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F uncionária da Receita Federal em São Paulo há sete anos, Eleonora

Rigotti Meinberg tem um temperamento fazedor, uma ânsia para resolver


as coisas de maneira rápida e eficiente, que ela descreve assim: “Vou lá,
faço. Show! Próxima…”

No Natal de 2015, por exemplo, ela soube que alguns sem-teto –


maltrapilhos, cabelos desgrenhados, sem banho – estavam com vergonha
de participar de um almoço especial oferecido por uma igreja católica nas
imediações da Avenida Paulista. Rigotti juntou-se a um punhado de
colegas de trabalho e obteve autorização para abrir os banheiros do subsolo
de uma das delegacias mais movimentadas da Receita Federal na cidade,

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no bairro da Consolação. Para convencer os chefões, usou um argumento
de base tributária: “Se um morador de rua compra um Corote em um bar,
paga ISS e ICMS. É um contribuinte, como qualquer outro. Portanto, tem o
direito de usar os prédios públicos. Não existe cidadão de segunda classe.
Todo mundo paga por tudo.” Corote é uma bebida alcoólica barata com
sabores de frutas.

Durante cinco anos, no dia 25 de dezembro, os cinco chuveiros quentes do


prédio ficaram abertos para quem vivia nas ruas. Com o tempo, o serviço
foi batizado de “banho solidário” e passou a funcionar também em outras
datas comemorativas, como a Páscoa. Quando a pandemia chegou, o
prédio foi fechado e o banhão, suspenso. Rigotti ficou inconsolável.

Em abril de 2020, ela encontrou outra oportunidade de auxiliar os


pagadores de tributos sem casa para morar. Estava em home office quando
viu na tevê a notícia de que o governo iria liberar um auxílio emergencial,
em cinco parcelas de 600 reais. Os cadastros para receber o benefício
deveriam ser feitos online. “Na hora me deu um tilt: ‘Ué, mas a maioria
dos sem-teto não tem celular!’”, conta.

No dia seguinte, colocou máscara e escudo facial, vestiu camiseta, legging


e tênis. Escreveu em uma cartolina a frase “Cadastro! Consulta
Benefício Emergencial”, e prendeu em uma mochila, com um cabo de
vassoura. Vista de longe, lembrava aquele pessoal que anuncia a compra
de ouro. Foi oferecer ajuda na ladeira da Rua José Bonifácio, um dos
lugares no Centro de São Paulo onde há distribuição de marmitas.

Em segundos, viu-se cercada por um grupo de interessados. “Preenchi o


primeiro cadastro, coloquei meu número de celular, deu certo. Fui fazer o
do segundo e descobri que estavam exigindo um número diferente de
telefone para cada cadastro.” Ali mesmo, ela acionou uma corrente entre
familiares, amigos, parentes de amigos e amigos de parentes que se
dispuseram a fornecer seus números. “Foi até bom, porque as pessoas,
presas em casa, se sentiam ajudando”, diz.

Não demorou para a servidora pública perceber que o buraco era bem mais
embaixo. Mesmo os sem-teto que tinham benefícios aprovados não
conseguiam sacar o dinheiro na Caixa Econômica Federal. Às vezes, eram
impedidos por seguranças de entrar nas agências, porque estavam com
roupas sujas e carregavam grandes sacos com objetos pessoais. A confusão

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era grande. Alguns gerentes achavam que para pegar o benefício era
preciso ter uma conta-corrente, quando bastava o código enviado para o
celular cadastrado.

As pessoas em situação de rua ficavam por ali, sem conseguir colocar as


mãos no dinheiro a que tinham direito. Rigotti passou a ir com elas nas
agências, àquela altura com horários e número de funcionários limitados
por causa da Covid. No começo, precisou dar carteiradas para impor sua
presença. “Mostrei meu crachá de assistente técnico-administrativa da
Receita Federal”, conta, com uma expressão que pode ser lida como “fazer
o quê?”. Depois, travou amizade com os gerentes – e aí já transpunha direto
as complicadas portas giratórias, sacava o benefício e entregava aos sem-
teto.

D e abril a julho de 2020, Rigotti saiu de casa todos os dias entre as

11h e 12h30, para prestar assistência nas ruas. Lidou com casos absurdos,
como os dos mais excluídos entre os excluídos: os que não tinham
documentos. Uma identificação com foto era obrigatória para sacar o
auxílio emergencial, mas as unidades do Poupatempo, encarregadas de
emitir as carteiras de identidade, pararam de funcionar. “Comecei a encher
o saco de autoridades que conheço, pedindo providências. Estavam todas
confusas, sabiam menos do que eu, um caos. Alguns, irritados, me
bloquearam no celular.”

A certa altura, o Ministério Público Federal de São Paulo convocou


reuniões online com vários órgãos para achar maneiras de resolver os
problemas na distribuição do auxílio para os sem-teto. “Eleonora
participou de todas. Relatava os problemas, sugeria soluções e criticava
quando não dava certo”, recorda Priscila Costa Schreiner Roder, a
procuradora federal que puxou as conversas. “Com base nas informações
de Eleonora, conseguimos que a Caixa fizesse uma agência-modelo no
bairro da Sé, com funcionários treinados para atender à população carente
e tradutores para os imigrantes”, diz Anna Trotta Yaryd, promotora de
Justiça de Direitos Humanos da área da Inclusão Social do Ministério
Público do Estado de São Paulo.

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Na noite de 4 de maio de 2020, a atuação de Rigotti tomou contornos
tragicômicos. Ela foi chamada para participar de uma reunião virtual de
emergência, convocada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A pauta:
como ajudar os indocumentados. Quando entrou no encontro online,
topou com um clima de chumbo. As promotoras perguntavam por que
raios, àquela altura da pandemia, os órgãos responsáveis ainda não
estavam organizados para atendê-los. Os representantes da Polícia Civil
explicaram que as unidades do Poupatempo haviam sido fechadas em
respeito a um decreto estadual – eles até poderiam tentar emitir os RGs
usando malas portáteis que colhiam digitais, mas, com o fechamento dos
prédios públicos, não tinham onde fazer isso.

Rigotti entrou na conversa. “Eu disse: ‘Péra, vou arrumar um lugar!” Por
volta das oito da noite, chegou à unidade do Serviço Franciscano de
Solidariedade (Sefras), na Sé, onde funciona o Chá do Padre, um dos
maiores serviços de atendimento à população vulnerável de São Paulo.
“Ela perguntou se a polícia poderia fazer os RGs aqui. Os frades
responderam que sim. No dia seguinte, já apareceu com tudo articulado,
trazendo dois delegados. Uma iniciativa impressionante”, diz Rosangela
Pezoti, coordenadora de programas do Sefras.

P or dois dias, Rigotti foi até a Praça da Sé buscar indocumentados

para levá-los até o prédio onde funciona o Chá do Padre. Nesse período,
foram emitidos quatrocentos RGs. A procura ficou tão gigantesca que o
mutirão foi transferido para um prédio da Polícia Civil na região central.
“No fim, os policiais foram incríveis. E olha que teve uns bafos na fila,
como o cachorro de um sem-teto que mordeu um delegado”, conta.

Outros perrengues, claro, brotaram. Depois que os auxílios foram


liberados, destrinchar o complicado calendário de pagamentos virou
missão árdua. Rigotti fez cartazes explicativos e colou em lugares
estratégicos do Centro da cidade – inclusive em francês e espanhol, para
orientar os imigrantes haitianos e venezuelanos.

Nos meses mais dramáticos da quarentena, vários grupos se formaram


para levar comida para os sem-teto no Centro de São Paulo. Havia os que,

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vestindo camisetas iguais, davam as mãos e soltavam gritos de guerra
antes de distribuir quentinhas. Havia os que preferiam fazer uma oração
antes de começar as doações. Rigotti fazia o gênero solitário e rápido,
pouco afeito a gestos escancarados (“não gosto de abraços”). Nem alta nem
baixa, magrinha e com seus longos cabelos escuros quase sempre presos,
passava sem alarde pela crescente massa humana da população em
situação de rua – hoje quase 32 mil pessoas, de acordo com o último Censo
feito pela Prefeitura de São Paulo, 31% a mais que em 2019. Com 35 anos,
formada em políticas públicas pela USP, ela defende que, para ajudar
pessoas de um jeito eficiente, bom mesmo é despertar as instituições pagas
pelo povo para que assumam a bucha.

Casada com um advogado, Rigotti está grávida. Com medo dos efeitos da
Ômicron, só sai de casa para o essencial. As autoridades podem, por um
tempo, dormir sossegadas.

Angélica Santa Cruz

Repórter da piauí.

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