Você está na página 1de 10

O TERRITÓRIO BRASILEIRO COMO RECURSO DAS

PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRANSPORTE POR APLICATIVOS

Fábio Tozi

Professor do Dep. de Geografia, UFMG

fabio.tozi@gmail.com

Resumo

O artigo traz resultados de pesquisa que tem se dedicado a acompanhar a chegada e


a ação das empresas de transporte por aplicativos ao Brasil. Mesmo recente, a
expansão territorial das corporações, todas estrangeiras, é rápida, revelando uma
impressionante capacidade de adaptação aos diferentes lugares do território nacional.
Além disso, as empresas, a despeito de eventualmente concorrem entre si,
regionalizam o território, criando monopólios e oligopólios territoriais. Por fim, debate-
se as pelejas jurídicas entre as corporações de plataforma e os municípios e
apresentam-se alguns temas ainda em aberto à guisa de considerações finais.

O território como recurso, ou como plataforma

Mesmo recente, a ação de empresas de transporte por aplicativos no Brasil tem


direcionado diversas mudanças no uso e na regulação do território, criando um fato
que se impõe, simultaneamente, às escalas municipais, regionais, estaduais e
nacional. Ao mesmo tempo, é possível acompanhar como a organização histórica do
território também se impõe a essas empresas, criando situações complexas que

1
revelam as contradições do atual período histórico. Defende-se, que alguns desses
processos são centrais para a compreensão das relações entre o território nacional e
as empresas de tecnologia baseadas na informação como fator produtivo, que, no
caso dos aplicativos de transporte são representadas por Uber (EUA), 99 (CH) e
Cabify (ES).

A chegada de tais empresas acompanha a banalização do meio técnico-


científico-informacional (SANTOS, 1996) e de uma psicoesfera (idem) da
modernidade, alimentada por um léxico no qual se destacam noções como inovação,
empreendedorismo e tecnologias disruptivas, como bem analisam Slee (2016),
Srnicek (2016), que acabam por escamotear os novos processos de precarização das
relações de trabalho via uberização (ABÍLIO, 2017; POCHMANN, 2016; ANTUNES,
2018). Todavia, embora se definam como empresas de tecnologia, a ação concreta
dessas empresas se dá no setor de transportes e é inteiramente dependente das
materialidades do território (TOZI, 2018): sistema viário, estações de ônibus, BRT
(Bus Rapid Transit) e metrô, localização dos serviços, comércios, moradias e
empregos, entre outras. Portanto, pode-se afirmar que a economia política do território
nacional, entendido como o processo histórico desigual e combinado da formação
socioespacial brasileira e a economia política da cidade apresentam um papel ativo
na localização e na lucratividade dessas empresas.

O Brasil se torna, a despeito da presença global da empresa, um de seus


mercados centrais, apesar de sua presença em dezenas de países. Em 2016, o país
já havia se tornado o segundo país mais rentável para a Uber, atrás dos EUA, e as
áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo eram as cidades com o maior
número de viagens no mundo. Um ano depois, cinco áreas metropolitanas respondiam
por cerca de 25% do total de viagens: Los Angeles, Nova Iorque, São Francisco,
Londres e São Paulo1, revelando que a despeito da flexibilidade informática da sua

1
Uber Technologies, Inc. Form S-1 Registration Statement. United States Securities and Exchange
Commission (2019). Disponível em:
https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1543151/000119312519103850/d647752ds1.htm. Acesso
em 29/04/2019.

2
plataforma, as condições territoriais condicionam os rendimentos diferenciais da
empresa.

Logo, pode-se comprovar empiricamente que uma das hipóteses seminais


sobre a “Geografia da Uber” (Lincoln, 2014), não se realizou. Ao contrário do que
defendia o autor, para quem a Uber teria menos chances de sucesso em cidades
como Rio de Janeiro e São Paulo, são justamente essas cidades as responsáveis pelo
sucesso da empresa em território nacional, assegurando, em escala global, a
expansão para novos mercados geográficos. O autor argumenta que essas cidades
brasileiras, por possuírem sistemas informais e flexíveis de transporte que atenderiam
às necessidades de deslocamento –criando um mercado local e regional que não
seguiria os princípios da economia de mercado -, estabeleceriam uma barreira
geográfica à inovação trazida pelos deslocamentos via plataformas digitais.
saber se ja coloquei esse trecho acima
Mesmo que a Uber não tenha eliminado totalmente tais sistemas informais
flexíveis, sua virtuosa expansão mostra a capacidade da empresa de se impor como
um evento novo ao conjunto da população e do território, fato que estaria presente
também em outros países com sistemas informais, como a Índia, Rússia e China,
onde grandes corporações nacionais de transporte privado por plataforma se
formaram, respectivamente Grab, Yandex e Didi, muitas vezes com acordos de
cooperação com a própria Uber.

Em relação a esse novo mercado em vias de criação, cabe destacar que as


três empresas estrangeiras que agem no território nacional dividem-no em
monopólios, duopólios ou oligopólios territoriais. Logo, a eventual ação disruptiva
reforça formas clássicas de ação da grande empresa capitalista. As deficiências
históricas das diversas redes de transporte no país também contribuíram para a rápida
expansão das empresas. Da mesma maneira, há um financiamento da criação de um
novo mercado, que envolve, no caso, tanto a adesão de motoristas quanto de
consumidores (que são beneficiados com bônus ou descontos, respectivamente),
além de despesas em tecnologia, informação estratégica, expansão da rede e
publicidade e marketing. Por isso, tais corporações, especialmente a Uber, por seu

3
pioneirismo, podem ser deficitárias (Gráfico 01). Não se pode descartar a hipótese
que a prática de dumping seja vigente, ou seja, a venda de um serviço a preços
inferiores aos do mercado, com o objetivo de tornar-se uma empresa hegemônica.

Gráfico 01: Uber - Demonstrações financeiras consolidadas (2016-2018)

Fonte: Uber Technologies, Inc. Form S1 Registration Statement. United States Securities and
Exchange Commission (2019).

Em sua estratégia territorial, a empresa iniciou suas operações nas grandes


metrópoles nacionais, áreas de concentração de consumidores e nas quais a
imobilidade é um fato geográfico latente. Esse momento inicial caracteriza o
conhecimento do território nacional a partir de suas maiores cidades, colocando
também à prova o sistema normativo estatal, uma vez que as empresas passam a
operar sem as devidas normas, logo, ilegalmente.

Da concentração metropolitana à expansão territorial: início das disputas


jurídicas

4
Em um segundo momento, são as cidades intermediárias as novas bases
geográficas da expansão das plataformas, particularmente a Uber, conduzindo a um
processo de consolidação de uma nova maneira de deslocar-se, via smartphones e
aplicativos online. Atualmente, as empresas estão presentes em pequenas cidades, o
que nos dá indícios para debater que a escala e o escopo dessas empresas se
sustentam em formas complexas de mercados territoriais, não excluindo, portanto,
aqueles lugares com baixa concentração populacional, apoiando-se, em
regionalizações, isto é, sem se ater aos limites político-administrativos municipais. No
mais, a que se acrescentar a essa situação o sucessivo aumento do desemprego no
país, transformando os carros particulares e as pessoas desempregadas em um
gigantesco exército de veículos e trabalhadores dessas empresas, mesmo que tais
vínculos não sejam, via de regra, juridicamente reconhecidos.

Observa-se, nessa ação, que a regionalização assume a função de uma


ferramenta da ação corporativa, como defende Ribeiro (2004, p. 202), para quem as
corporações regionalizam o território na “criação de nichos de mercado e possibilidade
de determinação de regras para a organização do trabalho e do consumo”. O início
das operações em Campinas (SP), marca o início da mudança da estratégia territorial
da Uber, antes concentrada em 12 capitais dos estados (Imagem 01). A cidade é parte
da região mais dinâmica e fluída do território nacional, onde o meio técnico-científico-
informacional encontra-se mais pujante e homogêneo.

Imagem 01: início da interiorização da Uber (set/2016)

5
Fonte: Levantamento realizado no sítio oficial da empresa.

Nesse momento, também se observam as primeiras leis municipais que


proibiram as empresas de transporte por aplicativo, notadamente as de Campinas e
Belo Horizonte. Portanto, nesse momento podem ser identificadas as primeiras
resistências políticas dos entes federados locais à chegada das empresas globais de
aplicativos de transporte, fato que se notabiliza pela constituição federativa da
república brasileira, na qual os entes municipais apresentam grande autonomia na
regulação do território, particularmente no que tange à organização e planejamento
do trânsito.

Algumas observações sobre a disritmia entre o tempo da corporação e a


resistência estatal devem ser ressaltadas: em Belo Horizonte, a Lei nº 10.900 (de
08/01/2016)2, regulamentada em abril do mesmo ano, determinava que as empresas
de transporte de passageiros que utilizassem aplicativos e seus motoristas deveriam
ser cadastrados junto à Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte
(BHTrans). Exigia-se, de fato, que o motorista fosse taxista com veículo e placa

2
PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Governo. LEI Nº 10.900.
Belo Horizonte, 08/01/2016.

6
licenciados pela BHTrans. Logo, a Lei visou proibir o funcionamento da Uber, que
somente poderia continuar em atividade se seus motoristas fossem taxistas já
cadastrados.

Contudo, no mesmo dia em que a Lei é regulamentada pela Prefeitura, a Uber


divulga uma nota na qual afirma que continuaria operando no município 3.
Evidentemente, não reconhecer uma lei é uma atitude legítima, entretanto é mais
relevante destacar o exercício do poder da empresa em face das decisões municipais,
que se apoiou, posteriormente, em liminares judiciais4 que autorizaram a sua atuação
no território belo-horizontino e mineiro5. Mesmo após a aprovação de uma Lei
Nacional (Lei nº 13.640, de 26 de março de 2018)6, que aparentemente pretendia
pacificar as inúmeras disputas que se davam no Brasil, a situação não se resolveu:
uma vez que a capacidade regulatória municipal é atribuição constitucional, os
municípios têm criado novas regulamentações envolvendo o transporte privado via
aplicativos. Em Belo Horizonte, quando este texto é escrito, a Prefeitura Municipal
havia encaminhado à Câmara Municipal um Projeto de Lei (490/2019) que, grosso
modo, equipara os veículos que trabalham com as plataformas ao serviço de táxi,
visando tornar a concorrência entre ambos mais justa.

3
UBER. Sobre a lei 10.900/2016, 2016. Disponível em https://newsroom.uber.com/brazil/sobre-a-lei-
10-9002016/. Acesso em 08/09/2016.
4
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Comarca de Belo Horizonte. 1ª Vara da
Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte. Mandado de segurança coletivo.
Processo: 5014923-75.2016.8.13.0024, Belo Horizonte, 10 de março de 2016; TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 6ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo
Horizonte. Mandado de segurança. Processo: 5117005-87.2016.8.13.0024, Belo Horizonte,
12/09/2016.
5
De acordo com a Liminar de 10/03/2016, decidida pelo Juiz Michel Curi e Silva, impetrada pela
SUCESU-MG (Sociedade de Usuários de Informática e Telecomunicações de Minas Gerais): “... o
serviço de transporte de pessoas oferecido através de aplicativo de dispositivo móvel (aparelhos
celulares, tablets etc), como por exemplo, o UBER, insere-se na modalidade de contrato particular de
transporte, não se confundindo com o serviço público de transporte prestado por taxistas, mediante
permissão do poder público” (ref. Proc. 5014923-75.2016.8.13.0024, 1ª Vara da Fazenda Pública e
Autarquias da Comarca de Belo Horizonte). Outra Liminar, de 09/09/2016, de autoria do Juiz Paulo de
Tarso Tamburini Souza e impetrada pela Uber junto à 6ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias de Belo
Horizonte, amplia a decisão para todo o estado de Minas Gerais (ref. Proc. 5117005-
87.2016.8.13.0024).
6
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13640.htm.

7
Considerações finais

Se a informação se torna uma força produtiva do século XXI, como argumentam


Veltz (2010) e RIFKIN (2014), faz-se necessário insistir no fato que a pobreza
estrutural, como defende Silveira (2010) impõe novas formas de resistência
impulsionais mais pela manutenção da vida do que na racionalidade do mercado.
Logo, coexistem, nos lugares, a plataforma mais moderna com novas relações de
trabalho altamente precarizadas.

Para o circuito inferior da economia urbana, a circulação de dinheiro a curto


prazo é vital, o que permite a sobrevivência, mesmo intermitente, na economia de
mercado. Todavia, a médio e a longos prazos, novas dívidas surgem aos motoristas-
parceiros: o desgaste veloz do carro, com tudo que disso decorre: seguros mais caros,
substituição de peças, manutenção preventiva, sem contar eventuais batidas e
amassados, potencialmente mais comuns, uma vez que a circulação é ininterrupta.
No mais, o dia-a-dia exige a compra de smartphones mais potentes, que possam
processar muitos aplicativos, plano de Internet mais veloz, a limpeza constante e
completa do carro, a realização de refeições fora de casa, as jornadas estafantes de
trabalho, acarretando doenças e cuidados especiais7.

Entre esses novos trabalhadores, como temos observado nas entrevistas que
conduzidos, há uma parcela importante que, de fato, se precarizou: engenheiros,
psicólogos, administradores de empresas, contadores, entre outros, que, demitidos e,
na impossibilidade de reinserção profissional, encontram nas plataformas um meio
digital de conquistar algum dinheiro. Se inicialmente esse trabalho podia ser
considerado eventual, ele acaba se tornando a principal forma de sustento de muitos
deles, em jornadas diárias superiores a 12 horas, seis ou sete dias por semana,
incluindo noites e madrugadas. Outra parcela dos motoristas não passou por esse
processo de precarização, haja vista que já possuíam uma qualificação simples, que,

7
Embora ainda não saibamos da existência de tais estudos, certamente as jornadas de trabalho desses
motoristas deve replicar doenças comumente encontradas em motoristas de táxis, de ônibus ou de
caminhão. Longos períodos sentados, má-alimentação, longas jornadas levam à obesidade, pressão
alta, dores na coluna e lesões por movimentos repetitivos.

8
na divisão social e territorial do trabalho, os caracterizaria, comumente, em atividades
do circuito inferior da economia urbana.

Finalmente, é válido ressaltar que se discurso das empresas as auto-definem


como plataformas digitais, elas, na prática, são altamente dependentes do território e,
especialmente, das especificidades locais, entendidas como a economia política da
cidade e suas aglomerações. A diferenciação entre esses espaços apresenta-se,
como em muitas outras corporações de outros setores, também como um diferencial
na obtenção de maiores taxas de lucro. Por isso temos insistido em opor plataformas
digitais a plataformas territoriais, uma noção que, acreditamos, reconecta empresas
ditas disruptivas à história e à geografia do presente.

Referências bibliográficas

ABÍLIO, Ludmila Costek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa


Palavra, 2017. Disponível em: <hppt://passapalavra.info/2017/02/110685>.
Acesso em: 16/10/2017.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era


digital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.

LINCOLN, Kevin. The geography of Uber. Pacific Standard, 11/09/2014. Disponível


em: https://psmag.com/environment/transportation-geography-uber-silicon-
valley-taxi-driving-smartphone-90446. Acesso em 02/10/2017.

POCHMANN, Márcio. A uberização leva à intensificação do trabalho e da competição


entre os trabalhadores, 2016. Entrevista a André Antunes. EPSJV/Fiocruz.
Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/a-uberizacao-
leva-a-intensificacao-do-trabalho-e-da-competicao-entre-os. Acesso em
21/11/2016.
RIFKIN, Jeremy. La nouvelle société du coût marginal zero. L'internet des objets,
l'émergence des communaux collaboratifs et l'éclipse du capitalisme.
Paris: Les Liens qui Libèrent, 2014.

9
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Regionalização: fato e ferramenta. In: LIMONAD, Ester;
HAESBAERT, Rogério; MOREIRA, Ruy. Brasil, século XXI – por uma nova
regionalização. Agentes, processos, escalas. São Paulo: CNPq/Max Limonad,
2004.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São
Paulo: HUCITEC, 1996.

SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos


países subdesenvolvidos. São Paulo: Edusp, 2004 [1975].
SLEE, Tom. What’s yours is mine. Against the sharing economy. OR Books, 2016.

SILVEIRA, María Laura. Da pobreza estrutural à resistência: pensando os circuitos da


economia urbana. Anais XVI Encontro Nacional de Geógrafos. Porto Alegre:
UFRGS/AGB, 2010.
STONE, Brad. The Upstarts. How Uber, Aibnb, and the killer companies of the
Silicon Valley are changing the world. New York: Little, Brown and Company,
2017.
VELTZ, Pierre. Un nouveau paradigme ? Essai de conclusion à deux voix. In: PARIS,
Thomas; VELTZ, Pierre (dir.). L’économie de la connaissance et ses
territoires. Paris : Hermann, 2010.
SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2016.

TOZI, Fábio. As novas tecnologias da informação como suporte à ação territorial das
empresas de transporte por aplicativo no Brasil. In: ZAAR, Miriam; CAPEL,
Horacio. (Org.). Las ciencias sociales y la edificación de una sociedad
post-capitalista. Barcelona: Universidad de Barcelona/Geocrítica, 2018.

10

Você também pode gostar