Você está na página 1de 105

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

SECRETARIA DE GOVERNO
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA

Revista Brasileira de Inteligência

ISSN 1809-2632
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidenta Dilma Vana Rousseff
SECRETARIA DE GOVERNO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Ministro Ricardo José Ribeiro Berzoini
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Diretor-Geral Wilson Roberto Trezza
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E ADMINISTRAÇÃO
Secretário Luiz Fernando da Cunha
ESCOLA DE INTELIGÊNCIA
Diretor Osvaldo Antônio Pinheiro Silva
Editor
Eva Maria Dias Allam
Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência
Alberto Emerson Werneck Dias; Ana Beatriz Feijó Rocha Lima; Ana Maria Bezerra Pina; Caio Márcio
Pereira Lyrio; Daniel Almeida de Macedo; Erika França de Souza Martins; Eva Maria Dias Allam; Fábio
de Macedo Soares Pires Condeixa; Marcos Cesar Gonçalves Silvino; Olívia Leite Vieira; Paulo Roberto
Moreira; Roniere Ribeiro do Amaral.
Capa
Carlos Pereira de Sousa e Wander Rener de Araújo
Editoração Gráfica
Giovani Pereira de Sousa
Revisão
Caio Márcio Pereira Lyrio; Erika França de Souza Martins
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração
Coordenação de Biblioteca e Museu da Inteligência - COBIM/CGPCA/ESINT
Disponível em: http://www.abin.gov.br
Contatos:
SPO Área 5, quadra 1, bloco K
Cep: 70610-905 – Brasília/DF
Telefone(s): 61-3445.8544 / 61-3445.8164
E-mail: revista@abin.gov.br
Tiragem desta edição: 3.000 exemplares.
Impressão
Gráfica – Abin
Os artigos desta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões emitidas não
exprimem, necessariamente, o ponto de vista da Abin.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência.
– n. 10 (dez. 2015) – Brasília : Abin, 2005 –
103p.
Semestral
ISSN 1809-2632
1. Atividade de Inteligência – Periódicos I. Agência Brasileira
de Inteligência.
CDU: 355.40(81)(051)
Sumário
5 Editorial

9 O PAPEL DA ESCOLA DE INTELIGÊNCIA PARA O AVANÇO DOS


ESTUDOS EM INTELIGÊNCIA NO BRASIL
Erika França de Souza Martins

21 ESPIONAGEM E DIREITO
Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

41 INTELIGÊNCIA: EM BUSCA DA SINGULARIDADE


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

51 A DIVISÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO EM 1977 E OS


IMPERATIVOS DE SEGURANÇA NACIONAL
Daniel Almeida de Macedo

63 A COOPERAÇÃO SINO-RUSSA: As implicações do “Pacto de Segurança


Cibernética” e as relações sino-russas
Guilherme Henrique Lima de Mattos

73 INCOMPREENSÃO DO CONCEITO DE INTELIGÊNCIA NA


SEGURANÇA PÚBLICA
Rodrigo Kraemer

83 MILITARISMO NA VENEZUELA
Nabupolasar Alves Feitosa

93 Resenha
JEFFERY, Keith. The secret history of MI6 1909-1949. [S.l.], EUA:
Penguin Books, 2011. 810p.
Rodrigo Barros Araújo

99 Resenha
OLSON, James M. Fair Play: The moral dilemmas of spying. Washington:
Potomac Books, 2006.
Marcelo Oliveira
Editorial

Chegar à décima edição da Revista Brasileira de Inteligência é, sem sombra de dúvida,


uma vitória. Ainda mais, se levarmos em conta que estamos alcançando esse número
em um momento em que o Brasil enfrenta grandes desafios. O que importa, todavia, é
que, a despeito de todas as intempéries naturais que as publicações têm de superar, a
RBI está mais viva do que nunca e cheia de fôlego para muitas edições. Ocorreu-me,
portanto, que, ao receber os insumos para elaborar este texto, nada seria mais justo do
que falar sobre a própria publicação, colocando-a em primeiro plano nesse momento.
Afinal, se cada edição teve 3 mil exemplares – à exceção da primeira com 2 mil –, já
foram 29 mil revistas publicadas e distribuídas. É um número respeitável em se tratando
de uma publicação voltada a um nicho tão específico. Isso sem contar os downloads
realizados a partir do site da Abin (www.abin.gov.br), até porque a RBI já nasceu com
uma versão digital.

A Revista Brasileira de Inteligência viu a luz do dia em 2005 com o propósito de refletir
e debater questões sobre a atividade de Inteligência, deixando de lado os estigmas e
estereótipos que embaçam e entenebrecem a visão. Por coincidência, chegamos ao dé-
cimo volume ao mesmo tempo em que completamos 10 anos de existência da revista.
Digo “coincidência” porque, na sua origem, a periodicidade da RBI era quadrimestral,
frequência de publicação que não pôde ser mantida por motivos diversos. O fato é que
é uma ótima coincidência! Assim, podemos comemorar o lançamento da décima edição
e levantar a taça para celebrar o jubileu de estanho da RBI.

Ao longo dessa década, mudanças aconteceram na revista. Exemplo natural disso é a


composição da Comissão Editorial, que começou relativamente enxuta e hoje congrega
uma equipe com representantes de diversas áreas e com múltiplas e distintas compe-
tências e expertise. Outra mudança foi também no projeto gráfico da RBI. As edições
de 1 a 4 seguiram a concepção original, mas, a partir do quinto volume, uma nova
capa trouxe consigo a proposta de um projeto gráfico mais contemporâneo, com mais
espaço para imagens e utilização de cores, além de diagramação diferenciada e com
uso de colunas para favorecer a legibilidade, buscando equilibrar a sensação visual com
as informações gráficas. Enfim, a RBI nunca se acomodou e sempre buscou a inovação
e a renovação como instrumentos de diálogo com nossos leitores.

Todavia, uma questão não mudou desde o início: o compromisso da RBI com a reflexão
aprofundada sobre a atividade de Inteligência, buscando criar um ambiente propício ao
progresso e à evolução. Não é à toa que este décimo volume da RBI é aberto com um
artigo sobre o papel da Escola de Inteligência (Esint), unidade mais do que apropriada
para protagonizar estudos e pesquisas em Inteligência no Brasil. Some-se a isso o fato

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 5


de que a Esint, no âmbito do Sistema de Escolas de Governo da União (Segu), iniciou
processo de credenciamento para oferta de programas de pós-graduação lato sensu,
abrindo caminho para avançar ainda mais no campo dos estudos de Inteligência. No
artigo, intitulado “O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em Inte-
ligência no Brasil”, Erika França de Souza Martins defende o protagonismo – e por que
não dizer – a incumbência da Esint em fomentar e estimular a realização de pesquisas e
estudos direcionados para o progresso e a evolução da atividade de Inteligência.

A RBI 10 traz ainda o artigo “Espionagem e Direito”, que analisa aspectos jurídicos
da espionagem no direito internacional, tratando a abordagem jurídica do fenômeno
e a controvérsia sobre a licitude em tempos de paz. No direito brasileiro, Fábio de
Macedo Soares P. Condeixa expõe precedentes históricos e se propõe a fazer uma
análise crítica da legislação.

Por falar em análises, a décima edição da RBI apresenta artigo de Marcelo Oliveira e
Eder Nonato sobre as características da Inteligência, considerando três acepções, seja
como atividade, como conhecimento, seja como organização. Em “Inteligência: em
busca da singularidade”, os autores exploram pontos de convergência e de distancia-
mento com relação a campos similares e apresentam proposta de singularizar a Inteli-
gência, expondo aspectos específicos comuns a esse tripé de sustentação.

Esta edição da RBI coloca, ainda, em perspectiva histórica a divisão do estado de Mato
Grosso, ocorrida em 1977, considerando o objetivo do governo de concluir projeto
geopolítico de conquista do “espaço vital”, e colocando o País na direção do desen-
volvimento com segurança. Em “A divisão do estado de Mato Grosso em 1977 e os
imperativos de segurança nacional”, Daniel Almeida de Macedo relembra a campanha
Marcha para o Oeste, cuja expansão e ocupação territorial eram formas de afirmação
da soberania e de projeção de poder. Acontece que no Brasil, o “espaço vital” sempre
esteve dentro do seu próprio território. Para o autor, a divisão do estado de Mato
Grosso constitui expressão concreta dessa conjuntura histórica.

Em meados do primeiro semestre de 2015, Rússia e China assinaram um novo acordo


de segurança cibernética, em que se comprometeram a incrementar o fluxo de infor-
mações de inteligência, bem como não lançar ataques cibernéticos um contra o outro e
alertar sobre ataques provenientes de terceiros. Quais as implicações desse novo acor-
do no que toca as relações entre esses países? Essa é a tônica de “A cooperação sino-
-russa: as implicações do Pacto de Segurança Cibernética e as relações sino-russas”,
artigo de Guilherme Henrique Lima de Mattos em que se lança um olhar sobre a coo-
peração China-Rússia – cooperação essa que, embora tenha sido desenvolvida desde o
fim da União Soviética, atingiu um patamar mais estável ao longo dos anos 2000, com
acordos nas áreas militar, econômica, política e cultural.

A Inteligência, na visão dos autores clássicos, é descrita como produtora de conheci-


mentos para assessoramento ao escalão superior, estando inserida no processo deci-

6 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


sório de alto nível. Mas o processo de construção e maturação da atividade de Inte-
ligência nos órgãos de justiça criminal brasileiros privilegiou o aspecto investigativo e
operacional. Partindo dessa premissa, a RBI 10 apresenta artigo em que o autor vas-
culha os motivos que levaram à incompreensão (ou seria acomodação?) do conceito,
mapeando fatores de ordem cultural e histórica. Seria, nessa perspectiva, a Inteligência
uma espécie de investigação mais apurada? E onde fica o aspecto estratégico nesse
contexto? Eis algumas das reflexões que Rodrigo Kraemer se propõe desenvolver em
“Incompreensão do conceito de Inteligência na segurança pública”.

A Venezuela é seguramente um dos países que passou pelas mais profundas transfor-
mações nas últimas décadas. Teria a dimensão transformadora alcançado um patamar
marcado pelo militarismo? Teriam militares passado a assumir funções tradicionalmente
civis a ponto de remodelar a relação das Forças Armadas com o Estado? É o que se
propõe a discutir Nabupolasar Alves Feitosa em “Militarismo na Venezuela”.

Como esperado, a RBI traz as tradicionais resenhas. Desta feita, somos convidados
a saber mais sobre The secret history of MI6 1909-1946, obra em que os primeiros
40 anos de existência do Serviço Secreto Britânico são relatados por Keith Jeffery,
conceituado historiador que recebeu, do próprio MI6, a incumbência e o aval para
produzir o livro.

Na outra resenha que a RBI 10 nos traz, somos apresentados a The moral dilemmas of
spying, livro de James Olson que, embora originalmente lançado em 2006, permanece
plenamente atual, como nos garante o resenhista: “...o livro é alicerçado por vigas mes-
tras que não perdem a atualidade, justamente por inserirem elementos intrinsicamente
atemporais...”. Com efeito, a indagação se algo é moralmente aceitável no mundo
prático da Inteligência é recorrente e, para falar a verdade, absolutamente necessária.

Enfim, a 10ª edição da RBI se une aos números anteriores no compromisso inabalável
com a pluralidade, com a abertura para o debate honesto e a reflexão crítica sobre a
atividade de Inteligência, buscando o aprimoramento dessa atividade tão singular (em
qualquer acepção) e, ao mesmo tempo, tão complexa.

É com o mais absoluto espírito de gratidão e admiração que expresso meu


agradecimento a todos que colaboraram com a RBI ao longo dessa década de
publicação! Muitíssimo obrigado!

Excelente leitura a todos e até as próximas edições!

Osvaldo A. Pinheiro Silva


Diretor da Escola de Inteligência/Abin

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 7


O PAPEL DA ESCOLA DE INTELIGÊNCIA PARA O AVANÇO DOS
ESTUDOS EM INTELIGÊNCIA NO BRASIL

Erika França de Souza Martins*

Resumo

A Escola de Inteligência (Esint), unidade da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vem


participando de processo de credenciamento de escolas de governo para oferta de pós-
-graduação lato sensu. Os cenários internacional, nacional e institucional são propícios para
que a Esint assuma papel protagonista com vistas ao avanço dos estudos e pesquisas em
Inteligência no Brasil.

A Escola de Inteligência (Esint), uni-


dade da Agência Brasileira de In-
teligência (Abin), é integrante do Sis-
Inteligência (Intelligence Studies) (GILL;
PHYTHIAN, 2012; JOHNSON, 2010;
MARRIN, 2008, 2014). Consistirá, as-
tema de Escolas de Governo da União sim, em um marco para a Inteligência
(Segu). À semelhança de outras escolas brasileira, uma conquista sem preceden-
do Segu, tais como a Escola Nacional de tes nesta singular área do conhecimento.
Administração Pública (Enap) e a Esco- Este artigo discute a relevância e a pre-
la de Administração Fazendária (Esaf), a mência do desenvolvimento dos estudos
Esint vem participando de processo de e pesquisas em Inteligência no Brasil,
avaliação para credenciamento como considerando a realidade e as deman-
instituição de pós-graduação lato sensu. das nos cenários internacional, nacional
Cumpridas as etapas do processo e apro- e institucional, neste caso, no âmbito da
vado o credenciamento pelo Ministério própria Abin.
da Educação (MEC), a Esint deverá ofe-
recer, pela primeira vez em sua história,
um curso em nível de pós-graduação, Contexto Internacional
que focará o tema do gerenciamento da
Atividade de Inteligência. Desde 1975, vem se expandindo a li-
teratura sobre a Inteligência de Estado
Esse credenciamento será um passo im- – National Security Intelligence (JOHN-
portante dado pela Esint para ingressar SON, 2010). Em 1955, Sherman Kent
e avançar no campo dos Estudos de (apud MARRIN, 2014, p. 2) já havia

* Especialista em Língua Inglesa e Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília e Dou-


tora em Language and Literacy Education pela University of Georgia, EUA.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 9


Erika França de Souza Martins

observado que a Inteligência como em estudos mais amplos de governo e


profissão carecia de uma literatura, o que política externa, sobretudo nos departa-
impedia que os conhecimentos do ramo mentos universitários de ciência política,
fossem apreendidos e disponibilizados relações internacionais e história. Entre
a outras pessoas. Gradativamente, nas os temas pesquisados, incluem-se: de-
décadas seguintes, foi crescendo o reco- finições e escopo da Inteligência, falhas
nhecimento da importância de se desen- e fracassos, metodologias úteis, contro-
volver um conjunto de conhecimentos le da atividade, área operacional, ética,
no campo da Inteligência – uma literatu- efetividade, estudos comparados e res-
ra cumulativa, específica e singular – que ponsabilização versus eficiência.
fornecesse a fundamentação conceitual e
teórica para o aprimoramento dessa ati- Nos Estados Unidos da América (EUA),
vidade e profissão. tradicionalmente o governo desenvol-
ve estudos e pesquisas em Inteligência
por meio do Centro de Estudos de In-
[...] o campo dos Estudos de teligência (CSI) da Agência Central de
Inteligência é por natureza Inteligência (CIA) e do Centro de Pes-
interdisciplinar e multidisciplinar quisas em Inteligência Estratégica (CSIR)
e está inserido em estudos da Universidade de Inteligência Nacional
mais amplos de governo e (NIU). A participação do setor acadê-
política externa, sobretudo nos mico nessa área intensificou-se após os
departamentos universitários ataques terroristas de 11 de setembro de
2001, com a criação de programas de
de ciência política, relações
Estudos de Inteligência em faculdades e
internacionais e história. universidades do país, com o foco dual
em teoria e prática. Em 2009, havia pelo
Em vários países, instituições governa- menos 845 cursos de Inteligência sendo
mentais e acadêmicas têm contribuído oferecidos no meio acadêmico estaduni-
para o avanço dos conhecimentos em dense, nos níveis de graduação e mestra-
Inteligência, ampliando as iniciativas nas do (LANDON-MURRAY, 2013, p. 746).
áreas de ensino, pesquisa e publicações. Um dos programas de graduação mais
No meio acadêmico, cunhou-se o termo tradicionais e conceituados é oferecido na
Intelligence Studies (Estudos de Inteli- Universidade Mercyhurst, uma instituição
gência) para designar “a contribuição que privada situada no estado da Pensilvânia.
a educação superior faz à interpretação O público alvo do programa são pessoas
do passado da prática da Inteligência de interessadas nessa carreira, e seu objetivo
Estado, à compreensão do seu presente é formar profissionais que possuam co-
e à previsão do seu futuro” (MARRIN, nhecimentos sobre a teoria dos Estudos
2014, p. 1). Como complemento acadê- de Inteligência, bem como proficiência na
mico desta prática, o campo dos Estudos prática de análise em Inteligência. Não
de Inteligência é por natureza interdis- é de surpreender, portanto, que a maior
ciplinar e multidisciplinar e está inserido comunidade de pesquisadores do tema

10 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em inteligência no Brasil

esteja nos EUA, onde o corpo docente Inteligência (CASIS) e o Instituto Aus-
em diversas universidades é composto de traliano de Oficiais de Inteligência Pro-
oficiais de Inteligência que atuam ou atu- fissionais (AIPIO). Muitos estudos são
aram em órgãos governamentais, a exem- publicados em renomadas revistas aca-
plo de William Nolte e Stephen Marrin. dêmicas: Intelligence and National Secu-
rity, International Journal of Intelligence
[...] observa-se um empenho and CounterIntelligence, e Studies in
explícito em se construir uma Intelligence (esta, da CIA), entre outras.
“cultura de Inteligência” que Fora dos EUA prevalecem os cursos de
reflita a abertura pós-reformas e pós-graduação em Inteligência. Na Es-
busque desenvolver não apenas panha, mediante parceria com o Centro
aumento da conscientização Nacional de Inteligência (CNI), foram es-
da importância de uma
tabelecidos em Madri, em 2005, na Uni-
“Inteligência democrática”,
versidade Rei Juan Carlos, a Cátedra de
como também maior prontidão
Serviços de Inteligência e Sistemas De-
por parte de acadêmicos e
mocráticos e, em 2006, na Universidade
outros profissionais no sentido
Carlos III, o Instituto Juan Velázquez de
de emprestarem sua expertise Velasco de Investigação em Inteligência
à comunidade de Inteligência. para a Segurança e a Defesa. Em 2009-
2010 graduaram-se os primeiros 30
Em outros países, como Inglaterra, Ro- alunos no Mestrado em Análise de Inte-
mênia, Turquia e Espanha, o governo ligência, conduzido pelas duas universi-
também tem apoiado a pesquisa em dades. A revista espanhola Inteligencia y
Inteligência, principalmente mediante seguridad: Revista de análisis y prospec-
a atuação de associações dedicadas ao tiva foi lançada em 2006.
tema. No meio acadêmico, verifica-se
o envolvimento e participação crescen- No Reino Unido, um levantamento de
tes de pesquisadores na Inglaterra, Ca- Paul Maddrell em 2003 (apud GILL;
nadá, França, Alemanha, Israel, Itália, PHYTHIAN, 2012, p. 14-15) identifi-
Áustria, Grécia, Escandinávia e Austrália cou doze universidades que ofereciam
(JOHNSON, 2010). Os especialistas se cursos de graduação sobre algum aspec-
encontram e apresentam seus trabalhos to de Inteligência, para cerca de 1000
em conferências promovidas por orga- alunos. Em nível de pós-graduação, seis
nizações tais como a Seção de Estudos universidades britânicas atualmente ofe-
de Inteligência da Associação de Estudos recem cursos específicos em Inteligên-
Internacionais (ISA), a Associação Inter- cia, com aproximadamente 120-150
nacional para a Educação em Inteligên- alunos: Aberystwyth, Birmingham, Bru-
cia (IAFIE) (ambas sediadas nos EUA), o nel, Buckingham, King’s College London
Grupo de Estudos Britânico sobre Inteli- e Salford. Na Espanha e no Reino Unido,
gência e Segurança (SISG), a Associação assim como em outros países europeus,
Canadense de Estudos de Segurança e observa-se um empenho explícito em

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 11


Erika França de Souza Martins

se construir uma “cultura de Inteligên- ponto de vista da abertura democrática


cia” que reflita a abertura pós-reformas e dos cânones da pesquisa acadêmica,
e busque desenvolver não apenas au- muitos véus caíram nas três últimas dé-
mento da conscientização da importân- cadas, em decorrência de investigações
cia de uma “Inteligência democrática”, governamentais sobre falhas e erros da
como também maior prontidão por parte Inteligência, acompanhadas do acentua-
de acadêmicos e outros profissionais no do empenho de pesquisadores para des-
sentido de emprestarem sua expertise à vendar “o lado oculto do governo”.
comunidade de Inteligência.

Reconhece-se a necessidade de A literatura de Inteligência ainda


mais estudos sobre as práticas é limitada em termos teóricos.
de Inteligência nos países em Conceitos significativos
desenvolvimento, bem como apresentados em publicações
de valorização do trabalho de mais antigas são, muitas vezes,
comunidades de pesquisadores esquecidos ou ignorados
fora do eixo dominante. em publicações recentes,
isto é, não há a prática de
Se, por um lado, tem se desenvolvido referenciar trabalhos antigos e
nas últimas décadas a literatura em In- de construir em cima do que
teligência e crescido o número de insti- já existe, mas sim a tendência
tuições acadêmicas dedicadas ao ensino de “reinventar a roda”.
e pesquisa nessa área do conhecimento,
por outro, estudiosos afirmam que per- Outro problema são as relações de des-
sistem significativos desafios a enfrentar
confiança ainda observadas entre os pro-
e lacunas a preencher.
fissionais de Inteligência e os acadêmicos,
Uma das principais dificuldades aponta- espelhando as clássicas dificuldades de
das diz respeito aos “densos véus de se- relacionamento entre o pessoal operacio-
cretismo” (JOHNSON, 2010, p. 7) que nal e os analistas dentro dos próprios ór-
envolvem o aparato de segurança de um gãos de Inteligência, referidas por alguns
país, em especial os organismos de Inte- autores (cf. GILL; PHYTHIAN, 2012, p.
ligência, que “se segregaram atrás de pa- 16). Há, contudo, uma visão otimista a
redes de secretismo” (GILL; PHYTHIAN, esse respeito, de que esse quadro vem
2012, p. 13). Loch Johnson (2010, p. mudando. Mark Phythian, por exemplo,
28), porém, salienta que, ainda que observa que no Reino Unido, ao longo
transparência total não seja possível nem da última década, as agências de Inteli-
recomendável, em uma democracia a gência e a comunidade acadêmica vêm
população deve ter ao menos uma com- estreitando os laços, mostrando disposi-
preensão básica de suas instituições go- ção para conversações e debates. Além
vernamentais, inclusive do setor de Inte- disso, acadêmicos foram convidados a
ligência. O autor afirma também que, do escrever histórias oficiais de Inteligência

12 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em inteligência no Brasil

e, para tal, receberam acesso aos arqui- construir em cima do que já existe, mas
vos das agências britânicas (JOHNSON; sim a tendência de “reinventar a roda”.
SHELTON, 2013, p. 115). Stephen Marrin (2014) sugere uma sé-
rie de passos para aprimorar o rigor e
Uma crítica recorrente feita pelos es- a coerência dos Estudos de Inteligência
pecialistas, que indica uma lacuna a ser como disciplina acadêmica, por meio da
preenchida, é o predomínio da literatura construção de uma infraestrutura que
anglófona e, dentro desta, de autores e possibilite criar, arquivar e disseminar o
conteúdos dos EUA e da Inglaterra. Re- conhecimento. Os passos são: 1) docu-
conhece-se a necessidade de mais estu- mentar o que se conhece; 2) avaliar se
dos sobre as práticas de Inteligência nos o conhecimento possui lacunas; 3) tra-
países em desenvolvimento, bem como balhar para preencher essas lacunas; 4)
de valorização do trabalho de comuni- distribuir o conhecimento para aqueles
dades de pesquisadores fora do eixo do- que o desejam ou necessitam dele; e 5)
minante. Apesar de Johnson (2010, p. institucionalizar esses esforços.
5) se referir a “bolsões de pesquisa em
Inteligência” existentes no Brasil, Argen-
Nesse contexto, a Esint, como
tina, Polônia e Coréia do Sul, a escassez
de estudos e análises comparadas, de- escola integrante do Sistema
corrente da falta de informações sobre as de Escolas de Governo da
culturas de Inteligência em diversos paí- União (Segu), passa por uma
ses (incluindo Brasil, China, Índia, Japão fase promissora no que tange
e outras nações asiáticas), é uma lacuna à perspectiva de avanço dos
que carece ser preenchida (JOHNSON;
Estudos de Inteligência no país.
SHELTON, 2013, p. 114).

Outra crítica que se faz é a dificuldade Não obstante existirem desafios a supe-
de garantir o acúmulo de conhecimentos rar no campo dos Estudos de Inteligên-
de Inteligência ao longo do tempo. Esse cia, há o reconhecimento de que uma
campo do conhecimento possui livros e literatura de base já foi produzida, uma
revistas acadêmicas para documentar as linguagem comum, alcançada, e as áreas
“lições identificadas”, porém ainda não chave de estudo e debate, identificadas.
conta com um processo estruturado para Para Johnson & Shelton (2013, p. 120),
compilar e avaliar a literatura a fim de “o campo permanece em fluxo e, como
que esta seja agregada e se torne cumu- resultado, é um lugar empolgante para
lativa. A literatura de Inteligência ainda aqueles que possuem espírito pioneiro.
é limitada em termos teóricos. Concei- Temos o privilégio de moldar uma dis-
tos significativos apresentados em publi- ciplina acadêmica e, ao mesmo tempo,
cações mais antigas são, muitas vezes, de tentar melhorar a capacidade das de-
esquecidos ou ignorados em publica- mocracias de se protegerem e tomarem
ções recentes, isto é, não há a prática decisões melhores em um mundo que
de referenciar trabalhos antigos e de permanece perigoso e incerto”.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 13


Erika França de Souza Martins

Contexto Nacional escolas de governo para a formação e o


aperfeiçoamento dos servidores públicos
Ainda é incipiente a pesquisa acadêmi- (BRASIL, 1998). Na mesma tônica, a
co-científica no campo da Inteligência no Política Nacional de Desenvolvimento
Brasil. O “bolsão” aludido por Johnson de Pessoal (PNDP), instaurada pelo De-
(2010) referente ao nosso país parece creto no 5.707, de 23 de fevereiro de
corresponder aos trabalhos evidenciados 2006, para os órgãos da administração
em publicações feitas nas principais re- direta, autárquica e fundacional, atribuiu
vistas acadêmicas internacionais. Dignos a elas o papel de formação e desenvol-
de nota, entre os autores desses traba- vimento dos servidores públicos para
lhos, estão os brasileiros Marco Cepik provimento das competências necessá-
(2003, 2014), Priscila Antunes (2003), rias à melhoria das instituições públicas
Joanisval Brito Gonçalves (2014), Fábio (BRASIL, 2006). Como forma de apoio
Condeixa (2015) e Christiano Ambros à implementação da PNDP, o mesmo de-
(2014), além do norte-americano Tho- creto criou o Segu e, para coordenar o
mas Bruneau (2015). São poucos os sistema, designou a Enap. O Segu tem,
nomes. Certamente, sobejam possibili- entre seus objetivos, o de potencializar
dades de desenvolvimento de pesquisas as ações de capacitação dos servidores
nesse campo. públicos por meio de parcerias e coope-
rações entre as escolas de governo.
Nesse contexto, a Esint, como escola in-
tegrante do Sistema de Escolas de Go- Desde 2006, a Enap tem promovido
verno da União (Segu), passa por uma reuniões periódicas para institucionalizar
fase promissora no que tange à pers- a atuação conjunta e coordenada das es-
pectiva de avanço dos Estudos de In- colas de governo, buscando a consolida-
teligência no país. Esta perspectiva está ção de um sistema nacional para a ges-
diretamente relacionada ao almejado tão do conhecimento e da capacitação
credenciamento para oferta de curso de e formação de servidores públicos de
pós-graduação, correspondente ao re- forma ampla, integrada e sistemática. Em
sultado esperado para um processo que 2012, houve a elaboração do Protocolo
se iniciou há alguns anos com a articula- de Intenções, assinado em 13 de novem-
ção das escolas de governo federais em bro daquele ano por oito escolas (entre
torno de uma causa comum. elas a Esint) (BRASIL, 2012) e publicado
no Diário Oficial da União em 12 de ju-
As escolas de governo são estruturas nho de 2013. No fórum de discussões
diferenciadas na organização adminis- conduzido pela Enap, afloram temas de
trativa brasileira. A Emenda Constitu- interesse comum: marco regulatório dos
cional no 19, de 4 de junho de 1998, cursos de especialização e pós-gradu-
alterou o artigo 39 da Constituição Fe- ação lato sensu, troca de experiências,
deral de 1988 para incluir parágrafo es- desafios e possibilidades de educação a
pecífico (§ 2º) sobre a manutenção de distância, mecanismos de contratação de

14 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em inteligência no Brasil

docentes, problemas relativos à oferta e O próprio Segu assim entende a nature-


demanda de cursos de capacitação, en- za dessas singularidades:
tre outros assuntos relevantes (FONSE-
As Escolas de Governo distinguem-se
CA et al., 2015). dos centros acadêmicos tradicionais por-
que aliam em sua atuação a ação prática
e as transformações das mais diversas
Por ser a única instituição áreas do Estado à promoção de conhe-
oficial dedicada ao ensino e cimento teórico e da pesquisa (...) as
Escolas de Governo têm se esforçado
pesquisa em Inteligência de em oferecer cursos de Pós-Graduação
Estado, a Esint se diferencia voltados para a formação dos servidores
nesse cenário e deverá públicos do Estado, sempre com o foco
de aliar o conhecimento teórico à práti-
continuar se empenhando ca da Administração Pública. Assim o é
para cumprir com excelência porque o Estado não pode prescindir do
conhecimento gestado no campo acadê-
o seu papel institucional. mico, mas, de outra forma, também não
deve o Poder Público deixar de se valer
de toda a cultura consolidada na atuação
No que tange à busca do credencia- administrativa de seus gestores (BRASIL,
mento de instituições e cursos de pós- 2014, p. 2).
-graduação, a mobilização das escolas
O empenho do Segu no credenciamento
de governo iniciou-se a partir de 2009,
para oferta de cursos de pós-graduação
em resposta à extinção do credencia-
evidencia a importância que as escolas
mento especial de seus cursos lato sensu
de governo atribuem à aproximação com
naquele ano, por medida do Conselho
a academia e ao aprofundamento dos es-
Nacional de Educação (CNE). Uma re-
tudos e pesquisas, a fim de que possam
visão parcial da posição do CNE, ainda
desempenhar com excelência o seu papel
em 2010, estabeleceu a possibilidade
definido por lei, na PNDP. As ações de
do credenciamento regular, desde que
pesquisas correspondem “às atividades
as escolas fossem submetidas a proces-
de desenvolvimento e fomento de estu-
sos de avaliação pelo MEC. Ao longo do dos na área de atuação da escola, assim
período 2011-2014, o Segu afirmou- como as consequentes publicações sob
-se como um ativo fórum de discussão a forma de revistas ou produtos biblio-
e articulação, estabelecendo, sob a co- gráficos de natureza técnico-científica”
ordenação da Enap, processos de con- (FONSECA et al., 2015, p. 61). Portan-
versação e negociação com o CNE e as to, essas escolas têm muito a oferecer à
áreas do MEC envolvidas na regulação administração pública federal, não ape-
dos cursos de pós-graduação. Essas ini- nas nas áreas de formação e capacitação,
ciativas repercutiram no âmbito do MEC, como também na produção e no com-
que vem trabalhando para fornecer um partilhamento de conhecimentos aplica-
tratamento customizado às escolas de dos ao setor público.
governo, considerando suas singularida-
des em relação ao restante do sistema de A Esint, como integrante do Segu e co-
ensino superior brasileiro. participante do processo de busca desse

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 15


Erika França de Souza Martins

credenciamento, demonstra seu compro- A Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de


misso com os princípios e valores adota- 1999, que instituiu o Sistema Brasileiro
dos pelo Segu, participando ativamente de Inteligência (Sisbin) e criou a Abin,
das ações e iniciativas definidas conjun- preconiza, entre as várias competências
tamente naquele fórum. Por ser a úni- da Abin, “promover o desenvolvimento
ca instituição oficial dedicada ao ensino de recursos humanos e da doutrina de
e pesquisa em Inteligência de Estado, a Inteligência, e realizar estudos e pes-
Esint se diferencia nesse cenário e deverá quisas para o exercício e aprimoramento
continuar se empenhando para cumprir da atividade de Inteligência” (BRASIL,
com excelência o seu papel institucio- 1999, art. 4º, IV). Estas competências
nal. Especificamente quanto ao campo são exercidas pela Esint e correspondem
dos Estudos de Inteligência, a oferta do a sua missão, desdobrada em linhas de
curso de pós-graduação trará à Esint no- atuação que incluem a capacitação de
táveis possibilidades de avanço, propor- servidores da Abin e do Sisbin e a pes-
cionadas pelo engajamento do seu cor-
quisa e sua disseminação.
po docente e discente na construção de
uma cultura continuada de pesquisas e
publicações acadêmico-científicas. Será Os cenários internacional,
uma oportunidade ímpar de conjugar os nacional e institucional
especialistas em Inteligência com o uni- convidam a Inteligência
verso acadêmico. brasileira à reflexão e
à ação no campo dos
Contexto Institucional
Estudos de Inteligência.

Se as escolas de governo contribuem, As ações de ensino e pesquisa desenvol-


nos seus respectivos setores e áreas de vidas na Esint têm o foco na formação
atuação, para o aperfeiçoamento da ad- de recursos humanos e na ampliação de
ministração pública federal, por meio conhecimentos estratégicos em Inteli-
de ações de capacitação de servidores gência. As pesquisas, estudos e reflexões
públicos e por atividades de pesquisa teórico-doutrinárias em Inteligência e
que geram conhecimentos destinados temas afins retroalimentam as atividades
à formulação de políticas que visam ao de ensino, levando à incorporação de
bem público, a Esint percebe-se atuando novas práticas, tecnologias, abordagens
na vanguarda desse cenário, “formando metodológicas e alterações doutrinárias.
e capacitando servidores e realizando Reconhecendo que a qualificação acadê-
estudos e pesquisas na área da ativi- mica docente tem impacto direto na qua-
dade de Inteligência, indiscutivelmente lidade dos trabalhos, e em observância
estratégica e fundamental para a defe- à PNDP, a Esint firmou o compromisso
sa do Estado democrático de direito e de ampliar, diversificar e aperfeiçoar seus
a consecução dos interesses nacionais” eventos de capacitação, considerando os
(AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELI- tipos discriminados no Decreto nº 5.707
GÊNCIA, 2015, p. 11). (BRASIL, 2006, art. 2º, III), a saber: cur-

16 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em inteligência no Brasil

sos presenciais e a distância, intercâm- oferta de curso de pós-graduação lato


bios, estágios, seminários, congressos e sensu ratificará os esforços desta esco-
outros eventos (AGÊNCIA BRASILEIRA la de governo para promover a capaci-
DE INTELIGÊNCIA, 2015, p. 46). tação profissional e o aprofundamento
dos estudos acadêmico-científicos em
Inteligência, cumprindo assim a sua mis-
Perspectivas e Possibilidades são institucional legal de “promover o
desenvolvimento de recursos humanos e
Os cenários internacional, nacional e da doutrina de Inteligência, e realizar es-
institucional convidam a Inteligência tudos e pesquisas para o exercício e apri-
brasileira à reflexão e à ação no cam-
moramento da atividade de Inteligência”.
po dos Estudos de Inteligência. A Esint,
Abre-se uma porta que, no médio prazo,
como unidade do órgão central da In-
poderá contribuir para preencher a lacu-
teligência de Estado, é a protagonista
na no contexto internacional, à medida
desta oportunidade.
que as pesquisas desenvolvidas resultem
Fora do Brasil, verifica-se uma tradição em artigos publicados em revistas acadê-
consolidada, construída ao longo de micas estrangeiras.
quatro décadas, caracterizada por uma
Definitivamente, a Esint não pode-
agenda sofisticada que visa desenvolver
ria ter ficado à margem neste momen-
uma literatura cumulativa que reflita o
to tão significativo. Afinal, é papel
aperfeiçoamento das pesquisas em In-
da Inteligência brasileira escrever a
teligência, aproximando profissionais da
Inteligência brasileira. É prerrogativa da
área e acadêmicos, e buscando retirar os
“véus do secretismo”. De modo espe- Esint pesquisar e publicar sobre os Estu-
cial, há um chamado para que diversos dos de Inteligência do Brasil.
países, incluindo o Brasil, participem
Evidentemente, pesquisadores não
mais ativamente desse campo, a fim de
associados à Esint, inclusive estrangei-
preencher as lacunas concernentes a
ros, também têm esse direito – visto que
pesquisas e publicações sobre suas res-
a ciência é, por natureza, democrática e
pectivas culturas de Inteligência.
universal – e fato é que eles têm escrito
sobre o Brasil, porém às vezes em ter-
[...] é papel da Inteligência mos que mostram vieses que poderiam e
brasileira escrever a Inteligência deveriam ser evitados ou rebatidos. Tho-
brasileira. É prerrogativa da mas Bruneau (2015), por exemplo, em
artigo recente publicado na International
Esint pesquisar e publicar
Journal of Intelligence and CounterIn-
sobre os Estudos de telligence, construiu um quadro crítico
Inteligência do Brasil. questionável sobre a Abin, não por se
mostrar (bastante) desfavorável, mas sim
Nos contextos nacional e institucional, o unilateral. Em contrapartida, Fábio Con-
esperado credenciamento da Esint para deixa (2015, p.715), em artigo publica-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 17


Erika França de Souza Martins

do em outra edição da mesma revista, sofisticada e estruturada [do que os ór-


caracterizou aspectos da Abin de modo gãos de Inteligência menores do país]”.
mais equilibrado e isento, salientando
Este é o tempo; esta é a oportunidade
que, a despeito das dificuldades e res-
para profissionais, pesquisadores e espe-
trições enfrentadas, “a cooperação [in-
cialistas em Inteligência brasileiros res-
ternacional] em questões de Inteligência soarem suas vozes com mais vigor nos
deve ser conduzida pelo órgão central de cenários nacional e internacional, contri-
Inteligência do Brasil – a ABIN – que é buindo na linha de frente para a cons-
dotado de uma capacidade analítica mais trução da literatura da nossa Inteligência.

Referências

AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA. Portaria nº 249, de 21 de julho de 2015. Aprova o Pla-


no de Desenvolvimento Institucional (PDI) para a área de ensino da Agência Brasileira de Inteligência
(ABIN). Boletim de Serviço Especial, Brasília, DF, ano XVII, n. 1, 21 jul. 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998. Modifica o


regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos,
controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras
providências. Senado, Brasília, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
cao/Emendas/Emc/emc19.htm>. Acesso em: 2 dez. 2014.

BRASIL. Decreto n.º 5.707, de 23 de fevereiro de 2006. Institui a Política e as Diretrizes para o Desen-
volvimento de Pessoal da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, e regulamenta
dispositivos da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2004-006/2006/Decreto/D5707.htm>. Acesso em: 15 ago. 2015.

BRASIL. Lei no 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria
a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível em: < http:// www.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9883.htm >.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Audiência Pública Marco
Regulatório dos Cursos de Pós-graduação Lato Sensu Especialização; Formulário para Sugestões e
Contribuições. Brasília, 30 de julho de 2014. Disponível em:<http:// repositorio.enap.gov.br/hand-
le/1/1365>. Acesso em: 15 ago. 2015.

BRASIL. Escola Nacional de Administração Pública. Protocolo de intenções que entre si celebram as
instituições identificadas como Escolas de governo, integrantes do Sistema de Governo da União, coor-
denado pela Escola nacional de Administração Pública (ENAP). Brasília, 13 nov. 2012. Disponível em:
<http://antigo.enap.gov.br/files/protocolo_de_intencoes_versao%20assinada.pdf >.

BRUNEAU, Thomas C. Intelligence Reform in Brazil: a long, drawn-out process. International Journal of
Intelligence and CounterIntelligence, v. 28, n. 3, p. 502-519, fall 2015.
CEPIK, Marco; ANTUNES, Priscila. Brazil´s New Intelligence System: an institutional assessment. Inter-
national Journal of Intelligence and CounterIntelligence, v. 16, n. 3, p. 349-373, fall 2015.
CEPIK, Marco; AMBROS, Christiano. 2014. Intelligence, Crisis, and Democracy: institutional punctua-
tions in Brazil, Colombia, South Africa, and India. Intelligence and National Security, v. 29, n. 4, p.
523-551, 2014.

18 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


O papel da Escola de Inteligência para o avanço dos estudos em inteligência no Brasil

CONDEIXA, Fábio. M. S. P. Counterterrorism in Brazil: with an eye on the upcoming Olympics. Interna-
tional Journal of Intelligence and CounterIntelligence, v. 28, n. 4, p. 710-716, oct. 2015.
FONSECA, Diogo R et. al. Sistema de Escolas de Governo da União: perfil, identidade e desafios para
institucionalização. Brasília: Enap, 2015. (Cadernos ENAP, 40).
GILL, Peter; PHYTHIAN, Mark. Intelligence Studies: some thoughts on the state of the art. Annals of
the University of Bucharest / Political science series, v. 14, n.1, p. 5-17, 2012. Disponível em: <http://
nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-389493 >.

GONÇALVES, Joanisval B. The Spies Who Came From The Tropics: Intelligence Services and Democ-
racy in Brazil. Intelligence and National Security, v. 29, n. 4, p. 581-599, july 2014.

JOHNSON, Loch K. National Security Intelligence. In Loch Johnson (ed.) The Oxford Handbook of Na-
tional Security Intelligence, Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 3-32.
JOHNSON, Loch K. & SHELTON, Allison M. Thoughts on the State of Intelligence Studies: a survey
report. Intelligence and National Security, v. 28, n. 1, p. 109-120, feb. 2013.

LANDON-MURRAY, Michael. Moving U.S. Academic Intelligence Education Forward: a literature inven-
tory and agenda. International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, v. 26, n. 4, p. 744-776,
winter 2013-2014.

MARRIN, Stephen. Improving Intelligence Studies as an Academic Discipline. Intelligence and


National Security, 22 oct. 2014. Disponível em: <www.tandfonline.com/doi/full/10.1080
/02684527.20014.952932 >.

MARRIN, Stephen. Training and Educating U.S. Intelligence Analysts. International Journal of Intelligen-
ce and CounterIntelligence, v. 22, n. 1, p. 131-146, dec. 2008.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 19


ESPIONAGEM E DIREITO

Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa*

Resumo

O artigo trata de aspectos jurídicos da espionagem tanto no direito internacional como no di-
reito pátrio. No plano do direito internacional, aborda-se o tratamento jurídico da espionagem
e a controvérsia sobre a sua licitude em tempos de paz. Com relação ao ordenamento jurídico
brasileiro, faz-se uma exposição de precedentes históricos e judiciais sobre o tema e uma aná-
lise crítica da legislação pertinente.

U ma análise jurídica da espionagem


pode ser feita a partir de duas pers-
pectivas: do direito internacional e do
riador britânico Michael Burn1 destaca
alguns atributos específicos dos espiões:

direito interno de determinado país. Este 1. envolvimento deliberado com a entre-


artigo aborda aspectos jurídicos da es- ga de informações sobre pessoas ou
pionagem tanto no plano do direito in- coisas recentemente observadas;
ternacional quanto no plano do ordena-
2. aquisição e envio sigilosos dessas in-
mento jurídico brasileiro.
formações;
3. uso das informações por pessoas
A espionagem no direito internacional hostis ou suspeitas às pessoas a que
se referem, geralmente envolvendo
No âmbito do direito internacional, a
questões governamentais;
principal questão acerca da espionagem
está em saber se ela constitui ou não um 4. enganação consciente.
ilícito internacional, isto é, se viola as
normas que regem as relações entre os Gerard Cohen-Jonathan e Robert Kovar2
Estados nacionais. Mas, antes de entrar- apontam os elementos constitutivos da
mos nessa questão, convém delimitar o espionagem, que podem ser resumidos
conceito de espionagem. no seguinte esquema:

Não há um conceito único de espionagem a) elemento material  objeto da


entre os estudiosos da questão. O histo- espionagem;

* Oficial de Inteligência, advogado e mestre em ciência política. Atua como professor e pesqui-
sador na ESINT/ABIN. É autor de diversos artigos sobre legislação de inteligência e dos livros
Princípio da Simetria na Federação Brasileira (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011) e Direito
Constitucional Brasileiro (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014).
1
BURN, Michael apud DEMAREST, 1995-1996.
2
COHEN-JONATHAN, Gerard; KOVAR, Robert, 1960.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 21


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

b) elemento subjetivo  intenção ou Costumes de Guerra Terrestre de 1899


dolo de espionar; e 1907 e nas Convenções de Genebra
de 1864, 1906, 1929 e 1949, além
c) elemento pessoal  vítima e bene-
de nos três protocolos adicionais desta
ficiário da espionagem.
última. A Convenção de Haia de 1907
A espionagem geralmente está associa- foi internalizada no Brasil pelo Decreto
da à atuação de serviços de inteligência, nº 10.719 (BRASIL, 1914); a Conven-
embora essa relação não seja necessária. ção de Genebra de 1949, pelo Decreto
Se entendermos, de forma ampla e ge- nº 42.121 (BRASIL,1957a); seus dois
nérica, a espionagem como a obtenção primeiros protocolos adicionais, pelo
clandestina de informações, poderíamos Decreto nº 849 (BRASIL,1993), e seu
incluir nessa prática não apenas agentes terceiro protocolo, pelo Decreto nº.
estatais como também agentes a servi- 7.196 (BRASIL, 2010).
ço de grupos e organizações privados,
tal como ocorre com a espionagem in- No Anexo II da 1ª Convenção de Haia
dustrial. Não obstante, limitar-nos-emos (1899), encontramos um capítulo dedi-
aqui à espionagem fruto da ação estatal, cado aos espiões e seu tratamento em
porquanto o que está em jogo no direito situações de guerra. O texto traz a se-
internacional é precisamente a ação dos guinte definição de espião:
Estados como entes jurídicos.
Somente será considerado espião o in-
divíduo que, agindo clandestinamen-
[...] ao disporem sobre te ou sob falsos pretextos, obtenha ou
os espiões em contexto busque obter informações na zona de
operações de um [Estado] beligerante,
de guerra, em nenhum com a intenção de comunicá-las à parte
momento as convenções adversa. Desse modo, os militares não
apontam para a ilicitude disfarçados que hajam penetrado na zona
de operações do exército inimigo com o
da espionagem em si. Fica objetivo de obter informações não serão
evidente, pois, que a legislação considerados espiões. Da mesma forma,
internacional considera que não serão considerados espiões: solda-
dos ou civis cumprindo ostensivamente
a espionagem “faz parte do sua missão, encarregados de transmitir
jogo” em uma guerra [...] expedientes tanto para seu próprio exér-
cito quanto para o de seu inimigo. A essa
categoria pertencem igualmente os indi-
No contexto dos conflitos armados en- víduos enviados em balões aerostáticos
tre países, a espionagem é consensual- para transmitir expedientes e, de forma
geral, para manter a comunicação entre
mente entendida como uma prática líci-
as diversas partes de um exército ou de
ta, isto é, não violaria as leis de guerra um território. (Tradução nossa).
do direito humanitário, também chama-
das de ius in bello. O corpo de normas A Convenção de Haia define o que deve
do direito humanitário está presente nas ser entendido como espião com o objeti-
Convenções de Haia sobre o Direito e os vo de resguardar os combatentes osten-

22 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

sivos, que gozam de uma maior proteção Ilicitude


das leis de guerra, pois é sabido que os
países costumam adotar leis severas con- A primeira corrente entende que atos de
tra inimigos, especialmente espiões. espionagem perpetrados por agentes es-
tatais contra outros Estados em tempos
De todo modo, ao disporem sobre os de paz são ilícitos internacionais, isto é,
espiões em contexto de guerra, em ne- constituem violação do direito interna-
nhum momento as convenções apontam cional. Esse posicionamento, defendido
para a ilicitude da espionagem em si. por Manuel Garcia-Mora, Quincy Wright
Fica evidente, pois, que a legislação in- e Ingrid Delupis, baseia-se em duas proi-
ternacional considera que a espionagem bições estabelecidas em tratados inter-
“faz parte do jogo” em uma guerra, as- nacionais: 1) a proibição de ingerência
sim como os assassinatos cometidos em arbitrária na vida íntima dos indivíduos
situação de combate. Por essa razão, há (art. 17 do Pacto Internacional de Direi-
consenso entre os autores que se dedi- tos Civis e Políticos (BRASIL, 1992)); e
cam à matéria no sentido de que a es- 2) a proibição de violação da integridade
pionagem é uma prática admitida pelo territorial e independência política de um
direito internacional, se ocorrer num Estado por outro (art. 2º da Carta das
contexto de conflito armado. Nações Unidas (BRASIL, 1945). Esse
também foi o entendimento da Suprema
Todavia, fora do contexto de guerra, Corte do Canadá, que negou o direito do
há controvérsias sobre a licitude da es- serviço de inteligência externa canaden-
pionagem. Isso se dá pela ausência de se de realizar operações de inteligência
tratados internacionais sobre a matéria, no exterior que implicassem violação da
o que é reforçado pela falta de prece- privacidade e do direito local, por consi-
dentes judiciais da Corte Internacional derar que, com isso, estariam violando o
de Justiça das Nações Unidas, conhecida direito internacional4.
como Corte de Haia.

A espionagem não compõe o grupo de Licitude


delitos sujeitos à jurisdição do Tribu-
nal Penal Internacional, logo não pode Outra corrente entende que a prática da
haver responsabilização penal interna- espionagem nesse contexto é lícita no
cional do agente que a pratica3. Outra plano internacional, ainda que possa ser
questão é saber se o Estado para o qual considerada ilícita segundo a legislação
trabalha o espião violou o direito in- interna de cada país. Isto é, um espião,
ternacional. E é aí que reside a contro- caso seja pego, pode ser julgado e con-
vérsia, da qual surgiram três correntes: denado segundo as leis locais, mas o país
ilicitude, licitude e casuísmo. para o qual trabalha não poderia ser res-
3
Os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional são: genocídio, crimes de guerra,
crimes contra a humanidade e crimes de agressão. Este último tipo não foi regulamentado.
4
Re CANADÁ, 2008.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 23


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

ponsabilizado pelas suas ações perante a de seria feita caso a caso. Não haveria
Corte Internacional de Justiça das Nações que se falar em ilicitude da espionagem
Unidas. A base para esse entendimento em si, mas, sim, das condições em que
seria a ausência de proibição expressa da determinado ato de espionagem se deu.
espionagem em convenção internacional São defensores dessa corrente Christo-
e o direito de legítima defesa dos Es- pher Baker, Daniel Silver, Frederick Hitz,
tados, previsto no art. 51 da Carta das Craig Brown, Gerard Cohen-Jonathan e
Nações Unidas. A espionagem, segun- Robert Kovar.
do essa corrente, funcionaria como uma
Na prática, os países abstêm-se de le-
espécie de “legítima defesa preventiva”,
var a questão à Corte Internacional de
porquanto propiciaria a antecipação de
Justiça, preferindo optar por soluções
eventuais agressões. Argumenta-se, ain-
no campo diplomático, seja negociando
da, que a espionagem seria até desejável a troca de espiões, seja aplicando san-
para a manutenção da ordem internacio- ções de outra ordem. É muito comum
nal, pois permite que os Estados verifi- que um espião atue em outro país
quem, eles próprios, se os outros estão com cobertura diplomática, gozando,
cometendo algum ilícito internacional. portanto, das imunidades previstas na
Entre os defensores dessa corrente estão Convenção de Viena sobre Relações
Geoffrey Demarest e Roger Scott. Diplomáticas. Nesse caso, quando des-
coberto o espião, costuma-se aplicar-lhe
a sanção de declaração de persona non
É muito comum que um
grata prevista na convenção, seguida de
espião atue em outro país sua retirada do país5. Foi o que ocorreu
com cobertura diplomática, no caso da prisão do corpo diplomático
gozando, portanto, das estadunidense no Irã, durante a revolu-
imunidades previstas na ção de 1979. As autoridades iranianas
afastaram a imunidade diplomática dos
Convenção de Viena sobre
agentes norte-americanos sob a alega-
Relações Diplomáticas. ção de que perpetravam atos ilegais de
espionagem, alheios à função diplomáti-
ca. A Corte Internacional de Justiça en-
Casuísmo tendeu que a imunidade diplomática dos
agentes devia ser respeitada, cabendo ao
Por fim, há uma terceira corrente, que Estado acreditado apenas aplicar-lhes a
sustenta que a espionagem pode ou não punição de persona non grata, segundo
ser lícita perante a ordem internacional, a sua discricionariedade6. Com isso, a
em tempos de paz, cabendo uma análise Corte não se pronunciou propriamente
casuística, isto é, a verificação da ilicitu- sobre a ilicitude da espionagem em tem-
5
Convenção de Viena (BRASIL, 1968, art. 9º).
6
EUA v Irã, 1981 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1981).

24 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

pos de paz, mas indicou a possibilidade o SVR, foram presos pelo FBI em solo
de o Estado considerá-lo. norte-americano e trocados por quatro
cidadãos estadunidenses que cumpriam
Acontece, ainda, de o país vítima da es- pena por espionagem na Rússia.
pionagem solicitar, informalmente, a reti-
rada dos espiões. Foi isso o que ocorreu
no caso Gouzenko, criptógrafo soviético A espionagem no direito brasileiro
acreditado em missão diplomática no
Canadá que desertou em 1945 para o Na legislação interna dos países, a es-
país, revelando uma rede de espionagem pionagem costuma ser juridicamente
voltada para os segredos nucleares dos entendida como obtenção sub-reptícia
EUA. Outro caso, recente (de 2013), foi e indevida de informação sigilosa do
entre a Alemanha e os Estados Unidos, Estado. Esse tipo de conduta é crimi-
no qual a chanceler alemã solicitou a re- nalizado pela legislação de cada país.
tirada do responsável pela sucursal da O mesmo se pode dizer do vazamento,
CIA em seu país. que guarda estreita relação com a es-
pionagem e que consiste na divulgação
indevida de informações por quem tem
Na legislação interna dos
o dever legal do sigilo.
países, a espionagem costuma
ser juridicamente entendida
A espionagem é um dos
como obtenção sub-reptícia
poucos crimes na legislação
e indevida de informação
brasileira que podem, em
sigilosa do Estado.
tempo de guerra, levar à pena
de morte, seja o condenado
Durante a guerra fria a troca de espiões nacional ou estrangeiro, civil
foi uma prática recorrente nas relações ou militar, além de sujeitar
entre EUA e URSS. O exemplo mais cé-
o militar que a pratique à
lebre foi o da troca do piloto do avião de
indignidade para o oficialato.
reconhecimento U-2 abatido pelo exér-
cito da URSS, Francis Gary Powers, em
1960, pelo espião soviético “Rudolf Iva- No Brasil, a espionagem e o vazamen-
novich Abel”, cujo nome real era Vilyam to, além de poderem configurar crimes
Génrikhovich Fisher, preso nos EUA segundo a legislação penal, também po-
pelo FBI por comandar uma rede de in- dem ter repercussão jurídica na esfera
formantes que vazavam segredos nucle- administrativa (sanção funcional), cível
ares e militares norte-americanos. Mais (dever de indenizar) e política (cassação
recentemente, em 2010, dez espiões do de mandato e suspensão de direitos po-
serviço de inteligência externa da Rússia, líticos), conforme o caso.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 25


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

A espionagem é um dos poucos crimes Precedentes brasileiros de espionagem


na legislação brasileira que podem, em
tempo de guerra, levar à pena de mor- Há precedentes no país de condenação
te, seja o condenado nacional ou estran- criminal pelo crime de espionagem, com
geiro, civil ou militar7, além de sujeitar base em leis anteriores. Talvez, o mais
o militar que a pratique à indignidade importante seja relativo ao ex-capitão
para o oficialato8. do Exército Túlio Régis do Nascimento,
chefe de uma rede de espionagem nazis-
Se praticada por autoridade superior, a ta que funcionou no Brasil entre 1942
espionagem pode configurar, além de in- e 194311. Conhecido pelo codinome
fração penal, crime de responsabilidade, “Capitão Garcia”, Nascimento, além de
que, a despeito do nome, não tem nature- ter sido julgado indigno do oficialato, foi
za criminal em sentido técnico, mas, sim, condenado pelo delito de espionagem
de infração política sujeita a cassação de do art. 21 da vetusta Lei de Segurança
mandato e suspensão de direitos políticos Nacional da Era Vargas12.
(impeachment). Assim, o art. 5º, n. 4, da
Lei de Crimes de Responsabilidade9 prevê Na ocasião, o réu impetrou ação de ha-
como infração política contra a existência beas corpus no Supremo Tribunal Fede-
política da União o ato de “revelar ne- ral, argüindo incompetência da Justiça
gócios políticos ou militares, que devam Militar, responsável pela condenação.
ser mantidos secretos a bem da defesa da Argumentou a defesa que a constituição
segurança externa ou dos interesses da então vigente, de 1946, estabelecia –
Nação,” praticado pelo presidente da Re- à semelhança da atual Constituição de
pública ou ministro de Estado10. 1988 – que a competência para julgar
7
Art. 366 do Código Penal Militar (BRASIL, 1969). A pena de morte no Brasil só é admitida no
caso de guerra declarada (Constituição Federal (BRASIL, 1988, art. 5º, XLVII, ‘a’)) e está pre-
vista apenas na legislação penal militar, que, no entanto, também é aplicável a civis. A pena
capital no Brasil só pode ser executada por fuzilamento, conforme dispõe o Código Penal
Militar (BRASIL, 1969, art. 56).
8
Código Penal Militar (BRASIL, 1969, art. 100).
9
Lei federal n° 1.079 (BRASIL, 1950).
10
Os crimes de responsabilidade do presidente e vice-presidente da República, dos ministros do
Supremo Tribunal Federal, do procurador-geral da República, do advogado-geral da União e
dos membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público
são julgados pelo Senado Federal, assim como os crimes de responsabilidade dos ministros
de Estado e dos comandantes das Forças Armadas quando conexos às infrações de mes-
ma natureza praticadas pelo presidente e vice-presidente da República (Constituição Federal
(BRASIL, 1988, art. 52, I e II).
11
O caso foi noticiado pelo Jornal A Noite, Rio de Janeiro, de 30 de março de 1943, edição nº
11.182. Ver também: HILTON, 1977.
12
“Promover ou manter, no território nacional, serviço secreto destinado a espionagem: Pena -
reclusão, de oito a vinte anos, ou morte, grau máximo e reclusão por vinte anos, grau mínimo,
se o crime for praticado no interesse de Estado em guerra contra o Brasil, ou de Estado aliado
ou associado ao primeiro. ” (Decreto-lei nº 4.766 (BRASIL, 1942, art. 21)).

26 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

crimes políticos era, em primeiro grau de aviação civil era controlada pelo Minis-
jurisdição, da Justiça Federal e, em grau tério da Guerra. No caso, as empresas
de apelação, do Supremo Tribunal Fede- foram acusadas de lançar mão da espio-
ral13. Entendeu a Corte que a expressão nagem para se beneficiarem na seleção
crime político prevista na Constituição de de rotas. Não obstante, apenas inte-
1946 foi empregada em sentido estrito, grantes da empresa alemã foram conde-
abrangendo apenas a segurança interna, nados. Segundo o jurista Evandro Lins e
e não a segurança externa do país, caso Silva, advogado de defesa do principal
que configuraria crime militar14. réu e dirigente da Condor, Ernesto Höl-
ck, a condenação deveu-se a motivos
De nossa parte, embora não tenhamos políticos, visto que naquele momento o
encontrado solução melhor, entendemos Brasil alinhava-se aos Estados Unidos,
problemático esse critério de distinção contra a Alemanha15.
entre crimes políticos e crimes militares,
uma vez que há situações em que a se-
gurança interna e externa se confundem Legislação penal pertinente à espiona-
ou se sobrepõem. Melhor seria que hou- gem e ao vazamento
vesse uma sistematização da legislação
de segurança nacional e da legislação Não raro vemos os tribunais brasileiros
penal militar na qual os campos de in- utilizarem os termos espionagem e va-
cidência fossem mais bem definidos ou, zamento desatrelados do contexto de
ainda melhor, que a legislação de segu- serviços de inteligência e dos segredos
rança nacional fosse integrada à legisla- de Estado, abrangendo situações como
ção penal comum e militar. as de detetives particulares, de violação
de segredo industrial e de ações policiais
Outro importante precedente sobre es- abusivas contra cidadãos ou até mes-
pionagem envolvia disputas comerciais mo criminosos comuns16. Nesse sentido
entre as empresas de aviação civil Pan mais amplo – não relacionado a segre-
Air, dos EUA, e Condor, da Alemanha, dos de Estado –, a espionagem e o va-
na década de 1940. O caso também foi zamento estão tipificados nos seguintes
levado à Justiça Militar, uma vez que a delitos previstos na legislação penal:
13
Constituição de 1946 (BRASIL, 1946, art. 101, II, c; art. 105, § 3º, e) e Constituição de 1988
(BRASIL, 1988, art. 102, II, b; art. 109, IV).
14
HC 31.552/DF (BRASIL, 1951b)
15
SILVA, 1977.
16
Menções à espionagem: STJ, RHC 1458/SP (BRASIL, 1994); TJSP, Apelação Criminal nº.
1.033.718.3/6-00; TJPR, Apelação Cível nº. 0149919-4 (PARANÁ, 2004); TJSP, Agravo de
Instrumento nº. 332.040-4/3-00; TJSC, Apelação Cível nº. 96.001828-0 (SANTA CATARINA,
1996); Menções ao vazamento: STJ, AGARESP 459202 (BRASIL, 2014b); TRF da 5ª Região,
ACR 10292 (BRASIL, 2013).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 27


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

l Código Penal (BRASIL, 1940) m Violação de sigilo funcional


(art. 326)
m Violação de comunicação telegrá-
fica, radioelétrica ou telefônica l Lei Federal nº 9.296 – Lei das In-
(art. 151, § 1º)17 terceptações Telefônicas (BRASIL,
m Divulgação de segredo particular 1996b)
(art. 153) m Interceptação ilegal das comunica-
m Invasão de dispositivo informático ções telefônicas, informáticas ou
(art. 154-A) telemáticas e quebra de segredo de
justiça (art. 10)
m Inserção de dados falsos em siste-
mas de informações da Administra- l Lei
ei Federal nº 9.472 – Lei das Teleco-
ção Pública (art. 313-A) municações (BRASIL, 1997b)
m Modificação ou alteração não au- m Atividade clandestina de telecomu-
torizadas em sistemas de infor- nicação (art. 183)
mações da Administração Pública
(art. 313-B) l Lei Federal nº 9.279 – Lei de Proprie-
dade Industrial (BRASIL, 1996a)
m Violação de sigilo funcional
(art. 325) m Violação de segredo industrial (art.
195, XI e XII)
l Código Penal Militar (BRASIL, 1969)
l Lei Complementar Federal nº 105 – Lei
m Sobrevôo em local interdito
de Sigilo Financeiro (BRASIL, 2001)
(art. 148)
m Violação de sigilo financeiro
m Violação de correspondência
(art. 226) (art. 10)

m Violação de recato (art. 229) l Lei Federal nº 6.538 – Lei de Servi-


ços Postais (BRASIL, 1978)
m Violação ou divulgação indevida de
correspondência ou comunicação m Violação de correspondência
(art. 325) (art. 40)18
17
Há controvérsia sobre a vigência dos crimes de violação de comunicação telegráfica, radioelé-
trica ou telefônica previstos no art. 151, § 1º, incisos I, II e III, do Código Penal (BRASIL,1940).
Autores como Rogério Greco (2009) entendem que esses tipos penais não mais subsistem
e que seria aplicável apenas o art. 10 da Lei das Interceptações. Outra corrente, na qual se
insere Guilherme de Souza Nucci (2008), entende que as modalidades de violação das comu-
nicações do art. 151, § 1º, incisos I, II e III do Código Penal coexistem com o tipo penal do art.
10 da Lei das Interceptações. Filiamo-nos a esta última, porquanto o tipo penal do art. 151, §
1º do Código Penal é mais amplo que o do art. 10 da Lei das Interceptações. O primeiro incri-
mina o ato de divulgar, transmitir, utilizar abusivamente e impedir comunicação por qualquer
daqueles meios. O segundo refere-se apenas à realização de interceptação.
18
A doutrina de direito penal é no sentido de que o art. 40 da Lei de Serviços Postais revogou
tacitamente o art. 151, caput, do Código Penal, que também trata de violação de sigilo postal.

28 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

Já com relação aos segredos de Estado, l Lei Federal nº 7.170 – Lei de Segu-
há a previsão específica de figuras delitu- rança Nacional (BRASIL, 1983)
osas no Código Penal, no Código Penal
m Violação de segredo de Estado con-
Militar, na Lei de Segurança Nacional e
tra a Segurança Nacional (art. 13)
na Lei de Responsabilidade Civil e Cri-
minal por Atos Relacionados à Atividade m Violação de sigilo funcional relativo
Nuclear. Vejamo-las: a planos, ações ou operações milita-
res ou policiais contra rebeldes, in-
l Código Penal (BRASIL, 1940) surretos ou revolucionários (art. 21)
m Divulgação de segredo de Estado
(art. 153, § 1º-A) l Lei Federal nº 6.453 – Lei de Respon-
sabilidade Civil e Criminal por Atos
l Código Penal Militar (BRASIL, 1969) Relacionados à Atividade Nuclear
(BRASIL, 1977)
m Consecução de notícia, informação
ou documento para fim de espiona- m Transmissão de segredo nuclear
gem (art. 143) (art. 23)

m Penetração com o fim de espiona-


gem (art. 146) Não há na legislação brasileira
m Elaboração de desenho ou levanta- uma definição precisa do que
mento de plano ou planta de local seja segredo de Estado.
militar ou de engenho de guerra
(art. 147)

m Violação de sigilo funcional Delimitação do segredo de Estado


(art. 326)
No Brasil a questão da violação de segre-
m Informação ou auxílio ao inimigo
dos de Estado não é de hoje. Em 1908,
em tempo de guerra (art. 359)
o Barão de Rio Branco revelou o con-
m Traição imprópria em tempo de teúdo de uma correspondência oficial
guerra (art. 362) a fim de se defender contra acusações
proferidas por Estanislao Zeballos, que
m Espionagem em tempo de guerra
havia deixado recentemente a pasta de
(art. 366)
ministro das relações exteriores da Ar-
m Penetração de estrangeiro para fins gentina. Zeballos apresentou uma versão
de espionagem em tempo de guerra falsificada do Telegrama nº 9, do Itama-
(art. 367) raty, em que o chanceler brasileiro teria

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 29


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

determinado algumas medidas às re- Figura 1. Código do Itamaraty revelado pelo Barão
de Rio Branco
presentações diplomáticas brasileiras na
América do Sul. O Barão de Rio Branco
defendeu-se expondo não apenas o intei-
ro teor do referido documento, como o
código utilizado na sua cifração19.

Em 1919, Ruy Barbosa revelou, numa


conferência proferida em São Paulo, o
conteúdo de uma comunicação do Ita-
maraty a que teve acesso, denunciando
o que ele considerava ser uma orienta-
ção indevidamente favorável à Alema-
nha20. No início da década de 1940,
um secretário da embaixada brasileira
na Espanha, num surto de insanidade,
entregou o código criptográfico do Ita-
maraty ao então ministro das relações Extraído do livro O Caminho da Liberdade, de Car-
exteriores espanhol, Serrano Suñer . Já 21 los Lacerda (2ª Ed., Rio de Janeiro, p. 180)

nos anos 1950 o político Carlos Lacer- Não há na legislação brasileira uma defini-
da foi acusado do crime de divulgação ção precisa do que seja segredo de Esta-
de informação sigilosa, mas, como era do. Encontramos, a princípio, referência
deputado, gozava de imunidade parla- a informação sigilosa. A sua base cons-
mentar, e a Câmara dos Deputados não titucional está no art. 5º, XXXIII, in fine,
concedeu licença para que ele fosse da Constituição Federal (BRASIL, 1988),
processado22. Mais recentemente, a mí- que ressalva o direito universal de acesso
dia noticiou casos de vazamentos que à informação do Poder Público nos casos
teriam ocorrido na própria Agência Bra- em que o sigilo seja imprescindível à se-
sileira de Inteligência (ABIN)23. gurança da sociedade e do Estado.

19
ETCHEPAREBORDA, 1978, p. 154-155.
20
LACERDA, 1957, p 73-74.
21
LACERDA, 1977.
22
Resolução nº 127 (BRASIL, 1957b).
23
Revista Exame (20 set. 2012, 9 abr. 2013); Jornal Estado de São Paulo (27 out. 2013).

30 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

A Lei de Acesso à Informação define in- II - prejudicar ou pôr em risco a condu-


ção de negociações ou as relações inter-
formação sigilosa como aquela submeti-
nacionais do País, ou as que tenham sido
da temporariamente à restrição de acesso fornecidas em caráter sigiloso por outros
público em razão de sua imprescindibi- Estados e organismos internacionais;
lidade para a segurança da sociedade e III - pôr em risco a vida, a segurança ou a
do Estado 24. Ao tratar da restrição de saúde da população;
acesso à informação, a Lei nº 12.527 IV - oferecer elevado risco à estabilida-
(BRASIL, 2011) prevê a classificação de financeira, econômica ou monetária
sigilosa nos graus reservado, secreto e do País;
ultra-secreto, com os prazos de sigilo de V - prejudicar ou causar risco a planos
cinco, 15 e 25 anos, respectivamente. ou operações estratégicos das Forças
Armadas;
A prorrogação é possível somente neste
último caso e por uma única vez, pelo VI - prejudicar ou causar risco a projetos
mesmo período25. Assim, a Lei de Aces- de pesquisa e desenvolvimento científico
ou tecnológico, assim como a sistemas,
so à Informação prevê as seguintes hipó- bens, instalações ou áreas de interesse
teses de classificação sigilosa: estratégico nacional;

VII - pôr em risco a segurança de institui-


[...] podemos conceituar o ções ou de altas autoridades nacionais ou
estrangeiras e seus familiares; ou
segredo de Estado como a
VIII - comprometer atividades de in-
informação, passível ou não de teligência, bem como de investigação
classificação sigilosa, cujo sigilo ou fiscalização em andamento, rela-
cionadas com a prevenção ou repres-
seja imprescindível à segurança são de infrações.
da sociedade ou do Estado.
A Lei de Acesso à Informação ressalva
ainda o direito à informação relativa às
Art. 23. São consideradas imprescin-
díveis à segurança da sociedade ou do demais hipóteses de sigilo previstas em
Estado e, portanto, passíveis de classifi- lei26, ao segredo de justiça e aos segredos
cação as informações cuja divulgação ou industriais decorrentes da exploração di-
acesso irrestrito possam: reta de atividade econômica pelo Estado
I - pôr em risco a defesa e a soberania ou por pessoa física ou entidade privada
nacionais ou a integridade do território que tenha qualquer vínculo com o poder
nacional; público27. Além disso, essa lei afasta o
24
Lei Federal nº 12.527 (BRASIL, 2011, art. 4º, III).
25
Ibid, art. 24 § 1º - Os graus de sigilo estão dispostos neste artigo. As informações classificadas
como reservadas por poderem colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente
da República e respectivos cônjuges e filhos podem ficar sob sigilo até o término do segundo
mandato, em caso de reeleição. Portanto, nesta hipótese, é possível que o prazo de sigilo de
informação reservada exceda o limite de cinco anos.
26
Como exemplos de hipóteses de sigilo previstas em lei podemos citar o sigilo das propostas
em licitações públicas e das votações parlamentares e eleitorais.
27
Lei Federal nº 12.527 (BRASIL, 2011, art. 22).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 31


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

direito de acesso às informações referen- Convém observar que o sigilo se faz ne-
tes a projetos de pesquisa e desenvol- cessário em contextos que transcendem
vimento científicos ou tecnológicos cujo os casos de segredo de Estado. A Lei de
sigilo seja imprescindível à segurança da Acesso à Informação também determina
sociedade e do Estado28. Aí poderíamos que seja protegida a informação pessoal,
encontrar segredos de Estado. isto é, aquela relacionada à pessoa natu-
ral identificada ou identificável, devendo
Assim, imaginemos que o governo bra-
o Poder Público tratá-las com respeito à
sileiro esteja desenvolvendo um sub-
intimidade, vida privada, honra e imagem
marino nuclear. Trata-se de um projeto
das pessoas, bem como às liberdades e
científico-tecnológico que, se revelado,
garantias individuais 31. Nesse caso, a
pode pôr em perigo a segurança do Es-
restrição de acesso prescinde de classifi-
tado e da sociedade. Nesse caso, não
há que se falar em classificação sigilo- cação sigilosa e se estende pelo prazo de
sa (graus reservado, secreto ou ultra- 100 anos. No entanto, a proteção às in-
-secreto). A restrição de acesso dá-se formações pessoais é a concretização do
per se, isto é, independe de um ato ad- direito fundamental à privacidade, e não
ministrativo de classificação em grau de do direito à segurança. Portanto, não há
sigilo. O processo de patenteamento de que se falar, aqui, de segredo de Estado.
novas tecnologias nesse caso seguiria o
rito da Lei de Propriedade Industrial e
Crime de divulgação de segredo de
de regulamento específico29.
Estado
Outro exemplo poderia ser a informa-
ção sigilosa transmitida por país estran- O crime de divulgação de segredo de Es-
geiro ou organismo internacional na tado do art. 153, § 1º-A, do Código Penal
forma de acordo ou ato internacional foi ali inserido pela Lei Federal nº 9.983
celebrado para essa finalidade. Nessa (BRASIL, 2000), com a seguinte redação:
hipótese, a Lei de Acesso à Informação
ressalva a aplicação do regime de sigilo § 1º-A. Divulgar, sem justa causa,
nela previsto30. informações sigilosas ou reservadas,
assim definidas em lei, contidas ou não
Diante disso, podemos conceituar o nos sistemas de informações ou banco
segredo de Estado como a informação, de dados da Administração Pública:
passível ou não de classificação sigilosa,
cujo sigilo seja imprescindível à seguran- Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro)
ça da sociedade ou do Estado. anos, e multa.
28
Ibid., art. 7º, § 1º.
29
Lei nº 9.279 (BRASIL, 1996) e Decreto nº 2.553 (BRASIL, 1998).
30
Lei Federal n° 12.527 (BRASIL, 2011, art. 36).
31
Ibid., art. 4º, IV; e art. 31.

32 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

§ 2º Quando resultar prejuízo para a do Código Penal também seria, a princí-


Administração Pública, a ação penal pio, aplicável. Assim dispõe o art. 325:
será incondicionada.
Violação de sigilo funcional
Nesse particular, a Lei nº 9.983 cometeu Art. 325 - Revelar fato de que tem ciên-
quatro impropriedades, a saber: cia em razão do cargo e que deva per-
manecer em segredo, ou facilitar-lhe a
revelação:
1) Inseriu o crime no Título I, que trata
dos crimes contra a pessoa, em lugar Pena - detenção, de seis meses a dois
anos, ou multa, se o fato não constitui
de inseri-lo no Título XI, que trata dos crime mais grave.
crimes contra a Administração Pública;
§ 1º Nas mesmas penas deste artigo
2) Falou em “informações sigilosas ou re- incorre quem:

servadas”, dando a entender que são I – permite ou facilita, mediante atribui-


ção, fornecimento e empréstimo de se-
categorias distintas, quando, na ver-
nha ou qualquer outra forma, o acesso
dade, as informações reservadas são de pessoas não autorizadas a sistemas de
espécies de informações sigilosas32; informações ou banco de dados da Ad-
ministração Pública;
3) Limitou a hipótese de ação penal públi-
II – se utiliza, indevidamente, do acesso
ca incondicionada aos casos em que há restrito.
prejuízo para a Administração, criando § 2º Se da ação ou omissão resulta dano
a possibilidade de ação condicionada à Administração Pública ou a outrem:
para crime contra a Administração, Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis)
sem indicar a autoridade competente anos, e multa.

para apresentar a representação33; Ocorre que o parágrafo 2º do art. 325,


4) Limitou o tipo à divulgação da infor- também inserido pela Lei nº 9.983, pre-
mação sigilosa, deixando de tipificar a viu a hipótese qualificada para o caso de
mera obtenção. a ação ou omissão resultar em dano à
Administração Pública. A violação de se-
O tipo penal do art. 153, § 1º-A pode gredo de Estado em si é um dano. E não
levantar dúvidas sobre sua aplicação no se trata aqui de presumir o dano.
caso de divulgação de segredo de Esta-
do por servidor público, pois o crime de O sigilo de informações sob custódia da
violação de sigilo funcional do art. 325 Administração Pública pode decorrer da
32
A Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527 (BRASIL, 2011) prevê a classificação
sigilosa nos graus reservado, secreto e ultra-secreto. Nem se pode argumentar que a Lei de
Acesso à Informação é posterior à Lei nº 9.983 (BRASIL, 2000), pois, àquela altura, vigorava
o Decreto Presidencial nº 2.134 (BRASIL, 1997a), que trazia classificações sigilosas seme-
lhantes, com a diferença de que contava ainda com o grau confidencial.
33
A ação penal condicionada é aquela que depende de representação para que possa ser ini-
ciada pelo Ministério Público. De modo geral, essa representação é feita pelo ofendido ou
por seu representante legal. Há, contudo, dois casos em que a requisição deve ser feita pelo
ministro da Justiça. No caso em apreço, não é aplicável nem a regra geral da representação
pelo ofendido, tampouco é designada a autoridade competente para fazê-lo.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 33


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

proteção à intimidade individual34 ou da Tratamento das informações classificadas


proteção da segurança da sociedade e
do Estado35. Na primeira hipótese, não As regras de tratamento das informações
há que se falar em segredo de Estado, classificadas estão descritas no Decreto
embora também haja dever de sigilo Presidencial nº 7.845 (BRASIL, 2012).
por parte dos servidores públicos, pois Entre as medidas previstas, estão a uti-
lização de algoritmo de Estado para a
se trata daquilo que a Lei de Acesso à
cifração eletrônica e a utilização de en-
Informação designou como informação
velopes duplos para a tramitação de do-
pessoal 36. Já o segredo de Estado, este,
cumentos físicos. Com relação especifi-
sim, está diretamente relacionado à se- camente aos sistemas de informação que
gurança da sociedade e do Estado. Sen- armazenem ou por que transitem infor-
do assim, a sua mera exposição já con- mação classificada, exige-se a utilização
figurará dano, pois todas as medidas de de canais seguros, criptografia e controle
proteção do sigilo da informação serão e registro de acesso37.
tornadas vãs.
O acesso a informação classificada limi-
Entendemos, portanto, que a divulga- ta-se às pessoas com necessidade de co-
ção de segredo de Estado por servidor nhecer e com credenciamento de segu-
público que dele teve ciência em razão rança, sem prejuízo dos agentes públicos
autorizados por lei38. Excepcionalmente,
de seu cargo deve responder pela mo-
admite-se o acesso a pessoas sem cre-
dalidade qualificada de violação de sigilo
denciamento, mediante assinatura de
funcional do art. 325, § 2º, com pena Termo de Compromisso de Manuten-
de reclusão de dois a seis anos e mul- ção de Sigilo39. O credenciamento de
ta, quando não aplicável o Código Penal segurança, comumente designado por
Militar, a Lei de Segurança Nacional ou clearance em inglês, é uma autorização
a Lei de Responsabilidade por Atos Re- especial concedida para o tratamento de
lativos à Atividade Nuclear. informação sigilosa classificada.
34
Constituição Federal (BRASIL, 1988, art. 5º, X).
35
Ibid., art. 5º, XXXIII, in fine.
36
Lei Federal nº 12.527 (BRASIL, 2011, art. 31).
37
Especificamente quanto ao registro de acesso a esses sistemas de informação, o prazo de
armazenamento das transações realizadas deve ser igual ou superior ao prazo de sigilo da
informação (Decreto nº 7.845 (BRASIL, 2012, art. 38, § 4º)). Essa determinação, contudo, é
difícil de ser operacionalizada, visto que esses sistemas contêm diversas informações, cada
uma com seu prazo específico de sigilo. Melhor seria que o decreto tivesse previsto um prazo
fixo de cinco ou dez anos para a guarda desses dados, como é feito pelas legislações de re-
tenção de dados (data retention), a exemplo da Lei de Uso da Internet (Lei Federal nº 12.965
(BRASIL, 2014a)).
38
Lei 12.527 (BRASIL, 2011, art. 25, § 1º); Decreto nº 7.724 (BRASIL, 2012, art. 43); e Decreto
nº 7.845 (BRASIL, 2012, art. 18).
39
Decreto nº 7.845 (BRASIL, 2012, art. 18, parágrafo único).

34 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

A legislação brasileira não traz nenhuma Conclusão


regra específica quanto ao acesso judicial
a documentos classificados. Aí é o caso A espionagem, como fenômeno social,
de sabermos se um juiz pode solicitar pode ter diversas repercussões no mun-
do jurídico. No plano do direito inter-
uma informação classificada para ins-
nacional, a espionagem entre Estados
truir um processo judicial. Entendemos é admitida como ato lícito no contexto
que, pelo princípio da inafastabilidade de conflitos armados, mas há contrové-
do poder jurisdicional prevista no art. rsia sobre a sua licitude em tempos de
5º, XXXV, da Constituição Federal, não paz, derivando daí três correntes distin-
há como negar o acesso dos magistra- tas: uma posicionando-se pela ilicitude,
dos a informações classificadas. Todavia, outra pela licitude, e uma terceira pelo
entendemos também que o Poder Judici- casuísmo, segundo o qual a ilicitude só
pode ser aferida no caso concreto.
ário, ao recebê-las, deve decretar o se-
gredo de justiça e tomar medidas de sal- No campo do direito interno brasileiro,
vaguarda a fim de assegurar-lhes o sigilo. diversos são os tipos penais que podem
se relacionar, direta ou indiretamente, à
Melhor seria que a legislação brasileira espionagem e ao vazamento, chegando
contasse com uma sistemática semelhan- a haver sobreposição de normas no
te à da legislação italiana40, que prevê as tocante à segurança nacional e à legis-
categorias do segredo de Estado e da lação penal militar. Para que se evite
classificação sigilosa. A primeira catego- essa sobreposição de normas, faz-se
ria é atribuída pelo primeiro-ministro e é necessária uma reforma da legislação
pertinente, de preferência integrando a
não- oponível ao Poder Judiciário (exce-
legislação de segurança nacional à legis-
to a Corte Constitucional). A segunda, lação penal comum e militar. Enquanto
acessível à autoridade judicial por man- essa reformulação não ocorre, cabe ao
dado, é atribuída por demais autoridades operador do direito verificar caso a caso
legalmente autorizadas. a melhor solução jurídica possível.

40
Lei nº 124 (ITÁLIA, 2007) - Dispõe sobre sistema de inteligência italiano e sobre a disciplina
do sigilo. O limite do prazo de sigilo dos segredos de Estado italianos é de 30 anos; o das in-
formações classificadas, de 20 anos, passíveis de prorrogação pela autoridade classificadora
ou, quando a prorrogação foi superior a 15 anos, pelo primeiro-ministro.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 35


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

Referências bibliográficas

BAKER, Christophe. Tolerance of international espionage: a functional approach. American University


International Law Review, v. 19, n. 5, p. 1091-1113, 2004.

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>.

BRASIL. Código Penal Militar. Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001Compilado.htm>.

BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm >.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >.

BRASIL. Decreto nº 2.134, de 24 de janeiro de 1997a. Regulamenta o art. 23 da Lei nº 8.159, de 8


de janeiro de 1991, que dispõe sobre a categoria dos documentos públicos sigilosos e o acesso a eles,
e dá outras providências. Revogado Pelo Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/ D2134.htm >.

BRASIL. Decreto nº 2.553, de 16 de abril de 1998. Regulamenta os arts. 75 e 88 a 93 da Lei nº 9.279,


de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/ d2553.htm >.

BRASIL. Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012a. Regulamenta a Lei no 12.527, de 18 de novem-


bro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5o,
no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7724. htm >.

BRASIL. Decreto nº 7.845, de 14 de novembro de 2012b. Regulamenta procedimentos para credencia-


mento de segurança e tratamento de informação classificada em qualquer grau de sigilo, e dispõe sobre
o Núcleo de Segurança e Credenciamento. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2012/decreto/D7845.htm >.

BRASIL. Decreto nº 10.719, de 4 de fevereiro de 1914. Promulga as Convenções, firmadas pelos


Plenipotenciários do Brasil na Segunda Conferencia da Paz em 1907 na Haya. Disponível em: <http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-10719-4-fevereiro-1914-575227-publica-
caooriginal-98294-pe.html>.

BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da
qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco,
a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas.
Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>.

BRASIL. Decreto nº 42.121, de 21 de agosto de 1957a. Promulga as convenções concluídas em Ge-


nebra a 12 de agosto de 1949, destinadas a proteger vítimas de defesa. Disponível em: < http://www2.
camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-42121-21-agosto-1957-457253-publicacaoorigi-
nal-1-pe.html >.

BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Di-
reitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/decre-
to/1990-1994/D0592.htm>

36 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais


às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática
sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos
Armados. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm>.

BRASIL. Decreto nº 7.196, de 1º de junho de 2010. Promulga o Protocolo Adicional às Convenções de


Genebra de 12 de agosto de 1949 relativo à Adoção de Emblema Distintivo Adicional (Protocolo III),
aprovado em Genebra, em 8 de dezembro de 2005, e assinado pelo Brasil em 14 de março de 2006.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7196.htm>.

BRASIL. Decreto-lei nº 4.766, de 1º de outubro de 1942. Define crimes militares e contra a segu-
rança do Estado, e dá outras providências. Disponível em: < http:// www2.camara.leg.br/legin/fed/
declei/1940-1949/decreto-lei-4766-1-outubro-1942-414873-publicacaooriginal-1-pe.html >.

BRASIL. Decreto-Lei nº 48.295, de 27 de março de 1968. Aprova para adesão a Convenção sobre
Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961. Disponível em: < http://www.
careproject.eu/database/upload/PTother020/PTother020Text. pdf >.

BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o respecti-
vo processo de julgamento. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L1079.htm >.

BRASIL. Lei nº 6.453, de 17 de outubro de 1977. Dispõe sobre a responsabilidade civil por danos
nucleares e a responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares e dá outras pro-
vidências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L6453.htm >.

BRASIL. Lei nº 6.538, de 22 de junho de 1978. Dispõe sobre os Serviços Postais. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6538.htm >.

BRASIL. Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a
ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>.

BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996a. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9279. htm >.

BRASIL. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996b. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da
Constituição Federal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /LEIS/L9296.htm>.

BRASIL. Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997b. Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomu-
nicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos
da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
L9472.htm >.

BRASIL. Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de


1940 – Código Penal e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/L9983.htm >.

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso
XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera
a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dis-
positivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm >.

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014a. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l12965.htm>.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 37


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

BRASIL. Lei complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001. Dispõe sobre o sigilo das operações de
instituições financeiras e dá outras providências. Disponível em:< http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/LCP/Lcp105.htm >.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça. Projeto de Resolução nº 127, de
09 de setembro de 1957b. Concede licença para processar o deputado Carlos Lacerda. Disponível em:
< http://www.camara.gov.br /proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=236443 >.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus n° 31.476/DF, da 2ª Turma, Rio de Janeiro, DF, 25
de janeiro de 1951a. Relator: Ministro Orozimbo Nonato. Diário da Justiça, 18 set.1951.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus nº 31.552/DF, Rio de Janeiro, DF, 31 de julho de
1951b. Relator: Ministro Rocha Lagôa. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/pagina-
dor.jsp?docTP=AC&docID=618725 >.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 459202,
da Segunda Turma. Processual civil. Improbidade administrativa. Violação do art. 535 do CPC não
configurada. Art. 17, § 8º, da lei 8.429/1992. Indícios suficientes para o recebimento da petição ini-
cial. Entendimento diverso. Revisão da matéria fático-probatória. Incidência da súmula 7/STJ. Relator:
Ministro Herman Benjamin. Diário da Justiça, 25 jun. 2014b. Disponível: < http://stj.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/25178284/ agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-459202-
-rs-2014-0002127-7-stj/inteiro-teor-25178285 >.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas-corpus nº 1458/SP, da Quinta Tur-
ma. Relator: Ministro Assis Toledo. 30 de novembro de 1994. Diário da Justiça, 6 fev.1995.

BRASIL. Tribunal Regional Federal (5ª Região). Processual Penal. Apelação Criminal nº 10292, da 10ª
Vara Criminal do Rio Grande do Norte. Delegado da Polícia Federal. Violação de sigilo funcional (Art.
325, & 2º, do Código Penal) em concurso formal com delito de colaboração com grupo Ligado ao
tráfico de drogas (art. 37c/c, art. 40, II, da Lei n° 11.343/06). 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de
reclusão e multa. Relator: Marcelo Navarro. Recife, PE, 05 de dezembro de 2013. Disponível em: <
http://www.trf5.jus.br/data /2013/12/00017915920114058401_20131209_5254043.pdf >.

BROWN, Craig. Espionage in International Law: a necessary evil. (Public International Law LAW-427A).
Ontario, CA: Faculty of Law - University of Western Ontario, dec. 3, 1999. Disponível em: <http://
cv.jmellon.com/law.pdf>.

CANADÁ. Supreme Court. Canadian Security Intelligence Service Act (Re), 2008, FC 301 (CanLII). Dis-
ponível em: < http://www.canlii.org/en/ca/fct/doc/2007/2007canlii62002/2007 canlii62002.html >.

CHESTERMAN, Simon. The spy who came in from the cold war: intelligence and international law.
Michigan Journal of International Law, v. 27, p. 1071-1130, 2006.

COHEN-JONATHAN, Gerard; KOVAR, Robert. L’espionnage en temps de paix. Annuaire français de


droit international, v. 6, n.1, p. 239-255, 1960. Disponível em: <http://www. persee.fr/web/revues/
home/-prescript/article/afdi_0066-3085_1960_num_6_1_903>.

CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares Pires. Considerações Sobre o Direito de Privacidade no Bra-
sil. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4142, 23 out. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/arti-
gos/33093/consideracoes-sobre-o-direito-de-privacidade-no-brasil>. Acesso em: 3 nov. 2014.

____________________. Cooperação entre a Abin e órgãos de persecução penal. Evocati Re-


vista, n. 61, 12 jan. 2011. Disponível em: < http://www.evocati.com.br/evocati/ interna.wsp?tmp_
page=interna&tmp_codigo=461&tmp_secao=16&tmp_topico=direitopenal>.

38 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Espionagem e Direito

____________________. A espionagem no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17,
n. 3371, 23 set. 2012. Com atualizações. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22668>.
Acesso em: 5 jul. 2013.

____________________. Interceptação das Comunicações de Estrangeiros Não-Residentes. Revista


de Criminologia e Ciências Penitenciárias, São Paulo, ano 3, n. 4, fev. 2014.

CONVENÇÃO DE GENEBRA. Convenção para Melhorar a Situação dos Feridos e Doentes das For-
ças Armadas em Campanha (1949). Adoptada a 12 de agosto de 1949 pela Conferência Diplomática
destinada a elaborar as Convenções Internacionais para a Protecção das Vítimas da Guerra, que reuniu
em Genebra de 21 de abril a 12 de agosto de 1949. Entrada em vigor na ordem internacional: 21
de outubro de 1950. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/
tidhuniversais/dih-conv-I-12- 08-1949.html>.

CONVENÇÃO DE HAIA (1899). Convenção para a Solução Pacífica dos Conflitos Internacionais, 1899.
A Convenção foi substituída, nas relações entre as Partes, pela Convenção com o mesmo objeto de 18
de outubro de 1907. Permanece, no entanto, em vigor nas relações entre Portugal e os Estados que
não ratificaram a Convenção de 1907. Disponível em: <http://www.gddc.pt/siii/docs/Haia1899.pdf>.

CONVENÇÃO DE HAIA (1907). Convenção para a Solução Pacífica dos Conflitos Internacionais,
1907. Disponível em: < http://bo.io.gov.mo/bo/ii/2012/12/aviso10.asp#ptg>.

DEMAREST, Geoffrey B. Espionage in the International Law. Denver Journal of International Law and
Policy, v. 24, 1995-1996.

ETCHEPAREBORDA, Roberto. Historia de las relaciones internacionales argentinas. Buenos Aires: Edi-
torial Pleamar, 1978.

FLECK, Dieter. Individual and state responsibility for intelligence gathering. Michigan Journal of Interna-
tional Law, v. 28, p. 687-709, 2006-2007.

FORCESE Craig. Spies without borders: international law and intelligence collection. Journal of National
Security Law & Policy, v. 5, p. 179-210, 2011.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6. ed. Niterói: Impetus, 2009. Parte Especial, v.II.

HILTON, Stanley E. Suástica Sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1943-1944. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

ITÁLIA. Lei nº 124, de 3 de agosto de 2007. Sistema di informazione per la sicurezza della Repubblica
e nuova disciplina del segreto. Disponível em: < http://www.camera.it/parlam/ leggi/07124l.htm>.

LACERDA, Carlos. Depoimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1977.

________________. O Caminho da Liberdade (Discurso na Comissão de Justiça da Câmara dos De-


putados). 2. ed. Rio de Janeiro: 1957.

LAFOUASSE, Fabien & BROCHAND, Pierre. L’espionnage dans le droit international. [S.l.] : Nouveau
monde, 2012. (Collection Le Grand Jeu).

LENZ, Sylvia Ewel. Aviação Civil em Tempos de Guerra: o Syndicato Condor (1927-1942). Revista
Brasileira de História Militar, v. 3, p. 3-18, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 39


Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Corte Internacional de Justiça. Caso relativo ao corpo diplomá-
tico e consular dos Estados Unidos em Teerã (Estados Unidos da América v. Irã) (1979-1981). 1981. Dis-
ponível em: <http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/ 2014/05/casos-conteciosos_1979.pdf >.

PAECHT, Arthur. Rapport sur les systèmes de surveillance et d’interception. Assemblée Nationale, n.
2623, de 11 out. 2000.

PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº. 0149919-4, 5ª Câmara Cível. Ação de indenização
por danos morais. Abordagem em supermercado. Suspeita de espionagem. Lesividade comprovada.
Critério de fixação dos danos. Excessividade. Relator: Rosene Arão de Cristo Pereira. Curitiba, 13 de
abril de 2004. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil. com.br/jurisprudencia/6381648/apelacao-civel-
-ac-1499194-pr-0149919-4/inteiro-teor-12498543 >.

RADSAN, A. John. The unresolved equation of espionage and international law. Michigan Journal of
International Law, v. 28, p. 595-623, spring 2007.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara de Direito Comercial. Apelação Cível nº.
96.001828-0. Responsabilidade civil - dano moral - empresa que pede abertura de inquérito policial,
com base em indícios de prática de crime de espionagem industrial, indicando os possíveis envolvidos.
Relator: Eder Graf. Florianopólis, 28 de maio de 1996. Disponível em: < http://tj-sc.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/4884130/apelacao-civel-ac-18280/inteiro-teor-11433370 >.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº. 332.040-4/3-00.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal nº. 1.033.718.3/6-00.

SCOTT, Roger D. Territorially Intrusive Intelligence Collection and International Law. The Air Force Law
Review, v. 46, p. 217-226, 1999.
SHULL, Aaron. Cyber Espionage and International Law. In: Global Internet Governance Academic Net-
work (GigaNet) Annual Symposium, 8th, 21 out. 2013. Bali, Indonesia. [Anais eletrônicos...]. Bali,
2013. Disponível em: <hhtp://giga-net.org/page/2013-annual-symposium >.

SILVA, Evandro Lins e. O Salão dos Passos Perdidos: depoimento ao CPDOC. Rio de Jneiro: Nova
Fronteira, 1977.

STANGER, Roland J. (Org.). Essays on Espionage and International Law. Columbus, OH: Ohio State
University Press, 1962.

SULMASY, Glenn & YOO, John. Counterintuitive: Intelligence Operations and International Law. Michi-
gan Journal of International Law, v.28, p.625-638, 2006-2007. Disponível em: <http://scholarship.law.
berkeley.edu/ facpubs/657>.

WILLIAMS Robert D. (Spy) game change: cyber networks, intelligence collection, and covert action. The
George Washington Law Review, v. 79, n. 4, p. 1162-1200, jun. 2011. Disponível em: <http://www.
gwlr.org/wp-content/uploads/2012/08/79-4-R_Williams.pdf >.

VASCONCELOS, Clever Rodolfo Carvalho e MAGNO, Levy Emanuel. Interceptação Telefônica. São
Paulo, Atlas, 2011.

40 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


INTELIGÊNCIA: EM BUSCA DA SINGULARIDADE

Marcelo Oliveira* e Eder Nonato**

Resumo

O artigo aborda características da Inteligência, em suas três acepções (atividade, conhecimento


e organização), explorando pontos de aproximação e divergência em relação a campos simila-
res. Propõe a existência de três aspectos específicos que perpassam esse tripé de sustentação e
que, em conjunto, acabam por singularizar a Inteligência. Analisa, ainda, questões concernen-
tes à Inteligência de Estado e destaca elementos fundamentais da atividade, considerando a sua
delimitação como importante para debates contemporâneos na área, tais como aquele relativo
ao controle e à fiscalização da atividade no Brasil.

Aspectos Singulares da Inteligência

M esmo fora do âmbito das ciências


cognitivas, é comum que nos de-
paremos com situações cotidianas em
(1967) e retomada por Schulsky &
Schmitt (2002), agrega três níveis in-
dissociáveis de sustentação: atividade,
que o termo “Inteligência” é empregado. conhecimento (produto) e organização.
É o caso do diretor que deseja reforçar O presente artigo busca utilizar essa trí-
a necessidade de otimização de recursos ade como guia para identificar pontos de
em uma empresa (“Precisamos investir contato e dissociação entre a Inteligência
em Inteligência, antes de lançarmos o e campos similares. Propõe, ainda, a exis-
novo produto”) ou de alguém que gosta- tência de três aspectos que entrelaçam
ria de atribuir credibilidade a uma situa- esse tripé de sustentação e que, em con-
ção (“Mandaram a notícia no meu celu- junto, acabam por singularizá-la. Os as-
lar. Dizem que vem de dados secretos da pectos singulares são: ciclo de Inteligên-
Inteligência”). O selo da “Inteligência” cia, finalidade de assessoramento e sigilo.
parece conferir respeitabilidade a algo,
ainda que seu uso inapropriado tenha No âmbito jurídico brasileiro, a Lei nº
substituído “pesquisa de mercado”, no 9.883, de 7 de dezembro de 1999, que
primeiro exemplo, e induzido alguém cria a Agência Brasileira de Inteligência
a acreditar em um boato, no segundo. (ABIN), aborda a Inteligência com a se-
Mas, afinal, o que é a Inteligência? guinte definição:
A Inteligência, exposta em sua verten- “§2° – Para efeitos de aplicação desta lei,
te moderna de modo seminal por Kent entende-se inteligência a atividade que

* Especialista e Mestre em Psicologia.

** Especialista em Direito e MBA em Gestão Empresarial.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 41


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

objetiva a obtenção, análise e dissemina- comentários e comparações no sentido


ção de conhecimentos dentro e fora do do propósito deste artigo. Feito isto,
território nacional sobre fatos e situações
de imediata ou potencial influência sobre apresentaremos alguns desdobramentos
o processo decisório e a ação governa- contemporâneos derivados dessa dis-
mental e sobre a salvaguarda e a seguran- cussão, no contexto brasileiro, tal como
ça da sociedade e do Estado.
a consolidação da Comissão Mista de
§3º Entende-se como contra-inteligência Controle das Atividades de Inteligência
a atividade que objetiva neutralizar a (CCAI), instância de controle parlamen-
inteligência adversa”. (BRASIL, 1999,
art. 1º) tar da atividade de Inteligência desenvol-
vida por órgãos e entidades da adminis-
Como explicitado nesses artigos do ba- tração pública federal brasileira.
lizador legal da realidade brasileira, a
ênfase na definição de Inteligência se
constrói sob o prisma da atividade e da Ciclo de Inteligência
consecução de seu resultado. A ativida-
de, por seu turno, engloba tanto a sua Para Kent (1967), a Inteligência com-
vertente de produção de conhecimento, preendida no sentido de conhecimento
quanto de proteção e integridade deste, envolve a definição de prioridades na
no caso da contrainteligência. abordagem de situações relevantes que,
após tratamento, deverão resultar em um
Para Kent (1967), a produto. A linguagem coloquial, por sua
Inteligência compreendida vez, costuma tratar da matéria-prima so-
no sentido de conhecimento bre a qual o profissional de Inteligência
irá atuar sob a denominação genérica
envolve a definição de
de informações, em uma consideração
prioridades na abordagem implícita de que, por si só, o acesso a
de situações relevantes que, elas seria o suficiente para se chegar ao
após tratamento, deverão produto almejado. Entretanto, também é
resultar em um produto. sabido que a multiplicidade de compre-
ensão entre as pessoas, decorrente dos
Tendo isso em mente, em que medida seus filtros subjetivos e culturais, gera in-
poderíamos, por exemplo, diferenciar o terpretações diferentes do mesmo fenô-
trabalho realizado por um profissional meno (HEUER,1999). Partindo da pre-
de Inteligência daquele levado a cabo missa de que a Inteligência exerce uma
por um jornalista investigativo? E por um função de assessoramento, o risco é que
cientista social? Um órgão governamental a informação enviesada iluda o decisor.
de assessoria técnica, ao divulgar dados
econômicos, estará fazendo Inteligência? Um episódio ocorrido às vésperas da Se-
gunda Guerra Mundial traduz de modo
Abordaremos, em seguida, algumas eloquente a distorção involuntária deri-
questões específicas atinentes às três vada da informação bruta. Graças à sua
acepções do termo Inteligência, tecendo proximidade com oficiais alemães, o avia-

42 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Inteligência: em busca da singularidade

dor estadunidense Charles Lindenbergh de Informação Militar do Exército dos


empenhou-se na obtenção de informa- Estados Unidos e assim foi repassada
ções inacessíveis aos seus compatriotas. ao Army Air Corp, carregando consigo
Entretanto, fascinado pela tecnologia e o risco inerente a um dado não-proces-
disciplina exibidas pelos nazistas e suas sado. A História acabou por desmentir
aeronaves, reproduziu os exageros teutô- Lindenbergh, com a resistência aérea in-
nicos a que havia sido apresentado - de- glesa forjando um dos mais nobres ca-
sencorajando a intervenção de seu país e pítulos do desenrolar desse conflito, na
antevendo uma flagrante derrota britânica conhecida Batalha da Inglaterra.
em poucas horas de ataque aéreo germâ-
Assim, para a Inteligência, as garantias
nico, bem como a capitulação da Europa
indispensáveis de fidedignidade e preci-
ao bel-prazer do poderio alemão (BRE-
são das informações provocarão a exis-
DEMUS, 2013; VOLKMAN, 2013).
tência de um processo particular, com o
fim de assegurá-las. Tal processo envolve
Assim, para a Inteligência, julgamento criterioso da fonte das infor-
as garantias indispensáveis mações e do conteúdo, com vistas ao
esclarecimento mais próximo possível da
de fidedignidade e
situação factual a um decisor.
precisão das informações
provocarão a existência de Essa necessidade acarretará o estabeleci-
um processo particular, com mento de um conjunto detalhado de eta-
o fim de assegurá-las. pas que permita situar a informação em
um espectro mais abrangente que, con-
firmando ou não a sua validade, acabe
Nesse caso, a informação em estado bru- por ressignificá-la. O produto resultante
to, isto é, sem análise, seguiu à Divisão é chamado de conhecimento. Sem esse

Figura 1 – Ciclo de Inteligência


Fonte: Elaborada pelos autores com base em Schulsky & Schmitt (2002) e Office of The Director of National
Intelligence (ESTADOS UNIDOS, 2013)

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 43


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

processo de ressignificação, o trabalho Assim, na doutrina de Inteligência, co-


de Inteligência é descaracterizado. nhecimento não se confunde com infor-
mação (LOWENTHAL, 2009). Enquan-
O desígnio da Inteligência como produ- to esta é gênero, aquele é espécie. A
tora de conhecimento - garantindo-lhe informação, em sentido amplo, abrange
uma sequência lógica, previsível e estru- um espectro que abarca, por exemplo,
turada e, em um nível mais abrangente, o senso comum, os dados da imprensa
compartilhada entre os pares – resulta, e a produção científica. Conhecimento,
portanto, no estabelecimento de um cir- por sua vez, é um tipo de informação,
cuito conhecido como ciclo de Inteligên- produzido de forma consciente e organi-
cia (Figura 1). Esse processo tradicional zada, por meio de um ciclo específico (à
envolve, geralmente, 6 etapas: planeja- semelhança do esquematizado na Figura
mento e direção, coleta, processamento, 1), com o objetivo de aperfeiçoar a esco-
análise e produção, difusão e feedback lha de um tomador de decisão. O conhe-
(avaliação). Em que pese a variação na cimento, por assim dizer, é a Inteligência
denominação e na quantidade de fases, acabada, pronta para ser consumida.
de acordo com a doutrina de cada órgão
ou país, essa estrutura básica replica-se, Mark M. Lowenthal (2009, p.1) distin-
em geral, com bastante similaridade. gue os dois termos da seguinte maneira:
“Information is anything that can be kno-
Por parte de quem recebe wn, regardless of how it is discovered.
o produto da Inteligência, Intelligence refers to information that
meets the stated or understood needs
a efetividade derivada do of policymakers and has been collected,
conhecimento pode resultar processed, and narrowed to meet tho-
se needs. Intelligence is a subset of the
em uma ação imediata, uma broader category of information. [...] All
ação futura ou mesmo em intelligence is information; not all infor-
uma escolha pela não-ação. mation is intelligence”.

A definição desse processo de trabalho, Assessoramento


ainda que se apresente empiricamen-
te com várias conformações, não foge Percebe-se, ainda, como traço peculiar
a essa estrutura mais ampla e se torna ao campo da Inteligência, o destinatário
um dos marcos mais característicos da a quem esses conhecimentos se dirigem:
atividade (BRUNEAU, 2002). Tal ciclo, um indivíduo ou um grupo de pessoas
que envolve em sua disposição mais capaz de intervir de modo significativo
tradicional fases que vão desde o pla- em uma realidade específica e ao qual já
nejamento do processo até sua avalia- fizemos menção anteriormente na figura
ção (feedback), passando por coleta, do decisor. O contexto dessa interven-
processamento e análise, acaba sendo ção pode estar assentado, por exemplo,
reproduzido em diversos âmbitos onde em um ambiente policial, um teatro de
a Inteligência se faz presente. operações militares ou em um tabuleiro

44 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Inteligência: em busca da singularidade

de implicações políticas, econômicas e de regulamentação em diferentes países.


diplomáticas para um Estado. Por par- Encontra-se, por exemplo, nas diretri-
te de quem recebe o produto da Inte- zes de fundação da Central Intelligen-
ligência, a efetividade derivada do co- ce Agency (CIA), que atribuem à então
nhecimento pode resultar em uma ação agência incipiente a missão de assesso-
imediata, uma ação futura ou mesmo em ramento ao Conselho de Segurança Na-
uma escolha pela não-ação. cional (KENT, 1967). No caso brasileiro,
a Lei nº 9.883 (BRASIL, 1999, art. 4º, I)
A bem da comparação anterior com a designa o Presidente da República como
atividade jornalística, a tarefa da Inteli-
destinatário do conhecimento produzido
gência não visa a alimentar o leitor com
pela ABIN.
dados que lhe sirvam de esteio para for-
mação e desenvolvimento de uma opi- Frequentemente, no âmbito da Inteligên-
nião sobre um tema, despertar de uma cia, será a própria demanda do decisor
curiosidade até então insuspeita ou mero que irá pautar os assuntos a serem por
entretenimento. Uma autoridade políti- ela explorados. Entretanto, como nos re-
ca pode usar os produtos do jornalismo corda Lares (2013), a iniciativa própria
como base para alguma tomada de deci- apresentada por agências de Inteligência
são, mas as notícias não existem necessa- na elaboração de seus produtos emerge,
riamente para exercer esse papel, como é por vezes, ocupando o vácuo deixado
função do produto da Inteligência. pela não especificação ou imprecisão de
alguns decisores sobre a definição daqui-
[...] a iniciativa própria lo que necessitam saber. Embora, para
apresentada por agências de os fins deste texto, não nos detenhamos,
Inteligência na elaboração de tal como faz Afonso (2009), em es-
seus produtos emerge, por miuçar as tensões inevitáveis envolvidas
nessa relação produtor-usuário de Inte-
vezes, ocupando o vácuo
ligência, devemos assinalar que, nessa
deixado pela não especificação interação, cabe ao decisor o desafio de
ou imprecisão de alguns escolher como e quando poderá fazer
decisores sobre a definição uso do produto ou, mais precisamente,
daquilo que necessitam saber. do conhecimento que lhe é entregue.

Por outro lado, se o conhecimento de In-


Sigilo
teligência comporta uma ou várias des-
sas facetas, o faz como estágio interme-
diário, já que o seu compromisso com o Não basta, para a Inteligência, municiar
destinatário é o de assessoramento. o seu usuário com qualquer tipo de co-
nhecimento. Dois pressupostos são rele-
A noção de assessoramento como fina- vantes para delinear a arena significativa
lidade fundamental da Inteligência en- do trabalho da atividade: o conhecimen-
contra guarida, inclusive, em dispositivos to que interessa ao campo da Inteligên-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 45


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

cia é aquele que a) emerge a partir de “Is secrecy essential to a definition of


um conflito de interesses e b) é utilizado intelligence? Warner goes so far as to
suggest that, ‘Without secrets it is not
para assegurar vantagem estratégica so- intelligence’. We also think that secrecy
bre o interesse adverso. Para assegurar is important to intelligence. A lack of se-
essa vantagem, o processo utilizado para crecy endangers the comparative advan-
produzir ou proteger conhecimentos é tage sought from intelligence. If a target
is aware that information is being collec-
resguardado pelo sigilo. Este, como de- ted on it, that knowledge could impact on
fende Cepik (2003), é indispensável à the process by allowing the target to feed
produção de Inteligência, tornando-se (dis) information into it, or adopt other
uma de suas feições mais características. countermeasures”.

Os autores concluem que “secrecy is


Guedes (2006) defende que a transmu-
essential to the comparative advantage
tação de informações para Inteligência
being aimed for” (Ibid., p. 18).
não se caracteriza apenas pela divulga-
ção restrita de seu apanhado, mas pelo Proteger conhecimentos e/ou informa-
sigilo envolvido desde a coleta. Isso, ções estratégicos e descobrir quais deles
todavia, não significa dizer que a Inte- são protegidos por adversários conferem
ligência dependa somente da conquista vantagem competitiva ao detentor desse
do dado não-disponível ou do dado ne-
instrumento (RORATTO, 2012). O pro-
gado. Ainda que eles sejam, sem dúvida,
duto da Inteligência a ser posteriormente
auspiciosos, há Inteligência que se faz,
entregue ao usuário seria rotulado desde
por exemplo, a partir de fontes abertas
sua concepção com um grau de restrição
(AFONSO, 2006). Nesse diapasão, a
ao seu acesso ou, utilizando a termino-
fonte da informação pode ser ostensiva,
logia da área, “classificado”. Em outras
mas o ato de selecioná-la, a natureza da
palavras, o sigilo decorre de uma neces-
informação coletada, o processamento
sidade estratégica destinada a assegurar
desta e a difusão do produto, em alguma
vantagem sobre o interesse adverso.
medida, precisam ser resguardados.

Lowenthal (2009, p. 1), analisando a


Inteligência e Organização
Inteligência de Estado, afirma que o se-
gredo é uma das características que a
Retornando ao exemplo inicial do pre-
diferencia das outras funções do aparato
sente artigo, os cientistas sociais ou
estatal: “Intelligence exists because go-
assessores técnicos do governo, ao
vernments seek to hide some information
from other governments, which, in turn, produzirem pesquisas e levantamentos,
seek to discover hidden information by eventualmente podem encontrar obs-
means that they wish to keep secret. Re- táculos virtualmente intransponíveis às
corda, ainda, que “Secrecy does make suas análises - porque dados essenciais
intelligence unique”. (Ibid., p. 4) estão intencionalmente protegidos por
quadrilhas, exércitos ou Inteligências ad-
Gill & Phythian (2012, p. 18) também versas. Em oposição a esse cenário de
abordam esse ponto: exceção para aqueles, esse é o territó-

46 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Inteligência: em busca da singularidade

rio clássico da Inteligência (SCHULSKY; rada e amplamente efetiva - dentro de


SCHMITT, 2002). uma perspectiva que transcenda suas
necessidades individuais, tanto o profis-
Para serem obtidos, tais dados poderiam sional de análise quanto o de operações
requisitar um esforço específico e orien- estão ligados a um modelo de organiza-
tado de atores de quem se explorem ção de Inteligência. É este o arcabouço
habilidades, competências e ações sin- capaz de institucionalmente abrigar uma
gulares: profissionais de Inteligência que atividade que sob o manto legal esteja
atuem operacionalmente em campo, sob sujeita a supervisões que funcionariam
cobertura. A estes, abre-se uma possibi- como respaldo às suas ações.
lidade mais plausível de acesso ou extra-
ção de informações negadas, por meio O desenvolvimento da Inteligência para
do uso de técnicas de Inteligência. Marrin (2005), um misto de saber técni-
co e artesanal, ensejaria etapas de edu-
cação, treinamento e desenvolvimento
As ameaças contemporâneas
de programas que favoreçam a profis-
mais comuns são: espionagem,
sionalização e o consequente aumento
sabotagem, terrorismo, da confiança dos usuários ou principais
interferência externa, ataques destinatários do produto desta atividade.
cibernéticos, crime organizado,
atividades envolvendo bens Torna-se curioso percebermos que de
de uso dual e tecnologias acordo com o ambiente em que a In-
teligência é empregada ela agrega em
sensíveis, armas de destruição
sua apresentação o epíteto de sua ori-
em massa, entre outras. gem (Inteligência policial, militar ou de
Estado, para ilustrar alguns exemplos).
Dentro da mesma organização, doutri- Longe de querermos negar especificida-
nariamente, outro grupo de profissio- des e manifestações peculiares nessas e
nais irá empreender a construção de noutras esferas (SILVA, 2012), é impres-
um cenário geral de análise, a fim de cindível notar que o uso do termo subs-
criar “quadros compreensíveis” (KENT, tantivo idêntico pressupõe colocar as
1967, p.18) consubstanciados em do- “diversas” Inteligências compartilhando
cumentos capazes de favorecer o posi- uma mesma essência, que seria apenas
cionamento do decisor. Para esse fim, contextualizada ao ambiente no qual se
dependendo da situação planejada, os aplica. E qual seria ela?
extratos provenientes do trabalho ope-
racional poderão ser necessários aos Partimos, portanto, do pressuposto que
analistas. Convém lembrar, contudo, “as várias Inteligências” possuem um
que nem sempre a ação operacional é substrato comum em seu processo e seu
demandada pelo trabalho analítico. produto, a despeito de onde operem.
Arriscaríamos dizer que mais que um
Portanto, para levarem a cabo sua ativi- rol de interesses em comum - em geral
dade - de maneira coordenada, estrutu- definido pelas prioridades de cada área

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 47


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

- todas elas partilham doutrinariamente ou marco legal assemelhado, quais são


aspectos associados à tríade apresentada os interesses estratégicos e as principais
por Kent (1967): o ciclo de Inteligência, ameaças a eles. Esse plano deve ser sub-
a finalidade de assessoramento e o sigilo. metido a revisões periódicas, em adapta-
São essas insígnias, em última instância, ção às transformações sociais.
que caracterizarão a Inteligência como
atividade, conhecimento e organização. A Inteligência de Estado, em sentido es-
trito, por meio de ações prioritárias de
promoção, tem por objetivo fazer preva-
Inteligência de Estado lecer os interesses nacionais em face dos
interesses adversos. Identificar interesses
No caso da Inteligência de Estado, es- contrários com antecedência confere
pecificamente, interesses de indivíduos, vantagens competitivas em relação aos
grupos ou de outros Estados frequente- adversários. Isso acontece quando, por
mente se contrapõem aos interesses na- exemplo, um país A toma conhecimento
cionais estratégicos, criando um ambiente da posição política do país B em momen-
de conflito. Esses interesses adversos po- to prévio à votação de uma resolução no
dem causar ameaças, reais ou potenciais, Conselho de Segurança da Organização
aos interesses nacionais. Não existe um das Nações Unidas (ONU).
rol definitivo e exaustivo sobre quais se-
jam essas ameaças ou sobre quais sejam A contrainteligência, por meio de ações
os interesses nacionais a serem protegi- prioritárias de proteção, visa a impedir
dos em face delas. As ameaças contem- a Inteligência externa ou outros adver-
porâneas mais comuns são: espionagem, sários de colocarem em risco conhe-
sabotagem, terrorismo, interferência ex- cimentos, materiais, pessoas ou ins-
terna, ataques cibernéticos, crime organi- talações nacionais. O membro de um
zado, atividades envolvendo bens de uso serviço secreto estrangeiro interessado
dual e tecnologias sensíveis, armas de na tecnologia de exploração em águas
destruição em massa, entre outras. Em profundas da Petrobrás, por exemplo,
último caso, estão as agressões militares. seria alvo da contraespionagem brasi-
leira. Também seria alvo um brasileiro
Cada Estado aponta, por meio de seus que, a serviço de um laboratório farma-
representantes políticos, quais são os cêutico privado estrangeiro, praticasse
interesses nacionais a serem protegidos biopirataria na Amazônia.
de forma prioritária em determinado
momento histórico. Os assuntos sobre
os quais se debruçam os órgãos de In- Conclusão
teligência não são, e jamais podem ser,
um rol estanque. As necessidades e as A complexidade na delimitação da In-
circunstâncias variam, de acordo com as teligência talvez se deva à sua natureza
particularidades espaciais e temporais tripla, assim como proposta por Kent
de cada país. Assim, cabe a cada nação (1967), envolvendo dimensões especí-
definir, por meio de um plano nacional ficas da atividade, conhecimento e or-

48 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Inteligência: em busca da singularidade

ganização, aludidas no decorrer desse Sob as perspectivas pública e jurídica,


artigo. Ao ser contrastada com campos o debate sobre a delimitação da Inteli-
semelhantes, tais quais o jornalismo gência assume maior relevância uma vez
ou as ciências sociais, fica claro que as que ela se configura instrumento de po-
aproximações podem se dar em um ou der do Estado. Como tal, no contexto
dois aspectos singulares da Inteligên- de um Estado Democrático de Direito,
cia (ciclo de Inteligência, finalidade de sofre restrições legais e controles exter-
assessoramento e sigilo), mas não em nos. Sendo assim, legislação que não
todos simultaneamente. ampare adequadamente o exercício da
atividade ou adote definição excessiva-
mente vaga de Inteligência gera dificul-
Sendo assim, legislação que dades no controle de seus limites, bem
não ampare adequadamente como potencializa vulnerabilidades em
o exercício da atividade ou seu emprego. Exemplo da fragilidade le-
adote definição excessivamente gal são as ausências no ordenamento ju-
vaga de Inteligência gera rídico brasileiro de medidas de proteção
de identidade dos agentes ou mesmo de
dificuldades no controle interceptação de comunicações.
de seus limites, bem como
potencializa vulnerabilidades No Congresso Nacional, a já destaca-
da atuação da CCAI prenuncia futuro
em seu emprego.
promissor para o aprimoramento de
discussões sobre a área em nosso país.
Isso porque as três secções integradas Tal colegiado concentra, entre suas atri-
atendem como bases indispensáveis de buições, a fiscalização e o controle da
um tripé às seguintes demandas expos- atividade de Inteligência brasileira no
tas à Inteligência: o que informar (eixo Legislativo, representando um locus de
conhecimento), como fazê-lo (eixo ati- tratamento especializado do tema, antes
vidade) e a quem ela se destina (eixo disperso no âmbito do Parlamento. A
organização-usuário). Os aspectos des- CCAI conta, ainda, com a prerrogativa
tacados, como o seu ciclo de produção, de apresentação de pareceres sobre pro-
a finalidade de assessoramento e o sigi- postas legislativas referentes à atividade
lo, ajudam à caracterização da atividade de Inteligência, bem como apresentação
desenvolvida por uma organização dessa de sugestões para o aperfeiçoamento da
natureza como algo singular. Política Nacional de Inteligência.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 49


Marcelo Oliveira e Eder Nonato

Referências

AFONSO, Leonardo Singer. Fontes Abertas e Inteligência de Estado. Revista Brasileira de Inteligência,
Brasília, DF, v.2, n.2, p. 49-62, abr. 2006.

_________________ Considerações sobre a relação entre as Inteligências e seus usuários. Revista


Brasileira de Inteligência, Brasília, DF, v.5, n.1, p. 7-19, out. 2009.
BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a
Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9883.htm>.

BREDEMUS, Jim. The “Lonely Eagle”: Charles Lindbergh’s involvement in WWII politics. Disponível em
<http://www.traces.org/charleslindbergh.html>. Acesso em: 20 nov. 2013.

BRUNEAU, T. C. Intelligence as profession. In: Intelligence and Democratization: the challenge of con-
trol in new democracies. Monterey: Naval Postgraduate School, 2000.
CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

ESTADOS UNIDOS. National Intelligence. U.S. National Intelligence (USNI): an overview 2013. Dis-
ponível em: < http://www.dni.gov/files/documents/USNI%202013% 20Overview_ web.pdf>. Acesso
em: 15 abr. 2014.

GILL, Peter; PHYTHIAN, Mark. Intelligence in an insecure world. 2 ed. Fully rev. and Updated. Cam-
bridge: Policy Press, 2012.

GUEDES, Luís C. A mãe das Inteligências. Revista Brasileira de Inteligência, Brasília, DF, v.2, n.2, p.
21-35, abr. 2006.

HEUER, Richards J. Psychology of Intelligence Analysis. Washington: CIA-Center for the Study of
Intelligence,1999.

KENT, Sherman. Informações estratégicas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1967.

LARES, Vítor S. Repensando comportamentos: reflexão sobre comportamentos e direção do ciclo de


Inteligência. Revista Brasileira de Inteligência, Brasília, DF, n.8, p. 69-79, set. 2013.

LOWENTHAL, Mark M. Intelligence: from secrets to policy. 4 ed. Washington D.C.: CQ Press., 2009.

MARRIN, Stephen. Intelligence analysis: turning a craft into a profession. Arlington, VA: Univ. of Vir-
ginia, [2005]. Disponível em: < http://aofi.org.br/images/inteligencia/IA_ Turning_Craft_into_Profes-
sion_Marrin.pdf >. Acesso em: 06 set. 2015

RORATTO, João M. Acepções e Conceitos de Inteligência de Estado. Revista Brasileira de Inteligência,


Brasília, DF, n.7, p. 31- 40, jul. 2012.

SHULSKY, Abram N.; SCHMITT, Gary J. Silent warfare: understanding the world of intelligence. 3 ed.
Washington, DC: Potomac Books, 2002.

SILVA, Wellington C. P. O conceito da atividade de Inteligência policial. Jus Navigandi. Teresina, v. 17,
p. 3444, 2012.

VOLKMAN, Ernest. A História da Espionagem. São Paulo: Escala, 2013.

50 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A DIVISÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO EM 1977
E OS IMPERATIVOS DE SEGURANÇA NACIONAL

Daniel Almeida de Macedo*

Resumo

Os governos militares pós-64 tinham uma proposta geopolítica a ser implementada na região
Centro-Oeste. Para executar esse projeto, os militares se valeram de um elaborado instrumen-
to de planejamento estruturado nos conceitos de “progresso” e “desenvolvimento”, termos
elaborados pela Doutrina de Segurança Nacional (DSN), concebida e lapidada pela Escola
Superior de Guerra (ESG).
A campanha “Marcha para o Oeste” concretizou uma estratégia geopolítica que enfocava os
Estados-Nação como organismos em luta pelo “espaço vital” e centrados na necessidade de
expansão e ocupação territorial como forma de afirmação da soberania e projeção de poder.
No Brasil, porém, a geopolítica não propôs a conquista de espaços fora de seu território, mas
em seu próprio território, ou seja, o “espaço vital” a ser conquistado estava dentro de nosso
imenso território, ou dentro de nosso próprio “espaço”.
Enquanto a ascensão do MDB na segunda metade dos anos setenta indicava que se aproximava
o fim do regime autoritário, o governo militar ainda precisava concluir o seu projeto geopolí-
tico de conquista do “espaço vital” e colocar o país no rumo duradouro do “desenvolvimento
com segurança”. Em razão da perspectiva do fim do regime e impulsionados pelo crescimento
político do MDB, os militares passaram a intensificar a realização de seu projeto geopolítico.
A divisão do estado de Mato Grosso ocorrida em 1977 e os grandes projetos de ocupação
e desenvolvimento na região Centro-Oeste que acompanharam esta decisão governamental
representam uma expressão desta singular conjuntura histórica.

A descompressão política e o fortale-


cimento do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB)

N a década de 1970, ao passo que o


governo militar lograva executar os
mais arrojados planos de desenvolvimen-
o reordenamento territorial, com fulcro
na Doutrina de Segurança Nacional, o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB)
to nacional, que incluíam projetos como avançava politicamente no país com uma

* É Oficial de Inteligência, Mestre em Direito Internacional pela Universidad de Chile e Douto-


rando em História Social pela USP.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 51


Daniel Almeida de Macedo

determinação impressionante, empunhan- Barbosa Lima Sobrinho. Como as elei-


do a bandeira da redemocratização. ções eram um jogo cujo resultado já se
sabia de antemão, Ulysses se apresentou
Já na segunda metade dos anos setenta, ao país como “anticandidato” e viajou
os emedebistas e os militares passaram pelo país denunciando a “anti-eleição”.
a comungar a percepção fina de que um Sem surpresa, venceu a chapa Ernesto
novo período histórico-político se apro- Geisel-Adalberto Pereira dos Santos.
ximava. Em razão da perspectiva do fim Apesar da derrota previsível, o episódio
do regime, a relação entre o MDB e os deu ao presidente do MDB visibilidade e
militares intensificou-se e os movimentos prestígio (BARROSO, 2008, p. 7).
do governo tornaram-se, em certa me-
dida, mais influenciados pelo MDB. Os A Lei Falcão foi criada para
militares, em suas manobras políticas, evitar o debate político
passaram a considerar com mais cuidado e garantir a vitória dos
as reações do principal partido oposicio-
parlamentares do partido
nista do governo, que poderia, em breve,
Aliança Renovadora Nacional
se tornar o próprio governo, invertendo
dramaticamente os polos da relação.
(Arena), que apoiava o
governo; portanto, tinha o
Desta forma o governo Geisel, inequívoco objetivo de conter
em 1974, coloca em prática o avanço da oposição.
uma estratégia de “liberalização
controlada”, caracterizada Para refrear este avanço do MBD (AL-
primordialmente pela suposta VES, 1984), o governo militar adotou
gradual e crescente valorização um conjunto de medidas destinadas a
assegurar vitória nas urnas. Desta forma
do processo político-eleitoral.
o governo Geisel, em 1974, coloca em
prática uma estratégia de “liberalização
As eleições de 1974 adquiriram caracte- controlada”, caracterizada primordial-
rísticas peculiares e marcaram um novo mente pela suposta gradual e crescente
momento de luta política para o país. valorização do processo político-eleito-
A ascensão da oposição tornou-se uma ral. Na data de 24 de junho de 1976 o
“pedra no caminho do regime militar” governo militar promulga a “Lei Falcão”
(ANDRADE, 2012). O MDB ganha vul- (Lei nº 6.339 (BRASIL, 1976)). Como
to e projeção, especialmente nas capitais resultado, pontua Fabiana da Cunha Sa-
e centros urbanos do Brasil, impulsio- ddi, “[...] a primeira metade de 1976
nando o processo de democratização. foi marcada por crescente estremeci-
Em Convenção Nacional, realizada em mento das coalizões civil e militar que
23 de setembro de 1973, o MDB lan- vinham dando suporte ao regime des-
çou, como candidatos à presidência e à de, pelo menos, 1968” (SADDI apud
vice-presidência, Ulysses Guimarães e SANTOS, 1978, p. 135).

52 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A divisão do estado de mato grosso em 1977 e os imperativos de segurança nacional

A Lei Falcão foi criada para evitar o deba- e proporcionando espaço para imple-
te político e garantir a vitória dos parla- mentar as incontornáveis reformas polí-
mentares do partido Aliança Renovadora ticas que, em breve, alterariam o quadro
Nacional (Arena), que apoiava o gover- político nacional.
no; portanto, tinha o inequívoco objetivo
de conter o avanço da oposição. Efetiva- Todavia, as medidas adotadas pelo go-
mente, a Lei Falcão deu nova redação ao verno federal não tiveram o condão de
artigo 250 do Código Eleitoral (BRASIL, aplacar o crescimento da oposição. Nas
1965), determinando limitações na pro- eleições gerais do Brasil em 15 de no-
paganda eleitoral. As limitações da Lei vembro de 1974, o MDB foi vitorioso na
Falcão só foram revogadas em 1984, maior parte dos estados da região Sudes-
quando foi liberada a propaganda elei- te e em todos os estados da região Sul.
toral na televisão (LEI Falcão..., 2006). Ademais, os candidatos da oposição ob-
tiveram votação superior à da Arena nas
demais unidades federativas, com exce-
À medida que declinava ção do Piauí, Maranhão e Mato Grosso.
a euforia do período do
“milagre econômico”, o MDB O balanço do pleito eleitoral foi revelador:
recebia mais votos a cada até mesmo em regiões mais urbanizadas
eleição para o legislativo. de estados menos desenvolvidos do Nor-
te e Nordeste (capitais e municípios po-
los), o MDB havia conquistado expres-
Já em abril de 1977, Ernesto Geisel sivo apoio nas urnas e o reduto eleitoral
aprovou o “Pacote Abril”, e, para tanto, da Arena se reduziu às áreas de base
fechou o Congresso Nacional por meio rural. À medida que declinava a euforia
do AI-5 (BRASIL, 1968). O Pacote Abril do período do “milagre econômico”, o
incidiu sobre as regras do direito eleito- MDB recebia mais votos a cada eleição
ral, impedindo que as bancadas estaduais para o legislativo. Para Mário Schmidt
tivessem mais de 55 deputados ou me- (2002, p. 282) “[...] Geisel e Figueiredo
nos de seis. Com esta estratégia, estados perceberam que o governo militar estava
menos populosos do Norte, Nordeste e esgotando os seus recursos”.
Centro-Oeste, onde a oposição ao regi-
me militar era mais branda, inclusive por A posse do General João Baptista Figuei-
estarem sob o controle da Arena, teriam redo, em 15 de março de 1979, ocor-
força política e representatividade no reu após a revogação dos atos institu-
parlamento federal que atenuaria a opo- cionais, que representavam a legalidade
sição do numeroso eleitorado das regi- paralela e supraconstitucional do regime
ões Sul e Sudeste (BARROSO, 2008). militar. “A Emenda Constitucional nº 11,
A Lei Falcão e o Pacote Abril, portan- de 13.10.1978, revogou todos os atos
to, revelaram-se eficazes para garantir a institucionais e os atos complementares
Geisel maior controle sobre a dinâmica que lhes davam execução” (BARROSO,
política, conferindo sobrevida ao regime 2008, p. 7). Figueiredo então deu con-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 53


Daniel Almeida de Macedo

tinuidade à “descompressão política” ca, concepção que nasceu às vésperas


(processo de ampliação gradativa da par- da Primeira Guerra Mundial. Tais fun-
ticipação política), promovendo a “anis- damentos enfocavam os Estados-Nação
tia e a liberdade partidária”. como organismos em luta pelo “espaço
vital” (MARTINS, 1993), centrados na
necessidade de expansão e ocupação
A Marcha para o Oeste e a luta pelo territorial como forma de afirmação da
“espaço vital” soberania e projeção de poder.

Os governos militares pós-64 tinham Cumpre destacar que, no Brasil,


uma proposta geopolítica a ser imple-
os ameaçadores episódios
mentada na região Centro-Oeste e es-
tavam determinados a realizá-la antes
separatistas e confrontos
que a oposição assumisse o governo. armados do início do século
Para executar esse projeto, os militares XIX levaram os militares a
se valeram de um elaborado instrumento considerar a necessidade
de planejamento estruturado nos con- de se “alinhavar com mais
ceitos de “progresso” e, em especial, de consistência a nação”, a partir
“desenvolvimento”, termos vinculados à da adoção de uma política
ideia de Segurança Nacional. Para a ade- nacional de interiorização
quada compreensão daquele período é
do país e controle do espaço
importante, portanto, considerar o pen-
samento geopolítico brasileiro da época,
territorial pelo Estado.
uma vez que esta concepção pautava
uma série de medidas do governo, que No Brasil, porém, a geopolítica não pro-
influenciaram, inclusive, o processo de pôs a conquista de espaços fora de seu
divisão do Estado de Mato Grosso. território, mas em seu próprio territó-
rio, ou seja, o “espaço vital” a ser con-
Na classificação do esquema quistado estava dentro de nosso imenso
território, ou dentro de nosso próprio
geopolítico de Golbery do
“espaço”. Essa formulação geopolítica
Couto e Silva, era necessário nacional se sustentava em três pilares:
integrar “três grandes
penínsulas” de “circulação a) o pensamento de Mário Travassos,
precária”: a nordestina, a consubstanciado na obra Projeção
do extremo Sul e a goiano- Continental do Brasil (1931), na qual
manifestava preocupação pela interio-
mato-grossense.
rização do Brasil, em especial a ocu-
pação do Oeste do Brasil;
A campanha “Marcha para o Oeste”,
em termos de política nacional adota- b) a obra Marcha para Oeste (1940) de
da pelo governo militar, assentava-se Cassiano Ricardo, que exerceu forte
em fundamentos teóricos da geopolíti- influência sobre o regime do Estado

54 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A divisão do estado de mato grosso em 1977 e os imperativos de segurança nacional

Novo e que afirma a excelência da Cumpre destacar que, no Brasil, os


fronteira como elemento constitutivo ameaçadores episódios separatistas e
da nacionalidade; e confrontos armados do início do século
c) a determinação do Presidente Getúlio XIX levaram os militares a considerar a
Vargas ao refutar a tese de que o go- necessidade de se “alinhavar com mais
verno tivesse pretensões imperialistas consistência a nação”, a partir da adoção
em relação aos vizinhos, já que “o im- de uma política nacional de interioriza-
perialismo brasileiro” consistia exclu- ção do país e controle do espaço territo-
sivamente “na expansão demográfica rial pelo Estado. Esta nova forma de se
e econômica dentro do próprio país”, pensar a integração do país por meio da
por isso lançou a campanha Marcha interiorização e controle levou os milita-
para o Oeste. res a conceber formas de colonizar vas-
tas regiões como o Centro-Oeste.
Portanto, se fazia necessário
todo empenho para efetivar Neste plano, a divisão de Mato Gros-
este projeto nacional e colocar so seria um importante componente de
o país no rumo duradouro uma ampla estratégia nacional por meio
do “desenvolvimento com da qual milhares de brasileiros seriam
segurança”. O governo militar fixados em regiões desocupadas e des-
guarnecidas do Brasil. Este plano de
cada vez mais precisava se
colonização proporcionaria ao governo
esmerar em sua argumentação
militar melhores condições de controlar
para promover as vultosas a nação, alinhavando-a com cidadãos
transformações no país; brasileiros estabelecidos nessas remotas
entre estas, a alteração no regiões. No caso do Estado de Mato
contorno político-territorial Grosso, a região a ser ocupada, além de
de Mato Grosso. ser periférica em relação à região Sul e
Sudeste, possui uma vasta fronteira in-
ternacional, o que tornava ainda mais
Na classificação do esquema geopolítico
de Golbery do Couto e Silva, era neces- premente a necessidade de implementar
sário integrar “três grandes penínsulas” formas eficazes de proteção e defesa.
de “circulação precária”: a nordestina, a
do extremo Sul e a goiano-mato-gros-
A Doutrina da Escola Superior de
sense. Da conjugação dessa concepção
geopolítica com os anseios separatistas Guerra (ESG)
existentes no Sul de Mato Grosso é que
surgirá a possibilidade de dividir o Esta- Ao final dos anos setenta, enquanto a
do. Contudo, a concretização dessa pos- ascensão do MDB indicava que se apro-
sibilidade, isto é, a transformação do ide- ximava o fim do regime autoritário, o
al em realidade, não se fez durante essa governo militar ainda precisava concluir
ditadura (BITTAR, 2009, p. 263-264). o seu projeto geopolítico de conquis-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 55


Daniel Almeida de Macedo

ta do “espaço vital”. Portanto, se fazia A instância formuladora da DSN - a ESG


necessário todo empenho para efetivar - foi instituída pela Lei n° 785 (BRASIL,
este projeto nacional e colocar o país no 1949). Entre seus fundadores estavam
rumo duradouro do “desenvolvimento oficiais que haviam participado da Força
com segurança”. O governo militar cada Expedicionária Brasileira, na Itália, sob
vez mais precisava se esmerar em sua ar- o comando dos Estados Unidos. Esta li-
gumentação para promover as vultosas gação com os EUA caracterizará a ESG
transformações no país; entre estas, a desde sua idealização. Este organismo
alteração no contorno político-territorial tinha como objetivo “dirigir e plane-
de Mato Grosso. jar” a segurança nacional, associada ao
desenvolvimento do país (segurança e
O arcabouço técnico-argumentativo de desenvolvimento compreendidos como
que dispunha o governo militar estava elementos interdependentes). Assim, a
fundamentado na Doutrina de Seguran- Política Nacional, na concepção “esguia-
ça Nacional (DSN), concebida e lapidada na”, se bifurca em duas vertentes:
pela Escola Superior de Guerra (ESG).
[...] a Política Nacional se desdobra em
Guardadas as devidas proporções, esse Política de Desenvolvimento e em Política
arcabouço se assemelha às atuais normas de Segurança, admitindo, respectivamen-
constitucionais programáticas. A estraté- te, os seguintes conceitos:
gia política, por sua vez, era formulada Política Nacional de Desenvolvimento,
com o apoio do Serviço Nacional de integrada na Política Nacional, é a arte
Informações (SNI), por meio dos mapas de orientar o Poder Nacional no sen-
tido de seu fortalecimento global, vi-
eleitorais e levantamentos variados pro-
sando à conquista e à manutenção dos
duzidos pelo órgão de inteligência. Objetivos Nacionais.

A DSN era um documento de plane- Política Nacional de Segurança, integrada


na Política Nacional, é a arte de orien-
jamento que, quando aplicado, condu-
tar o Poder Nacional, visando a garantir
ziria a resultados reputados benéficos a conquista ou a manutenção dos Obje-
para a sociedade”, ao passo que a li- tivos Nacionais (BRASIL, 1975, p. 83,
vraria de ameaças advindas do plano grifo nosso).
externo, leia-se, o comunismo. Tal qual Dentro dessa concepção, a diferença en-
as atuais normas constitucionais pro- tre as políticas é sutil, porém significativa.
gramáticas, a DSN indicava os objeti- A Política Nacional de Desenvolvimento
vos a serem atingidos pelo Estado por (PND) e a Política Nacional de Segurança
intermédio da melhoria das condições (PNS) integram a chamada Política Na-
econômicas, sociais e políticas da po- cional e são ambas definidas como “arte”
pulação. Alguns autores consideram, (na acepção de “ofício”). A PND orienta
inclusive, que a DSN apresentava maior o Poder Nacional no sentido de seu for-
efetividade social e jurídica do que as talecimento global, visando a conquista e
próprias normas constitucionais progra- a manutenção dos Objetivos Nacionais; a
máticas (SANTOS, 2004, p. 5). PNS também orienta o Poder Nacional,

56 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A divisão do estado de mato grosso em 1977 e os imperativos de segurança nacional

visando, no entanto, garantir a conquista Mas o que suscitava o estremecimento


ou a manutenção dos Objetivos Nacio- dos laços de coesão e produzia anta-
nais. Enquanto a PND orienta-se pelo gonismos e pressões no país da década
alcance dos Objetivos Nacionais, a PNS de setenta? Para o governo militar mui-
é posterior e visa assegurá-los. tos fatores ameaçavam a ordem política,
econômica e social naquele momento.
Segundo essa formulação os fins do Es- No plano social, vale destacar que cres-
tado são a Segurança, visando a criar e cia o descontentamento agrário e social
a manter a ordem política, econômica e no Sul do Brasil. Um produtor rural su-
social, e o Desenvolvimento, visando a lista que fosse proprietário de pequeno
promover o Bem Comum. O Bem Co- lote de terra, com o tempo teria que
mum corresponde ao objetivo nacional e dividi-lo com muitos filhos; e a chegada
se caracteriza por ser perene (inalterável) da máquina no campo, por sua vez, im-
e universal (abrangente), composto pelos pulsionava ainda mais o desemprego na-
valores “segurança e desenvolvimento, quela região. Começaram, então, os mo-
interdependentes” (BRASIL, 1975, p. vimentos de sedição e pedidos de terras,
35). Ao Estado compete: “cumprir essa desestabilizando a “ordem social”. Have-
ordem, administrando os interesses co- ria meios de resolver a situação se o re-
letivos, gerindo os bens públicos e aten- gime militar fizesse desapropriações em
dendo às necessidades gerais, função grandes propriedades, mas não era esse
o caminho dos militares no Brasil ou em
executiva ou administrativa” (Ibid., p.
toda a América Latina. A estratégia seria
27). Assim, quando se fala em “Estraté-
retirar o problema agrário do Sul promo-
gia Política”, segmento em que se discu-
vendo grandes fluxos migratórios para o
tem eventuais alterações na configuração
enorme vazio demográfico no Norte de
territorial do país, a finalidade é:
Mato Grosso.
[...] criar e fortalecer laços de coesão in-
terna e de cooperação externa, em be- Ao combinar segurança e desenvolvi-
nefício da consecução e salvaguarda dos mento, a DSN vigente à época seria o
Objetivos Nacionais, ao mesmo passo instrumento de planejamento que auxi-
que busca dissociar e enfraquecer a coe-
liaria o processo de resolução do sério
são e cooperação com que possam con-
tar os antagonistas considerados (Ibid., problema agrário da região Sul do Brasil.
p.157, grifo nosso). A DSN era uma ferramenta abrangen-
te, detalhada e interconectada de que o
Os fatores para análise da conjuntura, Presidente Ernesto Geisel dispunha para,
por sua vez, são: recorrendo a um vasto e minucioso ar-
No âmbito nacional – cultura política do cabouço conceitual, efetuar a tomada
povo, organização administrativa, estru- de decisões para a ação governamental.
tura política, dinâmica partidária, grupos Em outras palavras, a DSN dava guarida
de pressão, etc; no campo internacional
para fundamentar quaisquer atos e deli-
– antagonismos e fricções, cooperação
internacional, acordos e tratados, alian- berações sob a égide dos imperativos de
ças e contra alianças, organismos supra- Segurança Nacional, inclusive a divisão
nacionais, etc. (Ibid., p.253, grifo nosso). de um estado da Federação.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 57


Daniel Almeida de Macedo

Alterações na circunscrição federativa não fosse algo trivial, pois se tratava de


do Brasil uma decisão governamental com amplas
repercussões para as populações envol-
Quando Vargas lançou a Marcha para o vidas, até mesmo uma ação como essa
Oeste, objetivou a integração territorial, poderia ser efetivada segundo as neces-
a ocupação dos espaços ditos vazios e o sidades de “segurança”. Desde que ti-
redimensionamento das relações sociais. vessem o propósito de reforçar os laços
A conquista do Oeste significava para o de coesão interna e reduzir antagonis-
regime varguista a integração territorial mos e pressões, mudanças na circunscri-
como substrato simbólico da união de ção federativa do Brasil seriam realizadas
todos os brasileiros. A ocupação dos es- a despeito de qualquer dificuldade.
paços ditos vazios não significava, por-
O governo militar então editou uma po-
tanto, apenas e simplesmente a explora-
lítica territorial que reforçou o discurso
ção econômica da terra.
varguista-regionalista pela “cruzada pa-
triótica” de ocupação. O Plano de Inte-
A Marcha para o Oeste gração Nacional (PIN), implementado
impulsionou e deu coerência pelo governo militar, (re)adotou o mito
ao projeto militar de integrar bandeirante para promover a ocupação e
o país, mas isso apenas colonização das regiões Centro-Oeste e
não seria suficiente. da Amazônia - fato que impactou os des-
tinos da capital de Mato Grosso, em es-
pecial com o evento da divisão do Estado.
Transformadas em geradoras de riquezas
por meio da fixação do trabalhador rural, Em razão desse movimento de ocupa-
as terras em “grandes vazios” seriam tra- ção do Norte de Mato Grosso nos anos
balhadas por meio de métodos coope- 1970, mote da política de segurança na-
rativos, redimensionando as conturbadas cional dos governos militares, Lylia Ga-
relações sociais e reduzindo as tensões letti (2012) identificou, inclusive, a reati-
produzidas no Sul. A transformação do vação dos discursos heroicos fabricados
Oeste conquistado era também aprecia- pelos intelectuais do Instituto Histórico
da como suporte de sustentação para o Geográfico de Mato Grosso (IHMT) nas
“novo”, que estava sendo implantado décadas de 1920 e 1930, e também do
nas cidades, e sua extensão para o cam- governo de Getúlio Vargas, durante o
po era tida como movimento natural e Estado Novo.
inerente de acabamento da nova ordem
que se pretendia estabelecer. É de fato surpreendente verificar a
recorrência histórica dos discursos que
A Marcha para o Oeste impulsionou e fazem ressurgir o mito heroico-patriótico,
deu coerência ao projeto militar de in- como forma de fundamentar estratégias
tegrar o país, mas isso apenas não seria de poder ou dissimular os verdadeiros
suficiente. Ainda que a alteração autori- propósitos dos governos. Neste sentido,
tária dos limites entre Estados brasileiros se aplica exatamente à prática política

58 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A divisão do estado de mato grosso em 1977 e os imperativos de segurança nacional

a célebre conclusão de Antoine L. de A estratégia política para garantir a Se-


Lavoisier, pai da química moderna: “Na gurança Nacional, por sua vez, exigia a
natureza nada se cria, nada se perde, análise de vários fatores, entre eles a co-
tudo se transforma”. No caso em tela, esão interna, a cultura política do povo,
nada se cria na política, tudo é resgatado a organização administrativa, a dinâmica
de experiências pretéritas. As estratégias partidária e a estrutura política da na-
para se conquistar ou manter o poder ção. Na prática isto significava conceder
são sempre reedições de velhas práticas a prerrogativa para o governo efetuar
que, no entanto, são reapresentadas em ações de ingerência em todos estes pro-
novas e atraentes molduras culturais cessos. Nesta conjuntura, portanto, pai-
destinadas a convencer cidadãos de rava acima de tudo (e de todos) os “im-
diferentes épocas (ASHALL, 2001). perativos” de Segurança Nacional, que
proporcionavam ao Estado meios legais
para se opor a quaisquer manifestações
A estratégia política para e suas ameaças que visassem à “conquis-
garantir a Segurança Nacional, ta subversiva do Poder”. A articulação
por sua vez, exigia a análise para a aplicação do conceito de Segu-
de vários fatores, entre rança Nacional criava um conveniente e
eles a coesão interna, a oportuno espaço para uma interpretação
extensiva do que seriam manifestações e
cultura política do povo, a
suas ameaças.
organização administrativa,
a dinâmica partidária e a Segurança e desenvolvimento eram con-
estrutura política da nação. ceitos caríssimos ao governo militar, a
ponto de representarem uma verdadei-
ra obsessão. O desenvolvimento seria
alcançado por meio de ações basilares,
Desenvolvimento e Segurança para o
como investimentos infraestruturais e
governo militar
eventual apropriação direta dos recursos
naturais. Essas ações teriam, também, o
Ainda que o plano de desmembramento
condão de garantir a segurança do país.
de Mato Grosso tivesse propósitos elei-
Em outras palavras, segurança e desen-
torais subjacentes, dentro de um projeto
volvimento eram conceitos simbióticos,
amplo e reservado de poder, que incluía
faces de uma mesma moeda.
assegurar a eleição do General João
Batista Figueiredo e conquistar uma re- Uma expressão da estratégia desenvolvi-
presentação mais robusta no Congresso mentista propugnada pelo governo mili-
Nacional, esse plano era, em sua forma e tar foi a construção da rodovia Cuiabá-
conteúdo, completamente legítimo e co- -Santarém (BR 163), que se tornou um
erente com as propostas formuladas pela fator importante na história da coloniza-
ESG, pois encontrava ampla guarida na ção de Mato Grosso, facilitando o acesso
abrangente DSN. ao Norte do Estado. Antes da constru-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 59


Daniel Almeida de Macedo

ção dessa rodovia, a forma de acesso era Nacional objetivou incorporar diversos
através dos rios Arinos e Teles Pires ou significados, muitos deles originariamente
de estradas (picadas) utilizadas por se- afetos à economia, à política e à gestão
ringalistas e seringueiros. governamental. Com isso, foi construído
um conceito de grande relevância para
É evidente que o conceito justificar a classe militar como a elite
de Segurança Nacional, dirigente, bem como para outorgar ao
estruturado na ESG, foi chefe do Poder Executivo uma impor-
tante prerrogativa de expedir decretos-
muito além de um conceito
-leis. Como exemplo da abrangência do
apenas de defesa do território. conceito de segurança, é possível citar
O conceito de Segurança o Decreto-lei n.º 200 (BRASIL, 1967),
Nacional objetivou incorporar que instituiu a Reforma Administrativa –
diversos significados, muitos diploma que até hoje é vigente, no qual
deles originariamente afetos constam importantes conceitos relativos
à economia, à política e à ao Direito Administrativo –, editado com
fundamento no artigo 9.º, § 2.º, do AI-4
gestão governamental.
(BRASIL, 1966).

A BR 163 começou a ser construída em A abrangência do conceito de Seguran-


1971, no Governo Médici, e em 1976 ça Nacional, ainda durante o governo
foi entregue oficialmente ao tráfego, pelo autoritário, no entanto, passou a ser
Presidente Ernesto Geisel. Sua constru- questionada. Sobre o sentido axiológico
ção foi executada pelo 9º Batalhão de do conceito “Segurança Nacional”, Mi-
Engenharia e Construção (9º BEC). Na guel Seabra Fagundes, em pleno gover-
década de 1980, por meio do Progra- no militar, explicava corajosamente que
ma de Desenvolvimento Rural Integrado “a Segurança Nacional só tem sentido
do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), enquanto se reflete, nas suas consequ-
foi reestruturada e pavimentada a BR ências, como um fator de tranquilidade
364, ligando Cuiabá (MT) ao município e paz para todos. (...) A segurança não
de Porto Velho, no Estado de Rondônia. existe como uma abstração, isto é, por si
O espaço compreendido pela BR 64 era e para si, porém, como instrumento para
considerado um “deserto humano” e o bem coletivo” (FAGUNDES, 1974, p.
atualmente representa um dos mais im- 97). Não obstante, na perspectiva auto-
portantes eixos de desenvolvimento de ritária do governo militar em que nada
Mato Grosso. escapava à atuação do Estado cioso da
segurança de seus cidadãos, a possibi-
É evidente que o conceito de Segurança lidade de intervenção na configuração
Nacional, estruturado na ESG, foi muito geográfica de algumas partes do país,
além de um conceito apenas de defesa como foi o caso da divisão do Estado de
do território. O conceito de Segurança Mato Grosso, era uma iniciativa plena-

60 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A divisão do estado de mato grosso em 1977 e os imperativos de segurança nacional

mente justificável sob o ponto vista da A análise dos manuais da ESG, que con-
segurança e do desenvolvimento. feriam coerência doutrinária às ações de
governo, demonstra que a divisão de
Mato Grosso foi amplamente inspirada
Considerações finais nos conceitos da geopolítica nacional vi-
gentes e estruturada a partir dos impera-
A proposta geopolítica do governo mili- tivos da segurança e do desenvolvimento.
tar para a região Centro-Oeste significa-
va conquistar o “espaço vital” nos limites Ao passo que a ascensão do MDB ao fi-
do vasto território brasileiro e colocar o nal da década de setenta indicava que se
país no rumo duradouro do desenvolvi- aproximava o fim do regime autoritário,
mento com segurança. Para executar este eram intensificadas as ações dos militares
grandioso projeto nacional, o governo de para realizar o seu projeto geopolítico.
Ernesto Geisel valeu-se de um elaborado O desmembramento do Estado de Mato
instrumento de planejamento estrutura- Grosso originando o estado de Mato
do nos conceitos de “progresso” e “de- Grosso do Sul, em 1977, é uma expres-
senvolvimento”, termos definidos pala são deste formidável entrelaçamento his-
Doutrina de Segurança Nacional (DSN). tórico de fatos e acontecimentos.

Referências

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Editora
Vozes, 1984.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. No meio do caminho. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.

ASHALL, Frank. Descobertas Notáveis - Do Infinitamente Grande ao Infinitamente Pequeno. Lisboa:


Replicação, 2001.

BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: o Estado a que chegamos.
RDE: Revista de Direito do Estado, v. 10, 2008.

BITTAR, Marisa. A construção de um estado: regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso. Cam-
po Grande: Ed. UFMS, 2009.

BLOCH, Marc. A história, os homens e o tempo. In: BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do
historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRASIL. Ato institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966. Convoca o Congresso Nacional para se
reunir extraordináriamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, para discursão, vo-
tação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República, e dá outras
providências. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-04-66.htm >.

BRASIL. Ato institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de


janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção
nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de
quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais,

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 61


Daniel Almeida de Macedo

e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm >.

BRASIL. Código eleitoral. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Disponível em: < http:// www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/Leis/L4737compilado.htm >.

BRASIL. Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sôbre a organização da Administração


Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0200 compilado.htm >.

BRASIL. Lei nº 785, de 20 de agosto de 1949. Cria a Escola Superior de Guerra e dá outras providên-
cias. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-1949/ L785.htm >.

BRASIL. Lei nº 6.339, de 1º de julho de 1976. Dá nova redação ao artigo 250 da Lei nº 4.737, de 15
de julho de 1965, alterado pelo artigo 50, da Lei número 4.961, de 4 de maio de 1966, e ao artigo
118 da Lei nº 5.682, de 21 de julho de 1971. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/1970-1979/L6339.htm >.

BRASIL. Ministério da Defesa. Escola Superior de Guerra. Departamento de Estudos. A Escola Superior
de Guerra: origem – evolução – tendências - C1 – 123 – 72. Rio de Janeiro, 1972. Mimeografado.
_________. Currículos dos Cursos – D1 – 74. Rio de Janeiro, 1974. Mimeografado.

_________. Manual básico – MB - 75. Rio de Janeiro, 1975.

COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

DUARTE, Luiz Cláudio. Os conceitos de segurança e desenvolvimento: desvelando o discurso esguiano.


In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26., julho 2011, São Paulo. Anais... São Paulo:
ANPUH, 2011.

FAGUNDES, M. Seabra. Direitos do homem, ordem pública e segurança nacional. Revista de Direito
Público, São Paulo, ano 7, v. 30, 1974.
GALETTI, L. S. G. Sertão, fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso no mapa da civilização. Cuiabá:
Ed. UFMT; Entrelinhas, 2012.

LEI Falcão faz 30 anos (A). Senado Notícias, Brasília, DF, 3 jul. 2006. Disponível em: < http://www12.
senado.leg.br/noticias/materias/2006/07/03/lei-falcao-faz-30-anos >. Acesso em: 20 set. 2014.

MARTINS, L. Friedrich Ratzel através de um prisma. 1993. Dissertação (Mestrado) – Universidade


Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993.

SADDI, Fabianax da Cunha. Política e economia no federalismo do governo Geisel. Revista de Economia
Política, v. 28, n. 2, abr.-jun. 2003.
SANTOS, Marcos André Couto. A efetividade das normas constitucionais: as normas programáticas e a
crise constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 204, 2004.

SCHMIDT, Mário Furley. Nova História Crítica. São Paulo: Nova Geração, 2002.

SILVA, G. C. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

62 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A COOPERAÇÃO SINO-RUSSA:
As implicações do “Pacto de Segurança Cibernética” e as relações
sino-russas

Guilherme Henrique Lima de Mattos*

Resumo

A cooperação sino-russa, desenvolvida desde o fim da União Soviética, alcançou um patamar


mais estável durante os anos 2000. Foram diversos acordos para fomentar a aproximação do
relacionamento entre China e Rússia nas áreas militar, econômica, política e cultural, tanto
bilateralmente, quanto em organismos multilaterais. Historicamente, essas relações têm como
característica a não-vinculação dos Estados a alianças de segurança ou de qualquer outra
categoria. No entanto, a atualidade apresenta uma nova característica dessa relação bilateral,
pois estes Estados têm realizado diversos acordos militares e de segurança que vinculam um
ao outro. Exemplo disso é o Pacto de Segurança Cibernética de 2015, que permite um maior
fluxo sino-russo de informações de inteligência e promove a cooperação em defesa con-
tra ataques cibernéticos recíprocos e também aqueles realizados por terceiros. Esse acordo
demonstra os esforços dos Estados chinês e russo para o desenvolvimento da sua aliança e
uma maior identificação mútua de interesses, aspirações e objetivos no cenário internacional.
Assim, o acordo sobre a área de inteligência é central para entender o futuro das relações
sino-russas e funciona como uma forte expressão dos anseios de ambos os Estados para com
a ordem mundial vigente.

Introdução

E ste artigo se propõe a tratar as im-


plicações que o Pacto de Segurança
Cibernética de 2015 entre China e Rús-
o governo de Vladimir Putin no Estado
russo. Essa aproximação pode ser cons-
tatada pela grande quantidade de acor-
sia tem sobre as relações sino-russas e dos bilaterais que têm sido concordados
o que ele representa para o desenvol- entre os Estados e pelas categorias des-
vimento desse relacionamento e para o ses acordos e das ações conjuntas que
cenário internacional. Os governos chi- eles vêm articulando.
nês e russo vêm se aproximando política
e economicamente nos últimos tempos. A cooperação nos âmbitos político, mili-
Isso acontece, principalmente, desde os tar, cultural e econômico tem aproximado
anos 2000 e, mais precisamente, desde os dois Estados e fomentado a confiança

* Graduando do curso de Relações Internacionais pelas Faculdades de Campinas (FACAMP),


em Campinas – SP, e possui amplo interesse em relações sino-russas e continente
asiático, atuando recentemente em pesquisas nas áreas de Inteligência, economia política
internacional e ordem mundial.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 63


Guilherme Henrique Lima de Mattos

entre eles. Este sentimento fica expres- o conteúdo do documento e as inter-


so nos tratados assinados entre China e pretações que são geradas a partir dele.
Rússia no mês de maio de 2015, entre Nessa seção, fica exposto o impacto des-
estes, o Pacto de Segurança Cibernética. te acordo sobre as relações sino-russas e
Esse acordo refere-se, entre outros as- o aprofundamento da conexão que existe
pectos, ao intercâmbio de conhecimen- entre essas nações. A última seção con-
tos de inteligência e à proibição de ata- tem as considerações finais que trazem a
ques cibernéticos entre as contrapartes importância desse tipo de tratado para a
do tratado. Existiria, portanto, um novo aliança existente entre os dois Estados. O
grau de engajamento internacional entre instrumento internacional possui um ca-
esses dois atores do sistema internacio- ráter de superação de desconfianças his-
nal, uma vez que são atribuídas carac- tóricas nas relações entre China e Rússia,
terísticas não observadas anteriormente já que, em um passado recente, em ra-
nas relações entre a China e a antiga zão de questões territoriais não resolvi-
União Soviética? das, estas nações estiveram posicionadas
em polos antagônicos.
O início das relações
contemporâneas entre China Características principais das relações
e Rússia se deu por interesses sino-russas nos anos 2000
regionais de estabilização,
para que ambas pudessem Desde 1992, a Rússia recém-formada e
a China, desenvolvem oficialmente es-
gerar desenvolvimento e
forços para aproximar suas relações com
crescimento nacionais, qualidade amigável entre eles. Em 1997,
inclusive considerando-se as duas nações elaboraram uma decla-
que, a partir dos anos 2000, ração conjunta defendendo um mundo
a China passa a ganhar mais multipolar e o estabelecimento de uma
relevância econômica no nova ordem mundial. Porém, somente
cenário internacional. em 2001, esses esforços atingiram a le-
gitimidade de um acordo entre as duas
nações: o Tratado de Boa-Vizinhança,
Para responder a esta pergunta, o arti- Amizade e Cooperação (TREATY...,
go é dividido em três partes: a primei- 2001). Dados da Organização das Na-
ra seção é direcionada à cooperação ções Unidas (ONU) apresentam que, de
sino-russa e seus principais aspectos nos 1974 a 2008, apesar de um distancia-
anos 2000 e na atualidade, expondo as mento de 20 anos, dos anos 1970 aos
áreas principais de cooperação e os acor- anos 1990, as votações no Conselho de
dos principais que a balizam. A segunda Segurança das Nações Unidas da nação
seção está direcionada ao pacto de segu- chinesa e da nação russa tiveram um per-
rança cibernética, seus principais dispo- centual de votos idênticos de 65,99% de
sitivos e suas implicações para o cenário um total de 3.384 votos (FERDINAND,
internacional; nesta parte, analiso, ainda, 2011), o que demonstra um comporta-
64 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015
A cooperação sino-russa:
as implicações do “pacto de segurança cibernética” e as relações sino-russas
mento em votações muito próximo entre cooperação militar sino-russa, atualmen-
as duas nações e também um desejo co- te, adquire especial significado ao se
mum em imprimir determinadas caracte- considerar os conflitos entre Ucrânia e
rísticas às relações internacionais. Rússia, e seus impactos no Ocidente e
no Mar do Sul da China, e a contrapo-
O início das relações contemporâneas sição por parte dos Estados Unidos da
entre China e Rússia se deu por inte- América (EUA).
resses regionais de estabilização, para
que ambas pudessem gerar desenvolvi- Essa aproximação entre
mento e crescimento nacionais, inclusive
os dois países e uma
considerando-se que, a partir dos anos
identificação recíproca das
2000, a China passa a ganhar mais rele-
vância econômica no cenário internacio- partes permitiram a celebração
nal. Atualmente, a China se propõe ao de um avançado acordo em
desenvolvimento pacífico, que abrange o segurança da informação
crescimento econômico sem gerar confli- e outros instrumentos
tos com as grandes potências do sistema internacionais correlatos
internacional (LANTEIGNE, 2009). A destinados à eliminação de
Rússia, por sua vez, desponta como um ataques cibernéticos, como
parceiro importante devido à capacidade o acordo de abril de 2015.
de prover os recursos naturais que a Chi-
na não possui e de suprir demandas de
equipamentos de defesa que a nação chi- Tais aspectos trouxeram a cooperação
nesa não produz. Este último elemento militar a um avanço importante, pois faz
alcança o montante de US$559 milhões aumentar os investimentos tanto chineses
em 2010 nas importações de equipa- como russo na área de desenvolvimento
mentos de defesa russos comprados pela militar de tecnologias e armas, moderni-
China (FERDINAND, 2011). Assim, as zação dos equipamentos e das estraté-
relações sino-russas são caracterizadas gias regionais (KULIKOVA, 2015). Dessa
principalmente pelos elementos eco- maneira, os anos de 2014 e 2015 têm
nômico e político para a estabilização sido palco de novos acordos entre as na-
regional: a primeira característica serve ções asiáticas. Apesar do que afirma Fer-
para gerar desenvolvimento para a re- dinand (2011, p. 37) sobre a China ser
gião, e a segunda, para garantir que esse avessa a qualquer tipo de aliança formal,
desenvolvimento aconteça sem grandes a cooperação tem mostrado um nível
problemas com as grandes potências do profundo de engajamento entre os dois
mundo capitalista. países. Dispositivos jurídicos têm sido
elaborados para aproximar as nações,
Uma vertente importante das relações e estudos sobre as respectivas culturas
sino-russas, consequentemente, é a co- têm sido amplamente fomentados, além
operação militar, que tem apresentado da articulação de inúmeras operações e
grande crescimento nos anos 2000. A treinamentos militares conjuntos entre o

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 65


Guilherme Henrique Lima de Mattos

exército russo e o exército chinês. Além Essa aproximação entre os dois países e
do empenho em fomentar as relações uma identificação recíproca das partes
culturais, a China demonstra forte inte- permitiram a celebração de um avança-
resse em implementar alianças em maté- do acordo em segurança da informação
ria de segurança com os soviéticos, o que e outros instrumentos internacionais
tem resultado na celebração de dezenas correlatos destinados à eliminação de
de acordos bilaterais entre os presidentes ataques cibernéticos, como o acordo de
Putin e Xi Jinping (ROTH, 2015). abril de 2015. O pacto propõe alto flu-
xo de informações secretas entre China
Esses acordos tiveram como objetivo e Rússia, por meio de formas e jurisdi-
reafirmar e elevar o bom e estruturado ções concordadas entre eles, bem como
relacionamento entre as duas nações a estabelece que os Estados não realiza-
novos patamares, o que tem promovi- rão ataques cibernéticos à contraparte
do uma identificação entre as partes em no futuro, para que ambos possam, em
suas decisões no sistema internacional, conjunto, defender-se de ataques exter-
engajando os comportamentos desses nos contra seus governos. Tal acordo
dois países em questões de segurança e
envolve os sistemas de inteligência dos
política internacional.
Estados e seus serviços de informação
interna e externa.
[...] a aproximação entre
esses dois Estados na área Propostas do acordo de maio de 2015 e
de segurança da informação suas implicações
representa um fenômeno
A cooperação estabelecida entre os dois
importante para as relações
maiores Estados asiáticos teve um novo
internacionais, pois aproxima avanço no dia 08 de maio de 2015, pois
seus sistemas de inteligência e foi firmado um novo acordo de coope-
prioriza a ação de espionagem ração que toca as áreas de informação,
e ataques cibernéticos para inteligência e segurança cibernética. Di-
ferentemente de acordos anteriores de
fora da cooperação sino-
cooperação, esse novo pacto estabelece
russa. O tratado representa limites às ações tomadas no que se refe-
o esforço da cooperação re à informação entre China e Rússia. O
montada entre os dois países instrumento internacional celebrado de-
para o questionamento da fine o compromisso de se obter permis-
ordem mundial atual liderada são do outro Estado para o uso de infor-
mações obtidas por um deles em relação
pelos EUA, que propõe limites ao outro. Além disso, o Pacto de Segu-
aos interesses estratégicos rança Cibernética estabelece a decisão
russos e chineses. por um maior fluxo de informações entre
os dois países, a fim de desenvolver suas

66 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A cooperação sino-russa:
as implicações do “pacto de segurança cibernética” e as relações sino-russas
relações de cooperação econômica e po- cos a alvos das mais variadas naturezas
lítica, mas também promover paz e se- (BEECH, 2011). O desenvolvimento de
gurança no sistema internacional. Desse ambos os Estados na área de tecnologia
modo, vale analisar as partes desse trata- cibernética tem avançado com rapidez e
do, para se compreender as implicações demonstra seus interesses, cuja raiz está
reais desse movimento político para as atrelada à independência e autonomia
relações sino-russas. em relação aos líderes ocidentais: EUA
e União Europeia.
Tanto a Rússia como a China têm des-
pontado como atores relevantes no que Desse modo, a aproximação entre esses
concerne à segurança cibernética, uma dois Estados na área de segurança da in-
vez que ambos são atores que têm de- formação representa um fenômeno im-
senvolvido equipamentos capazes de portante para as relações internacionais,
operar remotamente para fins de espio- pois aproxima seus sistemas de inteligên-
nagem e sabotagem em localidades dis- cia e prioriza a ação de espionagem e
tantes. A Rússia historicamente avança ataques cibernéticos para fora da coope-
na área da informação e da tecnologia ração sino-russa. O tratado representa
(LEE, 2015), principalmente aquelas que o esforço da cooperação montada entre
são pensadas para o uso do Serviço Fe- os dois países para o questionamento da
deral de Segurança (FSB) em operações ordem mundial atual liderada pelos EUA,
a mando do governo russo, o que se que propõe limites aos interesses estra-
intensificou a partir dos eventos de 11 tégicos russos e chineses.
de setembro de 2001 para o desenvolvi-
mento de estratégias antiterrorismo. O Pacto de Segurança Cibernética, as-
sinado no dia 9 de maio de 2015, por
O Estado russo ainda criou o seu próprio sua vez, refere-se pontualmente aos
comando cibernético, cujo mandato é o aspectos para a cooperação sino-russa
desenvolvimento de operações de ataque no âmbito da segurança da informação.
cibernético, espionagem e sabotagem Nele são delimitados termos para a coo-
de inimigos da nação russa (CLAPPER, peração e suas interpretações, para que
2015). Enquanto isso, a China também sejam usados como balizadores para os
tem demonstrado esforços extremamen- dois lados no momento de uso do tra-
te significantes quanto à segurança ci- tado. Da mesma maneira, são definidos
bernética, uma vez que, apesar do uso os elementos cuja categoria de qualifica-
de equipamentos mais robustos (Ibid., ção se encaixa em ameaça à segurança
2015), foi capaz de construir um siste- da informação, isto é, saber o que seria
ma de firewall eficiente o bastante para considerado uma ameaça aos sistemas
aprimorar o controle de informações de informação, aos interesses do Estado
que entram e deixam o Estado chinês. e ao próprio Estado (LEWIS, 2015).
Juntamente a isso, foi criado o projeto
“Online Blue Army”, uma força-tarefa No segundo dispositivo do Pacto de
chinesa direcionada à proteção dos sis- Segurança Cibernética de 2015, são
temas do país contra-ataques cibernéti- descritos os elementos que passam a

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 67


Guilherme Henrique Lima de Mattos

ser considerados ameaçadores pela co- te por questões sensíveis e subjetivas.


operação. Neles estão incluídas tecno- Isto porque as interferências a assun-
logias de comunicação e de informação tos internos podem vir dos mais varia-
que tenham o propósito de prejudicar a dos grupos sociais que defendam ideias
sociedade nos seguintes aspectos: a) so- adversas ao que propõe oficialmente o
berania e integridade do Estado; b) eco- governo, ou àquilo que é interesse e
nomia e infraestrutura; c) terrorismo ou aspiração do Estado. No entanto, é im-
sua promoção; d) ação criminosa contra portante ressaltar que o acordo revela o
o Estado ou contra particulares; e) inter- esforço dos dois países em combater o
ferência em assuntos internos e incitação terrorismo e defender a expressão dos
de ideologias que prejudiquem os indi- ideais religiosos e culturais nacionais.
víduos, provocando violência e instabili- Nele os Estados se propõem a se en-
dade na sociedade; e, f) disseminação de gajar a favor da estabilidade social e em
informações que prejudiquem o ambien- oposição a movimentos que possam ser
te cultural, político e socioeconômico de ofensivos às culturas ou aos indivíduos.
outros Estados (LEWIS, 2015).

Há que se considerar que Intercâmbio sino-russo de conhecimen-


tos de inteligência e tecnologia militar
o volume de informações
que serão trocadas sobre
Toda a vasta gama de ameaças cobertas
ameaças será alto, e a ação pelo pacto estaria sujeita à cooperação
para detê-las poderá ter uma para a segurança nos dois países. Para
maior eficácia e abrangência isso, ficaram determinadas, no pacto, as
pela dupla interpretação e áreas de cooperação e a responsabilida-
análise mais profunda a partir de de analisar e determinar o que fazer
dos serviços de inteligência quanto às ameaças. O principal meio é
chinês e russo: [...] o intercâmbio de informações e a trans-
ferência de tecnologias entre os Estados
para que se possa expandir as vias de
Logo, o pacto mostra-se abrangente na
ação (LEWIS, 2015), a fim de solucionar
delimitação das ameaças, o que pode ser
crises e deter ameaças com mais agilida-
usado posteriormente para encaixar di-
de por ambas as partes. Isso toma pro-
versas ações como ameaças aos interes-
porções interessantes quando se recorda
ses de ambas as partes do acordo.
que as partes dessa cooperação são uns
Ademais, o que pode ser observado é dos maiores desenvolvedores de tecno-
um empoderamento do Estado em re- logias voltadas à censura no ciberespaço
lação ao tratamento dos assuntos inter- e ao movimento de informações, tanto
nos, pois, com este acordo, permite-se nacionais quanto internacionais. Há que
identificar uma extensa gama de grupos se considerar que o volume de informa-
que podem ser reprimidos futuramen- ções que serão trocadas sobre ameaças

68 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A cooperação sino-russa:
as implicações do “pacto de segurança cibernética” e as relações sino-russas
será alto, e a ação para detê-las pode- Anulação recíproca das ameaças e redi-
rá ter uma maior eficácia e abrangência recionamento dos ataques cibernéticos
pela dupla interpretação e análise mais
profunda a partir dos serviços de inte- Em relação a este aspecto, existe aqui
ligência chinês e russo: o Ministério de um nível preocupante de liberação de in-
Segurança do Estado (MSE), Agência de formações secretas entre os Estados que
Segurança da China, e o FSB, Agência podem gerar certo nível de vulnerabili-
de Inteligência da Federação Russa. dade para ambos, caso exista um novo
episódio de cisão na aliança sino-russa.
Esta constatação leva à conclusão de que
Como exemplo de confiança, a aproximação entre os países aumenta o
insere-se um importante e novo “front cibernético” das duas nações, já
que permite a preocupação com disputas
aspecto referente à proteção
importantes comuns, ou não, entre eles,
de informações governamentais o que imputa uma maior atenção à área
na cooperação sino-russa: a de guerra cibernética nos dois Estados
proteção do ciberespaço. (BERNSTEIN, 2015). Existe aqui um
elemento profundo de confiança fomen-
tada nessas relações bilaterais, pois alo-
No arcabouço de cooperação já estabe- cam, em caráter secundário, os pontos
lecido desde 2001 entre os dois países divergentes entre as duas nações para
com o “Tratado de Boa Vizinhança e dar lugar principal à liberação de infor-
Cooperação Amistosa entre a República mações para segurança mútua.
Popular da China e a Federação Russa”
Como exemplo de confiança, insere-se
(TREATY..., 2001), o Pacto de Segu- um importante e novo aspecto referente
rança Cibernética ressalta e reforça os à proteção de informações governamen-
aspectos mais importantes das relações tais na cooperação sino-russa: a pro-
sino-russas: a) atenção à lei internacio- teção do ciberespaço. Pelo tratado em
nal; b) intercâmbio de informações; c) questão, fica acordado entre as partes
desenvolvimento de operações conjun- que os Estados da China e da Rússia têm
tas; d) desenvolvimento de pesquisas e direito de proteção quanto às suas infor-
treinamento de especialistas (neste caso, mações e concordam em não promover
para a área de segurança cibernética); e, ataques cibernéticos à contraparte (RI-
e) identificação de riscos e oportunidades SEN, 2015). Esta cláusula tem diversas
de ambas as partes (LEWIS, 2015). Logo, implicações para a inteligência e para a
existe um esforço, demonstrado por esse segurança internacional, considerando-
pacto bilateral, no compartilhamento das -se que estamos tratando de duas po-
ameaças aos Estados, o que propõe um tências em segurança cibernética, pois
engajamento entre eles que exporia à reduz as preocupações existentes entre
contraparte diversas informações sobre Rússia e China para ataques cibernéticos
os pontos críticos da sua segurança. oriundos de algum deles.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 69


Guilherme Henrique Lima de Mattos

Ademais, Rússia e China passarão a mo-


nitorar com mais rigor o ambiente do- Observa-se, assim, mais um
méstico, em seus recíprocos territórios, movimento de aproximação
para que não sejam deflagrados ataques entre os Estados da China
cibernéticos à contraparte. Isto permite e da Rússia, que vem
a constatação de que não apenas ata- promovendo diversos acordos
ques cibernéticos oficiais fazem parte do
de cooperação política,
acordo, mas também estão abrangidos
ataques provenientes de particulares. econômica, militar e cultural.
Entretanto, não é prudente dizer que es-
sas preocupações são definidamente ex- Apesar da volatilidade que a hegemonia
cluídas, pois os serviços de inteligência dos EUA tem demonstrado, ela ainda
trabalham, a todo momento, com movi- existe e atua firmemente no cenário in-
mentos de informações secretas que têm ternacional por vias políticas, militares e
relação com diversas instâncias do meio econômicas. Adiciona-se a isso a quan-
internacional, e não se pode afirmar a tidade de acordos econômicos que am-
origem delas e muito menos o proces- bos, China e Rússia, têm com os EUA, e
so realizado para sua obtenção. Além que podem ser prejudicados com tal di-
disso, dado o avanço do terrorismo e o recionamento estratégico (FERDINAND,
aumento da desconfiança entre a maio- 2011). Também se deve ressaltar que,
ria dos Estados, é improvável que haja em grande parte dos acordos e nos di-
uma completa extinção da atividade de álogos existentes entre China e Rússia,
espionagem e ataques cibernéticos pú-
as nações não discursam sobre uma es-
blicos ou privados, mesmo entre partes
tratégia contra os EUA. China e Rússia
de um tratado de cooperação na área de
ponderam seus acordos como pactos de
segurança. Haverá sempre limites para a
duas nações que procuram mútuo bene-
cooperação entre países.
fício e que não envolvem terceiras partes
Em relação a este aspecto, diversas inda- em suas decisões (ROTH, 2015). Dessa
gações têm sido feitas quanto aos limites maneira, uma conexão direta desses ar-
da cooperação em segurança cibernética. gumentos torna-se falaciosa e inconsis-
A principal delas questiona se a anulação tente quando se observa o cenário atual:
das ameaças entre China e Rússia per- existem aspectos que permitem a infe-
mitiria um redirecionamento quase que rência dessas interpretações, no entan-
instantâneo dos ataques cibernéticos de to, elas não se sustentam se colocadas à
ambos os Estados para os EUA (LYNGA- prova de fatos.
AS, 2015). É inquestionável que existe
essa possibilidade, já que são diversos os Observa-se, assim, mais um movimen-
campos em que seria interessante para to de aproximação entre os Estados da
os dois asiáticos terem a influência e o China e da Rússia, que vem promovendo
poder dos norte-americanos estrutural- diversos acordos de cooperação política,
mente diminuídos; contudo, essa relação econômica, militar e cultural. O serviço
não pode ser tomada instantaneamente. de inteligência de um Estado é parte im-

70 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


A cooperação sino-russa:
as implicações do “pacto de segurança cibernética” e as relações sino-russas
portante de um governo e está frequen- rém, a historiografia registra que o vín-
temente alinhado a ele, para que possa culo feito recentemente como a Rússia
promover as informações necessárias somente pode ser comparado à aliança
para a tomada de decisão e para realizar com a antiga União Soviética.
operações que beneficiem os interesses e
aspirações dessa entidade governamen- Opostamente a essas características, as
tal. Um aspecto importante no Pacto de relações sino-russas atuais demonstram
Segurança Cibernética de 2015 é que um ótimo relacionamento entre os go-
este instrumento conecta informações vernos de Vladimir Putin e Xi Jinping,
de sistemas de inteligência e permite um por meio da participação conjunta nos
maior fluxo de informações secretas e de exercícios militares, afinação cultural
categoria de segurança. Pode gerar, por entre as populações, transferência de
outro lado, alto nível de vulnerabilidade e tecnologia, intercâmbio de informações
riscos aos Estados-parte. Há pouco tem- estatais, acordos comerciais, preferência
po na história dos dois países, as relações para exportação e importação de produ-
entre eles encontravam-se prejudicadas tos e, atualmente, cooperação na área de
por questões territoriais, que foram sa- inteligência no que toca o ciberespaço, a
nadas em 2001 com o tratado assina- defesa contra ataques cibernéticos e os
do em julho, já mencionado (TREATY..., ataques conjuntos ainda com possibilida-
2001). A cooperação que vem sendo des de serem articulados.
desenvolvida entre esses dois Estados
asiáticos demonstra um novo momento
Considerações finais
das relações sino-russas, que passa a ser
caracterizada pelo engajamento profun-
As relações sino-russas muito têm a ga-
do entre as partes, em prol de um obje-
nhar com a assinatura deste pacto de
tivo de seus Estados frente ao Ocidente.
segurança cibernética. Desde muito, os
A Rússia, desde o fim da Guerra Fria em países vêm desenvolvendo acordos para
1991, mostra-se debruçada sobre ques- benefício mútuo, estabilização regional
tões internacionais e demonstra o víncu- e independência dos ditames ociden-
lo de defesa claro a determinados países tais. Esses acordos permitiram que os
na política internacional a fim de privile- países se identificassem o bastante para
giar seus interesses no mundo. A China, começar a agir conjuntamente em áre-
historicamente, tem uma política externa as como a segurança da informação sem
de neutralidade e não-envolvimento de preocupações maiores que possam mi-
alianças (LANTEIGNE, 2009), como a nar as relações repentinamente. O pacto
que vem sendo desenvolvida com os vi- de segurança cibernética é um exemplo
zinhos russos. A nação chinesa posicio- claro disso e sinaliza o profundo grau do
na-se em assuntos que estão conectados relacionamento entre os dois países por
a ela, como a questão de Taiwan, ou as meio do aumento do fluxo de informa-
questões do Mar do Sul da China, po- ções classificadas como de alta impor-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 71


Guilherme Henrique Lima de Mattos

tância para os Estados. Isso representa mero de acordos e ações conjuntas entre
um avanço importante para as relações esses Estados aumentará, aprofundando
sino-russas, pois, muito provavelmente, ainda mais o grau do relacionamento e
dependendo do comprometimento das da confiança gerada entre as nações,
partes com o conteúdo do acordo, o nú- suas populações e seus governos.

Referências

BEECH, H. Meet China’s newest soldier: an online blue army. Time, may 27, 2011. Disponível em:
<http://world.time.com/2011/05/27/meet-chinas-newest-soldiers-an-online-blue-army/>. Acesso em:
28 jun. 2015.

BERNSTEIN, L. Ex-US intelligence officer worries about Russia-China cyber security pact. Sputnik, may
12, 2015. Disponível em: <http://sputniknews.com/military/20150512/ 1022061006.html>. Acesso
em: 26 jun. 2015.

CLAPPER, J. Statement for the record: Worldwide threat assesment of the US intelligence community.
Senate Armed Services Committee, feb 26, 2015. Disponível em: <http://cdn.arstechnica.net/wp-con-
tent/uploads/2015/02/Clapper_02-26-15.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2015.

FERDINAND, P. Sino-Russian relations: an analytical overview. In: MOSHES, A.; NOJONEN, M.


(Orgs.). Russia-China relations: current state, alternative futures, and implications for the West. Helsinki:
The Finnish Institute of International Affairs, 2011. p. 22-37.

KULIKOVA, A. China-Russia cybersecurity pact: should the US be concerned? Russia Direct, may 21,
2015. Disponível em: <http://www.russia-direct.org/analysis/china-russia-cyber-security-pact-should-
-us-be-concerned>. Acesso em: 28 jun. 2015.

LANTEIGNE, M. Chinese foreign policy: an introduction. Nova York: Routledge, 2009.

LEE, N. Counterterrorism and cybersecurity: total information awareness. 2. ed. Nova York: Springer, 2015.

LEWIS, J. Sino-Russian cybersecurity agreement 2015. CSIS Strategic Technologies Program, may 15,
2015. Disponível em: <http://www.csistech.org/blog/ 2015/5/11/sino-russian-cybersecurity-agree-
ment-2015>. Acesso em: 25 jun. 2015.

LYNGAAS, S. Debating the Sino-Russian cyber pact. FCW – The Business of Federal Technology, may
12, 2015. Cibersecurity. Disponível em: <http://fcw.com/articles/2015/ 05/12/russian-chinese-cyber.
aspx>. Acesso em: 27 jun. 2015.

RISEN, T. China, Russia seek new internet world order: the two nations’ recent cybersecurity pact shows
their goal of undermining America’s Internet dominance. US News and World Report, May 14, 2015.
Disponível em: <http://www.usnews.com/ news/ articles/2015/05/14/china-russia-seek-new-internet-
world-order>. Acesso em: 27 jun. 2015.

ROTH, A. Russia and China sign cooperation pacts. The New York Times, may 8, 2015. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/2015/05/09/world/europe/russia-and-china-sign-cooperation-pacts.
html?_r=0>. Acesso em: 28 jun. 2015.

TREATY of good-neighborliness and friendly cooperation between the People’s Republic of China and
the Russian Federation. Voltaire Network, Moscow, Russia, july 16, 2001. Disponível em: <http://www.
voltairenet.org/article173177.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.

72 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


INCOMPREENSÃO DO CONCEITO DE INTELIGÊNCIA
NA SEGURANÇA PÚBLICA

Rodrigo Kraemer*

Resumo

A inteligência apresentada por autores clássicos é descrita enquanto produtora de conheci-


mentos para assessoramento ao escalão superior, e está inserida no processo decisório de
alto nível. Mas o processo de construção e maturação da atividade de inteligência nos órgãos
de justiça criminal brasileiros privilegiou o aspecto investigativo e operacional. Procurando os
motivos que levaram a essa incompreensão do conceito de inteligência, foram identificados
fatores de ordem cultural e histórica: a horizontalidade do Sisbin, que propiciou que os ór-
gãos efetivassem suas áreas de inteligência de maneiras diversificadas; as técnicas operacio-
nais semelhantes entre operações de inteligência e investigação; a palavra “operações” com
conceitos diferentes na inteligência e nas polícias; a inexistência de manuais de trabalho na
investigação; uma cultura de valorização da prática em detrimento da discussão acadêmica.
Tais fatores, em conjunto, propiciaram a identificação da inteligência como uma espécie de
investigação mais apurada. Falta ainda associar a inteligência à erudição, à pesquisa científica,
faltando uma conexão a um patamar estratégico para a realização de ações que busquem
auxiliar as várias instâncias de decisão.

Palavras-chave: inteligência, segurança pública, investigação, conceito.

N o Brasil, a atividade de inteligên-


cia iniciou-se no século XX e pas-
sou por vários períodos de edificação,
os, seções ou departamentos exclusivos
para essa atividade.

crescimento, supressão e reformulação, A inteligência apresentada por autores


até chegar a ser criado o Sistema Brasi- clássicos é descrita enquanto produto-
leiro de Inteligência (SISBIN) em 1999 ra de conhecimentos para assessora-
(BRASIL, 1999). mento ao escalão superior, e está inse-
rida no processo decisório do mais alto
A partir da criação do SISBIN, a ativida- nível. Mas o processo de construção e
de de Inteligência foi estendida a outros maturação da atividade de inteligência
órgãos da administração pública fede- nos órgãos de justiça criminal brasilei-
ral, sobretudo às polícias, que implan- ros, após a criação do SISBIN, deu-
taram, cada uma à sua maneira, núcle- -se de forma confusa, privilegiando o

* É sociólogo (UFPR) com especialização em Inteligência de Segurança (UNISUL), diplomado


no Curso Superior de Inteligência Estratégica (ESG). Policial Rodoviário Federal, ex-Coorde-
nador de Inteligência da PRF, atua na Academia Nacional da PRF.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 73


Rodrigo Kraemer

aspecto investigativo, de produção de produzidos pela ABIN, em processos ju-


provas, em detrimento do aspecto de diciais, que são típicos da esfera criminal
produção de conhecimento, para auxi- (COSTA, 2009), o que mostra uma cla-
liar o processo decisório. ra confusão do conceito de inteligência
como assessoramento superior:
Quando determinado órgão diz que
‘fez inteligência’, no desbaratamento de Tipicamente, enquanto as investigações
ações ilícitas (...), está cometendo um criminais buscam elucidar a autoria de
equívoco, pois o fato delituoso já aconte- crimes e contravenções penais específi-
ceu – passado – e a ação, normalmente, cas, os alvos dos serviços de inteligência
desconectada de um contexto de nível são atores e fenômenos mais abrangen-
estratégico, descaracteriza o que se en- tes, os quais precisam ser conhecidos
tende por inteligência. (FERNANDES, para que políticas públicas mais eficazes
2006, p.17)
possam ser desenhadas. O produto final
de uma investigação criminal é a instru-
No caso específico do sistema de segu- ção de um processo judicial, enquanto o
rança pública, nota-se claramente que a produto de uma operação de inteligência
inteligência assumiu uma configuração é um relatório sobre o conhecimento ad-
particular e se desvinculou da inteligên- quirido (CEPIK, 2003, p. 116)
cia praticada pela Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN), transformando-se Conscientes dessa poderosa
em algo totalmente novo. Essa dissocia- ferramenta que ajudaria
ção separou o que seria a inteligência a construir o futuro das
realizada pela ABIN – agora adjetivada nações, os Estados Nacionais
de “clássica” ou “de Estado” – e uma desenvolveram a atividade
inteligência de segurança pública, reali-
criando organismos estatais
zada pelas polícias, como se fossem di-
ferentes atividades e não uma única com
de inteligência, pois ficou
objetos distintos. clara a necessidade de dados
e informações integradas e
Em que pese a existência de leis distin- analisadas sobre as ameaças,
guindo ambas (inteligência e investiga-
ção), há segmentos discursando o con- intenções e capacidades
trário, resultando dessa posição uma dos outros países.
dicotomia no âmbito do Sisbin” (PATRÍ-
CIO, 2006, p. 56).

O conceito de inteligência foi interpreta- Mas qual o motivo de a inteligência ter


do de modo conturbado, ocorrendo uma tomado esse rumo nas polícias? Seria
“equivocada ideia de que inteligência é uma questão histórica especifica ou um
sinônimo de investigação policial” (PA- padrão cultural que permeia as institui-
TRÍCIO, 2006, p. 56). Essa “equivoca- ções policiais? Seria apenas um ou vários
da ideia” de inteligência no meio policial fatores que influenciaram o entendimen-
está sendo embasada teoricamente, exis- to da atividade de inteligência enquanto
tindo autores que já defendem a inclusão sinônimo de investigação policial? Ao
de relatórios de inteligência, mesmos os longo desse artigo, buscaremos as ori-

74 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Incompreensão do conceito de inteligência na segurança pública

gens de uma concepção equivocada de importante não eram mais apenas as in-
inteligência como uma espécie de inves- formações sobre as forças inimigas, mas
tigação mais apurada. Vários fatores, de sobre a produção de aço, a construção
ordem histórica mas também cultural, de estradas, o número de engenheiros de
associados à inteligência mas também cada país e outras informações sobre a
intrínsecos aos órgãos policiais, contri- economia, a sociedade, a geografia, etc.,
buíram para uma interpretação diferen- propiciando análises mais profundas e
ciada do conceito de inteligência nos produzindo estimativas e prospecções.
órgãos policiais.
O uso das informações de combate
é tão velho quanto a luta humana or-
A inteligência normalmente é apresenta- ganizada. A produção de informações
da como sendo uma atividade antiga que estratégicas, entretanto, numa escala
sempre acompanhou a humanidade, nor- abrangente e numa base sistemática,
malmente sendo exemplificada com casos na paz e na guerra, não é mais antiga
que a Segunda Guerra mundial (PLATT,
na Bíblia e na obra de Sun-Tzu (FERRO,
1967, p. 19-20).
2006, p. 82). Mas o surgimento do que
entendemos por inteligência aconteceu Conscientes dessa poderosa ferramen-
apenas a partir do século XX, quando ta que ajudaria a construir o futuro das
começou a se desenvolver a análise de nações, os Estados Nacionais desenvol-
inteligência – também chamada de seg- veram a atividade criando organismos
mento inteligência – e a se vislumbrar as estatais de inteligência, pois ficou clara
possibilidades de se conseguir informa- a necessidade de dados e informações
ções através de outros métodos que não integradas e analisadas sobre as amea-
apenas a espionagem, como as fontes ças, intenções e capacidades dos outros
abertas, e realizar a análise desses dados. países. E esses organismos começaram
a desenvolver a análise de inteligência,
A concepção militar clássica da função
das informações era simples e direta: um juntando dados negados conseguidos
agente secreto conseguia um informe através da espionagem com dados de
sensacional indicando o plano de batalha fontes abertas, produzindo uma meto-
do inimigo, e com base nesse informe o
dologia capaz de assegurar uma con-
comandante militar tomaria sua decisão.
Não foi senão depois de a 1ª Guerra fiabilidade nas informações produzidas,
Mundial ter-se desenrolado por algum por meio de técnicas desenvolvidas no
tempo que ambos os lados começaram a meio acadêmico:
perceber que a análise de materiais como
jornais inimigos podia proporcionar infor- Quando o OSS [Escritório de Serviços
mes importantes e, destarte, puseram-se Estratégicos], o serviço secreto de in-
a criar órgãos dedicados a essa espécie formações dos Estados Unidos durante
de trabalho. (HILSMANN, 1956, p. 6-7) a guerra, foi criado em 1941, uma das
ideias básicas era a opinião diabólica, de
A pesquisa em fontes abertas propiciou que os eruditos, em certos aspectos, po-
um grande desenvolvimento dessa ativi- diam ocupar o lugar dos espiões. A ideia
dade e foi responsável por vantagens es- pareceu dar certo e desde o fim da guer-
ra um número cada vez maior de pessoas
tratégicas fundamentais que ajudaram em passou a acreditar que é nas agências de
muito a decidir a 2ª Guerra Mundial. O informações estratégicas que a pesquisa

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 75


Rodrigo Kraemer

– e até mesmo as ciências sociais – en- oria ou de pesquisa. Para exemplificar


contrarão seu verdadeiro lugar dentro da melhor essa constatação, Mingardi, ao
estrutura formal do governo. (HILSMAN,
1966, Prefácio, p. I) pesquisar sobre o trabalho cotidiano
da prática de investigação criminal de
Desse modo, as organizações de inte- homicídios, mostra que as polícias tra-
ligência começaram a se espelhar nas balham sem nenhuma referência teórica
universidades (Kent, 1967), contratan- sobre o assunto.
do eruditos para responder aos desafios
impostos à área, quando o conceito ini- No Brasil temos pouquíssima literatura
sobre o trabalho policial. Alguns podem
cial de espionagem foi sobrepujado pelo objetar mostrando pilhas de livros sobre
novo conceito de inteligência. o inquérito policial, por exemplo, mas o
conteúdo desses livros mostra apenas o
A inteligência trabalha com uma especí- ponto de vista jurídico, nunca o opera-
fica forma de incerteza, com fragmentos cional. Eles têm mais a ver com o bacha-
relismo de nossas instituições policiais do
de acontecimentos e intenções muitas que com o trabalho do dia a dia. (MIN-
vezes ocultas e não-declaradas, e neces- GARDI, 2006a, p. 9)
sita transformar esses dados dispersos
em um conhecimento preciso, verdadei- Embora haja uma farta discussão jurí-
ro e confiável (AGRELL, 2002, p. 5). dica da questão policial, esta, por sua
E esse elemento intelectual básico, ca- característica normatizadora, está inseri-
paz de manipular e tratar as incertezas, da essencialmente no universo do “de-
é normalmente chamado de análise de ver ser”, do ideal que a prática policial
inteligência, uma atividade semelhante deve se concretizar no campo jurídico,
à pesquisa social, pois ela “implica em não se concentrando no que realmente
é, na realidade da prática cotidiana poli-
verificar a precisão das fontes, compa-
cial. E os referenciais teóricos utilizados
rar relatos diferentes e obter perspectiva
para o aperfeiçoamento dessa atividade
ampliando o campo de pesquisa (KENT,
são apenas os retirados do campo do
1967, p. 148).
direito. Diagnósticos precisos realiza-
A análise de inteligência se parece com dos com método científico ou pesquisa
o trabalho de pesquisadores de uma uni- empírica sobre como operam na prática
versidade, e, como tal, necessita de pes- os diferentes organismos responsáveis
soas treinadas para tal fim e de um mé- pela aplicação das leis não são utiliza-
todo próprio (KENT, 1967, p. 81-82). dos, mas apenas os referenciais ideais,
e essa dissociação entre teoria e prática
Assim, a inteligência foi moldada histo- é ilustrada através da supervalorização
ricamente pela academia e pelos méto- da experiência empírica acumulada pelo
dos de pesquisa, transformando o que policial mais antigo (e acumulada apenas
antes era espionagem em algo novo nele), que define basicamente o modo
que começou a se chamar inteligência. de ação. Sobre o distanciamento entre
Mas o meio policial brasileiro, em geral, polícias e academia, Mingardi expressa
não está acostumado a se utilizar de te- seu diagnóstico:

76 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Incompreensão do conceito de inteligência na segurança pública

Acredito que isso faz parte de uma for- Já a investigação possui características
ma de encarar a profissão que põe muita bem distintas da inteligência, pois, en-
esperança no ‘policial vocacionado’ que,
após vários anos na profissão, aprendeu quanto a primeira trabalha com o pas-
inúmeros ‘macetes’. Valorizamos apenas sado, com o que já aconteceu, buscan-
a prática, deixando pouco espaço para do produzir provas e identificar autorias
o aprendizado teórico. (MINGARDI,
de crimes, tendo como cliente final o
2006a, p. 9)
Judiciário, a inteligência trabalha prin-
Mas não é somente nas polícias judiciá- cipalmente com o presente e o futuro,
rias que existe esse saber prático da ati- buscando produzir conhecimentos para
vidade, pois Muniz também notou que, assessorar o processo decisório e tendo
nas polícias militares, ocorre o mesmo como destinatário final o Executivo.
processo, a existência de um saber que se
produz cotidianamente pelo policial da li-
nha da frente que escapa à padronização, Outro ponto é que o
possuindo especificidades próprias: termo “operações” possui
O que os PMs sabem não está ordenado
significados diferentes para
em um formato científico, não aparece a atividade de Inteligência e
quantificável ou traduzido nas estatísti-
cas, não pode ser provado com números,
para o ambiente policial.
tabelas e gráficos. Este saber atrelado ao
episódico, constrangido pelas contingên-
cias, parece resistir à padronização (MU- O que as duas possuem em comum são
NIZ, 1999, p. 157). as técnicas operacionais utilizadas para
a busca de dados negados. Essas técni-
Se a experiência cotidiana é que defi- cas, que, na inteligência, são oriundas
ne a prática policial sem se utilizar da
da espionagem, podem ser utilizadas na
produção científica, não é de se estra-
investigação para a busca de provas para
nhar a aparente confusão apresentada
se chegar à autoria de um crime. Em-
entre inteligência e investigação. Então,
bora muito parecidas, elas possuem al-
como primeiro fator explicativo sobre a
gumas nomenclaturas diferentes, como,
confusão, temos uma cultura policial de
por exemplo, a vigilância (na inteligência)
valorização da prática em detrimento da
teoria. Essa característica propiciou uma e a campana (na investigação policial), e
aversão à análise de inteligência – muito ambas se referem a buscar dados para
mais relacionada à pesquisa e às univer- produzir um conhecimento. O ponto de
sidades – e uma valorização da busca, da congruência entre as duas é a utilização
área de operações. de técnicas operacionais semelhantes, e
é a partir disso que ocorrem incompre-
A análise de inteligência seleciona dados, ensões nas demais atribuições dessas di-
avalia, interpreta e integra, e também se ferentes atividades.
utiliza de dados negados, provenientes
da atividade de operações de inteligên- Então, como segundo fator, podemos
cia, que completam a formação da ima- perceber que as semelhanças entre as
gem necessária à tomada de decisão. técnicas operacionais de inteligência

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 77


Rodrigo Kraemer

e as técnicas de investigação criminal 2005). Já na criação do Sistema Brasilei-


podem ter contribuído para a compre- ro de Inteligência – SISBIN, a atividade
ensão errônea de que inteligência seria de inteligência foi novamente estendida a
sinônimo de investigação. outros órgãos da administração pública,
sobretudo nas polícias, que implemen-
Outro ponto é que o termo “operações” taram, cada uma a sua maneira, núcle-
possui significados diferentes para a ati- os, seções ou departamentos exclusivos
vidade de Inteligência e para o ambien- para esse fim. O que foi diferente dessa
te policial. Se, para aquela, significa um vez é que a ABIN, embora seja colo-
meio, um modo específico de se obter cada como órgão coordenador, central
os dados negados que são necessários à do sistema de inteligência, não possuía
análise – esta sim, a atividade-fim – para todas as prerrogativas e autonomia que
as polícias é muito mais uma forma finalís- tinha o SNI. Aconteceu uma espécie de
tica de trabalho, uma maneira de se obter horizontalidade, pois, “apesar da no-
a finalidade do órgão, seja a repressão menclatura utilizada (a ideia funcionalis-
ou a investigação. As polícias trabalham ta de sistema), o grau de centralização
cotidianamente executando operações hierárquica ou mesmo de equilíbrio ho-
policiais que servem a determinado fim meostático no SISBIN é bastante baixo”
– prender uma quadrilha, controlar o trá- (ANTUNES; CEPIK, 2003, p. 119).
fico de drogas, etc. Já a inteligência pode Homeostático provém de homeostasia, e
ou não executar uma operação de inte- se refere ao processo de estabilização e
ligência, pois dependerá do quanto de reequilíbrio do meio interno, executado
informações já possui e do quanto con- por todos os organismos.
segue coletar. Caso não sejam suficien-
tes, daí sim é executada uma operação,
mas com propósito bem definido, buscar O que ocorreu após a criação
dados necessários à construção de um do SISBIN foi uma proliferação
conhecimento. Assim, como terceiro fa- da inteligência, mas, em vez de
tor, temos a significação diferenciada do a atividade se difundir, prolifera-
termo “operações”, que também pode
se apenas a nomenclatura
ter contribuído para a confusão.
sem substancial alteração nas
Outo fator se refere à própria estrutu- atribuições anteriormente
ração do sistema. O Sistema Nacional desenvolvidas por cada órgão.
de Informações – SISNI, era composto
pelas Divisões de Segurança e Informa-
ções – DSI nos Ministérios civis e pelas Se, no SNI, tínhamos um perfil centrali-
Assessorias de Segurança e Informações zador e hierárquico, com um órgão cen-
– ASI nos órgãos e autarquias, que eram tral demandando dados e informações
responsáveis por colher toda informação das DSI e ASI para produzir e difundir
de interesse para o SNI, que era o ór- um conhecimento apenas ao decisor
gão central do sistema (FIGUEIREDO, principal, o chefe do executivo, na nova

78 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Incompreensão do conceito de inteligência na segurança pública

estrutura, temos uma espécie de hori- tinta, pois, se antes as ASI eram mais li-
zontalidade nas relações de inteligência, gadas ao SNI que ao próprio órgão, nes-
pois o órgão central, nesse caso, não sa nova configuração, temos o contrário,
possui as prerrogativas que o seu ante- as seções de inteligência dos diferentes
cessor possuía (FIGUEIREDO, 2005), e órgãos são “nativos” e têm mais afinida-
as estruturas de inteligência espalhadas de com seus órgãos de origem que com
pelos Ministérios não são padronizadas, a própria ABIN.
como o eram anteriormente, mas estru-
turas criadas pelos órgãos de maneira Se existe uma maior descentralização no
singular, sem definição clara de normas e SISBIN em comparação ao SISNI, e se
regras. O que resulta disso é que “o sis- cada órgão de inteligência nos diversos
tema de inteligência do Brasil apresenta Ministérios possui estruturas diferentes e
um perfil institucional de ‘confedera- trabalham com inteligência à sua maneira
ção’, muito mais do que de ‘federação’” e desenvolvem suas próprias doutrinas e
(ANTUNES; CEPIK, 2003, p. 119). A métodos de trabalho, podemos perceber
diferença básica entre sistema federado que esse pode tem sido um terreno fér-
e confederado é que o primeiro, embora til para reinterpretações diversas sobre o
possua certa liberdade para decisão, não que seria inteligência.
pode se separar do poder central, en-
Para ilustrar esse processo, podemos
quanto o segundo possui total autono-
perceber que a inteligência está sendo
mia para decidir sobre sua permanência
adjetivada de diferentes maneiras, sendo
ou não no sistema. Esse novo sistema de
chamada de inteligência de segurança
inteligência deu mais liberdade aos Mi-
pública, inteligência policial, inteligência
nistérios para efetivar sua própria área
criminal, além de algumas designações
de assessoria em inteligência, e cada ór-
de inteligência de acordo com o órgão
gão implantou, à sua maneira, seções,
que a produz, como inteligência ministe-
núcleos, divisões, coordenações ou dire-
rial – esta seria a inteligência do Ministé-
torias de inteligência. Mas essa liberda-
rio Público – ou inteligência previdenciá-
de de implantação acarretou uma maior
ria – da Previdência Social.
descentralização do sistema, com cada
órgão desenvolvendo também sua pró- O que ocorreu após a criação do SIS-
pria doutrina e seu método. O que no- BIN foi uma proliferação da inteligência,
tamos de imediato é que o único órgão mas, em vez de a atividade se difundir,
de inteligência desse sistema é a própria prolifera-se apenas a nomenclatura sem
ABIN, pois os demais são órgãos des- substancial alteração nas atribuições
tinados a vários fins e possuem apenas anteriormente desenvolvidas por cada
uma pequena estrutura de inteligência. órgão. Agrell exemplifica de maneira
Para ser mais claro, enquanto a finali- muito eficaz esse processo de prolifera-
dade da ABIN é produzir inteligência, a ção e uso indiscriminado do conceito ao
finalidade da Receita Federal é arrecadar, explicitar um caso que ocorreu em um
a da Polícia Federal é investigar crimes, banco sueco em que havia um depar-
etc. Então, temos aqui uma situação dis- tamento de inteligência, mas que esse

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 79


Rodrigo Kraemer

departamento já existia desde a década conceitos diferentes podem ser os fato-


de 1920 com o nome de Estatísticas res que levaram a esse processo de con-
Internas e Externas, e a única alteração fusão. Se juntarmos a eles a horizontali-
foi seu nome, pois o trabalho é essen- dade do SISBIN, que propiciou a criação
cialmente o mesmo: produzir estatísti- de novas doutrinas e métodos de traba-
cas (AGRELL, 2002). No Brasil, parece lho, notamos que a inserção da inteligên-
ocorrer o mesmo fenômeno, cada órgão cia na segurança pública teve ingredien-
criou uma área de inteligência para fazer tes dos mais diversos que, combinados,
o que já faziam antes: a inteligência pre- influenciaram uma interpretação equivo-
videnciária faz investigação de fraudes, a cada (e já consolidada) de que inteligên-
inteligência policial faz investigação, etc. cia seria uma investigação mais apurada.
Assim, com essa proliferação, “a análise
de inteligência corre o risco de terminar Observamos que a inteligência precisa
aqui. Quando tudo é inteligência – nada ainda evoluir na Segurança Pública, da
é inteligência.” (Ibid., p. 4) mesma forma que evoluiu da espiona-
gem para as organizações de inteligên-
cia modernas. O que falta é desenvolver
Falta ainda uma maior discussão
a análise de inteligência, que tem sido
sobre a inteligência, seu menosprezada em relação à sua área
papel e sua funcionalidade subordinada, a unidade de busca, da
para servir a um processo mesma forma que a inteligência “clássi-
decisório, nos diversos órgãos ca” se desenvolveu. (Mas a inteligência
da administração pública. “clássica”, de Estado, estratégica, para
assessorar o mandatário, é a “análise de
inteligência”, não?) Falta associar a inte-
Desse modo, a construção do SISBIN de
ligência à erudição, à pesquisa científica,
maneira horizontalizada, pode ter sido
pois a inteligência de Segurança Pública
outro fator que contribuiu com a con-
está sendo interpretada como investiga-
fusão conceitual na qual inteligência se
ção, faltando uma conexão a um patamar
tornou sinônimo de investigação.
estratégico para a realização de ações
A inexistência de manuais de trabalho, que busquem auxiliar as várias instâncias
uma cultura de valorização da prática em de decisão. Falta ainda uma maior dis-
detrimento da discussão acadêmica, as cussão sobre a inteligência, seu papel e
técnicas operacionais semelhantes entre sua funcionalidade para servir a um pro-
investigação e operações de inteligên- cesso decisório, nos diversos órgãos da
cia e o fato de a palavra “operações” ter administração pública.

80 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Incompreensão do conceito de inteligência na segurança pública

Referências

AGRELL, Wilhem. Quando Tudo é Inteligência – nada é inteligência. Tradução de Cel. Ivan Fialho. Pu-
blicação original em Occasional Papers, Suécia, v. 4, n. 4. 2002.

ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: entre a teoria e a prática. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

ANTUNES, Priscila; CEPIK, Marco. Profissionalização da atividade de Inteligência no Brasil: critérios,


evidências e desafios restantes. In: SWENSON, Russel e LEMONZY, Susana. Profesionalismo de Inte-
ligencia en las Américas. Washington D.C.: Joint Military Intelligence College, 2003. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/12133523/ Profissionalizacao-Da-Atividade-de-Inteligencia-2003>. Aces-
so em: 30 abr. 2012.

BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a
Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9883.htm>.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Resolução n° 1, de 15 de


julho de 2009. Regulamenta o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública - SISP, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 ago.
2009. Seção 1.

CEPIK, Marco. Inteligência e Políticas Públicas: dinâmicas operacionais e condições de legitimação.


Security and Defense Studies Review, v. 2, n. 2, winter 2002.
____________. Nota técnica sobre o Sistema Brasileiro de Inteligência. CGEE/MCT. 2009. Disponí-
vel em < http://geopr1.planalto.gov.br/saei/images/publicacoes/cgee2009. pdf>. Acesso em: 5 set.
2012.

____________. Regime político e Sistema de Inteligência no Brasil: legitimidade e efetividade como


desafios institucionais. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 1, mar. 2005.

____________. Sistemas Nacionais de Inteligência: origens, lógica de expansão e configuração atual.


Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 1. 2003.
COBRA, Coriolano Nogueira. Manual de investigação policial. São Paulo: Saraiva, 1987.

COSTA, Fabricio Piassi. O valor judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteli-
gência (ABIN). Jus Navigandi, Teresina, PI, ano 14, n. 2112, 13 abr. 2009. Disponível em: <http://jus.
com.br/artigos/12626>. Acesso em: 12 mar. 2012.

FERNANDES, Fernando do Carmo. Inteligência ou Informações? Revista Brasileira de Inteligência. Bra-


sília, DF, v. 2, n. 3, p. 7-21, set. 2006.

FERRO, Alexandre Lima. Inteligência de Segurança Pública. Revista Brasileira de Inteligência. Brasília,
DF, v. 2, n. 2, p. 77-92, abr. 2006.

FERRO JÚNIOR, Celso Moreira. A Inteligência e a Gestão da Informação Policial: conceitos, técnicas e
tecnologias definidos pela experiência profissional e acadêmica. Brasília: Fortium, 2008.
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.

HILSMAN, Roger. Informações estratégicas e decisões nacionais. Traduzido do original em inglês Stra-
tegic intelligence and national decisions pelo Major Álvaro Galvão Pereira. [S.l]: SNI, 1966. Datilogra-
fado. Disponível em <http://www.memoriasreveladas. arquivonacional.gov.br/Media/X9/BRANRIOX-
90TAI208P1.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2012.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 81


Rodrigo Kraemer

LIMA, Roberto Kant de; MISSE, Michel; MIRANDA, A. P. M. Violência, Criminalidade, Segurança Públi-
ca e Justiça Criminal no Brasil: uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2º sem. 2000.

KENT, Sherman. Informações Estratégicas. Rio de Janeiro: Bibliex, 1967.

LOWENTHAL, Mark M. Inteligência: dos segredos a políticas. 3. ed. [S.l.]: CQ Press, 2001.

MINGARDI, Guaracy. A investigação de homicídios: construção de um modelo. Relatório de pesquisa.


Brasília: MJ - SENASP, 2006a.

______________. Inteligência policial e crime organizado. In: LIMA, Renato Sérgio de; PAULA, Liana
de (Orgs.). Segurança pública e violência: o estado está cumprindo seu papel? São Paulo: Contexto,
2006b.

MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é sobretudo uma razão de ser: cultura e cotidiano na Polícia Militar do
Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1999.

PATRÍCIO, Josemária da Silva. Inteligência de Segurança Pública. Revista Brasileira de Inteligência, Bra-
sília, DF, v. 2, n. 3, p. 53-58, set. 2006.

PLATT, Washington. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.

SHULSKY, Abram N.; SCHMITT, Gary J. Silent Warfare: Understanding the world of intelligence. Vir-
ginia: Brassey’s Inc. Dules, 2002.

SUN-TZU. A Arte da Guerra. Obra traduzida do chinês por Thomas Cleary; tradução Euclides Luiz
Calloni, Cleusa M. Wosgrau. São Paulo: Pensamento, 2007.

82 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


MILITARISMO NA VENEZUELA

Nabupolasar Alves Feitosa*

Resumo

Este artigo objetiva discutir o papel dos militares na Venezuela, apontando de que maneira es-
tes assumiram funções tradicionalmente ocupadas por civis e modificaram a relação da caserna
com o Estado a ponto de ser possível considerar que, atualmente, na Venezuela, existe o que
se denomina militarismo.

Introdução

D esde o nascimento da República


venezuelana, em 1830, o país tem
tido a presença de militares no gover-
E parece ter sido essa a base para a ela-
boração da Lei Orgânica da Força Ar-
mada Nacional Bolivariana (LOFANB)
no, porém foi a partir de 1999 que os (VENEZUELA, 2011), que reza que os
militares assumiram cargos que tradi- militares, além das tarefas tradicionais de
cionalmente eram ocupados por civis, defesa, têm a função de, dentre as 22
principalmente pela compreensão de listadas, “3. Preparar e organizar o povo
que os militares não podem estar apar- para a defesa integral (...); 6. Apoiar os
tados dos civis porque é a estes que distintos níveis e ramos do Poder Públi-
servem e protegem. co na execução de tarefas vinculadas aos
âmbitos social, político, cultural, geográ-
O ex-presidente Hugo Rafael Chávez fico, ambiental, econômico (...)”.
Frías disse em entrevista: “Mao disse,
Essa nova forma de compreender o pa-
como você sabe, que ‘as pessoas estão
pel das forças armadas fez com que os
para o exército assim como a água está
militares ocupassem ministérios, embai-
para o peixe’” (HARNECKER, 2005, p.
xadas, empresas e corporações estatais,
35). De fato, esse é o espírito do que
as Regiões Estratégicas de Desenvolvi-
está no Livro Vermelho de Mao Tsé-
mento Integral (REDI), controlassem a
-Tung, em que se lê que “o exército deve
Assembleia Nacional e tivessem posições
fundir-se com o povo, de maneira que
no gabinete do Presidente da República
este veja nele o seu próprio exército” Nicolás Maduro.
(TSÉ-TUNG, 2002, p. 111), e onde se
atribui ao exército tarefas de organiza- Com uma população de cerca de 30 mi-
ção social e partidária. lhões de habitantes, segundo Donadio
* Doutor em Ciências Sociais: Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 83


Nabupolasar Alves Feitosa

(2014), o efetivo das forças armadas da setor militar na sociedade venezuela-


Venezuela é de aproximadamente 194 na, que viveria hoje um intenso mili-
mil (além de 70 mil voluntários das mi- tarismo, base de sustentação do bloco
lícias bolivarianas). Esse número repre- no poder atualmente.
senta uma média de 63 militares para
cada grupo de 10 mil habitantes, segun-
da maior média da América Latina, atrás Militarismo na Venezuela
apenas do Uruguai (com 66 para 10 mil)
e superior à da Colômbia (55 para 10 Historicamente, a presidência da Vene-
mil). O Brasil, nas suas forças armadas zuela tem sido ocupada por militares.
(Exército, Marinha e Aeronáutica), tem a Em 200 anos de independência, os go-
segunda menor média, com apenas 17 vernantes militares somam cerca de 140
militares para cada 10 mil habitantes. anos, exceção feita, principalmente, aos
períodos de 1945 a 1948 e de 1958 a
1999, durante os quais o país foi gover-
Toda essa situação tem nado por civis, como ocorre agora com
levado a que se afirme que Nicolás Maduro, também civil (FEITO-
existe uma prevalência do SA, 2014). No entanto, a importância
setor militar na sociedade dos militares na Venezuela se intensificou
venezuelana, que viveria no governo Hugo Chávez (1999-2013)
hoje um intenso militarismo, e tem sido aprofundada no governo Ni-
base de sustentação do colás Maduro (2013 até agora).
bloco no poder atualmente. É certo que um dos pontos mais
marcantes do Estado chavista (FEITOSA,
Ainda de acordo com Donadio (2014), 2014) é o seu caráter militarista, cuja
o orçamento militar da Venezuela (US$ influência na condução da Venezuela é
5,5 bilhões) é apenas o quarto maior determinante. Depois da ascensão de
da região, ficando atrás de Brasil (US$ Chávez, os militares saíram dos quartéis
31 bilhões), Colômbia (US$ 8 bilhões) para se instalar em praticamente todos
e México (US$ 7 bilhões), porém, no os ramos da administração pública.
período de 2006 a 2014, esse orça-
mento cresceu quase 200%, enquanto De 1999 até dezembro de 2013, pelo
o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu menos 1.614 militares já tinham ocupa-
um pouco menos que 90%. Desse or- do cargos no governo. Do total, 1.246
çamento, o governo venezuelano gasta foram designados por Chávez e 368
34,3% com investimento e 49,4% com por Maduro (NEDERR, 2013). Os mi-
pessoal, além de uma série de benefí- litares ocupam a direção das principais
cios normalmente negados a outras ca- indústrias de base, como Siderúrgica
tegorias de profissionais. do Orinoco Alfredo Maneiro (Sidor),
Corporação Venezuelana de Guayana
Toda essa situação tem levado a que se (CVG) e CVG Indústria Venezuelana de
afirme que existe uma prevalência do Alumínio (CVG VENALUM), bem como

84 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Militarismo na Venezuela

administram outras empresas, como a A descrição de Trejo (2006) sobre mili-


estatal Produtora e Distribuidora de Ali- tarismo, como descrito acima, pinta em
mentos (PDVAL) e Sociedade Mercantil termos gerais a situação venezuelana,
Corporação Elétrica Nacional S.A. (Cor- pois, para ele:
poelec). Já a Petroleos de Venezuela S.A
O militarismo se converteu em uma dou-
(PDVSA), principal empresa do país, tem trina política e em uma forma de gover-
corpo diretivo civil, contudo, também no, com predomínio do elemento militar
conta com militares nos seus quadros. sobre o elemento civil dentro de um Es-
tado, pretendendo submeter o povo de
uma nação aos mandatos do chefe ou à
Veja-se também que, além direção militarista do governo, sem se
de estarem em vários ramos submeter ao estado de direito, tratando
de submeter ao regime militar a socieda-
da administração federal, os de civil, com a massiva participação de
militares são beneficiados militares ativos ou da reserva no exercício
com constantes promoções da função pública, com excessiva parti-
cipação no orçamento da Nação, com
que o governo lhes oferece. excessivos privilégios na relação com
a sociedade civil, com a adoção de um
sistema contrário à existência e funciona-
Outros setores importantes, como o
mento dos partidos políticos, substituído
Centro Nacional de Comércio Exterior por um governo populista e autoritário,
(Cencoex), a Venezuelana de Importa- ao lado de uma conduta internacional
ções e Exportações (Veximca) e a Supe- que favorece regimes similares em outros
países, em clara intromissão na política
rintendência Nacional Aduaneira e Tri-
interna daqueles, em aberta violação dos
butária (Seniat) também são controlados princípios do Direito Internacional (TRE-
por militares. Esses fatos apontam para a JO, 2006, p. 314).
existência, na Venezuela, de um militaris-
Veja-se também que, além de estarem
mo. Nesse contexto, é importante uma
em vários ramos da administração fe-
definição do fenômeno.
deral, os militares são beneficiados com
O militarismo se define, conforme o di- constantes promoções que o governo
cionário da Real Academia da Língua lhes oferece. Só de generais e almirantes
Espanhola, como “o predomínio do ele-
mento militar no governo do Estado”1.
a Venezuela conta com 1.875 em seus
“A intromissão ou excessiva participação quadros, segundo o professor Hernán
dos militares na política, nos negócios Castillo3, da Universidade Simón Bolívar,
públicos, na organização social, com quando, na opinião do professor, não
abandono de suas específicas funções de
dispor a defesa nacional ou com perigo- deveria passar de dez. Castillo afirma
sa acumulação de umas e outras tarefas” que o controle civil sobre os militares se
(TREJO, 2006, p. 314, tradução nossa)2. debilitou com a chegada de Chávez ao
1
Nesse ponto, Marcos Avilio Trejo (2006) faz a seguinte referência (sem informar a data da pu-
blicação): CABANELLAS, Guillermo. Diccionario de Derecho Usual, T II. 9. ed. Buenos Aires:
Ed. Heliasta, pág. 706.
2
Todos os textos cujos originais estão em outros idiomas foram traduzidos pelo autor deste artigo.
3
Ver Entrevista do professor Hernán Castillo ao Jornal Tal Cual digital (ARAUJO, 2013).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 85


Nabupolasar Alves Feitosa

poder. Primeiramente, porque a ascen- Em 2011, o Presidente os incrementou


são militar passou a ser um ato discri- em 40%. Em 2013, o governo deu um
cionário do Presidente da República, não aumento linear de BsF 410,00. Estes
passando mais pela Comissão de Defesa são aumentos dos salários que os milita-
do Senado, como ocorria antigamente. res recebem por sua função, sem contar
No chavismo, ainda segundo o Profes- com o aumento no ganho dos militares
sor, há pouco controle civil sobre os mi- pela ocupação de importantes funções
litares. No governo Nicolás Maduro, até no Estado, o que permitiu não apenas
2014, pelo menos oito dos 27 ministé- uma melhora significativa no padrão
rios e nove representações diplomáticas de vida, mas também deu aos militares
– embaixadas e consulados – tinham mi- acesso ao Estado e tudo quanto nele há,
litares como titulares. Somando-se aos ocasionando assim o enriquecimento de
cargos que ocupam e às promoções, os muitos militares.
militares estão cada vez mais apegados
a privilégios, tais como o aumento no
soldo acima da média recebido por ou- Ao longo dos anos, os militares
tros servidores públicos e compensações foram se tornando, de maneira
oferecidas pelo Estado, e vêm acumu- cada vez mais fiel, a base de
lando fortunas em negócios com o Es- sustentação do governo do
tado, fazendo nascer assim a burguesia Presidente Hugo Chávez,
bolivariana (boliburguesia). Matéria do El que percebeu que tinha de
Universal, assinada por Francisco Oliva-
fazer as forças armadas à
res, informa o quanto os militares foram
sua imagem e semelhança,
ganhando cada vez mais importância no
governo Chávez, traduzida na ocupação
e passar a ser o bastião de
de cargos importantes, em bons soldos e permanência do chavismo.
em melhores condições de vida.
O informe 2011 da Agenda Nacional de Mais importante ainda foram os gastos
Seguridad [ANS], ONG especializada em com pessoal. Por outras vias se fortale-
temas militares e de segurança, recorda ceu a estrutura salarial dos militares com
que a partir de 1999 a FAN [Força Arma- mecanismos de compensação, prêmios
da Nacional] tem seu primeiro aumento e bônus, ao ponto que os complemen-
salarial de 30% e até junho de 2003 os tos ao salário aumentaram em média de
aumentos foram de 30% cada ano. Em 2.100 %. Destaca o informe ANS 2011
outubro de 2003, devido à conflitivida- que os gastos que equivaliam a 8% do
de política no país, o Presidente anuncia montante pago em salários em 1998 hoje
que o aumento em 2004 seria entre 50 representam 31% do salário e as políticas
e 60%. Nos anos seguintes, desde 2005 de compensação que representavam 23%
até 2009, os aumentos se mantiveram do montante cancelado em salários, hoje
em 30%. Em 2010 o Presidente os in- representam 71% (ONAPRE). Se dolari-
crementou em 40% e em 2011 seria de zarmos o salário o aumento obtido pelos
50%. Estes níveis estiveram muito acima militares seria de 187% nos anos da ges-
dos aumentos nos entes públicos (OLI- tão do Presidente Chávez (OLIVARES,
VARES, 2012). 2012).

86 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Militarismo na Venezuela

Em 1999, um subtenente “ganhava administrativos. Feita a “depuração”, o


355.509 bolívares, equivalentes a dois Presidente começa a investir nas forças
salários mínimos, um major do exérci- armadas, que foram reestruturadas e mo-
to venezuelano, em 1998, ganhava 30 dernizadas com melhores equipamentos,
dólares menos que um soldado raso co- armas e outros materiais bélicos. Até
lombiano e 100 dólares menos que um 2011, o governo Chávez havia gastado
soldado brasileiro” (OLIVARES, 2012), cerca de 20 bilhões de dólares com o re-
situação que Chávez inverteu com o au- aparelhamento das forças armadas.
mento no preço do barril de petróleo a
partir de 2001 e que, em setembro de O governo também investiu nos militares
2013, girava em torno de US$ 110 em com regalias que não chegam aos civis,
virtude da crise na Síria, bem acima dos como um programa de aquisição de au-
US$ 7 dólares de 1999. tomóveis para famílias de militares4. Au-
mentando ainda mais as fileiras militares
Ao longo dos anos, os militares foram e seu compromisso com o chavismo,
se tornando, de maneira cada vez mais durante seu governo cerca de 3 mil téc-
fiel, a base de sustentação do governo nicos e suboficiais técnicos se tornaram
do Presidente Hugo Chávez, que perce- oficiais das forças armadas, e continua
beu que tinha de fazer as forças armadas aumentando a uma proporção de mais
à sua imagem e semelhança, e passar a de mil por ano.
ser o bastião de permanência do chavis-
mo. Isso não foi feito de uma hora para Os militares de alta patente, os mais
outra, e, depois do golpe de 2002, fi- proeminentes, incluídos aí os que assu-
cou claro para Chávez que era preciso mem o Ministério da Defesa, têm de-
que as forças armadas fossem moldadas clarado seu apoio ao projeto chavista, à
de forma a atender seu projeto de po- “revolução” bolivariana, num desrespei-
der. Como entende o jornalista Teodoro to à proibição de se fazer proselitismo.
Petkoff, crítico declarado do chavismo, O então ministro da defesa de Chávez,
“a Força Armada Nacional (FAN) cons- Diego Alfredo Molero Bellavia, engajou-
titui, na prática, tanto enquanto institui- -se abertamente na campanha de Chá-
ção e à margem de suas contradições vez e na de Maduro. Em 07 de julho
internas e do maior ou menor mal-estar de 2013, foi designado embaixador da
que possa existir em seu interior, a co- Venezuela no Brasil.
luna vertebral do regime de Hugo Chá- Durante os três primeiros anos, o ci-
vez” (PETKOFF, 2010, p. 32). mento ideológico para a FAN constituía
a chamada Doutrina Bolivariana; (...) To-
Depois de abril de 2002, vários militares davia, de 2007 até hoje [2010], quando
golpistas foram para uma reserva forçada. a “revolução” passou a se definir como
“socialista”, o “bolivarianismo” tem sido
Novecentos e oitenta oficiais deram bai- complementado com uma confusa pré-
xa e outros foram relegados a trabalhos dica “marxista”, ainda que muito mais

4
APRUEBAN plan para dotar de vehículos a familiares de militares. El Universal, Caracas, VE,
17 ene. 2013. Disponível em: <http://www.eluniversal.com/economia/130117/aprueban-plan-
-para-dotar-de-vehiculos-a-familiares-de-militares. Acesso em: 24 jan. 2013.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 87


Nabupolasar Alves Feitosa

retórica do que substantiva, mas que fosse Hugo Chávez e que não aceitaria
antecipa, mais adiante, uma não impro- um Governo da oposição (...)” (OLIVA-
vável codificação daquela prédica no
catecismo marxista-leninista. (PETKOFF, RES, 2012). Da mesma forma, o Almi-
2010, p. 36). rante Diego Molera, depois que assumiu
o Ministério da Defesa em lugar de Ran-
E essa é a contrapartida que os militares gel Silva, não perdeu a oportunidade de
têm de oferecer ao chavismo: defender declarar publicamente sua defesa ao pro-
o projeto de poder adjetivado como so- jeto de Hugo Chávez.
cialista e bolivariano, embora ambas as
caracterizações sejam inadequadas, sen- No dia 21 de março de 2013, o Almiran-
do apenas resultado da manipulação que te Molero baixou uma determinação obri-
Chávez fez do mito de Simón Bolívar gando a anteposição de “CHÁVEZ VIVE
para benefício de seu projeto. LA LUCHA SIGUE” ao lema “INDEPEN-
DENCIA Y PÁTRIA SOCIALISTA... VI-
A manipulação que fez Chávez do nome
e do pensamento de Simón Bolívar, e VIREMOS Y VENCEREMOS”. Essa defe-
sua utilização completamente sectária, sa, ilegal, rendeu-lhe a aprovação do seu
não tem outro objetivo que provocar no nome como embaixador da Venezuela
imaginário venezuelano uma equiparação
no Brasil em 17 de setembro de 20135.
entre “bolivarianismo” e “chavismo”.
Não é sequer uma jogada subliminar (PE- Isso ocorre a despeito de a Constituição
TKOFF, 2010, p. 37-38). da República Bolivariana da Venezuela,
no seu Capítulo III, Artigo 328, deter-
Os militares chavistas, que hoje em minar que as Forças Armadas são uma
dia são a maioria – se não em número, instituição “essencialmente profissional,
pelo menos em poder–, não escondem
sem militância política, organizada pelo
defender o ideal de Hugo Chávez. No
Estado para garantir a independência
Estado chavista, o militarismo faz uso
e soberania da Nação” (VENEZUELA,
também da referência a Simón Bolívar,
1999, p. 332). No mesmo Artigo 328, a
também militar.
Constituição ainda determina:
No caso da Venezuela se soma o que se
No cumprimento de suas funções, [a
consideram executores do legado moral e
Força Armada Nacional] está ao serviço
do ideário do Libertador. Tomando como
exclusivo da Nação, e em nenhum caso
pretexto tais ideais desenvolveu-se um
ao de pessoa ou parcialidade política al-
militarismo bolivariano antipartidista, que
guma. Seus pilares fundamentais são a
além de se alimentar do tradicional “culto
disciplina, a obediência e a subordinação
a Bolívar”, soube se aproveitar os fortes
(Ibid., p. 332).
sentimentos contra os partidos que se
haviam desenvolvido na opinião pública
venezuelana (REY, 2011, p. 200).
A Carta Magna autoriza os militares da
ativa a votar, porém não podem “optar
O general Rangel Silva disse que a FANB por cargo de eleição popular, nem parti-
“não aceitaria um comandante que não cipar em atos de propaganda, militância
5
EL PARLAMENTO autorizo el nombramiento de Diego Molero como Embajador de Vene-
zuela em Brasil. El Nacional, Caracas, VE, 17 sept. 2013. Disponível em: <http://www.el-
-nacional.com/ politica/AN-nombramiento-Diego-Molero-Brasil_0_265773576.html>. Acesso
em: 13 out. 2013.

88 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Militarismo na Venezuela

ou proselitismo político”, conforme está rar, pois afirmou: “o soldado não deve
escrito no Artigo 330. Mas essa interdi- deliberar, e desgraçado do povo quando
ção constitucional não foi suficiente para o homem armado delibera” (BOLÍVAR
barrar a filiação de militares da ativa ao apud REY, 2011, p. 2002).
PSUV, como denunciou em 06 de maio
Em todo caso se abriu a possibilidade
de 2012 a Associação Civil Controle Ci- (...) de que a Força Armada, como cor-
dadão, presidida pela intelectual Roscío poração, ou de grupos militares dentro
San Miguel. O desrespeito à Constituição dela, participe nas polêmicas políticas
e que, antes de cumprir as ordens que
foi reforçado em forma de lei, pois a LO-
recebe do governo civil, delibere so-
FANB traz o seguinte texto introdutório: bre a conveniência e oportunidade das
mesmas e eventualmente as desobede-
ça. Isso é o que ocorreu cada vez com
Sob a alegação de que o mais frequência, nos últimos tempos, até
povo deve auxiliar as Forças culminar nos atos que se desenrolaram
a partir do último 11 de abril de 2002
Armadas na defesa da (REY, 2011, p. 203).
pátria, Hugo Chávez criou
Em 2012, dos 23 governos estaduais
a Milícia Bolivariana. disputados, 12 ficaram com militares da
reserva e 11 com civis. Dos doze milita-
Com o supremo compromisso e vontade res eleitos, 11 são do Partido Socialista
de obter a maior eficácia política, qua- Unido da Venezuela (PSUV), e apenas
lidade revolucionária na construção do
socialismo, a refundação da Nação ve- um, Henri Falcón, foi eleito pela oposi-
nezuelana, baseado nos princípios huma- ção para o governo do estado de Lara.
nistas, sustentado em condições morais e Falcón, que foi suboficial da Armada e
éticas que perseguem o progresso da pá-
entrou para a política compondo o cha-
tria e do coletivo (VENEZUELA, 2011).
vismo – do qual dissentiu mais tarde –,
“Essa lei afilia o componente armado ao disputou com o tenente-coronel da Ae-
projeto político de Hugo Chávez, con- ronáutica Luis Reyes Reyes. O estado de
trariando a Constituição de 1999” (OLI- Lara, de toda forma, seria governado por
VARES, 2012), mostrando assim que um militar. Outro caso de comandante
as Forças Armadas são postas acima da militar ocupando um cargo político é o
lei e da Constituição, mas subordinada do chefe do Governo do Território In-
à orientação discricionário do chavismo. sular Miranda, o vice-almirante Armando
Laguna Laguna.
“Na Constituição de 1999 os grupos
Na Constituição de 1999 o setor militar
que se dizem bolivarianos se empenha-
adquiriu o direito ao voto na Venezuela
ram em eliminar (...) a norma tradicional e ainda que se diga que não podem fa-
que consagra o caráter não deliberante zer proselitismo político, de fato é uma
das forças armadas e seu apoliticismo” nova situação dentro da democracia ve-
nezuelana que não está resolvida muito
(REY, 2011, p. 202), ainda que o pró- claramente. Neste momento tem um sta-
prio Simón Bolívar não fosse de acordo tus muito mais independente do sector
com um militar tendo direito de delibe- civil do que tinham no passado e não está

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 89


Nabupolasar Alves Feitosa

muito resolvida sua subordinação ao setor O grupo foi criado em 2005, porém
civil, o que traz bastantes tensões dentro não foi até 2010 quando a distribuição
da Venezuela. Todavia, sem os setores de armas se estendeu entre a milícia.
militares não é possível pensar que o go- Não obstante, em 2006 começaram os
verno de Chávez houvesse sobrevivido ao treinamentos para a população em táti-
golpe de 11 de abril ou que se tivesse cas de defesa, com cursos organizados
podido recuperar a indústria petroleira se pelo Estado nos quais circulava o dis-
não tivesse entrado o setor das Forças Ar- curso sobre uma suposta conspiração
madas não somente para retomar os cam- da Casa Branca7.
pos mas também para tratar de apreender
as máquinas, as refinarias, etc. (LÓPEZ A Milícia Bolivariana, que aprofunda
MAYA et al, 2006, p. 64-65). o militarismo nas camadas populares e
entre os civis, é acusada pela população
Sob a alegação de que o povo deve au- civil de usar seu acesso às armas para
xiliar as Forças Armadas na defesa da pá- cometer assaltos à mão armada, seques-
tria, Hugo Chávez criou a Milícia Boliva- tros e crimes em geral, bem como alugar
riana. Em 02 de abril de 2005, foi criado essas armas para outros criminosos. Não
o Comando Geral da Reserva Nacional é por outra razão que Henrique Capriles
e Mobilização Nacional. Em 2009, o Radonski, durante a campanha eleitoral
comando passou a se chamar Comando de 2012, foi impedido pela Milícia Boli-
Geral da Milícia Bolivariana e, mais tar- variana de entrar no Bairro 23 de Enero
de, passou a se chamar Comando Geral (23 de Janeiro), reduto chavista radical e
da Reserva Militar e Mobilização Nacio- uma das áreas mais violentas de Caracas.
nal. O governo esclarece no sítio eletrô-
nico oficial o que é a Milícia Bolivariana. Na Venezuela, quem controla
Dentro desta nova Força Armada, cria- o Estado controla também
-se a Milícia Bolivariana, como um Corpo os meios de produção e tem
Especial, organizado pelo Estado Vene- o poder de determinar a
zuelano para materializar o princípio de
corresponsabilidade e tem como objetivo
organização da sociedade.
principal interagir com a sociedade em
seu conjunto, para a execução da defesa
integral da Nação6. O projeto de poder de Hugo Chávez
ajudou a reduzir a desigualdade social
Quando criou as Milícias, Chávez tinha de forma irrefutável, mas também inar-
em mente o treinamento de venezuela- redável é o fato de que, na Venezuela,
nos para resistir a uma possível inva- os militares são mais iguais do que os
são estrangeira. outros venezuelanos.
6
QUÉ ES la Milicia Bolivariana? In: VENEZUELA. Ministerio del Poder Polpular para la Defen-
sa. Milicia Bolivariana. Sítio eletrônico da Milícia Bolivariana. Disponível em: <http://www.mili-
cia.mil.ve/ sitio/web/index.php?option=com_content&view=article&id=45&Itemid=58>. Acesso
em: 13 out. 2013.
7
130.000 VENEZOLANOS armados forman la milícia bolivariana para “salvar a la pátria”. Te
Interessa, Madrid, ES, 25 mayo 2013. Disponível em: < http://www.teinteresa.es/mundo/ ve-
nezolanos-armados-milicia-bolivariana-patria_0_924509113.html>. Acesso em: 13 out. 2013.

90 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Militarismo na Venezuela

Não se deve esquecer de que Simón que a Venezuela é governada por Nicolás
Bolívar era militar e de que Hugo Chá- Maduro Moros, um civil, o que ocorre
vez foi formado em uma academia mi- no país atualmente é que, na realidade,
litar. Sua visão, portanto, de adminis- existe uma autoridade civil sem domina-
tração e de política é militar, com uma ção civil9.
permanente análise de situação para a
qual contribuem conhecimento de táti- Foi possível se chegar ao militarismo na
ca e de estratégia a partir dos quais se Venezuela, entre outras razões, porque
as instituições são frágeis, e as forças ar-
vai para a batalha e para a guerra. Por
madas assumiram o papel dessas institui-
isso mesmo, Chávez dizia que se para
ções, e passaram a executar trabalhos de
Clausewitz a guerra é a política por ou-
“políticas sociais, casos de emergência
tros meios, para ele a política é a guerra
nos barrios, assistência, vacinações mas-
por outros meios. Repetia sempre que a
sivas, serviço odontológico etc. Ou de
revolução era pacífica, mas não era uma
diferentes casos de Missões (...)” (LÓ-
revolução desarmada.
PEZ MAYA et al., 2006, p. 64-65).

O controle do Estado permitiu que os


Conclusão militares obtivessem privilégios para si e
compusessem o que hoje se chama de
O papel que os militares desempenham boliburguesia, setor social e econômico
na Venezuela atualmente, ocupando car- dominante que atingiu esse importante
gos e dominando a política e todo o po- patamar na estratificação social depois
deroso aparato estatal do país, detentor de sua relação estreita com o Estado.
da maior reserva mundial de petróleo no Para permanecer no controle do Estado,
mundo, torna-os a categoria social8 mais tem sido importante a afiliação dos mi-
importante da sociedade na Venezuela, litares à ideologia chavista, raiz da do-
pois, nesse país, o Estado é o dono do minação carismática ainda remanescente
principal meio de produção. Na Vene- no imaginário popular. Todavia, mais do
zuela, quem controla o Estado controla que qualquer situação, a manutenção do
também os meios de produção e tem o Estado nas mãos dos militares está ba-
poder de determinar a organização da seada no uso da força, ainda que careça
sociedade. Mesmo que se argumente cada vez mais de legitimidade.

8
Ver: FERNANDES, Heloísa. Os militares como categoria social. São Paulo: Global, 1978.
9
Cf. NORDEN, Deborah. Autoridad civil sin dominación? Las relaciones político-militares em La
Venezuela de Chávez. Nueva Sociedad, n. 213, ene.-feb. 2008. Disponível em: <http://nuso.
org/ media/ articles/downloads/3501_1.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2015.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 91


Nabupolasar Alves Feitosa

Referências bibliográficas

ARAUJO, Elizabeth. “Hay 1.875 generales”. Tal Cual, Caracas, VE, 9 nov. 2013. Disponível em:
<http://www.talcualdigital.com/Nota/94860/Hay-1875-Generales>. Acesso em: 23 jun. 2015.

DONADIO, Marcela; TIBILETTI, María de la Paz. Atlas comparativo de la defensa en América Latina y
Caribe: edición 2014. Buenos Aires: RESDAL, 2014.
FEITOSA, N. A. A construção do Estado chavista: a influência bolivariana. Fortaleza: Imeph, 2014.

HARNECKER, Marta. Understanding the Venezuelan revolution. New York: Monthly Review, 2005.

LÓPEZ MAYA, Margarita et al. Impactos y tendencias de los cambios. In: ELIAS, Antonio (Org.). Los
gobiernos progresistas en debate: Argentina, Brasil, Chile, Venezuela y Uruguay. Buenos Aires: CLAC-
SO; PIT-CNT Instituto Cuesta Duarte: Buenos Aires, jul. 2006. Segunda Parte. Disponível em: <http://
biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/edicion/elias/SegundaParte.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2013.

MARCANO, Cristina; BARRERA Tyszka, Alberto. Hugo Chávez sin uniforme: una historia personal.
Buenos Aires: Debate, 2005.

NEDERR, Sofía. 1.614 militares han ocupado cargos en el Gobierno desde 1999. El Nacional, Caracas,
VE, 23 dec. 2013. Disponível em: < http://www.el-nacional.com/ politica/militares-ocupado-cargos-
-gobierno_0_325167554.html>. Acesso em: 23 jun. 2015.

OLIVARES, Francisco. La FANB de Chávez. El Universal, Caracas, VE, 12 feb. 2012. Disponível em:
<http://www.eluniversal.com/nacional-y-politica/120212/la-fanb-de-hugo-chavez>. Acesso em: 28
ago. 2013.

PETKOFF, Teodoro. El chavismo como problema. 3. ed. Caracas: Libros Marcados, 2010.

REY, Juan Carlos. El ideário bolivariano y la democracia en la Venezuela del Siglo XXI. In.: RAMOS
JIMÉNEZ, Alfredo (Org.). La revolución bolivariana: El pasado de uma ilusión. Mérida: La Hoja Del
Norte, 2011.

RODRÍGUEZ, Rafael. Chávez: La Fuerza Armada es chavista. El Universal, Caracas, VE, 02 feb. 2012.
Disponível em: <http://www.eluniversal.com/nacional-y-politica/120202/chavez-la-fuerza-armada-es-
-chavista>. Acesso em: 21 jul. 2012.

TREJO, Marcos Avilio. El militarismo, autoritarismo y populismo en Venezuela. Provincia Especial, Me-
rida, VE, p. 313-339, 2006. Disponível em: < http://www.redalyc.org/articulo. oa?id=55509816 >.

TSÉ-TUNG, Mao. O livro vermelho. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002.

VENEZUELA. Constitución de La República Bolivariana de Venezuela. Caracas: Ediciones de La Asem-


blea Nacional, 1999.

_____ . Ley orgânica de La Fuerza Armada Nacional Bolivariana. Decreto 8.096, de 09 de março de
2011. Disponível em: < http://www.mindefensa.gob.ve/muronto/index.php/zona-descarga/category/5-
-fundamentos-juridicos?download=32:fundamentos-juridicos. >.

92 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Resenha

JEFFERY, Keith. The secret history of MI6 1909-1949. [S.l.], EUA:


Penguin Books, 2011. 810p.

Rodrigo Barros Araújo*

M uitas coisas foram ditas e escritas


sobre o Serviço Secreto Britânico
– Secret Intelligence Service (SIS) – po-
por parte dos alemães. E havia razão
para preocupação, pois a Grã-Bretanha
firmara uma aliança com a França e a
pularmente conhecido como MI6, sua Rússia, rivais continentais da Alemanha,
designação em tempo de guerra, sigla formando a Tríplice Entente. Havia, ain-
para Inteligência Militar, Seção 6. Livros da, rumores de que espiões alemães es-
foram escritos sobre o SIS, e a BBC (o tavam atuando em solo britânico.
canal estatal britânico) tem produzido
inúmeros documentários sobre o tema, Ciente de que a melhor forma de defesa
facilmente acessados no sítio do Youtu- contra atentados é saber sobre eles an-
be, na internet. Contudo, o relato deta- tecipadamente, o SIS sempre se pautou
lhado de Keith Jeffery sobre os primeiros por sua premissa mais importante para
40 anos de existência do Serviço Secreto o êxito: recrutar as pessoas certas era
Inglês lança luz sobre um mundo secre- a ferramenta mais valiosa para o jogo
to, revelando alguns fatos fascinantes da espionagem. No começo, porém,
que, de uma forma ou de outra, molda- havia muito pouco a fazer. Na verdade,
ram o curso da história na primeira me- no primeiro dia de trabalho, Mansfield
tade do século vinte. Cumming, o primeiro diretor-geral do
SIS, não fez nada e tampouco viu ou
Tudo começou no dia 7 de outubro de falou com alguém. Somente após um
1909, com o intuito da Grã-Bretanha mês, ele pôde definir as obrigações da
de coletar inteligência para fazer frente nascente organização. Ele contou com
à crescente ameaça de uma Alemanha a ajuda do Capitão Vernon Kell, que,
imperialista. Embora fossem procedentes por seu turno, fora designado para co-
do país mais poderoso no século ante- mandar o MI5 – a inteligência domésti-
rior, com o maior império até então já ca, em território inglês.
visto, as autoridades britânicas começa-
ram a testemunhar o poderio militar, uma Mansfield Cumming era um apaixonado
marinha de guerra de primeira classe e por carros, barcos e máquinas engenho-
o desejo de um domínio imperial global sas. Diferentemente de seu par no MI5,

* É linguista e professor.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 93


Rodrigo Barros Araújo

ele não era um linguista, e, aparentemen- O SIS já tinha, nesse período, escritórios
te, tinha pouca experiência prática com na França, na Bélgica e informantes es-
o trabalho em inteligência. Entretanto, palhados por outros países europeus. O
ele foi capaz de recrutar simplesmente autor conclui, mesmo assim, que Cum-
os melhores. Durante suas entrevistas, ming não pôde antever o derramamento
utilizava métodos pouco ortodoxos, tais de sangue que estava para assolar e as-
como fincar uma faca na sua perna (ele sustar o mundo.
tinha uma perna de madeira). Se o entre-
Com o começo da guerra, curiosamente,
vistado não esboçasse nenhuma reação,
servir “três mestres” (a Secretaria de Re-
seria adequado para trabalhar no SIS.
lações Exteriores, o Almirantado e o De-
Cumming costumava assinar documen-
partamento de Guerra) foi extremamente
tos com a inicial de seu nome, “C”, uma
benéfico para o SIS. Havia problemas de
tradição mantida até os dias atuais por
hierarquia e não se sabia ao certo quem
diretores do Serviço Secreto Inglês. Até
estava no comando. A crescente deman-
hoje, o diretor-geral é chamado de “C”
da por conhecimentos de inteligência
em tributo a Cumming e para preservar
por parte dos “três mestres” trouxe sta-
a ideia de continuidade; de que não hou-
tus para Cumming, que agora visitava os
ve nenhum rompimento com o passado.
três quase diariamente.
O primeiro diretor-geral também criou
a tradição de assinar documentos com Cumming encorajava a pesquisa técnica
tinta verde, tradição herdada dos tem- e científica. Ele queria fazer uso de tintas
pos em que servira à Marinha Britânica. invisíveis para que pudesse se comuni-
Cumming sabia que seu dever maior era car sem ser pego, queria novas máqui-
obter previamente informações confi- nas para garantir comunicações seguras
áveis para revelar as reais intenções do e para decifrar os sinais dos inimigos. O
inimigo. Ele tinha um diário, ao qual o legado dessa perspectiva é que, ao lon-
autor Keith Jeffery teve acesso, em que go de sua história, o MI6 sempre teve
mantinha anotações quase diárias e onde um departamento especializado em de-
expressou as dificuldades de ter que se senvolver novos aparatos tecnológicos
reportar à Secretaria de Relações Exte- voltados para a atividade de inteligência.
riores, ao Almirantado e ao Departa-
mento de Guerra. A operação mais bem-sucedida durante
a Primeira Guerra Mundial foi chamada
de La Dame Blanch, um posto de ob-
A Primeira Guerra Mundial servação estratégico que monitorava
o movimento de trens que carregavam
No diário de Mansfield Cumming, con- toda sorte de materiais para os alemães.
tudo, quase nada havia sobre a Grande Vale ressaltar, também, que Cummings
Guerra que estava por vir. Nem uma pa- foi muito admirado por aquilo que seria
lavra sequer foi escrita sobre o assassi- o princípio da “inteligência comercial”, a
nato do arquiduque Franz Ferdinand em análise da situação econômica da Europa
Sarayevo, no dia 28 de junho de 1914. e os prospectos para seu futuro.

94 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Resenha

Devido a alianças feitas durante a guer- de Guerra. Ele reclamara bastante sobre
ra, com a Rússia lutando com a França o fato de ter “perdido” excelentes ofi-
contra a Alemanha e o império austro- ciais, que tiveram que ser transferidos
-húngaro, Cummings teve que criar re- para trabalhar para os “três mestres”.
presentações na Rússia, na Escandinávia O ideal seria reportar-se, agora, somen-
e, de forma menos significativa naquele te à Secretaria de Relações Exteriores.
momento, nos Estados Unidos. Desde a Com o fim da Primeira Guerra, o futuro
abertura do Canal de Suez em 1877, a da inteligência estava sendo discutido
Grã-Bretanha tinha focado em assegurar e Cumming temia uma junção do MI5
seu domínio no Oriente Médio e na Áfri- (inteligência interna) e do MI6 (inteli-
ca. Por essa razão, a presença de liaisons gência externa), e ele lutou bravamente
no Mediterrâneo e além era vital. contra essa ideia.
Como pode ser visto, a origem e a exis- Como todos sabemos, os serviços secre-
tência do Serviço Secreto Inglês estão tos têm que se adaptar à realidade dos
enraizadas com os militares. Nesta obra, fatos. Surgiu no pós-guerra a decisão,
o autor trabalha quase exclusivamente por parte do governo, de aproximar o
com essa característica, negligenciando Serviço Secreto da Secretaria de Rela-
um pouco uma outra característica mar- ções Exteriores. Essa decisão refletia a
cante do Serviço Secreto: a ubiquidade necessidade de análise política do cená-
da elite nos quadros que compõem a in- rio europeu. Houve também muita pres-
teligência. No cenário pós-guerra e na são para a redução de gastos no escri-
véspera da Segunda Guerra Mundial, a tório de Cumming e em muitos outros
habilidade de grandes espiões, agentes departamentos. Com a crise econômica
e oficiais seria testada aos limites. Se dos anos vinte, tal medida não era ne-
a participação do Serviço Secreto foi nhuma novidade. Cumming e seus pares
modesta e não tão decisiva durante a trabalharam arduamente para utilizar as
Primeira Guerra Mundial, as coisas mu- organizações militares como cobertura
dariam drasticamente ao se combater o para suas atividades e também para capi-
Terceiro Reich vinte anos depois.
talizar parte de suas verbas.
Apesar da vontade de Cumming de tra-
Diante de dias difíceis, do ponto de vis-
balhar em tempos de paz novamente,
ta econômico, vale muito ressaltar uma
o começo dos anos vinte não trouxe a
das passagens mais significativas de todo
tranquilidade desejada. Mal sabia o di-
o livro. Trata-se da posição de Winston
retor-geral que os maiores desafios para
Churchill diante do corte de orçamento
o Serviço Secreto ainda estavam por vir.
para a atividade de inteligência. Naquele
período, Churchill era secretário executi-
Reorganização no pós-guerra vo para questões militares e sabia como
ninguém da importância de um serviço
Pelo bem da eficiência e do segredo no secreto eficiente e forte. Parafraseando
Serviço Secreto, Cumming queria o mí- suas palavras, ele deixou bem claro que
nimo de contato com o Departamento anos de investimento na área não pode-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 95


Rodrigo Barros Araújo

riam ser negligenciados com uma cane- a fronteira soviética sem comunicá-lo a
tada que cortasse o orçamento. Não é seus superiores e, aparentemente, sem
de admirar que Churchill tornar-se-ia um planejamento, ele foi capturado e execu-
dos maiores primeiros-ministros que o tado pela polícia soviética.
seu país já vira. A crença em um servi-
ço de inteligência eficiente, com largos Neste ponto da narrativa, Keith Jeffery
investimentos, acabaria lhe rendendo a cita um caso de extrema importância para
vitória sobre os nazistas no futuro. nós brasileiros. Ele narra como, diante da
dificuldade de combater a ameaça cres-
Após uma guerra sem precedentes e de cente do comunismo em locais como os
anos de luta para manter o SIS funcio- Balcãs, a Europa Central e até o Oriente
nando, chegara a hora de Cumming se Médio, o Serviço Secreto Inglês foi ca-
aposentar. Seu sucessor foi outro “ho- paz de adiar uma revolução comunista
mem da marinha”, o Almirante Hugh no Brasil. Os britânicos não tinham uma
Sinclair, um oficial de 49 anos que estu- representação de inteligência por aqui,
dara na Escola Naval Britânica. Cumming e nem queriam que o governo brasileiro
faleceu logo após deixar o Serviço. De suspeitasse de que havia espiões ingleses
acordo com o jornal britânico The Ti- atuando em nosso território. Contudo,
mes, ele morreu no dia 14 de junho de chegou a Londres a informação de que,
1923, em sua casa, tranquilamente. se o movimento liderado por Luís Carlos
Prestes tivesse êxito, todos os britânicos
seriam deportados e os investimentos
Mirando a Rússia bolchevique. E comu- britânicos por aqui seriam perdidos. Um
nismo no Brasil? oficial do SIS contatou o embaixador bri-
tânico, que ligou para o Presidente Ge-
Com o ocaso da Primeira Guerra Mun- túlio Vargas e o deixou a par da situação.
dial, o Serviço Secreto Britânico volta De forma ainda mais efetiva, segundo o
sua atenção à luta contra o comunismo autor, o oficial também ligou para o di-
internacional, patrocinado pela União retor da companhia de energia do Rio, a
Soviética. Sidney Reilly, conhecido como Light. Ao se cortar a energia elétrica da
o “Ás dos Espiões”, teve um papel de- região em que se encontravam os revolu-
terminante ao sugerir a Cumming (que cionários, estes ficaram incapacitados de
o recrutara anteriormente) formar uma operar o rádio e de se comunicarem. Es-
rede de informações anti-bolcheviques. tas simples iniciativas minaram os planos
Reilly era fluente em sete idiomas e se dos revolucionários e ajudaram o gover-
passava por diferentes pessoas em varia- no brasileiro a frear a tentativa de uma
das missões. Ele também era famoso por revolução comunista por aqui.
ser um galanteador e manipular pessoas
para fazer o que ele determinava. Por
tudo isso, personificava a ideia de ser o Mais uma vez uma guerra se aproxima
espião perfeito. Reilly, como a maioria
dos heróis, pagou um preço muito alto Em uma horrível demonstração de como
por sua ousadia. Quando resolveu cruzar a história pode se repetir, as tensões

96 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Resenha

cresciam em todos os cantos da Europa, Hitler. Para se preparar, o Serviço iniciou


do Oriente Médio, da África e da Ásia. seu plano de criar a Escola de Cifração e
O orçamento apertado do SIS, que era de Códigos do Governo (GC&CS). Era
a prioridade depois da Primeira Guerra premente a necessidade de recrutar as
Mundial, deu lugar a mais investimen- pessoas corretas, entre elas as “30 me-
to nos anos trinta, devido aos inúmeros ninas” com conhecimentos em ao menos
desafios internacionais. A ocupação da duas línguas estrangeiras relevantes. A
Manchúria, em 1931, por um Japão ex- ideia era fazer frente à demanda de deci-
pansionista e agressivo desafiava os in- frar sinais durante a guerra.
teresses britânicos no Extremo Oriente.
Além disso, Mussolini planejava criar Temendo ser bombardeada pelos ale-
um novo império romano por todo o mães caso ficasse em Londres, a central
Mediterrâneo e pela África. E a ascen- de comunicações do SIS operava em
são de Adolf Hitler ao poder, em 1933, uma casa simples de interior a algumas
com todo o poderio bélico, assustava milhas de Londres, chamada de Bletchley
todo o continente e forçava a migração Park. Esta pequena e aconchegante casa
de milhares de refugiados para a região minaria o segredo de todas as comuni-
da Palestina (sob domínio britânico pelo cações nazistas ao decifrar o Enigma (o
Tratado de Versalhes). Sionistas queriam sistema de criptografia alemão) poucos
estabelecer um Estado Judeu também na anos depois. Possivelmente, este foi o
região da Palestina, criando ainda mais maior feito na história do SIS.
instabilidade em uma região já muito ins-
tável. Na Espanha, uma guerra civil tam- A segunda metade do livro traz o para-
bém estava no radar do Serviço. Todas doxo de termos um dos períodos mais
essas crises são relatadas do ponto de sombrios da humanidade e, ao mesmo
vista de espiões que estavam lá, in loco, tempo, a bravura e a astúcia de oficiais
reportando o que viam, sentiam e liam. de inteligência que conseguiram criar
Uma análise mais acurada que essa é soluções e desenvolver novas tecnolo-
muito pouco provável de se encontrar. gias. A melhor parte do livro não será
analisada aqui, mas deixada para o de-
As representações do Serviço na França, leite do leitor. O livro de Keith Jeffery é
criadas na década de 1920, fomentaram uma leitura essencial para todos aqueles
uma relação muito especial com a inteli- que integram a comunidade de inteligên-
gência francesa. Uma parceria semelhan- cia. Acima de tudo, ele lança luz sobre
te seria formada entre o MI6 e a CIA (ou como a inteligência funciona: com dis-
o que viria a ser a CIA) durante a Segunda crição e conhecimento sobre os fatos ao
Guerra Mundial. Desde 1937, o Serviço redor do mundo. Diferentemente do que
Secreto Britânico estava certo da inevita- é mostrado nos livros de Ian Fleming,
bilidade da guerra e a prioridade número não se trata de uma atividade que busca
1 agora era conhecer os planos do Alto glamour e vaidade extrema. E, definitiva-
Comando Alemão. Inúmeros relatórios mente, é uma atividade essencial para a
foram produzidos sobre as intenções de existência de qualquer país.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 97


Resenha

OLSON, James M. Fair Play: The moral dilemmas of spying. Washington:


Potomac Books, 2006.

Marcelo Oliveira*

A té que ponto é moralmente aceitá-


vel que uma agência de inteligência,
à custa de violações de direitos humanos,
fissional de inteligência, seja ele de que
país for. A reboque de uma realidade
que envolve uma atuação de inteligên-
financie, em outro país, o combate a um cia espalhada pelo mundo – sob os mais
grupo terrorista que atacou sua embai- variados propósitos e ambientes – bem
xada? Ou ainda, é admissível, sob o pon- como interações de grandes e poderosas
to de vista moral, fornecer inteligência agências como a CIA, o FBI e a NSA,
para direcionar ataques militares a um somos gentilmente convidados a extrair
complexo de apartamentos onde moram os dividendos éticos que cada um dos
civis, mas que abriga, simultaneamente, cenários apresenta.
um laboratório de armas biológicas?
O enlaçamento do leitor se inicia a par-
Esses são exemplos das instigantes ques- tir da originalidade de perspectiva com
tões que permeiam “Fair Play: the moral que o autor começa a abordar o tema:
dilemas of spying”, obra de James Olson. antes de partir para análise extramuros,
Lançado originalmente em 2006, o livro discute as especificidades que a carrei-
é alicerçado por vigas mestras que não ra de inteligência lhe trouxe, a partir de
perdem sua atualidade, justamente por in- seu próprio recrutamento a uma profis-
serirem elementos intrinsicamente atem- são que jamais sonhara quando criança.
porais em situações calcadas no real ou Uma das mais curiosas é relativa à deci-
simplesmente hipotéticas. Estas acabam são que Olson e os amigos devem tomar
por compor os 50 cenários escolhidos por sobre a pertinência em revelar aos filhos
Olson para análise, realizada sob o ponto a natureza de seus ofícios, para além
de vista da realidade estadunidense. de suas estórias-coberturas que adotam
nos países que operam. Em seu caso,
Ainda que sejam esses os parâmetros uma carta recebida quando trabalhava
norte-americanos que ilustram as situ- na Áustria, introduzida sob o preâmbulo
ações expostas no decorrer do texto, de “Prezado Cão Infiel” e citando nomi-
a ideia de Olson é agregar a dimensão nalmente seus filhos e sua esposa (tam-
ética à perspectiva técnica de um pro- bém pertencente à CIA), foi convincente

* Especialista e Mestre em psicologia.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 99


Marcelo Oliveira

o bastante para que consolidasse a deci- Com a trajetória profissional de anos


são de informar a verdade ao primogê- de experiência – inclusive como agente
nito, pedindo seu auxílio na preservação operacional instalando cabos de comu-
da segurança da família. nicação em plena Moscou, na Guerra
Fria – Olson também replica sua audácia
Olson também é feliz ao reservar um ca- no campo teórico ao explorar questões
pítulo à exposição de argumentos filosó- como essa. Traz para a arena de discus-
ficos e históricos que lançam luz sobre são, desse modo, a contradição entre
quais ações são permissíveis a um estado a vigilância democrática interna em seu
na busca de seus interesses. Sem a pre- país e a interferência em rumos da política
tensão de desenvolver um estudo exaus- doméstica em outras nações, vários dos
tivo dissociado da aplicação às questões quais citados no decorrer da exposição.
relacionadas à espionagem e à moralida- Se a espionagem e a covert action no ex-
de pública, são expostas diversas visões terior estão amparadas legalmente, como
sobre tentativas de deslinde de nós mo- no caso dos Estados Unidos, seriam elas
rais; para tanto, são enfocados argumen- mais justas e eticamente aceitáveis?
tos contidos na Bíblia, desenvolvidos por
pensadores como Aristóteles, Cícero, O livro recorda afirmações como a do
São Tomás de Aquino, passando por Ma- ex-diretor da CIA, Allens Dules, subli-
quiavel e Kant. É explorada, ainda, a pro- nhando que “há poucos arcebispos na
jeção lançada a partir de pontos de vista espionagem” e a de Richard Helms,
com repercussões no campo das relações também ex-ocupante do mesmo cargo,
internacionais (Realpolitik e Utilitarismo), malicioso na avaliação de que o pessoal
sob a questão fundamental que reside na de sua equipe “não integra os escotei-
distinção da escolha, dificilmente mono- ros”. Em sendo assim, quais seriam os
cromática, entre o bem e o mal. contornos aceitáveis da plasticidade mo-
ral? Olson dá voz a opiniões discordan-
Outra discussão que merece um capítulo tes, que repelem as covert actions como
à parte no texto de Olson é a atitude dos algozes da própria democracia, autode-
Estados Unidos frente à espionagem. terminação ou liberdade que, em última
Recordando que as relações que o país instância, intentam defender. De sua
estabelece com a inteligência oscilam parte, contudo, em um viés pragmático
entre o amor e o ódio – reticência que que permeia “Fair Play”, Olson expressa
resultaria na instalação de um serviço ci- que, sem determinados artifícios asso-
vil relativamente tardio naquele país em ciados à espionagem, tais como a ilusão,
relação a outros global players, com o a própria segurança em um mundo real
estabelecimento do Office of Strategics estaria comprometida.
Services in 1942 –, lança uma questão
que ajuda a rastrear a desconfiança, tal- Ambas características acima citadas,
vez inconsciente, da população frente às ou seja, o respeito pela divergência e
atividades da área: “Espionagem e de- o pragmatismo, manifestam-se também
mocracia poderiam conviver?” no cerne do livro. Seu autor habilmen-

100 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Resenha

te esculpe os 50 cenários propriamente çam mão ao expressarem sua opinião.


ditos percorrendo o fino liame do “se” Esse recurso, é bem verdade, esmaece,
e “quando” seria moralmente aceitável em certa medida, a discussão cujo fluxo
efetuar uma ação ou decisão de inteli- correria apenas em um leito moral. Por
gência, a partir da abrangência de opi- outro lado, ela inclui o vetor da consequ-
niões e da verossimilhança das situações ência – incluindo o vazamento – como
expostas. Concebe isso de tal modo a potencial inibidor de uma atuação pro-
ponto de o leitor, nos dilemas mais an- fissional, cuidado que é perfeitamente
gustiantes, sentir-se um pouco mais ali- plausível e considerado em qualquer
viado por se perceber segurando apenas briefing operacional.
um livro intelectualmente provocador,
em vez de angustiado em uma cadeira Podemos percebê-la no discurso tanto
de chefia de operações, premido por um de profissionais da comunidade de inteli-
senso de urgência que a caneta na mão gência, quanto de pessoal externo a ela,
não lhe deixa esquecer. às vezes, enfocando pontos diferentes
dos resultados da intervenção proposta.
Assim, a exposição de cada cenário é Deste modo, há um jornalista que não vê
construída a partir de uma descrição da implicação moral na hipotética situação
situação hipotética, seguida da ques- de recrutamento de seus companheiros
tão motivadora – necessariamente um de profissão europeus pela CIA, desde
dilema moral – e opiniões diversas, fi- que isso não redunde em desinformação
nalizadas com um comentário do autor. à população estadunidense. Por outro
Nessa estrutura, pessoas com diferentes lado, oficial da área de inteligência dis-
backgrounds (estudantes de graduação, corda da prática, por considerá-la im-
doutorandos, professores, diplomatas, própria moralmente, além de arriscada
oficiais de inteligência, militares, escrito-
no aspecto prático – leia-se deletéria em
res, jornalistas e religiosos, por exemplo)
caso de vazamento.
posicionam-se em relação ao que fariam,
justificando o porquê de suas decisões. A segunda observação a ser levada em
conta é relativa à validação entre o que é
Seria obviamente tentador para um pro-
dito que seria feito e a decisão tomada,
cesso de simplificação da realidade en-
se o caso fosse real. Assim, a segurança
contrar uma uniformidade entre os pro-
embutida no campo especulativo da sim-
fissionais de inteligência experientes em
ples suposição pode inclinar os colabo-
sua área de atuação ou categorizar opi-
radores a dispensarem as várias facetas
niões em bloco a partir da formação téc-
envolvidas nos dilemas e frequentemente
nica de cada um dos participantes. Não é
o que acontece no texto, em larga escala. expressarem suas opiniões sem maiores
Contudo, cabem aqui duas observações. ponderações, na busca apressada de um
refúgio em um dos extremos da linha mo-
A primeira diz respeito ao apelo à re- ral. O leitor, entretanto, mantém a opor-
percussão prática de determinada ação tunidade de seguir apreciando o desen-
de que muitos dos colaboradores lan- rolar de um debate imaginário, à medida

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 101


Marcelo Oliveira

que as opiniões são expressas e pode se afegãos – nunca foram provadas, o que,
surpreender, com frequência maior que a contudo, não desmonta a existência de
esperada, a terminar o dilema lido com teorias nesse sentido.
sua opinião reposicionada pelos argu-
mentos apresentados. Isso acaba por re- Outra questão fictícia em torno da qual
produzir, em uma escala individual e mais gravita rara unanimidade em Fair Play é
breve, os bastidores envolvidos na dis- aquela em que é exposta a situação de
cussão e na aprovação de planos opera- um funcionário do governo do Iêmen
cionais que ensejem intervenções como que possui uma filha de 9 anos com
aquelas descritas por Olson. diagnóstico incerto em uma questão de
saúde que vem trazendo à garota uma
São poucas as questões em que as opini- série de prejuízos. Até que ponto – in-
ões são unânimes, mas elas também são daga Olson – seria moralmente aceitável
reveladoras do que seriam (mais prova- utilizar um diagnóstico falso agravando
velmente) pontos de limite intransponí- a doença da criança para convencer o
veis em situações reais. Uma delas, por pai a colaborar com a inteligência norte-
exemplo, trata do cenário em que um -americana, em troca do custeio de um
membro do Vevak (Ministério da Inteli- suposto tratamento propiciado por uma
gência e da Segurança Nacional irania- medicação “cara”?
no), dependente de cocaína, vai ao FBI
A rejeição a esse recurso é vividamen-
oferecer sua colaboração, incluído aí te compartilhada, por exemplo, por um
acesso a documentos classificados, em professor e poeta, por um estudante de
troca do sustento de sua dependência. graduação, mas também por ex-mem-
bros da CIA e pelo próprio autor, que
A oferta soa inaceitável nas opiniões de
argumenta que, em seus anos de profis-
professora de ensino médio, estudante,
são, jamais viu ser usado artifício como
ex-diretor de inteligência, oficial de inte-
o descrito acima, no qual um falso diag-
ligência e ex-agentes do FBI por variados
nóstico é utilizado como base coercitiva
motivos (morais e práticos). Olson recor-
para forçar a colaboração. O uso de uma
da que não é raro que agentes peçam a
criança como joguete em uma cartada
seus encarregados de caso medidas ile-
da espionagem soa repulsivo a ponto de
gais para abreviar ações de Inteligência,
um dos colaboradores expressar que os
levando em conta que estão sob cober- “good guys” virtualmente representados
tura e realizando em outro país atividade pela CIA não fazem coisas como essas.
que seria considerada ilegal. Porém, não
consideram que agências como FBI e Um aspecto curioso na leitura e que se
CIA desaprovariam medidas que não es- torna um atrativo involuntário do texto
tivessem expressas em normativas legais são as tarjas negras sobrepostas ao texto,
de seu país. Segundo defende, de forma capazes de cobrir as informações tidas
incisiva, as acusações de ilegalidades re- como classificadas e, portanto, com-
alizadas pela CIA desde a Guerra do Vie- prometedoras em caso de revelação. Às
tnã – passando pelo apoio a Manuel No- vezes, elas recaem sobre nome dos co-
riega no Panamá e ao apoio a traficantes laboradores (provavelmente, à época, na

102 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015


Resenha

ativa) e, em outras, suprimem parte da Fair Play merece estar na estante – ou,
totalidade da página. Esse é o caso da mais precisamente, na cabeceira – dos
exposição do autor de sua opinião sobre integrantes da comunidade de inteligên-
o uso de artifícios letais (leia-se medidas cia, estudiosos do tema ou simplesmen-
suicidas) distribuídos a agentes em ações te por leitores ávidos pela provocação
muito arriscadas, como no caso dos pi- intelectual da melhor estirpe. A defini-
lotos dos aviões-espiões dos U-2, que ção do jornal Washington Times, para
passaram a sobrevoar a União Soviética
o qual o livro é, sobretudo, “fascinante
no fim dos anos 1950. Notas de edi-
(...), colocando assuntos melindrosos na
ção recordam que o material precisou,
mesa para uma discussão razoável”, aju-
preventivamente, ser revisado pela CIA,
e que as opiniões expressas individual- da a resumir, com elegância, a ousadia
mente pelo autor ou por colaboradores e a competência com que James Olson
da agência ou de órgãos do governo es- brinda o afortunado leitor de sua obra.
tadunidense não expressam necessaria- E, dificilmente, haverá qualquer dilema
mente o ponto de vista desse ente. quanto a isso.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 10, dezembro 2015 103


www.abin.gov.br
revista@abin.gov.br
ouvidoria@abin.gov.br

Você também pode gostar