo Regina que se preparava para servir o almoço.
Esta não conteve uma exclamação de satisfação:
- Minha filha!!! Que grata surpresa! Quando foi que chegaste? –
perguntou a mulher mais velha abraçando Cristine efusivamente.
- Ontem! - Há pouco! – responderam Cristine e Angélica exatamente ao
mesmo tempo.

Regina olhou para as duas sem entender nada. Ambas titubearam e


desviaram o olhar de Regina, tentando disfarçar. Foi Angélica quem
saltou na frente:

206
- Mãe, Cristine chegou ontem, mas como passou lá em casa primeiro e
estava muito cansada, pois veio de carro, acabou adormecendo e só
acordou agora há pouco. Por isso foi como se tivesse chegado de fato
agora há pouco... E por isso só viemos pra cá agora.
- Ah, bom... – respondeu Regina olhando para as duas com uma
expressão desconfiada, porém sorridente – Mas que bom que voltastes,
guriazinha – continuou dirigindo-se a Cristine – a gente acabou se
acostumando contigo. E agora aqui é a tua casa. O Dr. Mendes sabia
que virias?
- Não. – respondeu Cristine – Eu quis fazer uma surpresa.
- Ele está lá no escritório. Eu já ia servir o almoço.
- Então a gente vai até lá, dar um abraço nele. – disse Cristine.

Neste momento Anemary entrou na cozinha e surpreendeu-se ao ver


Cristine:
- Senhorita... Prazer em revê-la. Só um minuto e já providencio que
peguem sua mala e levem para seu quarto. - agitou-se a governanta.
- Pode deixar Anemary, muito obrigada, mas deixei minhas coisas na
casa de Angélica.
- Ahaa... Pois sim. Então vou avisar Morris de sua chegada, e o Dr.
Mendes também.
- Pode deixar, a gente vai até o escritório e encontra o Dr. Mendes. –
respondeu Cristine.
- Como queira, senhorita.

Cristine e Angélica seguiram pelo corredor de pedras e no caminho


cruzaram por Morris, que as cumprimentou com a mesma formalidade e
inexpressividade de sempre. Ao adentrarem no escritório o advogado
também se surpreendeu com a chegada repentina de Cristine, mas
demonstrou extrema alegria ao revê-la. Abraçou-a afetuosamente,
dando-lhe as boas vindas e ficando feliz ao ser informado de que ficaria
mais tempo no castelo, e tinha intenção de colocar-se à frente dos
negócios da família.

Almoçaram animadamente e na primeira hora da tarde Cristine


convidou Angélica para uma visita ao quarto de seu pai. Queria rever o
atelier.

Ao cruzarem a porta maciça de madeira Cristine fechou os olhos e


aspirou o aroma daquele aposento.

- Tem um cheiro peculiar aqui. – disse ainda de olhos fechados.


- É o perfume do padrinho. Tudo aqui ainda tem a aura dele. Anemary
areja o quarto todos os dias e cuida de tudo como se ele ainda
estivesse aqui... – respondeu Angélica.
- E porque ela faz isso?
- Por que ela é uma eterna apaixonada por ele.

207
Cristine suspirou e sorriu tristemente.

- Mas com certeza ela terá mais lembranças dele do que eu...

Angélica a abraçou carinhosamente enquanto Cristine prosseguia seu


discurso:
- Olha só, já estou eu me colocando numa posição de vítima de novo...
Vou levar um tempo até superar isto.
- Tudo bem... – disse a morena aconchegando-a junto ao peito.
- Mas eu supero. Pode acreditar.
- Eu acredito.
- Angélica, quero ir até o atelier. – disse enquanto se dirigia ao quarto
que conhecera furtivamente em outra ocasião.

O atelier continuava com o odor de um aposento fechado. Logo que


entraram e acenderam as luzes Angélica tratou de abrir as cortinas e
descerrar os tampos das janelas de madeira. Instantaneamente a
claridade do meio-dia invadiu a peça e tudo assumiu outra perspectiva.
As sombras lúgubres cederam lugar às prateleiras simetricamente
alinhadas e em cujas divisórias de madeira repousavam pincéis e tintas
multicoloridas. Tudo parecia diferente naquela manhã.

Novamente Cristine contemplou em silêncio a tela que retratava a


camponesa, cujo rosto estava apagado.

- Imagine esta mulher com o teu rosto – disse Angélica – e pronto: eis
o retrato da tua mãe.
- Eu gostaria de saber por que ele não fez o rosto...
- Ele fez. Mas desfez inúmeras vezes... E refez novamente, e desfez de
novo. Até que um dia desistiu de tentar imaginar como estaria o rosto
deste retrato.
- Será que ele terminaria o quadro algum dia?
- Quem sabe... Talvez olhando pro teu rosto...
Cristine sorriu tristemente e emendou:
- Apesar de tudo fico confortada em saber que de alguma forma fui
amada pelo meu pai... E minha mãe também.
- E é isso que importa Tine... E tenha a certeza que tu conseguiste
transformar a essência do teu pai. O homem amargo cedeu lugar a um
ser esperançoso e confiante na providência divina. O homem descrente
passou a acreditar que existe muito mais do que nossos sentidos
possam perceber.
- Que bom.

Cristine continuou sua exploração no recinto até que ficou frente a


frente com a porta que levava ao que pensou ser um aposento
macabro. Aproximou-se e pode verificar que o pentagrama invertido
estava pendido por falta de um dos pregos em seu suporte metálico. Na

208
madeira da porta havia a marca original da figura mística da chave,
com uma das pontas voltada para o alto, lembrando o contorno do
Homem Vitruviano, de Da Vinci. Riu-se de sua capacidade de
materializar fantasmas e monstros imaginários. Levou sua mão à porta
e empurrou a pesada estrutura para dentro. Instintivamente deu um
passo atrás quando a lufada de ar saturado e mofo invadiu suas
narinas. Angélica passou à sua frente e fez a mesma coisa que fizera no
atelier: abriu as janelas, escondidas atrás de uma pesada cortina negra,
e deixou a luz do sol entrar. Desta vez Cristine pôde observar o
aposento atentamente. A mesa de tampo de madeira desgastada pelo
tempo ostentava ferramentas e alguns animais empalhados. Nas
prateleiras aéreas também havia vários espécimes de pássaros
inanimados. Havia inclusive uma pequena onça e um gato-do-mato,
cuja expressão feroz amedrontaria até mesmo o mais valente dos
mortais.

- Eu não gosto daqui... – disse Cristine olhando ao redor.


- O padrinho também não gostava. Aliás, raramente abria esta peça.
- Mas existe uma passagem para a rua por aqui, não é mesmo?
- Existe. Foi por onde James circulou para cometer seus crimes.
- Eu quero ver onde é.
- Não vale a pena... – ponderou Angélica.
- Mas eu quero. – teimou Cristine.

Angélica assentiu com um balanço de cabeça e dirigiu-se para uma


parte da parede de pedras, onde havia um nicho no qual caberia uma
estátua humana de tamanho natural. Levou sua mão à pesada
estrutura e empurrou para o fundo. Com um barulho de roçar de pedras
a parede maciça deslocou-se para o lado, dando espaço para a
passagem de uma pessoa. Cristine espiou para dentro do que seria um
túnel.

- É escuro como breu. Mas eu quero conhecê-lo.


- Vamos precisar de uma lanterna – disse Angélica dirigindo-se para o
atelier e voltando logo em seguida com um pequeno foco de luz
artificial.

A morena fitou Cristine com seriedade e perguntou:


- Tu tens certeza que quer levar isso adiante?
- Absoluta. – disse Cristine.
- Vamos então. – respondeu Angélica passando pela fenda na pedra e
sendo seguida de perto por Cristine.

O ar naquele lugar era úmido e fétido. A umidade era tanta que se


podia sentir pequenas gotículas que despencavam do teto baixo e
ovalado. Após darem dois passos a porta se fechou atrás delas fazendo
Cristine sobressaltar-se e agarrar-se à Angélica.

209
- Calma. – disse a morena – É assim mesmo. Vamos.

Caminharam vagarosamente por uma estreita passagem cujo chão de


terra abafava o barulho dos passos. O corredor não devia medir mais do
que um metro de largura e Cristine tinha a sensação de que se
estreitava cada vez mais. Colada à Angélica avançava na escuridão
iluminada apenas pelo sutil facho de luz da lanterna. Andaram por cerca
de cinquenta metros quando finalmente Cristine vislumbrou uma nesga
de claridade à sua frente. E conforme iam avançando a claridade se
tornava mais próxima. Após mais dez metros pôde perceber que
haviam chegado à saída. Respirou aliviada assim que sentiu o sol em
seu rosto, ao irromper do fosso escuro, como se tivesse sido parida
para a luz. A saída do túnel era camuflada por uma vegetação
trepadeira que havia formado uma cortina esverdeada, sendo
dificilmente localizada por quem não conhecesse muito bem aquele
local.

Ao sentir-se fora daquele lugar Cristine abriu os braços, como que


desejando acariciar o sol e a brisa fresca daquele início de primavera.
Angélica sorriu para ela e perguntou:
- E então? Mataste a curiosidade?
- Não era só curiosidade. Era necessidade. Já que aqui é minha casa
agora, preciso conhecê-la. E ninguém melhor do que você para ser
minha cicerone.
- Pois que seja então. – concordou Angélica sorridente. – Vamos voltar?
- Vamos, mas aqui por fora. Não quero mais passar por ali.

Retornaram caminhando vagarosamente, enquanto Cristine admirava a


paisagem do lugar. A vegetação refletia os raios solares e assumia
matizes que iam do verde musgo ao verde limão. Para Cristine parecia
um lugar bem diferente do que vira há alguns dias atrás.

Contornaram o castelo por fora e Cristine disse à Angélica:


- Vamos até a sua casa? Eu quero pegar uma coisa na minha mala e
visitar um lugar.

A morena a encarou com uma expressão curiosa, porém assentiu sem


questionar. Rumaram lado a lado, divagando sobre o cotidiano e sobre
a paisagem, sobre Ariel e sobre Chico. Ao chegarem à cabana Cristine
remexeu em sua mala e pegou um pequeno embrulho.

- Pronto. Vamos. – disse a loirinha.


- Para onde?
- Você já vai ver.

***************

210
Angélica seguiu Cristine que enveredou para os lados do cemitério. No
trajeto Cristine pôde novamente observar a luminosidade daquela tarde
de início de primavera. Era como se, no tempo em que estivera
ausente, o Criador houvesse derramado cores e matizes onde antes só
existia o cinza. Uma escala policromática substituía a coloração
monocromática no cenário à volta, como que exorcizando a tristeza e a
monotonia dos dias de chuva intensa. Até mesmo o muro de pedras do
cemitério parecia diferente. Ao cruzarem o portal de ferro as
catacumbas também não pareciam as mesmas. O sol refletia no
mármore branco lavado pela chuva inundando o ambiente com uma
coloração esbranquiçada, que poderia chegar a ofuscar a visão, não
fosse a moldura natural formada pela vegetação esverdeada da mata
nativa.

Caminharam até a sepultura de Artur e ao chegarem em frente a ela


Cristine baixou os olhos, numa oração silenciosa. Angélica também
volveu seu pensamento ao padrinho, embora não fosse muito dada a
rezar. Permaneceram em silêncio, cada qual perdida em suas próprias
lembranças, até que Cristine sentou-se na beira da lápide e
desembrulhou cuidadosamente o conteúdo do pacote que portava.

Angélica percebeu tratar-se de uma placa metálica, com letras em


relevo, que Cristine depositou solenemente na cabeceira do túmulo,
junto às inscrições já existentes. Num ritual silencioso Cristine acariciou
a pedra fria e sentiu uma lágrima rolar por sua face iluminada por um
facho de luz que atravessava a copa alta de um pinheiro frondoso.
Angélica se aproximou e abraçou-a pelos ombros, aconchegando-a
junto a si, numa atitude de quem dá apoio. Ao mesmo tempo a morena
dirigiu seu olhar para a placa e leu em voz alta:

Todo dia Deus existe


No suor de quem trabalha,
No calo duro das mãos,
No homem que planta o trigo,
No trigo que faz o pão.
Deus é constante e perene... É divino.
De tal sorte
Que sendo essência da vida
É o descanso na morte...
Não há vida sem volta
E não há volta sem vida,
A morte não é morte
É só a porta da vida...
Descansa em paz, pai...

****************

211
Cinco meses depois...

Ariel entrou correndo na cabana de Angélica surpreendendo sua irmã e


Cristine trocando um longo e apaixonado beijo. As mulheres
sobressaltaram-se com o rompante do adolescente e desgrudaram-se
num pulo. Cristine ficou totalmente desconcertada, ruborizando-se até a
raiz do cabelo. Angélica fez uma cara enfezada para Ariel e disparou:
- Ô cabeça-de-bagre, tu não usa mais bater na porta não?
- Desculpe, mas pode desestressar. Ou tu achas que eu já não sei de
vocês?
- Sabe o que, guri? – indagou Angélica enfezada.
- De tudo! Te liga, mané. Ta pensando que eu sou um tapado? Em que
mundo tu vive? Eu não sou bobo não.

Angélica colocou as mãos na cintura e encarou o irmão. Sua expressão


se suavizou e ela chegou a esboçar um sorriso. Ariel continuou:
- Olha só, maninha, eu nunca conversei contigo sobre esse lance da tua
vida porque nunca tive oportunidade. Mas eu sempre saquei da tua...
Preferência.
- Ah é, senhor-sabe-tudo?
- Claro. Pois tu nunca apareceu com namorado nenhum, a não ser com
aquelas tuas amiguinhas... E desde que a Cristine chegou ela não sai
daqui, logo...
- Muito perspicaz da tua parte... – disse Angélica ainda mantendo as
mãos na cintura numa pose de açucareiro.

Cristine permanecia emudecida. Ariel aproximou-se da irmã e a abraçou


pela cintura, dando-lhe um sonoro beijo nas faces e complementando:
- Relaxa... Pois eu continuo te considerando a melhor irmã do mundo!

Angélica retribuiu o abraço:


- Eu também... Eu te amo um monte, ô pirralho!
- E vamos combinar que... – continuou Ariel com uma cara deslavada –
bom gosto tu tem!!! – e fez um movimento de sobrancelhas na direção
de Cristine.
- Tu me respeita, guri! – bradou a morena dando um safanão no irmão
– E respeita a Cristine também!

Ariel desvencilhou-se da irmã e ainda rindo da cena passou correndo


por Cristine, abraçou-a, deu-lhe um beijo na face e disse provocativo:
- Mas eu acho que tu podia ter escolhido o irmão mais simpático... - e
gargalhou enquanto desviava com agilidade de uma almofada
arremessada por Angélica.

Já fora da porta voltou-se e gritou para as duas:

212
- A propósito, a mãe mandou dizer que o ônibus da escola chegou! – e
continuou sua corrida para o castelo.

Angélica e Cristine se entreolharam e caíram na risada.


- Que safadinho esse teu irmão, ein? – disse Cristine.
- Pois então... Às vezes ele consegue me deixar sem ação.
- Angélica, será que os teus pais sabem da gente?
- Ora, Tine, obviamente sabem. Tem coisas que até mesmo um cego
consegue ver. Na verdade acho que o pai não quer saber, então finge
que não sabe... – respondeu Angélica – já a mãe leva numa boa, eu já
conversei com ela há bastante tempo.
- Falou de nós???
- Não. Quero dizer, falei de mim, há bastante tempo, bem antes de te
conhecer. Depois não conversamos mais sobre o assunto. Senti que foi
uma conversa sofrida para ela, mas acabou entendendo, ou melhor,
aceitando. Obviamente ela saca da gente.
- Ela me trata tão bem... – ponderou Cristine.
- E nem teria motivo para não fazê-lo. A não ser é claro, pelo fato de
estares desvirtuando a filha dela, fora isso...
- Ah ééé??? Sou eu que estou desvirtuando???
- Claro! – respondeu a morena em tom de brincadeira – Foi tu que
preferiste ficar aqui comigo do que no castelo...
- Não seja por isso! Posso mudar essa situação rapidinho! – respondeu
Cristine fingindo indignação.

Angélica a abraçou pela cintura e respondeu:


- Não mesmo! Agora é tarde. Não te deixo mais sair daqui.

Beijaram-se com doçura.


- A conversa ta boa, mas quem sabe a gente vai até o castelo? –
questionou Cristine.
- Tudo bem.

O ônibus escolar estacionou bem em frente à porta principal. Era mais


uma turma que vinha conhecer o lugar. Uma das mudanças que Cristine
realizou após sua chegada foi transformar o castelo num lugar para
visitação, o andar de baixo, incluindo a biblioteca. O local se
transformou numa espécie de museu onde além do castelo e dos
móveis em si estavam expostos os trabalhos de pintura de Artur e
exemplares de animais empalhados, obras de seu avô. Junto a estes
últimos uma verdadeira coletânea de livros sobre pássaros, animais
silvestres e fauna local. As visitas eram agendadas previamente e
incluíam um café colonial e um passeio pela propriedade, visita à estufa
de Israel e passeios a cavalo. Desde que começaram as visitas Israel
parecia ter adquirido vida nova. A curiosidade e o interesse das crianças
e adolescentes animava o ancião a explicar detalhadamente a origem
de cada planta que havia no local.

213
O mais difícil foi convencer Morris a ficar e participar daquele trabalho.
Ele se achava incapaz de participar daquela atividade. Cristine ainda
recordava a conversa que tivera com ele, onde Morris lhe abrira o
coração:
- Senhorita, eu gostaria de agradecer a sua confiança em me deixar
continuar trabalhando aqui, mesmo sabendo do meu passado... Bem...
Que eu matei um homem...
- Morris, se meu pai confiava em você eu também confio.
- Eu gostaria, se a senhorita me permitir, explicar o ocorrido...
- Sou toda ouvidos.
- Bom... Aconteceu há muito tempo... Eu tive somente uma filha, e
quando ela era bem pequena a mãe dela foi embora. Ficamos somente
nós dois. Eu a criei com o maior esmero, ela estudou nas melhores
escolas, teve toda a minha dedicação, para compensar a falta da mãe.
Acontece que aos dezenove anos ela engravidou. O sujeito desapareceu
e ela ficou em desespero. Como eu a amava muito lhe falei que
criaríamos o bebê sem problemas. Ela não tivera mãe e seu filho não
teria pai, mas teria um avô. E isso bastaria. Bom, senhorita... Acontece
que minha filha morreu no parto. E eu fiquei com minha neta,
novamente sozinho com uma criança pequena. Pietra era uma criança
linda... Como a mãe. E morava comigo, na casa de meus ex-patrões.
Um dia, quando ela tinha oito anos, e morávamos na América, eu fui
buscá-la na escola e ela não estava lá. E ninguém soube explicar quem
a havia levado antes de eu chegar... – Morris calou-se engolindo em
seco e demonstrando sofrimento – Desculpe-me, mas é que nunca
contei isto para ninguém nos últimos anos... A não ser para o Sr.
Artur... Mas... Acionei a polícia e... E ela não foi localizada naquele dia...
e nem nos outros... Ficou desaparecida por duas semanas e quando a
localizaram... – novamente Morris estancou – ela... Estava morta.
- Sinto muitíssimo, Morris... – disse Cristine passando a mão no ombro
do mordomo que enxugava uma lágrima do canto dos olhos.
- Depois de alguns dias tudo levava a crer que houvessem capturado o
bandido. Era um jovem de família rica, muito rica, mas era um drogado.
E nada ficou provado... E ele ficou em liberdade... Em qualquer lugar do
mundo a justiça e a impunidade têm seu preço... Ele estuprou a
menina, matou e ocultou o cadáver. E eu sabia que foi ele, de fonte
segura. Como nada seria feito eu mesmo fiz justiça. O resto da história
a senhorita já deve ter ouvido falar.

Cristine permaneceu calada. Morris continuou:


- Por isso não sei se posso trabalhar com crianças sem lembrar da
minha Pietra...
- Quem sabe você poderia tentar... Pode lhe fazer bem... – pediu
Cristine afetuosamente.

Morris suspirou e respondeu:

214
- Pois bem, senhorita, vou tentar. – respondeu recompondo-se e
reassumindo a postura formal e ereta.
- Obrigada, Morris.

Quando Cristine e Angélica chegaram ao castelo as crianças já haviam


desembarcado e eram ciceroneadas por Morris, que surpreendera a
todos com sua capacidade de dar atenção e limite aos pequenos. Sua
figura imponente despertava curiosidade e os mais danadinhos
chegavam a imitá-lo na postura e no caminhar. Anemary também
participava da visita no interior do castelo. O humor de Morris e
Anemary havia melhorado em muito quando, depois de muitos anos e
depois de muito incentivo por parte de Cristine e Regina, eles passaram
a se enxergar de forma diferente, até que Morris formalmente pediu a
governanta em namoro, "com vistas a um futuro e sério compromisso",
frisara o mordomo solenemente. E Anemary aceitou.

Após a morte de Artur Anemary conseguira se libertar do fantasma de


um amor não correspondido. Isto acabara abrindo seus olhos para
novos horizontes. O fato é que a governanta estava bastante animada
nos últimos tempos, principalmente depois do pedido de Morris, que
também decidira deixar os fantasmas do passado para trás e
reconstruir sua vida. Na verdade ambos estavam se dando uma chance
de viver a felicidade.

Regina era a responsável pelo farto café colonial servido no final do


passeio. Mais algumas pessoas haviam sido contratadas para trabalhar
no local e até mesmo Ariel acabara inserido na atividade: era o
responsável pela recepção inicial dos visitantes, dando-lhes as boas
vindas.

Dr. Mendes continuava assessorando Cristine em todos os negócios da


família e passava grande parte de seu tempo no castelo.

- Bom, parece que não temos nada a fazer aqui. Está tudo
encaminhado. – disse Cristine sorridente.
- Tem razão. Quem sabe vamos dar uma caminhada por aí, lá pros
lados do belvedere?
- Vamos nessa. – concordou a loirinha – Assim a gente aproveita e
namora um pouquinho vendo a paisagem...
- Ta bom... – riu-se Angélica.
- Amor...
- O que?
- Você não está sentindo falta da tua vida de antes? Da rotina do teu
trabalho na policia, da tua casa na capital?
- Tine, tu sabes que eu já estava trabalhando mais na parte
administrativa mesmo. Além do que se eu enjoar dessa nova atividade
de "empresária do ramo do entretenimento infanto-juvenil" eu peço a

215
revogação da minha licença e volto para a ativa. E tem mais uma
coisa...
- O que? – quis saber Cristine curiosa.
- Além de o meu salário ser bem mais... Digamos... Gratificante, a
minha nova patroa é infinitamente mais sedutora do que o delegado
Munhoz.
Ambas gargalharam e se deram as mãos, caminhando na direção dos
fundos da imensa propriedade.

Ao passarem perto das cocheiras Angélica pediu que Cristine esperasse


um momento. Entrou rapidamente na estrutura de madeira e Cristine
pôde ouvir um relinchar familiar ao longe. Em menos de cinco minutos
Angélica voltou montando Rebeldia, uma égua de pelagem negra como
a noite, musculatura firme, porte elegante, e que só permitia ser
montada por Angélica, daí seu nome peculiar. A morena costumava
montá-la quase que diariamente e aproximou-se de Cristine numa
marcha troteada.

Ao ver Angélica se aproximando Cristine reportou-se à sua fantasia


infantil aonde um príncipe encantado, de olhos azuis, lhe chegava
imponente num cavalo branco. Riu-se ao perceber que sua princesa
encantada, de olhos azuis, montava um corcel negro e que, assim como
em suas fantasias pueris, lhe salvara da morte e lhe restituíra a alegria
de viver.

A morena chegou ao seu lado estendendo-lhe a mão para que montasse


com ela. Já acostumada com seu cheiro e com sua voz, Rebeldia
permitiu que Cristine fosse içada pelo braço forte de Angélica e se
agarrasse em sua garupa, cavalgando na direção do belvedere.

De pé e abraçadas no pequeno mirante admiravam a paisagem de cores


vivas e intensas enquanto Rebeldia pastava à sombra do pinheiral
perfumado. Estavam ante um desfiladeiro de paredes cobertas de
vegetação nativa. Bem à frente uma queda d’água jorrava sua cascata
em um turbilhão frenético, na direção do fundo do vale. O lago que se
formava bem abaixo estava envolto por uma névoa fina e
esbranquiçada que se originava devido à força das águas. Na encosta
esverdeada incontáveis borboletas de asas azuis e prateadas
sobrevoavam a copa das árvores. A parte de fora das asas era de um
azul intenso e a de baixo era de uma coloração branca e prateada.
Conforme os pequeninos insetos iam desenvolvendo seu bailado, pela
incidência direta do sol, parecia que o verde das árvores estava
enfeitado com pequenas luzes azuladas que piscavam e
movimentavam-se em círculos.

Angélica e Cristine admiravam a paisagem, abraçadas e em completo


silêncio. Ouvia-se somente a sonoridade da natureza: o ruído intenso da

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cascata, o canto dos pássaros, o som do vento nas copas das árvores, o
silvo agudo das cigarras, o relinchar longínquo dos cavalos, a
movimentação dos pequenos animais na mata.

- Isso aqui parece o paraíso. – disse Cristine mais para si mesma do


que para sua interlocutora.
- Realmente...
- E pensar que, se não fosse por você, eu poderia não estar aqui agora,
admirando esta paisagem, em tão bela companhia...
- Por favor, Tine, não vamos mais falar nisso...
- Mas é verdade. Eu sinto que devo te agradecer a vida toda...
- Tu não me deves nada. A gente já conversou sobre isso.
- Ta bom... Mas cada vez que eu penso que até ha bem pouco tempo eu
cheguei a pensar que esta herança era uma maldição... Chega a me dar
um nó no peito...
- Meu amor... – disse Angélica com doçura envolvendo Cristine pela
cintura – O que importa é que tudo se resolveu da melhor forma
possível... Estamos juntas, amando, trabalhando e é só o que importa.
- Você tem razão. Eu sou uma tonta mesmo em pensar essas bobagens.
- Não são bobagens, porém fazem parte do passado. E nós devemos
viver o presente.
- Eu sei.
- Então...
- Então eu te amo! – disse Cristine enquanto capturava os lábios de
Angélica num beijo ardente.
- Eu também te amo... Muito... – respondeu Angélica enquanto
introduzia suas mãos por baixo do agasalho de malha que cobria o torso
de Cristine e acariciava suas costas suavemente.
- Huuummm... Acho bom a gente ir para casa... – disse a loirinha.
- Concordo plenamente. Vamos aproveitar que o povo todo está
trabalhando e tratar de fazer algo mais... ãããnnn... Prazeroso.

Cristine sorriu maliciosamente e abraçou Angélica com força, beijando-a


com paixão. Retornaram para a cabana novamente na garupa de
Rebeldia e o sol começava a se por atrás das copas das árvores quando
os corpos despidos iniciaram mais uma vez o carinhoso bailado do
amor. E muitos outros ainda estariam por vir...

Fim

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