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[ -U H I V E R • I T A ft I A I
Franco Basaglia
COORDENAÇÃO
Maria Alzira Brum Lemo! ífASi A•....;;a.,..,..~
rjATA --
CONSELHO EDITORIAL
R$..'_,~~J---"'"
Bertha K. Becker
Can dido Mendes eBS~ -
Cristouam Buarque
Ignacy Sacbs
furandir Freire Costa ESCRITOS SELECIONADOS
Ladislau Dowbor em saúde mental e reforma psiquiátrica
Pierre Salama

Coleção Organização

vvs
l o UCURAi'\/"J.
Paulo Amarante
DIRIGlDA POR
Paulo Amarante
Tradução

ALCOOLISMO NO TRABALHO Joana Angélica d'Avila MeIo


Magda Vaissman ,

CLíNICA EM MOVIMENTO
por uma sociedade sem manicômios
Ana Marta Lobosque

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EXPERltNClAS DA LOUCURA
Ana Marta Lobosque

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[Garamond I
Copyright © 2005 by Franco Basaglia
Direitos cedidos para esta edição à
Editora Garamond Ltda.

Diagramação Sumório
Luiz Oliveira

Capa
Estúdio Garamond Apresentação - Paulo Amarante.............................................. 7
Prefácio- Ernesto Venturini 17
Revisão técnica
Sandra Arôca A destruição do hospital psiquiátrico corno
Preparação de originais lugar de institucionalização: Mortificação
Marco Schneider e lib
1 er d a de d o " espaço tec
c. h a d"
o ('1%, S'-I,
/. . 23
Revisão , Um problema de psiquiatria institucional: '
Argemiro Figueiredo A exclusão como categoria sociopsiquiátrica .: 35
Apresentação aChe cos 'e Ia psichiatria? 61
Corpo e instituição - Considerações antropológicas
CATALOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO e psicopatológicas em psiquiatria institucional 73
B313e • As instituições da violência 91
Basaglia,- Franco, 1924-
Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica I Franco Introdução a Asylums 133
Basaglia ; organização Paulo Arnarante ; tradução Joana Angélica d'Ávila Melo. • • ( t1 ',;;(~~!~,
- Rio de Janeiro : Gararnond, 2005
, Carta de Nova York - O doenteartificial ~.;.·..~: 151
336p. - (Garamond Universitária; Loucura XXI) A doença e seu duplo: Propostas críticas sobre
. i"'~! ,. 6
ISBN 85-7617-057-4 o pro bl erna d o d eSVlO .'...:..~.;~ 1 1

1. Hospitais psiquiátricos. 2. Psiquiatria social. 3. Pclltica de saúde mental.


A maioria desviante 187
4. Serviços de saúde mental. 5. Psiquiatria. I. Amarante, Paulo. 11. Titulo. IlI. A utopia da realidade 225
Série.
O circuito do controle: do manicômio à
05-1862 CDD 362.2
CDU 616.89 descentralização psiquiá~ica 237
,. (;1:;-:;~1:J) .
Loucuraldehno ; : 259
Lei e psiquiatria: Para uma análise das normas

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação,


no campo psiquiátrico 299
por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei n" 9.610/98. Prefácio a li giardino dei gelsi 325
Loucum/delírio'

Sem esperança não é a realidade, mas o saber que - no símbo-


lo fantástico ou matemático - se apropria da realidade como
esquema e assim a perpetua.

Horkheimer e Adorno,
Dialektik der Aufklãrung.

""

1. Razão e .loucura
Não existe história da loucura que não seja história da razão. O
próprio esforço de Foucault em seguir o itinerário do silêncio ou da
palavra do louco ao longo dos séculos é uma busca da interpretação
desse silêncio ou dessa palavra, e, por conseguinte, "monólogo da
razão sobre a loucura't.! Mas, nesse monólogo, está implícito um
ato essencial na evolução da própria loucura: o de inscrevê-Ia na
linguagem de quem a escuta e a julga, e de obrigá-Ia a exprimir-se
segundo a lógica dessa linguagem. A história da loucura é a história
de um juizo e, portanto, da gradativa evolução dos valores, das
regras, das crenças, dos sistemas de poder sobre os quais se funda-
menta o grupo social e sobre os quais se inscrevem todos os fenô-
menos no processo de organização da vida associativa.

1 In: Enciclopedia Einaudi, vol. VI, Turim, 1979. Em colaboração com Fran-
caOngaro Basaglia.
2 M. Foucault, Histoire de Ia folie à l 'ãge classique, folie et déraison, Paris,
Plon, 1961, trad. it., Milão, Rizzoli, 1963.

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A coexistência entre racional e irracional e sua separação, ocor- estão misturados e confundidos n.a penúria de uma existência vivida
rida ao longo dos séculos, para afinal reaproximá-Ios quando a ra- sob a ameaça da morte crua, da bestialidade,erro, pecado, culpa,
zão estivesse em condições de neutralizar a loucura, reconhecendo- degeneração, desregrarnenro e vício serão juízos de valor a aproxi-
a como parte de si mesma e, ao mesmo tempo, definindo o espaço marem todas as formas da desrazão; mas também todos os modos
separado em que ela devia existir, não são apenas o sinal da evolu- pelos quais a miséria, a fome, a opressão, a imundície, a doença, a
ção do conhecimento e da ciência. Nem somente o sinal da passa- indigência podem exprimir-se. A face da fome não está distante da
gem da loucura, corno experiência trágica do mundo, ao pecado, à face da loucura, e as vozes de ambas se confundem quando nin-
culpa, ao escândalo, à condenação e à objetivação da desrazão (to- guém as escuta ou quando elas não têm direito à palavra. Quando
dos esses elementos ainda estão fundidos e presentes na loucura; há tolerância, isso significa que a loucura está confundida com a
aos nossos olhos críticos). Nem apenas o sinal de uma animalidade vida: se, na Idade Média, a loucura paria monstros, a vida não esta-
que aflora ou explode até que a razão venha criticá-Ia, diferenciá-Ia va tão distante dos monstros paridos pela loucura. Períodos de grande
e separá-Ia. Nem, ainda, unicamente a medida pela qual os medos e escassez, epidemias, pestes, crenças, ritos, crueldade, opressão e
as misérias do homem e do mundo são anulados mediante o suplí- domínio estão impregnados pela mesma violência que impregna es-
cio, a punição, a repressão, a autoridade, a ciência, o poder. ses monstros. A religião não produz os mesmos terrores e não nas-
O que essas passagens pressup~em é um denominador comum: ce' dos mesmos terrores? Naquela época, leprosários e asilos não
a quantidade e a qualidade do espaço de que o homem - cuja subje- hospedam a doença, mas a indigência doente, segundo um espírito
tividade é delimitada e definida por um corpo relacionado a outros caritativo e piedoso; assim como a prisão hospeda todas as misérias
corpos e outras subjetividades - dispõe para expressar as necessi- do mundo que se expressam através da desrazão, ameaçando a con-
dades dessa subjetividade e desse corpo, mediante a razão e a vivência civil e as crenças comuns, até então permeados por ele-
desrazão, a saúde e a doença, a verdade e o erro. Não se trata de um mentos confundidos de razão e desrazão. O delírio, como expres-
problema de piedade,justiça, tolerância, consciência e conhecimento são subjetiva do louco - mesmo que o termo signifique "saída do
diante do sofrimento, da derrota, da queda: é tudo isso mas, tam- sulco", segundo a origem etimológica' - é ainda a mediação entre
bém, algo mais global e extensivo, que compreende o homem na uma transcendência que engloba e explica tudo e o mundo de misé-
totalidade de suas necessidades e de seus desejos e a atitude assu- ria e crueza (justificado por essa transcendência) no qual se con-
mida, diante dessa totalidade, pelo grupo social em que ele está funde. A loucura ainda não tem uma voz autônoma, porque as ne-
inserido e pela organização que deveria responder a tudo isso. cessidades do homem, são ou doente, estão privadas de voz, e a
Enquanto todas as necessidades da coletividade não adquirem a resposta é confiada à caridade e à punição. Enquanto a miséria se
-

força de expressar-se como perguntas que exigem respostas, a lou- cala, ou se consegue barrar-lhe qualquer tentativa de tomar a pala-
cura é encarada sob a mesma escala dos outros fenômenos. En- vra, a loucura poderá confundir-se na linguagem comum da neces-
quanto se tratar de necessidades indiferenciadas, nas quais razão e
3 Ver adiante. no ponto 5 ("A palavra à loucura") , a citação da Encyclopédie
desrazão, loucura, delírio, violência, precariedade, crenças e ritos (N. do E.).

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sidade que ainda não clama por respostas, ao passo que os poucos fato o início da 'invalidação da voz da loucura, justamente no mo-
que dispõem da possibilidade de vida encontram por si sós os mo- mento em que lhe é reconhecido o direito à palavra enquanto enfer-
dos de enfrentá-Ia. As definições dadas para a loucura inscrevem-se midade.· Criminal idade e loucura, entendidas como. fenômenos de
no mundo mágico, religioso, ritualístico de que está impregnada a natureza ou contranatureza, tinham em si um caráter irredutível: o
cultura, que a engloba, assim como engloba a miséria, na totalidade . cárcere segregava e punia um ato delituoso ou considerado como
dos fenômenos humanos naturais/sobrenaturais. tal, que não se entendia ou não se podia modificar e corrigir. Nessa
É no momento em que a miséria começa a.reclamar seus direitos segregação comum, está implícito o reconhecimento da existência,
que se desencadeia uma operação tendente a identificar e a separar no homem, de uma e de, outra possibilidade, as quais são punidas
as diversas vozes que a povoam, para não responder à globalidade quando representam uma ameaça à coletividade e aos valores desta.
desse grito; não poracaso, é nesse momento histórico que se co- O juízo que investe contra elas, assim como o ato que as segrega,
meça a identificar também a voz da loucura. tem apenas um significado punitivo.

Pinel, quando - dentro da lógica iluminista, e sob o impulso das A separação da loucura desse amálgama confuso de desrazão e
instâncias libertárias da Revolução Francesa - libera os loucos das culpa, incrustadas de miséria, e o reconhecimento de sua dignidade
correntes que os mantinham confundidos com a delinqüência, na de enfermidade implicam, ao contrário, um juízo por parte da "ra-
ilusão de dar-lhes a palavra ao reconhecer-Ihes a dignidade de en- zão", que começa a separar aquilo que se lhe assemelha daquilo que
fermos, na verdade começa a separar o mundo da miséria eda ela não reconhece, ou que só aceita reconhecer como próprio no
desrazão, atribuindo à loucura aí confundida uma conotação quali- moment~ em que o circunscreve e o domina, pondo entre parênte-
tativa diferente: o que implica a fragmentação das cada vez mais ses a miséria de que o vê impregnado. O que antes era aceito como
prementes demandas globais das massas e a. estruturação de uma unia das possibilidades do humano, e cruamente punido se fosse
nova lógica que permita eludi-las, mediante a elaboração de respos- ameaçador para a coletividade, toma-se agora objeto de uma pieda-
tas técnicas separadas, das quais a frenologia é um exemplo. Quan- de e de uma compreensão em que a responsabilidade pelo ato é
do as multidões mudas, privadas de voz, estão para tomar a pala- imputada à .desrazão, e não mais ao indivíduo, do qual, porém, a
vra, a Razão - já identificada com o poder=- começa ~ distribuir a razão se apropria no momento mesmo em que o desresponsabiliza.
uns e outros as modalidades, os tempos e os lugares em que pos- Assumindo sobre si a responsabilidade pela desrazão, a razão - nes-
sam falar, mas nos termos da sua linguagem e da sua lógica, as se ato humanitário e científico - tem em seu poder o homem
quais, implicitamente, cancelam a globalidade das necessidades do "desarrazoado", visto que, não podendo'punir o ato reprovável, acaba
homem através de sua fragmentação. punindo o indivíduo inteiro, mediante a punição de todo o seu com-
portamento, pelo acionamento dos processos de controle e de mo-
A passagem do cárcere ao manicômio - para além do significado
dificação da conduta sobre os quais irão centrar-se o "tratamento"
humanitário implícito nessa operação que, todavia, dava como cer-
e a "terapia". O delírio, como expressão subjetiva da loucura, é
to que criminosos e delinqüentes pertenciam a uma s~b-humanida-
então objetivado como núcleo potencial do comportamento associal
de à qual competiam prisões, cárceres, suplícios e torturas - é de

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e considerado em si mesmo uma ameaça que, não mais podendo ser humana, já que a razão dominante se tomou a Razão' Humana. A
punida, será controlada, prevenida, corrigida, modificada, isto ~, fratura é irreparável: impondo à loucura sua própria linguagem, a .
"tratada": na objetivação do delírio, a loucura desaparece como en- razão a impede definitivamente de falar e de expressar aquilo que é,
fermidade. embora - ao longo dos séculos - continue a conceder-lhe a palavra.
Tal operação terá conseqüências essenciaisna evolução da lou- A história da psiquiatria consiste essencialmente nesse contínuo dar
cura, e é por isso ,que a análise desse momento histórico é crucial a palavra a alguma coisa que não pode expressar-se numa lingua-
para aquilo que ela se tomará depois da "separação". Quando a Ra- , gem imposta: a linguagem da loucura - o delírio":" sendo a expres-
zão começa a julgar a loucura, a distância entre razão 'e desrazão já são subjetiva de necessidades e desejos que não têm possibilidade
está fixada, e constitui a distância que secria entre o sujeito do juízo de exprimir-se a não ser mediante a irracionalidade e a desrazão,
e o objeto julgado. A objetificação da desrazão é a premissa indis- jamais poderá ser a linguagem da.racionalidade dopoder, A impos-
pensável ao domínio, e a razão só poderá admitir a desrazão como sibilidade de comunicação entre razão e loucura fica, assim, implí-
parte de si na medida em que já a tiver objetificado. Mas o que cita na autodefinição da razão e no modo pelo' qual ela define a
importa sublinhar é que a era da Razão, na qual; em nome da vitória desrazão. A nova racionalidade reconhece a desrazão como parte de
do homem sobre a natureza, desencadeiam-se esses processos de si - como parte do homem que ela se arroga o direito de representar
diversificação das necessidades, corresponde ao nascimento da - no momento em que descobre a maneira de controlá-Ia e dominá-
racionalidade do- novo poder, e por conseguinte à estruturação da )9; a relação que ela estabelece é, desde o início e por sua própria
razão burguesa como única razão reconhecida. Essa operação de natureza objetual, uma relação de domínio, visto que se tenta refre-
distinção e separação entre razão e desrazão comporta, assim, a 'ar a desrazão num esquema interpretativo rígido e fechado, como
separação entre aquilo que se exprime na linguagem do poder (a será o da "doença mental". A loucura- circunscrita e definida pela
nova racionalidade) e aquilo que, seguindo a lógica das próprias razão- deverá exprimir-se segundo esse esquema interpretativo que
necessidades e dos próprios desejos, se exprime com a própria lin- lhe é estranho, ou seja, na linguagem da doença, que é a linguagem
guagem, minando implicitamente as bases racionais do novo poder. da racionalidade do poder,
, em que a subjetividade do louco, expres-
Dar um nome a essa linguagem confusa e separá-Ia significa, então, sada no delírio, será definitivamente objetificada.
salvaguardar a racionalidade do poder, obrigando a loucura a expri- ' Aquilo que, antes, era apenas crua punição da desrazão (cárce-
mir-se segundo o código de decifração preparado pela nova re, prisões, suplícios) adquire - por causa da intervenção médica
racionalidade, que a reconhece como doença - o aspecto da piedade, da solicitu-
Sobre essas bases, no momento em que a razão dá a palavra à de, do tratamento; piedade, solicitude e tratamento que, mediante a
loucura ou se dispõe a escutá-Ia, a incomunicabilidade entre as duas identificação e a implícita confirmação definitiva da
"-'- '
linguagens toma-se impreenchível, ,porque quem dá a palavra de- incomunicabilidade da linguagem da loucura em relação à
termina os modos pelos quais o outro deve se exprimir, sob pena de racionalidade do poder, se traduzem novamente em punição, ado-
ver-se definitivamente excluído do plano da compreensibilidade tando as mesmas medidas segregativas e os mesmos juízos de va-

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lor que envolvem todos os fenômenos da desrazão, que a razão para o que "presumivelmentepode acontecer" está na base daquela
quer conter e controlar. O fato de a loucura tornar-se "doença men- que será a gradativa invasão da intervenção médica no terreno da
tal", com sua dignidade e seu estatuto, não impede que a razão, para conduta humana; e a sombra da transferência do louco do cárcere
afirmar seu domínio e sua diversidade, continue a separá-Ia e segregá- para o manicômio pesará sobre o próprio conceito de "doença men-
Ia por trás dos mesmos muros e com as mesmas correntes de que tal", porque a doença "transferida" foi identificada sobretudo nos
a libertou. A piedade que leva a reconhecer para a doença o direito a atos delituosos cometidos por "insensatos" que a nova racionalidade
um espaço próprio se traduz no tratamento/punição que consiste na começa' a ver como irresponsáveis, considerando-os "doentes". Essa
obrigação de entrar em um espaço estranho, separado, diferente.. sombra irá projetar-se sobre a "doença" e penetrar-lhe as zonas
em relação' à humanidade racionaL Na verdade, a intervenção psi- mais profundas, determinando aquela que se tornará, mais tarde,
quiátrica e a relação da ciência Idarazão) com a "doença mental" sua natureza essencial: a periculosidadesocial.
permanece uma relação de punição, exatamente como aquela que a O ,caráter da nova racionalidade do poder pressupõe, portanto _
mantinha confundida com a criminalidade e a delinqüência; relação por sua própria essência - uma racionalidade no comportamento
depunição suavizada pela ideologia médic~ que recobre, com um humano a ela adequada e correspondente, sob pena de exclusão de
ato de justiça e piedade, o embate - cujo vencedor está definido de dentro da racionalidade humana. Para essa razão iluminada, a lou-
saída - entre uma racional idade abstrata e a humanidade racional! cura faz parte da natureza que ela combate e desej a dominar. O
irracional que a nova razão e o novo poder se aprestam a organizar. "saco cheio de ar" (follis), com o qual antigamente se representava
Mas esse direito a um espaço próprio, reconhecido para a doen- a loucura e ao qual o nome desta remetia," não encontra lugar nessa
ça, comporta ao mesmo tempo a ampliação do dever de entrar nes- racionalidade que quer explicar e dominar tudo. A cabeça não pode
se espaço estranho para todos os comportamentos que, aos olhos estar cheia de vento, nem os delírios ser impelidos pelo vento, nem
da razão, revelem a presença da desrazão. Isso significa que a iden- as almas 04 os corpos ver-se possuídos por espíritos e demônios.
tificação da "doença mental" e a atitude científica diante dela facili- Deve existir uma explicação racional, científica. Mas a única expli-
tam o englobamento gradual, sob o controle da razão - por conse- cação que essa razão abstrata consegue dar é que se trata de uma
guinte, no reino da punição -, de todas as potencial idades ainda não "doença", e a palavra "doença'? - mais científica e digna do que o
explicitadas de associalidade e de ameaça. O que comportará con- , ar soprado de um saco vazio - ocupará definitivamente o lugar da-
seqüências deletérias em termos de controle do comportamento quele sopro de vento. Agora, o "saco" estará preenchido por uma
humano, até chegar-se à rígida definição de normalidade e anorma- doença da qual os diversos modos de expressar-se e os diversos
lidade, do modo como a conhecemos na idade moderna. Se o cár- . graus de vizinhança ou de distância da "normalidade" humana serão
cere punia o delito do "insensato", o manicômio chegará sobretudo minuciosamente descritos, sem que se consiga ver os nexos entre
a punir as ameaças, as intenções, os perigos presumidos num com-
'4 O autor refere-se ao termo italiano follia, loucura, fr. folie; ambos com a
portamento que não apresente claramente o caráter da racionalidade. mesma origem latina do port. fole (N. da T.):
A ampliação do domínio da razão pata "o que poderia acontecer" e 5 ltal. mal attia, fr. maladfe,po.rt. ant .. ma/adia (N. da T.).

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essa normalidade e a racional idade do poder que a impõe 'como a interdição). A loucura da não-miséria está sempre fora da lei, como
única possível, impedindo a expressão de tudo o que não se lhe tudo o que se refere ao poder: as regras, as providências são
assemelhe. Mas essa racional idade não coincide com o cotidiano da estabelecidas para os outros. Portanto, não é para essa loucura que
vida.do homem, cotidiano que é um misto de "razão" e "desrazão", se volta a Razão, mas para a loucura segregada, institucional, en-
e só poderá ser desmentida. A "doença mental" e a ciência que co- carcerada, que é sempre a loucura da miséria - a qual é essencial-
meça a ocupar-se dela- traduzem-se num dos instrumentos essenci- mente miséria, uma vez que a outra loucura pode continuar a expri-
ais mediante os quais a razão burguesa, tomada ideologia dominan- mir-se alhures, fora da segregação. A relação da razão com essa .
te, consegue enfrentar aquilo que a desmente, iniciando a lenta se- loucura é, portanto, a relação da razão com a miséria. Mas uma
paração entre os comportamentos normais, correspondentes à miséria que, naquele momento histórico, está reclamando aos bra-
racionalidade do poder, e os anormais, dotados de uma racionalidade dos, e à qual convém dar uma resposta, já que acabaram de ser
própria e insubordinável a regras que lhe sejam estranhas - com- proclamados os direitos de todos os homens, baseados na liberda-
portamentos anormais que, enquanto tais, devem encontrar um es- de, na igualdade e na fraternidade.
paço separado para serem reprimidos. Reconhecer a dignidade de doença nessa loucura/miséria é um
dos modos de não responder à globalidade da miséria e de dividir
2. Razão e miséria seus diversos aspectos, mantendo exatamente as coisas como são;
o momento histórico em que se inicia - com o reconhecimento, hipótese que será confirmada pelas sucessivas evoluções do mani-
no delírio, da dignidade de doença - essa passagem da loucura à cômio em suas reciclagens institucionais, cuja relação primordial
. categoria de "doença mental", c em que a razão consolida os funda- continuará sendo com a pobreza e a indigência, por intermédio da '
mentos de seu império, possibilita compreender outro aspecto es- doença. Aos ouvidos de quem a escuta ou aos olhos de quem a
sencial do processo racional, humanitário, científico, pelo qual _~ observa, a loucura, uma vez separada do conjunto de necessidades
"doença" torna-se a mediação entre a razão (dominante) e amiséria. indiferenciadas que constituíam o panorama da associalidade gené- '.
Se a razão burguesa tornou-se à Razão Humana, a relação entre rica e segregada com a qual estava confundida, assume tons,
razão eloucura "segregada" e essencialmente uma relação entre inflexões e gestos que já não podem ser ligados àquele mundo indis-
poder e miséria. A loucura da não-miséria se explica alhures, fora tinto de necessidades que não obtinham respostas, passando a ser
do território onde as respostas às necessidades ou são coletivas ou decifrados e lidos como um conjunto de sinais dos quais se dá uma
não existem. A seu modo, cada um a enfrenta, tolera ~u elimina, definição abstrata, sem explicá-Ios. A doença, identificada pela in-
tornando-a "rnísera" (as interdições dos nobres e dos ricos redu- tervenção médica no emaranhado da desrazão e da culpa, é
zem o louco à miséria a fim de tutelar o patrimônio); o poder e o transferida da esfera da punição para a de um tratamento que con-
dinheiro dão tons extravagantes e bizarros- à loucura, enquanto esta tinua a ser punição, porque a miséria que a constitui, e que determi-
não lesar os interesses patrimoniais. Seja como for, não se trata de na o caráter essencial da relação que se continua a manter com ela,
um problema que exija medidas jurídicas, leis, intervenções (exceto não muda nessa transferência. A "doença" torna-se então a media-

268 269
"";rc::'1P,::~~

ção entre a nova racionalidade do poder e uma miséria que deve ser loucura, uma vez contida na camisa-de-força de uma "doença men-
organizada, subdividida, [racionada em tantos setores quantas fo- tal" objetificável, quantificável, definível em termos científicos pela
rem as respostas técnicas preparadas, a fim de que não sejam alte- racional idade do poder. O que convém sublinhar é que a fratura
rados o equilíbrio entre penúria e abundância e, sobretudo, sua dis- entre razão e loucura está implícita na própria natureza dessa nova
tribuição. racionalidade, a qual pressupõe o domínio e a fabricação de uma
O que teria sido da.loucura, caso se tivesse começado a respon- norma em que ela se reflita e da qual seja excluído tudo o que não se
der àquele mundo de 'necessidades confusas e indiferenciadas que lhe assemelha, a partir elo momento em que "o emergir do sujeito é
estava tomando a palavra? O que teria sido a psiquiatria, se, coeren- , pago com o' reconhecimento do poder como princípio de todas as
te com sua. proclamação, tivesse "tratado" a si mesma - sem a relações"." A doença é o discurso racional do poder sobre a loucura,
mediação da doença tomada "instituição" - do sofrimento que nas- e o poder pode dominá-Ia --:excluindo-a num espaço que a reconhe-
ce na opressão; na repressão da subjetividade e do corpo, na im- ça e simultaneamente a englobe - na medida em que ~la não se
possibilidade material e psicológica de expressar as necessidades exprime nos termos da sua racionalidade imposta como
dessa subjetividade e desse corpo, antes que a elas se desse um Racionalidade Humana; assim como domina - excluindo-o num es-
nome? Ou se Pinel - em vez de libertar o louco das correntes - paço que o reconheça e simultaneamente o englobe - tudo aquilo
tivesse esclarecido a relação que se estava tecendo entre razão e que não se exprime nos termos da sua racionalidade. A loucura en-
poder, relação que determinaria a natureza da desrazão e da loucu- tra, portanto, nessa racionalidade, enquanto dominada e excluída,
ra? Se a psiquiatria tivesse sido "ciência" no sentido de um saber prisioneira, segregada, emudecida pela linguagem da doença; como
que se e~trutura dialeticamente em sua relação com o poder? Se - também entra a miséria, se aceita a própria derrota, ou seja,. se
para além da piedade e da atitude científica e humanitária com as continua a ser miséria e continua a calar-se.
quais, tentara devolver a subjetividade ao louco - tivesse buscado, Sobre essa ambígua e gradativa fabricação de uma ?onna que
naquele mundo de necessidades e desejos, o momento em que a responde às exigências da racionalidade burguesa; a psiquiatria co-
não-resposta, a opressão, a: violência podem fazer explodir uma meça a erigir o labirinto das suas classificações (a subdivisão dos
opressão e uma violência que ganham o nome de insanidade? Se diversos quadros clínicos, as nuanças entre analogias e diferenças,
não tivesse contribuído para confundir as cartas na mesa, identifi- a definição da qualidade dos delírios, as diversas especificações sobre
cando uma doença que, por ser definida nos modos como foi defi- seusconteúdos) , já sem preocupar-se, ou preocupando-se cada vez
nida, comportava uma razão senhora e uma desrazão serva e sub- menos, com o que é a loucura, com o que ela exprime e o que ela
metida? representa. Assim como começa a erigir suas instituições - com as
Entender os momentos desse processo, surpreender as passa- respectivas práticas de punição, de controle, de tortura, agora
gens dessa mediação constituída pela "doença" e, ao mesmo tem-
po, o papel que a ciência exerceu na orgànização separada dos fe-
6 M. Horkheimer e Th. W. Adorno, Dia/ektik der Aufklãrung, Philosophísche
J.
nômenos, é o ponto crucialpara a compreensão daquilo que será a Fragmente, Amsterdã, Querido, 1947, trad. it. Turim, Einaudi, \976.

270 27\
avalízadas pela ciência "- sem considerar o profundo nexo entre a mento subjetivo do indivíduo - expressado em termos irracionais _
ideologia da norma que a constitui, e que ela tutela com sua prática o qual requeria medidas diferentes da punição que o associava à
e sua teoria, e uma organização social estruturada sobre a divisão delinqüência. Nas novas normas,· esse sofrimento só é levado em
do trabalho e das diversas disciplinas, a fim de apropriar-se do indi- consideração quando é denominado "doença" e confiado, por lei, ao
víduo que deve aderir àquela norma. corpo médico e a uma instituição que se declara de tratamento;
A ciência tem definitivamente a ver com uma "doença" (sobre a corpo médico e instituição cuja tarefa, contudo, continua sendo o
qual ignora tudo, exceto as especificações nomin~lísticas qu~.lhe controle e a contenção da periculosidade social e da potencial sub-
atribuiu), contida em instituições de tratamento e de custódia; mas a versão da ordem.
natureza dessa "doença" e dessas "instituições" (por conseguinte, a O corpo médico e sua ciência, cumprindo essa função
natureza do tratamento é da custódia que nestas se praticam) ficará institucional, justificam em termos científicos medidas adotadas no
profundamente ligada à relação que a racionalidade burguesa conti- campo jurídico, medidas que, reforçadas por esse aval médico, pro-
nua a manter com a "miséria" que essas instituições têm a tarefa de jetam uma luz cada vez mais sinistra sobre a "doença" e sobre as
conter e controlar por intermédio da "doença". respostas "científicas" necessárias a enfrentá-Ia. Doença, psiquia-
tria e instituição hospitalar reduzem-se a um mero nominalismo,
3. Razão/Est,ado e norma dado que a doença é a periculosidade presumida que convém con-
N a primeira metade do século XIX está em andamento, na Euro- ter; a psiquiatria, um ramo da justiça que pune todo suspeito de
pa, uma fase organizativa em que os Estados, na estruturação e periculosidade; e a instituição hospitalar, o cárcere em que essa pre-
centralização graduais dos próprios aparatos, fundamentam e re- sumida periculosidade fica segregada. A psiquiatria como ciência
forçam as instituições que dão ordem e regras positivas à"socieda- nasce e morre no momento mesmo em que se efetua o contrato.
de civil". Em 1838 o Parlamento francês aprova a primeira lei euro- entre medicina ejustiça; daí em diante, a psiquiatria estará definiti-
péia sobre os alienados e, a partir desse momento, a psiquiatria vamente do lado da justiça, e por conseguinte do lado do poder,
adquire um corpo jurídico-institucionalque será de terminante na esquecendo o sujeito para o qual existe e cujo sofrimento justificou
evolução da teoria e da prática dessa disciplina. seu próprio nascimento.
A definição legislativa extingue a ambigüidade de uma doutrina O pensamento racional burguês conseguiu encerrar na racionalidade
que, declarando ter a ver com uma "doença", está sempre envolvi- institucional (o manicômio) a loucura, a qual, todavia, já perdeu seus
da com problemas estranhos a esta: periculosidade e ordem públi- sinais característicos para ser reduzida a puro elemento de distúrbio
ca, mas também miséria e indigência. Tal ambigüidade, contudo, da "sociedade civil". Amesquinhada, esvaziada de qualquer significa-
será resolvida pelo conjunto de normas médico-jurídicas, fazendo do trágico e subjetivo, espolíada da historicidade da experiência pes-
pesar a balança para o aspecto "periculosidade" e "ordem pública", soal, afastada da vida da qual faz parte e da qual é expressão,
pondo entre parênteses miséria e indigência e esquecendo o ele- objetificada por uma razão que a define, para melhor invalidar-lhe a
mento que levara à distinção entre loucura e criminal idade: o sofri- voz, como "doença" a ser tratada, a loucura pode agora entrar na

. 272-- 273
lógica da ordem social e do pensamento científico, sendo acolhida, a pela qual todo suspeito de loucura será rigorosamente banido.
contragosto, num espaço "natural" para ela, preparado por um Esta- A organização das relações capitalistas de produção determina
do que se ocupa da organização das necessidades dos cidadãos e por . uma realidade na qual o grau de eficiência requerido para se chegar
uma ciência que. se ocupa de' uma doença cujo elemento essencial ao mundo produtivo vai-se tornando cada vez mais alto. A distância
consiste na periculosidade para a sociedade. entre quem o alcança e quem despenca se amplia, 'e quem despenca
A Razão alcançou seu triunfo: o mal (a natureza) é sempre, - ou não consegue achar lugar na organização do trabalho, trans-
dominável, basta identificá-lo e circunscrevê-Io, O fato de a socie- formado no único valor socialmente reconhecido - vê-se cortado
dade humana ter em si as características de imprevisibilidade e de do mundo, privado de identidade e de direitos. Nessa nova dimen-
periculosidade é aceit? pela razão apenas teoricamente; se assim .são, o homem produtivo é, formalmente, "livre" ator do contrato
não fosse, ela teria de reconhecer em si mesma esses insidiosos social; o.improdutivo fica à margem deste, e a única identidade que
elementos. O perigo, a ameaça são, sim, inatos à natureza do ho- lhe é oferecida é a de fazer parte da marginal idade improdutiva. Mas
mem, mas é especificamente em certos homens que a desrazão se a marginal idade improdutiva (que compreende incapazes, fracos,
personifica; então, basta identificá-los e isolá-los, antes que produ- retardados, deficientes, mulheres, velhos, mas também os desem-
zam o contágio e destruam a ordem racional. pregados de que a produção não necessita - em suma, o mundo dos
, Mas em que consiste essa ordem racional que está impondo suas desafortunados que, segundo as palavras de Malthus, "na grande
regras a todos os setores da vida associativa? Trata-se ainda de loteria da vida tiraram um bilhete perdedor'") não pode circular li-
uma razão abstrata, "iluminada", que vem perseguindo o sonho de vremente, e a "sociedade civil" é obrigada a defender-se dela a fim
lJm mundo de homens felizes, livres da escravidão diante da nature- de que o bom andamento do trabalho e do "livre" comércio não
za doravante dominada, dirigidos pela inteligência e pela ciência que sofra entraves.
. contribuíram para esse domínio e para essa felicidade? A razão lu- Para responder a tais exigências - uma vez identificada a norma
,~inosa e cheia de esperanças, que falava de si porque falava de um com a eficiência e a ,produtividade -, tudo o que está fora dessa
homem que não existe, de uma realidade que não há, presumindo lógica cai sob a marca da invalidação, para a qual existem as insti-
que o Homem Racional pudesse superar e vencer todas as contradi- tuições adequadas e as ideologias científicas específicas: institui-
ções, fez o jogo do novo poder, que se vinha estruturando, e se ções e ideologias cuja tarefa é a de tutelar e salvaguardar a liberdade
tornou a sua ordem, sua base racional. O resultado concreto da de quem age dentro do contrato, mediante o.controle total da exis-
idade das luzes é a racionalidade do estado liberal, racionalidade que tência de quem não faz parte dele. À organização social defende,
,sustenta e fundamenta o desenvolvimento da indústria e do capital, portanto, os princípios de liberdade sobre os quais se constituiu,
a exploração do homem e a divisão do trabalho que podem garantir
esse desenvolvimento. É essa racionalidade que dará conotações
7 Th. R. Malthus, An Essay on the Principie of Population, as it Affects the
novas, mais precisas e mais rígidas;anormasegunôo a qual uma Future lmprovement of Society, with Remarks on the Speculation of Mr.
Godwin, M, Condorcet and Others Writere, Londres, Johnson, 1798, trad.
pessoa é englobada no consórcio social ou dele excluída: a norma it., Turim, Einaudi, 1977,

274 275
delegando às suas instituições a gestão' das necessidades dos cida- mas é estranha à do marginalizado, simplesmente porque a
dãos, segundo pertençam eles ao mundo da contratualidade ou ao racionaÍidade deste se move no plano de necessidades que a outra
d a invalidação. O mundo da invalidação coincide com a racional idade não contempla. Todo o comportamento do margina-
improdutividade social, que deve ser incluída na nova racionalidade, lizado é estranho aos valores, às crenças; às regras pelas quais ele
por meio de um sistema de apar~tos institucionais destinádos a blo-. é excluído, e a facilidade com' que tal comportamento pode ser.
quear qualquer possibil.idade de expressão autônoma dos sujeitos invalidado é óbvia. Óbviaa ponto de ficar, cIaroque a própria
' .
que 'eles gerenciam. rigidez das regras e das sanções previstas para quem delas se des-
A liberdade tutelada e defendida pela organização é, assim, prer- via é construí da. essencialmente com ofim de controlar, medi~nte
rogativa de quem trabalha (enquanto se mantiver em condições de a invalidação, as faixas de indivíduos excluídos pela organização
trabalhar e no grau de eficiência requerido, quem trabalha dispõe da do trabalho. Se essesqxcluídos do banquete resultam "doentes",
liberdade de trabalhar, para que o produto dotrabalho seja tutelado),, os comensais podem continuar a comer. tranqüilns, já que a orga-
.
ao passo que quem estiver privado dessa ~arantia corre sempre o n'izaçãosoci~I é tão "liberal" que se preocupa em co~ter as "doen-
risco de tornàr-se'objeto do processo deinvalidação, mediante a ças" daqueles em instituições convenientemente criadas para tal.
exasperação de um aspecto qualquer da vida que possa suscitar a
Desta forma, a doença que entra nessas instituições está cada
suspeita de uma andrmalidade, um defeito, uma carência, um erro
vez mais longe da loucura como experiência trágica do mundo, como
quejustifiquem seu englobamento numa instituição.
. . relação de um eu com uma transcendência que o sobrepuja.jn, da
A relação razão/miséria, posta.entre parênteses no contrato entre loucura como monstruosidade e como delito: trata-se cada vez mais
medicina e justiça (com a conseqüente tendência a identificar "mi- da experiência trágica de um corpo com a miséria da sua vida e
séria" e "periculosidade"), reapresenta-se aqui em toda a sua com a impossibilidade de vivê-Ia e de expressar um pouco de parti-
',I I

crueza: anormalidade, defeito, carência, erro, desrazão, cipação subjetiva. Lombrosn, entrando no manicômio do início do
periculosidade e ameaça que podem caracterizar o comportamen- século XX - onde, sob a etiqueta da doença mental, serão.intema_
to do indivíduo não incluído no "contrato" são facilmente dos vagabundos, desamparados, camponeses migrados para as .ci-
identificáveis num espaço raramente "privado", no qual as incor- dades, pelagrosos -poderia separar a doença da miséria, assim como
I ' , ' ,- . .
reções sociais (tais se tornaram as manifestações da loucura Pinel fizera com a delinqüência? Sustentado pelo pensamento
segregada, em sua maioria) fazem parte da própria vida domargi- iluminista, Pinel pudera criar: a instituiç~o da doença, que deixava
nalizado, "iIl;correta" por definição. As regras da convivência civil intacta a da delinqüência, porque esse gesto científico e humanitá-
têm sentido para quem faz parte dessa convivência, para quem . .
rio não perturbava a relação com a miséria, relação que continuava
nelas encontra pelo menos uma resposta-parcial às próprias ne-' a ser garantida pela segregação em separado. Mas se Lombroso,
.cessidades. Mas, para aqueles que só encontram nessas regras a impelido pelos movimentossociâis do início do século, em vez de
confirmação da própria exclusão, elas representam a linguagem re-c-onhecer a pelagra como doença tivesse denunciado que se trata-
da opressão e da violência. A racional idade implícita nessas nor- va de "fome",onde poderia instalar a miséria que estava confundida

276
277
com a doença? Iria devolvê-láàs estradas das quais ela fora banida, Mas o sistema produtivo que se foi afirmando baseia-se na
para não ser vista? Quem oescutaria, se essa separação pressupõe apropriação da subjetividade do homem, portanto na redução do
uma resposta social e política à miséria? -o Estado liberal não se corpo orgânico a corpo, e na identificação tendencial entre corpo
dispõe a dar essa resposta, e a miséria continuará confundida com social e corpo econômico. O corpo social, na realidade, não é
a doença, as~umindo-Ihe a face, para salvar a face do Estado liberal. senão o conjunto de sistemas - dependentes do corpo econômico,
consequentemente do sistema produtivo - que organizam a mas-
4. Corpo e corpo econômico sa, reduzida li muitos corpos privados de subjetividade. A dialética
_A história da psiquiatria e de suas instituições, e a .história do homem/organização se reduz, na verdade, à tentativa de identifi-
conjunto de normas que lhes regulamentou a existência podem ser car corpo, e corpo econômico, para facilitar a absorção de um no
lidas como uma dialética entre indivíduo e grupo, ~ubjetividade e outro. Somente nessa dimensão de gradativa expropriação da sub-
, coletividade, consequentemente entre homem e organização. A vida jetividade do homem é que será possível sua separação nas insti-
associativa se fundamenta na instituição de regras que permitam a tuições da produção e da exploração, ,ou nas da invalidação e da
convivência do grupo: a norma é Ó limite imposto à individualidade internação, reduzindo o corpo expropriado à imagem da lógica
pela coletividade, pela organização. Se o indivíduo participa da defi- que o expropria.
nição dessa norma, como expressão dos desejos próprios e dos O aparato científico exerce um papel crucial nessa operação,
alheios, o limite para a expressão de sua subjetividade será dado visto que a objetividade da pesquisa e da intervenção técnica é ga-
apenas pela existência do outro, das outras subjetividades; e, para o rantida pela objetualidade daquilo que se investiga; exatamente como
c,»

-, homem, já é bastante pesado ter de aceitar esse limite. Mas, se for a exploração do homem por parte do sistema produtivo é garantida
, ' uma regra imposta para defesa do grupo dominante, a norma impe- pela expropriação de sua força de trabalho. Em medicina, a clínica
de aos dominados qualquer expressã~ subjetiva, reduzindo o indiví- já acionara esse processo, o qual continuará na objetificação que ~
duo a condição de co~o dominado, corpo alienado e explorado por razão faz da loucura. Clínica e razão necessitam de um objeto sobre
aquilo que o organiza. o qual 'possam agir, a fim de tornar sua intervenção asséptica e
Adialética entre indivíduo e organização deveria exprimir-se como objetiva; e, assim como a clínica impõe ao corpo o manequim fabri-
dialética entre um corpo orgânico que seja apropriado pelo sujeito cado à imagem dos seus conhecimentos, a razão impõe à loucura o
em sua organicidade junto ao grupo, donde, orgânico naconstru- corpo da sua linguagem, que é a "doença". Elas nunca têm a ver
ção das respostas às necessidades próprias e às do grupo, e um com o homem e com suas experiências, mas com a própria imagem
.corpo social que seja a soma de sujeitos participantes da própria que impõem ao .homem como corpo; assim como a organização do
organização, e da organização das respostas às necessidades pró- trabalho não produz para o homem, mas para si mesma, e, para
, prias e às do grupo. Corpo orgânico e corpo social seriam, nesse fazer isso, precisa de um homem reduzido a corpo que produza.
caso, expr,essão de uma subjetividade individual contida numa sub- As fronteiras do corpo orgânico, identificadas pela medicina no
jetividade coletiva, limite físico do Ó li i á· ,coincidem assim com aquilo a que a explora-

278 279
"

ção e o procysso de alienação tendem a reduzir o corpo dominado e esferas, a qual consiste naquilo que explicitamente pertence à esfe-
expropriado. Amedicina, em sua redução do homem a Ó u i á, pare- ra do corpo econômico, que ambas devem tutelar. O que garante a
ce preceder a identificação com o corpo que o corpo econômico operação é ° fato de o corpo econômico ser contrabandeado como
tende a criar. A matriz positivista sobre a qual o saber psiquiátrico se um corpo social, em que todo indivíduo - donde todo corpo, orgâ-
modela facilitará essa identificação, visto que a objetificação do ho- nico à coesão das diversas individualidades que constituem o grupo
mem já está implícita no método científico. O conceito de nexo - deveria reconhecer-se. Formalmente, o corpo social s,e estrutura
causal entre os fenômenos, determinado de modo mecanicista pelas para responder às necessidades do indivíduoe da coletividade mas,
ciências naturais, nivela e confunde os elementos biológicos,psico- se também aparece como o conjunto de sistemas e instituições que
lógicos e sociais de que é constituída toda experiência humana, ao constituem e sustentam o corpo econômico - ou seja, o sistema
colocar entre parênteses as contradições, presentes em cada nível, produtivo baseado no lucro - ele não poderá senão responder às
que nascem da dialética entre indivíduo
,
e. organização. Uma vez próprias exigências, sem levar ernconta as necessidades do indiví- '
reduzida essa dialética à coincidência entre corpo e corpo econômi- duo e da coletividade, implicitamente subordinados às exigências da
co, as necessidades de um são absorvidas nas do outro, e o antago- lógica que o determina.
nismo entre essas. necessidades de natureza diversa não mais é apre- O desencontro entre um corpo que não aceita ser tal e um corpo
endido como choque - em última análise, de classes - entre os dois econômico cujas necessidades não podem deixar de ser antagôni-
pólos artificiosamente identificados. Quando os epifenômenos des- cas às do indivíduo e da coletividade é o que produz os conflitos e,
se-choque são separados do corpo econômico e divididos uns dos assim, o que produz "sofrimento". A presença do sofrimento é o
outros, é p~ssível investigar causas próprias para cada um, busca- indício da fracassada identificação entre corpo e corpo econômico,
das num "social" já positivisticamente assumido como natureza, donde o sinal de uma subjetividade que reage e recusa o confinamento
como "dado", e jamais reconhecido como produto histórico-social, . de que é objeto. Quando esse sofrimento"': obrigado. a expressar-se
donde jamais considerado como corpo econômico. Enfrentar a do- na linguagem da doença, reduzida a linguagem da "periculosidade
ença do.ri U i á significa, então, enfrentar aquilo que poderia consti- social" - é enfrentado em termos e com instrumentos médico-jurí-
tuir 'a "doença" do corpo econômico, ou seja, aquilo que poderia dicos, o que determina a intervenção técnica não é a atitude cientí-
pôr em crise o seu equilíbrio;' e o "tratamento" se reduz ao fica, mas a função que ela cumpre enquanto fiadora do corpo eco-
restabelecimento desse equilíbrio mediante a confirmação da nômico. O jogo entre sofrimento/tratamento e periculosidade/cus_
invalidação. tódia salvaguarda 'tanto a medicina quanto ajustiça, mediante a Con-
Nesse sentido, com as novas legislações sobre os alienados, cons- firmação da norma que arnbas têm o dever de tutelar, na medida em
titui-se a delegação às várias disciplinas, numa neutralidade baseada que ambas se baseiam nela. Mas esse jogo se resolve como desa-
numa aparente divisão das competências: à justiça, a tutela do cor- parecimento 90 sofrimento e do tratamento, engolidos pela
po social; à medicina, a tutela do corpo individual; mas a ambas, periculosidade e pela éustódia, as únicas que podem dar essas ga-
tudo o que ambiguamente pertence à linha de fronteira entre as duas rantias.

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I
1
281
5. A palavra à loucura? o delírio não é outra coisa senão o extravio, o vaguear da mente
. Voz confundida com a miséria, a indigência e a delinqüência, durante a vigília, que dájuízos errados sobre as coisas conhecidas
palavra emudecida pela linguagem racional da doença, mensa- de todos. , j

gem truncada pela internação e tornada indecifrável pela defini- A alma se encontra sempre no mesmo estado, porque não é sus-
çãode periculosidade e pela necessidade social da-invalidação, a cetível de nenhuma alteração: portanto, não é a ela que se deve
~ ,
loucura jamais é escutada por aquilo que diz ou queria dizer. A atribuir esse extravio, esse erro, esse defeito de juízo que constitu-
psiquiatria não foi senão o sinal da superposição da racionalidade em' o delírio, mas à disposição dos órgãos do corpo, ao qual o Cri-
dominante a essa palavra que lhe fugia, e a confirmação - neces- ador quis uni-Ia; isso está fora de dúvida."
sária a essa racionalidade - de uma comunicação impossível. Do Mas aquilo de que o delirante "se desvia" é "a regra da razão", a
. racionalismo iluminista ao positivismo, trata-se sempre de uma qual, pela fé iluminista, é uma regra absoluta que não admite desvi-
r,acionalidade que define, subdivide e controla aquilo que ela não os e que, obviamente, não é posta em discussão. Se a "alma" não
compreende e não pode compreender, porque o obj etivou na lin- pode ser responsável pelo comportamento abnorme, a pesquisa con-
guagem da doença, que é a linguagem de uma racionalidade que tinuará a centrar-se num corpo que não revela alterações e do qual
"constata" . só resta fabricar um esquema ideal (o manequim criado à imagem
O que são as definições dos delírios, a não ser a constatação das dos conhecimentos Científicos), a fim de fazer funcionar a validade
diversas formas pelas quaiseles se manifestam e a confirmação da das interpretações propostas.
total incomunicabilidade com o que eles expressam? Quando a ra- Mais de cem anos depois da publicação da Encyc/opédie, pode-
zão começa a ide~tificar no "corpo" as alterações responsáveis pelo se constatar, na definição de "delírio" da Enciclopedia italiana
delírio, para afinal distinguir e definir as várias formas Treccani - definição que, enquanto expressão do colonialismo cul-
comportamentais sob as quais ele se exprime, trata-se sempre da tural a que a Itália esteve submetida, pode ser considerada um resu-
constatação de um desviar-se de um "sulco" (a razão dominante), mo da evolução do pensamento psiquiátrico francês e alemão _ que
considerado como dado absoluto. essa pesquisa das alterações do corpo, embora permaneça suben-
Quando, na Encyc/opédie, Diderot e d' Alembert enfrentam o tendida, ficou atenuada, sobrepujada por uma descrição mecânica
problema do delírio, a análise das causas - em perfeita coerência das diversas qualidades de delírio, na qual continua ausente qual-
com a frenologia da época - é essencialmente física (febres, ten- quer referência àquele "sulco" do qual ele faz alguém desviar-se.
sões ou relaxamento das fibras): "Segundo vários autores, a Mas a exclusão desse elemento essencial, se podia ser justificada
etimologia mais verossímil para esse nome vem da palavra lira, pela pres~ de supostas causas físicas, torna-se mais complexa
que significa um fosso em linha reta, o qual é feito nos campos e quando a definição do delírio vier a focalizar-se sobre o "comporta"
serve para traçar os sulcos; assim, da expressão aberrare de lira, mento", que só pode ser relativo às regras impostas pela razão or-.
desviar-se do sulco principal, nasceu a palavra delirus, a qual, por ganizada. O delírio toma-se essencialmente um "erro de juízo", ex-
alusão, indica um homem que se desvia da regra da razão, porque pressado em comportamentos diversificados, que a psiquiatria se
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283
,li
) í
1f,

limita a constatar e descrever, sem nunca pôr em jogo- como pólo


elaboração contínua, extraindo alimento dos acontecimentos
di aiético da contradição que ele representa - a regra da qual ele se
mais comuns, interpretados nosenÚdo do delírio (delírio de
desvia e muito menos a razão que formula o juízo: interpretação), e assim se consolida cada vez mais, torna-se
Dizem-se delírios as aberrações de juizo sugeridas por um um sistema coerente de convicções irremovívels. Nas psicoses
estado passional ou, geralmente, por perturbações afetivas afetivas, os delírios acompanham as vicissitudes da pertur-
de' origem mórbida. Sob a influência do desvio afetivo, a bação afetiva; e assim, durante a crise de melancolia, Sur-
crítica torna-se unilateral, encarniça-se 'contra tudo o que gem as idéias de ruína, de miséria, de culpa, de danação,
poderia abalar o delírio e deixa pass~r inobservados todos os para dissipar-se cO,m a cura ou ser substituídas por delírios
expansivos nas-fases deexaltação maníaca.
erros que o reforçam. A experiência deixa-se dominar pelo " ,

preconceito: as imagens subjetivas, brotadas da fantasia,


Se considerarl11osessa descdção como um resumoc;la evolução
poluem a percepção com elementos ilusórios e determinam
da psiquiatria até o início deste século, fica evidente que a razão _
alucinações, que reforçam o dellrio. Nascidos como suspei-
\ tas, os juizos delirantes 'logo se afirmam como convicções mediante a definição. das diversas qualidades dos' delírios, a qual
que desafiam qualquer crítica e tornam-se guia ideal, algu- mantém o caráter de umjuízo de valor - se limita à constataçao de
mas vezes imperiosa da ação. um dado (o modo de expressar-se do delírio e seu conteúdo), com
Assim como as oscilações da afetividade acontecem nos dois o qual não consegue estabelecer nenhuma relação. Tendo-se insta-
sentidos opostos, o da depressão e o da exaltação, os delírios, lado no ponto de distância necessário para formular o juízo, ela se ,
podem ser divididos em depressivos, de aviltamento, pessi- encontra longe demais para conseguir compreender, e só pode des-
crever e constatar.
mistas (delírios de ruína, 'de miséria, de perseguição, de in-
dignidade, de culpa, de danação), e delírios expansivos, de Prisioneiro dessa impossibilidade de comunicação, Freud rom-
exaltação, de otimismo (delírios vaidosos, de grandeza, de perá a segurança da razão para inserir a dúvida do seu discurso: é
potência, de reforma social). Mais particularmente, os delí-
preciso reencontrar, no mundo objetivado pela razão, a palavra da
rios coordenam-seem torno aos instintos e às paixões funda-
loucura, o sentido de sua mensagem. as zonas profundas das quais
mentais da natureza humana: ao instinto de conservação (de-
ela emerge e de onde se quer fazê-Ia aflorar. Adesrazão está dentro
lírios persecutários, hipocondríacos, de ruína)', à paixão da
posse (delírio de pretensão, de reivindicação, de ciúme), ao de nós, faz parte da nossa natureza, mas não no sentido metafórico
sentimento do próprio valor (delírios de grandeza, de refor-. em que a entendera a Razão iluminada, que só a reconhecia no mo-
ma social e política, científicos), ao instinto sexual (delírio mento em que a refreava e desarmava, e sim no sentido de que o
erótico, de Ciúme), ao sentimento religioso (delírio messiânico, homem é tragicamente refreado pela,sua'própria desrazão, cujas
profético). Tem-se a expressão mais completa da convicção razões profundas é necessário compreender: "O eu.já não é senhor
delirante nos delírios sistematizados dos paranóicos: uma vez em Sua casà'':-A constatação dessa fratura ori~inal, interna ao eu,
/ "
que, nesses' indivíduos, a anomalia passional e o defeito de reconduz à dimensão trágica a experiêncja humana" que a razão
crítica são constitucionais e permanentes, o delírio sofre uma crítica havia esterillzado mediante o domínio sobre a. desraião. É a

284
285
'.
~

permanece dentro da ràcionalidade da sua classe, dos seus valores,


~ssa experiência trágica que convém dar a palavra, e é essa experi- impregnando com eles a cultura através da descoberta d~ uma face
, ência que convém decifrar e interpretar. mais trágica da loucura - uma loucura que vive entre nós e em nós,
Mas quem dá a palavra? Quem decifra e interpreta a mensagem, e que não podemos ignorar - sem, n~ entanto, afet~r a loucura/
e com base em que código? E quem escolhe a quem dar a palavra? miséria que a razão continua a segregar: sem afetar a racionàlidade
É possível a escuta neutra de: que fala Freud, e é verdadeiramente que produz e controla a invalidação.
neutra a mensagem que se escuta? Como ter certeza de que a pala- O jogo se repete e está. implícito naquele gesto de "dar a palavra"
vra que se apresenta à interpretação não é, por sua vez, determinada que a psiquiatria continua afazer, conservando-se dentro de uma
por esta? Quanto a quem escuta, qual é a sua posição de poder em racional idade disposta a críticas eautocríticas, mas só se vierem
.relação a quem fala, ~ em que medida esse poder determina o senti-- daqueles a quem a palavra foi concedida, e não de quem a toma
do da palavra? E, sobretudo, qual é a linguagem do 'intérprete, que porque se considera no direito de falar e de ser escutado ..Esse ges-
garantias temos nós de que não se efetue a mesma operação da to, essa escuta, permanecem dentro da lógica que distribui as par-
~mperposição, já ocorrida, da linguagem da doença sobre a loucura? tes, as categorias, as possibilidades de existência, ,os papéis, as fun-
/

O' que o analista faz da fratura original doeu+ não mais s~nhor em ções, ainda que se reconheça tragicamente comprometida pela
sua casa? Deixa a ferida aberta, a porta escancarada às invasões, ou desrazão, pelo instinto, pela libido, pela agressividade, pela loucura,
volta a fechá-Ias com' a certeza científica da sua interpretação? pelo desejo de morte. O que aflora dessa consciência é a dimensão
Quando e onde a loucura fala sua própria linguagem? Não se trata do trágico reconduzida à vida do homem, mas um trágico individu-
.ainda 'da concessão de um diálogo que só pode acontecer no código al, do sujeito, do eu que se reconhece prisioneiro daquela fratura
de quem escuta? O inconsciente, nessa operação, não se torna a original, sem conseguir remontar a tudo o que é feito de si pela
'imagem especular da razão, isto é, da interpretação, objetivaç:lo aos racionalidade que domina e organiza .
. olhos dela, assim como a loucura foi objetivada na "doença"? É a 'explosão do irracional, que de vez em quando será vivido
Freud reconheceu um eu não mais senhor em sua casa, mas a como uma ameaça ou proposto como valor, sempre presente no
conclusão prática a que chega a análise é uma forma diferente, mais pensamento moderno, mas sempre controlado por este. A loucura
sutil e mais profunda, de assenhoreamento daquele eu, cindido en- do "artista", a desrazão do "gênio" - assim como a insanidade do
tre razão e desrazão, dominado pela interpretação que se dá dessa "doente" - encontrarão lugar nessa racional idade, a qual compreen-
cisão. O círculo volta a fechar-se: a porta aberta sobre a subjetivi- deu que basta dar-lhes a palavra e um espaço separado onde pos:
dade do eu 'é novamente fechada pela objetificação que se faz dele. sam expressá-Ia, para não ser afetada por aquilo que eles dizem. À -
A razão reconheceu em si mesma a desrazão, mas ainda é ela quem ameaça do irracional, aprendeu-se a responder com o terrorismo da
domina, quem define os limites do jogo, quem explica o seu senti- razão que organiza, divide, distribui, separa as partes, punindo ou
do, objetifi.cando naturalisticamente a experiência subjetiva. premian?o qúem não está no seu jogo. Assim como a fratura do eu
E ainda estamos falando de razão burguesa. Conquanto esta seja se resolve no consultório do analista e a loucura/miséria desaparece'
,..discutida e criticada na raiz por Freud, a linguagem da interpretação
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"
"

na internação, o gesto "louco" de quem, com sua obra, rompe a O fato de que a primeira entrada em ,crise da relação entre-erga;
barreira dessa racional idade será silenciado - mediante o aplauso - nização e invalidação nasça no terreno em que se produz esse meca-
nos museus e no empíreo da Arte, onde sua voz será refreada e nisrno pode esclarecer, mais-uma' vez, o caráter do vínculo entre
neutralizada. razão e loucura. De fato, a crise das legislações européias em maté-
O irracional continua a aflorar e, simultaneamente, a ser contido ria de assistência psiquiátrica e o, questionamento da natureza do
no pensamento moderno, condicionado por essa presença 'às vezes "tratamento" das doenças mentais começam a manifestar-se - por
subterrânea, às vezes invasora e r~apresentada como única possibili- volta dos anos cinqüenta - em alguns países onde a reestruturação
dade de expressão da subjetividade, num mundo de repressão e de da organização produtiva e as transformações a ela conseqüentes
violência. Até que a própria loucura - desnudada da máscara da "do- induzem a necessidade de introduzir na vida social uma nova força
ença" através da qual foi obrigada a falar - seja reapresentada como de trabalho, ampliando a faixa dos que participam do "contrato",
único,processo de desalienação no mundo alienado da racionalida~e O caso da Inglaterra é emblemático. Quando a expansão da pro-
tecnológico-industrial:
,, ,
donde, como a: única "experiência" que reivin- dução impõe a existência de uma participação mais ampla, o estado
dique o direito contra a loucura da r,acionalidade dominante. enfrenta, com o National A~t de 1959, que sanciona a nacionaliza-
Mas de que modo essa Ioucura.t'liberada", que reivindica o direi- ção da medicina, também a reestruturação da assistência psiquiátri-
to à própria existência contrapondo-se à realidade alienada, afeta a ca, atacando pela primeira vez a lógica da internação. A reabilitação
racionalidade dominante, a não ser limitando-se a propor-se corno e o tratamento dos doentes mentais parecem possíveis no momento
seu contrário? em que se mostram socialmente úteis, isto é, economicamente ne-
cessáríos.e a psiquiatria, mais uma vez, é utilizada como elemento-
6~'O conflito organizado chave em torno do qual gira a nova ordem. O corpo 's'egregado
A estranheza da contribuição de Freud diante da problemática pode e deve ser restituído ao corpo econômico,, ou melhor, deve
social e po1ítica da relação entre razão e loucura (tornada relação instaurar-se uma continuidade', de natureza aparentemente diversa
entre organização e invalidação) é confirmada pelo fato de que, ape- da precedente identificação, entre o restabelecim.ento do corpo eco-
sar da reivindicação dos "direitos do inconsciente", a partir do mo- nômico(a extirpação da infecção e a necessidade de conter o
mento da definição médico-jurídica da psiquiatria essa relação con- infectado) e o restabelecímento' do corpo individual (o tratamento):
serva, durante cerca de cento e cinquenta anos, a mesma natureza: o aspecto da custódia, embora continuando a existir, se enfraquece,
a enfatização do corpo econômico e a anulação do corpo na sanção e a ênfase passa a centralizar-se na reabilitação e na recuperação.
da internação. O reconhecimento da fratura do eu não afetou o A aparente diversidade dessa continuidade consiste. em que, se a
mecanismo que produz invalidação e exclusão, portanto não afetou norma é definida em termos de eficiência e produtividade, esses
o mecanismo que produz "doença". Porque esse mecanismo se re.- termos nunca são rígidos, subordinados como estão às osciIaçõ~s
produz em outro lugar, fora~? espaço em que a razão se analisa e das exigências da produção. O que se desloca é a fronteira entre
se critica cientificamente. "contrato" e "invalidação", no sentido de que a organização pode

288 289
l
I

precisar absorver os elementos mais "próximos" à norma - ou con- não se limita li gerir o mundo da invalidação e da internação - que
siderados tais - que possam ser facilmente recuperados, na medida no entanto continua a "tratar" T'", mas deve agir no social, pelo
em que o mesmo sist~ma produtivo que os expulsara pode, a se- controle direto do distúrbio no lugar onde ele se manifesta,identi-
guir, precisar reabsorvê-los, ficando também todos os elementos que o compõem, inclusive os
Uma legislação como o National Act de 1959, que impõe a conflitos sociais que possam determiná-Io. Os serviços 'que as
nacionalização da medicina num país capitalista, na verdade não novas legislações vão gradualmente modelando nos vários países
pode lesar as raízes da relação entre organização e invalidação. É (depois do National Act inglês" a política setorial na França em
isso que reduz a intervenção política da lei, baixada por um gover- 196Ç> e a lei Kenned,Y de 1963 nos Estados Unidos, que institui os
no trabalhista, a uma simples intervenção técnica (a reabilitação, a Community Mental Health Centers) continuam a valorizar b as-
psiquiatria comunitária) dentro da mesma lógica e das mesmas pecto médico da psiquiatria, ampliando as possibilidades de sua
finalidades que sustentam invalidação e exclusão: reabilitação e intervenção mediante a absorção das novas ciências sociais: orga-
recuperação, de fato, não são antagônicos' a essa lógica e a essas nizaçãoterritorial, política de prevenção, centros de saúde mental,
finalidades quando há necessidade de força de trabalho, ainda que hospitalizações breves, setores de psiquiatria nos hospitais gerais;
"reabilitada". O que interessa assinalar é que a possibilidade do mas, simultaneamente, introdução maciça de novos técnicos (psi-
deslocamento da fronteira entre contrato e invalidação confirma, cólogos, assistentes sociais, sociólogos, animadores). Tal organi-
porém; a relatividade da relação entre razão e loucura, pois quem zação gira em torno do psiquiatra, que agora, na multidiscipli-
antes era internado enquanto "louco" vê-se agora reabilitado en- naridade de sua intervenção, pode enfrentar a presença simultâ-
quanto "mentalmente são", O paradoxo é que, se na época de nea, no distúrbio, de aspectos diversificados, os quais a velha psi-
Pinel assistiu-se à transferência da doença do cárcere para o ma- quiatria havia nivelado no ó u i á. A separação entre corpo e corpo
nicômio, agora tende-se a transferir. do manicômio uma saúde econômico, representada pela separação entremani~ômio e terri-
. extraída da doença.
I
É o próprio .
conceito
,
de do ença e de tório, se resolve difundindo para o território, por intermédio desse
irrecuperab ilidade que se mostra relativizado por esse deslocamen- exército de novos operadores, a cultura do técnico (o médico)
to. O fato de, depois, tudo permanecer no âmbito da mesma lógi- sobre a definição e o tratamento do distúrbio. Aintrodução do
ca fi, assim, não poder deixar de produzirexternarnente o mesmo internado no "território" ea prevenção da possível intemação fa-
'controle não reduz o significado profundo de tal operação, no que cilitam, assim, uma nova forma de controle - não mais inteira-
concerne ao conceito e à definição de doença. mente exercido com base na sanção jurídica - que permite englo-
As experiências de "psiquiatria comunitária" nascidas naqueles bar um 'setor mais vasto de assistidos. A nova faixa, objeto de
anos baseiam-se. na convicção de que basta ampliar o tratamento controle, já não é segregada, embora a 'velha segregação continue
do indivíduo ao contexto em que ele vive para sanar ao mesmo a existir e a garantir a eficiência dos novos aparatos. Mas quem
tempo os conflitos de ordem psicológica e os conflitos sociais garante o bom funcionamento, desde o aparato assistencial ao tra-
que os produzem. A psiquiatria adquire uma nova centralidade. Já tamento médico-psiquiátrico até a internaçã.o, é sempre o psiquia-
. .

290 291
tra. A participação da cómunidadevenfatizada nessa fase como Soviética, onde a identidade entre Estado e instituições permite
ação direta e como controle sobre o técnico, é, ao contrário, cons- utilizar a "doença" COmo mediação apta a justificar um controle
tantem.ente intermediada e organizada pelo filtro institucional e pela análogo.
cultura médica. Dessa maneira, é possível garantir que a expres-
Nesse panorama, o caso da Itália, onde o problema explodiu com
são subjetiva da 'demanda - da necessidade, do sofrimento, do
anos de atraso em relação aos' outros países, merece uma menção
distúrbio, ou seja, da contradição entre indivíduo e organização -
particular. Em relação às outras legislações européias, a italiana, apro-
seja endereçada aos canais preestabelecidos e não antagônicos ao
vada em maio de 1978 e a seguir englobada na lei de reforma sanitá,
equilíbrio geral: o que significa assegurar-se de que a demanda'
ria, de fato estabelece explicitamente a necessidade de não se cons-
seja sempre por um tratamento terapêutico, cujafunção é nivelar
truírem mais manicômios e de se organizar a eliminação dos existen-
e organizar o conflito em termos médicos. O que, ademais, é ga-
tes. A velha fórmula que justificava a internação coereitiva -..,"perigo-
rantido pela criação desses novos serviços é a quantidade de força
so para si e para os outros e escandaloso em público" _ é substitulda
de trabalho que eles absorvem (e que se identifica automatica-
por um conjunto de normas que, mesmo mantendo nas mãos do
mente nos papéis desempenhados), de modo que o controle exer-
médico toda a responsabilidade pelo juízo de periculosidade social,
cido sobre o usuário individual e através da identificação do ope-
introduz, embora confusamente, um elemento novo. O juízo de gra-
rador com o próprio papel passa a atuar sobre todo o contexto
vidade permanece, corroborado pela recusa do paciente à internação
produtivo que o sustenta. O modelo médico continua a prevalecer
voluntária, mas somente quando se tiver certeza da. impossibilidade
sobre o caráter global da intervenção: a necessidade do tratamento
de soluções alternativas à internação é que se torna obrigatório O tra-
'nunca é posta em discussão.já que as pessoas se limitam a ampli-.
tamento por medida' de autoridade. Os equívocos e as
ar a gama de soluções com as quais se possam discriminar os
instrumentalizações que podem derivar dessa interpretação "subjeti-
diversos níveis de periculosidade e sobre as quais se baseie a qua-
va" do caso individual (a quem cabe a responsabilidade pela constatação
lidade dos "cuidados".
da inexistência de outras soluções, ou até mesmo a quem cabe a
Embora formalmente diferentes entre si, os modelos de refe- responsabilidade pela própria inexistência de outras soluções?) po-
rência que cada legislação adota nessa fase movem-se dentro des- dem arruinar a nova lei, conduzindo a um genérico redirecionamento
te esquema: a restituição do corpo invalidado (ou a prevenção de da assistência psiquiátrica para a medicina, como aconteceu em ou-
sua possível invalidação) ao corpo econômico, condição necessá- tros países. Contudo, o fato de que, na Itália, já não deva existiro
ria a que o choque entre organização e invalidação se dissipe, num manicômio na retaguarda dos novos serviços dá significado e fun-
equilíbrio que, desta vez, traduzirá a invalidação.segregada numa ções diferentes aos próprios serviços. Isso porque a nova lei não se
serni-invalidação assistida. Esse processo já está generalizado na limita a romper o caráter absoluto da definição científica de "doença
maioria dos países ocidentais, onde invalidação e assistência ten- mental", propondo sua relatividade a outros fatores, mas tende a pôr
dem a cobrir toda forma não-organizada de dissensão; mas tam- em discussão - fazendo, com que se tome consciência disto através
bém está presente - embora diferentemente articulado - na União das contradições que abre - a' função do manicômio como cobertura
.' ,
292
293
à operação perpetrada pelo sistema produtivo, o qual pôde excluir, levará Nietzsche a dizer: "A tarefa do iluminismo é fazer, de todo o
mediante as leis e as ciências mais adequadas a a~alizar essa exclu- comportamento dos príncipes e dos governantes, uma mentira in-
são, aquilo que estorvava seu funcionamento, tencional"."
Mas, antes dessa separação efetuada pela razão, como se expri-
7~ Loucura/necessidade me a lo~cura? Não se poderia presumir que - assim como aconte-
. O jogo da exclusão ou da inclusão da loucura na razão e a busca ceu na evolução histórica do fenômeno - ela nasça e se alimente
, dos, setores, dos modos e dos tempos nos quais convenha dar a num mundo indiferenciado de necessidades que não recebem res-
palavra, a fim de neutralizá-Ia, assumem o significado de uma posta, e que a não-resposta a essas necessidades seja o que traduz
legitimação para falar a linguagem autorizada - compreensível ou a impotência daí derivada por aquilo que chamamos de loucura?
incompreensível,' segundo os c,ânones da escuta - dentro da regra Antes de a loucura ser identificada pela ~acionalidade burguesa como
de expressão. Mas pode existir uma regra de expressão das neces- "doença", sua voz era, confundida com a indigência, a fome, a de-
sidades e dos desejos? Ou a existência da Regra não será principal- linqüência: um conjunto indistinto de necessidadesao qual se res-
mente uma imposição e uma violência que não podem deixar de pendeu fragmentando a global idade da demanda, essencialmente re-
produzir um modo violento de manifestá-los? Onde é contemplada presentada pela miséria. Também em cada história individual pode-
I'

a subjetividade humana dentro desta Regra, se existem modos, tem- ria repetir-se o mesmo processo. O homem nasce com uma nature-
pos e lugares obrigatórios nos quaisé possível exprimir-se? Que za contra a qual deve combater apropriando-se dela e, ao mesmo
significado e que conseqüências comporta essa insistência em "dar tempo, produzindo uma cultura que tenderá a desnaturá-Io: deter-
a palavra", a fim de não escutar aquele que toma a palavra, expres- minado pelo mundo de necessidades e desejos que lhe provêm do
sando as próprias necessidades em sua própria linguagem, e não na corpo e de uma subjetividade que quer se expressar, ele se vê con-
linguagem desnaturada da palavra concedida? frontado com outros corpos e subjetividades que devem ser organi-
zados. A resposta a essas necessidades é confiada à organização
O problema da loucura é sempre problema da relação entre indi- , '
que representa o grupo e que deve pôr o grupo em condições de
víduo e organização, donde problema de espaço, físico e psicológi-
viver e coexistir. Se a organização representa todo o grupo, o espa-
co, que o indivíduo encontra dentro do grupo. Embora enfatize for-
ço individual para a expressão das próprias necessidades e para a
malmente o indivíduo e sua liberdade, a racionalidade na qual se
satisfação delas será limitado pelas necessidades dos outros: o pro-
baseiam nossa cultura e a organização social e do trabalho que a
blema do limite é um problema humano, que vem a somar-se ao da
produz estrutura-se de fato sobre a expropriação dessa individuali-
relação do homem com a natureza a domar e explorar, Mas, se a
dade e sobre a redução da massa expropriada a um conjunto
organização tutela os interesses de um grupo (uma classe) em detri-
serializado de indivíduos. De maneira análoga, embora tendo reco-
nhecidoa desrazão como parte da natureza humana, essa
racional idade limita-se a acolhê-Ia em si a fim de separá-Ia e canalizá- 8 Citado em M. Horkheimer e Th. W. Adorno, Dialektik der Aufklãrung, op.
Ia aos setores criados para que ela se expresse sob tutela. É o que eil.

294 295
mento do outro, se a sobrevivência desse grupo se baseia no domí- de "doença": uma doença que será "tratada" para que não diga de
nio do outro, se a lógica de exploração da natureza se baseia na onde provém.
exploração do homem, não existe limite humano, porque tudo se Mas há um momento no qual tudo isso se exprime sob a forma
encaixa na desumanidade da organização. Desumanidade da qual de demandas que esperam respostas, e no qual tudo ainda seria
nem mesmo .a classe tutelada será poupada, porque essa lógica simples, ou quase simples, porque a esperança humana cimenta e
organizativa, para perPetuar-se, só pode produzir valores desuma- ainda une a globalidade da demanda. Mas é essa demanda que fica
nos. . sem resposta e que é fragmentada em tantos riachos quantas são as
A miséria tem muitas faces: a da fome e da indigência e a do respostas técnicas preparadas pela racionalidade do poder. A misé-
empobrecimento total da existência humana. A racionalidade bur- ria das-classes oprimidas, o empobrecimento e o amesquinhamento
guesa conservou a primeira nos bolsões necessários ao equilíbrio do :homem subordinado à lógica econômica, que determina cada
da lógica econômica sobre a qual se fundamenta, mas produziu a necessidade e cada desejo seu, constituem a demanda "muda" cuja
segunda em seu próprio seio. É nesse mundo generalizado de rnisé- formulação a racionalidade burguesa' impede, impondo-lhe a lingua-
~ia econômica e psicológica que as necessidades se exprimem de gem da "doença" que a faz transformar-se em outra coisa. Se não
modo confuso e indiferenciado: necessidades que nascem da ur- consegue expressar-se em formas organizadas e finalizadas de luta,
gência da vida, de um corpo que não aceita ser mutilado e mortifi- essa necessidade pode desaguar em comportamentos irracionais e
cado, de uma subjetividade que não quer ser reprimida e violentada, incontroláveis, expressão da irrefreabilidade do sofrimento e da
e que acha demasiado estreito o espaço que lhe é concedido. Re- impossibilidade de encontrar modos diferentes de comunicá-Io, Mas,
gras, interdições, tabus, proibições, repressões; divisões de classe, quando a estes se superpõe a etiqueta de "doença", sua voz fica
de raça, de. cor, de sexo, de papel; abusos de poder, injustiças e desnaturada, substituindo a concretude da realidade, da qual pro-
humilhações, violência organizada e permanente: isso é o que cons- vém, pelo fantasma do símbolo.
titui o mundo da norma.
, Nenhuma regra para defesa da existência Quando tudo isso tiver acontecido, haverá alguém que se afainará
do homem, mas todas as regras feitas para a sua dominação e ma- em reconstruir simbolicamente os nós do sofrimento, em redescobrir
nipulação. A essa norma não pode identificar-se o homem domina- o momento da ruptura; ou então alguém - um pouco mais rude,
do, porque ela é feita para a sua destruição, mas tampouco o.pode para adequar-se à rudeza social do seu cliente - dirá simplesmente
aquele que pertence à fileira dos dominadores, sob pena de entorpe- que se trata de um "delírio paranóide" ou de uma "crise depressiva",
cimento e morte de sua humanidade. e o encerrará no manicômio. Quando tudo já aconteceu, é dificil
Desse panorama indistinto de necessidades (a miséria concreta reconstruir os pedaços daquelas necessidades sem resposta, juntar
das classes subalternas e a miserabilização do indivíduo da classe novamente aquelas demandas para que sejam reformuladas - num
tutelada), alguma voz pode erguer-se para gritar a angústia, a fúria, momento em que a esperança que poderia cimentá-Ias já desapare-
a raiva, a cisão, a fratura; ou para chorar a própria impotência. É ceu, frustrada que foi por demasiado tempo. Primeiro mata-se o
então que lhe será dada a palavra, para amordaçá-Ia com a definição homem ou impede-se que ele viva, e depois a "ciência" - a psiquia-

296 297
·.

tria e as ciências humanas - piedosamente, preocupa-se com as


reações de impotência e desespero, ou de apatia, recusa, associalidade
a morte por asfixia. É àquele mundo de necessi-
que acompanham
Lei e psiquiatria
dades que é preciso responder, passando inclusive através da frag-
Para uma análise das normas no
mentação das ciências humanas que contribuíram para esconder o
\, ,
campo psiquiátrico'
-jogo, impedindo .que se compreendesse onde nascem os problemas.
Existem sempre falsos profetas. Mas .•no caso da psiquiatria, éa
própriaprofecia a mostrar-se falsa, ao impedir, por seu esquema de
, '

, definições e classificações dos comportamentos e pela violência com


que' os reprime, a compreensão do sofrimento, de suas origens, de ' 1. A função da psiquiatria
, sua relação com a realidade da vida e com a p~ssibilidade de expres-
Loucura e miséria. Quando, no início do século XIX, surgiam
são que o homem encontra ou não encontra nessa vida. Continuar
nos países industrializados as primeiras legislações em matéria de
aceitando à psiquiatria e a definição de "doença mental" significa
assistência psiquiátrica, o debate sobre a definição da loucura e a
aceitar que o mundo desumanizado em que vivemos seja o único
classificação dos loucos, sobre a psiquiatria como ciência e suas
mundo humano, natural, imodificável, contra o qual os homens es-
instituições, em alguns países europeus já somava quase um século
tão desarmad~s. Se assim for, continuemos a sedar os sintomas, a
de história. As fases iniciais dessa história podem ser relacionadas
fazer diagnósticos, a ministrar cuidados e tratamentos, a inventar
às grandes transformações sociais produzidas com o nascimento
novas técnicas terapêuticas: mas sabedores de que o problema está
da "era industrial", quando a estruturação da produção em escala
em 'outro lugar. Porque "sem esperança não é a realidade, mas o
nacional concentra e deposita na periferia das grandes cidades in-
saber que - no símbolo fantástico ou matemático - se apropria da
dustriais a reserva de força de trabalho necessária à nova organiza-
realidade como esquema e assim a perpetua"."
ção da produção. Polariza-se assim, em tomo dos locais da produ-
ção, uma ampla e compósita área social que constitui a riqueza' de
uma nação (enquanto reserva de força de trabalho) e, ao mesmo
tempo, sua miséria, enquanto miséria das condições em que vive
aquela. Nessa área social, que identifica e contém todos aqueles que
não são outra coisa senão trabalho no mercado, recortam-se, vari-
áveis em amplitude, as faixas dos que estão incluídos no mundo

Comunicação ab International Congress of Law and Psychiatry, Oxford,


1979 (Subprojeto Prevenção de Doenças Mentais do CNR [Consiglio
Nazionale delle Ricerche, Conselho Nacional das Pesquisas)). Em colabo-
ração com M. G. Gianichedda.
9 M. Horkheimer e Th. W. Adorno, Dialektik der Aufklãrung; op. cit.

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