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REVISTA

Volume 1 - Número 2 | JUL-DEZ/2018

ISSN 2595-3869
R E V I S T A

SOCIOLOGIA,
POLÍTICA &
CIDADANIA
I S S N 2 5 9 5 - 3 8 6 9
REVISTA SOCIOLOGIA, POLÍTICA E CIDADANIA - © 2018

Editor

Prof. Me. Thiago Mazucato

Conselho Editorial

Profa. Dra. Alessandra Guimarães Soares


Profa. Me. Aline Vanessa Zambello
Prof. Me. Carlos Eduardo Tauil
Prof. Me. Cledivaldo Aparecido Donzelli
Prof. Me. Guilherme Bemerguy Chenê Neto
Prof. Me. Luiz Antonio Albertti
Prof. Dr. Milton Lahuerta
Prof. Dr. Rafael Marchesan Tauil
Profa. Me. Thábata Biazzuz Veronese

Fundação Educacional de Penápolis - FUNEPE


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Penápolis - FAFIPE
Sobre a Revista Sociologia, Política e Cidadania

A Revista Sociologia, Política e Cidadania é vinculada ao grupo de pesquisa homônimo,


sediado na Fundação Educacional de Penápolis (FUNEPE), e que conta com
pesquisadores colaboradores de diversas regiões. A proposta da revista consiste em
contribuir para a promoção de um debate acadêmico sobre questões relacionadas,
majoritariamente às áreas da Sociologia e da Ciência Política, mas sempre preservando
a perspectiva científica multidisciplinar, em especial com áreas correlatas mais
próximas, como a História, o Direito, a Administração Pública, a Filosofia, a
Antropologia, a Psicologia, a Economia, a Educação e outras áreas conexas, em
particular em suas reflexões sobre a temática da cidadania. Desta forma a revista
pretende difundir este debate numa área de confluência entre Sociologia e Ciência
Política que abarque, dentre outras, temáticas que perpassem pelas tensões entre
“conhecimento, poder e dominação”, “Estado, sociedade e democracia” e
“desenvolvimento, planejamento e políticas para a cidadania”. Na proposta da Revista
“Sociologia, Política e Cidadania”, que terá tiragem semestral, além da sessão artigos
gerais, colocamos também a proposta de elaboração de dossiês temáticos, em alguns
números, especialmente organizados pela equipe editorial da revista.

Thiago Mazucato
Editor
Sumário

Ações e poderes: realidade histórica e estilo literário em Antônio Vieira, 5


Wesley Piante Chotolli

O estudo de gênero no Brasil: a influência no movimento feminista nas Ciências Sociais, 23


Caroline de Souza Frontoura

Para ser o que se é: contribuições da Terapia Ocupacional para a desconstrução de estigmas e


estereótipos acerca da diversidade, 32
Débora Isabele de Vasconcelos Teixeira

O assistente social como agente emancipador da pessoa com deficiência e sua sexualidade, 43
Nataly Sabioni Nogueira
Rayana Costa Parro
Ações e poderes: realidade histórica e estilo literário em
Antonio Vieira
Wesley Piante Chotolli
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em
Ensino de Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mestre em Ensino e
Processos Formativos pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três cousas:


olhos, espelhos e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver
por falta de olhos; se tem espelhos e olhos, e é de noite, não
se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister
espelho, e há mister de olhos. Que cousa é a conversão de
uma alma senão entrar um homem dentro de si, e ver-se a si
mesmo?
Vieira – Sermão da Sexagésima.

Introdução

Dizer que Antônio Vieira foi um dos maiores pregadores da língua portuguesa
talvez seja desnecessário para quem já teve contato com suas obras e suas façanhas.
Façanhas no sentido das ações desencadeadas por esse ilustre sacerdote que, com sua
perspicácia e inteligência, tornou-se um dos homens mais influentes na corte
portuguesa na época da restauração da monarquia. É justamente acerca dessas
realizações no reinado de D. João IV que podemos fazer uma discussão sobre quais as
aspirações que moveram Vieira a dedicar-se com tanta convicção à política. Dessa
forma, essa análise começará utilizando-se de alguns aspectos das obras de pensadores
que se debruçaram sobre a discussão entre os intelectuais e suas ações junto ao poder
político.
O primeiro aspecto que será necessário considerar é o campo de atuação. Não
se busca uma discussão ampla e geral sobre todas as obras do nosso padre. Ao contrário,
o que se quer aqui é destacar alguns aspectos de sua contribuição para a política e como
eles se desenvolveram em seu contexto. Porém, para que se possa chegar a esse ponto,
é preciso que se delimite onde se pretende trabalhar e qual a perspectiva filosófica que
será trilhada.
Bobbio (1997) considera que:

[...] a primeira coisa a ser feita é a delimitação do campo da discussão, o


estabelecimento de quem e sobre o que queremos discutir e de que modo.
Entre outras coisas, essa delimitação de campo é útil para evitar as

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deploráveis confusões de planos de discurso tão freqüentes entre aqueles
que falam desse assunto, decorrentes sempre do fato de que os falantes não
se entendem a respeito de quem estão falando, sobre o que estão falando e
sobre o modo de falar a respeito. (BOBBIO, 1997, p. 68)

Tentar-se-á uma aproximação de Vieira com Maquiavel, no sentido de que esse


autor também foi ou tentou ser um conselheiro de príncipes. É justamente essa
semelhança entre os dois pensadores que possibilitará um diálogo entre eles. A
princípio, porém, será discutido um pouco mais sobre Vieira.
Bobbio (1997), em suas considerações acerca da política diz que, entre os
intelectuais, pode-se classificá-los em dois grupos: os ideólogos e os expertos. Tal
definição, segundo o autor, é bem simples. Ele entende por ideólogos “aqueles que
fornecem princípios-guia, e por expertos, aqueles que fornecem conhecimentos-meio”
(BOBBIO, 1997, p. 73). Portanto, sua definição parte da ideia de como o intelectual deve
agir na política. É uma definição interessante. O intelectual muitas vezes não se dá conta
de seu papel político. Ele simplesmente pensa que age de forma natural, quando na
verdade existe toda uma motivação que o leva a fazer isso.
Diante da diferenciação feita por Bobbio (1997), como podemos classificar
Antônio Vieira? Creio que Vieira possui tanto características de ideólogo como aspectos
de um experto. E isso não fere a definição de Bobbio, haja vista que o próprio há de
considerar que é possível que a mesma pessoa possa ser um pouco de ambos. Isso
porque Vieira, no seu papel de conselheiro do rei de Portugal, oferece “princípios-guia”,
ou seja, quando ao aconselhar sobre o destino da nação, dos acordos com os países
vizinhos, entre outros, sua ação era justificada pelos valores de sua época. Ele não fugia
daquilo que era legitimado em seu tempo, ou seja, daquilo que a Igreja orientava,
mesmo que Vieira algumas vezes contestasse os valores eclesiásticos. E isso também
pode ser característico de um experto. Um experto deve considerar as consequências
que podem acarretar suas ações, pensando nos fins. E Vieira sempre pensou nos fins.
Sempre pensou na constituição de Portugal como um grande reino, o maior da Europa,
mesmo que para isso ele tivesse que tramar ações maquiavélicas.
Por ações maquiavélicas entende-se justamente isso: o importante é o fim
obtido, e não como se deu o processo para que se possa alcançá-lo. E essa não é
somente uma das semelhanças entre os autores. Segundo Ames (2007), Maquiavel,

[...] se ocupava da história para decifrar nos acontecimentos passados meios


de ação eficazes para a condução do Estado em seu tempo presente.
Maquiavel tinha clareza que “não se conhece toda a verdade sobre as coisas
antigas, porque na maior parte das vezes se ocultam as infâmias e se
magnificam e amplificam as glórias. (AMES, 2007, p. 23)

No interior de seu campo de possibilidades, Vieira também se utilizava da


história para fundamentar suas ações no presente. No entanto, as matrizes de sua
história são as Escrituras Sagradas. São delas que se extraem as conclusões, que se

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verificam os equívocos e os acertos dos reis, e por meio delas é que se conseguirá definir
o futuro de Portugal.
Maquiavel (2010) foi um admirador dos fatos passados. Para ele, os acertos
tidos em outras épocas deveriam ser considerados e utilizados como conteúdo de
exemplaridade. É óbvio que se deve ter um cuidado com a forma com que estes fatos
foram contatos e os valores que orientavam essas ações. Também em Vieira fica
perceptível essa característica. Ele foi um admirador dos reis antigos.
Outro ponto em comum entre os autores é o papel de conselheiro de príncipe.
Maquiavel, ao escrever sua obra O Príncipe (2010), tinha como objetivo principal que
seu livro fosse o “livro de cabeceira” do soberano. Não podemos esquecer também que
Maquiavel possuía interesse não somente em aconselhar o rei, mas voltar a fazer parte
do corpo político de Florença.
Vieira, por mais que não tenha escrito um manual de como deve ser o
comportamento do rei diante de guerras e disputas políticas, também nutria um desejo
por assuntos ligados ao destino do reino. Ser conselheiro não era somente almejar
destaque na corte e na Igreja. Mas é certo que ser conselheiro de príncipe o colocava
numa posição de estrategista político. Ora, basta observar as maquinações que nosso
padre proporcionou para o destino de Portugal, além de sua participação efetiva para
resolver problemas com Estados europeus, como Holanda, Espanha e Nápoles.
Maquiavel (2010) dizia que um rei não podia ser rei e filósofo ao mesmo tempo.
Isso porque, como administrador de um grande reino, a preocupação central do príncipe
seria justamente o andamento das ações efetivas. Para as decisões políticas ele deveria
ser aconselhado por alguém que tivesse experiência e pudesse orientá-lo em tais
assuntos. Ou seja, não caberia ao príncipe ser um pensador e executor de suas próprias
ideias. Vieira nunca chegou a afirmar que o rei não pudesse ser filósofo. No entanto, em
seus sermões é fácil perceber uma preocupação permanente em aconselhá-lo nas suas
ações políticas.
Por meio destas considerações preliminares é preciso dizer que este trabalho
está centrado nas relações entre obra intelectual e as ações de Antônio Vieira. Nesse
sentido, pretende-se demonstrar como o jesuíta conseguiu conquistar o espaço que
obteve na corte lusitana à época da restauração.

Metodologia

A proposta metodológica deste artigo consiste em uma interlocução com os


autores apontadores dos elementos para a reflexão do papel político de Antonio Vieira.
Sendo assim, utilizou-se como base os estudos produzidos por Ames (2007), Alves
(1959), Bobbio (1997), Bosi (2005), Cidade (1959), Lopes (2008), Pécora (1994), Saraiva
(1980), além do próprio Vieira.
Mesmo reconhecendo que o artigo não se limita a uma revisão bibliográfica,
utiliza-se a premissa da qual essa forma de pesquisa se constrói. Gil (2008) aponta que:

~ 7 ~
A principal vantagem desse tipo de pesquisa bibliográfica reside no fato de
permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais
ampla que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem se torna
particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados
muito dispersos pelo espaço. [...] A pesquisa bibliográfica também é
indispensável nos estudos históricos. Em muitas situações, não há outras
maneiras de conhecer os fatos passados senão com base em dados
secundários. (GIL, 2008, p. 50)

É claro que o autor reconhece que as fontes pesquisadas devem ser


confirmadas por meio de estudos sistemáticos. Um dos perigos para esse tipo de
pesquisa, segundo Gil (2008), é justamente consolidar os resultados do que foi
produzido a partir de fontes secundárias que podem ter sido desenvolvidas de maneira
equivocada.
Compreendendo essa afirmação, procurou-se utilizar autores consagrados em
suas pesquisas, que demonstram um comprometimento com o assunto em questão, ou
seja, desenvolveram estudos sobre Antonio Vieira de forma consistente. A concepção
desse artigo não trata de constatações fechadas, definitivas e conclusas, mas da
articulação de saberes sobre o papel de conselheiro político e suas ramificações
históricas influenciadas pelo padre.

Discussão

Sempre que se faz um estudo sobre a história do Brasil e seus principais nomes
e representantes do período colonial é improvável, para não dizer impossível, não
mencionar os jesuítas. Com efeito, eles colaboraram imensamente para a educação,
colonização e catequização dos indígenas aqui presentes. De forma alguma se questiona
os malefícios ou benefícios dessa prática. No entanto, é fundamental que se tenha a
compreensão das ações que essa ordem praticou em terras brasileiras.
Um dos principais jesuítas que aqui exerceu atividades de catequese foi o padre
Antônio Vieira que, ao elaborar seus sermões, conseguiu alcançar prestígio tanto com a
camada miúda como com as pessoas de grossa fortuna que integravam a corte
portuguesa. Esse homem, que fazia de sua pregação uma arte, foi muito importante
para o desenvolvimento da igreja no Brasil, haja vista que atraía um grande número de
ouvintes em seus discursos. No entanto, para compreender como Antônio Vieira
transformou-se nesse grande personagem literário e histórico, é necessário que se
conheça um pouco de sua história.
Antônio Vieira Ravasco nasceu em 06 de fevereiro de 1608, em Lisboa (LOPES,
2008, p. 14). Seu pai, Cristovão Vieira Ravasco, pertencia a estratos inferiores da
burguesia portuguesa. No entanto, ainda assim, o pai de Vieira fora condecorado com o
título de “Moço da Câmara”, o que demonstra que ele possuía certo prestígio naquela
sociedade. Em 1614, com apenas 6 anos de idade, Vieira embarcou para o Brasil, junto

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com seus pais, com destino à cidade de Salvador. Lá chegando, aprendeu a ler e a
escrever no Colégio dos Jesuítas, o que possivelmente deve ter exercido influência
considerável para que o jovem Vieira pudesse, nas palavras de Hernani Cidade, “receber
os estímulos que teriam inclinado o espírito” (CIDADE, 1979, p. 14). Com apenas 15 anos
Vieira resolveu entrar para a ordem dos jesuítas. Isso se deveu ao fato de ter tido
pesadelos na casa do pai. Sua família era contrária a tal atitude. Porém, a vocação que
ele sentia fez o jovem planejar uma fuga, o que acabou se concretizando.

O que é certo é que, não querendo seus pais que ele vestisse a roupeta, um
belo dia fugiu de casa, e foi-se meter no Colégio dos Jesuítas. Seriam
estranhos a isso os reverendos padres, mas não era esse o seu costume.
Procuravam sempre e procuravam por todos os modos lícitos chamar para o
seu Instituto as grandes inteligências e não decerto desperdiçariam a do
Padre Antonio Vieira. Não houve rogos nem instâncias que a família não
empregasse para o dissuadir de vestir a roupeta. Nada conseguiu – Antonio
Vieira fez os seus dois anos de noviciado e professou no dia 6 de Maio de
1625. (ALVES, 1959, p. XXXIV)

Durante o noviciado Vieira se destacou entre os demais jovens da ordem. Aos


16 anos foi incumbido de redigir a Charta Annua, em latim. Esta carta era, segundo
Cidade, uma espécie de relatório que anualmente se enviava para o Geral da
Companhia. Aos 18 anos, Vieira foi nomeado professor de retórica do Colégio de Olinda,
fato que demonstra o potencial do futuro padre. Ainda na juventude, Vieira foi levado
para a aldeia do Espírito Santo. Essa é uma passagem importante para a formação do
homem de ação que Vieira viria a se tornar.
Por meio da catequização realizada, nosso autor pôde descobrir o domínio que
tinha sobre a palavra, tanto na expressão oral como na forma escrita. Mesmo possuindo
essas características, que para uma carreira eclesiástica poderia ser algo extremamente
importante, Vieira encontrou-se na ação de catequizar. A possibilidade de moldar almas
para uma civilização superior e levá-las ao encontro de Deus era um estímulo para suas
atividades. Impressionante foi sua facilidade para com as palavras. Com efeito, sua
eloquência já chamava a atenção dos jesuítas desde os primeiros sermões. A grande
inteligência do jovem jesuíta, unida à emoção que passava em suas obras, fez com que
Vieira se destacasse entre os demais estudantes. Como observou Hernani Cidade (1979),
“impressionável e impulsivo, inteligência sempre acordada e pronta, as emoções do
coração logo no cérebro se ascendiam em ideias que as fortificavam, e, sem detença,
por umas e outras era determinado à ação, em que todo o seu ser moral – como
havemos de ver – sobretudo se comprazia” (CIDADE, 1979, p. 14).
No entanto, o fascínio das missões, o seu desejo de conquistar novas almas
para a Igreja era maior do que seu amor pela cátedra. Isso mostra uma característica
fundamental na vida de Vieira, ou seja, demonstra que ele foi um homem de ação, no
sentido de que preferiu exercer atividades que fugiam do plano teórico (não

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necessariamente abandonou a teoria, pelo contrário, ela era a base de sua ação) para
colaborar ativamente no campo prático, intervindo na política e na catequização.
No período em que Vieira começou a desenvolver seus sermões, é válido
destacar que muitas revoltas e invasões estavam ocorrendo em solo brasileiro. Como
exemplo, podemos citar a invasão holandesa em maio de 1624 e a conquista de
Pernambuco, em 1630. Segundo Boris Fausto (2006),

As invasões começaram com a ocupação de Salvador em 1624. Os holandeses


levaram pouco mais de 24 horas para dominar a cidade, mas praticamente
não conseguiram sair de seus limites. [...] Depois de duros combates, os
holandeses se renderam (maio de 1625). Tinham permanecido na Bahia por
um ano. O ataque a Pernambuco se iniciou em 1630 pela conquista de Olinda.
(FAUSTO, 2006, p. 45)

Devido a esse contexto histórico, o autor fez suas considerações sobre o


assunto. Esse amadurecimento, de certo modo até precoce, obrigou nosso padre, em
1633, a pregar pela primeira vez. Como se referiu Hernani Cidade (1979),

Foi na quaresma de 1633, dois anos antes da ordenação de presbítero, que


Vieira pela primeira vez se apresentou ante o público da cidade, com
responsabilidades, não já de catequista, senão de pregador. Nesse mesmo
ano, no dia de S. João, sobe outra vez ao púlpito, a pregar o sermão que
depois incluiria com o número 14.º na série Maria, Rosa Mística. (CIDADE,
1979, p. 25)

Em 1635, Vieira ordenou-se sacerdote, e continuou a pregar com maestria suas


palavras, que o distinguiam dos outros padres. Logo ficou conhecido, e com os
constantes ataques holandeses ao Brasil, escreveu seu famoso sermão contra os
Holandeses, em 1640 (ALVARES, 2007).
Em 1641, segundo o padre Gonçalo Alves, Vieira retornou a Portugal, visto que
tinha chegado a notícia da restauração da monarquia. Após uma viagem turbulenta,
acompanhado do padre Simão de Vasconcelos e do filho do marquês de Montalvão,
aportaram em Peniche, onde não foram bem recebidos. Após dois dias, continuaram
sua embaixada, com destino a Lisboa. Na capital, na data de 1º de Janeiro de 1642, Vieira
pregou pela primeira vez na Capela Real. O resultado foi o reconhecimento de suas
habilidades. “Foi louvado, aplaudido, seguido de todos, cultos e incultos, diz o bispo de
Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo” (ALVES, 1959, p. XXXVII).
Nessas alturas, seus sermões já apresentavam um caráter político. Como padre,
Vieira nunca deixou de se dedicar a assuntos que envolvessem o destino de Portugal.
Tanto é que aconselhou o rei quando ocorreu a invasão holandesa no Brasil. De acordo
com Alvares (2007),

Motivado pelo firme propósito de tentar impedir o jugo holandês, o Padre


Antonio Vieira, doravante Vieira, constroi seu sermão e dirige-o ao povo que

~ 10 ~
fomentou o projeto expansionista, povo católico, impregnado de
religiosidade, fiéis dominados pelas virtudes da fé, em nome da qual
ampliavam suas conquistas e, consequentemente, suas riquezas. (ALVARES,
2007, p. 10)

Ele escreveu dois sermões sobre o triunfo português, demonstrando seu


realismo e sua dimensão profética. De certa forma, essas duas “virtudes” citadas são
curiosas para seu tempo. Sabe-se que em tal época a religião exercia grande influência
no modo de vida das habitantes do período. Ir contra tal atitude, criticar os
ensinamentos bíblicos ou duvidar das ações divinas era algo que poderia levar à morte
em um processo de Inquisição. Mesmo assim, Vieira nunca deixou de ser coerente em
suas explicações. A vontade de descobrir o futuro, a capacidade de interpretar a Bíblia,
para saber o que viria, foi algo constante em sua obra. Segundo a reflexão de Cidade
(1979),

Outro aspecto, porém, dentro de pouco se havia de esboçar na carreira


triunfal do orador: a tendência para a visão profética. Visão, todavia, de
inteligência habituada a articular dialeticamente razões claras – apenas sobre
as falazes premissas de sua confiança, comum no tempo, na intervenção do
milagre divino nas ações do homem e nos fastos de uma nação que se
considerava eleita de Deus. (CIDADE, 1979, p. 32-3)

É bom salientar que Vieira não se dizia profeta. Ele se considerava apenas
intérprete das Sagradas Escrituras. A diferença é bem clara. Por mais que o profeta e o
intérprete tentem esclarecer o futuro, eles o fazem de maneiras diferentes. O profeta é
aquele homem no qual se pode perceber o poder de prever acontecimentos que estão
por vir, seja por intermédio de sonhos ou de outros fatores diversos. É um dom. O
intérprete é aquele que, por meio das “pistas” deixadas por Deus, conseguiria
compreender o que ainda não aconteceu. Vieira dizia prever o que há de vir baseado
nas Sagradas Escrituras, ou seja, ele apenas interpretava as palavras de Deus e não
pretendia fazer previsões pelo emprego de meios sobrenaturais. Por intermédio desse
expediente, seria possível conhecer os sucessos que estavam nos planos de Deus
(VIEIRA, 19-).
Pela fama conquistada com seus sermões, Vieira logo foi chamado para pregar
na corte portuguesa. Ele se tornou uma pessoa reconhecida e de alto prestígio naquela
sociedade. E ainda pôde desenvolver suas aptidões de homem político, haja vista que
agora se tornava não somente um padre, mas alguém de máxima confiança. Enfim,
entrava em cena o conselheiro do rei. Segundo a análise do padre Gonçalo Alves (1959),

Acolhido pelo rei como amigo dilecto, exerceu desde logo a máxima
influência na política de seu tempo. Eram os seus sermões muitas vezes
verdadeiros discursos políticos, com que procurava fazer triunfar na opinião
as medidas que se pretendiam adoptar; tal é, por exemplo, aquele seu
magnífico sermão de Santo Antônio, pregado quando estavam reunidas as

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cortes em Lisboa, para conseguir que todos, nobreza, clero e povo,
contribuíssem com o pagamento dos impostos para acudir ao perigo geral.
(ALVES, 1959, p. XXXVIII)

Como conselheiro de Dom João IV, o ilustríssimo jesuíta exerceu papel


importante na política portuguesa. Dentre algumas de suas ações, Alves argumenta que
Vieira pregou a doutrina da tolerância para com os judeus, para que Portugal pudesse
reaver sua riqueza, infelizmente transferida para a Holanda. Em Roma, ele conseguiu
analisar e dar sugestões sobre um alvará de leis de confisco, sendo depois enviado para
a França e para a Holanda como diplomata do rei. Como diplomata, talvez uma das mais
importantes de suas missões tenha acontecido em 1650. Alves (1959) diz que,

Em 1650 partiu o Padre Antonio Vieira para uma nova missão diplomática, e
missão de alta importância, posto que não fosse decerto das mais patrióticas.
Tratava-se de por em termo à guerra entre Portugal e a Espanha, por meio do
casamento do príncipe D. Teodósio com uma filha de Filipe IV. Era a
reconstituição da união ibérica que se planeava assim, fazendo-se de Lisboa
a capital de toda essa vasta monarquia e ficando assim o trono na Casa de
Bragança. (ALVES, 1959, p. XLII)

No entanto, não alcançou os objetivos que lhe foram destinados, visto que não
conseguiu realizar aquilo que lhe fora proposto, ou seja, conseguir a união das famílias.
E mais, ao voltar a Lisboa, viu a decepção que causou à família real.
Ainda sobre a presença dos reis em seus textos, é interessante como Vieira
pensava o problema da administração do reino. Segundo Lopes (2008),

Nos textos históricos e políticos de Vieira, o rei está sempre alerta para a
preservação de uma ordem terrena desejada por Deus, e por Ele confiada aos
príncipes. Vieira acreditava que as ações dos homens eram fiscalizadas por
uma Providência Divina, de tal modo que, por inexplicáveis e surpreendentes
que pudessem parecer alguns eventos particulares, eles se sucediam em uma
sequência regulada. (LOPES, 2008, p. 23-4)

Como Lopes nos diz, o rei não deveria temer os acontecimentos futuros, pois
estes já estavam definidos por uma vontade divina. Um rei temente a Deus, que fosse
conduzido pela fé, dirigiria seu reino rumo ao paraíso. Ainda segundo o autor, “em caso
de desvios dos príncipes, o providencialismo de Vieira assume um conteúdo ameaçador”
(LOPES, 2008, p. 24). Isso quer dizer que, em um reino onde seu líder não tivesse fé,
agisse de maneira corrupta e imoral, os castigos eram bem prováveis. Nesse sentido,
Vieira estava amparado pela Sagrada Escritura e nos exemplos de reis que foram
punidos por não serem tementes a Deus.
Na ocasião em que atuou como conselheiro do rei, período que se estende de
1641 a 1654, é sabido os problemas que a metrópole enfrentava para manter a colônia
brasileira. O Brasil era alvo constante de invasões, e pequenas rebeliões eram

~ 12 ~
observadas neste território. A tensa relação de Portugal com certos Estados europeus –
normalmente com Castela –, também se mostrava crítica. Em meio às tensões
diplomáticas recorrentes, Vieira foi indicado a ser uma espécie de negociador da crise
envolvendo Portugal e Holanda (CIDADE, 1979). Em relação ao tema, Cidade (1979) diz
que

Em 1646, parte Vieira para Paris, encarregado de importantes negociações.


Era preciso remediar às dificuldades que em resultado da rebelião de
Pernambuco contra Holanda (1645), vinham agravar a situação, já péssima,
do País, em guerra com a Espanha. Para isso, procurava-se obter mediação
da França, que levasse as Províncias Unidas a aceitar uma indenização de três
milhões de cruzados pela perda daquela colônia. A Vieira não podia deixar de
agradar a missão. Lisonjeando-lhe a vaidade, era-lhe novo ensejo de realizar
as possibilidades do gênio protéico, ao mesmo tempo em que o punha em
contacto com os judeus portugueses de França e Holanda (levava créditos
para os de Rouen), o que não seria inútil à sua velha teima de obter a volta
sem perigo ao Reino”. (CIDADE, 1979, p. 49)

Fica novamente evidente o homem de ação que Vieira era. Para ele, “a fé cristã
não poderia ser incompatível com as contingências da vida prática” (LOPES, 2008, p. 23).
Ou seja, a religião deveria ultrapassar o campo teórico, por assim dizer, e chegar aos
homens, em suas ações cotidianas. De nada adiantaria um sermão bem composto se
isso não possuísse relações com a vivência daqueles que o ouvissem. Essa distância
entre Igreja e vida cotidiana deveria ser cada vez menor.
Em 1655, Vieira escreveu o que se tornaria seu sermão mais conhecido: O
Sermão da Sexagésima. Em suas palavras, pode-se perceber a dedicação do jesuíta para
aproximar o catequizado com a palavra de Deus. As metáforas utilizadas, as explicações
dos termos e a própria crítica feita ao teor e aos objetivos dos sermões são geniais. Ele
diz que para uma alma ser convertida por meio de um sermão é necessário que se tenha
um bom pregador coerente com a sua doutrina e que tenha o poder de persuadir o
ouvinte. Também é preciso que ocorra o bom entendimento das palavras por parte dos
presentes e, por último, mas não menos importante, a graça de Deus, iluminando as
almas dos seguidores.1
Ao fazer suas considerações sobre os significados dos sermões, Vieira diz que
“palavras sem obras, são tiros sem balas; atroam, mas não ferem” (VIEIRA, 1959, p.14)2.
Ou seja, de nada adianta a pregação se ela não está relacionada com ações. Ao utilizar
o exemplo do semeador no Sermão da Sexagésima, o jesuíta conseguiu atingir seus
objetivos, pois sua comparação se torna clara. Assim como o semeador enfrentou
dificuldades para colher o fruto, a palavra de Deus também encontrou dificuldades para
ser difundida, mas mesmo com esses obstáculos, ela existe e deve ser proclamada. A

1
Cf. VIEIRA, Antonio. Sermões. Sermão da Sexagésima. Porto: Lello & Irmão, 1959. V.1. p.10.
2
Como esclarecimento, o Sermão da Sexagésima foi escrito em 1955. No entanto, para a
produção desse texto foi utilizada uma obra publicada com o ano de 1959.

~ 13 ~
preocupação do pregador com a função do sermão é bem explícita. Vieira falava com o
objetivo de ser entendido por todos. Em seu sermão, ele diz que o “[...] estilo pode ser
muito claro e muito alto, tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que
tenham muito que entender nele os que sabem” (VIEIRA, 1959, p. 20).
Portanto, o sermão deveria ter significado tanto para aquele que fosse letrado,
que conhecesse a história, a Bíblia, mas também para as pessoas mais simples. O
objetivo era o mesmo para todos. Isso só comprova a habilidade que Vieira possuía, pois
com tantas diferenças ele conseguiu ser aclamado por todos.
É importante saber que Vieira sempre foi um defensor dos índios. E isso devido
à sua compreensão sobre os acontecimentos bíblicos. Segundo Bosi (2005), a
interpretação que o autor fazia sobre os três reis magos poderia servir como defesa para
os indígenas. A tradição cristã diz que os três reis magos eram de origens diferentes. Um
deles, chamado Belchior, era de origem negra. Mesmo Belchior sendo negro, e os outros
dois brancos, todos foram salvos por Deus. Sendo assim, Vieira chegou à conclusão de
que, independentemente da cor ou da raça, todos os homens tinham uma filiação em
comum. A explicação da diferença de cor dar-se-ia pelo fato de algumas regiões estarem
mais próximas do sol, outras mais distantes.
Analisando tal fato, Bosi considera que Vieira se encontrava amparado por
documentos dos papas, que eram favoráveis à liberdade dos índios. Mesmo assim, a
Igreja permitia o cativeiro indígena. Isso pode parecer um dilema para a época. No
entanto, existe uma explicação plausível para isso. Ainda segundo Bosi (2005),

Posto o discurso nessa chave, o que dele se seguiria, caso fosse mantido o seu
grau de coerência interna? Sobreviria a condenação pura e simples do que se
praticava então no Brasil, ou seja, tomaria forma lógica o repúdio a qualquer
tipo de cativeiro. Para aí caminha o ímpeto dos argumentos éticos. Para aí
levam os símiles com a dupla rota da estrela de Belém, a qual primeira
conduziu os magos a Cristo (figura da conversão dos gentios) e, em seguida,
os desvios do caminho onde Herodes os faria matar – figura da libertação dos
mesmos índios dos colonos. Analogamente, essa viria a ser a dupla missão
dos jesuítas: levar a boa nova às almas dos tupinambás e defender os seus
corpos quando ameaçados de cair às mãos dos brancos. (BOSI, 2005, p. 135)

Talvez esta seja uma questão contraditória, porém parece que a Igreja, mesmo
permitindo o cativeiro, realizava sua função social, ou seja, a de catequizar e,
consequentemente, salvar as almas desses índios. Bosi ainda diz que Vieira se mostrava
bastante consciente dentro desta situação, que demonstra a condição ambígua da Igreja
colonial. Essa ambiguidade fica realçada diante do seguinte contexto:

A tensão acaba se resolvendo de um de dois modos, ambos infelizes para os


jesuítas. Ou o compromisso, ou a resistência. Na primeira opção, tal como se
deu no Maranhão, todo o processo revelou-se instável, pois se estabeleceu
entre um modelo de subsistência de ritmo lento, a aldeia da missão, e um
modelo de produção agromercantil, o engenho, a fazenda de algodão ou de

~ 14 ~
fumo. Era fatal que este último exigisse cada vez mais a força de trabalho do
primeiro, nesse momento, o pacto entre o colono e o jesuíta mostra a sua
precariedade, e o enfraquecimento se dá no interior de um esquema
assimétrico de poderes. (BOSI, 2005, p. 137)

Bosi explica que a Igreja não podia viver no interior de um sistema em que o
Estado dependia dessa mão-de-obra indígena. Sendo assim, ir contra a atitude de
escravizar o índio seria ir contra os interesses dos grandes fazendeiros e donos de
engenho. Portanto, a situação dos jesuítas era delicada e, de certo modo, extremamente
complicada. Vieira, mesmo que estivesse amparado por sua interpretação dos fatos, não
poderia ir contra as condições reais em que vivia. Ao fazer uma análise sobre os índios,
Vieira dizia haver três tipos de indígenas: os que serviam como escravos; os que viviam
de maneira natural e os que viviam na aldeia de maneira livre. No entanto, caberia à
Igreja salvar essas almas pela catequese.
O ilustre jesuíta também fez algumas considerações sobre os negros. Vários de
seus sermões tratam do tema da escravidão. Porém, sua análise está muito mais
preocupada em discutir a dor do escravo do que proporcionar uma solução para a
escravidão. Ele diz que a origem dos negros e dos brancos é a mesma, ou seja, todos
derivam de Adão e Eva. O que ele não conseguiu explicar, segundo Bosi, é o fato dos
destinos serem tão diferentes. “Nem as leis naturais, nem a fé na Redenção logram
resolver” (BOSI, 2005, p. 145).
Visto isso, podemos perceber que sua obra é muito vasta e complexa. Em seus
sermões, Vieira discute os mais diversos temas, passando tanto por questões raciais
como pelo destino de Portugal. E esse destino pode ser movido por ideias patrióticas.
Aos olhos dos estudiosos atuais, esse seu patriotismo também ficou evidente quando
ele fala sobre o Quinto Império. Utilizando-se das Escrituras Sagradas como seu
instrumento de persuasão, o jesuíta vai dizer que Portugal poderá ser o grande reino
que dominará todo o mundo. Essa seria a missão da monarquia lusitana, e tudo indicava
que tal liderança iria acontecer. Mas Vieira não conseguiu concretizar seu texto.
Contudo, um capítulo inicial do que seria sua grande obra foi deixado.
Para Vieira, as histórias contadas até aqui tinham a preocupação somente de
narrar as coisas acontecidas, ou seja, os “sucessos passados”, segundo os seus próprios
termos. A História do Futuro seria diferente daquilo que era convencional. Sua função
era contar o que ainda estava por vir, fazendo com que os povos, sobretudo os
portugueses, estivessem preparados para os fatos que ocorreriam. O jesuíta, no
entanto, advertiu que sua obra não se baseava em qualquer superstição, algo muito
comum em sua época. Essas adivinhações que eram realizadas estavam assentadas nos
quatro elementos formadores da Terra: a Piromancia, que se utilizava do fogo para
prever o futuro; a Aeromancia, que se aproveitava do ar; a Hidromancia, pelas águas e
por fim a Agromancia, que adivinhava o futuro por meio da terra. Para ele, isso não
passava de “ignorância das artes” (VIEIRA, 19-, p. 10).

~ 15 ~
O que havia de mover a história do futuro seriam dois aspectos: a curiosidade
humana e o apetite para se conhecer o que há por vir. Para Vieira, tudo o que era
proibido causava no homem uma vontade de apreciar o que era negado. Mas esse
futuro, em grande parte, já estava dado. Bastava somente interpretar aquilo que estava
registrado nas Sagradas Escrituras. Ou seja, suas previsões do futuro não seriam
ancoradas em falsas ciências, mas naquilo que de mais real existia: o texto sagrado.
Portanto, não era uma atividade de adivinhação, e sim de interpretação. E ainda,
segundo Vieira, “o maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei é revelar-lhe os
futuros” (VIEIRA, 19-, p. 17). Isso quer dizer que ele estaria ajudando sua majestade, ao
lhe proporcionar o conhecimento do amanhã.
O jesuíta, para dar crédito a sua obra, dizia que existiam várias utilidades em se
conhecer o futuro. E isso tinha motivado Vieira a compor sua obra. Segundo ele, os
proveitos disso seriam: 1º) poder se planejar para as ações divinas, e que essas ações só
se revelavam porque Deus queria assim; 2º) a paciência para a tão aguardada felicidade
e 3º) os conselhos para as conquistas e vitórias que estavam por vir.
É bem verdade que essa História, ao contrário das outras, privilegiava somente
ao povo português. Essas conquistas e vitórias previstas eram pela formação do Quinto
Império, e Portugal seria o centro desse grande reino. É claro que todos tomariam
conhecimento dessa obra, e isso beneficiaria os inimigos dos portugueses, pois sabendo
dos fatos futuros eles poderiam traquinar ações que impedissem a confirmação dos
triunfos lusitanos. No entanto, ela deveria ser vista como um exemplo útil para todos,
visto que os acontecimentos seriam dessa forma. Vieira ainda diz que sua obra serviria
como escudo, como sugere a passagem a seguir.

Armados com este escudo, que trabalhos, que perigos nos pode oferecer o
mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode atirar com todas as forças de
seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? (VIEIRA, 19-,
p. 56)

Portanto, com esse escudo não haveria dificuldades nas conquistas. E mais, por
ser uma história já contada, quem não teria coragem de ir para uma batalha já sabendo
do resultado final? A História do Futuro, além de prever o que aconteceria, ainda
motivaria os portugueses para os triunfos, afinal, as guerras já estavam vencidas e os
inimigos derrotados.
Sobre o Quinto Império, podemos dizer que um futuro radioso seria o destino
de Portugal. Vieira (19-) diz ter chegado a essa conclusão pela análise dos
acontecimentos que se sucederam na observação da história. Para ele, os grandes
reinos estavam se constituindo do Oriente para o Ocidente, ou seja, do Leste para o
Oeste. Portugal, o ponto mais a Oeste da Europa, portanto, seria o território perfeito
para este grande reino futuro, que já vinha a passos largos. Além disso, tinha saída para
o mar, o que lhe possibilitava todas as condições naturais necessárias para grandes
conquistas. Como sugerido, a data para que acontecessem tais prodígios também podia

~ 16 ~
ser definida. Portugal se tornaria o grande império já em 1666. Bastaria observar que 66
é o dobro da idade de cristo, e se os numerais romanos fossem ordenados, no sentido
do de maior para o de menor valor, chegar-se-ia a essa data. A sequência seria:
MDCLXVI, ou seja, 1666. E mais: nas Escrituras Sagradas era possível observar reis que
ressuscitaram. Para nosso autor, isso aconteceria também em Portugal. Consistiria a
partir da volta, toda gloriosa, de Dom João IV, que havia morrido em 1656 (VIEIRA, 19-).
Diversas lendas e variados autores se dedicaram a uma explicação sobre a volta
de reis. Inclusive, utilizaram textos de Bandarra (1500-1556) para justificar, em tom
profético, uma volta triunfal de Dom João IV. Vieira, observando esse contexto, também
se utilizou das profecias de Bandarra, aliado às Escrituras Sagradas, para comprovar sua
tese. Esses são alguns dados sobre como Portugal seria o próximo império universal
(VIEIRA, 19-). Como escreveu Hernani Cidade (1979),

Empenhava-se Vieira em provar que o Quinto Império profetizado por Daniel


e Ezequiel, incoado desde o nascimento de Cristo até à conversão do
Imperador Constantino, incompleto desde então até o presente, seria
consumado em tempo que várias circunstâncias anunciavam para breve.
Sucederia directamente ao IV Império – o romano, que persistia na Casa da
Áustria – e teria essencialmente o carácter que em suas fases anteriores
sempre tivera, espiritual e temporal. (CIDADE, 1979, p. 100)

Enfim, pode-se perceber que esse grande reino seria uma consolidação do
cristianismo no mundo. Ele não se daria de maneira imediata, ao contrário, passaria por
um processo, e o Quinto Império seria a expressão do fortalecimento da Igreja perante
o mundo. Porém, essa construção e consolidação não era algo tão fácil assim. Pécora
(1994) diz que

O progresso da cristandade universal, balizado nos sermões de Antônio Vieira


sobretudo pela confluência do divino e do humano na história, estaria, na
verdade, para ele, dependendo do avanço dessa nação com especial
inclinação para o serviço de Deus no mundo. Não há como falar em união
entre homens ou em concórdia ou fraternidade universal, nos termos do
Padre Vieira, sem passar por esses topos muito mais restrito de nação.
(PÉCORA, 1994, p. 216-7)

Para Pécora, no entanto, entender como Vieira emprega o conceito de nação


não é tarefa das mais fáceis. Ele vai dizer que essa noção traduz certa reunião de
comunidades em torno de aspectos ligados à religião. No entanto, isso deve ser
confrontado com a figura da nação hebraica, que foi escolhida por Deus para ser o
“povo-seu” (PÉCORA, 1994, p. 217). Portanto, na perspectiva adotada por Pécora, o
divino da história não significaria apenas uma direção única a ser seguida, significaria a
formação de um reino que seria superior a todos os outros.
Sendo assim, em um período de Inquisição e de fanatismo religioso, tais
argumentações poderiam trazer alguns problemas para quem tente prever ou, nas

~ 17 ~
palavras de Vieira (19-), entender o futuro. É claro que o padre teve que enfrentar
processos inquisitoriais. Durante quatro anos, Vieira esgrimiu com a Inquisição. Segundo
Cidade (1979),

De que era Vieira acusado? Em primeiro lugar, de anunciar, confiado no


espírito profético do Bandarra, que D. João IV cumpriria, ressuscitado, aquilo
que não pudera realizar na primeira vida, ou seja, o Quinto Império – império
simultaneamente espiritual e temporal –, cuja fundação Deus destinava a
Portugal; depois de ser inclinado à gente de nação, entendendo que o próprio
culto da sua religião se lhe devia permitir. (CIDADE, 1979, p. 94)

Alves (1959) vai dizer que Vieira foi realmente condenado pela Inquisição. Sua
sentença foi severa: a proibição de pregar e a reclusão em uma casa determinada pelos
inquisidores, em Lisboa. No entanto, quando D. Pedro assume o trono, Vieira viu sua
pena ser completamente perdoada.
Esses são alguns aspectos gerais sobre as obras produzidas por Vieira. Mas,
além disso, o que faz com que esse clérigo seja considerado um homem político?
Existem certas maquinações em seus textos, um objetivo muito maior do que esses
discutidos até agora?
Podem-se achar vários significados dentro de sua obra, e isso caberá à
interpretação de cada leitor. Contudo, tal variedade de sentidos só é possível devido à
riqueza de suas ideias e também pela preocupação com que o autor utilizou as palavras.
Por mais objetivas que sejam suas construções, e tal ideia se deve à clareza com que o
autor desenvolveu sua obra, é necessário que se faça uma explicação sobre como ele
escrevia. Antes disso, e para que se evitem os anacronismos, Pécora (1994) salienta que,

Falando especificamente sobre esses anacronismos, o mais grave deles,


porque é o mais freqüente, é o da “estetização da experiência estética como
esfera autônoma”, uma vez que, reposto o contexto histórico em que se
inscreve e constitui a produção discursiva de Antonio Vieira, a ideia dessa
autonomia colide violentamente com a concepção que preside o uso que faz
da linguagem. (PÉCORA, 1994, p. 40-1)

Para Pécora (1994), a base de sentido dos sermões é dada a partir do divino, ou
seja, pela sua sacramentalidade. Essa sua capacidade da retórica foi importante para
demonstrar que, independente de suas vontades políticas, o que se pretendia com suas
pregações era apresentar uma manifestação divina para os homens.
Isso quer dizer que, mesmo que os textos de Vieira apresentem essas
características “modernas” para a época, em última análise pertenciam a um contexto
próprio e possuíam um sentido pré-estabelecido: a salvação divina. Estudar Vieira e
querer fugir da lógica interna do período seiscentista pode acarretar grandes problemas
como, por exemplo, uma interpretação confusa e equivocada dos objetivos do texto. É

~ 18 ~
claro que tal discussão perpassa outros pontos e não somente por sua retórica e seus
textos. No entanto, tal observação é bem válida.

Considerações finais

Ao estudar o discurso engenhoso de Vieira, Saraiva (1980) considerou que


existem quatro características que são percebidas em suas obras. A primeira “fonte” da
escrita vieiriana seriam as palavras por ele utilizadas. Segue-se com as imagens, com as
proporções e com o texto. Nessa análise, no entanto, nos concentraremos nas palavras,
visto que talvez seja esse aspecto o mais importante para a discussão em foco.
Ninguém duvida que Vieira tenha sido um dos maiores pregadores do século
XVII. Por intermédio de seus textos, o autor conseguiu passar a mensagem que se
propôs pregar. Suas metáforas são brilhantes e de fácil entendimento, tanto para os
letrados como para as camadas mais simples de sua audiência. E com isso ele atingiu o
objetivo que a Igreja lhe dera: catequizar. Ao fazer uso das Sagradas Escrituras de
maneira objetiva, Vieira alcançou cada vez mais auditores. Tanto é que seus cultos se
tornavam disputados onde quer que fossem pronunciados. Em seu texto, Saraiva (1980)
explica que isso se deveu à preocupação com a escolha das palavras. O que isso quer
dizer?
Vieira escreveu com clareza suas mensagens. Para narrar os acontecimentos de
forma precisa, ele utilizou-se de vários verbos para expressar exatamente cada ação,
como se fosse uma descrição perfeita do que acontecia. Com um vocabulário extenso,
com poucas repetições de palavras, o autor fez uma construção de fácil entendimento.
Isso se deve ao conhecimento que nosso padre possuía sobre a origem dos vocábulos,
ou seja, sobre a etimologia da língua, sobre a raiz das palavras. No entanto, é bom
salientar que o autor não era nenhum especialista em língua portuguesa. Ele
apresentava o domínio, o conhecimento do idioma, mas isso não quer dizer que suas
interpretações sejam extremamente corretas.
O segundo aspecto apontado por Saraiva (1980) é sobre a palavra quanto ao
significante proposto por Vieira. Saraiva observa que o padre se preocupava com a
construção da palavra, com o desenho da mesma e com os significados que estas
poderiam produzir. A fonética e a fluência também eram uma preocupação para Vieira.
Seria uma espécie de “anatomia da palavra” (SARAIVA, 1980, p. 14).
A etimologia não seria uma definição exata do vocábulo, mas possibilitaria
novas interpretações dos textos de nosso autor. De acordo com Saraiva (1980), “a
etimologia é apenas um dos meios que permitem desvendar este “mistério”, isto é, o
sentido profundo e oculto das palavras de Deus. Já conhecemos o método que consiste
em isolar uma parte da palavra atribuindo-lhe um sentido (SARAIVA, 1980, p. 17).
O terceiro aspecto observado é a palavra quanto aos significados. Vieira fez, na
maioria das vezes, uma construção lógica para atribuir significado à palavra. Porém, num

~ 19 ~
mesmo texto, ela pode possuir duplo significado. Mas isso não traria uma confusão para
o observador menos atento aos seus textos? Sim, se Vieira não tratasse de explicar, no
decorrer do discurso, o que ele pretendia com este novo significado.
Para encerrar, o último, mas não o menos importante aspecto que se pode
notar, é preciso dizer algo sobre as palavras e o próprio discurso de Vieira. Como
salientou Saraiva (1980),

Pela combinação dos dois processos – o que extrai de uma palavra numerosos
conceitos, e o que extrai de um conceito numerosas palavras – as palavras se
prestam a todas as espécies de associação, abrem-se por todos os lados à
passagem de qualquer discurso. Vieira, no discurso engenhoso em vez de
fazer uma triagem entre as possíveis conexões, acessíveis a certos circuitos e
fechados a outros, o que torna a palavra, em certa medida, uma
demonstração da validade lógica de associação das ideias, as usa de tal
maneira que elas não opõem resistência a qualquer encadeamento.
(SARAIVA, 1980, p. 27)

Portanto, devido a todos esses aspectos, sua construção é precisa, mas cheia
de significados. São utilizadas a lógica, figuras metafóricas, duplas interpretações, mas
mesmo assim o objetivo final é conquistado: passar, utilizando seus sermões, os
ensinamentos bíblicos. Ainda assim, por toda a necessidade que Vieira teve de se
“infiltrar” no meio político, seus textos traziam ensinamentos aos governantes da época,
sempre utilizando exemplos retirados das Sagradas Escrituras. Dessa forma, a palavra
seria um instrumento de ação para Vieira. O autor, mesmo sendo considerado um
escritor barroco, conseguiu ser claro e convincente. Segundo Cidade (1959), “mas não
se esgota nestes artifícios a sua capacidade imaginativa. Possui-a dotada de singular
poder plástico, e na Bíblia, na Natureza, nas noções científicas e técnicas do tempo,
encontra ele mina inesgotável de alegorias, símbolos, imagens e comparações” (CIDADE,
1959, p. 444).
O que vemos aqui, diante dessas análises sobre sua escrita e sobre suas figuras
retóricas e aspectos linguísticos, é a união de uma mente brilhante com as habilidades
de um espetacular orador. Talvez esta seja mesmo uma combinação incomum. Um
conhecimento que une a métrica das frases com o desenho e significado das palavras.
Após uma vida toda voltada às questões religiosas e políticas, Vieira morreu em
18 de julho de 1697, com 89 anos. O legado deixado pelo jesuíta é muito vasto, com
uma rica coleção de sermões de temas diversos de um homem de ação que possuía um
conhecimento amplo sobre os mais diferentes assuntos que passavam pela Filosofia e
pela Política. Enfim, sua vida foi uma jornada que incluiu da catequese à produção de
teses sobre o destino de Portugal, o enfrentamento da Inquisição, viagens pelo Brasil e
por toda a Europa, entre tantas outras coisas que nos espanta nos seus quase 90 anos
de existência.
Portanto, o que se buscou discutir aqui foram alguns aspectos da vida e obra
de Vieira, bem como a sua importância para o reino luso-brasileiro. Pode-se concluir que

~ 20 ~
o jesuíta, por meio de seus textos e de suas ações como conselheiro de príncipe,
contribuiu muito para a consolidação do reino português. E isso de forma bem simples,
basta observar a atividade de catequização e de seus atos políticos enquanto figura da
corte portuguesa. A sua preocupação com o destino de Portugal fez o autor compor a
sua História do Futuro, em que se pode notar o sentimento patriótico do padre ao
tentar, de toda maneira, fazer com que o reino lusitano se tornasse o grande império
mundial. E isso sem fugir de suas crenças, utilizando-se da palavra de Deus por meio das
Escrituras Sagradas. Enfim, um excelente pregador, dotado de uma inteligência rara e
belíssima, que fez o possível para semear a palavra divina.
Espera-se que esse artigo tenha contribuído para elucidar e explicar algumas
das peripécias do padre Antônio Vieira, bem como problematizar a questão dos
sermões, da História do Futuro e do papel do jesuíta como conselheiro de príncipe. No
entanto, ocorre a necessidade de se pesquisar mais sobre o tema. Esta foi apenas uma
tentativa inicial de abordar alguns problemas que podem ser percebidos ao estudar
Vieira. Mesmo assim, diversas questões merecem destaque dentro da obra vieiriana. O
estudo de outros sermões, por exemplo, pode ser realizado. Novos aspectos políticos
dentro da História do Futuro com certeza há de surgir com uma nova leitura. Portanto,
o que se espera desse texto é a inquietação do leitor em busca de novas fontes, de
outras interpretações e de outras leituras. Acredita-se que com isso, esta tarefa tenha
sido concluída.

Referências

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tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina: Eduel, 2007.

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das armas de Portugal contra as da Holanda. São Paulo, Tese (Doutorado em Filologia
e Língua Portuguesa) – Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa,
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Lello & Irmão, 1959. V.1.

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura


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1997.

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~ 21 ~
CIDADE, Hernani. Lições de cultura e literatura portuguesas. Coimbra: Coimbra Editora,
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CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira – a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1979.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. – 6ª ed. – São Paulo: Atlas,
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FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. – 2ª ed. – São Paulo: Editora da Universidade
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LOPES, Marcos Antonio. Antiguidades Modernas. História e Política em Antônio Vieira.


São Paulo: Edições Loyola, 2008.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.

PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora da


Universidade de Campinas, 1994. p.216-217.

SARAIVA, A. J. O discurso engenhoso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.

VIEIRA, Antônio. História do Futuro. [S.l.]: Imp. Nacional, [19-]. Coleção Grandes
Mestres do Pensamento.

VIEIRA, Antônio. Sermões. Sermão da Sexagésima. Porto: Lello & Irmão, 1959. V.1.

~ 22 ~
O estudo de gênero no Brasil: a influência do movimento
feminista nas Ciências Sociais
Caroline de Souza Frontoura
Bacharela e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Introdução

Com o surgimento das Ciências Sociais, a concepção sobre a humanidade


deixou de ser centrada em questões biológicas, passando para a esfera cultural. Deste
modo a noção de ser humano passou a ser entendida através das relações sociais ao
longo do processo histórico. No entanto:

(...) um aspecto que não sofreu alteração até pouco tempo foi o de que esse
ser humano, como categoria universal de indivíduo, é referenciado pelo sexo
masculino gerado na Modernidade. Os/as cientistas sociais voltaram sua
atenção para categorias sociais diversas, como aquelas que resultaram da
experiência social realizada na produção econômica, na vinculação à classe
social, à cultura, na inserção religiosa e na nacionalidade. (KÜCHEMANN et al,
2015, p. 64)

Sendo assim, a priori, os cientistas sociais brasileiros não ocuparam-se em


analisar as relações sociais através dos critérios pautados pela sexualidade como
variável na construção do sujeito e na construção de um modelo social. Como se sabe,
ao longo dos séculos nas sociedades ocidentais os indivíduos são classificados ao
nascimento através das categorias: homens e mulheres. Tais nomeações os atribui
status que impactam nas esferas culturais, sociais, jurídicas e econômicas1 (HURTIG &
PICHEVIN, 1986). Deste modo, é valido ressaltar que as classificações homem e mulher,
como fenômeno empírico na sociedade brasileira resultam como reprodução da
sociedade, uma vez em que, são justificadas pelas decorrências da ordem social.
Por sua vez, o conceito de gênero foi incorporado no campo das ciências sociais
a partir da década de 1970-1980 sob a influência da literatura inglesa. Como dito por
Grossi (2010), o gênero surgiu no contexto acadêmico como uma categoria preocupada
com a formulação de políticas públicas que atendessem as mulheres. Seguindo essa
perspectiva, a temática do gênero aparece nas ciências sociais no Brasil, como uma
categoria preocupada em estudar as dimensões das relações sócias anteriormente não
reconhecida pelas ciências humanas, somente depois de inúmeras pressões dos
movimentos feministas em diferentes países. Neste cenário, os estudos de gênero
realizados pelas Ciências Sociais no Brasil podem ser entendidos como uma categoria de

1
Segundo os autores Küchemann, Bandeira e Almeida (2015, p. 64) tais status tornam as relações sociais
entre homens e mulheres desiguais e complementares

~ 23 ~
análise que abrange inúmeros fenômenos sociais, políticos, históricos, culturais e
econômicos.
É importante dizer que gênero envolve um tipo de análise que não de senso
comum. Portanto, o gênero como objeto de análise nos indica que essa dimensão
abrange fenômenos sociais que anteriormente pareciam naturais2. Mais precisamente,
os trabalhos científicos sobre esta temática, evidenciam uma estratégia de poder que
naturaliza as relações sociais com o intuito de ocultar as relações de poder subjacentes3
(HURTIG & PICHEVIN, 1986).
Neste trabalho, grosso modo, o tema gênero refere-se a relações culturais de
poder que, inicialmente focadas na diferença de homens e mulheres, se estendeu a
diferentes grupos sociais4. Ou seja, refere-se a toda hierarquia, dominação e
subordinação do sujeito, estando baseada em quesitos sexuais. Por conseguinte, através
de uma revisão bibliográfica, a seguir são recuperadas as origens da temática de gênero,
tanto na linha do tempo dos movimentos feministas, como também de dinâmicas
acadêmicas, particularmente no Brasil.

A institucionalização dos estudos de gênero nas Ciências Sociais brasileiras

Ao contrário de algumas análises das Ciências Sociais como formadora de


discurso acadêmicos, a temática sobre o gênero indica que os discursos sociológicos,
antropológicos e políticos são permeados por reflexões que possuem origem fora dos
discursos acadêmicos. De Acordo com Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj:

Se o caráter “parasitário” da sociologia parece ser constitutivo da sua própria


prática, a maneira pela qual as ciências sociais irão incorporar e elaborar
discursos originados fora dela dependerá simultaneamente da organização
interna da comunidade de cientistas sociais, mais ou menos permeável a
inovações, e da capacidade desses discursos ganharem reconhecimento no
meio acadêmico. (HEILBORN & SORJ, 1999, p. 2)

Sendo assim, para que o entendimento dos estudos de gênero no Brasil se


torne mais claro é necessário compreender um pouco do caso do Estados Unidos:

Nos Estados Unidos, a origem dos estudos feministas, juntamente com a dos
estudos raciais, encontra-se nos movimentos de protesto ocorridos nas

2
Relação homem e mulher.
3
O conceito de gênero como objeto de pesquisa das ciências sociais questiona os fenômenos que são
percebidos como naturais sob a visão segundo a qual toda a produção do conhecimento é permeada por
relações de poder (HARDING, 1996), ou seja, a variável gênero anteriormente desconsiderada pela
Ciências Sociais, está fortemente presente nas categorias de análises econômicas, social, cultural e
políticas. Deste modo a temática de gênero como fenômeno empírico possibilita uma nova análise dos
objetos de estudos clássicos da sociologia, política e antropologia.
4
As questões de gênero perpassam originariamente toda a gama de estruturas, identidades sociais e
subjetividades individuais.

~ 24 ~
universidades americanas ao longo da década de sessenta. Este movimento
inspira o questionamento da visão e prática despolitizada do establishment5
profissional e acadêmico das ciências sociais. (HEILBORN & SORJ, 1999, p. 2)

No caso dos Estados Unidos, o movimento feminista liderou a organização


científica e profissional dominante, assim como a divisão disciplinar dentro das
academias e seus fundamentos científicos em relação aos critérios de autoridades
cientificas sobre os escritos sociológicos. Segundo Heilborn e Sorj (1999), denominando-
se feminist ou women´s studies, foi no exercício da docência, através da criação de
cursos universitários, que as feministas acadêmicas impulsionaram a reflexão sobre a
mulher e os anseios feministas.
No Brasil, por sua vez, a relação estabelecida entre os estudos acadêmicos e o
movimento feminista ocorre em um processo distinto ao dos Estados Unidos.
Primeiramente, o feminismo no Brasil não teve um entusiasmo radical como os
movimentos ocorridos na Europa e no país Norte Americano6. Como salienta Goldberg
(1989), os problemas sociais oriundos de uma sociedade totalmente desigual atribuíram
ao feminismo no Brasil uma atuação moderada ao que se refere ao confronto da
temática de gênero frente aos discursos dominantes das esquerdas no período de 1980.

Em segundo lugar, o feminismo contou desde a sua origem com expressivo


grupo de acadêmicas, a tal ponto que algumas versões de sua história
consideram que o feminismo apareceu primeiro na academia e, só mais
tarde, teria se disseminado entre mulheres com outras inserções sociais7. As
acadêmicas, por sua maior exposição a ideias que circulam
internacionalmente, estavam numa posição privilegiada para receber,
elaborar e disseminar as novas questões que o feminismo colocara já no final
da década de sessenta nos países capitalistas avançados. (HEILBORN & SORJ,
1999, p.3)

Deste modo, em 1975, quando o movimento feminista brasileiro começa a


adquirir visibilidade, pesquisadoras e acadêmicas feministas já estavam inseridas no
debate nas universidades (GOLDBERG, 1989, p. 43). No entanto, diferente do ocorrido
nos Estados Unidos, as acadêmicas brasileiras não desenvolveram enfrentamento às
organizações científicas estabelecidas, o que resultou em uma concentração dos
estudos nas áreas sociais.

5
O termo inglês establishment refere-se à ordem ideológica, econômica e política que constitui uma
sociedade ou um Estado.
6
GOLDBERG, Anette. “Feminismo no Brasil Contemporâneo: o percurso intelectual de um ideário político”,
BIB, n° 28, 1989.
7
Os estudos acadêmicos sobre a temática da mulher no Brasil se manifestam inicialmente na década de
1970. Pesquisadoras brasileiras participam da Conferência sobre Perspectivas Femininas nas Ciências
Sociais Latino-Americana realizada em Buenos Aires em 1974. Posteriormente, acadêmicas feministas
brasileiras participaram, também, na Welsley Conference on Women and Development em junho de
1976.em 1975 o Coletivo de Pesquisa sobre Mulher da Fundação Carlos Chagas realizou o seminário “A
Contribuição das Ciências Humanas para a Compreensão do Papel das Mulheres”.

~ 25 ~
Por outro lado, no decorrer da história, as mulheres acadêmicas fundaram
núcleos de estudos nas universidades voltados para a análise das questões feministas,
no entanto, tais núcleos não se fortaleceram como centros de ensino propriamente dito.
Assim, pode-se dizer que a principal diferença entre a institucionalização dos estudos
feministas nos dois países é que, no caso brasileiro, as mulheres acadêmicas,
procuraram estabelecer um protagonismo dentro da dinâmica das Ciências Sociais
nacional através do reconhecimento científico, ao invés de contribuírem com a
formação de espaços de discussões integrados a comunidade. Nesta perspectiva, os
estudos sobre a mulher, e mais tarde os estudos voltados para o gênero e suas relações,
foram o mecanismo de institucionalização do discurso feminista nas Ciências Sociais e
na academia brasileira.
No período de 1960 e 1970 no Brasil, o termo “estudo sobre mulher”
prevaleceu como denominação da nova área que surgia nas Ciências Sociais. Os
trabalhos acadêmicos seguiam as pautas feministas sobre a condição da mulher na
sociedade brasileira, denunciando a posição de subordinação e opressão determinado
por fatores biológicos/culturais como o exposto por Silva em sua pesquisa de 1966:

A relação homem-mulher é o terreno onde mais frequentemente se observa


a persistência de conceitos antiquados, de modos de ver que estão em
oposição frontal com as mais importantes conquistas cientificas, sociais,
políticas e morais dos últimos cem anos, como a abolição da escravatura, o
respeito à pessoa humana, o reconhecimento de que o equilíbrio afetivo é
fator decisivo de saúde. E muitas mulheres — em realidade, quase a maioria
— parecem aceitar com inexplicável complacência o peso dos preconceitos
que sobre elas recai. (SILVA, 1966 p. 158)

Porém, a partir da década de 1980 surge a categoria analítica “gênero”,8


substituindo o termo “mulher” nas pesquisas cientificas no país (GOLDBERG, 1989, p.
43). Ainda influenciado pelo debate feminista sobre igualde, o foco da discussão sobre
gênero favoreceu a renúncia do determinismo biológico presente nos estudos sobre
sexo e sexualidade, enfatizando aspectos culturais da construção social do ser feminino
ou masculino.
Neste período, os homens passaram a ser incluídos como uma categoria
empírica a ser investigada nesses estudos através de uma análise estruturalista e
funcionalista da sociedade brasileira, que tinham como foco compreendê-los como
indivíduos com papéis sociais favorecidos. Seguindo essa linha de análise, a pesquisa
sobre gênero surge nas Ciências Sociais brasileira com intuito de informar e desvendar
os principais paradigmas da teoria social da época. Porém, devido as inúmeras críticas

8
“A partir da segunda metade da década de 1970, o termo gênero surge com Gayle Rubin (1975) como a
contrapartida cultural do sexo biológico, só que ainda se baseia no par “cultura X natureza”. Então, sexo
passa a ser usado apenas para falar de diferenças biológicas entre machos e fêmeas, enquanto gênero faz
referência às estruturas e às representações sociais, culturais e psicológicas que se impõem a tais
diferenças” (KÜCHEMANN et al., 2015, p. 67).

~ 26 ~
as teorias sociológicas anteriores, infelizmente os escritos científicos feministas tiveram
pouco impacto no Brasil em relação a produção cientifica de outros países.

(...) Talvez essa seja mais uma evidência da pouca disposição das acadêmicas
feministas em assumir uma posição de confronto ou de isolamento na
academia. Para além da relevância cognitiva, a adoção do conceito de gênero
em substituição aos termos mulher e feminismo favoreceu a aceitação
acadêmica desta área de pesquisa, na medida em que despolitizou uma
problemática que, tendo se originado no movimento feminista, mobilizava
preconceitos estabelecidos. No Brasil, novamente contrastando com os
Estados Unidos, esta passagem foi realizada sem grandes traumas.
No melhor dos casos “gênero” foi adotado de uma maneira consensual, no
pior dos casos optou-se por um compromisso simbolizado pela adoção de
ambos termos, mulher e gênero, separados agora por uma barra. O esforço
em construir uma problemática sociológica diferenciada do problema político
trazido pelo feminismo caracteriza boa parte dos esforços de
institucionalização desta temática9. (HEILBORN & SORJ, 1999, p.4)

Entretanto, a produção original e contínua das pautas feministas nas Ciências


Sociais sobre o gênero ainda produz efeitos sobre a organização acadêmica. Vale
ressaltar que no Brasil ainda há pouco interesse dos homens cientistas sociais em
trabalhar com a temática de gênero. Por outro lado, este fato demonstra que a diferença
de gênero também está presente na ordenação e na relação cientista e objeto de
pesquisa.
A percepção de que há forte associação dos estudos de gêneros aos
movimentos feministas interfere na integração de pesquisadores do sexo masculino.
Além disso, o que também favorece essa divisão entre pesquisadores homens e
mulheres no Brasil é o fato de que os estudos de gênero dentro das Ciências Sociais, em
maioria, estejam articulados com a relação das mulheres com a família, trabalho,
educação e sexualidade, acabando por fortalecer a ideia de que estes assuntos somente
podem ser discutidos por mulheres.
As contribuições das pesquisas acadêmicas através da intervenção do
movimento feminista resultam, até nos dias atuais, em referências para implementação
de políticas públicas para o combate da desigualdade social. Como demonstra Germain
(1976), o papel das pesquisas sobre mulher e gênero dentro das Ciências Sociais

9
“Este esforço parece ter sido muito bem sucedido haja vista a crítica que as pesquisadoras mais bem
integradas, digamos assim, ao mainstream acadêmico brasileiro, sofreram em recente consultoria solicitada
pela Fundação Ford à Navarro e Barrig (Consultants’ Report on the Status of Women’s Studies in Brazil for
the Ford Foundation, 94) sobre os estudos de gênero no Brasil. As consultoras consideram que os estudos
de gênero no Brasil teriam perdido o seu viés militante e seriam acríticos às regras de hierarquia de uma
academia, em suas percepções, seriam androcêntricas. 12 Para uma análise da atuação da Fundação Ford
no país ver MICELI, Sérgio, “A Aposta numa Comunidade Científica no Brasil, 1962-1992”, In MICELI,
Sérgio (org.) História das Ciências Sociais no Estudos de Gênero no Brasil”. (HEILBORN; SORJ 1999, p.4)

~ 27 ~
brasileira passou a orientar investimentos de agências internacionais ao incentivo à
pesquisa e ao combate às diferenças sociais, como por exemplo, a Fundação Ford10.
O movimento feminista em geral, porém, principalmente o que começou a se
manifestar na América Latina nos anos seguinte a 1970, foram concebidos como forte
mecanismo de construção e ampliação da presença feminina nas pesquisas sociológicas
e políticas no Brasil. Neste período, os apoios de instituições e programas de pesquisa
foram de grande importância e decisivos para a legitimação de resultados científicos na
área de análise da relações de gênero, sobretudo, em um ambiente acadêmico que
relutava contra as pesquisas de incentivos privados.
Como afirmar Heilborn e Sorj:

Identificar o grau de institucionalização da área de estudos de gênero e seu


impacto sobre o conjunto das ciências sociais do país é uma tarefa difícil. A
inclusão da temática de gênero na sociologia, antropologia e ciência política
– áreas da Ciências Sociais – é proporcionalmente desigual. Em rápida
pesquisa pela internet é possível observar que os trabalhos relacionados a
gênero encontram-se concentrados na antropologia e na sociologia, tendo
pouca incorporação na ciência política”. (HEILBORN & SORJ, 1999, p. 6)

Tal característica não nos deve surpreender, pois a antropologia e a sociologia,


ao longo da história das ciências sociais debruçaram-se sobre a temática de gênero e as
pautas dos movimentos feministas sobre as desigualdades entre homens e mulheres.
Assim, essas duas áreas se ocuparam em analisar questões como: a divisão de trabalho,
sexualidade, concepções de família, cultura, e organização social. Por outro lado, a
ciência política não adentrou efetivamente na temática de gênero nas pesquisas sobre
a posição da mulher na sociedade. O fato é que não houve uma entrada expressiva de
mulheres no campo da ciência política devido, até mesmo, à tradição científica
acadêmica que privilegiou os debates político realizados por cientistas homens. Em
função desse privilégio a ciência política conservou-se alheio as temáticas feministas
(PINTO, 1992, p. 128).
Infelizmente, se atentarmos aos indicadores de publicação de artigos e outros
trabalhos acadêmicos entre as Ciências Sociais brasileira, podemos observar que as
pesquisas entorno dos estudos de gênero ainda são poucas. Porém, são crescentes as
contribuições de recursos institucionais para o desenvolvimento dos estudos na área de
gênero. Além disso, cresce também o número de grupos de pesquisa voltados para as
relações de gênero e outras demandas apontadas pelos movimentos feministas.
No entanto, vale lembrar que, apesar relações de gênero terem encontrado
espaço no meio acadêmico o seu desenvolvimento não se limita a ele. É visível a
importância da implicação das Ciências Sociais nacional nas disfunções de gênero fora

10
Segundo Germain (1976), nos anos de 1970 a Fundação Ford indicou o Brasil como o país que mais
desenvolveu em relação a produções cientificas sobre mulheres frete aos demais países da América Latina.

~ 28 ~
da academia. Nota-se, também, que o interesse pelo tema perpassa as motivações
políticas. Outro fator que vem crescendo atualmente nas ciências sociais no Brasil, em
relação ao debate da temática de gênero, é inserção de pesquisadores homens11.

Nesse sentido, podemos concluir que a área dos estudos de gênero, na


medida em que desenvolve o seu potencial analítico e convence sobre
relevância dos seus achados, prescinde das motivações políticas que
marcaram sua origem e a primeira geração de pesquisadoras. (HEILBORN &
SORJ 1999, p. 4)

Vale lembrar que as aplicações sobre os estudos referentes a gênero e a


mulher, encontram-se em diferentes meios acadêmicos sendo essenciais as pesquisas
das ciências sociais no Brasil. É com o acompanhamento de formulações de teorias em
campos distintos que os trabalhos sociológico, antropológico e político também podem
se desenvolver.

Os debates teóricos sobre gênero

Durante um certo período o tema de gênero foi marcado pelo o debate francês
apenas voltado às “relações sociais de sexo”, presente na sociologia do trabalho.
Contudo, devido as mudanças de paradigmas das Ciências Sociais o uso da categoria
gênero surgiu. No caso do Estados Unidos, principal referência sociológica dos estudos
de gênero, o debate foi influenciado pelo funcionalismo pincipalmente sobre as
posições do feminino e masculino na sociedade. Esta perspectiva pode ser nota em
Persons que teve grande influência na Ciências Sociais a partir de da década de 1960,
analisando relações de gênero dentro da família nuclear ressaltando o papel feminino e
masculino na manutenção familiar, compreendida como fundamental ao
funcionamento social.

Tal maneira de pensar as relações entre os sexos deixou forte marca na


sociologia do gênero em pelo menos três aspectos. Primeiro, forneceu
conceitos básicos, como papel sexual e status, através dos quais as diferenças
entre homens e mulheres foram estudadas. Segundo, supriu os estudos de
gênero com a hipótese de que as diferenças sexuais são mais centrais na
instituição familiar do que em qualquer outra instituição social e que os
arranjos de gênero funcionam primordialmente para assegurar a reprodução
social. (HEILBORN & SORJ, 1999, p. 12)

No entanto, a teoria funcionalista não trouxe a sociologia de gênero referencias


necessariamente positivas. Várias pesquisas influenciadas pelo protagonismo do
feminismo no EUA desenvolveram críticas a Persons por de certo modo favorecer uma

11De acordo com Oliveira (1998) no debate contemporâneo sobre gênero surge os estudos sobre masculinidade, e
em parte, contrapões os problemas detectados nos estudos sobre mulher.

~ 29 ~
legitimação da submissão feminina no âmbito familiar. O argumento foi que implicar o
conceito de gênero como posição social limitava a análise ao indivíduo frente a dinâmica
social. Além disso, houve uma forte crítica de que relacionar o gênero puramente com
diferenças sexuais o reduziria como objeto empírico em relação as pesquisas dobre o
funcionamento da sociedade. Deste modo a temática de gênero inclui-se nas categorias
de análise teórica com o objetivo de ser uma nova variável no entendimento da vida
social.
Como a maioria dos campos de estudo das Ciências Sociais, a temática de
gênero também não escapou das referências marxista. As teorias marxistas focalizadas
no trabalho impulsionaram os debates sobre as relações de gênero e o trabalho
doméstico, assim como, as divisões de trabalho nas indústrias e empresas. Desta forma,
o marxismo contribuiu para o desenvolvimento das análises de gênero fora do recorte
familiar, porém, os conceitos dessa linha de pensamento mostraram-se limitados para
a pesquisa referentes ao gênero.
Por fim, os trabalhos acadêmicos por fundamentar o campo das relações de
gênero, tais como vemos atualmente, se fortificaram nos estudos antropológicos que
relacionaram o tema com questões históricas e culturais, tendo como objeto de
pesquisa a relação corpo, sociedade e sexualidade. Neste sentido, vários autores situam
gênero como um "modelo de como as desigualdades entre os sexos figuram e podem
ser entendidas pela referência a desigualdades estruturais que organizam uma dada
sociedade" (COLIER & ROSALDO, 1980, p. 176). Assim, o gênero integra um conjunto de
explicações sobre o social, cultural e político.

Conclusões

A partir, dessa breve análise do desenvolvimento dos estudos de gênero como


campo de pesquisa das Ciências Sociais, fica evidenciado as repercussões da trajetória
dos estudos de gênero no âmbito das Ciências Sociais no país. Foram destacadas as
questões da institucionalização do gênero área de estudo que possibilita o
entendimento de inúmeras questões sociais. Ao mesmo tempo em que revela novos
elementos de análise, as relações de gêneros e as pautas feministas permitem aplicar
um novo paradigma ao pensamento clássico das Ciências Sociais.

Referências

COLLIER, Jane e ROSALDO, Michelle. Politics and gender in simple societies. In: ORTNER,
S., WHITEHEAD, H. Op. Cit. e em uma direção um pouco distinta HÉRITIER, Françoise.
Masculino e Feminino. Enciclopédia Einaudi, vol. 20, Lisboa, 1980.

~ 30 ~
GERMAIN, Adrienne. Consultancy on Brazilian Women´s Role in Development, The
Ford Foundation, 1976.

GOLDBERG, Anette. Feminismo no Brasil Contemporâneo: o percurso intelectual de um


ideário político”, BIB, n° 28, 1989.

GROSSI, Miriam P. Gênero, sexo e reprodução. In: MARTINS, Carlos B. (Coord.).


Horizonte das ciências sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: Anpocs, 2010. 80
Revista do Ceam, v. 3, n. 1, jan./jun. 2015.

HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de Gênero no Brasil. In: MICELI, Sergio
(Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré;
Brasília: Anpocs, 1999.

HARDING, Sandra. Ciencia y feminismo. Madrid: Editions Morata, 1996.

HURTIG, Marie-Claude; PICHEVIN, Marie-France. La différence des sexes: questions de


psychologie. Paris: Tierce Science, 1986.

KÜCHEMANN; BANDEIRA; ALMEIDA. A Categoria Gênero Nas Ciências Sociais E Sua


Interdisciplinaridade in Revista do Ceam, v. 3, n. 1, jan./jun. 2015.

OLIVEIRA, P.P. Discursos sobre a Masculinidade, In: Revista Estudos Feministas, vol. 6
nº 1. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1998

PARSONS, Talcott and BALES, Robert,F., Family, Socialization and Interaction Process,
New York, Free Press, 1955.

PINTO, Céli Regina Jardim. Movimentos sociais: espaços privilegiados da mulher


enquanto sujeito político”. In: COSTA, Albertina e BRUSCHINI, Cristina (orgs.). Uma
questão de gênero. Rio de Janeiro/São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos
Chagas, 1992 [127-150].

SILVA, Carmen da. A Arte de Ser Mulher. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1966

~ 31 ~
Para ser o que se é: contribuições da Terapia Ocupacional para
a desconstrução de estigmas e estereótipos acerca da
diversidade
Débora Isabele de Vasconcelos Teixeira
Terapeuta Ocupacional formada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Estereótipos, estigmas e ações de normatização

“So baby can't you see? I've got to break free”


(Então querida, você não percebe? Tenho que me libertar)
(Queen)

Este artigo tem por objetivo gerar uma reflexão, assim como novas discussões
acerca dos tensionamentos e contribuições que o terapeuta ocupacional possui em seu
arcabouço teórico-prático frente à desconstrução de estereótipos de gênero e/ou
práticas normatizadoras e estigmatizantes, visando a promoção de uma cultura de
igualdade.
De acordo com Goffman (1988) o termo estigma surge com os gregos que o
criaram para “se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar
alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava
(GOFFMAN, 1988, p. 5).” Dessa forma, o indivíduo passava a ser reconhecido
socialmente através de seu estigma, ou seja, de sua marca. O autor segue
desenvolvendo e categorizando tal conceito sociologicamente, atribuindo,
principalmente, uma conotação negativa enquanto mais um meio de categorização
social. Esta seria a categorização do indivíduo a partir de um atributo que o diferenciasse
da norma estabelecida, reduzindo-o a tal atributo depreciativo, entendendo-o assim
como menos humano.
Quanto aos estereótipos, Lippmann, (2008) afirma que temos uma tendência a
definir primeiro, para depois ver “pegamos aquilo que nossa cultura já definiu para nós,
e tendemos a perceber aquilo que captamos na forma estereotipada para nós por nossa
cultura” (pg. 85). Ao mesmo tempo, o autor traz que este se trata de uma “projeção
sobre o mundo de nosso próprio sentido, de nosso próprio valor”, são carregados de
sentimentos”, “a fortaleza de nossa tradição” que por meio deles podemos nos sentir
seguros no lugar que ocupamos (LIPPMANN, 2008, p. 97).
O preconceito, a projeção de estigmas e estereótipos sobre o outro são formas
extremamente eficazes de invisibilização do ser, “tudo aquilo que distingue a pessoa,
tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a

~ 32 ~
identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe
impomos” (SOARES et al, 2005, p. 175).
Segundo Durkheim, existem comportamentos e ações que são aceitos
socialmente; e aqueles indivíduos que não os seguem sofrerão com a repressão e
coerção pública. Diversos são os fatos externos imperativos ao indivíduo e que sobre
eles exercem um poder:

Em se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime


todo ato que as ofenda através da vigilância que que exerce sobre a conduta
dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe. (DURKHEIM, 2007, p. 4)

Alvarez (2004, p. 172) aponta que a ação disciplinadora caminha em direção a


um “adestramento” dos indivíduos por meio de mecanismos como o olhar hierárquico,
a sanção normalizadora e o exame, de modo que o indivíduo adestrado deva se sentir
permanentemente vigiado e, consequentemente, sob tal poder. É possível aplicar a
mesma dinâmica em outras instituições para além de presídios, como escolas, a família
e até equipamentos sociais.
Há um padrão social colocado no qual estabelecem-se modos de agir, pensar,
se relacionar tidos como “normais” e aceitáveis. Logo, existem ações normatizantes
para reforçar e fazer valer o padrão instituído; no momento que o indivíduo, de alguma
forma, “foge” a norma, experimenta as consequências sociais. Gastaldo (2008) afirma
que:

(...) a relação de poder existe na medida em que algumas definições da


situação são mais legítimas do que outras, e essa legitimidade é a resultante
de quem tem o poder de propor e sustentar a definição (GASTALDO, 2008, p.
150)

Este autor ainda segue desenvolvendo o pensamento de Goffman sobre a


coerção social dizendo que uma outra forma de poder é o poder do vexame, da
vergonha e do embaraço; o indivíduo desempenha o papel imposto por temer a
humilhação social.
O “poder disciplinar”, presente em quase todas as instituições, produz “corpos
dóceis”, controlados e regulados em suas atividades, em vez de espontaneamente
capazes de atuar sobre os impulsos do desejo (Foucault, 1999). Assim, o sexo estaria
diretamente ligado ao poder e à cultura, “a relação de poder passa por nossa carne,
nosso corpo, sistema nervoso” (FOUCAULT, 2002, p. 151).
Miskolci (2009) ao discorrer sobre normatizações, traz que esta opera sobre os
corpos; e uma das formas de controle desta é quando se espera um certo tipo de
associação entre sexo, gênero e orientação sexual, uma associação dentro da norma.
Existe uma montagem do corpo construído socialmente, a partir da qual as pessoas

~ 33 ~
formatam a si mesmas como masculinas e femininas, reivindicando assim um lugar na
ordem do gênero, assumindo o papel que lhe é dado ou confrontando a norma.
Gastaldo (2008), discorrendo acerca do pensamento de Goffman, afirma que
existe a ideia de um “ritual” referente a um comportamento expressivo, ações ou gestos
significativos que representariam cada gênero. “Trata-se de condutas “ritualizadas”,
portadoras de um sentido que não está, evidentemente, nas condutas em si, mas nos
códigos culturais que nelas imprimem significado” (GASTALDO, 2008, p. 152).
O mesmo autor supracitado destaca o conceito de “displays de gênero”, os
quais funcionariam como marcadores rituais de pertencimento a grupos de gênero. Tais
marcadores, são facilmente encontrados na mídia, no discurso publicitário e,
consequentemente, reproduzidos socialmente, como em uma situação em que vários
meninos não participam de uma atividade culinária, não porque não queiram, mas
porque seria “coisa de mulher”. Comportamentos como o descrito iniciam-se mais cedo
do que imaginamos; desde o bebê do sexo masculino sair em seu macacão azul, até o
fato da indústria de brinquedos para crianças do sexo feminino investir quase que
noventa por cento na fabricação de bonecas:

Do mesmo modo como pode se apresentar e se compreender como uma


propriedade privada, o corpo é também, em diferentes níveis, propriedade
pública, Estatal, na medida em que a depender das legislações, os sujeitos
têm maior ou menor grau de decisão (...) (MONZELI, 2013 , pg 27).

Butler (2003) irá afirmar que a sexualidade define-se enquanto algo fluido, não
podendo ser enquadrada ou colocada em caixinhas que a limite. Ela questiona o sexo
enquanto algo puramente biológico e traz que o ser “homem” e ser “mulher”
configuram-se muito além disso. Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo” (1980), iria
abrir sua obra com a frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, trazendo a
provocação sobre as diversas construções sociais em torno do “ser mulher”. Nesse
mesmo sentido, Butler diz que a questão de gênero está diretamente ligada com as
relações de poder na sociedade, mas que o tal não é apenas sobre construção social,
precisa também ser desconstrução. Gênero não é algo substancial: “(...) é uma
complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada; jamais plenamente
exibida em qualquer conjuntura considerada” (BUTLER, 2003, p. 42). Este, ainda
segundo a autora, se trata de algo performativo, de uma prática que será repetida a
partir de conceitos, em uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza
para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser.
Dando suporte às problematizações aqui expostas a teoria queer surge, então,
para questionar e desestabilizar essas diferenças universalizadas e discutir as marcas
dadas aos corpos sexuados. Segundo Louro, queer estaria relacionada “a diferença que
não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais
transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546). Em outras palavras:

~ 34 ~
Penso que é este o espírito de queering o currículo: passar dos limites,
atravessar-se, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que está
posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele ― corpo
de conhecimentos. (LOURO, 2004, p. 64).

Miskolci (2009) afirma que os estudiosos do movimento queer estariam


inaugurando um novo objeto de investigação: as relações e a dinâmica do desejo e da
sexualidade na organização das relações sociais, questionando toda a estrutura binária
e heteronormativa.

Terapia ocupacional em ação

A Terapia Ocupacional Social é um campo de saber e de intervenção dentro da


terapia ocupacional que se debruça sobre questões sociais contemporâneas. A questão
social tornou-se centro de discussão por certos terapeutas ocupacionais que
começaram a questionar suas práticas profissionais dentro de instituições totais de
Goffmann (1974), ou ainda nas instituições de violência, sobre as quais Basaglia (1985,
p. 101) afirmava que “a violência e a exclusão estão na base de todas as relações que se
estabelecem em nossa sociedade”. Frente a este cenário, começa a se desenhar um
campo cujo pressuposto é promover um espaço para reflexões acerca das possibilidades
e limites da atuação na atenção a grupos sociais em processos de rupturas das redes
sociais de suporte, exigindo-se um perfil profissional aberto às necessidades do outro,
que se contextualiza e está em permanente relação com um meio que o produz e é
produzido por ele, no qual o terapeuta ocupacional também participa e intervém
(BARROS et al., 2002). Cabe a este profissional também criar novas reflexões acerca de
suas contribuições para o campo da sexualidade, gênero e subjetividade, no sentido de
proporcionar uma prática terapêutica mais inclusiva, respeitando as diversidades, assim
como possibilitar aos sujeitos o exercício da cidadania e a participação social,
propiciando-lhe o desenvolvimento pleno de suas potencialidades.
É possível perceber que o posicionamento e a ação política do terapeuta
ocupacional não são recentes e têm perpassado suas diversas práticas. Questionar a
lógica vigente quando esta oprime e impede a experiência “de ser” precisa ser prática
constante, pois uma vida onde se faz impossível a experiência, se faz impossível a
existência:

Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida


que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino,
a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela
mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver
mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz
também impossível a existência. (BONDIA, 2002. p. 27-8)

~ 35 ~
De igual maneira, cabe a este profissional proporcionar aos indivíduos
experimentarem novas formas de ser, de estar e de se relacionar em seus diferentes
contextos, de forma a fomentar o empoderamento e o protagonismo desse sujeito,
trabalhando questões do direito e da cidadania que, assim como ressignificar fazeres e
ampliar “experienciações”.
A ação do terapeuta ocupacional perpassa vários setores para além da saúde,
como o da cultura, lazer, política, educação, etc.; onde maior importância é dada ao
processo e às relações e construções vivenciadas, no qual as atividades, enquanto
instrumento de ação, ganha um sentido ampliado. De acordo com Francisco (1988), por
volta de 70 e 80, a atividade, com base no materialismo histórico, é tida como um meio
de criação e transformação, aproximando-se muito do conceito de práxis trazido por
Marx.
As atividades possuem matéria irredutível que se empresta à significação, mas
que impõe condição para sua atuação e define limites para a interpretação. Tais
atividades são objeto que se constrói na comunicação, na experiência e na situação
vivida segundo a história, as práticas sociais e os valores culturais que cada pessoa ou
grupo social realiza de forma particular. Por isto, são ao mesmo tempo, objeto singular
e plural, podendo configurar-se como instrumento de emancipação ou de alienação
(BARROS et al., 2002, p. 102).
Ostrower (2013) vai defender que o homem além de homo faber, é ser fazedor,
de forma que ele não cria só porque gosta ou quer, mas porque precisa. Dessa forma é
permitido pensar que todo processo criativo é carregado de subjetividade e de critérios
que já foram elaborados pelo indivíduo anteriormente através de escolhas e
alternativas. Sempre de forma intuitiva. A criação concerne ao ser humano evasão,
expressão de sentimentos, assim como a reorganização do ser juntamente com formas
de enfrentamento da realidade.
Entretanto, mesmo que a sua elaboração permaneça em níveis subconscientes,
os processos criativos teriam que referir-se a consciência dos homens, pois só assim
poderiam ser indagados a respeito dos possíveis significados que existem no ato criador.
Entende-se que a consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando
no exercício de si mesma, num desenvolvimento dinâmico em que o homem,
procurando sobreviver e agindo, ao transformar a natureza se transforma também E o
homem não somente percebe as transformações como, sobretudo nelas se percebe.
(OSTROWER, 2013, p. 10)
O momento de criação é onde ocorre uma expressão de sentimentos, de ideias,
é onde o ser intelectual, cultural, sensível, histórico, deposita um pouco de sua essência
de forma a obter um produto, um resultado que condense e satisfaça os processos
internos do indivíduo. Ostrower (2013) irá nomear tal processo de criação, de tensão
psíquica, onde esta é muitas vezes vista como um conflito emocional pelo qual o
indivíduo passa, não sendo este a fonte da criatividade mas, significante por interferir
nas temáticas e até nas formas de configuração desses produtos. É errôneo assumir que

~ 36 ~
apenas há criação na arte, e que somente a arte é um processo criativo válido; pois
mesmo quando refere-se a fazeres mecânicos, não significa a ausência de criações
nesse; em contraposição, esta afirma que o ser humano cria todo o tempo, apesar de
por meio de processos criativos diferentes.
A atividade vem como um instrumento/recurso de atuação do terapeuta
ocupacional, sendo por meio dela que momentos de reflexão, interação social, catarse,
estimulação e tratamento, assim como produção de subjetividade, transformação do
outro e de si mesmo ocorrem.
É por meio do fazer, ser e estar, desempenhado durante atividade que
desenvolve-se um movimento de devir, essencial para a produção de subjetividade, de
forma a encontrar um corpo “que se abre às forças da vida, que agita a matéria do
mundo e as absorve como sensações, a fim de que estas, por sua vez, nutram e
redesenhem sua tessitura própria” como descrito por Rolnik (2006, p. 13).
Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a olhar ou a refletir (FOUCAULT, 1984, p. 13).
A subjetividade e a pluralidade humana são uma das maiores riquezas, explorá-
las é uma arte, e é no cotidiano que estas se constroem e se desconstroem sempre que
necessário, sendo, portanto, este o foco de intervenção do terapeuta ocupacional.
De acordo com Spink (2008), o cotidiano seria algo comum a todos os seres
humanos, composto por um fluxo de fragmentos corriqueiros e de acontecimentos em
micro-lugares. É possível afirmar que o cotidiano possui particularidades do indivíduo e
de seu contexto, no entanto, é importante que o indivíduo reflita sobre o mesmo para
não viver de forma totalmente alienada, assim como para produzir sua subjetividade.
Agnes Heller apud Santos (2009), desenvolve o conceito de cotidiano em
relação às atividades, que fazem parte da reprodução do indivíduo e da sociedade. Para
esta muitas das atividades cotidianas são realizadas de forma pouco consciente, já que
são feitas quase que mecanicamente e gerando um processo de alienação que só seria
quebrado pelas objetivações genéricas para-si, em que o indivíduo de forma consciente
também se relaciona com atividades não-cotidianas que se constituem pela ciência,
arte, filosofia, moral, e pela política.
Cotidiano é pensar como as condições em questão afetam suas atividades, seus
fazeres; como é o seu estar na sociedade, assim como sua organização pessoal. É,
também, pensar as relações dos indivíduos na comunidade, no território, em seu
contexto de vida. Assim, é importante pensar como se dão as relações de trabalho,
familiares, com a sociedade, o acesso a bens culturais, serviços, entre outros.
Galheigo (2003) ressalta que os terapeutas ocupacionais com o objetivo de
significar e ressignificar esse cotidiano promovendo a subjetivação e conscientização do
ser, são privilegiados ao poder contribuir diretamente com todo o processo de
elaboração crítica.

~ 37 ~
Esse movimento constante de articulação e problematização, do micro para o
macro, do singular para o coletivo e vice-e-versa, promovendo ações diretas (com o
indivíduo) ou indiretas (com a rede, com o meio) são ações constituintes do olhar e da
prática terapêutica ocupacional; assim como promover o empoderamento do indivíduo
enquanto sujeito de direitos, enquanto um corpo desejoso e com potencial subversivo.
(...) apostamos na proposição de práticas que debatam e possibilitem a
participação na discussão e implementação de políticas públicas, da ofertas de serviços
e ações para a população e, conjuntamente, se dediquem à criação de subsídios e
tecnologias sociais para a articulação das possibilidades de resolução dos problemas
locais através de um processo de organização dos serviços de atenção, das diversas
ações e da articulação junto à população em diferentes níveis (MONZELLI, 2013, p. 72).
Diante do exposto, o cuidado, a problematização e o empoderamento precisam
acontecer de forma dialética, em um ir e vir constante do micro para o macro, desde a
desconstrução o discurso hegemônico, por meio de ações políticas e de participação,
até as ações individualizadas para com os sujeitos (indivíduo e família), de forma a
fortalecer redes de apoio, ressignificar espaços e relações, sejam elas sociais ou afetivas.
Gonçalves & Coutinho (2008) afirmam que a família é a primeira e principal
instituição fonte de suporte para o desenvolvimento do indivíduo, assim como espera-
se que nela obtenha-se orientações para o enfrentamento de conflitos. Como primeiro
meio social com que se tem contato, é também dela que vem a maioria dos valores
desenvolvidos e as habilidades de relacionar-se em sociedade, já que a mesma também
age, como pólo de organização de relações exteriores a ela. No entanto, ao mesmo
tempo que esta é fonte de suporte, de trocas afetivas e simbólicas, esta também pode
ser cenário de conflitos e sofrimentos, frustrando o ideal de família existente (“paz” e
“união” x “falta de diálogo”, “tensões” “rejeição”).
No tocante às quebras de paradigmas, Peralva (1997) supõe, primeiro,
transformações essenciais no âmbito da família, com uma mais nítida separação entre
o espaço familiar e o mundo exterior, e uma redefinição do lugar da criança no interior
da família. A criança se torna objeto de atenção particular e alvo de um projeto
educativo individualizado, que de certo modo qualifica o lugar que ela virá,
posteriormente, a ocupar na sociedade adulta.
O núcleo familiar, automaticamente entendido como meio de proteção, e
principal rede de suporte do indivíduo, é o primeiro a se romper quando o filho (a) ideal,
esperado não atende tais expectativas. A família é o locus dos problemas enfrentados
pelos indivíduos porque existe, também, uma reprodução, um ideal social onde
perpetua-se e mantém-se a lógica vigente de controle e normatização representada
pelo modelo da “família estruturada tradicional brasileira”; e assim se problematiza
constantemente as famílias e sua constituição, validando umas e desvalidando outras,
mas sem ampliar o olhar para o macro e questionar também o contexto em que estas
são “produzidas”.

~ 38 ~
Considerações finais

A terapia ocupacional, enquanto campo de saber e prática tem muito a


contribuir com as discussões sobre as quais discorremos até aqui. Colocá-las em pauta
é essencial para a construção de um saber que extrapole o campo da experiência, que
se materialize nas políticas públicas, nas ações institucionais e nas posturas profissionais
empáticas, horizontais e humanizadas.
De forma desafiadora, a atuação no campo social exige do terapeuta
ocupacional um desconstruir e reconstruir constantes. A possibilidade do conflito entre
as nossas concepções pessoais de vida e a realidade sobre a qual podemos nos debruçar
é latente (MELLO, 2016, p. 221).
Um posicionamento profissional crítico frente a este cenário contribui para a
complexa construção da noção de cidadania e de como os corpos são afetados por esta
organização do cotidiano e da vida, particularmente em nosso país, onde a paisagem de
desigualdades e injustiças sociais é tão tocante (SAITO & CASTRO, 2011, p. 181).
Toda essa estrutura social, que normatiza e dociliza os corpos, gera corpos que
“desnaturalizados”, oprimidos, violentados e culpabilizados são reduzidos e limitados a
determinadas posições, categorias, papéis cristalizados.
Corpos dialéticos, pois exprimem e representam determinadas subjetividades
do mesmo modo que se transformam e se conformam às expectativas e demandas
contextuais (MONZELI, 2013, p.79).
O corpo pode ser meio para a desconstrução de estereótipos de gênero, assim
como de práticas normatizadoras e estigmatizantes acerca da diversidade, encontrar
juntamente dos sujeitos alternativas de subjetivação, empoderamento e expressão dos
corpos enquanto potência de ação e transformação; reconhecer e compreender esses
corpos plurais: corpo-afeto, corpo-político e corpo-potência que resistem e se
reinventam em um constante devir mesmo frente aos mais diversos e desfavoráveis
contextos sócio político histórico, compõem a prática da terapia ocupacional.
As experiências inauguram novos possíveis, fendas por que passar. A efetuação
do possível constitui-se, então, necessariamente num processo de criação e
autocriação, uma poética do corpo gerada no contato com o outro que lhe dá pele e na
atenção aos devires que, intensivamente, valora o vivido (LIBERMAN, 2010, p.75)
Dessa forma, romper, quebrar, subverter tal ordem é o desafio cotidiano dos
seres que buscam espaços não delimitados, olhares acolhedores e liberdade para ser o
que deseja, assim como é desafio aos “detentores” da técnica e da “terapêutica”
questionarem a si mesmos em suas práticas e ações, desconstruindo e reconstruindo-
as sempre que necessário.
Pensando nos diversos contextos e cotidianos, de extrema vulnerabilidade e
até mesmo de desfiliação, o terapeuta ocupacional chega em uma tentativa de
minimizar os danos, oferecendo suporte, realizando as articulações necessárias para a

~ 39 ~
garantia dos direitos básicos dos indivíduos, por meio de uma relação permeada de
afeto, sentido e fazeres.
Não há uma única e absoluta verdade, não há um único caminho que se o
trilharmos alcançaremos a resposta que procuramos, mas, sim, há um labirinto com
diversos caminhos e diversas saídas que irão nos levar a lugares distintos e, muitas
vezes, inexplorados.

Referências

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~ 42 ~
O assistente social como agente emancipador da pessoa com
deficiência e sua sexualidade
Nataly Sabioni Nogueira
Graduada em Serviço Social pela UNILINS
Rayana Costa Parro
Graduada em Serviço Social pela UNILINS

Processo histórico e cultural da corporeidade

Pensar o corpo na sociedade pós-moderna possibilita vários diálogos e debates,


entretanto, refletir sobre a interferência desse corpo na constituição do ser social e
como parte determinante para essa formação faz-se necessário a compreensão do
processo histórico, antropológico e cultural que interferiram diretamente na formação
da civilização.
De acordo com Fernandes & Barbosa (2016), chamamos de corporeidade o
estudo da sociologia do corpo, que tem por objetivo compreender os símbolos sociais
que se manifestam através da existência corporal, de acordo com o período histórico e
o ambiente social.
É possível considerar que a cultura é algo inerente a todo ser humano; a partir
do momento da existência de uma pessoa recebe-se influências culturais que
determinam significativamente a sua composição no meio físico e social. Assim, os
autores dizem que o corpo é visto como detento de símbolos que produz e expressa
sentido ao ser e, através de suas formas de expressar-se, distingue-se o que é natureza
ou cultura. Na evolução humana transmite-se os conhecimentos adquiridos por meio da
aprendizagem e dos fatos sociais, que espontaneamente ocorrem, fazendo com que
haja uma construção cultural, sem a necessidade de se ensinar ou explicar as regras do
jogo, podendo ser compreendidas e absorvidas nas observações das ações da sociedade
no dia a dia.
E assim a cultura interfere no corpo, sendo constitutiva do sujeito que se
relaciona com o social, fazendo a ligação do corpo com a sociedade. É nesta relação que
ocorre a domesticação desse corpo; através de imposições de regras e costumes que
influência a sociedade, constituindo, dessa maneira, a especificidade de um ethos
corporal, que pode se alterar em diferentes tipos de realidade social.
Barbosa et al (2011) diz que na Grécia antiga o corpo masculino forte e malhado
era sinônimo de saúde, fertilidade e garantia de cidadania; os homens que
correspondiam a esse padrão participavam ativamente da vida pública e política. O
corpo atlético era poderoso, a nudez era parte natural deste processo, assim como os
valores atribuídos a bigamia e a homossexualidade.
Vemos o narcisismo e os padrões dos homens gregos através das esculturas da
Grécia antiga, que retratam, sempre, homens nus, com corpo malhado e poses
exibicionista, pois era dessa forma que se mostrava poder.
Neste mesmo período, Barbosa et al (2011) nos dizem que, diferente dos
homens, as mulheres tinham que andar vestidas, não podiam ter uma vida atlética, não
eram consideradas cidadãs e, portanto, não participavam da vida política da sociedade.
O direito à bigamia e homossexualidade também não era permitido a elas, sua função
era cuidar dos filhos e do lar. Da mesma forma, os escravos também não possuíam
direitos.
Para os mesmos autores, no cristianismo, o corpo e a alma passam a ser
concebidos e separados. A alma deveria ser cuidada para alcançar a glória celestial; o
corpo era visto como fonte de pecado, devendo ser vigiado e punido para não atender
aos desejos da carne, pois o pecado impediria chegar ao reino dos céus. Era assim que
a Idade Média lidava com o corpo; os hereges, as bruxas, os cientistas, os que negavam
a existência do Deus cristão tinham seus corpos esquartejados, queimados, torturados
até a morte, em praça pública, pelos líderes da igreja. A inquisição foi uma forma de
domesticar o corpo e cercear ideias.
Durante o século V à XV, a sociedade da Idade Média era composta pelos
senhores, donos das terras, cleros e servos; o trabalho dos servos era definido de acordo
com os atributos físicos, analisando cor da pele, a altura, o peso, força, a idade, entre
outros aspectos. A partir destes fatores era estabelecida a função de cada um.
Como na Grécia antiga, a mulher não tinha o mesmo direito que os homens.
Entretanto, nesse período todos os corpos eram vestidos, pois o corpo, sendo a chave
para o pecado, era cerceado de todas as maneiras para fim de manter a alma em
santidade.
A era moderna, do século XV à XVIII, é marcada pelo rompimento do
teocentrismo para a chegada da ciência. A partir desse momento o corpo é visto através
de referências biológicas e antropológicas, trabalhando-se com a razão científica. O
corpo passa, então, a ser meio de produção da sociedade capitalista; através de
movimentos repetitivos participa ativamente da economia, passando a ser um corpo
produtor, tanto por produzir quanto por consumir. Para isto, faz-se necessário
um corpo saudável, não se poderá ter um corpo adoecido, pois a economia gira em
torno do corpo sadio.
Contrapondo os padrões tidos como ideais, há desde a Grécia Antiga, corpos
que não atingem os padrões impostos culturalmente, uma vez são considerados corpos
“não são saudáveis” pelas suas anomalias. Foucault (2002) trabalha a questão de
anomalia ao se referir a pessoa com deficiência e diz que estas eram chamadas e
tratadas como monstros humanos:

O monstro é uma infração que se coloca automaticamente fora da lei, e é


esse um dos primeiros equívocos. O segundo é que o monstro é, de certo
modo, a forma espontânea, a forma brutal, mas, por conseguinte, a forma

~ 44 ~
natural da contranatureza, é o modelo ampliado, a forma desenvolvida pelos
próprios jogos da natureza, de todas as pequenas irregularidades possíveis.
E, nesse sentido, podemos dizer que o monstro é o grande modelo de todas
as pequenas discrepâncias. (FOCAULT, 2002, p. 70-1)

O autor mostra que as anomalias são algo natural, entretanto são tratados
como algo proibido, que deve ser escondido e anulado, uma vez que a domesticação
desses corpos não é efetiva como a de um corpo sem anomalia. É algo que visualmente
desperta curiosidade e interesses, mas que ao mesmo tempo causa repulsa.
Foucault (1979) fala do “individuo corrigido” e do “masturbador”. Sobre o
primeiro ele diz que a família, escolas, instituições, corrigem e delimitam o
comportamento de cada ser humano através de regras que podam suas ações físicas e
sociais. A respeito do autor o segundo diz que é fruto da domesticação e da proibição
do sexo, da falta de diálogo sobre o assunto, pois é tratado como algo proibido.
Analisando-se da maneira, compreende-se que o sujeito que apresenta
anomalia é domesticado, castrado, impedido pela sociedade de simplesmente ser.
Assim, a constituição desse ser social entra crise e, se o meio em que vive compactuar
com as questões apresentadas, dificilmente este será um indivíduo emancipado na sua
totalidade. E corpo que não corresponde aos padrões normativos estabelecidos pela
sociedade, são estigmatizados, excluídos e segregados, tornando-se parte de uma
minoria, ocupam uma posição subalterna numa estrutura de poder de uma sociedade.
Que, baseando-se em estereótipos e preconceitos, encontra dificuldade de lidar,
conviver e olhar o diferente, rotulando esses corpos. Prova disso é que, entre os anos
1840 até 1970, na Europa e nos Estados Unidos havia vários circos onde pessoas que
apresentavam alguma deficiência eram expostas para que fossem vistas a fim de saciar
a curiosidade da sociedade.
Retomando os apontamentos de Fernandes & Barbosa (2016), é possível
entender que não tem espaço para estes corpos na centralidade dessa estrutura
corpórea, mas sim na periferia da cultura imposta, chamados pelos autores de “corpos
periféricos”, corpos que a todo momento recebem a cobrança da transformação para
serem aceitos, fazendo com que cresça a busca por tratamentos estéticos. Afirmam que:

Corpo periférico é o das secreções, dos cheiros, dos ruídos – tudo quanto a
educação do indivíduo civilizado, que se afasta decisivamente da barbárie, vai
adestras com método. Mas o corpo periférico é também aquele que tapamos
porque foge da geometria da beleza, da esquadria da desenvoltura física. […].
Por sobre o Corpo construímos toda uma arte das ocultações, do traje a
cosmética, da prótese a cirurgia estética. (FERNANDES & BARBOSA, 2016, p.
77)

Logo, podemos compreender que há uma relação de poder dos corpos centrais
sobre os corpos periféricos. Foucault (1979) trata o poder como algo que não se possui,

~ 45 ~
mas que se exerce. Ou seja, não existe poder, o que existe são relações e práticas de
poder.
Uma vez que o poder se materializa através das relações sociais, este leva à
construção de estruturas que geram normas que comandam nossa percepção sobre os
mecanismos dos arranjos sociais que são seguidos e que se reproduzem. O Estado tem
essa relação de poder com a sociedade, gerando regras estruturais que são respeitadas
e reproduzidas sem questionamento.
O autor diz que a sociedade moderna transformou essa relação de poder e
proporcionou novos instrumentos para a sua aplicação, visto que não sendo mais de
forma religiosa que se domina, mas, agora, essa relação de dominação se dá através da
materialização da disciplina por meio de cada indivíduo que internaliza as regras e as
reproduz. Assim, torna-se habitual o dominado ser subjugado. A relação de poder de
um indivíduo sobre outro ocorre de maneira tão produtiva que recai sobre o corpo
dominado, com a finalidade de adestrá-lo.
Segundo Foucault (1979), o adestramento só se efetiva com a dominação de
um sujeito sobre outro. Dessa forma, o poder passa criar uma estrutura que bloqueia
discursos que sejam diferentes da relação de poder imposta e naturalizada, que dificulta
o questionamento desse discurso.
Assim, é possível compreender como ocorre a relação de dominação dos
corpos centrais sobre os periféricos e os preconceitos estabelecidos pelos discursos da
estrutura de poder, que fazem com que os corpos diferentes sofram por não se
encaixarem em um padrão ou adoeçam tentando se encaixar nos modelos impostos.

Legislações brasileiras para a garantia dos direitos da pessoa com deficiência,


incluindo sua sexualidade

Do ponto de vista histórico é apresentado que a pessoa com deficiência sempre


pertenceu aos grupos minoritários, portanto marginalizados, pois não faziam parte da
agenda estatal na garantia de seus direitos. Mesmo que estes fossem reconhecidos em
legislações voltadas para a condição de igualdade, as ações concretas ocorram de forma
muito tímida (FOUCAULT, 1979).
No que se refere a construção de estereótipos, é comum que parte da
população use nomenclaturas que reforce o preconceito ao se referir a pessoas com
deficiência, demonstrando ser indispensável saber a importância de usar a terminologia
correta.
O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE, através
da Resolução Nº 01 de 15 de outubro de 2010, estabelece como nova terminologia:

Art. 1° Atualiza a nomenclatura do Regimento Interno do Conade,


aprovado pela Resolução n° 35, de 06 de julho de 2005, nas seguintes
situações: I – Onde se lê “Pessoas Portadoras de Deficiência, leia-se
Pessoas com Deficiência” […] (BRASIL, 2010).

~ 46 ~
A garantia do uso da nomenclatura correta pode parecer algo mínimo, mas
garante a estes indivíduos o direito de serem tratados sem preconceito, trazendo
dignidade a estes indivíduos. Entretanto, é necessário pensar nessa dignidade na sua
totalidade, entendendo essa pessoa como sujeito de direitos.
Assim sendo, é indispensável garantir a estes sujeitos igualdade, acessibilidade,
autonomia, liberdade, inclusão social, entre tantos outros direitos dentre os quais o
direito de vivenciar a própria sexualidade. É importante entender que, como qualquer
outro ser humano, a pessoa com deficiência tem direito sobre seus desejos sexuais, sua
orientação sexual, sua compreensão de gênero e tudo que estiver ligado à sua
sexualidade e que for de seu interesse.
Em 2009, o Ministério da Saúde lançou uma cartilha sobre os Direitos Sexuais
e Reprodutivos na integralidade da atenção à saúde da pessoa com deficiência, o qual
aborda aspectos legais, fundamentação teórica e conceitual sobre a temática. A cartilha
busca fazer compreender a pessoa com deficiência não em seus fatores biológicos, mas
sim como um ser social, reconhecendo-se a sua integralidade, para além da sua
deficiência e limitações aparentes, enxergando-a como seres humanos detentores de
direitos, na condição de cidadã (Ministério da Saúde, 2009). Os direitos da pessoa com
deficiência só são materializados quando há compreensão e reconhecimento por parte
de todos os setores da sociedade, o que exige engajamento social sobre a temática,
desmistificando os conceitos limitantes, construídos culturalmente sobre a deficiência:

A inclusão torna-se viável somente quando, através da participação em ações


coletivas, os excluídos são capazes de recuperar sua dignidade e conseguem
– além de emprego e renda – acesso à moradia adequada, aos bens culturais
e serviços sociais como educação, transporte e saúde.
Esta tarefa exige o engajamento contínuo do poder público federal, por meio
de políticas públicas, ações afirmativas e preventivas, sobretudo nas áreas de
legislação, normatização, financiamento e regulação, que orientem,
permeiem e estimulem as ações dos governos estaduais e municipais. A estes
últimos cabe, solidariamente, implementar os programas e ações nas esferas
estadual e municipal. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009, p. 44)

Sendo assim, discutir a sexualidade enquanto direito da pessoa com deficiência


é entendê-lo não só com o ato sexual, pois esta é apenas uma das expressões da
sexualidade (PONCE DE LEÃO, 2017).
É notório que as pessoas com deficiência física trazem estigmas a partir da
imagem e impressão causada por seus corpos, vendo-se obrigadas a lidar com a rejeição
e preconceitos constantes sobre sua condição. Entretanto, há possibilidade de vivenciar
novas experiências e possibilitar prazer, entendendo o conceito de saúde não só como
ausência de doença, mas sim como o poder sentir e pensar sobre bem-estar, felicidade
e pertencimento familiar, social e íntimo, o que é fundamental para a ressignificação das
relações sociais de e para com essas pessoas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009).

~ 47 ~
Para compreender a sexualidade da pessoa com deficiência na sociedade
contemporânea no Brasil faz-se necessário analisá-la sob a perspectiva legal,
observando-se as legislações vigentes no que tange a temática. A Declaração Universal
dos direitos humanos, em seu primeiro artigo, parte da premissa do direito e do respeito
a todas as pessoas sem distinção de qualquer condição, seja ela religiosa, politica, sexo,
cor e outra natureza:

Art. 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.


São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade. (ONU, 1948)

Dentro dessa perspectiva de igualdade no contexto brasileiro, temos como


marco legal a Constituição Federal de 1988, a qual reconhece a igualdade de todos
perante a lei em seu artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade […] (BRASIL, 1988)

Ainda sobre a temática, em 2007 o Brasil assinou a Convenção sobre os Direitos


das Pessoas com Deficiência, que dispõe dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais
e culturais:

[…] Entre os princípios da Convenção estão: o respeito pela dignidade


inerente, a independência da pessoa, inclusive a liberdade de fazer as
próprias escolhas, autonomia individual, a não-discriminação, a plena e
efetiva participação e inclusão na sociedade, o respeito pela diferença, a
igualdade de oportunidades, a acessibilidade, a igualdade entre homens e
mulheres e o respeito pelas capacidades em desenvolvimento de crianças
com deficiência. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009, p. 21)

Logo, é indispensável ressaltar a importância de se articular os direitos


humanos com a temática:

[..] as pessoas com deficiência devem estar incluídas sempre no rol de direitos
humanos, pois quando os textos são genéricos eles se reportam a todas as
pessoas, no entanto, como estigmas arraigados culturalmente demoram a ser
combatidos e superados se faz necessário especificações. Daí a importância
de documentos, convenções e legislações, voltados especialmente para o
reconhecimento e defesa dos direitos das pessoas com deficiência, e que
orientem países signatários a adotarem medidas em seus países para a
concretização dos mesmos. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009, p. 22)

~ 48 ~
Desse modo, é somente em 2015 que entra em vigência a lei brasileira de
inclusão (estatuto da pessoa com deficiência) lei 13.146 – 2015. Conforme disposições
gerais da legislação, o principal objetivo da lei é assegurar e promover, em condição de
igualde, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa com
deficiência, visando a sua inclusão social e cidadã.
O estatuto torna-se um instrumento facilitador para o exercício dos direitos
universais, em especial à igualdade com as demais pessoas, apresentando um conjunto
de direitos em diversas áreas, visando à emancipação civil e social das pessoas com
deficiência.
Assim, a pessoa com deficiência passa a ter maior representatividade na
sociedade, sendo-lhe legalmente garantido o direito ao acesso as políticas públicas em
diversos setores como: educação, saúde, trabalho, esportes, assistência social, e outros,
avançando nos princípios da cidadania.
Seguindo esta mesma ideia, o direito a sexualidade está garantido na Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei N°13.146, de 6 de julho de 2015,
diz:

Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive


para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e
reprodutivos; III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de
ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento
familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização
compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e
comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção,
como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas. (BRASIL, 2015)

Diante do exposto, considerando os marcos legais e o contexto social no qual


este segmento se insere, faz-se necessário salientar a importância do serviço social
enquanto profissão na promoção do direito à saúde e à vivência da sexualidade da
pessoa com deficiência.

O serviço social na conquista pela garantia dos direitos sexuais da pessoa com
deficiência na sociedade contemporânea

O Serviço Social traz como projeto ético-político, expresso em seu código de


ética (1993), a defesa intransigente dos direitos humanos, eliminando qualquer forma
de preconceito, tendo como projeto profissional a construção de uma nova ordem
societária, sem dominação e exploração de classe social e sem discriminação de etnia e
gênero.
Registra-se aqui sobre o direito a sexualidade partindo de dois princípios:

~ 49 ~
[...] o conceito de direitos sexuais e reprodutivos aponta duas vertentes
diversas e complementares. De um lado aponta para um campo da liberdade
e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da
sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou
violência. Por outro lado, traz a importância da participação institucional, pois
o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demandas políticas
públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva da população.
No sentido mais amplo e contemporâneo, saúde reprodutiva é, sobretudo,
uma questão de cidadania e não um estado biológico, independente do
social. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009, p. 31)

Partindo do ponto que a saúde sexual e reprodutiva é uma questão de


cidadania, é que a atuação do serviço social se dá importância nesta temática, pois seu
projeto ético-político tem a direção social orientada por um pensamento crítico com
valores emancipatórios.
Considerando que a pessoa com deficiência física, historicamente, esteve às
margens da sociedade, em condição de exclusão social, que eleva à vulnerabilidades
econômicas, regionais, de gênero, e étnicas, e ao não acesso de bens e serviços que
garantiriam o seu bem-estar, busca-se a inclusão social digna como resposta a divisão
social (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009).
É através um conjunto articulado de ações, programas, projetos e serviços que
é possível proporcionar a promoção do direito sexual e reprodutivo da pessoa com
deficiência. Através das políticas públicas, o profissional assistente social tem a
possibilidade atender às pessoas que buscam apoio na rede prestadora de serviços,
buscando contribuir para desenvolver sua autonomia, no exercício da cidadania, assim
como no acesso aos direitos sociais e humanos. Dessa forma, seu trabalho objetiva
responder às demandas dos usuários dos serviços prestados a fim garantir os seus
direitos contidos em legislações vigentes, visando despertar o seu senso crítico sobre a
sua realidade, fomentando a participação popular no que tange a reivindicações e
garantias de direitos legais:

Por tanto o Serviço Social, enquanto profissão que atua diretamente sobre a
cultura, pode contribuir na desmistificação da identidade estigmatizante que
permeia a sexualidade […] através de processos educativos, reflexivos,
dialógicos e transformadores […] a ressignificação do corpo para além da
imagem idealizada pela mídia, o circuito sociocultural e religioso que
influência sobre essa questão […]. (PONCE DE LEÃO, 2017, p. 3)

Dessa forma, a atuação do assistente social é apresentada, aqui como de cunho


humanista, comprometida com os valores que dignificam e respeitam as diferenças e
potencialidades sem descriminação de qualquer natureza, compreendendo a
diversidade e comprometendo-se com a liberdade, com a justiça e com a democracia,
colaborando, assim, com os processos emancipatórios na perspectiva de uma sociedade
igualitária.

~ 50 ~
Análise

Ao analisar o processo histórico da corporeidade, da cultura do corpo e da


relação de poder que se dá entre corpos centrais e periféricos, entendemos o porquê
de conceitos preestabelecidos que fazem com que os padrões corporais sejam
delimitados e seguidos.
Para garantir uma das premissas básicas estabelecida pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que é a igualdade, se faz necessária a implementação
e ou a criação de leis específicas para pessoas com deficiência; A garantia do direito de
igualdade exige reafirmar quais direitos são estes, desde à nomenclatura correta para
se referir a uma pessoa com deficiência até o desenvolvimento da consciência social
sobre a liberdade de estas viverem livremente a sua sexualidade.
Os direitos humanos são inerentes a todo ser humano, entretanto a garantia
de que todo ser humano terá assegurado estes direitos ocorrerá somente através de
lutas diárias. Portanto, é importante salientar o papel do assistente social nesse
processo, pois por meio de sua atuação profissional, este poderá contribuir para a
conquista dos direitos que farão diferença significativas na vida de cada pessoa com
deficiência.

Conclusão

Considerando os estudos ora apresentados, é possível concluir que existe a


necessidade de o profissional de serviço social aguçar sua escuta e trabalhar sua
instrumentalidade, a fim de garantir um atendimento humanizado nas diversas políticas
públicas que envolve pessoas com deficiência, sensível e atento às linguagens e
demandas apresentadas pelo usuário.
Iamamoto (2007), nos chama a atenção para a necessidade de o profissional
compreender o contexto societário em que estamos inseridos e a partir de então
viabilizar ações condizentes com os interesses dos usuários.
É o que reafirma o Ponde de Leão:

Contudo, o perfil ético-político e pedagógico da profissão é capaz de


contribuir com a transformação dessa cultura que tolhe o exercício da
sexualidade (…) Trata-se de um tema contemporâneo que se converte muitas
vezes na violação de direitos e que demanda do assistente social uma prática
competente que impõe tirar o véu do preconceito e da visão idílica da velhice
para enfrentar com imparcialidade os casos em que os idosos são vítimas ou
os próprios violadores de direitos. (PONCE DE LEÃO, 2017, p. 11)

Assim é de extrema importância que o profissional esteja atento ao projeto


ético-político e ao código de ética, buscando compreender questões e ter

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direcionamentos intelectuais para diversas teorias e diversos saberes que
complementarão sua formação profissional, com o objetivo de garantir um atendimento
de qualidade, sem preconceitos e que gere emancipação do ser social.
Essa reflexão acima nos remete ao posicionamento de Iamamoto (2007),
quando alerta aos profissionais para tornarem-se propositivos e com ações que
ultrapassem as práticas rotineiras.
Como base no arcabouço de leis que viabilizam a garantia de direitos, destes
segmentos é indispensável que o profissional esteja ciente e comprometido para
efetivar a seguridade dos direitos legalmente expressos, ampliando as possibilidades
destes indivíduos viverem, mas, acima de tudo a liberdade de vivenciar em totalidade
corporal.
Portanto, ao pensar propostas de intervenção do profissional de serviço social
nesta temática, concluímos que devemos trabalhar na construção de saberes nas
modificações e transformações culturais, na desmistificação do desconhecido e nas
possibilidades diante da realidade presente em nossos espaços sociocupacional. Dessa
forma é nas atividades rotineiras do profissional que se insere a abordagem da temática,
através de ações de cunho coletivo, tais como: campanhas, palestras, roda de conversas
e outros. Assim como em atendimentos particularizados, como, atendimentos
individuais e familiares. Ações com caráter socioeducativo que possibilita a
ressignificação da sexualidade da pessoa com deficiência, através da perspectiva do
direito inerente ao ser humano.

Referências

BARBOSA, Maria Raquel & MATOS, Paula Mena & COSTA, Maria Emília. Um olhar sobre
o corpo: o corpo ontem e hoje. Psicol. Soc. [online], v. 23, n. 1, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.


__________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da
atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
Disponível em:
<http://www.unfpa.org.br/Arquivos/direitos_sexuais_integralidade_pessoas_deficienc
ia.pdf> Acessado em: 27 de abril de 2019.
__________. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Conselho Nacional do Direito da Pessoa Com Deficiência. Resolução nº 1 de 15 de
Outubro de 2010. Altera dispositivos da Resolução nº 35, de 6 de julho de 2005, que
dispõe sobre o Regimento Interno do Conade. Onde se lê “Pessoas Portadoras de
Deficiência”, leia-se “Pessoas com Deficiência”. Diário Oficial da União.

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__________. Lei n. 13.146, de 6 de jul. de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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FERNANDES, Luís & BARBOSA, Raquel. A construção social dos corpos periféricos. Saúde
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.


__________. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins
Fontes, 2002.

GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2007.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: formação e


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ONU. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações
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PONCE DE LEÃO, Alice Alves Menezes. Pisando em ovos?: dificuldades dos assistentes
sociais para falar sobre a sexualidade na velhice. In: VIII Jornada Internacional de
Políticas Públicas - 1917 a 2017: um século de reforma e revolução, 2017, São Luís. VIII
Jornada Internacional de Políticas Públicas - 1917 a 2017: um século de reforma e
revolução, 2017.

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