Você está na página 1de 9

EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DE

ADULTOS: ITINERÁRIOS E SINGULARIDADES,


SINAIS E INDÍCIOS NAS 40 HORAS DE ANGICOS

POPULAR EDUCATION AND ADULT EDUCATION:


ITINERARIES AND PARTICULARITIES, SIGNS AND
EVIDENCE OF THE 40 HOURS OF ANGICOS

Silvania Lúcia de Araújo Silva


Luiz Gonzaga Gonçalves
Universidade Federal da Paraíba

Resumo Abstract

Os anos 1960 abriram caminhos para o que hoje The 1960s paved the way for what we today call popular
chamamos de educação popular. Sobre esse assunto, education. On this issue, we refer to Paiva (1989),
recorremos à Paiva (1989), Scocuglia (1999/2000), Scocuglia (1999/2000), Brandão (2002/2005), Beisiegel
Brandão (2002/2005), Beisiegel (2010), Guerra (2013) e (2010), Guerra (2013) and Paulo Freire (1997; 2005;
Paulo Freire (1997; 2005; 2009), em busca de encontrar 2009) in order to find directions through clues and
uma direção através de pistas e fragmentos de fragments of information (GINZBURG, 1989). Being an
informações (GINZBURG, 1989). Sendo uma oferta de offer of school education to the population, Popular
ensino escolar à população, a Educação Popular muitas Education often served as an instrument to preserve or
vezes serviu como um instrumento para preservar ou rearrange the dominant power. In their pilot project
reorganizar o poder dominante. No seu projeto piloto carried out in Angicos/RN in 1963, Freire and his
executado em Angicos, em 1963, Freire e seus collaborators produced an alternative for the direction of
colaboradores produziram uma alternativa para a direção education in Brazil: they brought about the formation of
da educação no Brasil: eles trouxeram um trabalho de awareness as well as of liberating cultural action. As part
formação da consciência e de uma ação cultural of Popular Education, adult education is constantly
libertadora. Enquanto parte da Educação Popular, a challenged to present itself as a proposal of
educação de adultos é constantemente desafiada a se transformation at the service of large impoverished
apresentar como uma proposta de transformação a serviço sectors of Brazil's population.
de grandes setores empobrecidos da população do Brasil.
Keywords: Popular Education and Adult Education.
Palavras-chave: Educação Popular e Educação de Itineraries and Signs. 40 hours of Angicos.
Adultos. Itinerários e Sinais. 40 horas de Angicos.

Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013 73


Comentários introdutórios de um percurso em a experiência com as “relações socioculturais” impõe às
construção pesquisas sociais, e essa característica se encontra
fortemente enraizada no estudo que desenvolvemos neste
As discussões que envolvem as pesquisas sociais na texto, uma vez que levamos em conta perseguir
contemporaneidade têm desvelado um cenário que se singularidades e indícios, pistas reveladoras que marcam a
coloca como promissor para a Educação Popular. A cada experiência de Angicos/RN e contribuem para anunciar
dia, novos estudos são (re)inventados, oriundos das fontes que apontam para as origens da Educação Popular
inquietudes, problemáticas e contextos que se constituem no Brasil.
o termômetro para que possamos entender, por exemplo, Para uma aproximação à experiência pioneira de
o percurso histórico e politico da educação popular no Alfabetização de Paulo Freire e de seus colaboradores,
Brasil. Neste estudo, particularmente, temos por nos anos iniciais de 1960, compreendemos que o
referência a experiência piloto da proposta de Paulo Freire paradigma indiciário é um convite para o fortalecimento
de Alfabetização, que ficou conhecida como as “40 Horas da sensibilidade, da capacidade abdutiva, quando se está
de Angicos”, cujo desenvolvimento nos revela em processo de investigação (GONÇALVES, 2003).
singularidades e indícios sobre experiências de Educação Constituindo-se como um braço de nossa pesquisa de
Popular e de Educação De Adultos no Brasil. Doutoramento, este artigo propõe discussões iniciais
Dentre os muitos caminhos que cercam o cotidiano de sobre as origens de uma perspectiva da Educação Popular
nossa pesquisa de Doutoramento, intitulada “As Quarenta no Brasil, tendo por referência os itinerários, as
Horas de Angicos, meio século depois: da pedagogia singularidades, os sinais e indícios, como tentativa de nos
freireana ao advento histórico e político da Educação aproximarmos do que foi e/ou representa, hoje, a
Popular no Brasil”, a orientação metodológica que nos experiência piloto de Angicos para a educação brasileira.
respalda é a do Paradigma Indiciário (PI). Isso porque Apresentamos alguns problemas ampliados, sem a
suas vertentes imemoriais e suas implicações pretensão de apresentar respostas conclusivas: que
metodológicas e epistemológicas – hoje explicitadas por itinerários indicam a emergência da Educação Popular no
Carlo Ginzburg – também podem ser consideradas como Brasil, em uma perspectiva politica e emancipadora? Que
ponto de partida e/ou de chegada para a compreensão do singularidades permeiam o contexto sociopolítico das
conceito histórico e politico da Educação Popular em propostas de Alfabetização nos anos 1960, que alcançam
nosso país, a partir de suas memórias nos anos de 1960. Angicos/RN? Que sinais evidenciam se a metodologia
Perseguindo itinerários, com o intuito de elucidar as empregada por Paulo Freire e pelos Coordenadores dos
problematizações que provocam esta pesquisa, Círculos de Cultura (CC) alcançou resultados positivos na
encontramos uma via metodológica no paradigma Alfabetização de Adultos em Angicos/RN? Que indícios
indiciário que se expressa – para além dos limites da corporificam a experiência piloto de Angicos/RN, como
ciência moderna e se utiliza “de um saber tipo ponto de partida, entre outros, para a construção de uma
venatório19” (GINZBURG, 1989, p.152) – de forma nova forma de pensar a educação em nosso país?
polêmica contra o racionalismo e o irracionalismo, Sendo esta abordagem parte de uma intensa discussão
pretendendo, através da micro história, sinalizar a nos últimos meses, dadas às comemorações do
necessidade de não eliminar o conhecimento do Cinquentenário da experiência das 40 Horas de Angicos,
individual, em nome das regularidades, não se não esperamos trazer informações postas como
submetendo aos “fortes” modelos da história social, da definitivas, mas atuarmos como “caçadores”,
história econômica e da demografia (LIMA, 2007, p. esquadrinhá-la minuciosamente, recorrendo à “atividade
103). de captar direções”, identificando pistas, fragmentos de
Enquanto estudioso da obra de Ginzburg, Espada informação que nos conduzam às suas contingências.
Lima ressalta aquilo que também nos coloca como Esperamos, ao fim desse percurso, somar esforços para
sujeitos de diálogo dos conceitos ginzburguianos: o modo evidenciar aspectos, se possível, inéditos presentes na
de abordar as fontes, a percepção lúcida de expô-las experiência piloto do “Método de Alfabetização 20”
através de uma narrativa inquisidora, o cuidado com as pensado por Paulo Freire.
anomalias e as minúcias reveladoras da documentação,
bem como o uso experimental de um modelo A Alfabetização nos anos de 1960: itinerários e
epistemológico que foge às convenções do pensamento singularidades nas 40 Horas de Angicos/RN
moderno. De fato, ao se buscar um “rigor flexível”, no
paradigma indiciário, são valorizadas novas A investigação, tanto no âmbito da ciência quanto da
aberturas/possibilidades de respostas às problemáticas que vida comum, tem se nutrido das inquietações que movem
os indivíduos em sua existência. Faz parte da natureza
19 humana um exercitar permanente de sua curiosidade, o
“O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de
que nos leva a buscar, como verdadeiros “caçadores”,
dados completamente negligenciáveis, remontar a uma realidade
complexa não experimentável diretamente. Pode-se acrescentar respostas para as necessidades individuais e/ou coletivas.
que esses dados são sempre dispostos pelo observador de modo O fato é que, a cada dia, em nome do bem-estar do mundo
tal a dar lugar a uma sequencia narrativa, cuja formulação mais e da humanidade, mais perguntas são levantadas e nos
simples poderia ser ‘alguém passou por lá’. Talvez a própria
ideia de narração tenha nascido pela primeira vez numa
sociedade de caçadores, a partir da experiência da decifração das 20
Importa ressaltar que o próprio Paulo Freire compreendia
pistas” (GINZBURG, 1989, p.152). tratar-se muito mais de uma teoria do conhecimento do que de
um método de ensino, propriamente dito.
74 Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013
conduzem a perseverar na perseguição de respostas, desde implementação do Plano Nacional da Educação (PNE)
as mais simples. Por isso, assumimos os pressupostos que, entre seus objetivos, pretendia “[...] desencadear a
apresentados por Ginzburg (1989, p. 151) que devem ser Campanha Nacional de Alfabetização para erradicar o
considerados pelas ciências humanas e sociais: analfabetismo [...]” (Ibid.). O Brasil vivia um tempo de
Por milênios o homem foi caçador. Durante profunda efervescência na área educacional 21, bem como
inúmeras perseguições, ele aprendeu a na área da política e da cultura, uma vez que a situação
reconstruir as formas e movimentos das presas oriunda da falta de conhecimento escolarizado afetava o
invisíveis pelas pegadas na lama, ramos pleno desenvolvimento das potencialidades do povo
quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, brasileiro, como destacou o Presidente da República, em
plumas emaranhadas, odores estagnados. mensagem apresentada ao Congresso Nacional, em 1963:
Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e O progresso experimentado pelo país, nos
classificar pistas infinitesimais como fios de últimos dez anos, tornou mais nítida a
barba. Aprendeu a fazer operações mentais incapacidade do nosso sistema de educação (...)
complexas com rapidez fulminante, no interior incapaz de formar a força de trabalho altamente
de um denso bosque ou numa clareira cheia de qualificada que o desenvolvimento nacional
ciladas. requer (...). Mas, ao mesmo tempo, jamais o
Essas imagens, embora narradas como fábulas, Brasil se manifestou tão inconformado com o
eventos corriqueiros, mas sutis, reafirmam como os seu sistema educacional e jamais a educação
processos heurísticos conhecidos pela prática científica e representou para todas as camadas do povo
o saber tipo venatório estão aproximados. Com Ginzburg, aspiração tão candente quanto agora representa.
exploramos, então, a possibilidade de garimpar, através É que estamos diante de um reflexo de
das pistas/leituras indiciárias, documentos, livros, artigos transformações que se processam no cerne
de jornal, entrevistas, artigos, vídeos, evocações orais, mesmo do corpo social brasileiro (GOULART,
seminários, o que aconteceu em Angicos/RN. Das 40 1987, p. 356).
Horas de Angicos, abre-se um horizonte para pensar um Era necessário alfabetizar adultos através de métodos
período marcante da história da educação popular rápidos e eficazes, já que dessa atividade também
brasileira. Assim, não é estranho entendermos que, em resultariam sujeitos aptos a serem eleitores, conscientes
determinadas circunstâncias, “(...) o conhecimento do projeto nacional que se queria construir. Ao ressaltar o
histórico é indireto, indiciário, conjetural (GINZBURG, progresso que o país alcançava naqueles últimos dez anos,
1989, p. 157)”, e para chegar a isso, Ginzburg considera: João Goulart fazia referência, sobretudo, aos efeitos que a
A história se manteve como uma ciência social difusão da educação elementar estava gerando entre os
sui generis, irremediavelmente ligada ao brasileiros: “[...] o eleitorado havia crescido quase 50%
concreto. Mesmo que o historiador não possa entre os anos de 1950 e 196022 (7,9 milhões em 1950 e
deixar de se referir, explícita ou 11,7 milhões em 1960)” (PAIVA, 1987, p. 204). Nessa
implicitamente, a séries fenômenos direção, a mobilização de contingentes adultos para o
comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva processo de alfabetização e conscientização se tornou
assim como os seus códigos expressivos investimento garantido, tanto no aspecto socioeconômico
permanecem intrinsecamente individualizantes quanto no âmbito político.
(mesmo que o individuo seja talvez um grupo
social ou uma sociedade inteira) (GINZBURG,
1989, pp. 156-157). 21
Scocuglia (2000, p. 45) afirma: “aquele período levantava
Assim, utilizando-nos das fontes indiretas, indiciárias outra questão, da formação de novos contingentes de eleitores”.
e conjeturais, é possível identificarmos, incialmente que, Segundo ele, “além da importância da ‘leitura, escrita e
dentre os fatores políticos que marcavam a conjuntura dos contagem’ para o desenvolvimento nacional, os interesses se
anos 1960, o analfabetismo denunciava uma sociedade voltaram para os dividendos eleitorais resultantes de tais
desigual, excludente para os que não detinham os atividades”. Tal fato também é levantado por Vanilda Paiva
rudimentos do saber escolarizado. Naquele período, (1987) e Marcos Guerra (2013).
22
O fim dos anos de 1950 e o início dos anos de 1960 deixaram
estimava-se que metade da população brasileira maior de
um legado no Brasil de fracassadas campanhas de alfabetização
14 anos era analfabeta. O analfabetismo entre os jovens e (SCOCUGLIA, 2000, p. 47). Paiva (1987, pp. 213-214) afirma
adultos era uma realidade, e era necessária a oferta de que havia um amplo reconhecimento da ineficácia das
escolarização para mais de sete milhões de crianças em campanhas do Departamento Nacional de Educação (DNE); os
idade escolar, analfabetos em potencial. Dos alunos que educadores pretendiam novas soluções para o analfabetismo. Na
ingressavam nas séries iniciais do Ensino Fundamental, ocasião, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE)
apenas 7% chegavam ao 5º ano, enquanto 1% do criou um setor destinado ao estudo dos problemas de educação e
quantitativo populacional tinha acesso ao Ensino Superior ciências sociais, com foco para os estudos experimentais com
(SCOCUGLIA, 2000). métodos de atuação pedagógica capazes de evitar novos
fracassos. Lembrar que, o Brasil vivia “uma intensa mobilização
Por essa ocasião, destaca Celso Scocuglia (2000, p.
política e social nas mais diferentes áreas, que culminou com o
42), o governo federal acenava para a população brasileira Golpe de Estado de Abril de 1964”; com os antecedentes da
algumas soluções para a melhoria da realidade “crise da renúncia de Jânio Quadros (Agosto de 1961), o
educacional, destacavam-se os investimentos na impasse para a posse do Vice-Presidente João Goulart, e o
educação, como previa a Lei de Diretrizes e Bases da regime parlamentarista artificialmente instalado em Setembro de
Educação Nacional (LDBEN), recém-aprovada, a 1961, que perdurou até o retorno ao regime presidencial em
Janeiro de 1963” (GUERRA, 2013, p. 26).
Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013 75
Não obstante, como já enfatizado, eram necessárias para a América Latina, do Sistema das Nações
mais do que campanhas educacionais23, em especial, para Unidas), tais taxas eram apontadas como um
a Educação de Adultos. Urgia a necessidade da obstáculo para o desenvolvimento, e já
implementação de projetos pedagógicos nacionais representavam indicadores de falência das
“progressistas” que introduzissem, na sociedade do políticas públicas e de livre acesso aos direitos
“analfabetismo”, sujeitos alfabetizados e politizados. Tal humanos. A rede física das escolas públicas era
era a principal meta identificada no cerne dos trabalhos insuficiente, assim como a formação dos
desenvolvidos por Paulo Freire em Recife/PE, naquele professores primários, e o número de
período, como veremos mais adiante. Assim descreve profissionais dedicados ao ensino básico. A
Scocuglia (2000, p. 47): situação permitia a manutenção dos chamados
Como tentativa de antídoto ao fracasso até ‘currais eleitorais’ e do ‘voto de cabresto’,
então consumado, um novo realismo dentre outras distorções, como a ‘indústria das
educacional trazia à tona novas preocupações secas’, os ‘barracões’, o desrespeito a direitos
específicas da educação de adultos. Entre essas, trabalhistas, e a proibição dos sindicatos rurais
havia uma principal: a alfabetização de adultos (GUERRA, 2013, p. 25).
não existia como uma prática e uma teoria Ao Governador Aluízio Alves, cuja eleição em 1960
neutras. Ao contrário, tal processo continha representou um sinal de inovação, de mudanças para o
motivações e emanava consequências eivadas Estado do Rio Grande do Norte – numa campanha sem o
de conteúdos políticos, econômicos, sociais e apoio dos “coronéis” –, a educação passaria a ser
culturais. prioridade absoluta. Nessa direção, trabalhar em parceria
Seguindo esse itinerário histórico das condições com Calazans Fernandes demonstrou ser decisivo para as
educacionais e político-culturais que marcavam nosso mudanças que compunham a plataforma de campanha de
país, chegamos ao Rio Grande do Norte, cujo governador, Aluízio Alves, já que, para atender à necessidade do
Aluízio Alves24, ladeado por Calazans Fernandes25, o momento, era preciso implantar na área de educação um
então Secretário de Educação, assumia o compromisso de programa compatível com as metas ousadas que pretendia
mudar o cenário que se descortinava no Estado, uma vez atingir. Além disso, importa-nos enfatizar que seu
que, no início da década de 1960, os índices de Programa de Governo balizava três importantes eixos no
analfabetismo totalizavam 61,8%. No microcontexto de âmbito educacional: a alfabetização de 100.000 adultos; a
Angicos/RN26, dentre os adultos, a taxa de analfabetismo ampliação da rede física de escolas estaduais e a formação
superava os 70%. Destacamos que, desde os tempos do dos professores da mesma rede pública. Mas, que projeto
império, os analfabetos não podiam votar e, como já pedagógico adotar? Que método, nos moldes requeridos
levantado anteriormente, essa era uma situação a ser pela sociedade dos anos 1960, conduziria o povo à
mudada, já que incluir novos votantes decidia a escalada alfabetização e à politização? Que Proposta de
dos políticos populistas e, neste mesmo processo, a crise Alfabetização garantiria, num tempo mínimo, o ler e o
dos “políticos coronelistas”. escrever, tão necessários para um contingente
Numa década que se introduziu o Planejamento populacional que se distanciava dos conhecimentos
nos moldes da CEPAL (Comissão Econômica escolares?
Fernandes (1994), em seu livro “40 Horas de
23 Esperança”, ressalta que, como parte das iniciativas
No dia 02 de abril de 2013, em Conferência do
“Cinquentenário das 40 Horas de Angicos”, em Angicos/RN, da propostas pelo Governo, a Secretaria de Educação contou
Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), Marcos com o profissionalismo das professoras gaúchas Lia
Guerra questionado se, hoje, tais Campanhas surtiriam efeito Campos e Cecilia Alves, essa que já coordenava Cursos
positivo em nosso país, respondeu, de seu lugar de ex- de Aperfeiçoamento para Professores no Rio Grande do
coordenador de Circulo de Cultura que não. Guerra defende Norte, tendo sido indicada para isso por Anísio Teixeira e
pactos nacionais contra o analfabetismo, com outras metas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
positivas de atuação. Educacionais.
24
Governou o Rio Grande do Norte entre 1961 e 1966, Sobre a Proposta de Alfabetização, Odilon Ribeiro
implantou o planejamento no Estado, com egressos da CEPAL,
Coutinho, amigo de Calazans Fernandes – como consta
e buscou ações para modernizar a administração e qualificar os
servidores; deu prioridade à energia, às comunicações, e à em seus escritos –, aconselhou-o a conhecer um método
educação, criando a COSERN, a TELERN e o SECERN criado pelo professor Paulo Freire, já experimentado em
(GUERRA, 2013, p. 25). pequena escala com domésticas do Recife/PE e em João
25
Em entrevista ao Jornal Tribuna do Norte, em maio de 2003, Pessoa/PB (LOBO, 1963), com pesquisas nessa área há
Calazans destaca que seu interesse pela alfabetização foi cerca de um ano.
despertado na África, em cobertura jornalística. Lá, o jornalista Para a experiência pioneira de Angicos/RN, foram
conheceu um método educacional que os franceses implantavam mobilizados 38027 (trezentos e oitenta) homens e
e gostou do que viu, decidindo implantar um método de mulheres trabalhadores: domésticas, operários,
alfabetização com as peculiaridades próprias do Nordeste. No
trabalhadores rurais, pedreiros, serventes, artesãos,
início dos anos de 1960, Calazans era colaborador da Revista
Americana Time-Life (GERHARDT, 1983). lavadeiras, motoristas, carpinteiros etc. Esse grupo de
26
Município da mesorregião central potiguar; cidade escolhida
por Aluízio Alves para sediar o projeto piloto do Método Paulo
27
Freire de Alfabetização, cuja escolha se deu por esta ser sua Esse foi o número de alunos matriculados para o projeto
terra natal e, na ocasião, ter a frente do governo municipal um de piloto de Angicos/RN. Todavia, foi um total de 300 (trezentos)
seus irmãos. alunos que concluíram as “40 Horas” de aula.
76 Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013
alfabetizandos, por ocasião do levantamento do universo parecida com a do início do século, como afirma Paiva
vocabular, realizado em dezembro de 1962, por (1987, p. 84).
estudantes universitários e secundaristas, respondeu Ainda dialogando com a autora supracitada, a partir da
majoritariamente que desejava aprender a ler e a escrever Primeira Guerra Mundial29, visualiza-se uma “mudança”
“para melhorar de vida”. A ação alfabetizadora estava no panorama das discussões dos problemas educacionais
marcada por implicações políticas inevitáveis, e foi brasileiros: iniciou-se grande campanha contra o
financiada pela Aliança para o Progresso28, supostamente analfabetismo. Dentro do cenário exposto no início da
para que a América Latina progredisse, através de homens década de 1920, aparecem os primeiros profissionais da
e mulheres mais politizados e conscientes. Para os órgãos educação com as ideias da escola renovada, cuja bandeira
estaduais e locais estava em jogo a reforma educacional estava centrada na “qualidade de ensino”. Além disso, o
no Rio Grande do Norte e os dividendos políticos daí tecnicismo foi contestado e deixou-se de lado a relação
derivados. existente entre o sistema educacional, o conjunto da
sociedade e sua evolução histórica e social (PAIVA,
A Educação Popular e as 40 Horas de 1987).
Angicos/RN: sinais e indícios de uma nova forma Utilizando-nos das chaves de leituras indiciárias, ao
de pensar educação enveredarmos em busca de uma significação que
justifique seu caráter conceitual, verificamos, com Paiva,
Desde os anos 1960, de acordo com uma perspectiva que a educação popular, entendida tradicionalmente como
da Educação Popular, optava-se exatamente pela oferta de escolarização pública à população, está envolta
promoção de práticas educativas, que se pretendiam em duas tendências: uma que a considera um instrumento
libertadoras, visando à ampliação de oportunidades para para a sedimentação, ou a recomposição conservadora do
os sujeitos coletivos e populares, pensando-os como poder político e das estruturas socioeconômicas; a outra
protagonistas das mudanças sociais e políticas a favor da tendência, como se projetou exemplarmente no município
justiça, da igualdade e do desenvolvimento requeridos de Angicos/RN, emergiu no contexto de uma práxis que
pelas sociedades latino-americanas (BRANDÃO, 2002). marcaria a educação brasileira. Nessa, pode ser
Com efeito, dentre os vários momentos histórico-políticos identificada uma perspectiva ousada, inovadora, capaz de
que contribuíram para a construção da identidade da considerar a pesquisa, o levantamento do modo de pensar
Educação Popular no Brasil, a década de 1960 é dos sujeitos dos meios populares como pressupostos para
emblemática, podendo ser considerada como divisor de a conscientização e a libertação dos trabalhadores do
águas para o advento de sua ressignificação em nosso campo e da cidade, enquanto se alfabetizavam.
país. Em Angicos/RN, Paulo Freire zelou para que o papel
Décadas antes do cenário acima descrito, vale de financiador da Aliança para o Progresso, junto ao
ressaltarmos os momentos que constituem parte do Governo do Estado, não interferisse na direção de um
processo evolutivo da educação brasileira crítica, quais trabalho que, diante das circunstâncias, parecia
sejam: 1) a concepção das escolas anarquistas no final do contraditório: aceitar o financiamento norte-americano e
Século XIX e início do Século XX; e 2) os movimentos propor uma prática de educação popular que primava por
sócioeducacionais desenvolvidos por escolas públicas levar o ser humano a conhecer a si próprio e sua força
gratuitas e laicas na década de 1920 (BRANDÃO, 2002). política. Conforme esclareceu Marcos Guerra:
Ambos os eventos traduzem os anseios de uma população Saliente-se que as divergências sobre esta
que se encontrava no início do século totalizando 14 questão em nenhum momento inviabilizaram a
milhões de habitantes, tendo onze mil escolas elementares cooperação de Paulo Freire nas ações da
com seiscentos mil alunos matriculados e uma frequência Campanha da Prefeitura de Natal, ‘De Pé no
de menos de quatrocentos mil alunos. De acordo com o Chão também se aprende a ler’. Apesar de
censo de 1920, tínhamos 1.030.752 alunos matriculados utilizar outro método, baseado em Cartilha,
com frequência de 678.684, para uma população próxima existiam convergências quanto à concepção da
dos 30 milhões de habitantes, mantendo a proporção
29
Vanilda Paiva (1987, pp. 94-95) destaca que: a Primeira
Guerra desencadeou no Brasil um sentido de “nacionalismo”,
sentimento ligado, a priori, ao problema da ampliação das bases
28
Programa lançado pelo Presidente Kennedy em 1961. de representação eleitoral. Na ocasião, fecham-se fábricas,
Objetivava o chamado desenvolvimento das nações latino- despedem-se operários, fortalecem-se pressões para fazer o
americanas, através do financiamento de propostas que operário voltar ao trabalho no campo; e este sentido serve como
conduzissem os países apontados para novos tempos, sob os mecanismo de luta dos que pretendem a recomposição da
auspícios dos Estados Unidos. Segundo Guerra (2013, p. 27), na hegemonia política. Além disso, renovam-se os ideais
América Latina, no Brasil, e no Estado do Rio Grande do Norte, republicanos e democráticos que anseiam pela universalização
havia divergências quanto a utilizar os recursos da Aliança para do ensino elementar e pela ampliação da educação para o povo;
o Progresso. O tema foi debatido na OEA em memorável e organizam-se as “‘ligas’, em cujos programas sempre estão as
reunião de seu Conselho Interamericano Econômico e Social em reivindicações relativas à instrução popular”. Há de se ressaltar
agosto do mesmo ano, realizada em Punta del Leste, Uruguai. que “este nacionalismo educacional, que se manifesta na luta
Ernesto Guevara, da Delegação de Cuba, afirmou, textualmente: pela democratização do ensino, está ligado ao problema da
“Ya sabemos todos el íntimo sentir del Departamento de Estado ampliação das bases de representação eleitoral, pois, na medida
norteamericano: es que hay que hacer que los países de em que o grupo industrial-urbano pretende a recomposição do
Latinoamérica crezcan, porque si no viene un fenómeno que se poder político dentro do marco da democracia liberal, o caminho
llama castrismo, que es tremendo para los Estados Unidos”. mais seguro era o da difusão do ensino”.
Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013 77
educação, dos temas geradores, do de construção de uma sociedade mais justa no
protagonismo do alfabetizando, e Paulo Freire país (BEISIEGEL, 2010, p. 19).
chegou a participar da formação de monitores Paulo Freire (2005, p.59) já destacava que, baseada
que atuaram na Campanha. Consciente de todo em princípios, como acima detalhados, sua proposta
este pano de fundo, Paulo Freire decidiu aceitar alfabetizadora deveria “ser corajosa, propondo ao povo a
o convite do Governador Aluízio Alves, sem reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas
temer a contradição. No diálogo, trouxe responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural
claramente à tona alguns princípios e dados da época de transição”.
precisos (GUERRA, 2013, p. 29). Em Angicos/RN, quando do período de matrícula dos
Paulo Freire levantou a ideia de uma confiança nas alunos para participarem da experiência, alguns
massas, da percepção de uma educação entendida como responderam que não iriam participar daquela “Escola”
“prática da liberdade”, com a determinação de quem não porque o professor que vinha dar “aulas” era “comunista”.
temia um eventual confronto com a Aliança para o Foi sob essa pressão que os Monitores dos Círculos de
Progresso. Guerra considerou que o professor exigiu total Cultura chegaram ao primeiro dia aula. Todavia, com o
autonomia pedagógica, bem como: que a direção das passar das horas, envolvidos pela metodologia, os alunos
atividades no Rio Grande do Norte ficasse nas mãos de ficavam motivados de tal maneira que começaram a sentir
uma pessoa de sua confiança, oriunda da liderança falta das aulas, a partir do momento em que foi anunciado
estudantil universitária. Freire inverteu os termos da o fim das atividades.
discussão, afirmando que caberia à Aliança para o Ressalte-se que ao longo de todo o processo,
Progresso se inquietar com os resultados da proposta, e por insistência de Paulo Freire, o foco era na
não aos Coordenadores e Monitores do Projeto de aprendizagem, e não no ensino. Esteve sempre
Alfabetização se preocupar com os possíveis ganhos que a presente a preocupação de partir da vivência de
Aliança pudesse obter através do que foi desenvolvido em cada um, de suas motivações, e de
Angicos/RN. Ainda, segundo Guerra, individualizar a aprendizagem, com atenção
Cabe salientar que em nenhum momento o especial aos progressos e dificuldades de cada
pacto passado entre Aluízio Alves e Paulo um. A olhos vistos, quem tinha dificuldades
Freire foi rompido. Nunca ocorreu a menor era rapidamente ajudado pelos outros,
intervenção durante a execução das ‘40 horas aplicando a máxima de Paulo Freire, ‘ninguém
de Angicos’. Até as visitas do Governador ou educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os
de seus convidados eram discretas, sem homens se educam em comunhão,
aparato, sem sequer interromper as atividades mediatizados pelo mundo’ (GUERRA, 2013, p.
em sala de aula. O mesmo quanto a visitas dos 39).
técnicos e dirigentes da Aliança para o A função dos Monitores, nesse contexto, foi decisiva,
Progresso. Os coordenadores sempre gozamos pois, a eles cabia não apenas conhecer as manhas e
da mais ampla autonomia e da plena confiança artimanhas da proposta, mas, sobretudo, entender-se
de Paulo Freire, ao longo de todo o processo como sujeitos de investigação bem sucedidos, de
(GUERRA, 2013, p. 40). colaboração, de troca de saberes, prontos a dividir,
O Método Paulo Freire foi adotado, efetivamente, por voluntariamente, “sonhos e expectativas”, a partir da dura
se tratar de uma proposta cujo ritmo e condições adotadas realidade sociopolítica daquele município do semiárido
faziam diferença para as mudanças requeridas pela brasileiro. Sobre a natureza do sucesso das 40 Horas,
agenda politica e educacional vivenciada no Rio Grande trazemos o testemunho de Marcos Guerra, ao afirmar que
do Norte e, em outros estados do Brasil. Paiva (1987) e os resultados da experiência junto aos alfabetizando se
Scocuglia (2002) afirmam que em 1960, tanto cristãos anunciavam altamente encorajadores:
quanto marxistas estavam empenhados em movimentos Uns ajudavam os outros, muitas vezes de
de Educação de Adultos, com ênfase, sobretudo, na maneira mais eficaz do que a ajuda que
cultura popular e sua disseminação. Época emblemática, poderiam receber dos Coordenadores.
como já destacado anteriormente, os anos de 1960 passam Involuntariamente pude testemunhar o
a tratar a Alfabetização como Educação de Base, progresso específico de um aluno, a pedido de
objetivando, através da conscientização, levar a população meu pai. Pediu-me para conhecer um dos
a compreender, dentro de suas condições de vida, os analfabetos no início dos cursos, e um
desafios socioeconômicos e políticos do país. comerciante da mesma idade que ele aceitou o
Entre 1962 e março de 1964, o método Paulo nosso convite. Conversaram, e ficou
Freire foi adotado por quase todos os claramente evidenciado que era analfabeto
movimentos envolvidos na prática da educação pleno, visto que conhecia apenas a letra ‘O’ –
popular no país. Por suas características de segundo ele ‘que nem a boca de uma panela’.
aparente simplicidade, pela clara realização nas Após pouco mais de 20 horas de estudos,
práticas cotidianas de tudo aquilo que defendia voltou a Natal, e demonstrou saber ler um texto
na teoria, e, sobretudo, pela defesa da simples, dizer com suas palavras o que havia
necessidade da conscientização, o método entendido, e escrever a pedido frases simples
surgia como resposta à procura de um sobre determinado assunto. Antes do término,
instrumento adequado de atuação para os voltou mais uma vez e conheceu a biblioteca de
diferentes agrupamentos envolvidos na busca

78 Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013


papai, que chamou de ‘armazém de livros’ pesquisas ali realizados32. Além disso, depois dos testes
(GUERRA, 2013, p. 38). realizados após as 40 horas de aulas, a equipe de Paulo
Concretizava-se, entre janeiro e abril de 1963, um Freire tentou voltar a Angicos/RN nos meses seguintes
legado extraordinário que Paulo Freire e sua equipe de para realizar uma reavaliação das condições de
trabalho construíram, capaz de combinar de forma aprendizagem dos alunos, mas, tal possibilidade não
original ação investigativa, conquistas da teoria da aconteceu, considerando o que afirma Paiva (1987, pp.
comunicação, aportes didáticos criativos e contribuições 254-255):
da psicologia moderna (PAIVA, 1987, p. 251). Diante do êxito obtido com o método, resolveu
Angicos/RN anunciava inegavelmente uma proposta de o governador do Estado, na época grandemente
educação popular sem precedentes no país, aproximando, prestigiado pela USAID, a apresentar à Aliança
de forma contextualizada, recursos escritos, imagéticos a Para o Progresso um plano de extensão do
serviço da aprendizagem do educando adulto. Um indício programa a todo o território norte-rio-
para ilustrar isso vem da escolha, em Angicos, da grandense, solicitando a doação dos recursos
primeira palavra geradora utilizada nos círculos de necessários ao Fundo Social da AID. Com
cultura, que era “belota” 30. Essa palavra era praticamente esses recursos é que se iniciaram os cursos do
desconhecida para os educadores visitantes, mas atendia bairro das Quintas, em Natal, de cujas
aos critérios propostos pelo método, ou seja, riqueza primeiras classes participaram em torno de 800
fonêmica da palavra, apresentação das dificuldades alunos [...]. Simultaneamente, preparava-se
fonéticas da língua, além de incorporar uma carga uma verificação dos índices de regressão da
emocional reconhecida, e ser recorrente no diálogo aprendizagem em Angicos e a equipe de Paulo
cotidiano estabelecido entre os sujeitos do processo de Freire em Pernambuco elaborava o curso de
alfabetização (BRANDÃO, 2005). continuação para os neoalfabetizados.
Entretanto, as novas classes das Quintas não
Considerações finais sobre a pedagogia chegaram a se instalar nem os níveis de
freireana a partir das leituras indiciárias das 40 regressão em Angicos tiveram oportunidade de
Horas de Angicos ser verificados em face da mudança do
governo.
Ao longo deste estudo, pudemos conhecer um pouco Ato contínuo, apesar de os autores envolvidos, com os
mais do contexto das 40 Horas de Angicos, bem como quais dialogamos sobre as 40 Horas, se posicionarem de
nos aproximamos da percepção do que Paulo Freire forma sempre a afirmar o “sucesso” da experiência piloto,
propôs quando projetou um dos fios mais relevantes da e após as leituras indiciárias realizadas sobre o tema,
tessitura pedagógica por ele teorizada. Sua teoria do rastreamos algumas problematizações, muito mais para
conhecimento marca um divisor de águas na educação nos direcionarem nas pesquisas de Doutoramento sobre o
pública brasileira. “Todos juntos”, era assim que Freire tema do que para trazer respostas automatizadas neste
entendia e orientava o processo, conforme palavras de texto. Dentre elas, elencamos questionamentos e reflexões
Guerra (2013, p. 39): “Estávamos juntos e atentos para que não vimos sendo desenvolvidas satisfatoriamente
cada progresso, cada ganho de aprendizagem, cada pelos pesquisadores/ interlocutores das 40 Horas: as
dificuldade, procurando soluções cada vez que surgia um alegações sobre por que se calou sobre Angicos e sua
problema. Uma única dificuldade gerava um impasse experiência alfabetizadora ao longo de cerca de cinco
aparente, e logo era ultrapassado com o consentimento de décadas, deixando escassas as marcas, os sinais da
Paulo Freire”. São inegáveis os traços sutis da pedagogia retomada daquela experiência? Que sentimentos e
freireana e de sua aproximação adequada aos modos conclusões tiraram os alunos da experiência quando
populares de encontrar solução para os problemas: pensar tiveram que “queimar” seus cadernos, livros e memórias?
e trabalhar em conjunto, cultivando um apreço aos Que laços os monitores, coordenadores pedagógicos,
aspectos relacionais como suporte aos aspectos cognitivos visitantes conseguiram manter com a experiência de
esperados. Angicos, ao longo dessas cinco décadas, quando as
Conforme os escritos e as memórias orais pesquisadas, memórias recolhem fragmentos de esperança, de
é possível afirmarmos que as 40 Horas foram satisfatórias repressão brutal e do raiar de novos dias?
do ponto de vista prático da proposta, pelo que foi
detectado, logo após o período da experiência 31. O que foi
confirmado, anos depois, através dos poucos estudos e 32
Em pesquisa realizada pela professora Nilcéa Lemos Pelandré
(2002, p. 218), quarenta anos depois da experiência em
Angicos/RN, observou-se que os alunos daquela turma especial,
30
Belota era uma apropriação local da palavra borlota, que de forma individual, conforme seus limites e potencialidades,
nomeava enfeite aplicado em redes de dormir e em artefatos de tiveram a aprendizagem de escrita e leitura satisfatoriamente
couro, bastante utilizados naquela região. progressiva. Sendo sua Tese de Doutoramento, essa pesquisa
31
“Os testes realizados nas últimas horas, em 15 de março de procurou verificar qual o nível de proficiência em leitura e
1963, puderam avaliar com clareza os resultados individuais, escrita dos alfabetizados, bem como os fatores que possam ter
quanto à alfabetização, e quanto ao que chamamos de influenciado na retenção do aprendizado e as mudanças
politização” (GUERRA, 2013, p. 38). Os testes realizados e as operadas na vida desses sujeitos. Além disso, Marcos Guerra,
notas obtidas pelos alunos se encontram no livro de Carlos Lyra em sua fala durante o evento “Cinquentenário: 40 Horas de
As quarenta horas de Angicos: Uma experiência pioneira de Angicos”, no dia 03 de abril de 2013, confirmou o resultado
educação (1986). satisfatório da experiência piloto.
Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013 79
Na realidade, as pesquisas até então realizadas sobre o encorajado a exercer seu compromisso com a vida
tema giram em torno da descrição, do relato, em forma de cultural e política do país.
diário, de anotação dos acontecimentos ali anunciados, Nessa direção, Freire e sua equipe de educadores
buscam caracterizar a natureza social da proposta esboçaram um projeto educacional que contemplava uma
pedagógica freireana, reforçam o sucesso da prática atividade de investigação capaz de apresentar os
alfabético-politizadora em Angicos/RN, com 300 pessoas contornos culturais necessários para propiciar uma prática
pertencentes aos meios populares daquela comunidade. dinâmica e dialogal, tendo como horizonte uma
Mas, o que se discutiu sobre o ineditismo em articular, em aprendizagem libertadora. Em uma ruptura com práticas
um desconhecido e pequeno município do semiárido do de ensino e aprendizagem mecanicistas, foram
Rio Grande do Norte, investigação e ensino, por ocasião valorizadas as relações de saber que requerem uma
das 40 Horas? O que, a partir daquela época, significava tomada de posição do educador e do educando frente aos
ultrapassar o que se vinha fazendo quando se tratava da problemas vividos. Tais iniciativas estavam ancoradas em
alfabetização de adultos? O que os militares esperavam uma teoria do conhecimento que dava suporte a uma
erradicar, daquele período extremamente criativo e postura de respeito ao saber do educando, à valorização
transformador, que precisamos estar lúcidos para não da sua autonomia e do seu modo de pensar o mundo, de
deixar perder-se nas malhas do esquecimento? modo que isso estivesse ancorado em processos didáticos
As questões sobrepostas se constituem, a nosso ver, e pedagógicos que dispensavam a adoção de livro. Além
fendas que fornecem subsídios para nossas pesquisas disso, em Freire, o diálogo se impõe como o caminho pelo
futuras acerca do processo constitutivo que permeou a qual os seres humanos se percebem como homens-
experiência mais midiática do Método Paulo Freire de sujeitos, isso como uma exigência existencial para que,
Alfabetização, uma vez que suscitam riqueza de através do diálogo, do refletir e do agir tragam as marcas
elementos sobre sua proposta pedagógica. Por hora, o que dos sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e
podemos dizer, a guisa de conclusão, é que a concepção humanizado. Como toda boa proposta pedagógica,
de ser humano de Paulo Freire corroborou para a sustentada em uma teoria do conhecimento, não pretende
estilização pedagógica capaz de evidenciar um ser simples método de ensino ou de aprendizagem; com
pensamento e uma linguagem originais, com disposições ela, o ser humano não cria apenas a possibilidade de ser
para conduzir o ser humano, pela via do ato educativo, a livre, mas aprende a efetivá-la e exercê-la como ação
se entender como sujeito dotado de cultura, de direitos, compartilhada.

Referências

BEISIEGEL, Celso de Rui. Paulo Freire. Recife: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. morfologia e história. São Paulo: Cia da Letras. 1989.
(Coleção Educadores). pp.143-79.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação Popular na ______. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia da Letras.
Escola Cidadã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 1989.
______. O que é Método Paulo Freire. São Paulo: GONÇALVES, Luiz G. Leituras indiciárias e
Brasiliense, 2005. artimanhas do saber: os saberes imemoriais e sua
reinvenção no universo do aprender humano.
FERNANDES, Calazans; TERRA, Antonia. 40 Horas de
Universidade Metodista de Piracicaba. Faculdade de
Esperança: o método Paulo Freire: politica e pedagogia
Educação. Piracicaba. 2003 (mimeo.).
na experiência de Angicos. São Paulo: Ática, 1994.
GOULART, João. A educação nas mensagens
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.
presidenciais. Brasília, MEC/Inep, 1987.
Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2009a.
GUERRA, Marcos José de Castro. As 40 Horas de
______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a
Angicos: vítimas da Guerra Fria?. Revista de Informação
Pedagogia do oprimido. 16 edição. Rio de Janeiro:
do Semiárido – RISA, Angicos, RN, v. 1, n.1, p. 22-46,
Editora Paz e Terra, 2009b.
jan./jun. 2013. Edição Especial.
______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
______. Círculo de Cultura: Relatos das experiências
prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997.
dos ex-Coordenadores dos Círculos de Cultura e ex-
______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Educandos das 40 Horas. Evento “Cinquentenário das 40
Editora Paz e Terra, 2005. Horas de Angicos”, realizado pelo Governo do Rio
Grande do Norte/ Secretaria de Estado da Educação e
GERHARDT, Heinz Peter. Angicos – Rio Grande do
Cultura, Universidade Federal Rural do Semiárido
Norte – 1962/63: A primeira experiência com o “Sistema (UFERSA) e Secretaria Municipal de Educação de
Paulo Freire”. Revista Educação e Sociedade. São Paulo: Angicos, no dia 02 de abril de 2013.
Cortez, Ano X, Nº 14, Maio de 1983.
LIMA, Henrique Espada. Narrar, pensar o detalhe: à
GERMANO, José Willington. As quarenta horas de
margem do projeto de Carlo Ginzburg. Rev. ArtCultura,
Angicos. Revista Educação & Sociedade, ano XVIII, nº
Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 99-111, jul.-dez. 2007.
59, agosto/97.

80 Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013


LYRA, Carlos. As quarenta horas de Angicos: Uma SANTOS, Boaventura de Souza. Conhecimento
experiência pioneira de educação. São Paulo, Cortez, prudente para uma vida decente: um discurso sobre as
1996. ciências revisitado. Santos/SP: Cortez, 2004.
LOBO, Luis. A hora e a vez de Angicos. Reportagem SCOCUGLIA, Afonso Celso. A História das Ideias de
publicada na “Tribuna da Imprensa”, do Rio, 1963, 6 p. Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. 2 ed. João
(mimeo.). Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1999.
MORIN, Edgar. Sociologia: a Sociologia do Microssocial ______. Histórias inéditas da educação popular: do
ao Macroplanetário. Lisboa: Publicações Europa- Sistema Paulo Freire aos IPMs da ditadura. João Pessoa:
América, 1998. Ed. Universitária/UFPB, 2000.
PAIVA, Vanilda Pereira. Educação Popular e Educação SILVA, Silvânia Lúcia de Araújo. Da Pedagogia do
de Adultos. 4ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 1987. Oprimido à Pedagogia da Autonomia: a estilização
pedagógica do processo em que o homem constitui e
PELANDRÉ, Nilcéa Lemos. Ensinar e Aprender com
conquista - A Praxeologia de Paulo Freire. In: Silvânia
Paulo Freire: 40 horas 40 anos depois. São Paulo:
Lúcia de Araújo Silva; Antonia Sueli da Silva Gomes
Editora Cortez, 2002.
Timóteo. (Org.). Estágio e Docência em Pedagogia:
entrelaces de um mesmo fio condutor. 1ed. Olinda/PE:
Editora Livro Rápido - Elógica, 2012, v. 1, p. 28-50.

Sobre os autores

Silvania Lúcia de Araújo Silva


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, na Linha de Pesquisa
Educação Popular. Mestre em Literatura e Interculturalidade, pela Universidade Estadual da Paraíba. Professora do
Departamento de Educação do Campus Avançado de Patu da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail:
silvaniaaraujo@uern.br.
Luiz Gonzaga Gonçalves
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, na Linha de
Pesquisa Educação Popular. E-mail: luggonçalves@ uol.com.br.

Recebido em: 10/11/2013


Aceito para publicação em: 30/11/2013

Revista Cocar. Belém, vol 7, n.14, p. 73-81| ago-dez 2013 81

Você também pode gostar