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Jeremias: Pele e a representatividade afro-brasileira na literatura infantil e


juvenil

Article  in  Revista Letras Raras · April 2021

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Marcia Tavares
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
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ESTUDO DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA DO LIVRO INFANTIL ILUSTRADO View project

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Jeremias: Pele e a representatividade afro-brasileira na literatura
infantil e juvenil

Ingrid Vanessa Souza Santos1


Ana Beatriz Aquino da Silva2
Márcia Tavares Silva3
RESUMO
A Lei Federal nº 10.639/03, que estabelece a inclusão da história e cultura afro-brasileira nas disciplinas do Ensino
Básico, possibilita que novas obras escritas e protagonizadas por negros ganhem mais espaço em sala de aula.
Contudo, é notável que mesmo após a implantação da lei mencionada, a literatura infantil e juvenil (seja dentro ou
fora do contexto escolar) ainda é perpassada por estereótipos raciais ofensivos. Diante desta circunstância, em
consequência da conjuntura de discriminação racial e de uma vigente carência de produções literárias que abordem
a vivência e a cultura afro-brasileira, optamos pela análise da romance gráfica Jeremias: Pele (2018), de Jefferson
Costa e Rafael Calça. Elenca-se como objetivo geral: analisar a romance gráfico infantil e juvenil intitulado Jeremias:
Pele, de Jefferson Costa e Rafael Calça, e como objetivos específicos: examinar a representação dos personagens
afrodescendentes na produção literária supracitada, além de investigar as relações étnico-raciais discutidas na
narrativa. Este trabalho fundamenta-se nos conceitos de história em quadrinhos de Cagnin (1975) e Bibe-Luyten
(1985), de representatividade negra de Silva e Silva (2011), Chinen (2013) e Wense (2015) e de literatura infantil e
juvenil de Souza (2019). Na obra em questão, os autores fazem críticas ao racismo estrutural através da falta de
representatividade na mídia mediante as descobertas graduais do personagem homônimo. Conclui-se que é
perceptível a evolução da imagem do negro nas produções literárias ao longo dos anos, que progressivamente
subverte os estereótipos propagados nas décadas passadas.
PALAVRAS-CHAVE: Representatividade negra; literatura infantil e juvenil; romance gráfica.

RESUMÉ:
La loi fédérale n° 10 639/03, qui établit l’inclusion de l’histoire et de la culture afro-brésilienne dans les disciplines de
l’éducation de base, permet aux nouvelles œuvres écrites et interprétées par des noirs de gagner plus de place dans
la classe. Cependant, il est à noter que même après la mise en œuvre de la loi susmentionnée, la littérature d’enfance
et jeunesse (que ce soit à l'intérieur ou à l'extérieur du contexte scolaire) est encore imprégnée de stéréotypes raciaux
offensants. Au vu de cette circonstance, en raison de la conjoncture de la discrimination raciale et d'un manque actuel
de productions littéraires qui abordent l'expérience et la culture afro-brésiliennes, nous avons opté pour l'analyse du
roman graphique Jeremias: Pele (2018), par Jefferson Costa et Rafael Calça. Il est répertorié comme un objectif
général: analyser le roman graphique d’enfance et de jeunesse intitulé Jeremias: Pele, par Jefferson Costa et Rafael
Calça, et comme objectifs spécifiques: examiner la représentation des personnages afro descendant dans la
production littéraire susmentionnée, en plus d'enquêter sur les relations ethnoraciales discutées dans la narrative. Ce
travail est basé sur les concepts de bande dessinée de Cagnin (1975) et Bibe-Luyten (1985), de représentation noire
de Silva e Silva (2011), Chinen (2013) et Wense (2015) et de la littérature d’enfance et de jeunesse de Souza (2019).
Dans l'œuvre en question, les auteurs critiquent le racisme structurel par le manque de représentativité dans les
médias à travers les découvertes progressives du personnage homonyme. Nous concluons que l'évolution de l'image
de la personne noire dans les productions littéraires au fil des années est perceptible, ce qui subvertit progressivement
les stéréotypes propagés au cours des dernières décennies.
MOTS CLÉS: Représentation noire; Littérature d’enfance et de jeunesse; Roman graphique.

1 Introdução

1
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa e Língua Francesa pela Universidade Federal de Campina Grande. E-
mail: ingrid_vanessa12@hotmail.com
2
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa e Língua Francesa pela Universidade Federal de Campina Grande. E-
mail: anabeatrizaquino@outlook.com.br
3
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e professora pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: tavares.ufcg@gmail.com

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Com a inserção da Lei Federal 10.639/03 - lei essa que tinha como finalidade promover o
ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no ensino básico - abriu-se uma discussão
sobre as obras publicadas tendo crianças como público alvo. Nota-se que ainda são escassas as
obras de literatura infantil e juvenil que introduzem personagens negros com uma representação
positiva. É preciso reconhecer que tanto o mercado editorial quanto o cânone literário brasileiro
ainda reverberam noções racistas, o que afeta a imagem de indivíduos negros na literatura.
Mesmo com mais debates a respeito da representação étnica no Brasil, observa-se que o negro
na literatura brasileira ainda é retratado de modo estereotipado.
Essa construção racista é um reflexo de uma problemática antiga nos livros de ficção:
quando se fazem presentes nas narrativas infantis, a figura afro-brasileira é atrelada a papéis de
escravidão ou servidão ao branco, dificilmente retratos como protagonistas. Ao que se refere a
literatura infantil e juvenil, a situação se repete. A criança negra, por muitas décadas, foi
praticamente esquecida nas obras. Quando presente, geralmente era retratada num contexto de
caricatura e em situação marginalizada. Desta forma, pode-se observar que é através desta
ausência de personagens negros ou a sua marginalização nas histórias
infantojuvenis acarreta, de fato, sérias consequências no imaginário do
educando, criando uma realidade distorcida e preconceituosa, contribuindo,
assim, para a sustentação de uma ordem social desigual (SILVA; SILVA, 2019,
p. 7).

Um dos personagens que perpassa por tais questões de representatividade é Jeremias,


inicialmente visto nas histórias em quadrinhos brasileiras da Turma da Mônica, criadas pelo
cartunista Maurício de Sousa. Uma das figuras negras mais importantes da ficção infantil e juvenil
nacional, Jeremias passou por modificações ao longo dos anos até sua última versão em
Jeremias: Pele, romance gráfico publicado em 2018.

Notamos que apesar da implantação da lei 10.639/03, a literatura infantil e juvenil (seja
dentro ou fora do contexto escolar) perdura estereótipos raciais ofensivos. Em consequência da
conjuntura de discriminação racial e de uma vigente carência de produções literárias que abordem
a vivência e a cultura afrobrasileira, optamos pela análise do romance gráfico Jeremias: Pele
(2018).
Como objetivo geral da pesquisa temos o de analisar o romance gráfico infantil e juvenil
intitulado Jeremias: Pele, enquanto os objetivos específicos são os de examinar a representação
dos personagens afrodescendentes na produção literária supracitada, além de investigar as
relações étnicoraciais discutidas na narrativa. Essa pesquisa de caráter qualitativo e analítico será
dividida em três momentos, onde serão analisados o personagem homônimo, as representações
negras na história em quadrinho e o discurso dos personagens sobre contextos de etnicidade.

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2 A imagem da criança negra na literatura

Como mencionado anteriormente, a representação negra e infantil na literatura (seja ela


no gênero infantil e juvenil ou não) tem um histórico problemático. Nos séculos passados
prevaleceu uma imagem racista caricaturesca de pessoas racializadas. Na literatura
estadunidense, o livro A Cabana do Pai Tomás (1852), de Harriet Beecher Stowe, foi responsável
pela criação de muitos estereótipos racistas da comunidade negra. Entre eles, o das pickaninnies
"se caracterizavam por crianças de pele escura, com olhos e bocas grandes, que eram gulosas,
sem modos e usavam roupas esfarrapadas, que sugeriram negligência parental"
(PREGNOLATTO, 2018, p. 75). Uma personagem do livro em questão, Topsy, principalmente
depois de ser adaptada para o teatro e cinema, ajudou a disseminar tal imagem da criança negra
na cultura pop. Na Fig. 1 é possível ver como a personagem popularizou a imagem das
pickaninnies:
Figura 1: Ilustração das personagens Eva (à esquerda) e Topsy (à direita), por John R. Neill, 1908.

Fonte: Google Imagens.

Essas representações, apesar de se originarem nos Estados Unidos, se propagaram no


imaginário popular mundial. No Brasil, país com histórico de invasão portuguesa e escravidão tanto
de indivíduos negros quanto indígenas, também reproduziu tais concepções racistas sobre
crianças afrodescentes.
Vale ressaltar que a criança negra na literatura infantil e juvenil brasileira teve papel
limitado durante um longo período da história. Considerando o período histórico, Monteiro Lobato
se tornou o principal ator da introdução de personagens negros em obras infantis. Em livros como

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Negrinha (1920) e Memórias de Emília (1936), pessoas negras ganhavam mais destaque.
Contudo, é preciso salientar que “[s]eus personagens negros ora eram apresentados como
animais selvagens, ora infinitamente resignados” (SILVA; SILVA, 2019, p. 6).
Nos quadrinhos brasileiros, também é notável uma representação problemática de
personagens negros. Na primeira revista a publicar histórias em quadrinhos infantis e juvenis no
Brasil, O Tico-Tico (1905-1977), reproduziam preceitos e visuais racistas aos personagens. Com
notáveis traços característicos das pickaninnies, como pode-se ver na Fig. 2:
Figura 2: Azeitona e seus amigos em O Tico-Tico, por Luiz Sá, 1952.

Fonte: Google Imagens.

O personagem negro da Fig. 2, Azeitona, apesar de não ter sido o primeiro da revista O
Tico-Tico, era um dos protagonistas de uma das seções mais famosas da revista. Fazia parte de
um trio de crianças, sendo o único que não era branco. Os personagens eram conhecidos por
viverem "aprontando traquinagens, um modelo de comportamento herdado de uma das primeiras
séries de quadrinhos americanos" (CHINEN, 2013, p. 126). As características de Azeitona expõem
as convicções negrofóbicas do início do século XX, que permeariam os quadrinhos por muitas
décadas.

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Apesar da popularidade da revista O Tico-Tico, foram as histórias em quadrinhos infantis
da Turma da Mônica que ganharam mais renome e mais leitores no Brasil. Jeremias, o
protagonista de nosso objeto de análise, por muitas décadas foi a representatividade com maior
destaque de criança negra que era oferecido na nona arte. Devido a isto, é preciso explorar sua
evolução com o passar das décadas.

3 Jeremias entre décadas

Em seu livro Os Quadrinhos (1975), o teórico Antonio Luiz Cagnin explana que os
quadrinhos podem ser vistos de muitas perspectivas; sendo uma das mais importantes, a histórica.
Isto é, essas expressões gráficas (assim como outras artes) acompanham o homem desde o início
da humanidade. Tendo em vista tal noção, compreendemos que as histórias em quadrinhos
também retratam ideais e problemáticas de cada era de publicação. Dessa forma, observa-se que
a maioria das revistas e editoras que publicaram o gênero em questão reproduziam linguagens
(fossem verbais ou visuais) preconceituosas. Uma dessas revistas foi justamente a Turma da
Mônica.
Como mencionado anteriormente, a Turma da Mônica foi a revista em quadrinhos com
maior notoriedade no Brasil. Inicialmente, em 1959, é publicada no formato de tiras e logo
conquista o público, chegando a se tornar a revista infantil mais vendidas no Brasil e desbancando
até mesmo concorrentes estrangeiras (BIBE-LUYTEN, 1985, p. 63). Compreende-se que Turma
da Mônica foi determinante para o crescimento de uma educação leitora num período em que
poucas pessoas tinham acesso a livros ou, até mesmo, ao ambiente escolar. Portanto, a inserção
de personagens racializados como Jeremias torna-se mais importante ainda.
A primeira aparição de Jeremias ocorreu nos anos 1960, numa revista derivada da dos
personagens principais de Maurício de Sousa. A revista Bidu traz já em sua capa vários
personagens, sendo um deles "[...] o único menino negro de todo o grupo e que, deduz-se, seja
Jeremias [...]" (CHINEN, 2013, p. 147). Os traços físicos de Jeremias se limitam a uma silhueta
negra com apenas os olhos e a ponta do nariz tendo qualquer outro tom.
Um ponto a ser levantado é em relação ao modo como as figuras negras, fossem adultos
ou crianças, eram desenhadas de maneira que se assemelhavam a figuras animalescas e
selvagens. A visão que se passava ao público tornava evidente a depreciação social contra a
comunidade negra. Na Fig. 3, é notável como Jeremias mais se assemelha ao personagem Bidu
(um cachorro) do que aos seus colegas brancos:

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Figura 3: Primeira aparição de Jeremias em Bidu, por Maurício de Sousa, 1960.

Fonte: Google Imagens.

Com o passar das décadas, o personagem passou por mudanças tanto no visual quanto
nas temáticas das histórias em que era inserido. Por ter sido a primeira e única criança negra nas
histórias da Turma da Mônica até meados de 2010, o personagem foi utilizado como recurso para
mostrar apoio à comunidade negra. No entanto, Jeremias raramente protagonizava alguma
narrativa (CALÇA; COSTA, 2018, p. 96). Na Fig. 4, vê-se a evolução do personagem ao longo
dos anos:
Figura 4 - O personagem Jeremias entre os anos 1960 a 2000.

Fonte: Página do Facebook da editora Salvat.

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Nos anos 1960, década do surgimento do personagem, vê-se um desenho simplificado e
com um histórico social problemático. Isto é, observa-se que o desenho inicial de Jeremias retrata-
o com aspectos animalescos, se aproximando mais de uma caricatura negrofóbica do que de uma
caracterízação legítima de uma criança negra, o que acentua o racismo manifesto na literatura
infantojuvenil brasileira durante a segunda metade do século XX. Enquanto nos EUA ascendiam
os movimentos ativistas negros, o Brasil começava um longo período de repressão de minorias
sociais devido a instauração da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). Logo, observa-se que a
época em questão foi marcada por uma representações ofensivas ao indivíduo negro na literatura
e no audiovisual, perpetuando concepções racistas, como a já mencionada caracterítica das
pickaninnies.
Na versão de 1970 de Jeremias, há poucas modificações no personagem além da
coloração da arte e a adição de lábios grandes e rosados, que remetem ao famoso visual racista
das pickaninnies. A versão de 1970 mostra-se ainda mais problemática que sua antecessora por
esse acréscimo físico. Em 1980 esse detalhe permanece, porém Jeremias passa por uma nova
roupagem: sua pele clareia e seus traços ficam mais similares às demais crianças da Turma da
Mônica. Nos anos 2000 se padroniza a aparência de Jeremias: com o mesmo tom de pele desde
1980, a única característica física diferente são os lábios que ficaram afinados.
Observando as mudanças na figura de Jeremias, é possível conceber que o
personagem, como teoriza Cagnin (1975), foi influenciado pelo contexto sociocultural de cada
período de publicação. Com um maior envolvimento de movimentos sociais nas últimas décadas,
a indústria da nona arte também atualiza sua visão sobre os personagens. Deste modo, verifica-
se como Jeremias: Pele (2018), com suas discussões voltadas para as temáticas de etnicidade e
cultura afro-brasileira, foram decorrência de um longo percurso de transformações no mercado
editorial das histórias em quadrinhos.

4 Jeremias: Pele e o viés infantil sobre o racismo

Jeremias: Pele (2018), diferente das revistas periódicas da Turma da Mônica, faz parte do
selo Graphic MSP, que tinha como intuito publicar histórias fechadas com o protagonismo de
diversos personagens de Maurício de Sousa. Para cada romance gráfico foi chamado um roteirista
e autor diferente, com o objetivo de abordar diferentes tropos em suas respectivas narrativas. Com
Jeremias: Pele, compreendendo o peso de se trabalhar com o primeiro personagem negro da
Turma da Mônica, foram selecionados Rafael Calça e Jefferson Costa (ambos homens negros),

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para abordar o racismo pela perspectiva de uma criança. Sobre essa temática, percebe-se que
quando se trata de obras infantojuvenis, há poucos exemplos que versam de forma positiva.
Wense (2015) assinala que
Preconceito é um tema difícil de lidar, ainda mais com o público infantil e
juvenil. Afinal, como explicar a uma criança o que é racismo? São poucas
produções que tiveram a coragem de falar sobre o tema, sendo em sua maioria
voltadas para um público mais crescido (na faixa dos 11-14 anos). O problema
se deve, provavelmente, ao receio de acabar incentivando o racismo, ao invés
de educar (WENSE, 2015, p. 72).

Por conta de tais questões apontadas por Wense (2015) que mostra-se mais relevante
ainda o trabalho presente em Jeremias: Pele. Nesta temos pela primeira vez, um personagem que
por muitas edições foi colocado como secundário, numa posição de protagonista e com um livro
tendo como título seu próprio nome. Esse protagonismo de uma criança brasileira negra mostra-
se crucial para as relações de relação entre a personagem e seu público alvo. Isto é, como já
mencionado, no Brasil são poucas as obras da literatura infantil e juvenil que tenham crianças
negras em papéis principais, com uma representação digna. Jeremias: Pele aprofunda-se
justamente na importância destas representações para o público infantil afro-brasileiro. Na Fig. 5
torna-se notável tais relações de representatividade com as crianças:
Figura 5: Jeremias descobrindo um astronauto negro.

Fonte: Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa. São Paulo: Panini, 2018, p. 14.

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Na narrativa, ao assistir uma coletiva de imprensa, o personagem Jeremias encontra um
indíviduo negro que é astronauta. Por meio do recurso visual do “brilho no olhar”, o leitor
compreende a magnitude da descoberta para a personagem. Tanto na cultura popular (seja
brasileira ou internacional) quanto na mídia, pessoas afrodescendentes são retratadas de modo
raso e estereotipado. Reconhecendo essa problemática social, o romance gráfico tenta subverter
os preconceitos ao representar personagens em posições de equidade racial. Souza ainda
ressalta que
É possível afirmar [...] que o livro infantil possui um papel importante para a
representatividade e identidade da população negra, sendo necessário que as
crianças leiam ou escutem narrativas de livros nos quais os personagens
estejam em contextos favoráveis e não somente em uma condição social
inferior à do branco. É importante que os livros tragam personagens que os
proporcione orgulho de sua cor, de nossa história e da nossa cultura, longe
das comparações e nos quais o respeito às diferenças prevaleça. (SOUZA,
2019, p. 32)

Em Jeremias: Pele a construção da identidade por meio de representações é o ponto que


move a trama. Após encontrar a figura do astronauta negro, o protagonista se sente reconhecido
e aspira a carreira na mesma área de seu novo ídolo. Estas relações de identidade acentuam o
lapso na literatura infantil e juvenil de trazer poucos modelos racializados positivos em suas obras.
É necessário a naturalização destes modelos.
O romance gráfico supracitado põe em discussão até mesmo as construções do
personagem Jeremias da Turma da Mônica, constantemente secundarizado nas narrativas das
revistas. Apesar de ter perdido sua imagem similar às caricaturas, ele continuava a apresentar o
mesmo papel das décadas passadas - o do amigo, praticamente sem um enredo próprio - do
protagonista branco. Na posição de protagonista, a personagem insurge-se de sua caracterização
histórica, explorando na posição de criança e negra, as nuances sociais da cultura afro-brasileira.
Souza (2019) discorre, de que “é comum que os meninos negros sejam apresentados em
situações em que os personagens são pobres, marginalizados, amigos ou subordinados do herói
branco, exemplos que se refletem na imagem e na representatividade da criança negra” (SOUZA,
2019, p. 32).
É notável que, ao decorrer da narrativa, os demais personagens da trama tentam impor
ao personagem homônimo um local de inferioridade. Por meio dessas investidas é que Jeremias
começa a perceber as construções do racismo na sociedade, sendo estas praticadas tanto por
crianças, quanto por figuras de autoridade. Na Fig. 6 é perceptível a forma como Jeremias é
oprimido somente por sua etnia:
Figura 6: Jeremias sofre racismo no ambiente escolar.

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Fonte: Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa. São Paulo: Panini, 2018, p. 22.
Na cena em questão, para um projeto de escola, cada aluno deverá apresentar uma
profissão, comentando sobre esta e se vestindo de acordo com o ambiente. Entretanto, a escolha
é realizada pela figura da professora, que reproduz racismo ao optar por um ofício
economicamente abaixo dos demais colegas de classe. O que também chama atenção na Fig. 6
é a expressão de incredulidade e escárnio emitida pelos colegas de classe. Essa expressão
reforça como crianças negras são desencorajadas e menosprezadas até mesmo no ambiente
escolar.
A crítica de Calça e Costa (2018) ao sistema educacional brasileiro, sobretudo nos anos
iniciais, é precisa: o bullying com subtexto racista faz parte da realidade de muitas crianças. O que
se torna mais grave é o descaso de muitas instituições em combater esse tipo de situação e tornar
a sala de aula um espaço seguro para alunos racializados. Mesmo com a implantação da lei
10.639/2003, muitas crianças ainda se sentem hostilizadas e não representadas no ambiente
escolar. Tendo em vista tais motivações levantadas, é que percebe-se a importância de se
trabalhar com narrativas negras em sala de aula.
É também através da representação visual (CHINEN, 2013) que os autores reforçam a
concepção de depreciação que crianças sofrem no ambiente escolar. Após a cena em que a sala
ri das aspirações de Jeremias, o personagem é desenhado de forma que se acentua a expressão
de “se sentir diminuído”, como pode ser visto na Fig. 7:

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Figura 7: Jeremias se sentindo “diminuído” após ser humilhado pelos colegas e professora.

Fonte: Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa. São Paulo: Panini, 2018, p. 23.

Posteriormente, próximo ao fim do romance gráfico, Jeremias sofre ao perceber o racismo


estrutural e entra em colapso. Diante desta descoberta, os pais do protagonista compartilham
relatos sobre seus próprios percalços num Brasil que reproduz discursos e práticas racistas
diariamente. A mãe de Jeremias aponta como teve que aprender a se amar, mesmo que o padrão
de beleza seja inclinado para uma imagem branca e de cabelos lisos. Em meio a exposições das
condições dos personagens negros, com um cenário que reforça a símbolos da cultura afro-
brasileira, o protagonista reencontra seu valor como criança negra. Retornando ao ambiente de
ensino, Jeremias se vê como um gigante, retomando as representações visuais contextualizadas
na Fig. 7.
Jeremias: Pele trabalha de modo positivo com questões raciais. Apesar da história ser
sobre uma criança que se reconhece numa sociedade racista, a narrativa não se foca em
reproduzir a dor da pessoa negra. O leitor acompanha as aspirações do protagonista, o seio
familiar, os gostos individuais e sua percepção na sociedade. Não sendo retratado de modo
bidimensional, é perceptível que o “negro ganha destaque quando não está lá representado
apenas por causa da cor da sua pele (em uma espécie de “cota”), e sim quando são mostradas
características que o tornam humano e assim causam identificação com o leitor/espectador”
(WENSE, 2015, p. 84). Por isso, vê-se a importância de obras como Jeremias: Pele (2018), que
proporcionam ao leitor orgulho da história e cultura afro-brasileira.

Considerações finais

Com o passar das décadas, a imagem do negro nas produções literárias infantis e juvenis
passa por notáveis mudanças. Isto é, além de mais narrativas introduzirem protagonistas negros,
há uma redução evidente de estereótipos raciais. Em Jeremias: Pele (2018) os autores criticam o
racismo estrutural através das descobertas graduais e vivências do protagonista. O romance

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gráfico acentua a importância da representatividade afro-brasileira na literatura infantil e juvenil,
sobretudo para a formação leitora de crianças negras.
A obra introduz Jeremias e sua família como protagonistas da história, mostrando os
percalços de cada um com o racismo brasileiro. Por ter um forte teor crítico, os quadrinhos
examinam as representações de caricatas de negros que foram criadas na cultura popular e
reproduzidas em situações cotidianas por pessoas brancas.
Mediante ao cenário problemático da negrofobia no Brasil, os personagens subvertem
estereótipos e abordam o processo do orgulho numa imagética étnico-racial. A obra reforça,
sobretudo, a importância de introduzir modelos racializados para que ocorra um processo de
identificação com as crianças. Assim, percebe-se uma relação metalinguística entre o romance
gráfico que critica a falta de representatividade afro-brasileira nas produções literárias infantis e
juvenis, enquanto o mesmo introduz novas representações étnicas e nacionais para o público
jovem.

Referências

BIBE-LUYTEN. Sonia M. O que é História em Quadrinhos? 1ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.
CAGNIN, Antônio L. Os quadrinhos. 1ed. São Paulo: Ática, 1975.
CALÇA, R.; COSTA, J.. Jeremias Pele. 1ed. São Paulo: Panini, 2018.
CHINEN, Nobuyoshi. O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade
dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros. 2013. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais
da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. 14ed. São Paulo: Brasiliense, [1920] 1968. (Obras completas v. 3)
_____________. Memórias de Emília. São Paulo: Brasiliense, [1936] 1962.
SILVA, Luciana; SILVA, Katia Gomes. O negro na literatura infanto-juvenil. Revista Thema, v. 8,
n. 2, 2011.
SOUZA, Yanka Maria Rodrigues de. Literatura, identidade e representatividade negra na escola.
2019. 77 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia)—Universidade de
Brasília, Brasília, 2019.
STOWE, Harriet. A cabana do Pai Tomás. 1ed. São Paulo: Edições Paulinas, [1852] 1961.
WENSE, Henrique Sampaio. A imagem do negro nos quadrinhos e nas produções audiovisuais
infantojuvenis. 2015. 93 f., il. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social)—Universidade
de Brasília, Brasília, 2015

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