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A verdade é sempre maior.

Por Dr. Levy Bastos

A Jesus Cristo foi feita a pergunta: “O que é a verdade? ” (Jo. 18,38).


Hoje esta mesma questão vem casada com uma outra: Onde se pode
encontrá-la? Estas questões perturbam a muitos e há muito tempo. Na
tentativa de encontrar respostas satisfatórias para as mesmas, não poucos
empenharam e ainda empenham muito tempo e energia. Outros houve (e ainda
há) que julgam ter alcançado o seu alvo e se agarram tenazmente às suas
convicções, movidos e assegurados pela certeza de não estarem mais
vagueando à busca da verdade. Há aqueles, entretanto, que não se contentam
somente em ter encontrado uma verdade, mas procuram convencer quem está
por perto de que fora de sua verdade não há salvação. Se aferram às suas
convicções crendo piamente que nelas, e somente nelas, há algo pelo qual
vale a pena viver (e morrer). Existem, inclusive, casos extremos e absurdos de
pessoas que são capazes de matar os que pensam diferente de suas
verdades. São intransigentes com tudo e com todos que direta ou
indiretamente ameaçam pôr em dúvida suas convicções. Seu lema de vida soa
algo como: “todas as vozes discordantes devem ser silenciadas”.
No quotidiano de nossas vidas somos desafiados a superar o engano e
nos aproximar daquilo que julgamos ser verdadeiro. Esse exercício é salutar e
mais que recomendável. Quem busca o acerto em suas opções pessoais está
perto de uma existência realizada. É, portanto, um indicativo de maturidade
essa busca pelo que é correto, pelo que é verdadeiro. Seja a verdade
existencial, que também podemos chamar de coerência de vida, seja pelo que
é verdadeiro no nível dos conceitos e das ideias. Mas nesta busca vamos nos
apercebendo que se trata de algo que dura a vida toda, uma vez que
alcançamos sempre a verdade em suas partes integrantes e não em sua
totalidade. A verdade se deixa conhecer às apalpadelas, paulatinamente.
Todos os dias nos conhecemos melhor e melhor detectamos nossas
contradições. No transcurso da vida é que vamos superando o “engano” e o
obscuro que há em nós e tornamo-nos mais verdadeiros conosco mesmos e
com nossos semelhantes. Isso não é diferente no nível das ideias e
convicções. O que achávamos ontem ser uma verdade insofismável, hoje, no
convívio com outras pessoas, as relativizamos e entendemos que precisam ser
reformuladas, para, aí sim, atender às demandas pelo que é verdadeiro no
tempo que se chama hoje. Não se trata, entretanto, de falseamento da
verdade. Antes que isso, nossas mudanças de opinião ao longo da vida podem
indicar um processo fecundo e harmonioso de crescimento e maturidade.
Passamos a olhar a realidade com mais serenidade e enriquecidos pelo olhar e
perspectiva daqueles que nos rodeiam. Isso prova que, de fato, aprendemos
em comunhão. No convívio com os outros é que divisamos melhor os objetos
turvos ou opacos que se apresentam diante de nós e nos habilitamos, desta
forma, a melhor analisá-los e a interpretá-los.
A busca sincera pela verdade também nos faz saber que a mesma (toda
forma de verdade) é uma grandeza maior que nossa capacidade sempre
limitada de percepção e apreensão. De conhecimento mesmo. A realidade é
uma grandeza transcendente. Ela é algo mais, sempre maior, mais alto e mais
profundo que nossos instrumentos de apreensão e compreensão. Nossa
relação com a verdade se dá muitas vezes hesitantemente. Vamos tateando
aqui e ali, procurando algo ou alguma coisa que nos complete, que nos faça
mais seguros, num mundo de tantas incertezas. Mas quem se aplica a fundo
nesta tarefa não pode se sentir como alguém que chegou a um porto e ali
ancorou sua embarcação. A segurança está mais na busca pela verdade (que
deve durar toda a vida) do que no encontro da mesma. Buscar a verdade com
coração sereno e atitude humilde acaba por se transformar, neste caso, numa
atitude e num projeto de vida. Numa forma de viver. Não é, pois, sem motivo
que Paulo diz que “em parte, conhecemos, e em parte, profetizamos” (1. Co.
13,9).
Vemos sempre as coisas limitados por nossa perspectiva. Nosso olhar
está condicionado pelos “óculos” que nos dão uma compreensão parcial do
mundo e da realidade que nos rodeia. Mesmo a realidade que está diante de
nós não pode ser conhecida plenamente. Ela deve ser interpretada. Nuances
ou detalhes pequenos podem nos turvar nosso entendimento. Todo
conhecimento é, assim, uma conquista provisória. Hoje sabemos melhor sobre
as coisas do passado, e amanhã entenderemos com mais acerto sobre as
coisas que hoje ainda não nos são claras. Dia após dia são acrescentados
dados novos que nos permitem superar incompreensões ou compreensões
parciais que podem e devem ser refeitas. Isso acaba por nos dar mais
humildade quanto ao que sabemos ou julgamos ser verdadeiro. Não tem,
portanto, o menor sentido, toda atitude intolerante ou engessada. Todo dia é
tempo de aprender algo novo. Todo dia abrem-se diante de nós novas
oportunidades de rever ou aprofundar conceitos, idéias e opiniões. Ninguém
precisa permanecer estático em sua forma de entender o mundo e as coisas da
vida.
Aqui cabe estabelecer uma distinção entre os saberes. Uma verdade
matemática ou lógica está situada num âmbito onde há mais probabilidades de
que sejam verdades objetivas. Daí falarmos de ciências exatas ou ciências da
natureza como sugeriu o filósofo alemão Wilhelm Dilthey. Em contrapartida, há
maior flexibilidade quando tratamos das ciências sociais ou humanas. Estas
eram chamadas pelo mesmo Dilthey de ciências do espírito. Os conceitos da
sociologia ou da psicologia são tão verdadeiros quanto os da física ou da
química, mas o são em um outro nível. Quando dizemos que a psicanálise fala
da existência do id, do ego e do superego não podemos pensar que isso perca
o valor porque não possa ser “comprovado” mediante o uso de um instrumento
como um microscópio. A psicologia trabalha numa esfera diferenciada de
verdade, mas não menos importante e séria. Isso vale para todas as demais
ciências, para todas as outras formas de saberes.
Em nosso caso mais específico, quando falamos da fé cristã devemos
ter o cuidado de identificar em que nível estão ancoradas nossas verdades.
Nem sempre deu certo usar acriticamente critérios ou princípios de outras
ciências para autenticar as verdades da fé. Quem crê, não precisa de
documentação científica para isso. A ciência pode sim dar maior consistência
para a fé, mas não se pode esquecer que a fé é um mistério da graça. É,
portanto, um dom de Deus. Cristo é o autor e consumador de nossa fé (Hb.
12,2).
No âmbito da fé não cabe também a pretensão de já ter alcançado toda
a verdade ou de já ter chegado ao alvo de nossas vidas. Todos os dias somos
desafiados por Deus a continuar firmes na caminhada da fé. (Fp. 3,12-16). O
cristão que se agarra às suas convicções julgando ser ele o único dono da
verdade não mostra humildade ou desejo de aprender algo mais. Está tão
seguro de si que acaba não sendo transformado. Esse é o destino de toda
pessoa que é cheia de grandes certezas. Ela é como uma árvore que já não
pode mais dar frutos, visto que estagnou seu crescimento. Esse encarna uma
forma moderna do antigo e sempre novo fanatismo de sempre, posto que faz
de suas convicções a expressão explícita e perfeita da vontade de Deus.
Daquilo que julga ser a vontade de Deus.
Em Atos do Apóstolos 10,9-16 é relatada a visão que Pedro recebeu de
Deus quando teve uma experiência extática com Deus. A ele foi dada a ordem
de matar e comer alguns animais que desciam diante dele dentro de algo que
lembrava um grande lençol. Mesmo tendo ouvido a voz do alto (que depois se
revelou ser a voz de Deus) dando-lhe a ordem explícita de matar e comer, ele
se recusou a fazê-lo. Suas convicções religiosas o impediam. Sua verdade era
mais forte que a voz de Deus. Seu jeito de pensar e entender as coisas (por
mais bem-intencionadas que fossem) acabaram por ocupar o lugar de Deus. É
como se ele quisesse ser mais santo que o Santíssimo Deus. Sua
intransigência foi maior que sua humildade para aprender algo mais de Deus.
Em certo sentido, Pedro é representativo de um sem-número de cristãos
e cristãs que não estão dispostos a mudar suas convicções, mesmo quando as
mesmas se revelam absolutamente obsoletas e inaceitáveis para os nossos
dias. Estes lembram o soldado japonês que permaneceu numa ilha nas
Filipinas por 29 anos depois de a Guerra ter acabado. Se recusou a aceitar os
fatos da vida: a guerra cessou e a vida precisava tomar nova direção. Inúmeras
tentativas foram feitas visando a convencê-lo de que os japoneses haviam
perdida a guerra e que agora viviam-se tempos de paz. Hiroo Onoda se
agarrou à sua verdade, desconsiderando os fatos da vida, por isso mesmo é
que preferia a morte, à rendição.
Muitas vezes mudar de idéia e adotar novos conceitos na vida é tão
difícil que muitos preferem não o fazer. Não são capazes de mudança, de
conversão mesmo, posto que converter-se não é somente adotar uma nova fé.
Converter-se é mudar de mente. Adotar nova forma de ver a vida e o mundo.
Não é, pois, sem motivo que Paulo nos exorta a que nos transformemos para
que, assim, alcancemos renovação de nossa mente (Rm 12,1-2). Neste
contexto Martin Lutero dizia que o cristão deveria viver toda a sua vida como
um permanente ato de conversão. É verdade que nossas convicções nos dão a
sensação de segurança, num mundo marcando pela volatilidade e pela
transformação. As novas tecnologias de comunicação são consideradas hoje
defasadas com poucos anos de uso. Vivemos sim num mundo da
descartabilidade. A preservação de preceitos e concepções do passado
funciona, neste contexto, como uma metáfora da imortalidade. Quanto mais
intensamente nos afixamos a estas nossas verdades, mais seguros parecemos
estar. Mas isso não passa de uma quimera, nada mais.
No âmbito da fé cristã é preciso sempre estar despertos para o fato de
que não há compatibilidade entre o ideal de vida no seguimento de Cristo e
uma atitude de arrogância. Estamos no âmbito do provisório. Vivemos ainda
sob a expectativa da ressurreição final. Estamos limitados pela realidade da
historicidade e do tempo e ainda não entramos na dimensão da eternidade. O
nosso conhecimento de tudo que nos cerca e também do que há de vir está
condicionado por nossa existencialidade. Esperamos pela chegada do dia
quando nos será dado a conhecer todas as coisas, como elas de fato são.
Conheceremos a nós mesmos não mais em parte, mas como somos
conhecidos (1. Co. 13,12). Todavia, enquanto não atingimos este novo estado,
estamos sendo chamados por Deus a continuar crendo. E quem crê, vê o que
é invisível. Mas vê em parte. A totalidade é uma dádiva da vida futura.
A certeza da fé é algo que se tem no encontro com Deus. É dádiva de
Sua graça infinita. E se provém da graça, não é fruto do empenho ou esforço
intelectual humano. É mesmo um mistério que nos lembra o quanto somos
dependentes DEle. O conhecimento de Deus e de Suas verdades chega até
nós como o resultado de nossa comunhão com Ele. Chega para todos os que
se aproximam DEle confiantemente, mas acima de tudo, dos simples e
humildes (Mt. 11,25-26). Se não fosse assim, não seria graça. Cai por terra,
portanto, toda presunção ou soberba de julgar-se como tendo alcançado o
estado do pleno conhecimento da verdade.
Deus não se viu constrangido por ninguém nem por nada fora de Si
mesmo para vir ao nosso encontro de modo redentor. Este mistério faz uma
grande diferença. Deus, sendo a mais real de todas as realidades, é também
um mistério que fascina e faz tremer (fascinosum et tremendum). Nossa fala
sobre Ele é sempre condicionada. Falamos no limite de nossa representação
conceitual. Não é sem motivo que muitas vezes o mais acertado é trocar a
teologia pela doxologia. Em vez de uma abordagem discursiva sobre Deus, o
mais adequado é “adorá-lo na beleza de Sua santidade” (Sl. 96,9). Sobre Deus
e nossas limitações de representação do divino (nas suas mais amplas
concreções), já se expressava de modo mordaz e realista o crítico literário
norte-americano Harold Bloom:

“Quem era, quem é Javé? Sem dúvida Ele continua nos dizendo, mas nem a
Tanaka, o Talmud, a Cabala, O Novo Testamento e o Alcorão juntos são
suficientes para abarcar tudo o que Ele nos diz e também o que Ele não nos
diz. Minha larga experiência como leitor de Shakespeare como professor que
ensina às pessoas a lê-lo, tem me feito desconfiar de todo tipo de aproximação
a Ele, pois Ele nos contém. ” (BLOOM, 2006, p. 136).

Nenhum proveito traz para o Cristianismo de hoje e de sempre a


impressão de que não podemos aprender com aqueles que nos são diferentes.
Isso é mais do que mera arrogância. É manifesto desconhecimento da história
antiga e recente do Cristianismo. Não foram poucas as circunstâncias nas
quais a verdade pareceu resplandecer mais fulgurante fora da Igreja. Com
relativa recorrência podemos constatar que podemos (e devemos) estar
abertos para os fatos da vida. Por meio deles nossa estreita forma de entender
Deus pode alcançar um horizonte novo. Ainda hoje os muitos “Magos do
oriente” percebem melhor e mais cristalinamente por onde segue a estrela de
Belém, que leva ao menino Jesus, a redenção da humanidade (Mt. 2, 1-12) do
que os cristãos.
A verdade é sempre maior! Isto sendo aceito poderá desencadear uma
atitude de humildade de implicações e de efeito vitalizador para Igreja cristã.
Especialmente a missão pode ser renovada sob esta nova forma de ver a vida,
posto que a ação missionária dos seguidores de Cristo não será mais
confundida com uma atitude obsessiva de “conquista” de novos adeptos.
Missão pode ser vista de outra forma: um encontro de partilha e de
aprendizado recíprocos. Isso não significa que os cristãos devam ou precisem
abdicar de sua identidade unificadora. Pelo contrário. O encontro dos diferentes
quando feito sob a base do respeito torna ambos os participantes mais
enriquecidos.
Cristo é a verdade que dá sentido àvida de milhões de pessoas, mas
esta verdade se refrata em nossas vidas e é sempre apreendida de modo
parcial. Não é improvável, pois que os que pensam diferente de nós possam
nos ajudar a melhor percebermos essa verdade chamada Jesus Cristo. Um tipo
de Cristianismo humilde está, por certo, mais próximo do projeto de Jesus de
Nazaré que, não tendo onde reclinar a cabeça, esteve sempre longe do poder
e dos palácios. Como já falamos aqui, o Cristianismo começou a viver um
estado de esgotamento exatamente quando trocou as vilas dos despossuídos
pelos palácios e pelas comendas. Quanto mais distante ele estiver do poder
temporal, mas humilde ele será e, assim, melhor habilitado a testemunhar de
modo eficaz do Cristo, redenção da humanidade. Assim terá assegurado seu
futuro.

Extraído do livro: Um Cristianismo de futuro, de Levy Bastos e Jürgen


Moltmann, Editora Editeo.

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