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Duas Sementes

Uma história sobre o despertar da consciência


Índice

Mudança ........................................................................................................... 4
Resistência .................................................................................................... 10
Aceitação ........................................................................................................ 24
Florescer ......................................................................................................... 27

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Dedicado à mudança!
Duas Sementes por Mardânio Militão

Mudança

A névoa da manhã se dissipava lentamente. As últimas


gotas de orvalho escorregavam por entre as folhas,
galhos e flores, umedecendo o solo, fazendo renascer a
vida. O sol, imponente, se erguia por sobre a densa
floresta repleta de árvores centenárias, despertando
animais e plantas para as atividades de um novo dia.
Aos pés de um velho carvalho duas sementes
conversavam, enquanto um esquilo, aproveitando a
camuflagem da névoa, esgueirava-se por entre os
galhos, descendo pelo tronco do carvalho em busca do
alimento matinal.

- Sinto algo muito estranho. – Falou a primeira


semente.
- O que é? – Perguntou a outra.
- Não sei dizer ao certo. O dia parece surgir igual a
todos os outros, mas alguma coisa está diferente...
Sinto como se estivesse perdendo minhas forças... Ei!
Minha casca, ela... Ela está se rompendo! Sinto uma
agonia tomar conta de mim. Acho que estou
morrendo...
- Minha casca também está se abrindo, no entanto
sinto uma sensação agradável, quase um desejo por
isso.
- Como podes desejar isso? Não se lembra das outras?
Depois que isso lhes aconteceu nunca mais retornaram!

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Duas Sementes por Mardânio Militão

- Sim, lembro de cada uma delas. E lembro também de


como cada uma, a seu modo, lutou ferozmente contra
essa mudança e, no final, todas, sem exceção,
morreram carcomidas e sem beleza, frustradas devido
às mudanças que o tempo lhes impôs. Quanto a mim,
estranhamente, essa mudança que se anuncia não está
me assustando. Confesso que estou apreensiva, porém
experimento uma brisa e frescor que jamais havia
sentido!
- Mas isso é o início do fim, é o vento frio da morte!
- É isso que nos foi dito e é nisso que temos acreditado
desde que nascemos, mas como saberemos se isso é
mesmo o fim se não permitirmos que aconteça?
- Não precisamos nos queimar para saber do fogo!
Basta tomar como exemplo as outras sementes que se
abriram. Abrir-se é o fim! Assim têm nos ensinados as
sementes mais velhas e assim é!
- Sinceramente acho que o fim é permanecer fechada!
- Mas não sabes o que acontecerá depois!
- Acredito que essa força que me empurra para fora
desse casulo sabe o que está fazendo. Vou confiar
minha vida a ela e descobrir o que há por trás dessa
mudança que todos temem.
- Louca! Deves estar louca, só pode ser! – Gritou a
outra semente - vais abrir mão da única coisa que nos
mantem seguras? Abrir-se é o fim para qualquer
semente! Nenhuma semente jamais voltou para contar
o que acontece depois de nos abrirmos.
- Mas de que adianta continuarmos aqui? O que pode
acontecer de novidade nesse mundo escuro no qual
vivemos? É sempre a mesma coisa, a mesma rotina, o

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Duas Sementes por Mardânio Militão

mesmo tudo igual! E tanto esforço para que? No final


temos de nos entregar mesmo contra nossa vontade.
- Mas aqui, pelo menos, sabemos o que vamos
encontrar!
- Pela fresta que se abre vejo entrar uma luz que me
ilumina! E pela primeira vez em toda minha solitária
existência sei que existe algo mais do que a escuridão
na qual todas nós temos vivido! Vislumbro um céu
repleto de estrelas! E como são belas as flores
distribuindo incondicionalmente seu perfume pelo ar.
Agora vejo, pela casca que se rompe o espetáculo da
chuva, o milagre do trigo virando pão, alimentando a
mulher e o filho que cresce em sua barriga! Se a morte
é o preço que devo pagar para conhecer o que todo
esse incrível universo significa, então eu pagarei! Não
vou resistir!
- Mas essa casca tem sido nossa morada, nela temos
vivido com segurança.
- Isso é verdade, mas depois de tudo o que vi, a beleza
e imensidão desse universo mesmo que apenas de
relance, essa casca que por tanto tempo tenho
chamado de lar, agora mais me parece uma terrível
prisão! Por quanto tempo mais teremos de lutar contra
as mudanças até percebermos que todo esse esforço é
pura futilidade, e que nele estamos desperdiçando
nossas vidas? Quem sabe a vida seja apenas uma
oportunidade de reunirmos coragem suficiente para
darmos o salto no desconhecido!
- Abandonar a casca que nos limita é perder toda a
segurança que conseguimos com tanto esforço!

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Duas Sementes por Mardânio Militão

- O que outrora significou segurança tornou-se agora


nos limites que me sufocam. Aquilo que possuímos,
com o tempo passa a nos possuir. Passamos a viver
unicamente para manter aquilo que o tempo trouxe e
agora quer levar. Que leve! Não desperdiçarei mais um
instante sequer de minha curta existência lutando
contra o fluxo do tempo. Se eu seguir o rio, o rio não
me afetará, mas será a própria força por trás de minhas
ações! Não mais lutarei contra o tempo, contra as
mudanças que ele trará, mas farei delas o meu espelho,
o meu guia. O tempo será de agora em diante um
amigo bem-vindo, que encontrará está casa sempre de
portas abertas. O tempo que trará por fim a morte, um
dia trouxe meu próprio nascimento, brindou-me com a
infância, regalou-me com a juventude. Se pude receber
sem hesitar todos esses momentos, por que deveria
recusar mais essa mudança?

O tempo mostrou-se sábio, mudando as estações,


dividindo os dias em noites e dias, os anos em meses,
contando com precisão os meses de uma gestação. O
tempo trouxe a chuva das monções, o calor do verão,
as cores da primavera, a solitude dos invernos e a
placidez do outono. O tempo deu a cada ser vivo seu
próprio ciclo de nascimento, reprodução morte. Então,
diante de tão profunda sabedoria por que deveria eu
mostrar resistência? Tudo que pode ser visto está em
contínua mudança. O sofrimento advém da mente que
se apega a um momento e pretende segura-lo por mais
tempo do que o permitido. Tudo que vem precisa partir
para dar lugar ao novo. Tudo que se junta precisa se

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separar para tornar a unir-se em outro lugar, de outra


maneira. A mudança é a única coisa constante em todo
o espetáculo da existência. Lutar contra a mudança,
agarrando-se ou evitando este ou aquele momento é a
causa de todo sofrimento. Por todo esse tempo vive em
constante esforço contra o fluxo do tempo. Que grande
tolice! Por que não fazer dessa força invencível minha
própria força?
- Esforço é tudo que tenho!
- E com todo esse esforço, entretanto, torna-te cada
vez mais feia, mais egoísta, mais isolada de todos, mais
cheia de remorso e medo. Vê as rosas como são belas!
Abandonam a casca e mostram-se em toda sua beleza
e plenitude. Tu com todo teu esforço só tens
acumulado mais e mais sofrimento. Quando ti olhas no
espelho vês uma imagem que só tu mesmo enxergas.
Ti achas bela, mas quem ti vê só encontra egoísmo e
prepotência. Se conseguisses pelo menos uma única
vez enxergar uma flor em sua totalidade, toda tua vida
se transformaria!
- Mas ela não precisa lutar pela sobrevivência!
- Como não? Claro que sim! Tudo que vive luta pela
vida, mas a flor ao contrário de ti, abre-se para a vida e
confia na existência para guiar-lhe em direção ao seu
próprio florescer. A flor não força nada sobre ninguém
nem sobre si mesma. Não pede atenção e, no entanto,
todos buscam sua beleza. Olhe bem de perto e com
bastante atenção uma flor, uma rosa, uma árvore e
veja como sua beleza é fruto de uma aceitação
completa de si mesmo e do mundo. É o esforço por
parecer bela que ti torna feia, é o esforço por libertar-

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se que ti aprisiona. Tu não podes contra a existência,


então flui com ela e descobre tua verdadeira beleza!

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Resistência

A névoa da manhã já havia se dissipado


completamente, disparando os sentidos de alerta do
pequeno esquilo que subia, apressadamente, pelo
tronco do carvalho, buscando a segurança de seu
esconderijo. De longe uma coruja observava
atentamente todo o território, aguardando a
oportunidade certa para um ataque perfeito.

- Não! Não quero me aventurar em nada novo se isso


me custar tudo que conheço. Como poderia, em sã
consciência, pagar com a vida que tenho, uma viagem
rumo a não sei o que? Prefiro viver como me ensinaram
e colher o que todos têm colhido.
- Mas isso não é viver! É meramente repetir
mecanicamente a forma como outros viveram. Onde
está a beleza, a alegria, o encantamento de viver
assim?
- Mas pelo menos sei o que terei.
- O que terias a perder? O medo? A luta constante por
acumular coisas? O esforço sem tréguas para ser aceito
pelos demais? De que vale isso? Não estarias a perder
coisa alguma de valor, mas a livrar-se de todo esse
terrível fardo!
- E nossos amigos e parentes e todo nosso convívio?
São nada para você?
- Decerto que são importantes para mim também, mas
não há o que fazer. Todo esse esforço é adiar o
inevitável, e quanto mais se adia mais sofremos com a

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Duas Sementes por Mardânio Militão

expectativa! Prefiro enfrentar e acabar com esse medo


de uma vez por todas. E prefiro fazer isso enquanto
minha mente está repleta da energia. Agora vejo que a
vida não é uma resposta, mas uma pergunta que não
pode ser respondida com palavras e teorias, a não ser
com um salto de fé! Preciso acreditar que todo esse
universo é regido por uma inteligência e tem um
propósito maior do que simplesmente me torturar.
-Mas podemos resistir!
-Até quando? Até o esgotamento de nossas forças para
então sucumbirmos inertes ao tempo, contra nossa
própria vontade, dando o saldo que forçosamente
deveremos dar, mas sem forças e energia suficientes
para aproveitar e aprender com a viagem? Não! Quero
dar o salto consciente dele. Quero perscrutar lhe cada
instante. Se temos de mergulhar no desconhecido, se
esse desconhecido se chama morte, quero fazê-lo pleno
de energia!
- Louca! Porque desperdiçar teu tempo em vez de
aproveitá-lo até o fim?
- Da forma como vivemos não somos nós que temos
tempo, é o tempo que nos tem. Quero escapar de suas
garras. O tempo nos traz coisas apenas para leva-las
embora, e nós sofremos por nos agarra a elas. Quero
descobri se existe outra forma de viver, repleta de
alegria, contentamento, onde o tempo não mostre seu
poder.
- Mas tempo é tudo que somos! Por que lutar contra
isso?
- Porque agora vejo que o próprio tempo é o fim de
todas as coisas, e para conseguirmos nos libertar de

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Duas Sementes por Mardânio Militão

todo o sofrimento que ele nos traz precisamos dar um


fim a tirania do tempo em nossas vidas! Somos
escravos do tempo, e enquanto estivermos
acorrentados a ele seremos por ele subjugados! Tudo
que é tocado pelo tempo já está morto, e a única forma
de nos livrarmos de suas garras é morrendo para tudo
que faz parte do tempo. O tempo trás, o tempo leva.
Agarrar-se a esse fluxo é sofrer e ser escravo dos seus
caprichos. Por que não fluir com ele?
- Cospes no prato que comeu! Até ontem a casca era o
mais seguro dos lares, e hoje dizes que é uma prisão!
- Veja! Eu vi a água virando chuva, e a chuva
alimentando a floresta, e a floresta dando seus frutos e
perpetuando a vida! O que aconteceria se a água
decidisse resistir a mudança do estado líquido para o
gasoso? A vida seria impossível! E não é que ela não
tenha resistido, pois resistiu sim, bravamente, mas
quando tudo estava preparado, quando o tempo da
mudança chegou ela se deixou levar.

Não uma água velha, já quase morta, mas viva,


pulsando de alegria! E assim, subindo ao desconhecido
do céu e se entregando as forças invisíveis dos ventos,
viajou muitos quilômetros para cair sobre os montes,
escorregar por entre vales e rios, trazendo para a terra
os nutrientes necessários a todos nós! Veja, não existe
morte! Vi isso com meus próprios olhos, e tudo isso
durante um pequeno instante em que minha casca se
abriu. O que mais não haverá para saber quando a
abertura for total, completa, sem restrições?

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- Mas abrindo-se do modo como pretendes não mais


existirá você!
- Exatamente, amiga, compreendestes enfim a questão!
Abrindo-me totalmente serei coma a gota de orvalho
que, se lançando ao mar, deixa de ser gota para tornar-
se oceano!
- Mas desse modo onde estará minha individualidade?
Assim perderei meu sentido de eu!
- É exatamente esse sentido de eu que nos mantém
prisioneiras do tempo! Não olhando para o fluxo que
permeia todas as coisas, nos identificamos com esse
pequeno casulo ao qual chamamos de eu. Isso cria
uma falsa divisão, nos isola do contexto maior da vida,
nos faz lutar contra tudo e contra todos, nos enche de
medo, de egoísmo, e de uma ganância relativa à de
uma criança que não conseguindo compartilhar os
brinquedos vê-se obrigada a brincar sozinha, isolada
das outras crianças.
- Mas esse é um sacrifício muito grande, não posso
fazê-lo.
- Só parece grande porque tudo que conheces é teu
próprio eu, pequeno e cheio de medo, lutando contra a
metamorfose que pode ti revelar tua verdadeira
natureza. Não mais me espanta o tédio que sempre
sentimos. Como poderia ser diferente? Como minha
vida poderia ser alegre e nova se tudo que fiz foi me
esforçar para que todas as coisas, na medida do
possível, continuassem exatamente iguais? Veja a
contradição na qual vivemos! Ansiamos pelo novo, mas
repetimos o velho! O amanhã é o agora. Não poderia
ser de outra forma. Se o meu agora é fruto do passado,

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então o que mais poderia colher senão o mesmo


passado, velho, conhecido, carcomido e repintado como
novas cores para dar um certo ‘ar de novidade’?
- Isto bem é verdade. Fazemos sempre as mesmas
escolhas, colhemos sempre os mesmos resultados...,
mas o medo...
- O medo é apenas um pensamento! Não precisas
segui-lo.
- Mas não tenho coragem...
- Não tem porque talvez ainda não estejas
suficientemente empanturrada com as velharias do
passado. Talvez não tenhas obtido tanta frustração
quanto possível, ou porque simplesmente não queres
olhar para tua própria vida! Vai ao espelho, não o do
banheiro, mas ao espelho dos relacionamentos, faze
isso agora mesmo e me diz o que estais a ver; uma
semente feliz? Sem medo? Ou o que?
- Vejo uma semente cheia de medo, isolada de tudo
que a cerca, desconfiada de todos. Vejo auto piedade,
desejos e um terrível medo da morte. Parece que a
qualquer momento a morte virá e levará tudo que
tenho.
- É o que certamente acontecerá se continuares a ti
agarrar! Essa é a única coisa que dá poder ao tempo;
tentar impedir seu fluxo. Veja, o tempo não é mau,
apenas é como é. Chegada e partida fazem-no existir.
Resistir a isso resulta em dor, sofrimento e violência.
- Mas se não lutar contra o tempo perderei tudo e
todos que fazem parte de minha vida!
- Enquanto lutas contra o inevitável, perdes a
oportunidade de verdadeiramente amar tudo e todos

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que ainda estão em tua vida! Com o tempo, após tanto


esforço, cada coisa de tua vida parecerá para ti apenas
motivo de cansaço e enfado! Tudo isso porque
acreditastes na ilusão do controle. Profundamente cego
pela tua própria escuridão particular, tens vivido como
se as coisas fossem garantidas por ti! Investigas e
verás que tudo que experimentas, cada
relacionamento, cada respiração, cada pulsar de teu
coração ti foi dado! O que podes fazer é interferir nisso,
e é bom que o faças com sabedoria, pois certamente a
vida vai exigir que se esforces, mas no sentido de
aproveitar da melhor forma possível aquilo que ti é
dado. Vida não é uma conquista, mas uma dádiva, e
não está sob teu controle.
- Tudo que sei é que tenho um terrível medo da
morte...
- Esse medo é fruto de tua cegueira. Estai a viver em
escuridão, tropeças numa corda e pensas ser uma
cobra. O que ti acontece?
- Imediatamente encho-me de medo, claro. Uma picada
e seria o fim.
- E o que acontece quando se joga luz sobre isso e de
repente descobre que a ‘cobra’ era apenas uma corda
enrolada?
- Ah! Um alívio imediato.
- De onde veio o teu medo?
- De não saber a verdade sobre a ‘cobra’.
- E de onde veio o alívio?
- De saber a verdade a respeito dela, ora!
- Então é verdade que a verdade liberta! E também é
verdade que o sofrimento é a falta dela, assim coma as

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trevas são apenas ausência de luz. Vives num quarto


escuro chamado ‘eu’. Nada podes fazer em relação a
escuridão, mas pode fazer algo em relação a luz. O que
é?
-Deixa-la entrar.
- E como podes fazer isso?
- Abrindo uma porta, uma janela.
- Então por que segues lutando contra a abertura que
naturalmente se apresenta! Queres a verdade, mas não
permite que a luz entre! Que contradição! Para
conhecer a verdade terás de abandonar a mentira na
qual tens vivido. Tudo que sabes e em que acredita
nasceu da escuridão, tal qual a crença de que a corda
era uma cobra! Não tens de lutar contra nada, apenas
lançar luz sobre isso. Mas se vives fechado em ti
mesmo, como poderá a luz entrar em teu escuro
mundo particular e ti revelar a verdade?
- Tudo que sei é o que me disseram.
- E tu mesmo sabes disto? Ou alguém dos que ti falam
isso sabe por ele mesmo? Ou apenas repetem o que
lhes foi transmitido pela tradição?
- Tudo que sei é o que me disseram, assim também
aconteceu com todos eles; todos temos aprendido que
a semente que se abrir morrerá!
- E eu, falando do que vi com meus próprios olhos, lhe
digo que a semente que não se abrir, essa sim morrerá!
A vida é uma oportunidade de fazeres uma escolha;
lutar por tua vida, e assim seguir vivendo isoladamente
até que o tempo abra sobre ti suas asas, ou, perdendo
a própria vida, dissolver-se no universo tornando-se um

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Duas Sementes por Mardânio Militão

com ele! Eis o segredo da vida; a única forma de uma


gota de orvalho não secar é lançando-se ao mar!
- Mas o fato é que sou apenas essa semente.
- Tão fato quanto a corda que há pouco era uma cobra.
O fato é que ti identificastes com essa ideia de
semente. E como toda ideia é tocada pelo tempo, tua
consciência ti alerta de que serás tragado por ele.
Morrerás apenas porque ti limitaste a essa ideia. Se
chamas de morte o fim da aparência das coisas, então
fica evidente que não há morte senão aparentemente!

- Tudo é tão transitório, e isso me assusta.


- E porque não deveria ser? A transitoriedade que ti
assusta nada mais é do que o rio da vida em
movimento. O que chamas de morte nada mais e do
que aquilo que há depois que o rio faz a curva e some
de tua vista. Se queres saber o que há despois da curva
terás de faze-la! Descobrirás espantado que lá é como
aqui! Não há morte tal como nos ensinaram, o que há é
continuidade. Veja; água aqui, agua acolá. Não é
sempre a mesma agua? Quando a água evapora não
deixa de ser água senão em outro estado.
- Sim, sem dúvida.
- Para aquilo que existe, não há possibilidade de não
existir! O que chamamos de nascimento e morte não
são mais do que momentos diferentes no mesmo fluxo
do rio que é a vida! Só existe existência! Eu vi a água
virando trigo, o trigo virando pão, o pão virando
criança, a criança brincando no rio que era ela mesma
em outras proporções, em outro estado. Somos o
próprio universo experimentando a si mesmo.

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- Mas a impermanência das coisas me faz sofrer.


- O sofrimento não advém da impermanência dos
eventos, mas do apego ou aversão a eles! Entenda que
agora é tudo que há. Só é possível amar alguém agora,
e só é possível demonstra-lo agora. É sempre esse
eterno agora! Os eventos ti assustam por que acredita
existir separada deles. Quando a água está no rio
chama simplesmente de água, mas quando a bebes
como a chamas?
- De eu!
- Água fora, agua dentro, não é apenas água? Quando
ela se transformou em eu? Vês! Isto é um erro
grosseiro de percepção. Investiga tudo que chamas de
‘eu’. Descubra se esse ‘eu’ existe, pois é a crença de
que ele existe separado de todo o restante do universo
que ti enche de medo, com a possibilidade da morte, e
te enche de desejo com a crença no ganho. Se não
existe ‘eu’, então não pode existir a morte para esse
mesmo ‘eu’.

Para aquilo que não existe, não existe a possibilidade


de existir, consequentemente não poderá experimentar
a morte. O que existe jamais poderá deixar de existir,
pois nada pode ser realmente destruído, senão a ideia
errônea de que ele existe.
- Vejo que estais decido a se abrir. Por vezes sinto fazer
sentido todas essas coisas que tu falas, mas não
poderei seguir-te o exemplo.
- Nem deves. Fazes o que manda teu coração. Escuta-o
atentamente, ou cairás na mesma armadilha de viver
uma vida mecânica, de imitação e ajustamento. Quanto

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Duas Sementes por Mardânio Militão

a mim já me vou. Impossível ficar aqui depois de ver


tudo que vi.
- E nada levarás contigo?
- Nada. Aliás se continuasse a carregar algo o abrir-se
seria impossível. É o pensamento de ‘meu’ que nos
mantém aqui, presos e limitados a essa escuridão.
Agora vejo o que sempre fui, recupero o conhecimento
sobre minha verdadeira natureza. Eu sou o cosmos e o
grão de areia. Eu bebo de mim mesmo! Eu sou o
espaço do qual tudo emana, e sou cada coisa que nele
se manifesta. Eu crio e recrio esse universo
constantemente. Dou e recebo de mim mesmo.
...
...
...
-Ei! Você ainda está aí?
...
- Sim, ainda.
- O que houve?
- Não sei ao certo. Por um momento pareceu que todas
as coisas haviam perdido seus limites... tornando-se um
só fenômeno de existência!
- O que havia então?
- Contentamento sem motivo, felicidade sem forma e
um sentido de auto existência, uma completa ausência
de tempo, sem nenhum vestígio de medo!
- E agora?
- Agora tudo voltou a ser como sempre me pareceu ser.
Os limites, as divisões, os conflitos, a sensação de ser
separado de você e de tudo que me resta. Que tristeza
viver assim... Não posso mais viver identificado com

[ 19 ]
Duas Sementes por Mardânio Militão

essa forma, pois agora tenho a certeza de que o


esforço por perpetuar essa identidade é a causa de
todo meu sofrimento. Por que você não relaxa e deixa a
metamorfose seguir seu curso?
- O que você está me propondo? Trocar o conhecido
pelo desconhecido? O certo pelo duvidoso?
- Sim, estou propondo uma troca, mas não exatamente
nesses termos. Proponho lhe trocar o limite pelo
ilimitado, o velho pelo novo, a prisão de sua mente pela
liberdade de toda a existência. O que você tem de
certo? A escuridão, a repetição, o tédio, o medo, o
ajustamento, a vida mecânica e a morte sentada em
seus ombros?
- E o que eu ganharia com o desconhecido?
- O próprio fato de ser novo, vivo, real, não apenas
uma memória que lutamos para manter acessa à custa
de nossas vidas.
- Sinto muito. Não consigo livrar-me da vida que
conheço. E bem reconheço que ela não é lá essas
coisas. Muito esforço, pouca recompensa, medos e
frustrações, mas por incrível que pareça não consigo
livrar-me dela.
- Pois agora sou eu quem sente muito. Se o
desconhecido é uma escuridão, maior é a escuridão na
qual estamos vivendo, acreditando em crenças que
nunca se mostram reais, esperanças que nunca se
realizam. Seja como for o desconhecido, vou atirar-me
nele, pois uma coisa tenho certeza, ele é real, pois não
é exatamente o desconhecido que está, a cada
instante, invadindo nossas vidas? Agora vejo que a
incerteza do instante seguinte se transforma nas

[ 20 ]
Duas Sementes por Mardânio Militão

experiências que havemos de viver. Até agora temos


vivido orientados pelo pensamento, que por sua
natureza é meramente um movimento da memória,
uma reação da memória a um estímulo qualquer. Isso
não é viver, é repetir o passado. O pensamento apenas
acrescenta mais desordem e conflito, pois tenta
perpetuar o velho sobre o novo, sobrepor aquilo que
não mais existe sobre a realidade do aqui e agora.
Quando olhamos para uma pessoa nunca estamos a vê-
la realmente senão a imagem que, como um véu, nossa
memória projeta sobre essa pessoa. Nunca em minha
vida vi alguém realmente senão a imagem que fiz dela!
Isto é a cegueira do tempo laçando sobre o presente, o
véu da ilusão do passado morto e acabado.

- Mas sem memória eu não sou nada!


- A memória sempre estará aí, mas o que não
precisamos é viver sob sua tirania! A vida nos chega a
todo instante, renovada, mas tudo que enxergamos são
nossas velhas memórias e assim a vida nos parece tão
cinza! A vida nos chega sem aviso, o instante seguinte
é incerto, logo é preciso viver em harmonia com essa
realidade se quisermos encontrar um sentido de beleza,
de liberdade e contentamento.
- Você está me dizendo para esquecer o passado e o
futuro?
- Sim! Agora vejo que o passado é apenas memória, e
o futuro mera projeção dessa mesma memória. Apenas
o agora é real, pois apenas no agora algo pode ser
realmente feito! O pensamento sobre o futuro gera o
medo, o pensamento sobre o passado gera a

[ 21 ]
Duas Sementes por Mardânio Militão

preocupação. Apego e rejeição são as doenças da


mente.
- Mas não consigo abandonar tudo que tenho, tudo que
conheço.
- Mas não tens nada! Não conheces realmente coisa
alguma. Tudo que tens são memórias, e tudo que
conhece são as imagens que essas memórias criaram!
- Tudo que sei é que preciso me agarrar a alguma
coisa!
- Não adianta segurar-se, não adianta segurar coisa
alguma; tudo vem por si mesmo, e por si mesmo tudo
simplesmente vai. Usufrua enquanto pode, mas tenha
consciência de que tudo é mera unidade de tempo. Não
se apegue e dê o salto! Perca tudo e ganhe tudo.
- Não, de jeito nenhum posso permitir essa abertura
em mim. Tudo que sou é fruto de toda a minha
resistência e agora você vem me dizendo para
simplesmente abandonar tudo!
- Não se trata de abandonar coisa alguma, daí seu
medo. Tudo que é preciso é olhar com mais cuidado e
ver as coisas como elas são. O resultado disso, seja
qual for, não depende de você. Lembra do caso da
corda que parecia cobra?
- Sim, lembro.
- Enquanto você não via com clareza o que lhe
ocorreu?
- Medo.
- E quando você lançou luz sobre a cobra e viu que era
apenas uma corda enrolada, o que aconteceu?
- O medo se foi.

[ 22 ]
Duas Sementes por Mardânio Militão

- Percebe que você não teve de trabalhar diretamente a


respeito do medo, mas tudo que fez foi ver com
clareza? O medo sumiu como resultado do
entendimento correto da situação. Eis porque a verdade
liberta. Liberdade é o resultado de conhecer a verdade!
Se o que você sabe não ti liberta, então obviamente o
que você sabe não é verdade, mas meramente uma
forma sutil de prisão.
- Mas e quanto às pessoas que conheço?
- Jamais conhecestes ninguém realmente, senão as
imagens que tu mesmo projetaste sobre elas. Até hoje
tem olhado para teus próprios pensamentos apenas.
Escutado unicamente a ti mesmo, como quem tornar a
escutar milhares de vezes o mesmo disco velho, virado
e revirado de um lado para o outro. Tudo em tua vida
se repete, porque tudo em tua vida é repetição de um
passado projetado com ares de futuro. Agora vou
relaxar e permitir que o universo me guia para onde em
entender. Rendo-me a abertura que já se faz grande
em minha casca. Adeus cara amiga, pois a luz que me
ilumina, nesse mesmo instante me cega, mas sei que
em breve tornarei a enxergar quando meus olhos se
acostumarem à luz da existência.
- Fica comigo mais um pouco, me fala mais sobre tua
visão.
- Ouvir a palavra água não matará tua sede. E vejo que
tua sede pela verdade não é ainda grande o suficiente,
não significa tanto para tu a ponto de sacrificares tua
própria vida para descobrir se existe tal coisa chamada
felicidade. Cada coisa tem seu tempo, cara amiga. O
meu já chegou, o teu ainda não veio, mas não ti

[ 23 ]
Duas Sementes por Mardânio Militão

preocupas, nada poderá fazer para apressa-lo, e


quando ele chegar nada poderá fazer para detê-lo.
Agora só me resta entregar-me numa suave rendição,
abrindo mão do esforço, relaxando na graça que
sempre nos banha.
Aceitação

O ataque fora preciso! No último instante a coruja abriu


suas asas, freando bruscamente, estendendo para
frente suas garras e capturando um pequeno
camundongo que, dando demasiada atenção à sua
comida, descuidou de seus arredores. A devotada
coruja conseguira garantir a refeição matinal de seus
filhotes e agora poderia descansar até a noite, quando
a batalha pela vida se renovaria.

- A abertura se fez total, os limites se dissolveram e eis


que tudo se fez novo! Agora vejo a árvore, e não a
ideia de árvore. E nessa árvore vislumbro todo que
existe no universo. O fruto que o homem um dia
comeu, a semente que um dia germinou, a água da
chuva, que veio do longínquo oceano e regou-lhe as
raízes. Tudo está aí, diante de mim como sempre
esteve. Como poderia ser diferente? Cada semente que
conheci, limitada à circunferência de sua casca,
separada uma das outras, compõe agora todo esse
espetacular universo manifesto.

Cada coisa em si perdeu seus próprios limites e


ganhou, pelo menos para mim, a vastidão do cosmos.
Não vejo mais divisão entre sol e árvore. Nunca houve!

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Duas Sementes por Mardânio Militão

Montanhas e nuvens fundiram-se numa percepção


completa de todo o quadro da existência. Eu próprio
me dissolvi, perdendo qualquer limite que poderia ser
apontado como sendo ‘eu’. O amor que cobria apenas
aquelas coisas que eu nomeava de ‘minhas coisas’, e
que me enchia de medo e agitação, agora se estende
para todo o universo banhando-me e uma paz sem
igual. Cada pessoa que vejo sou eu próprio, e eu
mesmo me vejo em todas as pessoas. Como poderia
fazer mal a alguém, ou sentir raiva, aversão ou apego
por essa ou aquela pessoa em particular quando agora
vejo que todos somos um só ser senciente? O mal que
faço a mim, é o mesmo que faço a todos. O perdão que
dou ao próximo é o perdão que dou a mim mesmo.
Assim como trato é assim que sou. O relacionamento
tornou-se o espelho cristalino onde olho diretamente
para meu próprio ser. Nunca houve inimigos além de
mim mesmo, limitado e apegado ao delírio de existir
separado de todo o resto. Já não existe mais a gota,
mas tão somente o imenso oceano da existência.

Eu já não sou mais apenas eu, mas todos e tudo que


percebo. Eu sou a noite escura e o dia radiante, a ave
de rapina e o filhote indefeso. Eu sou aquele que tem
sede e a água que ele bebe. Eu sou a existência e
antes da existência. Eu sou a memória dos tempos e os
tempos que ainda virão. Não há mais divisão em mim.
Sem dentro e sem fora, sou o manifesto e o imanifesto,
sou a mulher grávida e a criança em sua barriga. Eu
sou meu próprio pai, filho, mãe e mulher. Todas as

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Duas Sementes por Mardânio Militão

manifestações sou eu, e ainda assim eu não sou


nenhuma delas em particular.
Nesse magnífico universo tudo, absolutamente TUDO É
POSSÍVEL! A água sobe dos mares ao céu, viaja
quilômetros e desagua sobre montes, escorrega por
entre vales, enche rios, alimenta plantações e abastece
a terra com os nutrientes necessários à perpetuação da
vida. Nesse incrível universo milagres saltam aos olhos
dos cegos que não veem que o trigo, virando pão,
alimenta e se transforma na criança que a mulher
carrega em seu ventre. Apenas cegos pedem por
milagres num universo onde tudo, absolutamente tudo
é um milagre.
O fim da morte e do sofrimento é a profunda aceitação
do universo e a libertação da ideia si mesmo.

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Duas Sementes por Mardânio Militão

Florescer

O sol marcava meio-dia. A sede levava os animais a


procurarem as águas do riacho que corria ali próximo.
Naquele momento de restauração várias espécies se
revezavam, cada qual mantendo os sentidos sempre
alertas para não se demorarem mais do que o
necessário. Do alto das árvores macacos desfrutavam
de privilegiada visão, assistindo a tudo com muita
empolgação.

-Agora tudo que eu julguei ter perdido surge diante de


mim. Vejo cada um de meus amigos, parentes,
conhecidos e todas as pessoas desconhecidas em cada
átomo desse universo. Vida e morte, ganho e perda é
somente uma ideia equivocada que pertence ao sonho
no qual eles continuam vivendo. Sinto-me leve. A
obrigação abandonou-me.

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Duas Sementes por Mardânio Militão

Tudo é feito sem que, no entanto, eu carregue a


sensação de que isto ou aquilo foi feito por mim! Tudo
quanto faço parece ser feito não apenas por mim, mas
por todo o universo! Sinto uma força e calma
tremendas! Tudo vem e tudo vai compondo um
espetáculo sem fim. Eu me situo como um observador
de todo esse esplendor que se desenrola dentro e fora
de mim, e que ao mesmo tempo sou eu mesmo! O
observador e o observado são o mesmo! Criação nada
mais é do que o próprio criador a se recriar! Longe está
a forma-semente com a qual um dia me identifiquei.
Pela qual lutei, sofri e fiz sofrer. Sem forma e com
todas as formas é o ser. Em nenhum lugar e em todos
os lugares ao mesmo tempo. Bebo da chuva que
alimenta as flores e vejo que eu, chuva e flor somos um
só movimento! Sem divisões, sem medo, intocado pelo
tempo, tudo muda e ao mesmo tempo segue imutável
seu ciclo. Sou a passagem e aquele que por ela passa.
O segredo da eternidade é a descoberta dela, a vitória
sobre a morte é saber de sua completa inexistência.
Sem fim nem começo, estou acordado.

A névoa da manhã se dissipava lentamente. As últimas


gotas de orvalho escorregavam por entre as folhas,
galhos e flores, umedecendo o solo, fazendo renascer a
vida. O sol, imponente, se erguia por sobre a densa
floresta repleta de árvores centenárias, despertando
animais e plantas para as atividades de um novo dia.

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