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DOI: 10.4025/reveducfis.v23.4.

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INVESTIGAÇÃO SOBRE AS CONFIGURAÇÕES SOCIAIS DO SUBCAMPO DO


ESPORTE PARALÍMPICO NO BRASIL: OS PROCESSOS DE CLASSIFICAÇÃO
DE ATLETAS

RESEARCH ON SOCIAL SETTINGS OF PARALYMPIC SPORTS IN BRAZIL: PROCESS FOR


CLASSIFICATION OF ATHLETES

*
Renato Francisco Rodrigues Marques
Gustavo Luis Gutierrez**
Marco Antonio Bettine de Almeida***

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo investigar e delimitar formas de interação e disputas sociais presentes no movimento
paralímpico brasileiro, relativos aos processos de classificação de atletas, com base em conceitos de Pierre Bourdieu. A
metodologia utilizada fundamentou-se em entrevistas semiestruturadas com quatro atletas (com deficiência física ou visual,
praticantes de diversas modalidades: natação, goalball, rugby e basquete em cadeira de rodas) e quatro dirigentes (2 atuantes
em funções técnicas e 2 em funções administrativas do Comitê Paralímpico Brasileiro). A análise de dados apoiou-se no
método Discurso do Sujeito Coletivo e suas ferramentas metodológicas (expressões-chave; ideias centrais; ancoragens;
instrumentos de análise de discurso). Destacam-se como resultados: os protocolos de classificação, assim como a atuação e
formação de novos classificadores, são motivo de tensões sociais neste espaço; Os classificadores exercem importante poder
simbólico no subcampo; Demais agentes, como treinadores e atletas, têm suas possibilidades de ascensão diminuídas por
condições sociais desfavoráveis..
Key-words: Paralímpico. Classificação. Pierre Bourdieu

INTRODUÇÃO
classificação. Deste modo, estudos sobre meios
de socialização presentes neste ambiente são
modos de melhor entendê-lo e prepará-lo para
O esporte e a teoria dos campos de Pierre que seja adequado e sirva como meio de
Bourdieu
inclusão social de pessoas com deficiência.
O esporte paralímpico é uma das formas de Como forma de análise sociocultural sobre o
manifestação do esporte adaptado que, segundo esporte paralímpico no Brasil, este trabalho foca
Goodwin et al. (2009), pode ser um componente sua atenção na classificação de atletas e nas
facilitador para a inclusão social, pois possibilita relações e disputas sociais que a permeiam. Em
ao atleta fazer parte de um grupo com pessoas pesquisas de cunho sociocultural, insere-se a
nas mesmas condições e ter seus feitos necessidade de adoção de referenciais teóricos
valorizados por critérios esportivos e não apenas que delimitam diretrizes de trabalho e critérios
pela superação da deficiência. Porém, por se de análise. Este trabalho toma a obra de Pierre
tratar de um ambiente de alto rendimento, o Bourdieu como suporte metodológico em
limiar entre o sucesso e o fracasso é muito Sociologia do Esporte.
tênue, sendo dependente de configurações Sua Teoria dos Campos serve como
específicas como, por exemplo, os sistemas de arcabouço científico para intervenções ligadas às

*
Doutor. Professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto-SP, Brasil.
**
Doutor. Professor Titular da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas-SP, Brasil.
***
Doutor. Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP,
Brasil.

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relações entre sujeitos que disputam o poder e (aprendizado e conhecimento formal – ligado,
acesso a bens de disputa em determinados entre outras formas à escola e transmissão
setores da sociedade. Organiza as análises sobre doméstica de conhecimento) e simbólico
suas ações, posicionamentos e inter-relações, e (específico de cada campo é determinado pelo
se configura como uma ferramenta metodológica que o habitus e costumes daquele espaço
que auxilia em processos de apropriação de indicam como algo a ser valorizado. Por
conhecimento relacionado a certos objetos, exemplo, no campo esportivo tem-se como uma
como o esporte, por exemplo. das formas de capital simbólico o mérito
A obra de Bourdieu sugere a ocorrência de esportivo de um atleta) (BOURDIEU, 1989).
um jogo de dominação existente em todas as Além disso, Pierre Bourdieu apresenta, com
áreas da sociedade. Tal premissa se dá pela certa especificidade em relação a outros autores
distribuição desigual de bens e ao acesso das ciências sociais, um conceito muito
diferenciado a eles, de acordo com a posição que importante, a ideia de habitus que se coloca
cada agente ocupa no espaço social. Essa como uma estrutura estruturante, ou seja, que
diferenciação é percebida a partir da norteia as formas de ação dos sujeitos (praxis),
consideração de que existem campos sociais de mas que é estabelecido de acordo com as leis do
disputas, ou seja, espaços sociais de posições em campo e os caminhos específicos para a disputa
que os sujeitos buscam reconhecimento pela e aquisição de capital (BOURDIEU, 1983,
posse de formas de capital de modo específico 1996). Nessa estrutura, tem-se que as disputas
nesse ambiente. Um campo social se conforma, ocorrem entre agentes posicionados em
para Bourdieu (1983), por meio da definição dos diferentes grupos sociais, que são determinados
objetos de disputas e dos interesses específicos pela quantidade ou tipo de capital que possuem.
relativos a seus objetos, que só são Cada grupo tem seu habitus próprio, que
compreendidos por quem faz parte desse espaço. justifica suas ações e norteia as práticas dos
No campo, os agentes disputam o direito da agentes na busca por aquisição de capital
violência simbólica, ou seja, o poder de orientar (BOURDIEU, 1996). Ao adquirir certa quantia
a conservação ou mudanças dos critérios de de capital que justifique reconhecimento social,
distribuição de capital simbólico. Tal privilégio o agente pode ser aceito em outra esfera desse
é decorrente da posse anterior deste tipo de campo, podendo até mudar de grupo, estando
capital e do consequente reconhecimento como sujeito a um novo habitus.
sujeito de destaque social (BOURDIEU, 1989).
Dessa forma, cada campo específico se faz O esporte paralímpico no Brasil
relativamente autônomo, ou seja, embora sofra O movimento paralímpico brasileiro
certas influências do meio social que o cerca, mantém um modelo organizativo de modo
tem suas regras e história próprias. Tem-se como semelhante à estrutura de gerência internacional.
exemplo a existência do campo do esporte, no As entidades no Brasil têm procurado trilhar
qual os sujeitos lutam pelo reconhecimento caminhos estabelecidos por órgãos
esportivo, poder econômico e político dentro dos internacionais, seja incorporando as orientações,
princípios e critérios criados por seus agentes. seja buscando acompanhar as evoluções nos
As diferentes espécies de capitais, como diferentes campos de conhecimento que essa
trunfos em um jogo, são os poderes que definem área envolve. Embora algumas organizações
as probabilidades de ganho em um campo esportivas sejam filiadas ao Comitê Paralímpico
determinado. Cada campo ou subcampo Brasileiro (CPB), as entidades têm certa
(espaços que respeitam as normas do campo, autonomia organizativa e podem coordenar e
mas também apresentam certas particularidades avaliar a participação de atletas brasileiros em
dentro dele) têm uma espécie particular de competições internacionais ligadas às suas
capital. Têm-se, como capitais, quatro formas modalidades ou deficiências (SENATORE,
essenciais que norteiam as disputas e que se 2006).
inter-relacionam: capital econômico (quantidade O CPB é filiado ao Comitê Paralímpico
de dinheiro do agente), social (referente ao seu Internacional (IPC) e atua como elo entre
círculo social e relações interpessoais), cultural associações, governos, instituições

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internacionais e entidades privadas dispostas a federações ocorre com base em contratos


incentivar e investir no esporte para pessoas com firmados entre COB, CPB e esses órgãos, que
deficiência. O CPB tem como afiliados as determinam metas a serem cumpridas em
organizações e confederações dirigentes do contrapartida ao valor recebido (BRASIL,
esporte adaptado para pessoas com deficiência 2010).
visual, intelectual e física, em nível nacional. O Programa Bolsa-atleta foi instituído pela
Esse órgão não contempla todas as formas de Lei 10.891, no ano de 2004, destinado aos
manifestação do esporte adaptado, destinando atletas de alto rendimento. A concessão da bolsa
seus esforços ao esporte paralímpico, de alto não gera qualquer vínculo empregatício entre os
rendimento, em nível nacional e internacional e beneficiados e a administração pública federal
ao gerenciamento de modalidades esportivas que (BRASIL, 2004b). Esse suporte só acontece
não são vinculadas a nenhuma entidade mediante conquistas e manutenção de resultados
específica (SENATORE, 2006). esportivos. São categorias do Bolsa-atleta:
A estrutura do esporte paralímpico Estudantil, Esporte de base, Nacional,
brasileiro é atualmente semelhante à do esporte Internacional, Olímpica/Paralímpica, Atleta
olímpico. A diferença é que as organizações Pódio (BRASIL, 2012).
esportivas que representam os atletas
paralímpicos são formadas, muitas vezes, em Processo de classificação de atletas no esporte
função do tipo de deficiência e não apenas por paralímpico
uma modalidade esportiva específica As diferentes formas de deficiência e seus
(MARQUES et al, 2009). diferentes graus de comprometimento produzem
Soma-se a esse quadro o aumento da desigualdades em relação ao desempenho
profissionalização do esporte paralímpico esportivo dos atletas e colocam, para os
brasileiro, maior autonomia financeira organizadores de competições paralímpicas, o
propiciada principalmente por financiamentos e problema de encontrar um sistema que garanta o
patrocínios estatais, e ações ligadas ao princípio de igualdade de condições na disputa,
crescimento do país como potência esportiva garantindo resultados justos ao final das
(pode-se destacar o 7º lugar no quadro de competições (HOWE; JONES, 2006). A solução
medalhas dos últimos Jogos Paralímpicos de encontrada é agrupar os competidores em
verão, realizados no ano de 2012, em Londres). categorias ou classes, de acordo com o grau de
São pilares dessa transição a criação de leis que comprometimento apresentado. Surgem, então,
promovem a organização e crescimento do os sistemas de classificação, que têm por
esporte paralímpico no Brasil, maiores recursos objetivo garantir a legitimidade das competições
financeiros e, consequentemente, maior e seus resultados. Esse instrumento deve garantir
capacidade de realização. Como exemplo, tem- que o nível de treinamento, talento, condição
se a Lei Agnelo/Piva e o Programa Bolsa-atleta, física, motivação e a habilidade do atleta sejam
além de outras iniciativas governamentais e os fatores decisivos para seu sucesso e não o
privadas. grau ou tipo da deficiência (SHERRIL, 1999).
A Lei Agnelo/Piva, sancionada em 16 de Além disso, estabelece os sujeitos elegíveis para
julho de 2001, conhecida por esse nome por as disputas, ou seja, que de fato tenham alguma
causa de seus autores, o Senador Pedro Piva deficiência que os qualifiquem para o esporte
(PSDB-SP) e o Deputado Federal Agnelo paralímpico. Desse modo, os atletas competem
Queiroz (PC do B-DF), estabelece que 2% da dentro de suas classes, definidas de forma
arrecadação bruta de todas as loterias federais específica por modalidade, sendo que para cada
do país sejam repassadas ao Comitê Olímpico prática esportiva existe um sistema próprio de
Brasileiro (COB) e ao Comitê Paralímpico classificação (CASTELLANO, 2001). Dentro
Brasileiro (CPB). Do total destes recursos, 85% desse panorama, a classificação esportiva se
são destinados ao COB e 15% ao CPB coloca como um ponto importantíssimo no
(BRASIL, 2004a). A partir da Medida esporte adaptado, sendo a área onde a pesquisa
Provisória nº 502, de 20 de setembro de 2010, o científica se faz mais necessária, pois busca a
repasse desses valores às confederações e

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justiça e legitimidade do esporte (SHERRIL, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA


1999).
Para Wu, Williams e Sherril (2000), um O objetivo geral deste trabalho (parte desta
sistema de classificação é considerado justo pesquisa é resultado de tese de doutorado
quando aponta três condições: os desempenhos defendida na Faculdade de Educação Física da
entre as classes são diferentes com atletas com Universidade Estadual de Campinas no ano de
menos comprometimento de deficiência com 2010), é investigar e delimitar, com pesquisa
rendimentos melhores dos com mais sociológica baseada na obra de Pierre Bourdieu,
comprometimento; atletas de elite nas mesmas o esporte paralímpico brasileiro contemporâneo
classes apresentam desempenhos similares; e e as formas de relação social, posicionamento e
atletas com deficiências diferentes têm disputa por capitais entre os sujeitos nesse
condições iguais de obter bons resultados e subcampo. O objetivo específico é analisar, com
vitórias. base em dados provenientes da literatura e de
São dois os principais tipos de classificação: discursos de atletas e dirigentes do movimento
a médica, com base em diagnósticos de paralímpico brasileiro, modos de organização,
especialistas da área da Saúde (predominante em interação e disputa por poder entre os agentes de
competições com deficiências visual e diferentes grupos sociais ligados aos processos
intelectual) e a funcional (predominante em de classificação de atletas paralímpicos no
competições com deficiência física), que não se Brasil.
baseia apenas em diagnóstico e evolução Os benefícios oriundos das conclusões desta
médica, mas no modo como a deficiência pesquisa justificam-se na apresentação de
interfere no desempenho do atleta (TWEEDY; características socioculturais atuais e ainda não
VANDLANDEWIJCK, 2011), levando em documentadas, referentes a tais processos de
conta as habilidades da modalidade específica classificação, o que cria a oportunidade de
da qual participa o sujeito. Todos os sistemas de reflexão sobre as maneiras de interação social e
classificação de todas as modalidades utilizam disputas por poder neste espaço. Tais dados
processos padronizados de análise, podem oferecer subsídios para o
agrupamento, distribuição e atuação do desenvolvimento do movimento paralímpico no
classificador. Ou seja, é um procedimento Brasil, por meio de políticas internas de
objetivo, pautado em parâmetros pré- organização dos processos de classificação, e
estabelecidos e critérios estruturados externas, ligadas às condições de vida dos
(CASTELLANO, 2001). atletas paralímpicos, e de atuação profissional
Nesse processo, treinadores e atletas devem dos diferentes agentes deste subcampo.
adequar-se às formas expressas pelos protocolos
de classificação para que sua participação não MATERIAIS E MÉTODOS
seja prejudicada e possa disputar outro capital
simbólico desse espaço, o reconhecimento O presente trabalho enquadra-se em uma
esportivo. Segundo Wu, Williams e Sherril abordagem qualitativa de pesquisa. Configura-se
(2000), se atletas ou treinadores quiserem mudar como um procedimento exploratório-descritivo
algum critério ou processo, devem estabelecer que busca absorver as informações oriundas dos
contato com os classificadores para tais discursos e documentos, discutindo e analisando
sugestões. Tal situação expõe um quadro de seus conteúdos evidentes e latentes. Para
disputa pelo capital esportivo (mérito e bons desenvolver uma abordagem sobre um campo
resultados competitivos) que depende do específico, Pierre Bourdieu sugere alguns passos
instrumento de classificação. Por sua vez, este metodológicos a serem seguidos. Um primeiro
processo parece ser dominado por um grupo seria analisar a posição que o referido campo
específico. Nesse sentido, este trabalho tem ocupa em seu espaço social. Em seguida, seria
como pergunta central: Como se articulam as necessário traçar um mapa da estrutura objetiva
relações sociais e disputas por poder que das relações ocupadas pelos agentes ou
permeiam a classificação no esporte paralímpico instituições que competem de forma legítima
brasileiro? pela violência simbólica no campo. Por fim,

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devem ser analisados os habitus dos agentes disso, características histórico-culturais dos
(BOURDIEU; CHAMBOREDON; indivíduos também devem ser levadas em
PASSERON, 2002; SOUZA; MARCHI JR, consideração para a compreensão de seu
2010). discurso. Quanto às características dos
Nesse sentido, a análise de referencial indivíduos entrevistados, destacam-se: Sujeito 1
teórico e o apontamento de algumas estruturas (S1): Professor universitário. Atua junto ao CPB
organizacionais do esporte paralímpico dão em processos de classificação de atletas. Não-
conta dos dois primeiros passos indicados deficiente; Sujeito 2 (S2): Professor de
pelo autor. Quanto à análise específica dos Educação Física. Atua em função administrativa
agentes, além de dados secundários obtidos na no CPB. Não-deficiente; Sujeito 3 (S3): Ex-
literatura, obteve-se coleta de informações em atleta. Campeão paralímpico. Atua em função
campo, por meio de entrevistas com atletas e administrativa no CPB; Sujeito 4 (S4): Ex-atleta.
dirigentes atuantes no movimento paralímpico Campeão paralímpico. Atua em função
brasileiro. administrativa no CPB; Sujeito 5 (S5): Atleta
Como sujeitos da investigação foram com deficiência visual da modalidade natação.
escolhidos quatro dirigentes do Comitê Participa de competições em âmbito nacional e
Paralímpico Brasileiro (CPB), sendo dois não está contemplado pelo benefício Bolsa-
envolvidos em questões técnicas e dois em um atleta; Sujeito 6 (S6): Atleta com deficiência
âmbito administrativo, e quatro atletas visual da modalidade goalball. Participa de
paralímpicos, com diferentes tipos de competições em âmbito nacional, já atuou pela
deficiência e atuantes em diversas modalidades. seleção brasileira adulta da modalidade e recebe
Os critérios para seleção dos sujeitos deram-se, apoio financeiro de entidade especializada em
no caso dos dirigentes, com base na proximidade educação de pessoas com deficiência visual;
de cada um deles com o tema proposto, na Sujeito 7 (S7): Atleta com lesão medular,
posição de administração, gerência e liderança tetraplégico, da modalidade rugby em cadeira de
frente ao movimento paralímpico brasileiro. rodas. Participa de competições em âmbito
Quanto aos atletas, foram escolhidos os sujeitos nacional, atua na seleção brasileira adulta da
que participem de competições regulares e modalidade e é contemplado pelo benefício
organizadas por órgãos oficiais, com deficiência Bolsa-atleta; (S8): Atleta com lesão medular,
visual (DV) ou física (DF). A escolha de paraplégico, da modalidade basquetebol em
sujeitos pertencentes a grupos diferentes se cadeira de rodas. Participa de competições em
justifica na premissa de Pierre Bourdieu ligada à âmbito estadual. Não é contemplado com
desigualdade social, disputa por capitais e nenhum tipo de auxílio financeiro.
diferentes habitus dentro dos campos. O fato de A coleta de dados foi obtida pela análise das
coletar discursos de dirigentes e de atletas, busca respostas provenientes de entrevistas
considerar tal diversidade e desvendar pontos de semiestruturadas, aplicadas pessoalmente pelos
vista específicos sobre o objeto que estejam pesquisadores aos sujeitos, com uso de aparelho
carregados da marca cultural e disposição para gravador de voz digital e posterior transcrição
atuação social dos agentes envolvidos. das respostas. Quanto aos dirigentes (S1, S2, S3 e
O número de sujeitos respeitou o critério de S4), como atuam em esferas diferentes dentro da
saturação, indicado como o momento da administração do esporte paralímpico, cada
pesquisa qualitativa em que o conhecimento entrevista acabou direcionada para o tema de
formado pelo pesquisador conseguiu especialidade de cada um, como permite o método
compreender a lógica interna do grupo ou utilizado. Por esta razão, nota-se predominância de
coletividade em estudo, ou seja, quando os citações ao Sujeito 1 (S1), visto ser o entrevistado
dados coletados começam a se repetir e mostrar- com atuação mais próxima ao ambiente da
se maduros (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). classificação de atletas. Para este trabalho serão
Para compreender a essência do habitus de apresentados apenas os dados ligados à discussão
um agente é preciso, em uma lógica própria da sobre classificação de atletas.
teoria de Pierre Bourdieu, considerar o espaço Quanto aos procedimentos de organização
social e a posição ocupada pelo mesmo. Além de dados, foi utilizado o método Discurso do

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Sujeito Coletivo (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005), atletas). Todos os sujeitos envolvidos assinaram
que se baseia na construção de um discurso que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
sintetiza a percepção dos sujeitos frente ao tema previamente aprovado pelos Comitês de Ética
tratado. Tal procedimento se utiliza de algumas citados.
figuras metodológicas que, encadeadas e A partir do material coletado, juntamente
relacionadas, distribuem e ordenam as com informações relativas à literatura, a última
informações. Tais ferramentas são as etapa, de discussão dos dados, deu-se em um
expressões-chave (ECH), as ideias centrais (IC) diálogo entre aspectos ligados ao objeto de
e as ancoragens (AC). As ECH são pesquisa, provenientes deste estudo de campo e
trechos/pedaços literais do discurso que revelam de referencial teórico, baseado em categorias
a essência do depoimento. Trata-se do conteúdo próprias da obra de Pierre Bourdieu. As
discursivo que corresponde à questão da conclusões acerca dos resultados da pesquisa
pesquisa. Têm a utilidade de apontar qual esfera foram pautadas na realidade descrita pelos
de análise está sendo abordada pelo sujeito, sujeitos (que oferece vantagens ligadas à
facilitando uma primeira classificação das vivência e proximidade dos mesmos aos dados e
respostas. As IC representam o tema do fatos ocorridos e identificados), confrontada
depoimento, os conteúdos a serem destacados e com dados coletados oriundos de referencial
apontados como relevantes para a discussão, teórico.
pois direcionam para a ocorrência e forma dos
eventos analisados. As AC compõem o Análise e discussão de dados. O espaço social da
posicionamento social e político que o sujeito classificação de atletas no esporte paralímpico
não descreve objetivamente, mas que está brasileiro
implícito como conteúdo carregado em sua fala. Nesta seção são expostos os resultados das
Aponta informações importantes sobre a ideia entrevistas realizadas, como propõe a
do entrevistado (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). metodologia já mencionada, em forma de texto
Deste modo, após a transcrição das corrido, com menções aos sujeitos abordados.
entrevistas, as ECH foram destacadas e em um Juntamente, é realizada uma discussão e
segundo momento, transportadas para reflexão, com base em dados da literatura a
Instrumentos de Análise do Discurso (IAD), no respeito dos temas destacados na investigação.
qual foram apontadas as IC e AC referentes às Em relação ao espaço da classificação de
respostas dos sujeitos. Em um terceiro e último atletas no Brasil, S1 apontou que hoje em dia
momento, com base em análise das IC e AC, as existem poucos classificadores formados. A
respostas foram agrupadas de modo a terem maioria dos indivíduos que atuam nessa área foi
sentidos homogêneos, para que fosse construído treinada no exterior, visto que os processos de
um discurso do sujeito coletivo (DSC) capacitação e treinamento de classificadores no
(LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). país são recentes. Este é um dado preocupante,
As entrevistas foram realizadas em locais visto o crescimento do movimento paralímpico
previamente combinados com os sujeitos. Como no Brasil apontado por S2:
os indivíduos fazem parte do movimento
paralímpico brasileiro, esta pesquisa foi [...] vamos levar aí que em um universo
submetida e aprovada pela Comissão Científica a gente tem os atletas de alto
da Academia Paralímpica Brasileira, que rendimento aí, altíssimo rendimento,
auxiliou na viabilização de contato, permissão hoje nós temos dez mil atletas
praticando, competindo no Brasil, de
de coleta de dados e autorização a respeito dos
altíssimo rendimento, se você colocar
locais de execução, e pelos Comitês de Ética em que tem mil atletas no altíssimo
Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, da rendimento... (S2).
Universidade Estadual de Campinas, sob Parecer
nº 356/2010 (entrevistas com dirigentes). e da Para ser classificador em determinada
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de modalidade é necessária a realização de cursos
Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, específicos, além de estágios em campeonatos,
sob Parecer nº 631/2011 (entrevistas com supervisionados por classificadores mais

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experientes (CASTELLANO, 2001). Foi esse quadro, segundo S1, que motivou a
Geralmente, esses sujeitos são médicos, criação do curso de formação do CPB.
fisioterapeutas, ex-atletas e outros profissionais Nota-se, nesse discurso, que a criação do
ligados ao esporte e dotados de conhecimentos curso demonstra uma intenção do CPB de
sobre cinesiologia e deficiência (PACIOREK, entrada na disputa por esse capital simbólico,
2004), além de certo domínio da língua inglesa. por meio da mudança de valoração do mesmo.
Segundo S1, há atualmente um processo, Com o oferecimento de uma formação de modo
coordenado e ministrado pelo CPB, de formação sistemático e científico, o CPB transforma a
de novos classificadores no Brasil. Já foram, ou compreensão sobre essa forma de bem no
estão sendo preparados, cursos para diversas subcampo, mudando, inclusive, os caminhos
modalidades (é importante destacar que tanto a para que os sujeitos o alcancem. Dessa maneira,
formação, quanto atuação de classificadores, consegue maior domínio sobre as formas de
respeitam uma modalidade específica em que o distribuição e posse desse capital. Fica explícita
sujeito se especializa). A intenção do CPB é a tentativa de entrada do “novo” (CPB),
formar classificadores para atuarem tentando ocupar o lugar do “velho”
internamente no país, tanto na função de (classificadores mais antigos) no espaço social,
classificação, quanto no auxílio a equipes e sendo essa uma das características de disputa em
atletas em processos de treinamento (S1). Estes campos sociais, como cita Bourdieu (1983).
cursos são realizados por meio de convênios Tweedy e Vandlandewijck (2011) apontam a
com universidades do país, o que é apontado por necessidade de maiores estudos sobre
S1 como uma iniciativa inovadora, tanto no classificação, visto a natureza empírica de
Brasil quanto no mundo, o que, segundo S4, muitos dos procedimentos utilizados até hoje
contribui em manter o Brasil como vanguarda por classificadores mais experientes, o que,
administrativa do esporte paralímpico. O mesmo segundo os autores, deixa muitos dos resultados
dirigente aponta que o país, por meio do CPB, questionáveis. Tal apontamento fortalece a
tem posição de destaque internacional, contando necessidade de realização dos cursos de
com representantes em diversas comissões do formação.
Comitê Paralímpico Internacional (IPC). Segundo S1 é grande a importância, para a
delegação de um país, de ter em seu quadro um
Eu acho que hoje o Brasil, no que diz classificador conhecido internacionalmente, pois
respeito ao Comitê Paralímpico, tem isso dá legitimidade aos questionamentos sobre
uma posição de destaque no cenário resultados da classificação. Implicitamente neste
internacional. A gente hoje tem o
espaço, isso mostra que o país tem uma
representante no comitê executivo do
IPC, nós temos três representantes nos
formação e atuação profissional sistematizada e
comitês do IPC (S4). bem orientada neste sentido. O conhecimento
sobre os conteúdos e procedimentos que envolve
Segundo S1, anteriormente aos cursos, a os processos de classificação configuram-se
formação de classificadores ocorria com base como um capital simbólico valorizado neste
empírica, com os conhecimentos e experiências espaço social.
transmitidos de classificador para classificador, Por essas razões que S1 coloca a
de modo informal. Nesse processo, o mesmo importância de uma boa formação regional e
sujeito afirma que esse conhecimento acabava nacional do classificador e uma posterior
sendo uma forma de poder, o que pode ser experiência internacional do mesmo. Nota-se
traduzido como um capital simbólico no que essa preocupação com intercâmbios
subcampo. Isso pode ser afirmado, pois os internacionais é compartilhada com alguns
classificadores mais experientes exerciam certo autores, sendo bem explícita por Castellano
controle sobre a atividade, não compartilhando, (2001), que afirma que existe a necessidade de
de forma pública, os conteúdos referentes à sua tais trocas de informação para a melhoria dos
área de atuação. Isso lhes conferia um caráter de processos de formação e atuação.
indivíduos indispensáveis e líderes no processo. Embora os protocolos sejam passíveis de
algumas formas de aplicação, ou filosofias,

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como cita S1, que se diferenciam de acordo com Tweedy, Willians e Bourke (2010) apontam
o organizador do processo, os classificadores, que, de fato, existe a necessidade do
em si, não têm autonomia de interpretação, visto desenvolvimento de processos que tornem a
que devem seguir a forma de atuação indicada classificação mais objetiva, diminuindo as
pelo órgão que o formou e o contrata. Castellano chances de erros com base na subjetividade ou
(2001) discorda desta posição de S1. Para a procedimentos não tão eficientes. Os autores
autora, o sistema de classificação, sugerem mudanças nos protocolos de análise da
historicamente, dá margens a avaliações capacidade muscular, por exemplo, como uma
superficiais e à tomada de critérios individuais das possíveis alterações na classificação
de acordo com o órgão e estilo de formação de funcional.
cada classificador. Assim, segundo a autora, a Os atletas S6 e S8 apontam que o resultado
subjetividade não mora apenas na capacidade de da classificação pode ser mascarado pelo
interpretação do indivíduo que realiza a avaliado, seja não descrevendo com precisão o
avaliação, mas na forma de atuação que o órgão que está enxergando (DV) ou não
formador adota, ensina e exige dos sujeitos. desempenhando com total magnitude suas
Os atletas S6 e S7 concordam e ecoam o potencialidades funcionais (DF). Tais fatos,
posicionamento de Castellano (2001) e apontam somados à subjetividade inerente ao processo,
que, embora existam protocolos de classificação, permitem que certos atletas façam algumas
ainda assim, a subjetividade é um fator presente sugestões frente a possíveis mudanças de
no resultado do processo. Ou seja, a percepção e protocolos.
competência do avaliador pode influenciar a S6 faz comentários sobre a classificação
classificação do atleta. médica para atletas com DV. Afirma que a
avaliação clínica não contempla a real
Classificação funcional é um processo capacidade do sujeito e nem sempre demonstra
que sempre será polêmico, pois é aplicabilidade prática e funcional na atividade
praticamente impossível determinar esportiva.
com objetividade e precisão a condição
funcional dos atletas [...] Existe um Os classificadores quase não vão a
universo de possibilidades funcionais campeonatos. Eles fazem a
de atletas dentro da mesma classe. Por classificação e por lá ficam. Não
exemplo, existem muitos tipos entram na parte esportiva [...] Eu acho
diferentes de atletas com o mesmo que alguns testes têm que ser
índice. [...] dentro das possibilidades, o repensados [...] Às vezes vejo coisas
processo atual ainda é muito subjetivo que não me ajudam na prática (S6).
(S7).
S7 e S8 julgam os protocolos insuficientes e
Quanto à classificação médica, para atletas
com análises pouco objetivas e imparciais. S8
com DV, S6 aponta os erros de diagnósticos e
aponta que sente falta de um acompanhamento
processos pouco precisos de avaliação como
de classificadores no dia a dia do atleta. S7
consequência da subjetividade.
aponta a necessidade de considerar a
Julgam a classificação muito boa. Mas
sensibilidade do atleta na avaliação e a
eu não concordo. Existem muitos aplicabilidade do biofeedback:
equívocos em relação aos resultados
das classificações. [...] Existem atletas A sensibilidade é importante, pois é sua
que são deficientes visuais, mas relação com o mundo. Você consegue
enxergam muito além da classe em que perceber o espaço à sua volta de
são colocados. E já pessoas com baixa maneira diferente (S7).
visão, algumas bem acentuadas, serem Segundo o atleta esta técnica permite
excluídas considerando que não eram analisar os impulsos nervosos oriundos da
elegíveis. Eu acho que o método de
musculatura, principalmente relativos à
classificação é muito falho [...] As
falhas acontecem tanto na esfera sensibilidade. Os sistemas de classificação são
nacional quanto internacional (S6). constantemente reavaliados e questionados na

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Investigação sobre as configurações sociais do subcampo do esporte paralímpico no Brasil: os processos de classificação de atletas 523

busca por promoção do sentido de igualdade e o classificador sem conhecerem bem o


justiça nas disputas. Da mesma forma, por funcionamento do processo.
motivos ligados às deficiências que possuem Segundo S1, essa ocorrência de tensão
quadros de evolução e pela capacidade dos acontece pelo fato de os treinadores esportivos
atletas melhorarem seus desempenhos motores, presentes em competições serem rotativos, o que
os participantes são constantemente reavaliados é uma consequência da falta de boa condição de
antes e durante a competição (MARQUES et al, trabalho dos mesmos. Neste sentido, S2 aponta
2009). Se o desempenho não for equivalente à que há dois tipos de treinadores em atuação no
sua classificação, pode ser reclassificado Brasil: um voltado tanto a atletas não-deficientes
(SHERRIL, 1999). quanto paralímpicos, que, muitas vezes, fazem o
Os classificadores são profissionais que trabalho com o esporte adaptado de forma
atuam neste meio como agentes de controle e voluntária, ou apenas com ajuda de custo, mas
mantenedores do sistema (WU; WILLIAMS; com a mesma dedicação; e outro,
SHERRIL, 2000). Por separar sujeitos em exclusivamente paralímpico, sendo este segundo
disputa, na busca por classes que privilegiem grupo muito menor que o primeiro (apenas 10%
igualdade de condições, este processo acaba a 15% dos treinadores envolvidos),
alocando os atletas de forma a oferecer-lhes configurando poucos especialistas no Brasil.
mais ou menos chances de vitória, o que pode Howe (2008) aponta que o profissionalismo
significar mais ou menos ganhos financeiros e no esporte paralímpico é novo e ainda em
simbólicos (HOWE; JONES, 2006). processo de crescimento. Nunn (2008) comenta
Por mais precisos que possam ser os que a maioria dos treinadores são procurados
processos de classificação, atletas que se por atletas com deficiência não por seu
encontram próximos aos limites de entrada em conhecimento sobre esporte adaptado, mas por
uma classe mais ou menos comprometida, sua história e envolvimento em uma modalidade
podem ser classificados como dos mais esportiva específica e complementa que é mais
comprometidos em tal grupo, diminuindo sua fácil um treinador aprender sobre deficiência do
chance de vitória, assim como dos menos que sobre uma modalidade nova.
comprometidos de outra classe, aproximando-o S2, S3 e S4 apontam a necessidade de
do êxito (TWEED; VANDLANDEWIJCK, aumento de profissionalismo em posições
2011). Desta forma, o processo de classificação técnicas e administrativas do esporte. S2
ganha grande importância, dando poder aos acrescenta que treinadores e coordenadores de
grupos de classificadores sobre as condições de seleções brasileiras são remunerados pelo CPB,
disputa dos atletas. Inclusive o poder, a como pró-labore, para realizarem planejamentos
organização das provas, de unir classes para específicos para modalidades. Por este quadro
disputa, quando julgar ser baixo o número de de instabilidade profissional, S1 aponta que
atletas (HOWE; JONES, 2006). Explicita-se, normalmente quando um novo treinador
neste processo, uma forma de capital simbólico esportivo está aprendendo sobre processos de
deste subcampo. O poder de classificar e classificação, acaba deixando o esporte. E cita
ordenar atletas, conferindo-lhe mais ou menos ainda que é direito do treinador e do atleta
chances de vitória. conhecerem os processos de classificação. Por
Neste cenário, podem-se observar tensões isso, segundo S1, é necessária e importante a
entre grupos sociais. Por exemplo, entre promoção, por parte do CPB, de cursos de
classificadores e treinadores. S1 aponta que os formação para treinadores e atletas durante
primeiros são vistos pelos segundos como competições. Além disso, segundo Castellano
agentes concorrentes ou más influências, pelo (2001), os treinadores deveriam servir como
seu poder social no esporte. Ele afirma que os educadores dos atletas, em um sentido de
treinadores e atletas conhecem pouco sobre esclarecer particularidades dos processos de
processos de classificação e deveriam estudar classificação. Porém, pela falta de
mais sobre o tema. Muitas vezes, segundo o conhecimento, ou alguma forma de interesse,
mesmo entrevistado, os treinadores questionam acabam atuando como interlocutores negativos,
com atitudes que desrespeitam, desafiam e

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524 Marques et al.

colocam o atleta em uma posição de confronto Segundo S1, todos os classificadores


com o classificador. brasileiros com deficiência são ex-atletas. O
Ao conhecer mais sobre classificação, o entrevistado aponta que os classificadores com
treinador pode atuar como uma espécie de pré- deficiência são minoria em relação a
classificador, oferecendo informações classificadores não-deficientes. Porém, quando
importantes que podem contribuir com o presentes, atuam na modalidade em que eram
processo de classificação e até com o atletas. Tal quadro é explicado por S1, S3 e S4
rendimento de seus atletas (CASTELLANO, com base na formação educacional básica ainda
2001). precária, oferecida a essas pessoas no Brasil,
Quanto à relação entre classificadores e visto que é exigida formação em nível superior
atletas, notam-se posições distintas entre os para que um sujeito possa tornar-se
entrevistados. Embora S1 aponte que há uma classificador, este que se configura como um
interação mais tranquila, S6 e S8 apontam para problema de política pública de educação e
uma relação não tão consensual, o que evidencia inclusão social.
certa tensão entre os dois grupos: Todos os atletas analisados (S5, S6, S7 e
S8) concordam que a Educação Básica e de
A relação entre classificadores e atletas Nível Superior no Brasil contam com adaptações
não é tão amistosa. Sempre existe uma insuficientes para a facilitação do processo
desconfiança sobre a validade dos educacional da pessoa com deficiência. Eles
resultados das classificações (S6);
apresentam queixas tanto ligadas à
Nem sempre tem interesses pessoais.
acessibilidade quanto às condições de estudos e
Muitas vezes ocorrem erros mesmo, meios didáticos inadequados.
que colocam o resultado da avaliação
em dúvida (S8). Após a lesão tentei recomeçar a estudar
no 3º ano do ensino médio, mas a
Outro ponto importante tratado sobre a escola não tinha adaptação e eu desisti.
Depois disso, voltei e me formei. Na
questão da classificação, com carga de destaque
última escola não tive problemas. Tinha
nas disputas sociais deste subcampo, foi a rampa na escola e nunca tive problema
presença de sujeitos com deficiência atuando na nem nunca fui desrespeitado. Pelo
função de classificadores. S4 cita que a menos na escola, não tive isso [...] A
deficiência não é um fator determinante sobre a dificuldade era o transporte (S8).
capacidade da pessoa atuar em cargos técnicos
ou administrativos. Embora a experiência como Oliva (2011) aponta a existência de tais
ex-atleta e a troca de experiências entre dificuldades, tanto em relação à acessibilidade
classificador e atletas possam contribuir com sua física, quanto à adaptação de currículos e
atividade, ele aponta que a deficiência não processos didáticos na escola básica. Para a
garante um bom trabalho. A formação autora, a não-existência de trabalhos adaptados e
educacional e profissional da pessoa é reforçada a presença de barreiras à aprendizagem e
como fator mais importante. participação indicam que a escola tem como
S7 concorda que a presença de ex-atletas em foco o desempenho dos alunos não-deficientes e
processos de classificação pode ser interessante, uma busca competitiva e pragmática por
pois a experiência anterior contribui com resultados. Isso cria uma situação em que o
análises mais minuciosas, diminuindo erros sujeito precisa se adaptar à escola e situação de
ensino e não o contrário, o que dificulta seu
[...] você tendo vivenciado a ingresso no Ensino Superior. S8 cita ainda que
modalidade, você consegue, às vezes, pessoas com deficiência buscam formações
entender melhor o porque às vezes um acadêmicas em que o comprometimento causado
movimento de algum dedo da mão, tal,
pela deficiência não será, sob seu ponto de vista,
possa fazer uma diferença bastante
significativa em uma modalidade (S7).
um empecilho, e tal escolha pode não
possibilitar a inserção como classificador:

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Investigação sobre as configurações sociais do subcampo do esporte paralímpico no Brasil: os processos de classificação de atletas 525

Normalmente, um deficiente vai condições educacionais para sucesso escolar


procurar uma formação acadêmica que mantêm-se desiguais em relação aos não-
não dependa de sua condição física. Por deficientes. Entre as razões para isto, muitas
exemplo, ao invés de fisioterapia, estão diretamente relacionadas à discriminação
educação física, prefere administração,
vivida por eles durante a sua escolarização.
direito (S8).
S6 e S7 apontam outros dois fatores
S3 coloca que existem leis que obrigam as dificultantes em relação à atuação de pessoas
empresas a contratar uma porcentagem de com deficiência na função de classificadores.
pessoas com deficiência, mas não incentivos Quanto à pessoa com DV, segundo S6, sua
legais que facilitem a formação destes sujeitos própria deficiência dificulta em muito sua
para atuarem no mercado. Para atuar no esporte possível avaliação sobre a condição de visão dos
paralímpico, além de boa formação, é necessário atletas. S7 cita as pessoas com DF como
ter capacitação específica, segundo S4. Porém, exemplo, relatando que já participou de parte de
esses cursos pontuais existem, mas ainda são um curso de formação de classificadores
insuficientes, pela má formação anterior das funcionais, mas encontrou muitas dificuldades
pessoas. Um fator dificultante para a obtenção na atuação prática, visto que o processo exige
de formação acadêmica é apontado por S3, força e sensibilidade da parte do classificador.
quando ele coloca que o atleta paralímpico
Eu sentia, por causa de minha condição
começa sua vida esportiva mais tarde do que o motora, muitas dificuldades em avaliar.
olímpico. Isso, segundo ele, prejudica ainda Mesmo porque, na falta de instrumento
mais sua formação profissional acadêmica, além melhor, muito ainda é feito, teste de
da recorrente dificuldade de acessibilidade e força, manualmente. Então, a
adaptações à pessoa com deficiência em locais sensibilidade do classificador é muito
de educação formal. importante, e para isso, você tem que
S7, que tem diploma universitário anterior ter condição funcional. E eu senti um
ao acidente que causou sua deficiência, pouco de dificuldade nisso. [...]
frequentou cursos de pós-graduação na condição Existem muitos tipos de deficiências.
Eu tive dificuldade, mas um
de tetraplégico e relata que no Ensino Superior
paraplégico talvez consiga fazer (S7).
ainda se repetem condições didáticas e de
acessibilidade não-adequadas. Isso é Tais discursos apontam para a importância do
compensado, segundo ele, pela boa vontade das capital cultural institucionalizado, que segundo
pessoas para com o aluno com deficiência. Ele Bourdieu (1998), se configura como a posse de
aponta que muitas das adaptações realizadas certificados ou reconhecimentos oficiais relativos
para seus estudos ocorreram após sua chegada a ao aprendizado, conhecimento e competência, ou
estes locais. Tal ocorrência é tida por Oliva seja, a certificação oficial e pessoal na busca por
(2011) como algo comum e destaca a maior capital simbólico no subcampo paralímpico. Muito
preocupação dos processos de adaptação e da violência simbólica por parte dos classificadores
inclusão apenas à acessibilidade física, deixando é mantida pela exigência acadêmica em áreas
de lado, algumas vezes, o estímulo à específicas e consequentemente seu acesso
emancipação dos alunos com deficiência por dificultado às pessoas com deficiência. Tal disputa
falta de procedimentos didáticos adaptados. por poder transcende os limites deste espaço social.
Tanto S3 quanto S4 admitem que há uma
luta política frente à tentativa de melhorar a
formação educacional de pessoas com CONSIDERAÇÕES FINAIS
deficiência. S4 pontua que há uma diferença de
acesso à educação formal entre pessoas com Este trabalho objetivou analisar disputas
deficiência e não-deficientes. Além disso, outro entre diferentes grupos sociais no esporte
problema é a ainda ocorrente discriminação a paralímpico brasileiro, em relação aos processos
estas pessoas. Segundo Ferreira (2009), embora de classificação de atletas. Com base nos dados
as matrículas de pessoas com deficiência apresentados, nota-se que existem disputas
estejam aumentando na rede de ensino, as sociais entre alguns grupos. Um em especial, os

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526 Marques et al.

classificadores, expressa destacável violência alguns dos entrevistados, a tomada de certa posição
simbólica, visto que além de executarem as de vanguarda do setor de classificação no Brasil em
avaliações, ainda controlam tais protocolos. Deste relação ao resto do mundo, quanto à formação e
modo, assumem certa posição de poder frente à meios de atuação de classificadores, assim como na
organização paralímpica e todos seus agentes, que busca por sua qualificação e atuação mais próxima
têm suas formas de atuação dependentes e a treinadores, equipes e atletas.
influenciadas pelos processos de classificação, e A pesquisa qualitativa aponta para
dificuldades de ascensão social limitada por categorias e objetos destacados pelos agentes
condições muitas vezes externas ao subcampo no subcampo e procura expressar o sentido de
paralímpico, como a perspectiva de carreira de seus discursos e ações. Deste modo, a
treinadores e a educação formal de pessoas com investigação sobre o habitus dos diferentes
deficiência. Tal poder se deve ao fato de a grupos se apresenta como trabalho constante.
classificação de atletas ser considerada, Com base nos dados apresentados, sugere-se para o
sociologicamente, uma forma de controle social desenvolvimento do movimento paralímpico
que delimita a estrutura e o processo de brasileiro e diminuição de algumas diferenças
operacionalização do esporte paralímpico (WU; sociais deste espaço, a continuidade de iniciativas
WILLIAMS; SHERRIL, 2000). ligadas à melhoria dos processos de classificação,
De forma geral, a entrada de sujeitos neste assim como de capacitação e orientação de novos
grupo de maior poder em relação à classificação se classificadores, treinadores e atletas, objetivando
dá com base em aquisição de capital cultural (entre aproximar seus trabalhos e facilitar uma interação
outras formas, expresso pelo Ensino Superior mais produtiva entre os diferentes grupos no
formal) e simbólico (domínio sobre processos e subcampo. Além disso, programas de incentivo à
protocolos). contratação de treinadores e a necessidade de
É possível pontuar duas tendências ligadas à políticas públicas de melhoria em condições de
formação de classificadores no Brasil: uma educação formal de pessoas com deficiência.
próxima a certa democratização do conhecimento Aponta-se como possibilidade de trabalhos
específico, na qual são oferecidos cursos a um futuros: a investigação relativa ao discurso e
público em especial, o que pode representar uma habitus de outros agentes deste espaço, como
mudança no modo de transmissão de capital treinadores esportivos, por exemplo, além de
simbólico neste meio, por meio de cursos de abordagens sobre temas amplos como a carreira
formação; e outra ligada a certa limitação, pelos profissional dos treinadores e as perspectivas e
pré-requisitos exigidos (habitus) para que o sujeito processos de educação formal para pessoas com
se torne um classificador. É citada ainda, por deficiência. .

RESEARCH ON SOCIAL SETTINGS OF PARALYMPIC SPORTS IN BRAZIL: PROCESS FOR CLASSIFICATION


OF ATHLETES
ABSTRACT
This study aimed to investigate and define interaction ways and social disputes in Brazilian Paralympic movement, relative the
procedures for classification of athletes, based on Pierre Bourdieu’s concepts. The methodology was based on semi-structured
interviews with 4 athletes (physical or visual disabilities, practitioners of different sports - swimming, goalball, rugby and wheelchair
basketball) and 4 administrators (2 active in technical functions and 2 in administrative functions at the Brazilian Paralympic
Committee). The data analysis was based on the Collective Subject Discourse method and its methodological tools (keyword phrases;
central ideas; anchors; tools of discourse analysis). Results stand out as: classification protocols, as well as the performance and
training of new classifiers represent social tensions in this area; classifiers have an important symbolic power in the sub-area; Other
agents, like coaches and athletes, have reduced chances of ascent due the unfavorable social conditions.
Keywords: Paralympic. Classification. Pierre Bourdieu.
.

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Endereço para correspondência: Renato Francisco Rodrigues Marques, Escola de Educação Física e Esporte de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Avenida Bandeirantes, 3900, CEP:
14040-907, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP., Brasil. E-mail:
renatomarques@usp.br

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