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Lendas e mistérios

Narrador: Santas noites a todos os caríssimos que aqui estais! É de mui honra e alegria que vos recebo
para que comigo possam viajar por entre os mistérios da nossa terra. Devo alertar vos, senhores que o que
ireis ouvir, aconteceu aqui e deixem que vos diga que são do mais fantástico que já alguma vez conheci. E
atentem que a minha vida não foi fácil, afinal de contas fui o primeiro. Muitos poucos mesteres me
apoquentavam… entendi como uma espada se maneja, como um cavalo se monta e como um homem
quebra. Aprendi como Deus Nosso Senhor é grande mas vi os meus antepassados levarem a mulheres
místicas as suas lâminas a serem esfumadas antes de grandes batalhas. Conquistei terras com a força de
Cristo mas vi aias contarem as luas e procurarem quem lhes premeditasse a boa fortuna.
Em tempos me disseram que me iriam erguer grandes monumentos e me iriam prezar para a eternidade.
Usariam a minha imagem ao peito e em momentos de festejo até me partiriam a espada.
Sempre compreendi aquilo que é terreno mas não aquilo que um homem não vê mas sente, aquilo que é
grande mas não tem forma, as maneiras de como as malhas misteriosas da vida se tecem é que nunca
consegui decifrar.
E por aqui, muito disso vi: mulheres que viam além, corredores de fado, ares talhados, gémeos de pais
diferentes, casas amaldiçoadas…
Atentem.

Saí de cena dando visibilidade total para o cenário.

O cenário é uma cozinha tradicional antiga, com cheiros e vapores e uma mesa composta de louça de
barro e alguns alimentos da terra. Uma mãe freneticamente limpa um prato enquanto observa com
desdém a sua filha. Laila, cantarolando e de sorriso ligeiro vai cosendo o seu xaile negro.
Mãe: Onde é que tu pensas que vais? Porque estás com pressa de remendar o xaile?- diz rispidamente.- tu
nem penses que…
Laila: Sim, vou! Vou esperar o meu amor à janela. É hoje.
Mãe: Tu não te atrevas a desafiar me, ainda sou tua mãe. Deves me respeito enquanto estiveres debaixo
destas telhas. Laila…
Laila levanta-se rapidamente e agarra carinhosamente a mãe interrompendo o seu discurso.
Laila: Não estarei muito tempo e tu própria disseste que mais cedo ou mais tarde iria sair daqui e ter a
minha própria casa, a minha família, as minhas lides para cuidar... Ensinas te me que toda a mulher tem
que casar e talvez com sorte faze-lo com alguém que ame… pois bem minha mãe. Eu amo o.
Mãe: Cala te! Cala te! Não te permito.- diz em fúria e confusão.- o que dizes é blasfémia. Ele não é um
homem Laila! Como não vês que estás a conspurcar com o demónio. Sim! O diabo… ele próprio. O
gaiteiro, o imundo.- continua num divagar quase lunático de medo e desespero.
Laila: Onde vês malícia eu vejo paixão.
Mãe: É pecado…- diz já choramingando
Laila: Onde vês pecado eu vejo amor.
Mãe: Tu és doente. Eu sabia que não devia ter pedido por ti.
Laila: Onde vês doença…
Ouve-se umas fortes bicadas na madeira e Laila saí de cena atrás do barulho.
A Mãe vê Laila sair e em movimentos exaustos e lentos encara o público com os olhos marejados.
Desloca uma cadeira para o centro e partilha a sua história.
Mãe: Diziam as velhas que o amor é tolice. Diziam as velhas que as moças eram loucas e que senão
atentassem ao fogo que traziam por debaixo das saias acabariam sozinhas. Ouvi as dizer que homem bom
é aquele que traz pão e é temente a Deus. Apaixonem me pelo Lázaro, carpinteiro e viúvo. Nunca tivera
filhos. Casamos e a aldeia olhou nos em desdém. Diziam as velhas que ele não podia criar vida. Jurei que
lhe daria três filhos. Assim foi. Os anos passaram e no meu ventre nada crescia. Então, eu sabia que
precisava de ajuda.
Fiz penitência a São Cosme e Damião levando no regaço uma fralda de pano com mel todos os sábados.
Nasceu a mais velha. Uma rapariga saudável e bonita. A aldeia apontou o dedo e disse que não era dele.
Lazáro disse me: «Se me amas irás dar me outra criança e que nela esteja entalhada a minha cara».
Morta de medo e desgosto, levei a minha filha no colo e fiz penitência a São Cosme e Damião todos os
sábados com um fralda de pano cheia de mel. Em poucas luas, eu emprenhei. Nasceu a do meio, feia
como o pai. A aldeia apontou o dedo e disse que a criança era hedionda pois vinha manchada da viuvez de
Lazáro.
O meu marido disse me : «Se me amas irás dar me uma filha que encante toda a aldeia.» De olhos secos e
pés calejados levei as pequenas e penitenciei durante anos. Nada aconteceu. Certo dia, uma vendedora de
damascos ao ver me penar disse me: «Mulher que já abusaste destes santos. Cosme deu te um e Damião
outra. Não há mais luz que te ajude! Queres outro filho eu ensino te a manha. Ouvi e assim fiz. Na
encruzilhada enterrei prata e cuspi três vezes sobre o luar. No próximo mês tinha Laila no ventre.
Laila mexia se como uma serpente desde bébé. Sempre houve algo de muito infernal nas suas maneiras e
o seu sorriso hipnotizava todos. A aldeia não apontou mais o dedo e vinha ver a Laila. As emoções de
Laila eram como ervas daninhas, enquanto feliz levava todos à sua volta à euforia.
Sabendo que ela era diferente eu amei a até hoje. Nunca pensei que a viessem buscar e não ficarei para
compactuar com Belzebu.
Mãe saí de cena para o lado oposto de Laila como se fosse fugir de casa. Carrega uma mala.
Laila entra em cena, feliz e a dançar uma valsa com um parceiro imaginário sentando se abruptamente
na cadeira onde a mãe se havia sentado.
Laila: Sim, sim. Disse lhe mil vezes que sim. Vou me casar com o mais belo, mais imponente, mais
misterioso…
Irrompe a vizinha.
Vizinha: Um corvo??! Um corvo?? Um pássaro e ainda por cima um amaldiçoado? Um corvo falante!
Estás louca de vez.
Laila: Completamente louca, delirante, apaixonada…
Vizinha: Mas é um corvo…
Laila: O amor é assim… cego.
Vizinha: Cego…pois como a tua irmã mais velha…ou já te esqueceste que ele pediu lhe em casamento
primeiro? Pior, ela disse lhe que não e ele bicou lhe o olho fora.
Laila: Eu sei…ele é tão intenso.- diz suspirando.
Vizinha: Intenso? Intenso foi quando ele pediu em casamento à tua irmã do meio e ela com medo das
bicadas afogou-se no rio.
Laila encolhe os ombros: Só se aguentam os fortes… e ele já me confessou que só cortejou as minhas
irmãs porque o meu espírito quer aquilo que não pode ter. Agora não… agora sei o que pretendo e é
passar o resto da minha vida casada com o corvo que sobrevoa a nossa aldeia.
Vizinha: Sabes que estou contigo para tudo e para sempre. Jurei te à lareia depois daquele dia que fomos
dançar na floresta.
Laila: Eu sei e agora somos vizinhas para sempre. A minha mãe prometeu sair desta terra para sempre
caso fosse com esta intenção avante! Boa viagem.

Selam a amizade com um entrelaçar de mindinhos.

Narrador: Os anos passaram e a vida corria monótona e sossegada. O corvo e a Laila apesar de um casal
improvável eram firmes e viviam em paz. Havia algo naquela mulher que fazia com que ninguém
discutisse as suas decisões. Os aldeões diziam que ela era boa de olhar e que por onde passava tudo
melhorava. Se ela queria um corvo como marido. Assim era. No entanto, a alma inquieta de Laila
começou a contorcer se nas suas entranhas como labaredas.

Entra Laila com a vizinha visivelmente mais velhas.

Laila: Não me entendas mal… Eu amo o e sou fiel ao meu esposo…mas sinto falta do calor de um corpo
humano. Só lhe conheço as penas e os olhos infinitos. Nunca vi homem nos seus trejeitos.
Vizinha: Toda a gente sabe que ele está encantado. Eu tenho cá para mim que sei como podes tentar
quebrar.
Laila: Sabes?
Vizinha: Ora com ferro quente. Não há mal que o ferro quente não desfaça.
Laila: Mas ele não é lobo.
Vizinha: Mas é besta…Logo à noite quando te fores deitar com ele pega no ferro depois de o repousares
no braseiro e queima lhe a cauda.
Laila: Assim farei!
A vizinha sai e Laila pensativa arruma a cozinha. Em outra divisão, ouve se bicadas. Laila boceja e
prepara-se para se deitar. Saí de cena.
De fora de cena, ouve se um grito.
Corvo: Ai que me fizeste mulher endiabrada, queimaste me as penas e me dobraste a praga! Agora vou
ter que te deixar. Vai já gritar a janela para os outros corvos me virem vestir para que possa voar.
Laila abre a porta para onde o público está e grita: Venham vestir o rei! Venham vestir o rei!- fecha
novamente a porta deixando o cenário vazio.
Narrador: Assim foi, o corvo movido pela sua maldição deixou a sua amada mas antes ensinou lhe o que
fazer. E estas foram as indicações: (inclina se de lado para ouvir e assinalar a conversa para o público)
Corvo: Com ferro me tramaste com ferro terás que me resgatar. Vai ao ferreiro da aldeia e pede te que te
faça uns sapatos de ferro. Procura me sem descanço por este mundo fora até os sapatos desgastares e
quando assim o for alguém te levará até mim.
Narrador: Sem demoras, assim o fez. Começou a sua jornada. Por montes, fontes e portelos de cão
andou até os sapatos começarem a findar. Foi aí que outro corvo muito parecido com o seu marido lhe
veio dizer:
(inclina-se para o outro lado para ouvir e assinalar a conversa para o público. Estas direções indicam que
de um lado é o interior e do outro é o exterior.)
Corvo 2: Sei o que procuras, bruxa.
Laila: Não sou bruxa, sou uma mulher verdadeiramente apaixonada.
Corvo 2: É a mesma coisa, bruxa. Quem procuras está preso numa casa na clareira da floresta das cruzes.
Não chegas lá a direito. Só chegas lá pelo caminho certo, o esquerdo. Atenta que não me repetirei.
Laila: Ah fala lá que não me assustas e sei que também aqui estás a penar por algo.
Corvo 2: Às três da madrugada, em ponto, vai à fonte da encruzilhada. Vais lá encontrar uma lavadeira
que em delírio lava sempre o mesmo vestido de penas pretas. Rouba e veste esse mesmo vestido sem que
ela se aperceba. Seguidamente, corre com os teus sapatos de ferro até os teus pés te parecerem falhar, até
os cortes se abrirem e pintares a terra de sangue. Tens que estar as três e um quarto em ponto na casa da
clareia e terás que libertar todas as aves que lá estão.
Narrador: Quase que se divertiu com tamanha missão que por entre tanta macabrice o que lhe pesava
mais era a saudade. Lá foi ela com corpo e alma e pés esquartejados de cortes. Fez tudo como indicado e
quando chegou a casa viu um velho feiticeiro aninhado junto à lareia. Entrou com tamanha raiva que o
atirou ao fogo depois de o espancar com os sapatos. Satisfeita com aquele ímpeto sanguinário disse: «
Nada que o ferro quente não desfaça.» Apressou se a soltar todas as aves. Foi com mui fascínio que viu
aqueles passáros se transformarem em humanos. Um festival grotesco de penas por ar e rasgar de pele.
Homens e mulheres nuas por toda a sala e por entre os corpos despidos vi um rapaz lindo de cabelo preto
comprido. Foi pela queimadura que lhe havia feito no rabo que reconheceu o seu amado marido.
Laila e o marido entram na cozinha. O antigo corvo vem apoiado e cansado nos ombros da sua esposa.
Pesaroso mas feliz, senta-se à mesa de lado para o público e pede à mulher uma sopa pois precisa de se
alimentar.
Corvo: Mulher serve me da tua sopa de urtigas! Já há muito que não como e há tanto que te quero dar
hoje.
Em euforia, apressa-se a servir o marido. O homem começa a comer ainda com o capuz do seu manto
vestido. Laila aproxima se do marido, enquanto este continua compenetrado na sopa, tira lhe o capuz
para lhe beijar a cabeça. Ao retirar o capuz, o público consegue notar nos cornos que brotam da sua
testa.
Luz off ou o casal levanta se e lentamente sai de cena. (A decidir consoante as condições do local).

*****

Afonso está no escuro. Empunha uma candeia/vela. Mais nada se vislumbra:

O aparente nada é terrível, mas pode ser o seu contrário: sobra tudo, sobra espaço para a imaginação. É
dessa roupa, a esse armário, que as lendas e as narrativas populares resgatam as suas calças rotas ou os
seus casacos de gala. Herculano, o romântico Herculano que roubou a Ourique a cruz e o Cristo nela
pregada, deu-me outras cores, outras texturas, foi-me buscar a Coimbra e plantou-me, novamente, na terra
d'entre Douro e Minho, à sombra do Castelo de São Mamede.

Estamos nos túneis da velhinha Guimarães. Não importa se rumor, se criação romanesca: estamos num
dos túneis de Guimarães, velhas carcaças que rasgam as entranhas do burgo, escuras, mal frequentadas e
nauseabundas. Houve quem jurasse que havia um da velha fortaleza de Mumadona até ao Castelo de
Lanhoso; outro ainda seguiria para a Penha; outro para a antiga estrada que dava para o mar. Deixo-os à
vossa consideração. Este, em que me encontro, segue para a Colegiada. Ou, pelo menos, é o que eu acho.
Gosto de acreditar na verdade para lá do mito. E no mito em si, também. Porque quem debunca uns
também ajuda a construir outros, como muralhas à mercê de mais um ataque. Quem saberá o certo?

Não terei os pergaminhos do caro erudito que os popularizou, nem a arrebatadora verve do Bobo por si
gizado, mas poderei, assim o queirais, plantar imagens em vossas mentes: frades pecaminosos, cavaleiros
corruptos, penitências fora de horas, crimes passionais ou por gula, corredores que guardam ecos de
segredos e escapatórias para a morte. Ou túmulo. O túnel é um juiz involuntário, voluntariamente à mercê
do que vier.

As possibilidades são, como está relativamente simples de....

Escutam-se barulhos inquietantes, como se algo ou alguém estivesse a arranhar alguma superfície.
O velho Afonso pára de falar. Retoma.

- perceber. Quem está aí?

Afonso lança o braço em vários direcções, procurando, com a luz da vela/lanterna, encontrar
algo/alguém. Os barulhos aumentam de volume.

Na sua continuada procura, sem sair do local onde se encontra, na verdade, Afonso leva o braço que
segura a vela/lanterna a encontrar a cara de uma figura espectral, que lhe estende as garras. Com a
outra mão que lhe sobra, agarra-lhe o braço.

- Que procuras tu, criatura?


Afonso não se assusta. Depois de uma vida de batalhas, e, certamente, de vasto cenário de horrores,
de tratos condenados e de traições carcomidas pelo ranço dos homens e pelo tremor dos espectros,
será pouco o que teme.

A cara é pálida, demoníaca. O hábito não o será menos. Afonso, num assomo vertical, faz percorrer
a vela pela altura de quem se lhe depara. Uma freira infernal. Será Clarissa? Será descalça? As
vestes tapam-lhe os pés. Não importa a devoção. É uma freira.

- Ao que vens? Ou ao que vais? Responde.

- Procuro-o., acrescenta a freira.

- O amante proibido?

- O fruto dele!, exclama a freira.

- E esperas encontrá-lo por aqui?

- Não o encontrei em mais lado algum. Faltava-me aqui vir.

- E como cá chegaste?

- Pelo sonho de alguém.

- Assim foi?

- Assim o é.

- Não é certo que isto exista.

- Não é. Mas quando o portal do sonho se abre, eu arranho o escuro e consigo enfiar-me em suas brechas.

- É isso que agora fazes, arranhar o escuro?

- Sem mais.

- E que resultado esperas achar?

- Encontrá-lo.

- Esperas que saia de um fresta do nada?

- Quem sabe?

- Como te chamas?

- E isso interessa?
- Não esperes que puxe dos galões, Mulher. Já não cedo a essa ilusão.

- És sensato, velho rei. A espada culpou-te o corpo, mas aclarou-te o espírito.

- Falas com tento. Quem te enviou?

- A culpa.

- A culpa?

- A pena.

- Como assim, a pena?

- O fado. Dás mercê a esta Alma penada?

A freira retira a vela/lanterna a Afonso, que se afasta, voluntariamente.

Oiço o seu choro. Sempre. É descanso que não me dá descanso. Disseram que não podia. Que não devia.
Cedi. A Ribeira da Costa corria livre e lá o mergulhei, indefeso. Contra a minha vontade? E eu tinha uma?
Era-me permitido ter uma?

Uma mentira e um pecado nunca se emendam: assumem-se. Eu era uma ingénua noviça, imposta e não
devota. Vi-o nas calendas de Março, atrás do muro nos encontrámos. Os olhos dele pecavam com os
meus. Não tardou até que todo o meu corpo fosse invadido pelo seu pecado, junto a umas árvores fartas
de ramagem. Não mais o vi, mas como o quis! E como o desejei, contra a minha vontade. Ou contra a
vontade que me inculcaram. Creio que rotulam de pecado o que nos dá prazer ou uma leve brisa de
felicidade.

Que sabia eu, rapariga sem tempo para o tempo com que me deparava? A barriga crescera e o embaraço
tornara-se evidente. As Irmãs coraram e a Madre Superiora levara as mãos à cabeça. Era preciso tratar do
assunto. Desonrara os meus, diziam-me. Nem eu me sentia desonrada. Corro um pecado que não
reconheço, mas chamo-lhe pecado à falta de outra palavra.

Quando ele nasceu, parido na dor e na mais completa ignorância, redondo, luzídio e aloirado,
embrulharam-no num rasgão de coberta e atiraram-mo para o colo. Dilacerada pelo momento, abracei-o.

- Amanhã, vamos tratar do assunto., informaram-me.

Nada mais me disseram. Fui escoltada por duas Irmãs até ao Rossio da Feira de São Gualter. Lá chegada,
ordenaram-me:

- Vai à Ribeira e livra-te dele.

Senti-me esmagada. Impotente. Fraca das pernas e da mente. Desprovida de tudo, sem pensar em
coragem, que não a houve, foi outra coisa qualquer, fechei os olhos e larguei-o, como a um barco,
naquelas gélidas águas de Dezembro. Não consegui não olhar de relance, vendo o embrulho, ensopado,
rebolar pela enxurrada, sabe-se lá para onde.

Desde essa manhã que o procuro. Ele visita-me, enregelado e verde, quando o cansaço toma conta de
mim. Não sei se me culpa ou se ainda espera que o resgate. E eu procuro. Eu o procuro por toda a parte. O
que me resta?

Afonso sai da treva.

- Nem um rei tem resposta para isso.

- Sobretudo um rei.

- Sobretudo?

- Um rei não precisa de matar um filho.

- Houve quem o fizesse.

- Não por um voto a um deus qualquer.

- Nem um rei. Nem pensei no que disse. Um rei é, no fundo, um plebeu qualquer com um adorno.

- Tal como um deus.

- Diz-me, Irmã, que tão distintamente raciocinas: já me podes dizer teu nome?

- Não o possuo.

- E pode lá isso ser?

- Pode. Ou então mantiveram-no em segredo.

- As tuas companheiras de convento?

- Não.

- Então?

- O meu criador.

- O teu criador?

- Sim, o meu criador.

- E há-de ser quem, essa pessoa?

- Escutei-te ao longe, falando em Herculano.


- Sim, assim foi. Nele falei.

- Foi ele que te enfiou nesta masmorra de escape?

- Deu-me a possibilidade, sim.


- Eu passei de boca em boca, de rua em rua, rei, até que alguém me cristalizou.

- O teu criador.

- O meu criador.

Entra Martins Sarmento. Pega na vela/lanterna. Diz:

- Eis o criador.

E apaga a luz.

*****

Afonso entra em cena puxando uma carroça: na verdade, um carro de condeceira, com bruxas, dançando.
Há um enorme frenesim e uma grande chiadeira.

Quando o carro pára, e Afonso recupera o fôlego, as bruxas, que dançavam, saltam na sua direcção.
Dançam à sua volta:

Não podes parar, velho rei,


queremos que nos leves por aí;
Cuidamos que saibas da grei:
dá-nos o demo que mora em ti.

Se condutor nosso quiseste ser


bom é que nos saibas guiar;
leva-nos, queremos conhecer,
noutras terras havemos de bailar;

Não pares, rei, não te detenhas,


teu fado ao nosso enlaça;
leva-nos aos montes e às penhas,
deixa-nos beber de tua taça.

Afonso, enleado por tamanha sensualidade, parece hipnotizado. As bruxas não param nunca, roçando e
entrelaçando-se nos seus limites. Num assomo de lucidez, solta um berro e afasta as bruxas de forma
brusca.

- Abrenuntio vobis!
As bruxas fogem para distância segura, ainda assim perto do rei, observando-o.

Ele continua:

- Eu fui à janela, apenas, para me inteirar da chiadeira, que chiadeira era aquela. Sou protagonista de uma
história que não quis. E isto prova-o (aponta para a cara, exibindo a marca de uma mão).

- É a marca do diabo, rei,


pagaste por tua curiosidade., responde uma das bruxas.

- Pagou ele, com prisão eterna. Pois que não se ataca, à má-fé, um homem indefeso.

- E tu lá és indefeso, salteador do tempo!?, diz-lhe outra bruxa.

- Todo o homem que não espera é indefeso. Eu já não espero.

- Que fizeste tu ao diabo?

- Não tocarei nesse assunto.

- Porque nos conduziste, então?

- Cedi ao sensual.

- E é suposto o quê, depois dessa resposta?

- Nada. Cedi. Agora já não cedo.

- Deveras? Tens a certeza? (A bruxa roça-se em Afonso).

Afonso fecha os olhos e morde o lábio.

- Por certo. Basta!

- Queres que te deite as sortes?

Afonso responde:

Con este fole levantarei as chamas,


deste lume que se asemelha ao do inferno:
fugi, bruxas, montai vossas escovas:
ide banhar-vos na praia das areias gordas!

As bruxas desaparecem, em sofrimento.


*O carro da condeceira é o carro das Bruxas, que anda só de noite. Uma vez ia ele a passar pela
Rua-dos-gatos (Guimarães), e um curioso veio à janela ver o que era, despertado pela grande
chiadeira que o carro fazia: imediatamente levou uma bofetada monumental.

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