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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

1. A Fenomenologia e o Existencia- podem derivar uma da outra e podem


lismo entrar em contradição: elas são parte
de um mundo lógico-obje�vo e são
1.1 A Fenomenologia independentes das condições subje�-
vas do conhecer.
A fenomenologia nasce com Husserl
como polêmica an�psicologista. Uma Brentano (1838-1917), também padre
das ideias fundamentais de Husserl e da católico que depois abandonou a Igreja,
fenomenologia é a da intencionalidade foi professor na Universidade de Viena.
da consciência. Foi precisamente em Escreveu muito sobre Aristóteles. Toda-
relação a esses dois núcleos problemá- via, sua obra de maior sucesso foi A psi-
�cos que Husserl se inspirou em dois cologia do ponto de vista empírico
pensadores de nível notável, isto é, Ber- (1874). É nesta úl�ma obra que Bretano
nhard Bolzano e Franz Brentano. afirma o caráter intencional da consci-
ência. Na escolás�ca, intentio significa-
Bolzano (1781-1848), matemá�co e va o conceito enquanto indica algo dife-
filósofo, padre católico e professor de rente de si. Segundo Brentano, precisa-
filosofia da religião na Universidade de mente, a intencionalidade é o que �pifi-
Praga até 1819, nos deixou duas impor- ca os fenômenos psíquicos, que sempre
tantes obras: Os paradoxos do infinito se referem a algo diferente de si pró-
(1851), e a Doutrina da ciência (1837). prio. Eles se dis�nguem em três classes
O primeiro trabalho exerceu influencia fundamentais, que são a representa-
notável sobre a história do pensamento ção, o juízo e o sen�mento. Na repre-
matemá�co. Já o segundo elabora a sentação, o objeto é puramente presen-
doutrina da “proposição em si” e da te; no juízo, ele é afirmado ou negado;
“verdade em si”. A proposição em si é o no sen�mento, ele é amado ou odiado.
puro significado lógico de um enuncia-
do, não dependendo do fato de ele ser Husserl (1859-1938) nasceu em Pross-
expresso ou pensado. Já a verdade em nitz (na Morávia). Estudou matemá�ca
si é dada por qualquer proposição em Berlim e laureou-se em 1883 com
válida, seja ou não expressa ou pensa- uma tese sobre o cálculo das variações.
da. Assim, a validade de um princípio Em Viena, seguiu as aulas de Brentano.
lógico, como o da não-contradição, per- Em 1891, publicou a Filosofia da arit-
manece tal tanto se o pensarmos ou mética. Livre-docente em Halles em
não, tanto se o expressarmos com pala- 1887, foi nomeado professor de filoso-
vras ou por escrito, como se não o fia em Go�ngen em 1901. Neste ano
expressarmos. As proposições em si apareceram as Pesquisas lógicas. É de
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

1911 A filosofia como ciência rigorosa; ocupa. Um fato é o que acontece aqui e
e Ideias Para uma Fenomenologia Pura agora; um fato é con�ngente, podendo
e Para uma Filosofia Fenomenológica é ser ou não ser.
de 1913. Em 1916 passou a ensinar em
Friburgo, onde permaneceu até 1928, Mas, quando um fato (este som, esta
ano em que foi posto de licença. Como cor etc.) se nos apresenta à consciência,
emérito, não pode prosseguir sua a�vi- juntamente com o fato captamos uma
dade didá�ca porque, sendo judeu, foi essência (o som, a cor etc.). Nas ocasi-
obstaculizado pelo regime nazista. A ões mais díspares, podemos ouvir os
lógica formal e a lógica transcendental sons mais diversos (clarim, violino,
é de 1929. Em 1931 foram publicadas piano etc.), mas neles reconhecemos
suas conferências parisienses, sob o algo de comum, uma essência comum.
�tulo de Meditações cartesianas. Ao No fato sempre se capta uma essência.
morrer deixou grande quan�dade de O individual se anuncia para a consciên-
inéditos (cerca de quarenta e cinco mil cia através do universal. Quando a cons-
páginas estenografadas). Dessa grande ciência capta um fato aqui e agora, ela
massa de manuscritos foram extraídos capta também a essência: esta cor é
vários livros, o mais conhecido e impor- caso par�cular da essência “cor”, este
tante dos quais é A crise das ciências som é caso par�cular da essência
europeias e a fenomenologia transcen- “som”, este ruído é caso par�cular da
dental, publicado em 1950. essência “ruído” etc.

As proposições universais e necessárias As essências, portanto, são os modos


são condições que tornam possível uma �picos do aparecer dos fenômenos. E
teoria, sendo diferentes das proposi- não é que nós abstraímos as essências
ções ob�das indu�vamente da experi- da comparação de coisas semelhantes,
ência. Na base desses dois �pos de pro- como queriam os empiristas, uma vez
posições, Husserl dis�ngue entre intui- que a semelhança já é essência. Não
ção de um dado de fato e intuição de abstraímos a ideia ou essência de “tri-
uma essência. Husserl está persuadido ângulo” da comparação de muitos
de que nosso conhecimento começa triângulos: o que ocorre é que este e
com a experiência, ou seja, com a expe- aquele são triângulos porque são casos
riência de coisas existentes, de fatos. A par�culares da ideia de triângulo. Este
experiência nos oferece con�nuamente triângulo isóscele desenhado no qua-
dados de fato, os dados de fato com os dro-negro existe aqui e agora, com
quais nos vemos às voltas na vida co�- estas dimensões e não outras. Esse é
diana e dos quais a ciência também se um dado de fato par�cular. Mas nele
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

captamos uma essência. são precisamente as essências.

Para comparar vários fatos, é preciso já A fenomenologia, portanto, é ciência de


ter captado uma essência, isto é, um experiência, não, porém, de dados de
aspecto pelo qual eles são semelhantes. fato. Os objetos da fenomenologia são
O conhecimento das essências é uma as essências dos dados de fato, são os
intuição. É uma intuição diferente universais que a consciência intui
daquela que nos permite captar os quando os fenômenos a ela se apresen-
fatos par�culares. É a ela que Husserl tam. E nisso consiste a redução eidé�ca,
chama intuição eidé�ca ou intuição da isto é, a intuição das essências, quando,
essência. Trata-se de conhecimento dis- na descrição do fenômeno que se apre-
�nto do conhecimento do fato. Os fatos senta à consciência, sabemos prescindir
par�culares são casos de essências dos aspectos empíricos e das preocupa-
eidé�cas. Essas essências eidé�cas, ções que nos ligam a eles.
portanto, não são objetos misteriosos
ou evanescentes. A dis�nção entre o fato (que é um isto)
e uma essência (que é um “o que”) per-
É verdade que só os fatos par�culares mite a Husserl jus�ficar a lógica e a ma-
são reais, e que os universais não são temá�ca. As proposições lógicas e ma-
reais como os fatos par�culares. Os uni- temá�cas são juízos universais e neces-
versais, isto é, as essências, são concei- sários porque são relações entre essên-
tos, ou seja, objetos ideais que, porém, cias. E sendo relações entre essências,
permitem classificar, reconhecer e dis- as proposições lógicas e matemá�cas
�nguir os fatos par�culares, dos quais a não recorrem a experiência como fun-
consciência, quando eles se lhe apre- damento de sua validade. O fato de a
sentam, reconhece o “aqui e agora”, consciência poder efe�vamente referir-
mas também o “o quê”. A fenomenolo- -se a essências ideais não legi�ma
gia pretende ser ciência de essências e somente uma análise dos modos �picos
não de dados de fato. Ela é fenomeno- em que se apresentam os fenômenos
logia, ou seja, “ciência dos fenômenos”, percep�vos, nem apenas a dis�nção
mas seu obje�vo é o de descrever os das proposições lógicas e matemá�cas
modos �picos com os quais os fenôme- das propriedades das ciências empíri-
nos se apresentam à consciência. E cas.
essas modalidades �picas (pelas quais
este som é um som e não uma cor ou O fato da referência às essências ideais
um ruído, ou pelas quais este desenho é abre à fenomenologia a exploração e a
de um triângulo e não de outra coisa) descrição do que Husserl chama de “on-
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

tologias regionais”. Nesse sen�do, “re- Como escreve Husserl, “a intencionali-


giões” são a natureza, a sociedade, a dade é o que caracteriza consciência de
moral e a religião. O estudo dessas on- modo significa�vo. Nossos atos psíqui-
tologias regionais se propõe captar e cos têm a caracterís�ca de se referirem
descrever as essências, isto é, as moda- sempre a um objeto, pois sempre fazem
lidades �picas com que aparecem à aparecer objetos”. Entretanto, deve-se
consciência os fenômenos morais, por notar que, em Husserl, o caráter inten-
exemplo, ou os fenômenos religiosos. À cional da consciência, em si mesmo,
essas ontologias regionais, Husserl con- não implica concepção realista. Em
trapõe a ontologia formal, que depois outros termos: a consciência refere-se a
iden�fica com a lógica. outra coisa; isto, porém, não significa
que essa outra intencionalidade da
A consciência, com efeito, é sempre consciência deixa pendente a contro-
consciência de alguma coisa. Quando vérsia entre realismo e idealismo. O que
eu percebo, imagino, penso ou recordo, importa, no entanto, é descrever o que
eu percebo, imagino, penso ou recordo efe�vamente se dá à consciência, o que
alguma coisa. Por isso se pode ver, diz nela se manifesta e nos limites em que
Husserl, que a dis�nção entre sujeito e se manifesta. E o que se manifesta e
objeto se dá imediatamente. O sujeito é aparece é o fenômeno, em que por “fe-
um eu capaz de atos de consciência nômeno” não devemos entender a
como perceber, julgar, imaginar e recor- “aparência” contraposta à “coisa em
dar; o objeto, ao contrário, é o que se si”: eu não ouço a aparência de uma
manifesta nesses atos, ou seja, corpos música, eu escuto a música; eu não
percebidos, imagens, pensamentos, sinto a aparência de um perfume, eu
recordações. Por isso, devemos dis�n- sinto o perfume; nem tenho a aparên-
guir ainda o aparecer de um objeto do cia de uma recordação, eu tenho uma
objeto que aparece. E se é verdade que recordação.
conhecemos o que aparece, para Hus-
serl também é verdade que vivemos o Consequentemente, o “princípio de
aparecer do que aparece. Husserl todos os princípios”, enunciado por
chama de noese o ter consciência e Husserl, é o seguinte: “Toda intuição
noema aquilo de que se tem consciên- que apresenta originariamente alguma
cia. E entre os diversos noemas, Husserl coisa é, por direito, fonte de conheci-
dis�ngue claramente os fatos das mento; tudo aquilo que se apresenta a
essências. nós originariamente na intuição (que,
por assim dizer, se nos oferece em
A consciência, portanto, é intencional. carne e osso) deve ser assumido assim
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

como se apresenta, mas também persuasões é a de que vivemos em um


apenas nos limites em que se apresen- mundo de coisas existentes. Essas per-
ta”. suasões, porém, não possuem eviden-
cia constri�va e, consequentemente,
Mediante o princípio acima menciona- devem ser postas entre parênteses.
do, Husserl pensava fundamentar a
fenomenologia como ciência rigorosa, Não é que o filósofo duvide delas: ele
como ciência voltada para as coisas, muito mais as põe fora de uso, não as
para as próprias coisas; uma ciência que u�lizando como fundamento de sua
está voltada para ver como são as filosofia, uma vez que, se a filosofia
coisas. “Vamos às coisas!” torna-se o quer ser ciência rigorosa, deve pôr
lema da fenomenologia. E é precisa- como seu fundamento apenas o que é
mente a fim de ir às coisas, as coisas em indubitavelmente evidente. Por conse-
carne e osso, ou seja, a fim de encontrar guinte, da minha persuasão de que o
pontos sólidos e dados indubitáveis, mundo existe, eu não devo deduzir
coisas tão manifestas a ponto de não nenhuma proposição filosófica, pelo
poderem ser postas em dúvida e sobre mo�vo de que a existência do mundo,
as quais poder fundar uma concepção fora da consciência que a percebe, não
filosófica consistente, que Husserl é de modo nenhum indubitável.
propõe a epoché ou redução fenome-
nológica, como método da filosofia. Como homem, o filósofo crê na existên-
cia do mundo e, ainda como homem,
Epoché (que é a transliteração do termo não pode deixar de crer em muitas
usado pelos cé�cos gregos para indicar outras coisas na vida prá�ca, mas, como
a suspensão do juízo) significa justa- filósofo, ele não pode par�r delas. E não
mente suspender o juízo em primeiro pode par�r tampouco dos resultados a
lugar sobre tudo aquilo que nos dizem pesquisa cien�fica, em virtude do fato
as doutrinas filosóficas com seus deba- de que, embora procedendo crí�ca e
tes meta�sicos, depois igualmente rigorosamente no seu âmbito, as ciên-
sobre tudo o que nos dizem as ciências, cias interpretam, aceitando-os “ingenu-
sobre aquilo que cada um de nós afirma amente”, os dados da experiência
e pressupõe na vida quo�diana, isto é, comum, sem se perguntar se eles resis-
sobre as crenças que compõem aquilo tem à pressão da epoché, ou seja, se
que Husserl chama de a�tude natural. A são realidades indubitáveis.
a�tude natural do homem é feita de
persuasões variadas, úteis e necessárias Portanto, nem as doutrinas filosóficas,
à vida co�diana. E a primeira dessas nem os resultados da ciência, nem as
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

crenças da a�tude natural, até as mais do e podem significar para a existência


óbvias, podem cons�tuir pontos de par- humana. Escreve Husserl: “A exclusivi-
�da indubitáveis, que são precisamente dade com que, na segunda metade do
aquilo de que necessita a filosofia con- século XIX, a visão de conjunto do
cebida como ciência rigorosa. Todas mundo do homem moderno se deixou
essas crenças, pois, devem ser postas determinar pelas ciências posi�vas, e
entre parênteses. Mas existe alguma com que se deixou deslumbrar pela
coisa da qual não se possa duvidar e ‘prosperidade’ que daí derivava, signifi-
que não se deixa pôr entre parênteses? cou o afastamento dos problemas deci-
Se existe, o que é isso que pode resis�r sivos para uma autên�ca humanidade.
a epoché? Pois bem, para Husserl, o As meras ciências de fatos criam meros
que resiste aos ataques da epoché, ou homens de fato”.
seja, o que não se pode pôr entre parê-
neses, é a consciência ou subje�vidade. O objeto da crí�ca de Husserl são o
Aquilo cuja existência é absolutamente naturalismo e o obje�vismo, a preten-
evidente é o cogito com seus cogitata, a são pela qual a verdade cien�fica é a
consciência à qual se manifesta tudo única verdade válida e a ideia a ela
aquilo que aparece. A consciência, por- ligada de que o mundo descrito pelas
tanto, é o resíduo fenomenológico que ciências seria a verdadeira realidade. E
resiste aos con�nuados assaltos da Husserl traça a história dessa pretensão
epoché. Mas a consciência, prossegue e dessa ideia, a começar por Galileu e
Husserl, não é apenas a realidade mais Descartes. Mas, escreve ele, “na misé-
evidente, e sim também realidade ria de nossa vida [...] tal ciência não tem
absoluta, é o fundamento de toda reali- nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui
dade, é aquela realidade que não há aqueles problemas que são os mais can-
necessidade de exis�r. O mundo, diz dentes para o homem, o qual, em
Husserl, é “cons�tuído” pela consciên- nossos tempos atormentados, sente-se
cia. à mercê do des�no; os problemas do
sen�do e do não-sen�do da existência
Em 1950, apareceu postumamente A humana em seu conjunto”. Na opinião
crise das ciências europeias e a fenome- de Husserl, em sua generalidade e em
nologia transcendental. Esta é a úl�ma sua necessidade, esses problemas
obra de fôlego de Husserl, na qual tra- exigem solução racionalmente fundada.
balhou até próximo da morte. A crise
das ciências, obviamente, não é a crise Eles “concernem ao homem em seu
de sua cien�ficidade e sim crise do que comportamento diante do mundo
elas, as ciências em geral, têm significa- circundante, humano e extra-humano,
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o homem que deve escolher livremen- sendo notável. Por isso, é reconhecido
te, o homem livre de plasmar-se a si que o movimento fenomenológico
mesmo e ao mundo que o circunda”. cons�tui um acontecimento decisivo no
Então Husserl pergunta: “O que tal ciên- âmbito da filosofia contemporânea.
cia tem a dizer sobre a razão e sobre a
não-razão, o que tem ela a dizer sobre Max Ferdinand Scheler foi um filósofo
nós, homens, enquanto sujeitos dessa alemão, conhecido por seu trabalho
liberdade? Obviamente, a mera ciência sobre fenomenologia, é�ca e antropo-
de fatos não tem nada a nos dizer a esse logia filosófica, bem como por sua con-
respeito: ela, precisamente, abstrai de tribuição à filosofia dos valores. Scheler
qualquer sujeito”. O drama da época desenvolveu o método do criador da
moderna é o drama que começou com fenomenologia, Edmund Husserl, e foi
Galileu, ele recortou do mundo-da-vida chamado por José Ortega y Gasset de “o
a dimensão �sico-matemá�ca, que primeiro homem do paraíso filosófico”.
depois passou a ser considerada como Em 1954, Karol Wojtyla, posteriormen-
vida concreta. “Galileu vive na ingenui- te papa João Paulo II, defendeu sua tese
dade da evidência apodí�ca”. sobre Uma avaliação da possibilidade
de construir uma ética cristã baseada
Naturalmente, a filosofia reconhece a no sistema de Max Scheler. Após sua
função da ciência e da técnica, mas a morte em 1928, Mar�n Heidegger afir-
função da filosofia “é a de libertar a his- mou, junto com Ortega y Gasset, que
tória da fe�chização da ciência e da téc- todos os filósofos do século eram deve-
nica”. Vista desse modo, “a fenomeno- dores de Scheler e sua ”força filosófica
logia é filosofia primeira que se liberta mais forte da Alemanha moderna, da
da clausura do mundo, anulando-o, Europa contemporânea e da filosofia
para descobrir na humanidade a liber- contemporânea”. A obra de Scheler
dade de se transcender em direção a aborda grande variedade de conheci-
novos horizontes”. O movimento feno- mentos, como biologia, psicologia,
menológico é uma vasta e ar�culada sociologia, teoria do conhecimento,
corrente de pensamento, da qual se meta�sica e filosofia da religião. Para
destacam, além de Husserl, o pensa- Scheler, não há maior problema filosófi-
mento de Heidegger, as análises de co como a questão da pessoa humana
Sartre e de Merleau-Ponty. Deve-se em sua essência e estrutura cons�tu�-
dizer ainda que a influência dos feno- va, pois nunca houve antes tantas opini-
menólogos sobre a psicologia, a antro- ões acerca do ser humano e de sua
pologia, a psiquiatria, a filosofia moral e origem que fossem tão incertas, impre-
a filosofia da religião foi e con�nua cisas e múl�plas como no tempo atual.
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

É preciso superar as velhas opiniões e sistema. Por isso, Hartmann pode apro-
empreender um novo caminho, pres- veitar também elementos do pensa-
cindindo de ideias dominantes que mento clássico, aliando pensadores que
totalizam uma visão do humano como a parecem tão dis�ntos como Aristóteles
imago Dei judaico-cristã, o homo e Hegel. Foi um dos poucos pensadores
sapiens grego ou o homo faber posi�- do século XX que se preocupou com
vista e pragma�sta. As perguntas “o que todas as disciplinas filosóficas, desen-
é o homem?” e “qual a sua posição no volvendo não apenas um teoria do
interior do ser?” sempre foram priori- conhecimento e uma ontologia, mas
dade para a consciência filosófica de também uma esté�ca, uma é�ca, uma
Scheler. filosofia do espírito e uma doutrina de
categorias na qual se insere a maior
Nicolai Hartmann foi um filósofo ger- parte de suas inves�gações. Conclui
mano-bál�co. Ele é considerado um dos que em toda teoria do conhecimento
principais representantes do realismo há elementos meta�sicos e em toda
crí�co e um dos mais importantes me- meta�sica há elementos gnosiológicos.
ta�sicos do século XX. Seus primeiros No campo da ontologia, dedicou-se ao
trabalhos orientam-se segundo o exame de diferentes �pos de catego-
neokan�smo da Escola de Marburgo. rias, tanto as que estruturam o mundo
Posteriormente, altera sua posição teó- real quanto as que estruturam o mundo
rica, sob a influência da fenomenologia do espírito. Entre suas obras destacam-
de Edmund Husserl e das filosofias de -se: Metafísica do conhecimento; O pro-
Hegel, Max Scheler e Wilhelm Dilthey, blema do ser espiritual; A filosofia do
embora não se prendesse a qualquer idealismo alemão; Ontologia.
uma delas. Caracteriza-se pelo esforço
constante de repensar problemas filo- Rudolf O�o foi um eminente teólogo
sóficos fundamentais, u�lizando outras luterano alemão, filósofo e erudito em
influências apenas para lançar luz sobre religiões comparadas. Autor de O
a natureza dos problemas tratados e Sagrado, publicado pela primeira vez
sobre suas possíveis soluções. Sua filo- em 1917 como Das Heilige (considera-
sofia é sistemá�ca, no sen�do de que se do um dos mais importantes tratados
propõe a examinar os problemas bási- teológicos em língua alemã do século
cos da filosofia em toda sua extensão, XX) e que é mais conhecido pelo seu
mas não no sen�do de forçar esses pro- conceito do numinoso, o qual exprime
blemas a entrar numa prévia constru- uma profunda experiência emocional
ção meta�sica. Trata-se de uma filosofia que ele argumentou estar no coração
dos problemas e não uma filosofia do das religiões do mundo e que é funda-
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

mental no entendimento religioso e membro da Escola de Frankfurt, adotou


filosófico da atualidade. Em O Sagrado o conceito de “totalmente outro” em
e outras obras, O�o estabeleceu um seu livro de 1970 Die Sehnsucht nach
paradigma para o estudo da religião dem ganz Anderen. Outros filósofos que
que enfocava a necessidade de perce- reconheceram O�o foram, por exem-
ber o religioso como uma categoria ori- plo, Mar�n Heidegger, Leo Strauss,
ginal não redu�vel por si só. O eminen- Hans-Georg Gadamer (que era crí�co
te historiador romeno-americano da quando mais jovem, mas respeitoso na
religião e filósofo Mircea Eliade usou os velhice), Max Scheler, Edmund Husserl,
conceitos de O Sagrado como ponto de Walter Terence Stace, Joachim Wach e
par�da para seu próprio livro de 1954, Hans Jonas. O veterano de guerra e
O Sagrado e o Profano. O paradigma escritor Ernst Jünger e o historiador e
representado por O�o e Eliade foi cien�sta Joseph Needham também
então fortemente cri�cado por ver a citaram sua influência.
religião como uma categoria sui gene-
ris, até por volta de 1990, quando Edith Stein, canonizada como Santa
começou a ver um ressurgimento como Teresa Benedita da Cruz, foi uma filóso-
resultado de seus aspectos fenomeno- fa e teóloga alemã. Ela nasceu em uma
lógicos se tornarem mais aparentes. família judia pra�cante, mas se tornou
Ninian Smart, que foi uma influência ateia na adolescência. Movida pelas tra-
forma�va nos estudos religiosos como gédias da Primeira Guerra Mundial, em
disciplina secular, foi influenciado por 1915, ela teve aulas para se tornar auxi-
O�o em sua compreensão da experiên- liar de enfermagem e trabalhou em um
cia religiosa e em sua abordagem para hospital de doenças infecciosas. Teve
entender a religião transculturalmente. uma grande mudança em sua crença a
Carl Gustav Jung, o fundador da psicolo- par�r da leitura de um livro de Santa
gia analí�ca, aplicou o conceito de nu- Teresa de Ávila, quando estava em casa
minoso à psicologia e psicoterapia, da amiga Hedwig Conrad-Mar�us, em
argumentando que ele era terapêu�co Beergzabern. Mais tarde converteu-se
e que trouxe maior autocompreensão, ao catolicismo tornando-se freira Car-
e afirmando que para ele a religião era melita Descalça. Edith foi a segunda
uma “observação cuidadosa e escrupu- mulher a defender uma tese de douto-
losa ... do numinosum”. O padre episco- rado em filosofia na Alemanha, tendo
pal americano John A. Sanford aplicou sido discípula e depois assistente de
as ideias de O�o e Jung em seus escri- Edmund Husserl, o fundador da feno-
tos sobre psicoterapia religiosa. O filó- menologia. Já religiosa, anotou: “A fé
sofo e sociólogo Max Horkheimer, está mais próxima da sabedoria divina
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

do que toda ciência filosófica e mesmo ser-no-mundo é anterior a contraposi-


teológica”. Morreu aos 51 anos, no ção entre alma e corpo, entre o psíquico
campo de concentração de Auschwitz- e o �sico. A interpretação causal das
-Birkenau. Em 11 de outubro de 1998, relações entre alma e corpo é rejeitada
foi canonizada pelo Papa João Paulo II e por Merleau-Ponty. Ele vê nessa relação
é considerada már�r da Igreja Católica, muito mais uma dualidade dialé�ca de
sendo uma das seis santas copadroeiras comportamentos. Ou melhor: alma e
da Europa. corpo indicam níveis de comportamen-
to do homem, dotados de significado
Merleau-Ponty ensinou filosofia em diverso. Escreve Merleau-Ponty em A
escolas secundárias. Militante da Resis- estrutura do comportamento: “Nem o
tência durante a ocupação nazista, psíquico em relação ao vital, nem o
depois da guerra tornou-se professor espiritual em relação ao psíquico
na Sorbonne, posteriormente na Escola podem ser considerados como substân-
Normal e, por fim, a par�r de 1952, tor- cias ou mundos novos”. Na realidade,
nou-se �tular de filosofia no Callége de escreve ele, “trata-se de ‘oposição fun-
France. Desde a fundação, par�cipou cional’ que não pode ser transformada
do comitê de direção da revista em ‘oposição substancial’”. Na repre-
“Tempos modernos”, embora as suas sentação das relações entre alma e
relações com Sartre logo se tenham corpo, portanto, Merleau-Ponty não
transformado em polêmica apaixonada. aceita “nenhum modelo materialista,
As principais obras de Merleau-Ponty mas também nenhum modelo espiritu-
são: A estrutura do comportamento alista, como o con�do na metáfora car-
(1942) e A fenomenologia da percepção tesiana do artesão e de seu utensílio.
(1945). Além disso, também são notá- Não se pode comparar o órgão a um
veis suas coletâneas de ensaios: Huma- instrumento, como se ele exis�sse e pu-
nismo e terror (1947), Senso e contra- desse ser pensado à parte de seu fun-
-senso (1948), As aventuras da dialética cionamento integral, nem se pode com-
(1955) e Sinais (1960). Merleau-Panty é parar o espírito a um artesão que o use:
um existencialista sobre o qual são isso seria recair em uma relação pura-
muito acentuadas as influências tanto mente extrínseca [...]. O espírito não
da fenomenologia como da psicologia u�liza o corpo, mas se faz por meio
cien�fica e da biologia. dele”.

Também para Merleau-Ponty a existên- Compreende-se muito bem, por conse-


cia é ser-no-mundo, isto é, “certa ma- guinte, a centralidade do tema da per-
neira de enfrentar o mundo”. Mas esse cepção. Segundo nosso filósofo, todas
11
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

as ciências inserem-se em um mundo errado, portanto, ter uma concepção


completo e “real”, sem se dar conta de análoga sobre as relações entre o sujei-
que a experiência percep�va tem valor to e o mundo. Mas, para Merleau-Pon-
cons�tu�vo em relação a este mundo. ty, também é errado conceber uma
Assim, encontramo-nos diante de um relação de causalidade entre o homem
campo de percepções vividas que são e a sociedade. Por isso, se Sartre está
anteriores ao número, à medida, ao fora de rumo com sua ideia da liberda-
espaço, à causalidade e que, porém, de absoluta, também é errada a teoria
não se apresenta como visão prospec�- marxista da primazia causal do fato eco-
va de objetos dotados de propriedades nômico sobre a cons�tuição do homem
estáveis, de mundo e de espaço obje�- e da sociedade. Na opinião de Merleau-
vos. O problema da percepção consiste -Ponty, o homem é livre e não existe
em ver como é que, através desse estrutura, como a econômica, que
campo, chega-se ao mundo intersubje- possa anular sua liberdade cons�tu�va.
�vo, do qual, pouco a pouco, a ciência Mas a liberdade do homem é liberdade
precisa as determinações. Em tal pro- condicionada: condicionada pelo
grama de análises, torna-se central o mundo em que vive e pelo passado que
conceito de corpo, já que “meu corpo viveu. Assim, “jamais existe determinis-
(...) é meu ponto de vista sobre o mo e jamais existe escolha absoluta; eu
mundo”, “o corpo é nosso meio geral de jamais sou coisa e jamais sou consciên-
ter um mundo”. A percepção é a inser- cia nua”. A realidade é que nós escolhe-
ção do corpo no mundo. E se, por um mos nosso mundo e o mundo nos esco-
lado, a percepção tem o caráter da “to- lhe. Por isso, é desviante o dilema que
talidade”, por outro lado ela permanece afirma que “nossa liberdade [...] ou é
sempre “aberta”, remetendo sempre a total ou não existe”. A liberdade existe,
um além de sua manifestação singular, não porque algo me solicite, mas, ao
prometendo-nos outros ângulos de contrário, porque de repente estou fora
visão e, com isso, “algo mais a ver”. de mim e aberto para o mundo. Ou
seja, a liberdade existe, mas é condicio-
Portanto, o significado das coisas no nada, porque “somos uma estrutura
mundo e do próprio mundo permanece psicológica e histórica”, porque “esta-
aberto ou, como diz Merleau-Ponty, mos misturados ao mundo e aos outros
ambíguo. E essa ambiguidade ou aber- em confusão inextricável". Nossa liber-
tura é cons�tu�va da existência. Se é dade, portanto, não destrói a situação,
errado conceber a relação entre a cons- mas nela se insere. E é por essa razão
ciência e o corpo como relação causal que as situações permanecem abertas,
entre duas substâncias, também é já que a inserção do homem nelas
12
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

poderá configurá-las de um ou de outro ansiedade, o absurdo, a alienação e o


modo, obviamente enquanto as situa- tédio. Filósofos existencialistas poste-
ções o permi�rem. E nesta dimensão a riores retêm esta ênfase no aspecto do
liberdade condicionada do homem indivíduo, mas diferem, em diversos
assume um significado constru�vo posi- graus, em como cada um a�nge uma
�vo. vida gra�ficante e no que ela cons�tui,
que obstáculos devem ser ultrapassa-
1.2 O Existencialismo dos, que fatores internos e externos
estão envolvidos, incluindo as poten-
Existencialismo é um termo aplicado a ciais consequências da existência ou
uma escola de filósofos dos séculos XIX não existência de Deus. O existencialis-
e XX que, apesar de possuírem profun- mo tornou-se popular nos anos após as
das diferenças em termos de doutrinas, guerras mundiais, como maneira de
par�lhavam a crença que o pensamen- reafirmar a importância da liberdade e
to filosófico começa com o sujeito individualidade humana.
humano, não meramente o sujeito pen-
sante, mas as suas ações, sen�mentos e Passamos a Sartre, o principal expoente
a vivência de um ser humano individual. do existencialismo. Testemunha atenta
No existencialismo, o ponto de par�da e arguta de nosso tempo, Jean-Paul
do indivíduo é caracterizado pelo que Sartre, nascido em Paris em 1905, reali-
se tem designado por “a�tude existen- zou seus estudos na Escola Normal
cial”, ou uma sensação de desorienta- Superior e ensinou filosofia nos liceus
ção e confusão face a um mundo apa- de Le Havre e Paris até o início da úl�ma
rentemente sem sen�do e absurdo. guerra, exceto em um período que
Muitos existencialistas também viam as passou em Berlim (1933-1934), onde
filosofias acadêmicas e sistema�zadas, estudou a fenomenologia e escreveu A
no es�lo e conteúdo, como sendo transcendência do Ego. Convocado para
muito abstratas e longínquas das expe- o serviço militar, foi aprisionado pelos
riências humanas concretas. O filósofo alemães e levado para a Alemanha. Vol-
Søren Kierkegaard, do início do século tando logo depois para a França,
XIX, é geralmente considerado como o fundou o grupo de resistência intelectu-
pai do existencialismo. Ele sustentava a al “Socialismo e Liberdade”, juntamente
ideia que o indivíduo é o único respon- com Merleau-Ponty. No imediato pós-
sável em dar significado à sua vida e em -guerra, seu pensamento se impõe ao
vivê-la de maneira sincera e apaixona- público mundial durante cerca de duas
da, apesar da existência de muitos obs- décadas (graças sobretudo a seu
táculos e distrações como o desespero, “teatro de situações”), influindo ampla-
13
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

mente na sociedade e nos costumes. aos valores posi�vos da filosofia clássi-


Nas úl�mas duas décadas de sua vida, ca. O herói do romance é Antoine Ro-
Sartre não teve descanso: as viagens quen�n, que, refle�ndo sobre as razões
polí�cas (como a viagem a Cuba, onde de sua própria existência e do mundo
encontrou Fidel Castro e Che Guevara e que o circunda, tem a experiência reve-
a viagem a Moscou, onde foi recebido ladora da náusea. A náusea é o sen�-
por Kruschev) não lhe impediram o fre- mento que nos invade quando desco-
né�co trabalho de filósofo, romancista, brimos a con�ngência essencial e o
ensaísta, dramaturgo, conferencista e absurdo do real. E Roquen�n põe essa
roteirista cinematográfico. descoberta nas seguintes palavras: “O
essencial é a con�ngência. Quero dizer
Sartre iniciou sua a�vidade de pensador que, por definição, a existência não é a
com análises de psicologia fenomenoló- necessidade. Exis�r é estar ali, simples-
gica rela�vas ao eu, a imaginação e as mente; os seres aparecem, se deixam
emoções. Retoma de Husserl a ideia de encontrar, mas nunca se pode deduzi-
intencionalidade da consciência, censu- -los [...]. Não há nenhum ser necessário
rando-o, porém, por ter caído no idea- que possa explicar a existência: a con-
lismo e no solipsismo com o seu sujeito �ngência não é falsa fisionomia, apa-
transcendental. Em A transcendência rência que pode se dissipar; é o absolu-
do Ego, Sartre afirma que “o eu não é to e, por conseguinte, a perfeita gratui-
um habitante da consciência”, pois ele dade”.
“não está na consciência, mas fora dela,
no mundo: é um ente do mundo como É a essa tese que Sartre queria chegar:
o eu de outro”. O homem, diz Sartre, é o “Tudo é gratuito: este jardim, esta
ser cujo aparecimento faz com que cidade, eu mesmo. E quando acontece
exista um mundo. O mundo não é a de nos darmos conta disso, nosso estô-
consciência. A consciência é abertura mago se revira e tudo se põe a flutuar
para o mundo; a consciência está encar- [...] eis a náusea”. A vida de Roquen�n
nada na densa realidade do universo; o torna-se privada de sen�do; nenhum
mundo pode ser visto como um conjun- obje�vo consegue mais orientá-la; ele
to de utensílios. Mas o mundo não é a existe como uma coisa, como todas as
existência. E quando o homem não tem coisas que emergem, na experiência da
mais obje�vos, o mundo fica privado de náusea, em sua gratuidade e em seu
sen�do. absurdo: um sujeito sem sen�do cance-
la de repente o sen�do de todas as
Essa é a tese expressa por Sartre em A coisas e passam a faltar instruções para
náusea, na qual o autor opõe o absurdo seu uso. A náusea de Sartre não está
14
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

longe da angús�a de Heidegger. liberdade não é um ser; ela é o ser do


homem, isto é, o seu nada de ser”. A
Se a experiência da náusea revela a gra- liberdade é cons�tu�va da consciência:
tuidade das coisas e do homem reduzi- “Eu estou condenado a exis�r para
do a coisa e submerso nas coisas, a aná- sempre além dos moventes e dos mo�-
lise desenvolvida em O ser e o nada vos de meu ato: estou condenado a ser
revela, antes de mais nada, que a cons- livre”.
ciência é sempre Onisciência de algo, de
algo que não é consciência. Em outras Uma vez lançado à vida, o homem é res-
palavras, o exame da experiência mos- ponsável por tudo o que faz do projeto
tra-nos que desde o início o ser-em-si, fundamental, isto é, da sua vida. E nin-
isto é, os objetos que transcendem a guém tem desculpas: se falirmos, fali-
consciência, não são a consciência. Eu mos porque escolhemos a falência. Pro-
tenho consciência dos objetos do curar desculpas significa estar de má-fé:
mundo, mas nenhum desses objetos é a má-fé apresenta o desejado como
minha consciência: a consciência “é um necessidade inevitável. O homem, por-
nada de ser e, ao mesmo tempo, um tanto, se escolhe; sua liberdade não é
poder nulificante, o nada”. O mundo é o condicionada; e ele pode mudar seu
“em-si”, é o dado “misturado de si projeto fundamental a qualquer mo-
mesmo”, “opaco a si mesmo porque mento. E assim como a náusea cons�tui
cheio de si mesmo”, absolutamente a experiência meta�sica que revela a
con�ngente e gratuito (como precisa- gratuidade e o absurdo das coisas, da
mente revela a náusea). mesma forma a angús�a é a experiên-
cia meta�sica do nada, isto é, da liber-
Diante do “em si” está a consciência, dade incondicionada. Com efeito, o
que Sartre denomina o “para-si”. A homem, e só o homem, é “o ser para o
consciência está no mundo, no “ser-em- qual todos os valores existem”.
-si”, mas é radicalmente diferente dele,
não está ligada a ele. A consciência, que Todavia, estabelecido isso, não é preci-
vem a ser a existência ou o homem, é, so muito para ver que, então, “todas as
portanto, absolutamente livre. O “em a�vidades humanas são equivalentes
si” é “o ser que é o que é”; a consciência [...] e que todas estão des�nadas em
não é um objeto. O ser é pleno e com- principio à falência. No fundo, é a
pleto; a consciência é vazia de ser, é mesma coisa embriagar-se na solidão
possibilidade – e a possibilidade não é ou conduzir os povos”. As coisas do
realidade. A consciência é liberdade. mundo são gratuitas e um valor não é
Escreve Sartre em O Ser e o nada: “A superior a outro. As coisas são despro-
15
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

vidas de sen�do e fundamento e as não objeto. Quando aparece o outro,


ações dos homens são desprovidas de portanto, nasce o conflito: “o conflito é
valor. Em suma, a vida é aventura absur- o sen�do original do ser-para-outros”.
da, onde o homem se projeta con�nua- Diz ainda Sartre: “Minha queda original
mente além de si mesmo, como que é a existência do outro”. E também faz
para poder tornar-se Deus. Escreve uma das personagens de A portas
Sartre: “O homem é o ser que projeta fechadas pronunciar a famosa expres-
ser Deus”, mas, na realidade, ele se são: “o inferno são os outros”.
mostra como aquilo que é, “uma paixão
inú�l”. O homem ou “ser-para-si” é Nos anos seguintes a O ser e o nada,
também “ser-para-outros”. O outro não Sartre atenuou sempre mais o tom
tem necessidade de ser inferido analo- desesperado de sua filosofia inicial. A
gicamente a par�r de mim mesmo. O possibilidade de um sen�do menos
outro revela-se como outro naquelas nega�vo da consciência humana já apa-
experiências em que ele invade o rece no ensaio O existencialismo é um
campo de minha subje�vidade e, de humanismo (1946). Nesse escrito,
sujeito, me transforma em objeto de Sartre também iden�fica o homem com
seu mundo. Em suma, o outro não é sua liberdade; o homem não está de
aquele que é visto por mim, mas muito modo algum sujeito ao determinismo;
mais aquele que me vê, aquele que se sua vida não se assemelha à da planta,
torna presente a mim, para além de cujo futuro já está “escrito” na semen-
qualquer dúvida, mantendo-me sob a te; o homem é o demiurgo de seu
opressão de seu olhar. futuro. Em suma, o homem não é uma
essência fixa: ele é muito mais o que
Sartre analisa com habilidade magistral projeta ser. Nele, a existência precede a
aquelas experiências �picas do olhar-a- essência. Contudo, “se, na realidade, a
lheio, que geralmente são as experiên- existência precede a essência, nunca
cias da inferioridade, como a vergonha, será possível explicá-la em referência a
o pudor, a �midez. Quando outro entra uma natureza humana dada e não mo-
subitamente no mundo de minha cons- dificável; em outras palavras, não há
ciência, minha experiência se modifica: determinismo; o homem é livre, o
não tem mais seu centro em mim, e homem é liberdade”. Por outro lado,
vejo-me como elemento de um projeto “se [...] Deus não existe, nós não encon-
que não é meu e não me pertence. O tramos diante de nós valores e ordens
olhar de outro me fixa e me paralisa, ao em condições de legi�mar nossa condu-
passo que, quando o outro estava ta. Assim, nem atrás nem diante de nós,
ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e em um domínio luminoso de valores,
16
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

temos jus�ficações ou desculpas. Esta- Contra esse mal-entendido, adverte:


mos sós, sem desculpas. É isso o que eu “Mas se verdadeiramente a existência
expresso com a afirmação de que o precede a essência, o homem é respon-
homem está condenado a ser livre. sável por aquilo que é. Assim, o primei-
Condenado porque não se criou por si ro esforço do existencialismo é o de pôr
mesmo e, no entanto, livre, porque, todo o homem no domínio do que ele é
uma vez lançado ao mundo, é responsá- e de lhe atribuir a total responsabilida-
vel por tudo aquilo que faz”. de da sua existência. E, quando dizemos
que o homem é responsável por si pró-
A liberdade defendida por Sartre é uma prio, não queremos dizer que o homem
liberdade absoluta, e a responsabilida- é responsável pela sua restrita individu-
de que ele, consequentemente, atribui alidade, mas que é responsável por
ao homem, é total. Estas palavras resu- todos os homens. [...] Com efeito, não
mem bem a convicção de fundo de há dos nossos atos um sequer que, ao
Sartre: “O homem, sem nenhum socor- criar o homem que desejamos ser, não
ro e apoio, está condenado a cada ins- crie ao mesmo tempo uma imagem do
tante a inventar o homem [...]. O homem como julgamos que deve ser.
homem inventa o homem”. A liberdade [...] Se a existência, por outro lado, pre-
é absoluta e a responsabilidade é total. cede a essência e se quisermos exis�r,
Mas já estamos em 1946: Sartre tem ao mesmo tempo que construímos a
atrás de si uma guerra terrível e a expe- nossa imagem, esta imagem é válida
riência da Resistência; mas, diante dele, para todos e para toda a nossa época.
está a grande questão da reconstrução. Assim, a nossa responsabilidade é
Todas essas coisas não passam em vão, muito maior do que poderíamos supor,
deixando um trago em seu pensamen- porque ela envolve toda a humanida-
to, onde se delineia uma moral social de”.
com base na relação entre a liberdade
de cada um e a liberdade dos outros: Minha liberdade, porém, não depende
“eu sou obrigado – escreve ele – a somente da liberdade dos outros. Ela
querer ao mesmo tempo minha liberda- também é condicionada por situações
de e a liberdade dos outros, e não posso precisas, com as quais os projetos fun-
tomar minha liberdade como fim se não damentais dos homens têm de se
tomar igualmente como fim a liberdade defrontar. É com base nisso que Sartre
dos outros”. Por isso, não podemos enfrenta a questão das relações entre
supor que Sartre defende o individualis- seu existencialismo e o marxismo. Na
mo, cada pessoa ocupando-se da pró- realidade, afirma Sartre, “dizer de um
pria liberdade e ação. homem o que ele é significa dizer o que
17
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

ele pode, e reciprocamente: as condi- da grande máquina dialé�ca, incapaz de


ções materiais de sua existência se subtrair ao mais rígido determinis-
circunscrevem o campo de suas possibi- mo.
lidades [...], de modo que o campo do
possível é o obje�vo em direção ao qual A doutrina da dialé�ca é um dogma – e
o agente ultrapassa sua situação obje�- o dogma não hesita em se opor aos
va. E esse campo, por sua vez, depende fatos. É essa a razão por que, diante de
estritamente da realidade social e histó- toda experiência possível, o marxista
rica”. Com base nisso, podemos com- não muda de opinião. O marxista trans-
preender por que Sartre afirma firme- formou o marxismo em “saber eterno”
mente aderir sem reservas à teoria do e, desse modo, “a busca totalizadora
materialismo histórico, para a qual, deu lugar a uma escolás�ca da totalida-
como diz Marx, “o modo de produção de”. O princípio heurís�co “procurai o
da vida material domina em geral o todo através das partes” transformou-
desenvolvimento da vida social, polí�ca -se em prá�ca terrorista: “liquidar a
e intelectual”. Entretanto, se Sartre par�cularidade”. Com base nessas pre-
adere ao materialismo histórico, ele missas, podemos compreender, diz
rejeita, porém, o materialismo dialé�- Sartre, por que o marxismo “não sabe
co. mais nada: seus conceitos são impos-
tos; seu fim não é mais o de adquirir
Em suma, para Sartre, o marxismo não conhecimentos, mas de se cons�tuir a
é de modo nenhum “o materialismo priori como saber absoluto”. E como o
dialé�co, se com este se entende a marxismo, com a teoria dialé�ca, dissol-
ilusão meta�sica de descobrir uma veu os homens “em um banho de ácido
dialé�ca da natureza. Essa dialé�ca sulfúrico”, “o existencialismo pôde
pode efe�vamente exis�r, mas é preci- renascer e se manter porque afirmava a
so reconhecer que não temos a mínima realidade dos homens, como Kierkega-
prova disso”. Em suma, Sartre não ard afirmava sua própria realidade
aceita as três leis da dialé�ca propostas contra Hegel”.
por Engels como regras que guiariam o
desenvolvimento da natureza, da histó- Simone de Beauvoir foi uma escritora,
ria e do pensamento. A admissão intelectual, filósofa existencialista,
dessas leis gerais do devir implicaria um a�vista polí�ca, feminista e teórica
o�mismo ingênuo que proclamaria um social francesa. Embora não se conside-
finalismo de �po hegeliano e, o que é rasse uma filósofa, De Beauvoir teve
ainda mais inadmissível, reduziria o uma influência significa�va tanto no
homem a simples instrumento passivo existencialismo feminista quanto na
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

teoria feminista. As suas obras ofere- niz.


cem uma visão sumamente reveladora
de sua vida e de seu tempo. Em seu pri- O Segundo Sexo apresenta um existen-
meiro romance, A convidada (1943), cialismo feminista que prescreve uma
explorou os dilemas existencialistas da revolução moral. Como uma existencia-
liberdade, da ação e da responsabilida- lista, de Beauvoir acreditava que a exis-
de individual, temas que abordou igual- tência precedia a essência e, portanto,
mente em romances posteriores como não se nasce mulher, torna-se. Sua aná-
O sangue dos outros (1944) e Os man- lise foca no conceito hegeliano do
darins (1954), obra pela qual recebeu o “Outro”. É a construção social da
Prêmio Goncourt e que é considerada a mulher como a quintessência dos
sua obra-prima. As teses existencialis- “Outros” que de Beauvoir iden�fica
tas, segundo as quais cada pessoa é res- como fundamental para a opressão das
ponsável por si própria, introduzem-se mulheres. O “O” maiúsculo em “outros”
também em uma série de quatro obras indica “todos os outros”. De Beauvoir
autobiográficas, além de Memórias de afirmava que as mulheres são tão capa-
uma moça bem-comportada (1958), zes de escolher quanto os homens e
destacam-se A força das coisas (1963) e que, portanto, podem optar por elevar-
Tudo dito e feito (1972). Entre seus -se, movendo-se para além da “imanên-
ensaios crí�cos cabe destacar O segun- cia”, a qual eram anteriormente resig-
do sexo (1949), uma profunda análise nadas, para alcançarem a “transcen-
sobre o papel das mulheres na socieda- dência”, uma posição em que um indiví-
de, A Velhice (1970), sobre o processo duo assume a responsabilidade para si
de envelhecimento, onde teceu crí�cas e para o mundo, onde se escolhe sua
apaixonadas sobre a a�tude da socieda- liberdade. De Beauvoir antecipou o
de para com os anciãos e A cerimônia feminismo sexualmente carregado de
do adeus (1981), onde evocou a figura Erica Jong e Germaine Greer. No capítu-
de seu companheiro de tantos anos, lo “Mulher: Mito e Realidade”, de O
Sartre. Sartre e de Beauvoir sempre Segundo Sexo, De Beauvoir argumenta
liam o trabalho do outro. Ainda há um que os homens �nham tornado as mu-
debate sobre a medida em que um lheres o “Outro” da sociedade através
influenciou o outro em suas obras exis- da aplicação de uma falsa aura de “mis-
tencialistas, como O Ser e o Nada, de tério” em torno delas. Ela argumenta
Sartre e A Convidada, de De Beauvoir. que os homens usam isto como descul-
No entanto, estudos recentes focam o pa para não entender as mulheres ou os
trabalho da escritora em outras influên- seus problemas, ao invés de apoiá-las.
cias além de Sartre, como Hegel e Leib- Este estereó�po sempre foi usado por
19
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

grupos mais altos na hierarquia social do fundamento (escrito para o volume


para es�gma�zar grupos inferiores na miscelâneo publicado em comemora-
hierarquia. Ela escreveu que um �po ção dos setenta anos de Husserl), bem
similar de opressão hierárquica aconte- como o livro Kant e o problema da me-
ce em outras categorias, como iden�da- tafisica. Nesse entretempo, em 1927,
de, raça, classe e religião. De Beauvoir saíra o trabalho fundamental de Heide-
argumenta que os homens estereo�- gger, Ser e tempo. Em 1933, Heidegger,
pam as mulheres e usam isto como uma que aderira ao nazismo, torna-se reitor
desculpa para organizar a sociedade em da Universidade de Friburgo, pronun-
um patriarcado. ciando o discurso A autoafirmação da
universidade alemã. Mas pouco depois
2. Heidegger, Jaspers, Marcel e se demi�u do cargo de reitor.
Camus
O obje�vo declarado de Ser e tempo é o
Serão analisados, agora, alguns pensa- de uma ontologia capaz de determinar
dores que não são classificados em adequadamente o sen�do do ser. Mas,
apenas uma das Escolas ou Teorias que para alcançar esse obje�vo, é preciso
estamos estudando nesta aula. São analisar quem é que se propõe a per-
pensadores que sofreram influência gunta sobre o sen�do do ser. Enquanto
e/ou influenciaram mais de uma das Ser e tempo se resume em uma analí�-
concepções filosóficas vistas nesta aula. ca existencial sobre aquele ente (o
São eles: Heidegger, Jaspers, Marcel e homem) que se propõe a pergunta
Camus. sobre o sen�do do ser, os escritos de
1930 em diante abandonam a proposi-
Mar�n Heidegger estudou teologia e ção originária: não se trata mais de ana-
filosofia, laureou-se em filosofia em lisar aquele ente que procura caminhos
1914 com uma tese sobre A doutrina do de acesso ao ser, mas sim o próprio ser
juízo no psicologismo. Em 1916, como e sua auto revelação. E aqui, precisa-
tese de habilitação ao ensino universi- mente, reside a “reviravolta” do pensa-
tário, publicou A doutrina das catego- mento de Heidegger, que, no segundo
rias e do significado em Duns Escoto. período de sua filosofia, prescinde da
Professor por alguns anos na Universi- existência, que se torna uma determi-
dade de Marburgo, em 1929 Heidegger nação não essencial do ser. Escreve ele:
sucedeu a Husserl na cátedra de filoso- “A história do ser rege e determina toda
fia em Friburgo, dando sua aula inaugu- condição e situação humana”.
ral sobre O que é a metafisica? Do
mesmo ano é o ensaio Sobre a essência A intenção da obra Ser e tempo, diz Hei-
20
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

degger, é “a elaboração concreta do de buscar, nós o indicamos com o termo


problema do sen�do do ser”. Entretan- Ser-aí (Dasein, em alemão)”. Considera-
to, o problema do sen�do do ser do em seu modo de ser, o homem é
propõe imediatamente a interrogação: precisamente Da-sein, ou seja, Ser-aí. E
“A respeito de qual ente deve ser com- o “da” (aí) indica o fato de que o
preendido o sen�do do ser?” Pois bem, homem está sempre em uma situação,
prossegue Heidegger, se o problema do lançado nela e em relação a�va com
ser deve ser proposto explicitamente ela. O Ser-aí, isto é, o homem, não é
em toda a sua transparência, então tor- somente aquele ente que propõe a per-
na-se necessário evidenciar as manei- gunta sobre o sen�do do ser, mas é
ras de penetração no ser, de compreen- também aquele ente que não se deixa
são e de posse conceitual de seu sen�- reduzir à noção de ser aceita pela filoso-
do, bem como a solução da possibilida- fia ocidental, que iden�fica o ser com a
de de escolha correta do ente exemplar obje�vidade, ou seja, como diz Heideg-
e a indicação do caminho autên�co de ger, com a simples-presença.
acesso a esse ente. Penetração, com-
preensão, solução, escolha, acesso – As coisas são certamente diversas uma
são momentos cons�tu�vos da busca e, da outra, mas todas são objetos coloca-
ao mesmo tempo, modos de ser de dos diante de mim: e nesse seu estar
determinado ente, mais precisamente presente a filosofia ocidental viu o ser.
daquele ente que, nós que o buscamos, Mas o homem não pode se reduzir a
já somos. objeto puro e simples no mundo; o
Ser-aí jamais é uma simples-presença,
Por tudo isso, a elaboração do proble- uma vez que ele é precisamente aquele
ma do ser significa, portanto, o tornar- ente para o qual as coisas estão presen-
-se transparente de um ente, pôr tes. O modo de ser do Ser-aí é a existên-
aquele que busca em seu ser. E nisso cia: “A ‘natureza’, a ‘essência’ do Ser-aí
consiste a analí�ca existencial. O consiste em sua existência”. A essência
homem, portanto, é o ente que se da existência é dada pela possibilidade,
propõe a pergunta sobre o sen�do do que não é possibilidade lógica vazia
ser. Por isso, a proposição correta do nem simples con�ngência empírica. O
problema do sen�do do ser requer uma ser do homem é sempre uma possibili-
explicitação preliminar daquele ente dade a atuar e, consequentemente, o
que se propõe a pergunta sobre o sen�- homem pode escolher-se, isto é, pode
do do ser: e “esse ente, que nós conquistar-se ou perder-se. Neste sen�-
mesmos já somos sempre, e que tem, do, o Ser-aí (ou homem) é “o ente que
entre as outras possibilidades de ser, a depende de seu ser” e “a existência é
21
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

decidida, no sen�do da posse ou da ações e dos comportamentos possíveis


ruína, somente por cada Ser-aí individu- do homem. A transcendência ins�tui o
al”. projeto ou esboço de um mundo: ela é
um ato de liberdade – aliás, para Heide-
O homem é aquele ente que se interro- gger, é a própria liberdade. Entretanto,
ga sobre o sen�do do ser. O homem não se é verdade que qualquer projeto se
pode reduzir-se a simples objeto, isto é, radica em um ato de liberdade, também
a simples estar-presente. O modo de é verdade que todo projeto limita ime-
ser do homem é a existência. A existên- diatamente o homem que se encontra
cia é poder-ser. Mas poder-ser significa dependente das necessidades e limita-
projetar. Por isso, a existência é essen- do pelo conjunto daqueles utensílios
cialmente transcendência, iden�ficada que é o mundo. Estar-no-mundo, pois,
por Heidegger com a ultrapassagem. significa para o homem cuidar das
Desse modo, para ele, a transcendência coisas necessárias a seus projetos, e ter
não é um entre os muitos possíveis a ver com uma realidade-utensílio,
comportamentos do homem, e sim sua meio para sua vida e para suas ações.
cons�tuição fundamental: o homem é
projeto e as coisas do “mundo” são ori- Sendo o Ser-aí cons�tu�vamente proje-
ginariamente utensílios em função do to, o mundo existe como conjunto de
projetar humano. Tudo isso nos intro- coisas u�lizáveis: o mundo vem a ser
duz à tratação da caracterís�ca funda- graças a seu ser u�lizável. O ser das
mental do homem que Heidegger coisas equivale ao seu ser u�lizadas
chama de ser-no-mundo. O homem pelo homem. O homem, portanto, não
está-no-mundo. Mas, como o homem é é um espectador do grande teatro do
cons�tu�vamente projeto, o mundo – mundo: o homem está no mundo,
diferentemente do que pensava Husserl envolvido nele, em suas vicissitudes. E
– não é originariamente uma realidade transformando o mundo, ele forma e se
a contemplar e sim muito mais um con- transforma a si mesmo. A a�tude teóri-
junto de instrumentos “para” o ca e contempla�va do espectador
homem, um conjunto de utensílios, ou desinteressado (na qual Husserl tanto
seja, de coisas a u�lizar, à mão, e não de insis�ra, bem como a tradição filosófica
coisas a contemplar como presentes. ocidental em geral) é somente um
aspecto da mais ampla e geral u�lizabi-
A existência é poder-ser, projeto, trans- lidade das coisas. As coisas são sempre
cendência em relação ao mundo: estar- instrumentos: se for conveniente, po-
-no-mundo, portanto, significa origina- derão ser vistas como instrumentos que
riamente fazer do mundo o projeto das sa�sfazem um prazer esté�co; mas, se o
22
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

consideramos ú�l, poderão ser vistas ao contrário, temos um autên�co “coe-


“obje�vamente”, isto é, cien�ficamen- xis�r”.
te, tendo como fundo um projeto total.
O homem compreende uma coisa O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem
quando sabe o que fazer dela, do se encontra sempre em uma situação e
mesmo modo como compreende a si enfrenta essa situação graças a seu pro-
mesmo quando sabe o que pode fazer jetar. Mas, quando volta seus “cuida-
consigo, isto é, quando sabe o que pode dos” para o plano “ôn�co” ou “existen-
ser. �vo”, isto é, ao plano dos entes em sua
factualidade, o homem permanece na
Se o ser-no-mundo é um existencial, existência inautên�ca. Nesta, o homem
também o ser-com-os-outros é um exis- manipula as coisas, u�liza-as e estabe-
tencial. Não há “um sujeito sem lece relações sociais com outros
mundo” e, ao mesmo tempo, não existe homens. Todos esses projetos, porém,
“um eu isolado sem os outros”. Os em uma espécie de ver�gem, a�ram o
outros não são inferidos como outros homem para o nível dos fatos. A u�liza-
“eus”; eles são dados, ao invés, como ção das coisas se transforma em fim em
outros “eus”, desde a origem. Sendo a si mesma. A linguagem se transforma
existência cons�tu�vamente abertura, então no palavrório da existência anôni-
desde a origem os outros “eus”, como ma subjacente ao axioma “as coisas são
tais, par�cipam do mesmo mundo no assim porque assim se diz”.
qual eu vivo. Por outro lado, assim
como o ser-no-mundo do homem se Essa existência anônima procura encher
expressa pelo cuidar das coisas, do o vazio que a caracteriza, recorrendo
mesmo modo o seu ser-com-os-outros con�nuamente ao novo: ela se afoga na
se expressa pelo cuidar dos outros, curiosidade. E, por fim, além do pala-
coisa que cons�tui a estrutura basilar vrório e da curiosidade, a terceira carac-
de toda possível relação entre os terís�ca da existência inautên�ca é o
homens. E o cuidar dos outros pode equívoco: a individualidade das situa-
tomar duas direções: na primeira, pro- ções, em uma existência devorada pelo
cura-se subtrair os outros de seus cui- palavrório e pela curiosidade, desvane-
dados; na segunda, procura-se ajudá- ce na neblina do equívoco. A existência
-los a conquistar a liberdade de assumir inautên�ca é existência anônima: é a
seus próprios cuidados. No primeiro existência do “se diz” e do “se faz”. A
caso, temos um simples “estar junto” e análise existencial revela que a existên-
estamos diante de uma forma inautên- cia anônima é um poder ser cons�tu�-
�ca de coexistência; no segundo caso, vo do homem. E, segundo Heidegger, o
23
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

que se encontra na base desse poder- a um obje�vo ou a outro, posso esco-


-ser é a dejeção, ou seja, a queda do lher uma profissão ou outra, mas não
homem no plano das coisas do mundo. posso deixar de morrer. E então,
Entretanto, existe a voz da consciência, quando a morte se torna realidade, não
que chama à existência, quando então há mais existência. Isso nos faz enten-
nos colocamos não mais no plano der que, enquanto há o existente, a
“ôn�co” ou “existen�vo”, e sim no morte é possibilidade permanente, e
plano “ontológico” ou “existencial”, essa é a possibilidade de que todas as
procurando o sen�do do ser dos entes, outras possibilidades se tornem impos-
isto é, o sen�do do seu exis�r. síveis. Diz Heidegger: “Enquanto possi-
bilidade, a morte não dá ao homem
A voz da consciência traz de novo o nada a realizar”. Ela é a possibilidade da
homem envolvido pelos cuidados para impossibilidade de todo projeto e, com
diante de si mesmo, remetendo-o à isso, de toda existência: com efeito,
questão do que ele é no mais profundo com a morte, não há outras possibilida-
do seu ser e que não pode ocultar. A des a escolher nem novos projetos a
existência é poder-ser; e é nesse poder- realizar.
-ser que se baseia o projetar ou trans-
cender do homem. Mas todo projetar A voz da consciência, por conseguinte,
leva o homem ao nível das coisas e do nos remete ao sen�do da morte e
mundo. Tudo isso quer dizer que os pro- revela a nulidade de todo projeto: na
jetos e as escolhas do homem, no perspec�va da morte, todas as situa-
fundo, são todos equivalentes: posso ções singulares aparecem como possi-
dedicar minha vida ao trabalho, ao bilidades que podem se tornar impossí-
estudo, a riqueza ou a qualquer outra veis. Desse modo, a morte impede que
coisa, mas posso ser homem seja esco- alguém se fixe em uma situação, mostra
lhendo uma possibilidade, seja esco- a nulidade de todo projeto e funda a
lhendo outra. É por essa razão que, con- historicidade da existência. A existência
siderando como úl�ma e decisiva uma autên�ca, portanto, é um ser-para-a-
dessas escolhas ou possibilidades, o -morte. Somente compreendendo a
homem se decide por e se dispersa em impossibilidade da morte como possibi-
uma existência inautên�ca. lidade da existência, e somente assu-
mindo essa possibilidade com decisão
Entretanto, entre as várias possibilida- antecipada, o homem encontra seu ser
des, há uma diferente das outras, à qual autên�co.
o homem não pode escapar: trata-se da
morte. Posso decidir dedicar minha vida O “viver para a morte” cons�tui, por-
24
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

tanto, o sen�do autên�co da existência. nível do mundo, inautên�ca e oculta


O “viver-para-a-morte” nos afasta do para si mesma como angús�a”. Sempre
estar submerso nos fatos e nas circuns- se tem medo de alguma coisa; ao passo
tâncias. A antecipação da morte (que que nos angus�amos por nada: na
não significa de modo algum realiza-la angús�a está presente o nada, com seu
pelo suicídio) dá sen�do ao ser dos poder de aniquilação.
entes, mediante a experiência do seu
nada possível. Essa experiência, no Dado que a existência é possibilidade e
entanto, não se tem por obra de ato projeto, escreve Heidegger em Ser e
intelec�vo, e sim, muito mais, por meio tempo, entre as determinações do
do sen�mento especifico que é a angús- tempo (passado, presente e futuro) a
�a: “O ser-para-a-morte é essencial- fundamental é o futuro: “O projetar-se-
mente angús�a”. A angús�a põe o -adiante para o 'em-vista-de-si-mesmo',
homem diante do nada, do nada de projetar-se que se baseia no futuro, é
sen�do, isto é, do não-sen�do dos pro- caracterís�ca essencial da existenciali-
jetos humanos e da própria existência. dade. Seu sen�do primário é o futuro”.
Exis�r auten�camente implica ter a Entretanto, o cuidado, que antecipa as
coragem de olhar de frente a possibili- possibilidades, surge do passado e o
dade do próprio não-ser, de sen�r a implica. E entre passado e futuro estão
angús�a do ser-para-a-morte. A exis- o ocupar-se com as coisas que é o pre-
tência auten�ca, por conseguinte, signi- sente. Essas três determinações do
fica a aceitação da própria finitude. E é tempo encontram seu significado em
a essa aceitação que nos conclama a seu ser “fora de si”: o futuro é um pre-
voz da consciência: a aceitação da nossa tender-se, o presente é estar preso as
própria finitude e nega�vidade. coisas e o passado é retornar à situação
de fato para aceitá-la. Essa é a razão
A existência inautên�ca e anônima, ao pela qual Heidegger chama os três mo-
contrário, tem medo da angús�a diante mentos do tempo de êxtase, entendido
da morte, de modo que, para escapar a em seu sen�do e�mológico de “estar
angús�a, a existência anônima ocupa- fora”.
-se muito com as coisas e afunda no
reino do se (man): “a existência anôni- Em todo caso, as três determinações do
ma e banal não tem a coragem da tempo mudam com base no fato de se
angús�a diante da morte”. E isso pode tratar de tempo autên�co ou de tempo
ser visto no fato de que a existência inautên�co, sendo o tempo autên�co o
anônima banaliza a angús�a no medo: da existência auten�ca e o tempo inau-
“o medo é uma angús�a que decaiu ao tên�co �pificado pela preocupação
25
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

com o sucesso, é a atenção para com o Em outros termos, o homem que vive
êxito; ao passo que na existência auten- auten�camente con�nua a viver a vida,
�ca, que assume a morte como possibi- por assim dizer, banal de seu tempo e
lidade que qualifica a existência, o de seu povo, mas a vive com todo
futuro é um viver para a morte que não aquele afastamento próprio de quem,
permite ao homem ser envolvido pelas com a experiência antecipadora da
possibilidades mundanas. E se o passa- morte, teve a revelação do nada dos
do autên�co é o não aceitar passiva- projetos humanos e da existência
mente a tradição, mas confiar nas possi- humana. A tarefa declarada de Ser e
bilidades que a tradição nos oferece e tempo é a de determinar o sen�do do
reviver a possibilidade do homem que Ser. Entretanto, essa interrogação – que
já foi, o presente autên�co é o instante, se desdobrou na analí�ca existencial,
em que o homem repudia o presente ou seja, na análise das estruturas da
inautên�co (onde o homem é absorvi- existência – teve como resultado o de
do sem descanso pelas coisas a fazer) e que o sen�do do ser não pode
decide seu des�no. ser ob�do pela interrogação de um
ente. A análise da existência mostra que
Dessa análise do tempo, entre outras a existência autên�ca é o nada de todo
coisas, derivam algumas consequências projeto e o nada da própria existência. A
importantes no pensamento de Heideg- análise do Ser-aí, isto é, daquele ente
ger: 1) Os significados do tempo usados privilegiado que se propõe a pergunta
no pensamento comum e na ciência (a sobre o sentido do ser, revela o sentido
databilidade e a medida cien�fica do do Ser, e sim o nada da existência.
tempo) cons�tuem tempo inautên�co, já
que remetem à existência lançada entre Essas considerações são explicitadas
as coisas do mundo; 2) A existência por Heidegger em sua Introdução à me-
autên�ca é a existência angus�ada, que tafisica (1953), que se apresenta como
vê a insignificância de todos os projetos e crí�ca radical da meta�sica clássica. De
fins do homem. Essa insignificância torna Aristóteles a Hegel e ao próprio Nietzs-
todos os projetos equivalentes. Pondo o che, a meta�sica clássica fez o que a
homem diante da equivalente nulidade analí�ca existencial mostrou ser impos-
dos fins, a angús�a dá ao indivíduo a sível: procurou o sen�do do Ser inda-
possibilidade de aceitar o próprio tempo e gando os entes. A meta�sica iden�ficou
a ele permanecer fiel, ou seja, assumir o ser com a obje�vidade, isto é, com a
como próprio o des�no da comunidade simples presença dos entes. Desse
humana a qual pertence, em uma espécie modo, ela não é meta�sica, senão
de amor fati. “�sica” absorvida pelas coisas, que
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

esqueceu o ser e que, aliás, leva ao Ser para ser o guarda de sua verdade”.
esquecimento desse esquecimento. Por isso, é preciso levar a filosofia de
Heidegger diz que Platão foi o primeiro sua deformação “humanista” até o
responsável pela degradação da meta�- “mistério” do Ser, a seu desvelar-se ori-
sica a �sica. Os primeiros filósofos (Ana- ginário. Mas onde ocorre esse desvelar-
ximandro, Parmênides, Heráclito) con- -se do Ser? Diz Heidegger que o ser se
ceberam a verdade como um desvelar- desvela na linguagem, não na lingua-
-se do Ser, como provaria o sen�do e�- gem cien�fica própria dos entes, ou na
mológico de alétheia, onde lantháno linguagem inautên�ca do palavrório, e
(velar) é precedido do alfa priva�vo. sim na linguagem auten�ca da poesia.
Entretanto, Platão rejeitou a verdade Escreve ele na Carta sobre o humanis-
como “não-ocultamento” do Ser e sub- mo: “A linguagem é a casa do ser. E
verteu a relação entre Ser e verdade, nessa morada habita o homem. Os pen-
baseando o Ser na verdade, no sen�do sadores são os guardiões dessa
de que a verdade estaria no pensamen- morada”. Na forma autoral da poesia, a
to que julga e estabelece relações entre palavra �nha caráter “sacral”: língua
os próprios “conteúdos” ou “ideias”, e originária, a poesia deu nomes às coisas
não no ser que se desvela ao pensa- e fundou o Ser. Essa fundação do Ser,
mento. Desse modo, o ser deveria se porém, especificada por Heidegger em
finalizar e rela�vizar para a mente Holderlin e a essência da poesia (1937),
humana, aliás, para a linguagem dela. não é obra do homem e sim dom do Ser.
Na linguagem do poeta, não é o homem
Entretanto, o patrimônio de palavras, que fala, e sim a própria linguagem – e,
de regras lógicas, grama�cais e sintá�- nela, o Ser. Consequentemente, a justa
cas, que é a linguagem, estabelece limi- a�tude do homem em relação ao ser é
tes intransponíveis ao que podemos a do silêncio para ouvi-lo; o abandono
dizer. A linguagem do homem pode ao Ser é o único comportamento corre-
falar dos entes, mas não do ser. Por isso, to. O homem deve, portanto, tornar-se
a revelação do ser não pode ser obra de livre para a verdade, concebida como
um ente, ainda que privilegiado como o desvelamento do Ser. E, assim, liberda-
Ser-aí, mas só pode se dar através da de e verdade se iden�ficam. E, como a
inicia�va do próprio ser. Aí reside a “re- verdade, também a liberdade é dom do
viravolta” do pensamento de Heideg- Ser ao homem, uma inicia�va do Ser.
ger. O homem não pode desvelar o sen-
�do do Ser. Ele deve ser o pastor do Ser São, portanto, os “pensadores essen-
e não o senhor do ente. E sua dignidade ciais” (como Anaximandro, Parmênides,
“consiste em ser chamado pelo próprio Heráclito e Holderlin) as testemunhas
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

ou os ouvintes da voz do Ser e não a absoluta, é a Existência possível. Estu-


meta�sica ocidental. O senhor do ente dou medicina e, depois de trabalhar no
não é o pastor do Ser. Mas o homem hospital psiquiátrico da Universidade
ocidental, precisamente por força de Heidelberg, tornou-se professor de
daquela “�sica” que pretendia ser “me- psicologia da Faculdade de Letras dessa
ta�sica”, transformou-se em senhor do ins�tuição. Desligado de seu cargo pelo
ente. A reviravolta operada por Platão regime nazista em 1937, foi readmi�do
no conceito de verdade e, com isso, no em 1945 e, três anos depois, passou a
des�no da meta�sica, explica o des�no lecionar filosofia na Universidade de
do Ocidente e o primado da técnica no Basileia. O pensamento de Jaspers foi
mundo moderno. A técnica não é ins- influenciado pelo seu conhecimento
trumento neutro nas mãos do homem, em psicopatologia e, em parte, pelo
que pode usá-la para o bem ou para o pensamento de Kierkegaard, Nietzsche
mal, nem cons�tui acontecimento aci- e Max Weber. Sempre teve interesse
dental no Ocidente. Para Heidegger, a em integrar a ciência ao pensamento
realidade é que a técnica é o resultado filosófico na medida em que, para Jas-
natural daquele desenvolvimento pelo pers, as ciências são por si sós insufi-
qual, esquecendo o Ser, o homem se cientes e necessitam do exame crí�co
deixou arrastar pelas coisas, tornando a que só pode ser dado pela filosofia.
realidade puro objeto a dominar e a Esta, por sua vez, deve basear-se numa
desfrutar. E esse comportamento, que elucidação, a mais completa possível,
não se deterá sequer quando chega, da existência do homem real e não da
como acontece hoje, a ameaçar as humanidade abstrata. O resultado das
bases da própria vida, é comportamen- reflexões de Jaspers sobre o tema foi a
to que se tornou onívoro; trata-se de primeira formulação de sua filosofia
uma fé, a fé na técnica como domínio existencial. O existencialismo (ou filoso-
sobre tudo. fia da existência) cons�tui, segundo Jas-
pers, o âmbito no qual se dá todo o
Karl Jaspers foi um filósofo e psiquiatra saber e todo o descobrimento possível.
alemão. Fiel à existência e ao seu pen- Por isso a filosofia da existência vem a
samento, Karl Jaspers nunca aceitou a cons�tuir-se numa meta�sica. A exis-
denominação de “existencialista” tência, em qualquer de seus aspetos, é
porque nunca defendeu um “existencia- precisamente o contrário de um
lismo”, o que equivaleria a reduzir tudo “objeto”, pois pode ser definida como
à existência, transformando-a num “o que é para si encaminhada”. O pro-
valor absoluto e aniquilando desse blema central é como pensar a existên-
modo o seu sen�do. A Existência não é cia sem torná-la objeto. A existência
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Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

humana é entendida como in�mamen- havia �rado o idealismo. Gabriel Marcel


te vinculada à historicidade e à noção se aproxima de Kierkegaard e Jaspers
de situação: o exis�r é um transcender mesmo sem ter lido algo deles anterior-
na liberdade, que abre o caminho em mente, segundo confessa. Seu existen-
meio a um conjunto de situações histó- cialismo é anterior ao alemão. Sua on-
ricas concretas. Jaspers preocupou-se tologia é existencial e quer, de certo
em estabelecer as relações entre exis- modo enlaçar-se com a tradicional.
tência e razão, o que levou-o a inves�- Marcel está dentro da tradição francesa
gar em profundidade o conceito de ver- não cartesiana de Pascal a Bergson e
dade. Para ele, a verdade não é enten- Raja. O método de Gabriel aproxima-se
dida como caracterís�ca de nenhum de Husserl, tomando situações concre-
enunciado par�cular: é antes uma tas como as relações entre “mim e
espécie de ambiente que envolve todo outro”, a representação de uma cena
o conhecimento. passada ou de uma cena à distância, a
esperança, e faz das mesmas uma análi-
Gabriel Marcel foi um filósofo, drama- se fenomenológica aprofundada.
turgo e compositor francês ligado à tra-
dição fenomenológico-existencial. É um Os mo�vos fundamentais do pensa-
pensador que, desde o início de século, mento filosófico são: 1) a defesa da sin-
influenciou toda uma geração de inte- gularidade irrepe�vel do existente e do
lectuais como Paul Ricoeur, Merleau- mistério do ser, contra o racionalismo
-Ponty, Jean-Paul Sartre, Lévinas, entre que pretende reduzir a existência à
outros. Marcel situa o seu pensamento experiência conhecida pelo método da
como neo-socrá�co ou socrá�co-cris- verificação empírica; 2) reconhecimen-
tão. Rejeitava, o quanto possível, o to da inobje�vidade fundamental do
termo existencialismo, tal como Jaspers sen�do corpóreo. O homem é um ser
e Heidegger. Par�ndo de sua própria encarnado. Analisa a proposição “eu
existência, acentua ter vivido proble- existo” e segundo ele, a reflexão meta�-
mas filosóficos que o oprimiram e sica revela que esta proposição significa
afirma: “a filosofia concreta nasce “eu sou o meu corpo”. Corpo que não é
somente de uma tensão criadora, con�- só a matéria visível, mas também a in�-
nuamente renovada, entre o eu e as midade – concre�zação do eu, isto é, a
profundezas do ser, da mais estrita e individualização do exis�r. A pesquisa
rigorosa reflexão, fundada na experiên- do homem encarnado de Marcel orien-
cia vivida até o limite de sua intensida- ta-se para a descoberta de um sen�do
de”. Gabriel procura dar à existência para a vida, o qual é sempre o sen�do
aquela prioridade meta�sica que lhe da minha vida. Recusar-se a esclarecer
29
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

o sen�do da vida é renunciar a própria seu vir para fora. O Ter, acentuando a si
iden�dade profunda, é dissolver-se no mesmo anula o Ser; mas tornando-se
Ter. instrumento, subirá ao plano do Ser.
Somente assim é que poderemos abor-
O Ter e o Ser é a dis�nção é fundamen- dar o Ser sem transformá-lo em Ter, em
tal na ontologia de Marcel. Ter diz res- objeto, em espetáculo, em suma, a rela-
peito a coisas que me são externas e ção Ser-Ter é uma relação de essencial
que de mim não dependem, embora eu tensão dialé�ca na qual o Ser está
seja proprietário e delas me disponho. sempre ligado ao Ter e deve purificá-lo,
Ser é fonte de alheamento: os objetos não deixando-se absorver por ele, mas
que possuímos possuem significados orientando-o para si. O Deus de Marcel
que ameaçam tragar-nos. Os que estão não é objeto suscep�vel de demonstra-
apegados ao Ter estão prestes a sofrer ção obje�va (racionalismo) nem uma
de deficiência ontológica com a perda mera função (subje�vismo), mas o “In-
do Ser. Para quem vive na dimensão do demonstrável Absoluto”. O drama da
Ter todas as coisas são problemas. existência humana é um encontro pes-
Exemplo: Dom Juan vive na zona do Ter: soal entre Deus e o eu e alterna entre o
vê a mulher do ponto de vista da posse sim e o não, entre a fidelidade e a infi-
sem poder saciar-se com nenhuma. O delidade, entre o amor e o ódio e ao
corpo e o Ter-�pico: é a exterioridade homem é dado o poder único de deci-
em comunicação com o “eu” interior. dir, afirmar ou negar. O dilema sempre
Entre a realidade e mim, o corpo é me- persiste como a essência de sua liberda-
diador absoluto. O corpo é a primeira de.
coisa possuída. O Ser tem a primazia na
pesquisa meta�sica em relação ao pen- Albert Camus foi um escritor, filósofo,
samento e ao Ter. Não há e não pode romancista, dramaturgo, jornalista e
haver passagem do pensamento ao ser; ensaísta franco-argelino. Ele também
esta passagem é impensável; o pensa- atuou como jornalista militante envolvi-
mento já está no ser e não pode sair do na Resistência Francesa, situando-se
dele, não pode fazer abstração dele. É próximo das correntes libertárias du-
necessário dizer que o pensamento é rante as batalhas morais no período
interno ao ser, que ele é certa modali- pós-guerra. O seu trabalho pro�cuo
dade do ser. O pensamento está para o inclui peças de teatro, novelas, no�cias,
ser assim como os olhos para a luz. O filmes, poemas e ensaios, onde ele
Ser tem primazia sobre o Ter. O Ter é desenvolveu um humanismo baseado
aquilo que é obje�vável, é a exterioriza- na consciência do absurdo da condição
ção do Ser, ele é o coisificar-se do Ser, o humana e na revolta como uma respos-
30
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

ta a esse absurdo. Para Camus, essa tual com seu an�go colega Sartre.
revolta leva à ação e fornece sen�do ao
mundo e à existência. Daqui “nasce Apesar de ser familiarizado com a obra
então a estranha alegria que nos ajuda do filósofo alemão Mar�n Heidegger, a
a viver e a morrer”. Recebeu o Prémio principal influência de Camus foi o dina-
Nobel de Literatura em 1957. A curta marquês Søren Kierkegaard, que usou a
carreira de Camus como jornalista do história bíblica de Abraão e Isaac para
Combat foi ousada. Atuando como expôr seu conceito de “absurdo”. Na
periodista, ele tomou posições incisivas passagem, Abraão aceita sacrificar o
em relação à Guerra de Independência próprio filho como prova de amor a
Argelina e ao Par�do Comunista Fran- Deus sem ques�onar. Mas, antes que o
cês. Ao longo de sua carreira, Camus sacri�cio seja consumado, Deus libera o
envolveu-se em diversas causas sociais, devoto da obrigação e manda os dois
protestando veementemente contra as irem para casa. O que espanta Kierkega-
desigualdades que a�ngiam os muçul- ard não é a obediência cega de Abraão,
manos no Norte de África, defendendo mas o fato de pai e filho retomarem sua
os exilados espanhóis an�fascistas e as ro�na normal depois de um aconteci-
ví�mas do stalinismo. Ele ainda foi um mento tão intenso. No ensaio Temor e
entusiasmado defensor da objeção de Tremor, de 1843, Kierkegaard afirma:
consciência. À margem de outras cor- “Abraão renunciou infinitamente a
rentes filosóficas, Camus foi sobretudo tudo, e então retomou tudo de volta
uma testemunha de seu tempo. Intran- com a força do absurdo”. Ou seja, para
sigente, recusou qualquer filiação ideo- viver uma vida cheia de falhas, é preciso
lógica. Lutou energicamente contra dar um “salto impossível”. Camus
todas as ideologias e abstrações que também acreditava nisso, mas sem a
deturpavam a natureza humana. Dessa parte religiosa. “Aqui também podemos
maneira, ele foi levado a opor-se ao ver relações com a vida na França da
existencialismo e ao marxismo, discor- Ocupação [alemã, durante a Segunda
dando de Jean-Paul Sartre e de seus Guerra]. Concedeu-se tudo, perdeu-se
an�gos amigos. Camus incorporou uma tudo – no entanto, tudo ainda parece
das mais elevadas consciências morais exis�r. O que sumiu foi o sen�do. Como
do século XX. O humanismo de seus viver sem sen�do? A resposta de Camus
escritos foi fundamentado na experiên- e Kierkegaard consis�a em algo similar
cia de alguns dos piores momentos da ao lema do cartaz britânico para elevar
história. A sua crí�ca ao totalitarismo o moral: Keep Calm and Carry On [Man-
sovié�co rendeu-lhe diversas retalia- tenha a calma e siga em frente], escre-
ções e culminou na desavença intelec- veu a filósofa Sarah Bakewell, no livro
31
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

No Café Existencialista. sua concepção de absurdo. Para eles, a


vida não é absurda, mesmo vista numa
No ensaio O mito de Sísifo, que faz uma escala cósmica, e não se ganha nada
referência à Odisseia de Homero, o dizendo que é. Para eles, a vida é plena
escritor fala do rei que, ao desafiar os de sen�do, embora esse sen�da surja
deuses, recebe o cas�go de empurrar de maneira diferente para cada um de
uma pedra para o alto de uma monta- nós”, escreveu Bakewell.
nha para sempre. Toda vez que ele
chega ao topo, a pedra rola abaixo e ele Em filosofia, “O Absurdo” se refere ao
precisa refazer o trabalho. Camus des- conflito entre a tendência humana de
creve Sísifo como uma pessoa que vivia buscar significado inerente à vida e a
a vida plenamente, odiava a morte e inabilidade humana para encontrá-lo
que foi condenado a cumprir uma em um universo sem propósito, sem
tarefa totalmente inú�l. O escritor significado ou caó�co e irracional.
ques�onava como devemos reagir Nesse contexto, “absurdo” não significa
diante da inu�lidade da vida. Assim “logicamente impossível”, mas “huma-
como Jean-Paul Sartre, ele afirmava namente impossível”. O Absurdo não é
que não paramos para pensar nisso um produto só do espírito humano,
simplesmente porque a vida é corrida tampouco algo existente de maneira
demais. Mas de vez em quando ocorre independente do homem. Ele é, ao con-
um deslize e surge a questão da finali- trário, resultado da contrariedade ine-
dade. Nesses momentos, sen�mos um rente ao convívio do espírito com o
cansaço �ngido de espanto ao enfren- mundo. Trata-se de uma filosofia que
tarmos a pergunta mais básica de está relacionada ao existencialismo e ao
todas: Por que con�nuamos a viver? niilismo, ainda que não deva ser con-
Para Camus, era preciso tomar uma fundida com estes.
decisão: se optarmos por con�nuar a
viver devemos aceitar que não existe 3. A Teoria da Hermenêu�ca e os
um sen�do úl�mo no que fazemos. desenvolvimentos
Apesar de não se considerar um adepto
da filosofia existencialista, Camus �nha
Hermenêu�ca é um ramo da filosofia
vários pontos em comum com seus
que estuda a teoria da interpretação,
amigos franceses Simone de Beauvoir e
que pode referir-se tanto à arte da
Sartre. Mas existem diferenças impor-
interpretação, ou à prá�ca e treino de
tantes entre suas obras. “Por mais que
interpretação. A hermenêu�ca tradicio-
gostassem de Camus pessoalmente,
nal se refere ao estudo da interpretação
nem Sartre nem Beauvoir aceitavam
de textos escritos, especialmente nas
32
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

áreas de literatura, religião e direito. A que se possa ir adiante; 3) Estrutura de


hermenêu�ca moderna, ou contempo- diálogo: a compreensão sempre é apre-
rânea, engloba não somente textos ensão do estranho e está aberta à mo-
escritos, mas também tudo que há no dificação das pressuposições iniciais
processo interpreta�vo. Isso inclui diante da diferença produzida pelo
formas verbais e não-verbais de comu- outro (o texto, o interlocutor); 4) Estru-
nicação, assim como aspectos que tura de mediação: a compreensão visa
afetam a comunicação, como proposi- um dado que se dá por si mesmo, mas a
ções, pressupostos, o significado e a sua apreensão faz-se pela mediação da
filosofia da linguagem e a semió�ca. O tradição e da linguagem. Os costumes,
termo “hermenêu�ca” provém do cultura e etnias são alguns dos aspectos
verbo grego hermēneuein e significa fundamentais para se ter uma legí�ma
“declarar”, “anunciar”, “interpretar”, interpretação do texto.
“esclarecer e, por úl�mo, “traduzir”.
Significa que alguma coisa é “tornada Com Friedrich Schleiermacher (1768-
compreensível” ou “levada à compre- -1834), no início do século XIX, a herme-
ensão”. nêu�ca recebe uma reformulação, pela
qual ela defini�vamente entra para o
O termo deriva do nome do deus da âmbito da filosofia. Em seus projetos de
mitologia grega Hermes (Mercúrio para hermenêu�ca, coloca-se uma exigência
os romanos), o mensageiro dos deuses, significa�va: a exigência de se estabele-
a quem os gregos atribuíam a origem da cer uma hermenêu�ca geral. Ela deve-
linguagem e da escrita e considerado o ria ser capaz de estabelecer os princí-
patrono da comunicação e do entendi- pios gerais de toda e qualquer compre-
mento humano. As estruturas básicas ensão e interpretação de manifestações
da compreensão são: 1) Estrutura de linguís�cas. Onde houvesse linguagem,
horizonte: o conteúdo singular é apre- ali aplicar-se-ia sempre a interpretação.
endido a par�r da totalidade de um E tudo o que é objeto da compreensão
contexto de sen�do, que é pré-apreen- é linguagem. Esta afirmação, entretan-
dido e co-apreendido; 2) Estrutura to, mostra todas as suas implicações
circular: a compreensão acontece a quando se lhe justapõe esta outra tese
par�r de um movimento de ir e vir de Schleiermacher: “a linguagem é o
entre pré-compreensão e compreensão modo do pensamento se tornar efe�vo.
da coisa, como um acontecimento que Pois, não há pensamento sem discurso.
progride em forma de espiral, na Ninguém pode pensar sem palavras”.
medida em que um elemento pressu- Ao postular a “unidade de pensamento
põe outro e ao mesmo tempo faz com e linguagem”, a tarefa da hermenêu�ca
33
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

se torna universal e abarca a totalidade sen�do, e sen�do é o que se apresenta


do que importa ao humano. A herme- à compreensão como conteúdo. Só po-
nêu�ca, então, é uma análise da com- demos determinar a compreensão pelo
preensão “a par�r da natureza da sen�do e o sen�do apenas pela com-
linguagem e das condições basilares da preensão. Segundo Wilhelm Dilthey,
relação entre o falante e o ouvinte”. As estes dois métodos estariam opostos
dis�nções básicas estabelecidas por entre si: explicação (próprio das ciên-
Scheleiermacher são: 1) a dis�nção cias naturais) e compreensão (próprio
entre compreensão grama�cal, a par�r das ciências do espírito ou ciências hu-
do conhecimento da totalidade da manas).
língua do texto ou discurso, e a compre-
ensão técnica ou psicológica, a par�r do O grande nome da hermenêu�ca é
conhecimento da totalidade da inten- Hans-Georg Gadamer. Ele foi um filóso-
ção e dos obje�vos do autor; 2) a dis�n- fo alemão considerado como um dos
ção entre compreensão divinatória e maiores expoentes da hermenêu�ca
compara�va (compreensão divinatória: (interpretação de textos escritos,
significa uma adivinhação imediata ou formas verbais e não verbais). Sua obra
apreensão imediata do sen�do de um de maior impacto foi Verdade e
texto; compreensão compara�va: se Método, de 1960, onde elabora uma
apoia em uma mul�plicidade de conhe- filosofia propriamente hermenêu�ca,
cimentos obje�vos, grama�cais e histó- que trata da natureza do fenômeno da
ricos, deduzindo o sen�do a par�r do compreensão.
enunciado).
Originalmente in�tulado por Gadamer
Posteriormente, com os trabalhos de como Traços Fundamentais de uma
Dilthey, o procedimento hermenêu�co Hermenêutica Filosófica, Verdade e
tornou-se a metodologia das ciências Método é justamente isso. Seguindo a
humanas. Os eventos da natureza inicia�va de Heidegger de aumentar o
devem ser explicados, mas os eventos escopo da hermenêu�ca além dos
históricos, os valores e a cultura devem textos, Gadamer endossa a percepção
ser compreendidos. Wilhelm Dilthey é de que os seres humanos são funda-
primeiro a formular a dualidade de mentalmente seres que são dados à
“ciências da natureza e ciências do espí- compreensão. Nossa tarefa, se quiser-
rito”, que se dis�nguem por meio de um mos realmente nos conhecer, é desco-
método analí�co esclarecedor e um brir o que tal compreensão implica,
procedimento de compreensão descri- levando em conta tanto suas possibili-
�va. Compreensão é apreensão de um dades quanto suas limitações. Gada-
34
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

mer, no entanto, vai além de Heidegger cultural: linguagem, teorias, mitos, etc.)
e pergunta se esse é o caso, o que isso ao crivo sobre o texto e sobre o contex-
significa especificamente para as huma- to (qualquer informação importante,
nidades? A resposta de Gadamer tem apta a confirmar ou a enfraquecer a
componentes nega�vos e posi�vos. Ne- interpretação proposta), e se esse con-
ga�vamente, Verdade e Método cri�ca trole mostra que há um choque entre
não apenas o metodologismo e o cien�- nossa interpretação e algum trecho do
ficismo subjacentes à hermenêu�ca de texto ou do contexto, então devemos
Dilthey e à fenomenologia de Husserl, propor um esboço posterior de sen�do,
mas também a propensão do século XX outra interpretação a ser subme�da,
para o posi�vismo e/ou o naturalismo. por sua vez, ao crivo do texto e do con-
No entanto, em seu movimento para texto. E se também esta segunda resul-
colocar a ciência “em seu lugar”, por tar inadequada, experimentar-se-á uma
assim dizer, encontra-se uma tenta�va terceira. E assim por diante, teorica-
posi�va de revigorar nossa apreciação mente ao infinito, ainda que nos dete-
da arte, mostrando não apenas como nhamos naquela interpretação que nos
ela fala a verdade, mas também como aparecerá como sa�sfatória.
ela serve como o paradigma da verda-
de. Ele argumenta não apenas que o Quem quiser compreender um texto
conhecimento significa�vo buscado deve estar pronto a deixar que o texto
pelas humanidades é irredu�vel ao das lhe diga alguma coisa (alteridade do
ciências naturais, mas que há uma ver- texto). Tal sensibilidade não pressupõe
dade mais profunda e mais rica que uma neutralidade obje�va nem um
excede o método cien�fico. esquecimento de si mesmo, mas impli-
ca uma precisa tomada de consciência
Com o círculo hermenêu�co (movimen- das próprias pressuposições e dos pró-
to de compreender) enfrentamos um prios preconceitos. Segundo a história
texto com o conjunto de expecta�vas dos efeitos, o produto não é o produtor.
ou pré-conceitos que cons�tuem nossa E o autor de um texto é um elemento
pré-compreensão (nossa mente não é ocasional. Com efeito, depois de vindo
uma tábula rasa). E é em base a esta ao mundo, um texto vive uma vida
pré-compreensão nossa que damos autônoma: produz seus efeitos. Ex.: de
uma primeira interpretação do texto, uma teoria cien�fica se verão consequ-
que não é mais do que conjetura nossa ências, erros, aplicações, desenvolvi-
sobre a mensagem ou conteúdo do mentos, interpretações. É claro que a
texto. O intérprete põe esta sua inter- história dos efeitos de um texto deter-
pretação (com base em sua memória mina sempre mais plenamente seu sig-
35
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

nificado. Disso resulta que quem inter- entre o final da Primeira Guerra Mun-
preta um texto a distância temporal do dial e o início da década de 1920, levou-
nascimento do texto tem possibilidades -o a ser de�do em 1944, em Camerino.
maiores de compreender mais plena- Be� ficou preso por cerca de um mês,
mente seu sen�do. por deliberação do Comitê de Liberação
Nacional. Em agosto de 1945, Be� foi
Os preconceitos que formam a pré- absolvido de todas as acusações pelo
-compreensão do interprete são frutos tribunal responsável. Be� foi, entre
de elaborações do passado. Ideias e outras coisas, membro da comissão res-
ideais nos são transmi�dos pela tradi- ponsável pela redação do Código Civil
ção. Sobre a tradição, Gadamer 1) rejei- Italiano de 1942.
ta a a�tude român�ca feita de fé na
autoridade; 2) sustenta que a proposta Em virtude da função específica da her-
iluminista de querer crivar todo e qual- menêu�ca jurídica, Be� sustentava, tal
quer preconceito à luz da razão é uma como fizeram tanto Heck como Maximi-
pretensão justa; 3) afirma, porém, que liano, que a interpretação do direito
dessa pretensão não brota necessaria- deveria agregar a um momento inicial
mente a rejeição indiscriminada de de entendimento, um momento poste-
todo e qualquer preconceito, da autori- rior de correção, que adaptasse o
dade e da tradição; e isso pelo fato de entendimento inicial às necessidades
que preconceitos notáveis e preconcei- sociais contemporâneas do momento
tos tradicionais podem resultar adequa- da aplicação. E esse é o ponto crucial de
dos e produ�vos para o conhecimento: sua teoria, pois a grande deficiência
da verdade não se pergunta a data de metodológica das concepções anterio-
nascimento; 4) por conseguinte, a rejei- res havia sido não explicar adequada-
ção iluminista da tradição torna-se um mente o modo como essa adaptação
preconceito não adequado. deveria ser feita sem que fosse comple-
tamente sujeita ao arbítrio do julgador.
Emilio Be� foi um jurista italiano, A saída metodológica encontrada por
tendo se dedicado especialmente ao Be� foi oferecer aos juristas quatro
Direito Romano, além de filósofo e teó- cânones, quatro regras básicas de inter-
logo. Ele é mais conhecido por suas pretação que, aplicadas de forma com-
contribuições à hermenêu�ca, como binada, deveriam garan�r simultanea-
consequência de seu interesse por mente a segurança jurídica e a correção
interpretação. Como filósofo do Direito, material das decisões.
Be� aproxima-se do interpreta�vismo.
O apoio intelectual de Be� ao fascismo, O primeiro cânone visa basicamente a
36
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

garan�r a segurança jurídica contra a em uma a�tude ao mesmo tempo é�ca


manipulação ideológica dos intérpretes e reflexiva, que deve ser feita “com hu-
e determina que “o sen�do é algo que mildade e abnegação de si e ser reco-
não se deve sub-rep�ciamente introdu- nhecida em um honesto e resoluto
zir, mas sim extrair das formas repre- prescindir dos próprios preconceitos e
senta�vas”. Portanto, Be� sustenta que hábitos mentais obsta�vos”. Percebe-
a a�vidade interpreta�va envolve a des- -se, assim, que este cânone ar�cula-se
coberta do sen�do da norma e não uma com o primeiro e visa a garan�r a obje�-
atribuição autônoma de sen�do à vidade do entendimento, o qual, apesar
norma. de ser realizado por um sujeito par�cu-
lar, não deve ser uma expressão dos
O segundo cânone reafirma a regra her- seus valores par�culares mas uma
menêu�ca tradicional de que as partes expressão do sen�do obje�vado no
devem ser interpretadas em função do próprio texto.
todo e de que o todo deve ser descrito a
par�r de uma combinação harmônica Por fim, o quarto cânone introduz a
das partes. Nas palavras de Be�, “o ideia de correção, por meio da qual o
critério de extrair dos elementos singu- intérprete deve não apenas entender o
lares o sen�do do todo e de entender o sen�do original do texto, mas compre-
elemento singular em função do todo ender o seu sen�do de maneira tal que
de que é parte integrante”. Este cânone possa reconstruí-lo de forma que se
representa o reconhecimento da impor- adapte às novas necessidades sociais.
tância dos critérios sistemá�cos de Nas palavras de Be�, o intérprete deve
interpretação e, combinado ao primei- “esforçar-se por colocar a própria atua-
ro, retoma a proposta �pica de Savigny lidade vivente em ín�ma adesão e har-
e dos pandec�stas de construir uma monia com a mensagem que lhe vem
ciência jurídica simultaneamente histó- do objeto, de modo que um e outro
rica (voltada a descrever e não a criar o vibrem em uníssono”. Harmonizando,
direito posi�vo) e sistemá�ca. assim, a mensagem original e o sen�do
atualizado, a interpretação deveria ser
Enquanto os dois primeiros cânones capaz de garan�r, a um só tempo, os
referem-se basicamente ao objeto e ao ideais de segurança e de correção.
modo de compreender, o terceiro intro-
duz propriamente a ideia de entendi- Paul Ricoeur foi um dos grandes filóso-
mento, pois exige que o intérprete fos e pensadores franceses do período
reconstrua, no interior de sua subje�vi- que se seguiu à Segunda Guerra Mun-
dade, o pensamento original do autor, dial. Para ele, compreender um texto é
37
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

encadear um novo discurso no discurso teórico [...]? Eis a razão - conclui Ricoeur
do texto. Isto supõe que o texto seja - pela qual prefiro dizer pessoa em vez
aberto. Ler é apropriar-se do sen�do do de consciência, sujeito, eu”. E a pessoa
texto. De um lado não há reflexão sem é atenazada na dialé�ca entre liberdade
meditação sobre os signos; do outro, e culpa, e se sente só diante de Deus,
não há explicação sem a compreensão como o cavaleiro da fé de que fala
do mundo e de si mesmo. O sen�do do Kierkegaard, cavaleiro que, diante de
trabalho filosófico de Ricoeur deve ser Deus, não dispõe em todo caso a não
visto em uma teoria da pessoa humana; ser de si próprio, em um isolamento
conceito – o de pessoa – reconquistado infinito.
após uma peregrinação fa�gante na flo-
resta das produções simbólicas do Em 1983, nos três volumes de Tempo e
homem, depois das devastações produ- narrativa, o autor destaca as proximida-
zidas na ideia de consciência pelos mes- des entre a temporalidade da historio-
tres da “escola da suspeita”. Eis, a pro- grafia e aquela do discurso literário.
pósito, um pensamento do próprio Pode ser encontrada aí a vontade de
Ricoeur (1983): “Se a pessoa voltar, isso Ricoeur de ligar a reflexão filosófica
se dará porque ela con�nua o melhor sobre a natureza da narra�va com a
candidato para sustentar as batalhas perspec�va linguís�ca e poé�ca. Desde
jurídicas, polí�cas, econômicas e cedo, Ricoeur se interessou sobre a his-
sociais”. Com efeito, no confronto com tória desde uma perspec�va filosófica
a “consciência”, com o “sujeito” ou o sem, no entanto, pra�car uma filosofia
“eu”, a pessoa é um conceito que sobre- da história. Em História e verdade, de
viveu e que hoje voltou a viver com 1955, ele tenta definir a natureza do
força. conceito de verdade em história e dife-
renciar a obje�vidade em história dis-
Ainda Ricoeur: “Consciência? Como se �nguindo-a da obje�vidade nas ciên-
poderia ainda crer na ilusão de transpa- cias exatas. Anos mais tarde, ele se
rência associada a este termo, depois dedicará às questões culturais e históri-
de Freud e da psicanálise? Sujeito? cas de uma perspec�va fenomenológica
Como se poderia alimentar ainda a e hermenêu�ca. Ele fomenta então a
ilusão de uma fundação úl�ma em discussão sobre a memória e a memó-
algum sujeito transcendental, depois da ria cultural em A memória, a história, o
crí�ca das ideologias efetuadas pela esquecimento, de 2000.
Escola de Frankfurt? O eu? Mas quem
não sente com força a impotência do Luigi Pareyson foi um filósofo italiano
pensamento para sair do solipsismo do século XX. Desde muito cedo, Parey-
38
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

son demonstrou grande inclinação para do seu pensamento como um “existen-


a reflexão e escrita filosófica. Concluiu cialismo personalista” ou “personalis-
sua licenciatura em 1939 na Universida- mo ontológico”.
de de Turim, sob orientação de Augusto
Guzzo, com a tese Karl Jaspers e a Filo- Muito importante ao longo de todo o
sofia da Existência. Ao longo da sua seu percurso é o lugar da Hermenêu�-
vida, destacou-se também por sua a�vi- ca. Para Pareyson, a única forma de
dade polí�ca. Par�cipou na resistência entrar em contacto com a verdade é
an�fascista italiana e integrou o Par�to através da interpretação. Mas esta sua
d'Azione. Lecionou na Universidade de hermenêu�ca não é concebida como
Turim e na Universidade Nacional de método par�cular de leitura de textos.
Cuyo, em Mendoza, Argen�na. Alguns Ela é, antes de mais, uma abordagem da
de seus alunos se tornaram famosos, pessoa à própria existência, o que impli-
como Gianni Va�mo, Umberto Eco e ca uma alteração da experiência
Mario Perniola. A obra de Pareyson está humana, levando-a aos domínios de
ligada à Filosofia da Existência, à Her- uma experiência religiosa. Só no inte-
menêu�ca, à Filosofia da Religião e à rior da experiência religiosa, segundo
Esté�ca. Foi também um importante Pareyson, é possível proceder a uma
crí�co do Idealismo Alemão. Desde inves�gação acerca da incomensurabili-
cedo, sua atenção voltou-se para os dade da existência e, aí sim, também
problemas da Filosofia da Existência, através da interpretação do texto, espe-
especialmente a de inspiração alemã, cialmente do texto do mito. É assim que
dedicando-se par�cularmente a avaliar se chega àquilo que Pareyson chama de
as consequências da queda do sistema “ontologia do inexaurível”.
hegeliano tal como foi conduzida por
Kierkegaard, acentuando o papel e o Entendida desta forma, a hermenêu�ca
lugar da pessoa no seio da existência, o envolve a totalidade da pessoa no mo-
que inclui um vínculo essencial com a mento da interpretação. Pareyson
divindade. A reflexão de Pareyson chama “pensamento trágico” ao modo
esforça-se por não desembocar nem no como o ser humano toma um contacto
pessimismo, comumente associado ao profundo com a sua realidade existen-
existencialismo, nem tão pouco em um cial, ou seja, com a sua situação no
o�mismo. Estas são apenas categorias mundo. O domínio cultural e textual no
psicológicas que encobrem o fundo e as qual melhor se expressa a verdadeira
implicações ontológicas da situação de natureza da existência e do homem é,
cada homem no mundo. Por isso, o pró- segundo ele, o cris�anismo. Por esta
prio Pareyson categorizou a fase inicial razão é possível considerar Pareyson
39
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

um filósofo cristão e principalmente feita por um ato de dádiva divina, mas


porque o seu pensamento obriga a não como se um ser demiúrgico se colo-
repensar o próprio cris�anismo. casse defronte a uma alterna�va e deci-
disse: é a simultaneidade da escolha
Também as suas ideias esté�cas se com a alterna�va que define Deus e que
desenvolvem a par�r da Hermenêu�ca auto-origina a existência: “A liberdade é
e do conceito de interpretação. Segun- o ato da escolha que é a escolha de um
do Pareyson, a obra de arte é um objeto ato”. Como consequência, Deus e toda
“em construção”, já que desde o seu a realidade têm na sua origem não só o
início, mesmo antes de tomar forma ser como também o nada, não só o po-
�sica e exis�ndo apenas enquanto von- si�vo como também o nega�vo. E é
tade “informe” de criação, ela já entra essa nega�vidade que a humanidade,
em um processo interpreta�vo por através de um ato de liberdade, reavi-
parte do ar�sta. Essa interpretação con- vou provocando a queda do paraíso e
�nua em todos os estágios da sua exis- da eternidade, “manchando” a criação
tência e da sua permanência no mundo, com a história temporal, onde todos
defronte a cada ser humano que entre estamos e onde tanto o mal como o
em contato com a obra. A obra define- bem (nega�vidade e posi�vidade) coe-
-se exatamente nessa presença em face xistem numa luta indefinida. As ideias
a uma interpretação. Quando a obra de criação, pecado, queda, eternidade,
não é pensada, relacionada, discu�da, mal e sofrimento são re�radas dos
ela deixa de ser obra. Assim, Pareyson contos bíblicos, onde Pareyson encon-
define a sua Esté�ca como uma “teoria tra o aparelho simbólico que melhor
da forma�vidade”. A obra está em per- expressa a condição da existência.
manente “formação”.
Gianni Va�mo é um filósofo e polí�co
A Ontologia da Liberdade cons�tui a italiano, um dos expoentes do pós-mo-
maturidade filosófica plena de Parey- dernismo europeu. Discípulo de Luigi
son e é também o �tulo do seu Pareyson, graduou-se em Filosofia, na
magnum opus, publicado postuma- cidade de Turim, em 1959. Especializou-
mente. Pareyson procede a uma refle- -se em Heidelberg, Alemanha, com Karl
xão acerca da liberdade, pensando-a Löwith e Hans-Georg Gadamer, cujo
não como uma faculdade humana, mas pensamento introduziu na Itália. Em
como aquilo que está “no coração da 1964, tornou-se professor de Esté�ca
realidade”. O próprio ser é o resultado na Universidade de Turim e, a par�r de
de uma escolha perante duas possibili- 1982, de Filosofia Teoré�ca. Ensinou, na
dades: o ser ou o não-ser. A decisão é condição de professor visitante, em
40
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

várias universidades dos Estados emancipação humana e à superação


Unidos. Nos anos 1950, trabalhou em das diferenças sociais.
programas culturais da RAI. É diretor da
Rivista di estetica, membro de comis- Sua proposta filosófica é uma resposta
sões cien�ficas de vários periódicos ita- à crise das grandes correntes filosóficas
lianos e estrangeiros e sócio-correspon- dos séculos XIX e XX: o hegelianismo
dente da Academia de Ciência de Turim. com sua dialé�ca, o marxismo, a feno-
Escreve para o semanário L'Espresso, menologia, a psicanálise, o estruturalis-
para o diário La Repubblica e sobretudo mo. O pensamento fraco é uma a�tude
para La Stampa, onde produz editoriais pós-moderna que aceita o peso do
com reflexões crí�cas sobre polí�ca e “erro”, ou seja, do efêmero de tudo o
cultura. Recebeu o �tulo de Doutor Ho- que é histórico e humano. É a noção de
noris Causa das Universidades de La verdade que se deve adequar à dimen-
Plata, Palermo e Madrid. são humana, e não vice-versa. Assim, a
verdade é criação, jogo, retórica. Em
Va�mo se ocupou da ontologia herme- suas obras mais recentes, como Acredi-
nêu�ca contemporânea, acentuando tar em acreditar, reivindica para o seu
sua ligação com o niilismo – entendido próprio pensamento a qualidade de
como enfraquecimento das categorias autên�ca filosofia cristã da pós-moder-
ontológicas. Assim, contrapõe o pensa- nidade. Valendo-se da visão cristã do
mento fraco, uma forma par�cular de mestre Pareyson e do teólogo Sergio
niilismo, às diversas formas de pensa- Quinzio, recusa a iden�ficação de Deus
mento forte, isto é, aquelas baseadas com o ser racional, tal como concebido
na revelação cristã, no marxismo e pela tradição filosófica ocidental. Em
outros sistemas ideológicos. Segundo 2004, abandona o par�do dos Demo-
Va�mo, a par�r das filosofias de Nietzs- cra�ci di Sinistra (Democratas de
che e principalmente de Heidegger, ins- Esquerda) e abraça o marxismo, reava-
taura-se uma crise irreversível nas liando posi�vamente a auten�cidade e
bases cartesianas e racionalistas do validade dos princípios do projeto mar-
pensamento moderno. Propõe uma xista e prognos�cando um “retorno” ao
filosofia baseada no enfraquecimento pensamento do filósofo de Trier e a um
do ser como chave de leitura da pós- comunismo depurado dos desenvolvi-
-modernidade, e numa “apologia do mentos das equivocadas polí�cas públi-
niilismo” de cunho nietzschiano visan- cas sovié�cas, a serem superados diale-
do a uma progressiva redução da vio- �camente. Va�mo fala de um “Marx
lência que se concre�zaria nos ideais de enfraquecido” ou de uma base ideológi-
pluralismo e tolerância, como impulso à ca capaz de ilustrar a verdadeira nature-
41
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

za do comunismo e apta, na prá�ca po- Toglia�, Luigi Longo e Enrico Berlin-


lí�ca, a superar qualquer pudor liberal. guer. Em 2005, Va�mo candidatou-se a
A chegada ao marxismo se configura, Prefeito de uma pequena cidade cala-
portanto, como uma etapa do desen- bresa, San Giovanni in Fiore, para com-
volvimento do pensamento fraco, enri- bater a “degeneração intelectual” que
quecido na práxis de uma perspec�va afligia o país. Encabeçava o movimento
polí�ca concreta. “Va�mo pela cidade”, contraposto aos
dois grupos tradicionais, mas sobretudo
Exerceu a�vidade polí�ca em diversas em polêmica com a esquerda floren�-
linhas: primeiro, no Par�do Radical; na. Recebeu 11% dos votos, sendo
depois, na Alleanza per Torino (“Aliança eleito conselheiro comunal e provocan-
por Turim”) e, na sequência, nos Demo- do, em consequência, a realização de
cra�ci di Sinistra, par�do ligado à tradi- segundo turno, finalmente vencido pelo
ção polí�co-cultural do Par�do Comu- candidato centro-esquerdista. Depois
nista Italiano e ligado à social-democra- dessa experiência, Va�mo provocou
cia, pelo qual Va�mo foi eleito para o um forte impulso polí�co e cultural na
Parlamento Europeu. Abandona o par�- Calábria, de onde é originário. Va�mo
do em 2004. Atualmente integra o PdCI foi até hoje o único parlamentar italiano
- Par�do dei Comunis� Italiani (“Par�do a declarar-se homossexual. Na juventu-
dos Comunistas Italianos”), cuja pro- de, aderiu à Ação Católica. Posterior-
posta é a de retomar o comunismo, na mente abandonou o Catolicismo e
sua variante italiana, conforme elabora- aproximou-se da Igreja Evangélica Val-
da por Antonio Gramsci, Palmiro dense.

Indicações de Leituras

1. Os paradoxos do infinito; Doutrina da ciência, de Bolzano


2. A psicologia do ponto de vista empírico, de Brentano
3. Ideias Para uma Fenomenologia Pura e Para uma Filosofia Fenomenológi-
ca; Meditações cartesianas; A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental, de Husserl
4. Do eterno no homem; Da reviravolta dos valores: Ensaios e artigos; Arre-
pendimento e Renascimento; Morte e Sobrevivência, de Scheler
5. A Filosofia do Idealismo Alemão, de Hartmann
42
Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

Indicações de Leituras

6. O Sagrado, de O�o
7. Ser Finito e Ser Eterno, de Edith Stein
8. A estrutura do comportamento; A fenomenologia da percepção, de Merle-
au-Ponty
9. A náusea; A idade da razão; As moscas; A portas fechadas; O ser e o nada.
Ensaio de uma ontologia fenomenológica; A transcendência do Ego; A imagi-
nação; Ensaio de uma teoria das emoções; O imaginário. Psicologia fenome-
nológica da imaginação; O existencialismo é um humanismo; Crítica da
razão dialética, de Sartre
10. O segundo sexo, de Simone de Beauvoir
11. Ser e tempo; Que é Metafísica?; Da Essência do Fundamento; Hölderlin e
a Essência da Poesia; Da Essência da Verdade; A Carta sobre o Humanismo;
Introdução à Metafísica; O Que é Isto, a Filosofia?; Identidade e Diferença; A
Caminho da Linguagem, de Heidegger
12. A Situação Espiritual do Nosso Tempo; Filosofia; Introdução à Filosofia,
de Jaspers
13. Revolução da Esperança, de Marcel
14. O estrangeiro; O mito de Sísifo; A peste; O Homem Revoltado; A queda,
de Camus
15. Verdade e método, de Gadamer
16. Interpretação da lei e dos atos jurídicos, de Emilio Be�
17. A Memória, a História, o Esquecimento; Tempo e Narrativa; O si-mesmo
como outro; A Simbólica do mal; Teoria da Interpretação: o Discurso e o
Excesso de Significação, de Ricoeur
18. Ontologia da liberdade: O mal e o sofrimento; Os Problemas Da Estética;
Verdade e Interpretação, de Luigi Pareyson
19. Sujeito e a máscara: Nietzsche e o problema da libertação; Crer que se
crê: É possível ser cristão apesar da Igreja?; Da realidade: Finalidades da
Filosofia; Adeus à verdade, de Gianni Va�mo

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