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O toque do passado

liliza mendes

[texto extraído, e adaptado, da minha tese de doutorado 'A condição processual e a


plas cidade/materialidade nos procedimentos da modelagem e da moldagem, ou, sobre o que
não é preciso’, defendida em 2015 e que pode ser acessada integralmente em: h p://
hdl.handle.net/1843/EBAC-A48MYS]

As palavras italianas bozze e modelli denominam peças de modelagem feitas em um


estágio preparatório para uma escultura, portanto, funcionando como esboços, em maior ou
menor acuidade, para o trabalho nal pretendido. Esse recurso era recorrente tanto no processo
de criação de uma peça a ser entalhada quanto no de uma a ser fundida. O bozze o é o resultado
de uma primeira proposição tridimensional construída como tenta va de corresponder aos
desenhos preliminares, usualmente elaborados na fase inicial do longo percurso des nado a uma
produção escultórica. Esse sequenciamento não cons tuía, no entanto, uma prerroga va
processual, pois antes mesmo de uma passagem pela concepção bidimensional, alguns ar stas
escolhiam a gestualização na argila como primeiro ato expressivo na xação de uma imagem. O
modello é sempre fruto de uma fase seguinte por tratar-se de um trabalho mais detalhado, cuja
modelagem pormenorizada nha a função de atender às exigências do olhar de quem executaria a
peça nal e daquele que nanciaria a sua existência. No tratado de escultura publicado por Vasari
em sua obra Vidas..., em 1550, essas fases preparatórias são de nidas em razão do tamanho dos
modelos: um menor, para estudar o posicionamento desejado na guração e um executado nas
mesmas dimensões da escultura projetada. Pesquisas recentes defendem mais uma divisão entre
as fases de modelagem, dis nguindo ainda, no processo de trabalho dos ar stas, o modelo
pequeno, modello piccolo – pouco maior que um bozzeto e des nado a detalhar, por exemplo, os
volumes de um panejamento – da peça formatada nas mesmas medidas da escultura em projeção,
o modello grande.1 Essas colocações se reportam muito especialmente ao século XVII, ao período
em que viveu o escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini [1598-1680], ícone do Barroco que
orescia na Itália e ar sta cujo apreço pelo uso da modelagem interessa par cularmente a este
trabalho.

1 DICKERSON III, Claude Douglas. “Bernini at the begining: the forma on of a master modeler”. In: DICKERSON III,
Claude Douglas, et. al., Bernini sculp ng in Clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 4.
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Entre os meses de outubro de 2012 e janeiro de 2013, a exposição Bernini: sculp ng in clay
foi apresentada no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.2 O esforço de curadores,
conservadores e diretores de várias ins tuições resultou na mostra de um conjunto composto por
49 peças, entre bozze e modelli, atribuídas ao processo de trabalho do escultor. O acervo
agrupou algumas obras comprovadamente executadas pelo punho do ar sta com outras
modelagens cuja discussão sobre a autoria não as impediu de estarem diretamente associadas à
produção ar s ca de Bernini. O esforço em juntar essas peças – provenientes das mais diversas
coleções localizadas em diferentes países, tais como a Itália, os Estados Unidos, a Inglaterra, a
Alemanha, a Espanha, a França e a Rússia – evidencia o interesse internacional em dar fôlego aos
estudos comprome dos com a busca de uma maior compreensão e visibilidade de aspectos
processuais do projeto ar s co do escultor. O catálogo criado para acompanhar a exposição traz
seis ensaios sobre a relação de Bernini com a modelagem, acompanhados pelas imagens dos
bozze e modelli, com os textos correspondentes, em que estão detalhadas as pesquisas
realizadas sobre cada uma das peças exibidas3.

Para as pesquisas históricas que avaliam os trabalhos de arte, o estabelecimento da autoria


se apresenta como uma questão de extrema relevância para a legi mação desses, mas esse
obje vo foge inteiramente aos interesses da pesquisa devido sua visada por demais personalista.
As intenções de abordagem do procedimento em sua conjugação corporal não quer eleger o autor
como o foco da leitura nem con rmar-lhe o toque de gênio, mas a preocupação dos especialistas
em estabelecer a autoria de um trabalho, usando como pedra-de-toque as impressões reveladoras
do corpo do ar sta, tem a sua u lidade.

As alusões às mãos de Bernini são muitas em todo o catálogo, contemplando um dos


obje vos da exposição em entender não só a função das modelagens para a execução das
esculturas, mas também como elas eram feitas: um esforço de imaginação para visualizar a
gestualidade do ar sta na fatura das peças. Para além de uma prova de autor baseada na análise
das impressões digitais, as modelagens foram também escru nadas por raios x, visando às

2A exposição teve início em 3 de outubro e terminou no dia 6 de janeiro, em seguida foi apresentada no Kimbell Art
Museum, em Fort Worth, no Texas, de 3 de fevereiro a 14 de abril do mesmo ano. C.D. Dickerson III é o curador de arte
europeia dessa ins tuição e foi o responsável pelo projeto da exposição juntamente com Anthony Sigel, conservador
de objetos e esculturas no Straus Center for Conserva on and Technical Studies, Harvard Art Museums, em Cambrigde,
e Ian Wardropper, que dirigira o departamento de escultura e arte decora va europeias do Metropolitam Museum e
atual diretor da Coleção Frick, em Nova York.
3DICKERSON III, Claude Douglas; SIGEL, Anthony; WARDROPPER, Ian. Bernini: sculp ng in clay. New York: The
Metropolitan Museum of Art, 2012. Catalog. 416 p. No catálogo são analisadas 52 esculturas, embora três delas não
tenham podido viajar para par cipar da exposição – o modelo para O elefante com obelisco, da Coleção Corsini, em
Florença; o modelo para a estátua equestre de Luis XIV, da Galeria Borghese, em Roma e o modelo para Papa
Alexandre VII, pertencente ao Victoria & Albert Museum, de Londres.
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camadas inacessíveis ao olhar, assim como por uma série de métodos cien cos de observação
usados no processo de restauração de uma obra de arte, sempre buscando esclarecer o histórico
do material e estabelecer alguma noção mais aproximada de sua procedência.

Um dos idealizadores da exposição, Anthony Sigel, assina no catálogo o glossário visual em


que é discu do o passo a passo de uma inves gação metódica obje vando a quali cação de uma
escultura realizada pela modelagem em argila. A leitura desse detalhado compêndio permite a
constatação do quanto a metodologia de trabalho de um modelador no século XVII se assemelha a
de um ar sta contemporâneo na lida com a mesma matéria – o relacionamento com a argila se
fazia então, e se faz ainda, com a intermediação de umas poucas ferramentas usadas para tornar
mais precisos alguns gestos. Mas o que chama a atenção é menos a imagem intencionada na peça
do que a condução manual marcando a matéria trabalhada: desde o amassar do barro até a
conclusão do trabalho, a gestualidade das mãos direciona a a vidade, jogando sempre com a
deslizante substância da argila.

Os rastros opera vos deixados nas peças possibilitam aos estudiosos da obra de Bernini
fazer a rmações tais como:

Marcas de dedos e unhas de Bernini cobrem o fundo do presente modelo, testemunhando


o quão extensivamente ele contava com o poder de suas mãos para dar a forma inicial da
argila.4

Essa relação forte das mãos em diálogo direto com a matéria é referenciada também no
ensaio de Ian Wardropper sobre os métodos preparatórios usados por Bernini, um estudo sobre
seus desenhos e modelos de argila. Seu olhar de especialista faz uma apreciação da abordagem
bidimensional do ar sta, percebendo nessa a in uência marcante da experiência do escultor com
a modelagem:

Bernini abordava o papel da mesma maneira como fazia com o barro: ele rabiscava as
linhas com a ponta a ada do giz ou criava as manchas de sombra com o lado do giz tanto
quanto ele usava a unha para criar um cacho de cabelo ou friccionava seu dedo para ocar
uma parte da ves menta ou suavizar um ângulo. [...] Os modelos de Bernini nos atraem
por sua vitalidade e por seu vívido re exo do toque do escultor. No entanto, seus
desenhos rasgados e manchados também tem, frequentemente, uma qualidade tá l.5

O reconhecimento dessa qualidade tá l nos desenhos do escultor não é surpreendente


quando se pensa na a vidade da modelagem como uma experiência primordial do tato. No ato de

4 A citação se refere à peça de terracota apresentada no catálogo como modelo preparatório para a estátua de
Constan no, o grande, montado a cavalo. DICKERSON III, Claude Douglas; SIGEL, Anthony; WARDROPPER, Ian. Bernini:
sculp ng in clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 224, tradução nossa.
5.
DICKERSON III, Claude Douglas; SIGEL, Anthony; WARDROPPER, Ian. Bernini: sculp ng in clay. New York: The
Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 45, tradução nossa.
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apertar o barro com as mãos, de materializar formas e dar-lhes a con guração desejada com a
movimentação dos dedos sobre a matéria, é a relação direta do corpo, aplicada na dinâmica do
toque, que quali ca a função do modelador. Essa competência do toque seria, assim, a qualidade
invocada na elaboração do desenho de uma gura a ser modelada. No exemplo de Bernini, o traço
do escultor estaria manifestando a corporeidade do seu o cio, deixando na planaridade do papel
as impressões do desejo de uma tridimensionalidade. E o signi cado de traço como ves gio, ou
rastro, é bastante oportuno para pensar nessa operação, propondo a contaminação observada no
traçado de Bernini como um resíduo de seu gesto escultórico. O que foi visto no papel poderia ser
pensado como uma mancha residual levada de um domínio ao outro pela ação experiente das
mãos do ar sta.

O trabalho com a argila desenvolve-se num abrangente leque de sensações táteis


resultando, inclusive, na curiosa percepção de inexistência de dualidade entre exterior e interior.
Essa indis nção seria quase uma prerroga va da plas cidade dessa matéria na qual o mais leve
toque pode inverter a noção de dentro e fora, tornando-as indis nguíveis6. Tal imagem presta-se
para pensar no quanto esse contato entre um corpo que cede ao encontro de outro é sedutor,
convidando a uma liberdade de movimentos da qual o escultor italiano soube rar grande proveito
para a realização de sua obra escultórica.

O apreço e a destreza de Bernini na manipulação da argila, entre outros aspectos, são


discu dos no texto cujo tema é a sua formação como modelador7. Desse ensaio toma-se a fala
desenvolvida a par r de observações feitas pelo historiador da arte Irving Lavin, quando o autor
lembra que esse “[...] argumenta que Bernini admirava tanto a qualidade direta e não premeditada
de seus próprios bozze que ele, deliberadamente, abordava o entalhe como se ainda es vesse
trabalhando com a argila.”8 . Con nuando seu arrazoado, C.D. Dickerson III remonta à avaliação
desse historiador sobre o trabalho do ar sta nas esculturas em mármore de sua fase madura, em
que o movimento energé co do panejamento parece reproduzir os efeitos criados nos modelos
preparatórios de argila. A tenta va de transposição daquilo que é conseguido na materialidade
exível do barro é comentada no seguinte texto:

[...] O panejamento que envolve o anjo transmite uma energia surpreendente, conseguida
através dos muitos canais estreitos esculpidos no mármore que espirala em torno da
cintura da gura [...]. A maneira como os canais afunilam e mudam a direção parece

6 Essa noção é decisiva para pensar na materialidade especí ca da argila e será retomada ao nal do segundo capítulo.
7 DICKERSON III, Claude Douglas. Bernini at the begining: the forma on of a master modeler. In: Bernini sculp ng in
clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012.
8 Ibidem, p. 15, tradução nossa.
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totalmente acidental, o que é a mesma impressão dada pelos bozze da estátua. [...]
Bernini con gurou seu panejamento modelando as dobras básicas. Depois, ele usou uma
ferramenta de ponta oval na argila, fazendo linhas rápidas e uentes, que são as
precursoras dos canais do mármore. De longe, as marcas apresentam um padrão
fascinante de ssuras que serpenteiam. À medida que nos aproximamos, no entanto,
percebemos que há outro elemento menos controlável no padrão, o qual complementa a
ação deliberada de Bernini no trabalho: as incontáveis rebarbas de argila advindas do
movimento de sua ferramenta. Elas captam a luz assim como as facetas de uma pedra
preciosa, e são uma importante razão para que o panejamento pareça pulsar com energia.
Na hipótese tão razoável de Lavin, Bernini não pode resis r a dar a seus mármores um
efeito similar – efeitos inspirados em seus bozze . O panejamento não é o único aspecto
dos mármores de Bernini, nos quais é forte a impressão de seus esboços. Considere as
nuvens massudas na base de seu Anjo com a Coroa de Espinhos. Elas são altamente
comparáveis em sua plas cidade com as nuvens encontradas nos bozze relacionados, e
seria bem razoável dizer que as anteriores [as dos bozze ] informaram as úl mas [as
nuvens de mármore] [...] para Bernini um bozze o era muito mais que uma ferramenta
para resolver composições em geral. Ele nha valor intrínseco como um objeto de arte, e
as propriedades que lhe davam este valor – frescor, espontaneidade, energia – eram
preservadas no trabalho nal.9

A a rmação de Irving Lavin sobre o fato de Bernini proceder com o entalhe como se
es vesse trabalhando na argila espelha a leitura feita sobre a relação entre os desenhos e a obra
escultórica do ar sta. A ideia de que sua abordagem seria decorrente de sua admiração pela
relação direta e espontânea vivenciada na modelagem de seus bozze é uma proposição
con rmadora daquela interação entre os domínios, agora entre as a vidades do entalhador e do
modelador. Buscar a maciez do barro no embate com a rigidez da pedra parece uma contradição
intransponível. Mas, assim como é possível imaginar as mãos do escultor lidando com a lisura do
papel em busca de uma consistência carnal, pode-se pensar em seu trabalho no mármore
efetuado com a memória corporal da plas cidade da argila. Assim seria, portanto, a experiência do
corpo do ar sta, como lembrança encarnada do toque transformador com o qual criava seus
bozze , a responsável por esse trânsito operacional. E é a imagem das mãos agindo diretamente
na matéria trabalhada aquela que mais parece traduzir o desejo do ar sta de lidar com as formas.

Embora longa, a citação esclarece alguns detalhes dessa transposição entre os regimes de
operação escultórica de Bernini e embasa a sua per nência para a discussão sobre a condição
processual da modelagem. A referência ao rastro da ferramenta do modelador se tornar uma
proposição esté ca é preciosa. A maneira como Bernini fez uso das rebarbas de argila surgidas no
vincar das linhas demonstra que a relação do ar sta com a sua prá ca era vivida como uma
instância cria va de importância fundamental, repelindo as prerroga vas da idealização sobre a
realização.

9 DICKERSON III, Claude Douglas. Bernini at the begining: the forma on of a master modeler. In: Bernini sculp ng in
clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 15-16, tradução nossa.
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A tenta va de separar esses momentos, valorizando o primeiro em detrimento do segundo,


funcionava como um preceito ar s co desde a delineação do humanismo renascen sta, em sua
extrema valoração da a vidade intelectual. O paragone denominava uma forma de compe ção
entre as artes e era uma a vidade intensa nesse período de estabelecimento dos princípios
humanistas. Ut pictura poiesis – poesia é como pintura –, a frase apropriada do Ars Poe ca, de
Horácio, é um emblema da disputa que produziu muita polêmica e muitos discursos desde então.
O de Leonardo da Vinci pretendia uma inversão do sen do de prioridade da poesia sobre a
pintura, propondo a prevalência da imagem visível sobre aquela conduzida pela palavra à
imaginação. Com a defesa da pintura, seus argumentos visavam a elevar as artes plás cas ao
patamar das artes liberais, apesar de seu desprezo pelo labor escultórico.

Ele procura valorizar o trabalho mental do ar sta; a sua inven o e não a sua disposi o ou
elocu o é posta em evidência; [...] É apenas graças a essa valorização da invenção em
detrimento da realização da obra em si que se podia a rmar a traduzibilidade entre as
artes. Se o que importa é a Ideia, os meios de a ngi-la são cambiáveis. [...] Com o intuito
de louvar a pintura Leonardo ainda transfere para a escultura toda a pecha de ser uma
arte manual.10

O uso da tríade retórica, invenção, disposição e elocução, usada na narra va sobre


Leonardo, decorre do fato de “a própria concepção de pintura e de escultura [ser] de início
eminentemente linguís ca”11, con rmando a predominância discursiva do logos. Sob o domínio da
ideia, a concre zação do trabalho de arte seria um evento menor, mero transcurso do espiritual
para o material.

Quando Bernini se apropria este camente das sobras do seu traço, ele está fazendo a orar
seu potencial cria vo a par r da própria condição processual do meio escolhido para o trabalho.
Essa a tude desconstrói qualquer tenta va de projeção hierárquica, baseada na preeminência do
pensar sobre o fazer, promulgada como imposição regulamentadora do trabalho de criação
ar s ca. Não há como estabelecer uma ordem xa dos fatores – e, consequentemente, de valores
– como modelo para a cons tuição de uma obra de arte. Entender o seu processamento como um
sequenciamento lógico e pré-determinado de etapas cumpridas, a par r de um plano mental
completamente de nido, re raria da elaboração sica de uma obra todo o seu caráter cria vo.
Caráter que foi plas camente trabalhado por Bernini ao tornar o seu momento de execução um
momento de invenção.

10SELIGMAN-SILVA, Márcio. Introdução. In: LESSING, Go hold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e
da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011. p. 16.
11 Ibidem. p. 12.
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A apropriação do não-planejado e o reconhecimento do acaso como vetor posi vo na
concepção de um trabalho de arte era uma regra de jogo para os ar stas envolvidos com o
Dadaísmo e o Surrealismo no início do século XX, mas, certamente, não era um comportamento
desconhecido do mundo ar s co em todos os tempos. Na lida com o desenvolvimento de
qualquer projeto, é frequente o encontro com situações inesperadas, muitas vezes responsáveis
por mudar o rumo do próprio encaminhamento pretendido. E isso não é diferente na arte. Na
prá ca de desdobramento de um trabalho, seja ele fruto de um estudado plano mental a ser
simulado em esboços bi ou tridimensionais até chegar a sua etapa de conclusão, as condições
processuais de cada um desses momentos condutores poderá se expressar, muitas vezes, como
uma presença impera va. No caso da linha traçada por Bernini sobre a super cie macia da argila, o
aproveitamento esté co do relevo ondulante que as rebarbas do traço deixaram mostra a plena
atenção do ar sta com a condição processual operada na materialidade do trabalho em
desenvolvimento. E a sua disposição em incorporá-la ao seu projeto demonstra a falácia de um
pensamento que vê a produção de uma obra de arte como resultado de um encadeamento de
ações meramente opera vas daquela primeira projeção mental. A relação da ideia como invenção
não pode se isentar da contaminação cria va de seu processamento matérico. Assim, não se trata
de entender o processo cria vo simplesmente como uma invenção a ser posta em prá ca, mas
pensar que a própria prá ca pode ser o lugar da invenção: um espaço para a emergência de forças
imprevisíveis.

Bernini levou até o entalhe nal a situação surgida acidentalmente na modelagem. Ele
potencializou a sua escultura ao incrementar o mármore com a iluminação fulgurante provocada
pelo relevo que efetuou na super cie da pedra, como uma recon guração do efeito vislumbrado
no esboço de argila. Essa leitura do procedimento do ar sta, proposta pela observação atenta dos
estudiosos, faz visualizar a dedicação do escultor com o processo de modelagem e sua grande
sensibilidade ao seu material de trabalho.

A argila como corpo receptor supõe uma maleabilidade tão intensa que a ideia de ter um
controle absoluto sobre sua forma implicaria no desconhecimento do grande valor de sua
exibilidade. E esse valor foi certamente reconhecido por Bernini, que tanto soube rar proveito
de sua lida com os bozze na concepção de suas esculturas. Portanto, vale fazer ressoar as
palavras do texto citado, que parecem sinte zar as caracterís cas da materialidade da argila
contempladas no trabalho do escultor: frescor, espontaneidade e energia.

Ainda no ensaio sobre a formação de Bernini, o autor naliza o seu posicionamento em


relação à obra entalhada e a modelada do ar sta, apontando o fato de o escultor, pai e mentor de
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Gian Lorenzo, Pietro Bernini, ter do experiência considerável com a modelagem em argila e cera.
Em sua argumentação, ele rela viza a importância do envolvimento do lho com os bozze ,
reconsiderando o seu papel determinante na obra do escultor. O trabalho compar lhado com o
pai, por alguns anos, talvez pudesse ser também apontado como um fator importante para a
realização da aparência maleável do mármore, uma vez que, na obra de Pietro Bernini, já seria
percep vel essa qualidade elás ca em alguns elementos esculpidos. Esse argumento, no entanto,
não invalida as proposições anteriores, sendo só mais uma evidência do gosto do ar sta pela
materialidade cambiante dos corpos modeláveis do barro e da cera.

Bernini [detalhe de bozzeto – anjo], 1672.

Bernini [detalhe de bozzeto – anjo], 1674-5


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A modelagem, ao longo da história da arte, era sempre pra cada como um meio
transitório, par cipe do processo de execução de um trabalho escultórico. Estudava-se a obra
desejada por intermédio dos esboços em argila, os bozze , método que, aliás, era também
u lizado por pintores, como reporta Rudolf Wi kower, um dos historiadores da arte mais
referenciados nos ensaios do catálogo da exposição de Bernini. Em seu livro Escultura – no qual ele
trata do tema abrangendo desde a an guidade até as experiências escultóricas modernistas da
primeira metade do século XX – encontram-se diversos comentários sobre a relação de alguns
ar stas com a técnica da modelagem. Com esse autor aprende-se que “a relação dos pintores que
precisaram da modelagem como complemento de sua obra pictórica é bastante extensa”12 – uma
a rmação complementada pelos dizeres de que desde a Renascença “e também mais tarde, os
pintores faziam pequenos modelos em argila e gesso não somente para pintar diretamente a par r
deles, mas também para resolver problemas de composição [...]"13. A condição transitória dos
trabalhos de modelagem se man nha, ainda, com relação às peças criadas no processamento do
método de fundição, já que o modelo concluído em argila ou cera – quando não desaparecia, pela
u lização do método de cera-perdida14 – também não era considerado como um produto nal.

O procedimento de subtração de matéria, caracterizando o entalhe na pedra ou na


madeira, foi sempre muito valorizado, em detrimento do processo adi vo, fundamento da
modelagem15. Por isso, apesar da importância dessa técnica no desenvolvimento da obra de
Bernini, a quan dade de suas peças modeladas chegadas até a atualidade é bem inferior ao que se
poderia imaginar ter sido a sua produção de bozze , levando-se em conta o grande número de
esculturas que realizou. De sua longa e pro cua vida [1589-1680] restaram os modelli e bozze
associados com a sua produção mais tardia, re e ndo o interesse despertado nos colecionadores
de arte daquele tempo por todos os objetos relacionados com o trabalho do ar sta, cuja glória se

12 WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989. p. 282.


13 GREENBERG, Clement. Arte e Cultura. São Paulo: Á ca, 1996. p. 169.
14Nesse processo o trabalho construído na cera é envolvido por um molde de gesso e levado ao forno para que a cera
seja derre da pelo calor. Cria-se, assim, um núcleo vazio circundado pela contraforma da obra, impressa no molde de
gesso. Esse interior receberá o metal fundido, recriando, no novo material, a forma original do trabalho.
15 [...] inventaram-se os instrumentos de cobre, de bronze e, mais tarde, de ferro, e com sua ajuda era possível dar
forma à pedra. A par r da existência desses instrumentos, testemunhamos o nascimento da história da escultura. Isto
nos leva a retroceder mais de seis mil anos na história, até as origens das civilizações egípcia e babilônica. Os gregos,
herdeiros das civilizações orientais, e depois deles os romanos e italianos, cul varam com orgulho as tradições que
remontam a uma época imemorial, e foi no seio dessas civilizações mediterrâneas que surgiu o conceito de que
esculpir a pedra, especialmente o mármore, era o obje vo mais elevado e a mais grandiosa realização dos escultores.
[grifo nosso] WITTKOWER, Rudolf. op. cit., p. 4.
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tornara uma unanimidade16. Assim, essas peças, antes pertencentes ao universo par cular dos
escultores em seu papel de estudos preparatórios para o trabalho nal, foram, aos poucos,
adquirindo até mesmo o status de uma obra de arte. Uma evidência dessa valorização se deu no
início do século XVIII, quando foi criado um Museu de Modelos no Va cano pelo papa Clemente XI.
A inicia va que tornou possível acessar um conjunto dessas peças de variados escultores teve,
entretanto, um curto período de duração, pois o projeto foi desmantelado pelo pon ce
seguinte17.

No início da década de 1430, uma dis nção entre a a vidade do modelador e do


entalhador fora de nida por Leon Ba sta Alber , em seu tratado De Statua. Segundo Wi kower,
Alber , gura-chave do Humanismo e referência teórica do Renascimento, estabeleceu com a
diferenciação um padrão de entendimento da arte escultórica que marcou, por muitos séculos, os
ar stas ligados a essa a vidade ar s ca. A diferença entre o modelador – considerado como
aquele que pode acrescentar ou subtrair material – e o escultor – o que re ra, que subtrai da
pedra a gura nela oculta – já teria sido formulada anteriormente por Plínio e Quin liano, mas não
com tanta clareza. A de nição, estra cando os domínios das prá cas ligadas ao campo
escultórico, teria propiciado uma hierarquização das metodologias de trabalho, legando à
modelagem sua quali cação inferior. Wi kower assinala esse ponto como decorrência de uma
interpretação equivocada da proposta alber ana, uma vez que essa não inferia uma dis nção
derrogatória18.

Na trajetória dos conceitos de modelador e escultor, o re exo da palavra de Alber é


notório tanto na declaração de Leonardo da Vinci, de que “o escultor sempre remove matéria do
mesmo bloco”, quanto na de Michelangelo, quando enunciou que “por escultura, entendo aquilo
que se faz por um processo de subtração (per forza de levare); o que se faz através de um processo
de adição (per via di porre – ou seja, a modelagem) é mais semelhante à pintura"19. Conforme
Wi kower, essa fala do escultor responde a uma questão feita em 1547, por um seu conterrâneo,
o historiador e homem de letras Benede o Vardi, que, na tenta va de dar uma visão conclusiva ao
Paragone entre a pintura e a escultura, interpelara os mais conhecidos ar stas oren nos de seu
tempo. Expressa no período em que a fama de Michelangelo era fato indiscu vel, a sua concisa e

16MONTANARI, Tommaso. Crea ng an eye for models: the role of Bernini. In: DICKERSON III, Claude Douglas., et. al.,
Bernini: sculp ng in clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2011. p. 65.
17 Ibidem. p. 65.
18 WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989. p. 78.
19 Ibidem. p. 129.
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categórica frase, diferenciando a escultura e a modelagem, teria marcado “o tom de todas as
re exões sobre a escultura que foram feitas até o século XX”20.

Contrariando a percepção de um desprezo pelo modelado que a frase do ar sta induz por
relacioná-la à pintura, Wi kower a rma a contribuição desse para o desenvolvimento do modelo
como parte do processo escultórico. Para ele, Michelangelo foi o grande incen vador desse
procedimento, u lizando-o constantemente em busca tanto da xação de seus projetos numa
tridimensionalidade que propiciaria o esclarecimento e a consolidação de suas ideias quanto para
efeito de consulta, ao trabalhar o mármore. Mas o que parece mais signi ca vo quanto ao uso
desse recurso no processo de trabalho de Michelangelo é a a rmação de que seus modelos teriam
um caráter diferente daqueles pra cados no século XV, quando esse método começou a ser
u lizado pelos escultores. Diversamente do acabamento me culoso que os primeiros traziam, os
do escultor oren no parecer-se-iam mais com esboços, marcados pela agilidade de suas mãos,
buscando a anotação rápida de uma imagem desejada21. Essa aparência mais livre, percebida em
seus modelos, entra em consonância direta com o posicionamento desse estudo quanto à força
processual da modelagem, projetada na plas cidade deslizante da argila. A prá ca de
Michelangelo com a modelagem fez com que, a par r de sua atuação, a imensa exibilidade desse
procedimento se tornasse uma constante parceira no trabalho dos escultores, apesar de a
disparidade entre os métodos do entalhe e da modelagem – implicando um julgamento meritório
– ter permanecido dogmá ca ainda por um longo período da história da arte. Mas é preciso
enfa zar que o preconceito com o trabalho sico e a a rmação da ideia como o foco da criação
também perduraram, favorecendo, portanto, o exercício da modelagem e sua expressividade
imediata.

Sobre Bernini, Wi kower recorda sua experiência com a modelagem como vista nos
exemplos estudados pelos curadores da exposição de seus bozze . Ele diz que o ar sta
“trabalhava a argila com uma habilidade e rapidez inacreditáveis. Era o material em que ele
expressava suas ideias sem um minuto de hesitação”22. Suas a rmações a esse respeito con nuam:

Foi ao longo do processo de produção de vários esboços escultóricos em argila, um atrás


do outro, e a grande velocidade, que Bernini deixou pra trás os caminhos já muito
trilhados, e descobriu soluções novas, es mulantes e suges vas para muitos dos velhos
problemas que sempre a igiram os escultores. Embora trabalhasse o mármore com uma
facilidade que, antes dele, só Michelangelo demonstrara possuir, e embora fosse um dos
maiores escultores de todos os tempos, em Bernini não há nada da an ga relação de

20 WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989. p. 129.


21 Ibidem, p. 130.
22 WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989. p. 197.
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idolatria para com o bloco de mármore – o entendimento entre Michelangelo e Bernini


não teria sido perfeito, pois este úl mo considerava uma de suas grandes conquistas o fato
de haver transformado o mármore num material tão exível quanto a cera.

A estas observações, gostaria apenas de acrescentar que a super cie dos bozze de
Bernini tem qualidades excepcionais, salvo algumas exceções, eles são extremamente
es lizados, numa clara indicação da pressa implacável com que o ar sta os executava.
Podemos perceber como seus dedos ágeis tentavam acompanhar a velocidade com que as
imagens se acumulavam em sua mente. Nessas ocasiões, Bernini trabalhava com um cinzel
de dentes nos e com os polegares, e as marcas deixadas pelo dedo e pelo instrumento
muitas vezes aparecem lado a lado em seus bozze 23.

Das colocações do grande conhecedor da obra do escultor barroco, uma das observações,
amplamente compar lhada por outros estudiosos do ar sta, será confrontada pelas pesquisas de
um dos responsáveis pela recente exposição dos modelos de Bernini. Nos bozze analisados por
Anthony Sigel foram detectados sinais comprobatórios de uma execução muito mais prolongada
do que a a rmada anteriormente24. Essa conclusão só vem reforçar o caráter que, aqui, interessa
mais diretamente: implicando menos uma questão temporal como a evidência da pressa aludida
pelo historiador e mais a escolha da materialidade propícia à mudança, ao contato dos corpos e a
sua correspondência imediata.

Fazendo um salto de dois séculos – para considerar outro expoente da história da arte –,
são tomadas as palavras de Wi kower ao tratar da preferência pelo desenvolvimento de um
projeto escultórico a par r da premissa da modelagem. Sobre Rodin, o autor diz que esse teria
sido “o arqué po do modelador na história da escultura. Ele pensava a argila, e a manipulava [...]
com uma habilidade e dedicação inacreditáveis [...]”25. A pontuação do historiador espelha a fala
do crí co e ar sta plás co francês Paul Gsell, publicada em 1911, no livro que trazia uma série de
entrevistas feitas com o escultor em seu atelier e no Museu do Louvre:

Eu o vejo novamente, amassando o barro e com ele fazendo pequenos, rápidos esboços.
[...]. Esses esboços, feitos de uma só vez, excitam-no porque lhe permitem agarrar no ar
belos gestos cuja verdade fugidia poderia escapar num estudo mais aprofundado, porém
mais lento “26 “[...] O personagem de argila tomava forma. As mãos de Rodin iam e
vinham, superpondo os pedaços de barro, moldando-os em suas palmas largas sem que
nenhum movimento fosse perdido27.

23 Ibidem, p. 209.
24OSTROW, Steven F. “The re of art”? A historiography of Bernini’s Bozze . In: DICKERSON III, Claude Douglas et. al.,
Bernini sculp ng in Clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 83.
25OSTROW, Steven F. “The re of art”? A historiography of Bernini’s Bozze . In: DICKERSON III, Claude Douglas et. al.,
Bernini sculp ng in Clay. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. p. 256.
26 RODIN, Auguste. A arte: Auguste Rodin,[em] conversa com Paul Gsell. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 19.
27 Ibidem. p. 147-8.
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A percepção do autor é corroborada pela voz do próprio ar sta, quando este descrevia o
seu processo de criação do busto de Victor Hugo:

Eu estudava o grande poeta atentamente, tentando gravar sua imagem em minha


memória, depois corria para a varanda para xar no barro a lembrança do que acabara de
ver28.

As ponderações a respeito da relação de Rodin com a modelagem a rmam seu apreço pelo
trabalho com a argila da mesma maneira como visto no caso de Bernini. Mas nos séculos que os
separam, assim como os muitos anos de diferença entre os ar stas em a vidade no Renascimento
e o escultor francês, a relação com o trabalho manual sofre alterações as quais é interessante
mencionar.

A desquali cação do trabalho manual – a rmada desde o humanismo neoplatônico do


Renascimento com o predomínio do conceito, da ideia – foi sendo reavaliada ao longo da história
da arte e das transformações trazidas pelos séculos. O racionalismo, engendrado desde o nal da
Idade Média sob a luz dos propósitos renascen stas e coroado no século XVIII pelo pensamento
iluminista, foi confrontado, já em ns desse século, por uma oposição aos seus preceitos na forma
do Roman smo, movimento que apregoava uma subje vidade lírica e emocional.

Essa virada trazia consigo uma reavaliação do poder da racionalidade humana e se


contrapunha à emergência da Revolução Industrial e seu regramento sobre o homem. A
manufatura perdia sua ascendência no sistema de produção, sendo aos poucos subs tuída pela
efe vidade da indústria. O ar sta, até então senhor de sua técnica, de sua habilidade artesanal, se
via ameaçado no controle de sua a vidade produ va devido ao avanço tecnológico do mundo em
transformação.

No século XIX, um grande defensor do passado agonizante foi John Ruskin, escritor e crí co
de arte de linhagem român ca, ao professar uma ardorosa defesa daquilo que considerava ser a
qualidade subje va da artesania, em oposição à quan dade despersonalizada da produção
mecânica. É Richard Sennet quem lembra, em seu livro O ar ce, como o autor lançava, em seus
escritos, “um grito de guerra contra a moderna cornucópia, pelo revigoramento da reação dos
sen dos aos objetos. No mesmo movimento, exortava os artesãos a rea rmar seu direito ao
respeito da sociedade”29. O posicionamento de John Ruskin, personagem referência da Era
Vitoriana, in uenciou diretamente a criação do movimento esté co Arts & Cra s, liderado por
William Morris, e o estabelecimento da Irmandade dos pré-rafaelitas. Essa preconizava a “técnica

28 Ibidem. p. 106
29 SENNET, Richard. O ar ce. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 129.
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pura, sem ar cios nem seduções, como uma prá ca religiosa e, ao mesmo tempo, um retorno à
condição social, ao o cio humilde, cuidadoso, moral e religiosamente saudável dos an gos
ar stas-artesãos”30. Ruskin e Morris, “no nal do século, revelaram como essa técnica ‘religiosa’
era a an tese da técnica atéia e materialista da indústria”31.

Para além das considerações sobre religiosidade, essa breve explanação mostra a
possibilidade de inferir que a nega vidade, quanto ao aspecto manual do trabalho ar s co, tomou
um novo rumo diante da nova condição industrial.

Para reforçar a atenção sobre a passagem de um sistema ao outro e suas consequências no


fazer da arte, vale a pena ler um fragmento de texto do crí co Rodrigo Naves, no prefácio do livro
Arte moderna, de Argan:

Com a industrialização esse sistema entra em crise, e a Arte moderna é a própria história
dessa crise. [...] Quando Argan diz que nos quadros de Van Gogh “também a técnica da
pintura deve mudar”, temos aí a síntese da mudança operada – o fazer é co do homem
contra o fazer racional da máquina”. Nas obras de Van Gogh, a cor impressionista [...]
adquirirá corpo, e se transformará numa verdadeira matéria, a ser trabalhada pela mão.
[...] é justamente esse fazer que traz à tona as inúmeras decisões que devem ser tomadas
no seu decorrer, evidenciadas no trabalho penoso que não consegue apagar seus rastros,
pois se recusa a submeter violentamente a matéria sobre a qual age32.

A imagem pictórica do crí co é exemplar tanto no que se refere à questão do trabalho


manual quanto à per nência de seu comentário nal, em sua consonância com a proposta de
compreensão do estatuto da modelagem como intrínseco a uma corporalidade compar lhada
entre a matéria e quem a manipula.

As marcas deixadas pelos corpos dos ar stas na manipulação da matéria trabalhada


serviram às especulações sobre a obra de Bernini, assim como ao propósito de encontrar nas
esculturas de Rodin os sinais de sua modernidade.

No livro Caminhos da escultura moderna, Rosalind Krauss se debruça sobre o trabalho de


Auguste Rodin apontando suas “transgressões” ao modelo neoclássico – cânone da escultura do
séc XIX – e, a par r delas, elabora a tese sobre a modernidade anunciada pela obra do escultor.
Entre suas argumentações, se encontra uma re exão sobre as marcas do processo de feitura
impressas nas esculturas – o caráter discursivo dessas marcas processuais deixadas pelo ar sta na
super cie de alguns de seus trabalhos. Do que trataria tal discurso? Do trabalho da feitura, do

30 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 31.
31 Ibidem, p. 31.
32 NAVES, Rodrigo. Prefácio. In: ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.XXI.
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processo do fazer, da presença em ausência das mãos e ferramentas que forjaram aquela
materialidade. Um discurso moderno, ou seja, em contradição com as regras do fazer ar s co
escultórico tradicional, que pon cavam a dissolução máxima das marcas do duro trabalho de
construção para dar total visibilidade aos conteúdos propostos pela imagem. Em desacordo com o
aspecto literário de tal proposta, Rodin teria introduzido uma literalidade do exercício ar s co. As
marcas dos dedos, das mãos que deram forma à argila, ves gios de gestos produzidos com
ferramentas escultóricas, assim como das bolhas de metal candente que subsis ram ao processo
de fundição, foram propositalmente deixados à visibilidade de sua existência, na super cie de
algumas obras do escultor francês.

Às mãos modeladoras de Rodin, que se entranhavam na argila, na matéria-mãe da maioria


de suas obras, imprimindo seu gesto na super cie das suas criações, Krauss associou a experiência
escultórica de Ma sse, que

[...] explorou boa parte do território já coberto anteriormente por Rodin. As super cies de
suas guras seguem o exemplo do ar sta mais velho em seu testemunho dos
procedimentos da modelagem: as goivaduras e os achatamentos, os pequenos acréscimos
e subtrações de material, as marcas de polegares e mãos ao trabalharem a argila33.

Os indícios corporais encontrados nos trabalhos de Bernini, assim como em obras de Rodin
e seus contemporâneos, têm, para o enfoque na condição processual da modelagem, o mesmo
peso, mas é muito importante pontuar a diferença que implicam. Do escultor italiano são
conhecidas as marcas deixadas em seus bozze , ou seja, numa etapa do seu trabalho que, por
mais de nidora que fosse para o seu projeto escultórico, não era o que vinha a público. Já nos
exemplos citados por Krauss, as marcas são visíveis no trabalho nal, iden cando nas esculturas
todo o processo de elaboração manual, um retrato do corpo a corpo exercido na modelagem,
conforme esclarece no seguinte comentário:

Certas esculturas de Rodin quase poderiam servir de ilustrações para um manual de


modelagem em bronze, tamanha é a clareza com que documentam os processos de sua
formação. Esculturas como o Torso, de 1877 [...], estão crivadas dos acidentes da fundição:
ori cios não vedados causados por bolhas de ar; rugosidades e bolhas surgidas no estágio
de moldagem e não limadas – uma super cie marmorizada com as marcas do processo
que Rodin não removeu, mas manteve, de modo a converterem-se em testemunhos
visuais da passagem do meio de expressão de um estágio a outro34.

33 KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Mar ns Fontes, 1998. p. 46.
34Ibidem. p. 36
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Auguste Rodin, Torso, 1877. Henri Ma sse, Madeleine II, 1903.

Uma observação de Yve-Alain Bois, escrita em um texto em que, como Krauss, analisa a
proximidade do tratamento do modelado de Ma sse com o de Rodin, ganha destaque mediante
seu reforço, quase literal, da citação trazida acima: “[...] Rodin é um mestre da ‘arte processual’,
sendo a sua escultura um catálogo dos procedimentos, acidentais ou não, que cons tuem a arte
da modelagem ou fundição [moldagem]”35. Seu diagnós co é completado, aqui, por outra
consideração interessante, proferida no momento em que o autor faz menção à maneira do ar sta
de trabalhar a escultura, dizendo que “Rodin insiste em sua opacidade, sua materialidade”36.

35BOIS, Yve-Alain. Ma sse visits Rodin’s Studio -1900b. In: FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yve-Alain; BUCHLOH,
Benjamin. Art since 1900. New York: Thames&Hudson, 2004. p. 58, tradução nossa.
36 BOIS, Yve-Alain. Ma sse visits Rodin’s Studio -1900b. In: FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yve-Alain; BUCHLOH,
Benjamin. Art since 1900. New York: Thames&Hudson, 2004. p. 58, tradução nossa. É de fundamental importância
trazer a diferenciação usada por YAB ao tratar da obra do escultor dis nguindo um Rodin público [public], de um
privado [private], u lizando os termos cuja conceituação credita ao historiador da arte, Leo Steinberg, em ensaio sobre
o trabalho do escultor. O Rodin público refere-se às suas peças em mármore, alinhadas com a tradição acadêmica,
enquanto o privado designa seus trabalhos resultantes do processo de modelagem e moldagem, com os quais se
cercava em seu atelier. Como a pesquisa trata-se exatamente desses procedimentos, somente as observações de YAB
cuja referência é especí ca ao Rodin privado, foram trazidas ao texto.
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Não seria possível trazer todas essas considerações sobre a obra do escultor francês sem
fazer a devida referência ao ensaio de Leo Steinberg, no qual o teórico trata da arte de Rodin. No
texto, publicado em 1963, o autor a rmava o apreço do ar sta pela modelagem e a caracterís ca
processual trazida na materialidade de seus trabalhos. Suas análises, reabilitando a escultura de
Rodin ao olhar modernista, abriram os caminhos para as leituras consagradas à produção do
ar sta37:

Seu gênio era o de um modelador. [...] Sólido ou amolecido – são esses os modos do
bronze e do gesso, não os da carne. Portanto, as melhores esculturas de Rodin tratam dos
materiais de que são feitas. Tratam, igualmente, do processo de sua execução. [...] Ele foi o
primeiro cuja escultura incorporou deliberadamente as forças do acidente. [...] Seu tema
real, portanto, é a in midade da gestação, todo meio disponível sendo usado para manter
uma determinada gura como um processo escultórico condensado. Quaisquer
vicissitudes que um trabalho em progresso possa sofrer são seladas na forma. [...]
Sen mos, como nunca antes, uma aceitação da condição e da forma do material
trabalhado; e uma nova disposição para deixar a super cie ser apenas o ves gio e a
passagem de suas próprias mãos trabalhando38.

Os bozze e os desenhos preparatórios haviam sido os meios mais u lizados pelos ar stas
para expressar as ideias que seriam tornadas obras. Os escultores empenhavam-se em suas
encomendas de trabalho com o auxílio de uma gama variada de artesãos e ar stas empregados
em seus ateliês. Muitas vezes o entalhamento do mármore era deixado a cargo de seus
assistentes, assim como se fazia com a fundição de peças modeladas para esse m. Em situações
como essas, o ar sta que assinava a obra fazia uso de seus esboços como uma medida
comprobatória da qualidade alcançada no trabalho39. Nessa etapa nal não haveria como manter a
aparência processual que impregnava os desenhos e as modelagens: esse era o momento de trazer
à obra o seu caráter de ni vo. Pode-se deduzir que essa de nição – con gurada no mármore, ou
no metal, da escultura – iden cava-se com uma concepção de eternidade, um desejo de
permanência prome do pelo universo da arte.

37 Na seção de agradecimentos de Caminhos da Escultura Moderna, Rosalind Krauss reconhece seu débito com o
autor: “Leo Steinberg, cujo ensaio sobre Rodin [...] eu havia lido no início da década de 60, foi o primeiro a
demonstrar-me a impossibilidade de uma concepção da escultura moderna vista como a an tese da obra deste ar sta.
Minha abordagem sobre Rodin [...] deve muito a esse ensaio e [...] quero registrar aqui a in uência mais geral que sofri
de sua concepção da relação de Rodin com o modernismo.” KRAUSS, Rosalind. op. cit. p. xiv. Deve-se também lembrar
que o livro de Wi kower é de data posterior ao ensaio, pois foi “organizado a par r de conferências pronunciadas [...]
em seus úl mos anos de vida (1970-1) [...]”. NAVES, Rodrigo. Wöl in e Wi kower: o aprendiz e o mestre. In: NAVES,
Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
p. 135.
38 STEINBERG, Leo. Rodin. In: STEINBERG, Leo. Outros critérios. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p. 355- 423.
39As a rmações sobre essa metodologia de trabalho baseiam-se em leituras variadas, mas podem também ser
deduzidas das observações de Andrea Bacchi sobre a relação de Bernini e seus assistentes em The role of Terracota
Models in Bernini’s Workshop, p. 51 e 61.
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Sabe-se que a comparação entre os métodos de trabalho ligados à prá ca escultórica
enfa zava a supremacia do entalhe sobre a modelagem. Essa soberania diz respeito ao ato da
re rada como a operação condutora do gesto preciso que irá registrar na dureza da pedra o seu
intento. Diz respeito, portanto, à materialidade do mármore como um suporte para o eterno. Essa
precisão que exalta o controle da razão sobre o corpo é contrariada no ato da modelagem, pela
exigência de liberdade gestual na lida com a exibilidade da matéria. Na valorização do entalhe, o
que está implícito é a valorização da permanência. A modelagem funciona em um estado
diametralmente oposto à imutabilidade: a condição da sua existência é a transitoriedade.

Referências Bibliográ cas

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FOSTER, Hal; KRAUSS, R.; BOIS, Yve-Alain; BUCHLOH, Benjamin. Art since 1900.
New York: Thames & Hudson, 2004.

DICKERSON III, Claude Douglas.; SIGEL, Anthony; WARDROPPER, Ian. Bernini sculp ng in Clay. New
York: The Metropolitan Museum of Art, 2012. Catalog. 416p.

GREENBERG, Clement. Arte e cultura. São Paulo: Á ca, 1996.

KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Mar ns Fontes, 1998.

NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

RODIN, Auguste. A arte: Auguste Rodin [em] conversa com Paul Gsell. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.

SENNET, Richard. O ar ce. Rio de Janeiro: Record, 2009.

STEINBERG, Leo. Outros critérios. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989.

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