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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Introdução — Michael Hulse
Mein werter Herr Werther: à guisa de nota liminar — Mauricio
Mendonça Cardozo

OS SOFRIMENTOS DO JOVEM WERTHER


Primeiro livro
Segundo livro
O editor ao leitor

Notas do tradutor
Créditos
OS SOFRIMENTOS DO JOVEM WERTHER

johann wolfgang von goethe nasceu em Frankfurt, em 1749.


Estudou em Leipzig, onde demonstrou interesse pelas ciências ocultas,
e em Estrasburgo, onde Herder o introduziu às obras de Shakespeare e
à poesia popular. Produziu ensaios e versos líricos e, aos 24 anos,
escreveu Götz von Berlichingen, peça que lhe trouxe fama nacional e o
estabeleceu no movimento Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto].
Werther, romance trágico, alcançou sucesso ainda maior. Goethe
começou a trabalhar no Fausto e em Egmont, outra tragédia, antes de
ser convidado a participar do governo em Weimar. Seu interesse pelo
mundo clássico o levou a partir subitamente para a Itália, em 1786.
Viagem à Itália relata suas andanças por aquele país. I gênia em
Táuride e Torquato Tasso, dramas clássicos, tiveram início nessa
época. Retornando a Weimar, Goethe dedicou-se a escrever a segunda
parte do Fausto, encorajado por Schiller. Durante esse período nal,
concluiu a série de narrativas do Wilhelm Meister e escreveu muitas
outras obras, incluindo o Divã ocidento-oriental, As a nidades
eletivas e sua autobiogra a De minha vida: poesia e verdade. Goethe
também dirigiu o Teatro Público e desenvolveu trabalhos relacionados
a teorias cientí cas no campo da botânica evolucionária, da anatomia
e da cor. Casou-se em 1806. Concluiu o Fausto antes de morrer, em
1832.

mauricio mendonça cardozo nasceu em Curitiba, em 1971.


Professor de teoria da tradução, tradução literária e literatura alemã
na Universidade Federal do Paraná, é também tradutor de autores
como E. E. Cummings, Rainer Maria Rilke, Else Lasker-Schüler, Paul
Celan, Johann Wolfgang von Goethe, Heinrich Heine, Theodor Storm
e Thomas Mann, com destaque para a tradução da autobiogra a De
minha vida: poesia e verdade, de Goethe (Prêmio Paulo Rónai de
Tradução, 2018).

michael hulse estudou na Universidade de St. Andrews, lecionou nas


universidades de Erlangen, Eichstätt e Colônia, na Alemanha, e
atualmente trabalha no ramo editorial e na televisão. Entre suas
traduções contam-se The Sorrows of Young Werther (Penguin
Classics, 1989), de Goethe, Prison Journal (Penguin, 1989), de Luise
Rinser, e Caspar Hauser, de Jakob Wassermann (Penguin Classics,
1992), além de cções de W. G. Sebald, Botho Strauss e Elfriede
Jelinek. Poeta premiado, sua coleção mais recente intitula-se Eating
Strawberries in the Necropolis (1991). Em 1993, coeditou The New
Poetry.
Introdução
michael hulse

“Nesta primavera”, escreveu Christian Kestner em 1772, “um certo


Goethe esteve aqui. É de Frankfurt, aparentemente doutor em direito,
23 anos de idade, lho único de um pai bastante rico. Veio a pedido
do pai para dar início a uma carreira, mas ele próprio está mais
inclinado à análise de Homero, Píndaro etc., e a tudo mais a que seu
gênio, sua forma de pensar e seu coração o lançam.”
A pequena cidade de Wetzlar, 64 quilômetros ao norte de Frankfurt,
contava à época com uma população em torno de 4 mil habitantes,
dos quais quase um quarto empregava-se no tribunal. Quando Goethe
registrou-se no Reichskammergericht, em 25 de maio daquele ano,
suas chances de repetir tanto o pai quanto o avô, adquirindo
experiência valiosa e contatos em Wetzlar, deviam ser excelentes. Mas
Goethe, a essa altura já autor de poemas impressionantes, bem como
de Götz von Berlichingen e outras obras dramáticas de juventude, era
mais facilmente encontrado debaixo de uma árvore, estirado na relva,
losofando com os amigos Gotter, Von Goué, Von Kielmansegge e
König, do que se dedicando à carreira. Sozinho ou acompanhado,
Goethe caminhava até a vila das redondezas, Garbenheim, lia seu
Homero, seu Goldsmith ou a Bíblia, conversava com os habitantes do
vilarejo e com as crianças e sentava-se à sombra das tílias. A lha de
um diretor escolar que sobreviveu ao escritor, morrendo dois anos
depois dele, em 1834, nunca se esqueceu de Goethe nem do outro
jovem cavalheiro, Jerusalem, e, aos que visitavam a vila, exibia um
banco de madeira (o Wertherstuhl) em que Goethe costumava sentar-
se.
Pouco depois de sua chegada a Wetzlar, Goethe compareceu a um
baile em Volpertshausen, vila próxima, quando conheceu uma jovem
chamada Charlotte Buff. Na mesma carta para o amigo August von
Hennings, Christian Kestner registrou as circunstâncias:

Em 9 de junho de 1772, aconteceu de Goethe comparecer ao mesmo baile campestre ao


qual fomos minha garota e eu. Não pude me fazer presente desde o começo, e me dirigi até
lá mais tarde, a cavalo, enquanto minha garota adiantou-se com outros camaradas. O dr.
Goethe era um dos que iam na carruagem, e foi lá que travou conhecimento com Lottchen.
[…] Ele não sabia que ela era comprometida. […] Lottchen efetuou ali uma conquista
completa.

Charlotte Buff, então com dezenove anos de idade, era a segunda


mais velha entre os onze lhos do viúvo Heinrich Adam Buff, o cial
residente da Deutschorden em Wetzlar. Loira atraente, de olhos azuis,
Charlotte era uma moça espontânea, sagaz e cheia de vida. Christian
Kestner a conheceu quando ela tinha quinze anos e cou
impressionado: via nela uma pessoa muito franca, gentil e cortês, não
apenas satisfeita consigo mesma, mas motivo de alegria também para
os outros. Durante os anos seguintes, a afeição e o respeito de Kestner
aumentaram, especialmente depois da morte da mãe, em 1771,
quando Lotte assumiu uma posição de autoridade e responsabilidade
na família, com uma calma e brandura de espírito que a tornavam
indispensável e profundamente amada. Lotte correspondeu ao amor
de Kestner, e, à época da estadia de quatro meses de Goethe em
Wetzlar, era notório que Kestner era o “prometido” de Lotte: era com
essa palavra que Goethe e seus amigos referiam-se a ele, e, quarenta
anos mais tarde, escrevendo o autobiográ co De minha vida: Poesia e
verdade, Goethe mais uma vez se valeu dessa palavra para se referir a
Kestner.
Com quatro décadas de retrospecção, Goethe registra que Lotte lhe
pareceu uma moça alegre e agradável, pura e saudável, notando que,
“onde quer que ela estivesse, uma atmosfera de serenidade
descontraída prevalecia”. Muito porque irradiava uma promessa de
felicidade doméstica, Goethe a considerava o tipo de moça que
qualquer homem gostaria de chamar de sua. Curiosamente, também
descreveu Lotte como uma mulher mais apta a inspirar contentamento
do que paixões violentas. Ao mesmo tempo, Goethe afeiçoou-se a
Christian Kestner, que se destacava pelo “comportamento calmo e
harmonioso, a clareza de opinião e a rmeza nas ações e na
expressão”. Goethe considerava Kestner diligente e sensível.
Christian Kestner, de sua parte, considerava Goethe nada menos
que um jovem excepcional. “Ele possui muitos talentos, é um
verdadeiro gênio e um homem de caráter, e tem uma imaginação
extraordinariamente vívida, o que o leva a se expressar, na maior
parte das vezes, por meio de imagens e parábolas”, escreveu a Von
Hennings.

É, no geral, um homem de emoções violentas; no entanto, frequentemente demonstra


considerável autocontrole. O molde de sua mente é nobre, e ele é livre o su ciente de
preconceitos para se comportar tal como considera apropriado, pouco se importando se
agrada aos demais, ou se seu modo de agir é elegante ou permitido pelas atitudes
prevalentes. Despreza todas as formas de compulsão. Ama as crianças e pode se manter
bem ocupado na companhia delas.
Entre Lotte, Goethe e Kestner desenvolveu-se uma amizade que
transformou o prazeroso verão de 1772 no que o próprio Goethe
descreveu, retrospectivamente, como “um genuíno idílio germânico”.
Em Poesia e verdade, um Goethe envelhecido apresenta aquele longo
verão como uma alegre estação onírica, em que a beleza do campo
ofereceu a prosa, e os deleites puros da afeição, a poesia
correspondente. Em passeios pelos campos e jardins, entre o milho
maduro, ouvindo o canto da cotovia, os três amigos tornaram-se
inseparáveis. Ou, pelo menos, dois deles. Havia momentos em que o
“prometido” era impedido de fazer-se presente por causa de seus
negócios. Nessas ocasiões, Goethe e Lotte passeavam a sós.
Kestner era um homem de bom senso e tolerância, e seus instintos o
estimulavam antes à amizade do que ao ciúme infundado; no entanto,
não se sentia inteiramente satisfeito com a proximidade entre Lotte e
Goethe. Já em ns de junho, escreve em seu diário:

Tendo encerrado meu trabalho, fui ver minha garota e encontrei o dr. Goethe por lá. […]
Ele a ama e, por mais lósofo que seja, por mais bem-disposto que possa ser para comigo,
não aprecia que eu apareça para desfrutar da companhia de minha garota. E eu, embora
igualmente bem-disposto em relação a ele, não gosto de encontrá-lo a sós com minha
garota, entretendo-a.

Em sua autobiogra a, Goethe sugere que o trio de amigos era livre


de fricções, e que qualquer dor ou frustração que tenha sentido na
companhia de Lotte era uma parte natural da felicidade que
vivenciamos quando desejamos o que não podemos ter. “Se, como se
diz, a maior felicidade é encontrada no desejo, e se o verdadeiro desejo
deve sempre ser direcionado para algo inatingível, então tudo
conspirou para fazer do jovem cuja sorte temos acompanhado o mais
feliz dos mortais”, escreve ele, referindo-se a si mesmo na terceira
pessoa. E continua:

Sua afeição por uma mulher já prometida para outro homem, seus esforços para tornar
certas obras-primas da literatura estrangeira parte da nossa literatura, bem como de sua
própria, e suas tentativas de capturar a Natureza não apenas em palavras, mas também
com o lápis e o pincel, embora sem a técnica adequada: qualquer uma dessas coisas seria
su ciente para insu ar-lhe o coração e fazer-lhe pesar o peito.

Que tanto Goethe quanto Lotte se comportavam dentro dos limites


impostos pela integridade natural e pela amizade inocente é
inquestionável. Que isso fosse possível sem qualquer tensão parece
muito improvável, em parte por conta do alívio que Goethe
experimentou quando escreveu o romance e exorcizou o passado, e
em parte porque, a certa altura, durante o verão de 1772 , Lotte foi
obrigada a dizer a Goethe, com toda franqueza, que ele não deveria
esperar que seu amor fosse correspondido. “Ela lhe disse que não
esperasse nada além da amizade”, escreveu Kestner em seu diário, no
dia 16 de agosto. “Ele cou pálido e bastante cabisbaixo.”
Menos de um mês depois, Goethe partiu. No dia 10 de setembro,
passou a noite com Lotte e Kestner, e a conversa, por estímulo de
Lotte, voltou-se para o tema da vida após a morte e se era possível um
reencontro depois da partida. Goethe tornou a deprimir-se. Às sete
horas da manhã do dia seguinte, deixou Wetzlar sem aviso. Uma nota
de adeus endereçada a Lotte acenava para um encontro futuro,
demorava-se na doce tristeza da última reunião e acrescentava:
“Agora estou sozinho e posso derramar minhas lágrimas. Deixo-os
para vossa felicidade, e não partirei de vossos corações”.
Os olhos de Lotte (conta-nos o diário de Kestner) encheram-se de
lágrimas quando ela leu a nota de Goethe, e Kestner foi obrigado a
defender o rival contra a acusação de brusquidão deselegante.
Enquanto isso, o jovem escritor seguia a caminho de Koblenz, onde
conheceu o amigo Merck, a autora Sophie von La Roche, o
conselheiro com quem ela era casada e a lha de dezesseis anos do
casal, Maximiliane. “É muito agradável”, conta Goethe em Poesia e
verdade, “quando uma nova paixão desperta dentro de nós antes de a
velha ter desvanecido por completo.” Goethe afeiçoou-se imensamente
de Maximiliane, e a Lotte deste romance aproxima-se mais de
Maximiliane von La Roche, em termos de aparência física, do que de
Charlotte Buff. Com Maximiliane, contudo, Goethe estava mais uma
vez fadado à frustração, e dois anos mais tarde ela se casaria com um
comerciante frankfurtiano de meia-idade.
Goethe manteve-se em contato próximo por carta com seus amigos
de Wetzlar e, no começo de outubro, sobressaltou-se ao ouvir um
boato (que se provou infundado) de que seu amigo Von Goué
cometera suicídio. “Honro o feito”, escreveu Goethe a Kestner no dia
10 de outubro, mas acrescentando: “Espero jamais perturbar meus
amigos com uma notícia dessa natureza”. Nem três semanas se
passaram quando um segundo suicídio foi relatado, dessa vez
corretamente: na noite de 29 de outubro, Karl Wilhelm Jerusalem
atirou em si mesmo. Morreu no dia seguinte, por volta do meio-dia,
sendo enterrado na mesma tarde.
Um pouco mais velho do que Goethe, Jerusalem nasceu numa
família muito religiosa, em março de , em Wolfenbüttel. Foi para
1747

a faculdade em Braunschweig (Brunswick), depois estudou direito em


Leipzig, na mesma época que Goethe, e em Göttingen, onde se
graduou em 1770. Considerado um jovem são e agradável, desfrutava
do respeito de um dos escritores proeminentes da época, Lessing. Em
setembro de 1771, conseguiu um emprego em Wetzlar como secretário
de Von Hoe er, embaixador de Braunschweig. Em Wetzlar, em seu
tempo livre, ocupava-se da pintura, da poesia e da loso a, e era
ocasionalmente parte do grupo quando Goethe e seus amigos se
encontravam em Wetzlar ou Garbenheim, embora ele e Goethe nunca
tivessem sido próximos. Ao que parece, Jerusalem não compartilhava
da opinião altamente favorável de Christian Kestner sobre Goethe,
descrevendo-o com ares um tanto superiores, numa carta de julho de
1772, como uma pessoa “enfatuada”, um “escrevinhador”.
Em Poesia e verdade, Goethe lembra de Jerusalem como um jovem
educado, de rosto arredondado, cortês, de olhos azuis e cabelos claros.
“Vestia as roupas comuns no Norte da Alemanha, imitando os
ingleses: uma casaca azul, colete e calças de couro amarelado.” Goethe
recorda-se, em particular, do gosto de Jerusalem por desenhos de
paisagens desérticas e de sua paixão pela esposa de outro homem.
Lembrando que Jerusalem, já tendo sido desdenhado pela alta
sociedade de Wetzlar, era de disposição solitária e re exiva, dado a
longas caminhadas ao luar e que havia redigido um ensaio em defesa
do suicídio, Christian Kestler conclui que aquela paixão por Elisabeth
Herd havia sido o golpe fatal nele. “Não acredito que ela tenha
interesse em amores galantes, e, em todo caso, seu marido é
extremamente ciumento; assim, seu amor nalmente pôs m à
tranquilidade de seu coração e à sua paz.”
Ao saber da notícia no começo de novembro, Goethe
imediatamente escreveu a Kestner:

Pobre rapaz! Lembro de voltar de uma caminhada e encontrá-lo à luz da lua, e disse para
mim mesmo: ele está apaixonado. Foi a solidão, Deus sabe, que devorou seu coração. —
Eu o conhecia havia sete anos, embora só raramente nos falássemos; quando parti, trouxe
um de seus livros comigo, e agora o guardarei e lembrarei dele pelo resto da vida.
Goethe esteve em Wetzlar de 6 a 11 de novembro e aproveitou a
oportunidade para averiguar os detalhes da morte de Jerusalem.
Naquele mesmo mês, recebeu por escrito o relato meticuloso que
pedira a Kestner, no qual, a seu tempo, basearia as páginas nais deste
romance. Uma vez de posse dos fatos precisos, Goethe (de acordo com
Poesia e verdade) divisou a estrutura completa da obra.
O relato de Christian Kestner descrevia uma história que circulava
por Wetzlar: a de que Jerusalem havia declarado seu amor para
Elisabeth Herd. Frau Herd, mantendo o jovem à distância, contou
sobre a cena ao marido, pedindo-lhe que proibisse o acesso de
Jerusalem à residência do casal, coisa que o marido fez. Nesse ponto,
Jerusalem enviou uma nota a Kestner, solicitando o empréstimo de
suas pistolas para uma viagem que ele pretendia fazer, e Kestner,
ignorando o que se passava na cabeça de Jerusalem, cedeu ao pedido.
Jerusalem passou a tarde organizando seus papéis, quitando dívidas
e caminhando. Naquela noite, acendeu a lareira e pediu uma jarra de
vinho ao criado. Disse que acordaria cedo na manhã seguinte, e o
criado, em consequência, foi para a cama sem despir o uniforme, de
modo a estar pronto quando solicitado. Jerusalem escreveu duas
cartas, uma para sua família e outra para Herd, desculpando-se por
perturbar a paz de seu lar. Kestner especulava que Jerusalem talvez
tivesse escrito uma terceira carta, para Von Hoe er, sugerindo que era
possível que o embaixador estivesse suprimindo a missiva a m de
tornar a frustração amorosa de Jerusalem a causa principal da
tragédia. O embaixador andava insatisfeito com Jerusalem e desejava
substituí-lo, e pode ter se sentido responsável por isso.
Entre meia-noite e uma da manhã, Jerusalem disparou o tiro
mortal. Um monge franciscano ouviu o disparo e viu o brilho da
pólvora; mas, como tudo permaneceu calmo, não deu maior
importância. Jerusalem, ao que parece, matou-se sentado à
escrivaninha, segundo o relato de Kestner:

O espaldar da cadeira estava ensanguentado, bem como os apoios de braço. Ele tombou
da cadeira. Havia muito sangue no piso. Ele deve ter se agitado no chão sobre o próprio
sangue […] e depois se arrastou até a janela. […] (Estava inteiramente vestido, com suas
botas, a sobrecasaca azul e o colete bege.).

O criado apareceu às seis da manhã e encontrou o patrão ainda


vivo, mas incapaz de fazer qualquer coisa além de gemer. Um médico
foi convocado e, “para coroar tudo, abriu uma veia em seu braço”. A
notícia alcançou Kestner, que, pensando com horror nas pistolas,
apressou-se em direção aos aposentos de Jerusalem. “Os pulmões dele
ainda produziam um zumbido mortal terrível, ora débil, ora mais alto;
seu m era próximo. Bebera uma única taça de vinho. […] Emilia
Galotti jazia aberto numa mesa à janela.”
Jerusalem morreu por volta do meio-dia e foi enterrado na mesma
noite, pouco antes das onze horas. Kestner relatou que aprendizes de
barbeiro carregaram o corpo à sepultura e que uma cruz foi levada à
frente de Jerusalem. E acrescentou o comentário despretensioso que
Goethe subsequentemente escolheria como as palavras nais de seu
romance: “Nenhum clérigo o acompanhava”.
Kestner e Lotte casaram-se em abril de 1773 , informando Goethe
após o evento. Maximiliane von La Roche casou-se em janeiro de
1774 . E Goethe lançou-se à escrita.
ii

Não é de surpreender que Os sofrimentos do jovem Werther,


publicado em Leipzig por Weygand em 1774, tenha sido recebido em
seu tempo (e continue a ser lido) como parte autobiográ co, parte
biográ co. Escrevendo a Hennings em novembro de 1774, Kestner
nota sem rodeios que, na primeira parte do romance, Werther era
Goethe, e na segunda, Jerusalem. O próprio Goethe, descrevendo mais
tarde a escrita da obra como uma ocupação que lhe tomou quatro
semanas, durante as quais procedeu com a certeza inconsciente de um
sonâmbulo, escreveu em Poesia e verdade sobre o sentimento de
liberdade e alívio que experimentou depois daquele esforço e falou
especi camente de “con ssão”. De fato, num sentido real, Werther é a
primeira grande realização daquilo que uma época posterior
classi caria como literatura “confessional”.
Não faltaram leitores ingênuos, contudo, que se desagradaram do
fato de Goethe transformar “realidade em poesia”: o conhecimento de
que havia eventos reais por trás da cção de Goethe serviu de pretexto
para indulgências das mais piegas. Na primavera de 1776, uma
procissão à luz de tochas dirigiu-se à sepultura de Jerusalem, onde
discursos foram proferidos, ores foram ofertadas e um afamado
poema sobre Werther de C. E. von Reitzenstein foi recitado.
Peregrinos vinham de toda a Europa. O Handbook for Travellers on
the Continent [Guia para viajantes no continente], de John Murray,
explicava ao viajante inglês do século xix onde encontrar a sepultura
de Jerusalem, a fonte de Charlotte e a tília sob a qual Goethe gostava
de sentar-se. Em Garbenheim, um estalajadeiro empilhara um
montículo de terra e costumava dizer solenemente aos visitantes que
aquela era a sepultura de Werther. Um grupo de cinco peregrinos
ingleses brindou Werther ao pé de sua sepultura, esvaziou o restante
da garrafa na terra e, desembainhando punhais, proferiu uma série de
discursos antes de presentear os habitantes do vilarejo. Saber que
houve antes uma realidade que fora ccionalizada em um reino
diferente da experiência não era su ciente: a “realidade” tinha que
incluir a “poesia” e era santi cada por ela.
Histórias ainda piores de sentimentalismo desbragado foram
enormemente exageradas. Uma parte essencial da lenda de Werther
sempre insistiu que teria havido uma inundação de “Liebestod por
toda a Europa”, nas palavras de um poema recente de Michael
Hofmann. Mas parece haver pouca evidência de que o romance de
Goethe tenha estimulado uma epidemia de suicídios por amor. Uma
mulher chamada Fanni von Ickstatt saltou para a morte de uma torre
da Frauenkirche em Munique, e logo emergiu um poema culpando a
tragédia no romance de Goethe. Se o poema estava correto, não há
como determinar. De forma mais impressionante, outra jovem matou-
se por afogamento no rio Ilm, atrás do jardim de Goethe em Weimar,
em janeiro de 1778. Christine von Lassberg fora abandonada pelo
amado e lançou-se à morte com uma cópia do Werther no bolso. Se
ela se mataria caso o romance de Goethe não a tivesse in uenciado é
um argumento discutível. De todo modo, os jovens da Europa
contentavam-se em vestir sobrecasacas azuis e coletes beges, optando,
sensatamente, por não puxar o gatilho. Quando James Hackman
matou Martha Ray do lado de fora do teatro Covent Garden em
Londres, em 1779, fracassando no tiro que tentou dar em si mesmo
em seguida, Sir Herbert Croft transformou o caso num romance
epistolar intitulado Love and Madness [Amor e loucura], que supunha
que Hackman tinha sido in uenciado pelo Werther e até mesmo
escrito uma série de “Versos encontrados, depois da morte de Werter,
no chão, ao lado da pistola”. Contudo, é duvidoso que o verdadeiro
James Hackman tenha de fato lido o Werther, e por que o romance o
induziria ao assassinato é ainda mais duvidoso. O caso Hackman
tornou-se, mais tarde, tema de outro romance, Der englische Werther
[O Werther inglês], publicado por Wilhelm Häring em 1843, sob o
pseudônimo de Willibald Alexis.
Se o mito de uma epidemia de suicídios guarda alguma verdade ou
não, muitos dos contemporâneos de Goethe prontamente admitiram
que o romance poderia exercer uma in uência corruptiva, acendendo
um debate acalorado sobre o tema. Um dos escritores de destaque da
época, Wieland, resenhou o romance de Goethe na revista Teutsche
Merkur, em dezembro de 1774, e observou que estimular a piedade do
leitor para um suicídio, mostrando que um coração mole e uma
imaginação febril podem ser destrutivos, é algo que está bem longe de
escrever uma defesa do suicídio em geral. Os censores de Leipzig
pensavam de outra forma. Quando a faculdade de teologia de Leipzig
entrou com uma ação a favor do banimento do romance, sob o
argumento de que ele enaltecia o suicídio, o conselho municipal
decretou a medida em dois dias. Também na Dinamarca uma tradução
anunciada foi proibida. Nicolai, que escreveu um nal alternativo
paródico para o romance, não gostava da aparente defesa do suicídio,
enquanto o dramaturgo Lenz, num comentário não publicado sobre a
moral do Werther, notou que enxergar o romance dessa forma era
como interpretar a Ilíada de Homero como uma incitação à raiva, à
discórdia e à inimizade. Numa carta de maio de 1775, Lichtenberg
a rmou com frieza: “O cheiro de uma panqueca é uma razão mais
poderosa para permanecer neste mundo do que todas as razões
supostamente elevadas do jovem Werther para abandoná-lo”.
Lichtenberg imaginou duas ilustrações, antes e depois. A primeira
representava um amante infeliz agarrado a uma pistola, e uma faca, o
romance e uma panqueca postos na mesa diante dele, e, logo abaixo
da ilustração, as palavras: “Minha ruína e meu antídoto estão
igualmente diante de mim” (de Cato, de Addison). A segunda
mostrava a pistola esquecida, a faca na panqueca, metade da
panqueca na boca do jovem, e, debaixo da ilustração, as palavras de
César: “Iacta est alea” [A sorte está lançada]. O próprio Goethe
sentiu-se bastante afetado pelo debate para acrescentar uma quadra
com uma máxima a cada parte do romance numa reedição de 1775. A
máxima para a segunda parte fecha com a injunção para que o leitor
seja “homem” e não siga os passos de Werther.
Imitar a vida e a morte de Werther era uma coisa; imitar o livro no
qual ele aparecia era outra. O sucesso do Werther foi veloz e imenso.
O romance logo foi traduzido para todas as principais línguas
europeias. Escreveram-se poemas, peças e óperas sobre Werther. No
Prater, em Viena, houve uma exibição de fogos de artifício em
homenagem a Werther. Na Fleet Street, em Londres, o Royal
Historical Wax-Work, da sra. Salmon, exibiu o “admiradíssimo
Grupo da Morte de Werther, acompanhado por Charlotte e Família”.
Músicas sobre Werther eram cantadas. Porcelanas de Meissen exibiam
cenas do livro. Damas usavam joias, leques e luvas associados ao
personagem, e o perfume delas chamava-se Eau de Werther. Por volta
de 1799, Werther dera a volta ao mundo e retornava à Alemanha pelo
Extremo Oriente: um chinês empreendedor, notando a popularidade
do trágico suicida, começara a produzir pinturas de Werther ao estilo
chinês, enviando-as à Europa.
Os quinze anos que se seguiram à primeira edição foram o auge da
febre Werther. Uma tradução francesa apareceu em 1776 , e The
Sorrows of Werter: A German Story, numa tradução de Daniel
Malthus (pai do economista), em 1779. Eram anos estéreis na
literatura inglesa. Fielding e Richardson, Sterne e Smollett, Goldsmith
e Gray estavam todos mortos, e por alguns anos o romance de Goethe
dominou a cena inglesa. In uenciado pelos romances epistolares de
Richardson e por O vigário de Wake eld, de Goldsmith, por Young e
Gray, Hamlet e Ossian, o romance oferecia uma atmosfera elegíaca
familiar, além de cenas envolvendo crianças, uma vida campestre
patriarcal e uma paisagem selvagem, tempestuosa, tal como o gosto
prevalente na Inglaterra aceitaria rapidamente. Assimilado de pronto,
embora lido apenas como uma história de amor sentimentalmente
trágica, Werther servia de tópico de discussão: Fanny Burney registrou
que fora indagada acerca de sua opinião sobre o romance pela rainha
Charlotte, que não havia gostado, e no Spring Garden Coffee House,
em Londres, houve uma reunião para debater se era correto que
Charlotte aceitasse as visitas de Werther depois de seu casamento com
Albert. Werther e Charlotte guram em incontáveis poemas, e o
seguinte soneto de Charlotte Smith, nem de longe um dos piores,
sugere as qualidades que se julgava que o romance de Goethe
representava e as reações que ele estimulava:

Make there my tomb; beneath the lime-trees shade,


Where grass and owers in wild luxuriance wave;
Let no memorial mark where I am laid,
Or point to common eyes the lover’s grave!
But oft at twilight morn, or closing day,
The faithful friend, with fault’ring step shall glide,
Tributes of fond regret by stealth to pay,
And sigh o’er the unhappy suicide.
And sometimes, when the Sun with parting rays
Gilds the long grass that hides my silent bed,
The tear shall tremble in my CHARLOTTE’s eyes;
Dear, precious drops! — they shall embalm the dead;
Yes! CHARLOTTE o’er the mournful spot shall weep,
Where her poor WERTER — and his sorrows sleep.

Faça ali meu túmulo, à sombra dos limoeiros,


Onde a relva e as ores ondulam numa exuberância selvagem;
Que nenhum memorial marque onde me estendi,
Ou aponte para olhos quaisquer a sepultura do amante!
Mas, ao crepúsculo da manhã ou no cair do dia,
A amiga el muito deslizará, com passo vacilante,
A m de pagar os tributos do arrependimento
E suspirar, discreta, pelo suicídio infeliz.
Quando o Sol, por vezes, com raios de despedida,
Dourar a relva crescida que esconde minha cama silenciosa,
A lágrima tremerá nos olhos de minha CHARLOTTE;
Lágrimas queridas, preciosas! Elas hão de embalsamar o morto;
Sim! CHARLOTTE há de chorar sobre o triste sítio,
Onde seu pobre WERTER e seus sofrimentos dormem.

É interessante que a cena que embasa esse soneto não ocorre no


romance: no tratamento que Goethe imprime ao seu material há uma
rmeza que passou despercebida aos seus contemporâneos mais
sentimentais. Charlotte chorando sobre o túmulo de Werther era uma
das cenas favoritas dos ilustradores, e em The Parish Register [O
registro paroquial], de Crabbe, pode-se ler:

Fair prints along the paper’d wall are spread;


There, Werter sees the sportive children fed,
And Charlotte, here, bewails her lover dead.
Belas imagens desfraldam-se pelo papel de parede:
Ali, Werter alimenta as crianças brincalhonas,
E Charlotte, aqui, lamenta o amante morto.

No entanto, quando Crabbe escreveu esses versos, em 1807 , o pico


da popularidade do Werther na Inglaterra já havia decaído. Idos eram
os dias em que umas poucas linhas da primeira carta engendravam um
romance anônimo como Eleonora (1785), ou em que William James,
numa veia corretiva, podia escrever The Letters of Charlotte during
her Connexion with Werter (1786), ou em que a famosa sra. Kennedy
cantava canções inspiradas pelo livro no Vauxhall Gardens. Depois da
Revolução Francesa, Goethe e Schiller e outros escritores alemães
foram associados ao jacobinismo, e os conservadores patrióticos os
condenaram. A peça Werter: A Tragedy, de Frederick Reynolds,
continuou a ser encenada ocasionalmente, mas o verdadeiro
wertherismo foi suplantado pela energia romântica menos fatalista do
byronismo, de modo que, em 1835, Longfellow podia escrever: “Na
Inglaterra e na América, desdenha-se do livro. Penso que não é
compreendido”. Vinte anos mais tarde, o biógrafo inglês de Goethe,
Lewes, a rmava sem rodeios: “Werther já não é muito lido hoje em
dia, especialmente na Inglaterra”.
Em outras partes da Europa, Werther estabeleceu bases mais rmes.
Uma versão dramática, Les Malheurs de l’amour [Os infortúnios do
amor], foi impressa em Berna em 1775, antes de a tradução francesa
do romance vir a público. Os franceses percebiam que não apenas seus
escritores ingleses favoritos espreitavam por trás da obra de Goethe,
mas também Rousseau: o Rousseau de A nova Heloísa, o Rousseau
que, na primeira frase do Emílio, declarava que o mundo era bom
quando deixou as mãos de seu Criador, mas que se degenerou nas
mãos dos homens. Romances, poemas e peças associados ao Werther
proliferaram na França. Werther, ou Le Délire de l’amour [Werther,
ou o delírio do amor], de La Rivière, cou em cartaz por vários anos.
Em alguns romances, os personagens eram franceses (Le Nouveau
Werther, 1786), ou o herói era uma heroína (Werthérie, ).
1791

Napoleão levou o romance de Goethe para a campanha egípcia de


1798 , e, quando conheceu o autor, em , contou a ele que lera o
1808

livro sete vezes. Em ns de 1809, Goethe recebeu um pacote de uma


distante província do mundo francófono, as Ilhas Maurício, e, ao abri-
lo, encontrou Sydner, ou Les Dangers de l’imagination [Sydner, ou os
perigos da imaginação], uma imitação publicada por lá em 1803.
Enquanto isso, a Holanda desfrutava de sua própria tragédia de
Werther, em versos alexandrinos, em 1786 , enquanto a Itália podia
apreciar a peça de Sogra , de 1794, encenada a céu aberto no
an teatro romano em Verona, além de algumas derivações pitorescas,
como uma peça para bonecos em Nápoles e uma ópera tragicômica,
Carlotta e Werter (1814), de Coccia. Lamartine, Mickiewicz e Gautier
contavam-se entre os admiradores do romance. Em Almas mortas
(1842), de Gógol, o bêbado Tchítchikov recitava a tradução russa de
um poema francês sobre Werther. A década de 1880 viu a peça
espanhola El suicidio de Werther (1888), de Dicenta, e a ópera de
Massenet, encenada pela primeira vez em Viena, em 1892 . Em 1894 ,
veio a lume a primeira tradução japonesa. Em , Sarah Bernhardt
1903

atuou numa versão para o palco, na França, levando um crítico a


exclamar “Ai!” e “Argh!”. Os usos nos quais se empregava o material
de Goethe nem sempre eram dos mais felizes.
Na Alemanha, a febre Werther foi tamanha que, em 6 de março de
1775 , Goethe já escrevia a um amigo: “Estou sinceramente cansado de
ver o pobre Werther exumado e dissecado”. Também na Alemanha
não faltaram poemas, canções e peças, além de paródias. Freuden des
jungen Werthers [Alegrias do jovem Werther], de Nicolai, contava das
alegrias, em vez dos sofrimentos, que bem poderiam ter sido de
Werther, propondo um nal alternativo. Albert, percebendo a intenção
de Werther, carrega sua pistola com bolinhas de sangue de galinha.
Deparando-se com o amigo numa poça de sangue, explica ao pretenso
suicida que ele está disposto a ceder em suas intenções relativas a
Lotte. Werther salta de alegria, exclamando: “Que júbilo, que
bênção!”. Ele se casa com Lotte, e os dois vivem num contentamento
só maculado pelas típicas crises domésticas que (sugere Nicolai) é
tarefa do adulto maduro e responsável suportar. Mais tarde, um ex-
viajante cheio de ideias constrói um exótico jardim oriental na colina
acima do modesto refúgio de Werther, e certo dia uma inundação da
cascata no jardim devasta a casa de verão de Werther e Lotte. “Gênios
não são lá os melhores vizinhos”, conclui Werther, já inteiramente
assimilado ao pequeno mundo de domesticidade burguesa do qual seu
protótipo tanto desejava se livrar.
A sátira de Nicolai era por vezes comentada (e mesmo apresentada)
junto com o romance de Goethe. Era um apêndice cru que, embora
simpático à força estimulante do original, também não atentava à
insistência de Goethe quanto à falha trágica e fatal de Werther. Não
obstante, a paródia desenvolve uma série de pontos válidos. O culto
protorromântico do gênio isento das normas e julgamentos
costumeiros da sociedade era característico da literatura do
movimento Sturm und Drang [Tempestade e ímpeto], e, uma vez
associado à sensibilidade melancólica e sentimental conhecida como
Emp ndsamkeit [corrente sentimentalista], produziu uma atmosfera
intelectual e emocional em que todos os envolvidos sentiam (como diz
Goethe em Poesia e verdade) que podiam ser o príncipe da Dinamarca.
O argumento de Nicolai era, em suma, de que esse tipo de gênio era
antissocial, ao passo que obedecer às regras da sociedade era o melhor
caminho para o contentamento humano. Goethe não gostava da
paródia de Nicolai, talvez porque estivesse ciente de que o con ito
entre indivíduo e sociedade restava não resolvido em seu romance — e
dentro dele mesmo. Não foi muito antes de emplacar uma boa
carreira nos tribunais de Weimar  — inquietando-se um pouco e até
escapando para a Itália, dramatizando tensões similares às de Werther
na peça Torquato Tasso e aquiescendo às regras  — que chegou o
tempo, depois da Revolução Francesa, em que pôde escrever: “Só a
Lei pode nos dar a Liberdade”. Esse con ito paradoxal permaneceu
ativo dentro dele por toda a vida. Em Werther, era virulento.
Um escritor alemão posterior chamou a atenção para outro aspecto
do romance — o aspecto que zera com que Goethe fosse considerado
um jacobino pelos conservadores ingleses na década de 1790 .
Escrevendo em 1828, Heine, que tinha pouca paciência para a trágica
história de amor de Werther ou para a questão do suicídio, a rmou
que a passagem que lidava com a exclusão de Werther da sociedade
aristocrática teria sido reconhecida como o coração do livro, caso a
obra fosse publicada naquela época, e não na década de 1770 .
Evidentemente, Heine exagera. E Goethe, na velhice, relutaria em
concordar com ele, dado que quaisquer inclinações incendiárias que o
autor do Werther possa ter tido eram parte de seu passado remoto.
Goethe nunca foi um revolucionário, alguém capaz de exclamar que
era uma bênção estar vivo naquela alvorada, a não ser que sugerisse
nisso uma expressão de um êxtase individual: o insulto dirigido a
Werther na reunião do conde tem um lugar essencial no
desenvolvimento da ação do romance, bem como em con rmar a
posição de Werther como uma espécie de outsider rejeitado, mas é
apenas implicitamente uma representação do momento político. No
entanto, Heine estava certo em chamar a atenção para um aspecto da
obra que os contemporâneos imediatos de Goethe haviam ignorado.
Para além dos esforços de um indivíduo no sentido de a rmar seu
lugar na Criação, para além da frustração de Werther por sentir-se
preso às regras estorvantes da sociedade, um senso bastante real e
insatisfeito do abismo entre a alta sociedade aristocrática e o povo
simples permanece no romance de forma persistente e algo irritadiça.
Na Alemanha, a leitura sentimental do Werther como uma história
de amor trágica — leitura essa estimulada pelas tendências sombrias e
exageradas da época do Emp ndsamkeit  — foi gradualmente
suplantada por uma percepção da dimensão social e política da obra,
sua compreensão profunda do lugar do homem em seu ambiente
natural e, sobretudo, sua sensível exploração da psicopatologia do
jovem talentoso mas desajustado. Uma época mais sutilmente alerta à
relação entre o autor e seus personagens ctícios tornou-se disposta a
deixar de lado a obsessão com os eventos originais e a avaliar o
engenho no tratamento que Goethe deu a eles: a adequação da forma
epistolar como expressão de uma comunicação unilateral e solitária, a
destreza na orquestração dos motivos e humores e a habilidade com
que o autor interpõe uma distância irônica entre o leitor e Werther
sem abdicar da simpatia pelo protagonista desafortunado. O
desenvolvimento de uma leitura mais madura do romance na
Alemanha foi assistido pela familiaridade com as obras posteriores de
Goethe. Fora da Alemanha, aquela popularidade que o lançara tão
cedo para a fama internacional provou-se, ironicamente, um obstáculo
para a recepção de suas outras obras. A tradução de Sir Walter Scott
de Götz von Berlichingen, assim como uma seleção francesa dos
poemas de Goethe publicada em 1825, informava ao leitor que a obra
a ser adquirida era do mesmo autor do Werther. Só aos poucos a
plena fertilidade e o escopo da realização de Goethe se tornaram
evidentes para os leitores fora da Alemanha. Werther é um feito
notável, o primeiro grande romance trágico, um trabalho de estilo e
iluminações instigantes. Considerado no conjunto de uma obra que
inclui Fausto, Wilhelm Meister, As a nidades eletivas, deliciosos
relatos de viagem e autobiogra a, várias peças, ensaios, estudos
cientí cos e alguns dos mais belos poemas jamais escritos, isso é algo
espantoso.
Werther recebeu muitas traduções para o inglês, mas parece que,
passada a primeira febre na década de 1780 , não tem sido muito lido,
e o sentimento de Longfellow de que a obra “não é compreendida”
talvez ainda seja correto. Isso se deve em parte à imagem anglo-saxã
do Sábio de Weimar, demasiado formal, que impede que o romance
seja lido em seus próprios termos. Quando admitiu Gouty
(“artrítico”) no triunvirato europeu junto com Daunty
(“intimidante”) e Shopkeeper (“comerciante”),* Joyce encontrou a
palavra certa para expressar uma concepção anglo-saxã de Goethe
baseada quase inteiramente na velhice patrícia do escritor, uma
concepção que o vê como uma gura pomposa, carrancuda e
empolada. Nada poderia estar mais distante da verdade. Mas é
importante dispersar esse preconceito antes de se aproximar do
romance trágico e enérgico que Goethe escreveu aos 24 anos de idade.
Mais difícil é dar conta das leituras subjetivas que, a seu modo, são
tão ingênuas quanto as leituras sentimentais dos contemporâneos de
Goethe. Quando Peter Porter se refere num poema ao “mais famoso
romance de autopiedade do mundo”, ou quando Christopher Ricks,
escrevendo sobre Keats, fala do “romantismo wertheriano debilitante
do amor como afetação lamuriosa e sem vontade”, percebemos que
uma espécie de estrago deliberado foi forjado durante a leitura, e o
romance de Goethe emergiu daí mutilado e estropiado. Reclamar da
autopiedade ou da falta de vontade de Werther é como reclamar da
procrastinação de Hamlet. As fraquezas do caráter de Werther estão
lá, sem dúvida. Mas estão lá por uma razão. Estão lá como parte
essencial do retrato de um homem mal equipado para lidar com a
própria vida. Estão lá como as falhas fatais num personagem
simpático, generoso, criativo, espontâneo, compreensivo e cheio de
vitalidade. E, assim, devem ser aceitas como premissas necessárias
numa tragédia persuasiva, como componentes necessários de uma
obra de arte consumada.

Colônia, fevereiro de 1988

* Apelidos joyceanos para Goethe, Dante e Shakespeare. (n. t.)


Mein werter Herr Werther:
à guisa de nota liminar
mauricio mendonça cardozo

A história das edições da obra de Goethe, em geral, e d’Os


sofrimentos do jovem Werther, em particular, é extensa e bastante
complexa, seja por se tratar de obra escrita e publicada há mais de
dois séculos, seja por se tratar de uma obra editada numa época em
que as noções de autoria e de direitos autorais apenas começavam a se
a rmar.
A primeira edição de Die Leiden des jungen Werthers foi publicada
originalmente em 1774 por um editor de Leipzig chamado Weygand.
Depois de fazer duas reimpressões corrigidas nesse mesmo ano,
Weygand, tomando por base o manuscrito original de Goethe (que
acabara se perdendo com o tempo), reeditaria a obra em 1775. Data
também desse ano a primeira edição não autorizada da obra, que as
linhas de força mais tradicionais da crítica consideram ter sido
levemente adaptada (leia-se: corrigida) conforme as convenções
linguístico-ortográ cas de Berlim, onde foi publicada pelo editor
Christian F. Himburg como parte de uma edição dos escritos de
Goethe (J. W. Goethens Schriften). Himburg publicaria mais duas
edições da obra, em 1777 e 1779, multiplicando ainda mais as
diferenças em relação à primeira edição de Weygand, de 1774.
Todavia, em 1782, ao retomar seu projeto de revisão do Werther, foi
justamente a edição de Himburg, de 1779 , que Goethe tomou por
base para fazer suas inclusões, exclusões e rearranjos (deslocamento
de algumas cartas), corrigindo muitos dos problemas de impressão,
mas mantendo, também, boa parte das variantes do texto impresso
por Himburg. O uso dessa edição de Himburg como texto de base
costuma ser justi cado pela di culdade de acesso a um exemplar da
edição de 1774. No entanto, discute-se também a hipótese de que a
retomada do Werther coincida com um momento em que Goethe
procura se afastar de seu estilo de escrita da juventude, mais marcado
pela variante renana do alemão. O texto resultante desse trabalho de
revisão, o chamado manuscrito H, serviu de base para a famosa
edição de 1787, publicada por Göschen, em Leipzig.
Para a presente tradução, tomo duas edições como referência. A
edição crítica da Deutscher Klassiker Verlag (dkv) e a edição crítica da
Universal-Bibliothek (ub), da editora Reclam. A edição da dkv edita
paralelamente uma versão que toma por base a linha de edições que
remonta à edição de 1774 (Fassung A), ao lado de uma versão que
toma por base a edição de 1787 e, portanto, remonta ao manuscrito
H (Fassung B). Para explicitar as diferenças entre as versões do texto,
a edição da dkv abre mão de um processo de atualização ortográ ca.
Já a edição da ub reproduz a chamada edição de Weimar (Weimarer
Ausgabe), que também parte da edição de 1787, remontando
igualmente ao manuscrito H, mas empreende um trabalho de
minimização das variantes introduzidas pela edição de Himburg, bem
como de modernização da ortogra a. Como texto de base para esta
tradução, sirvo-me centralmente da chamada edição de 1787 (Fassung
B da edição da dkv ), cotejada com a edição da ub . Valho-me do
recurso à edição de 1774 (Fassung A da edição da dkv) apenas para
dirimir eventuais dúvidas quanto ao estabelecimento do texto.
traduções do werther

Além do acesso ao aparato crítico das edições supracitadas e a uma


ampla bibliogra a de referência sobre a obra, esta tradução também
se valeu de um cotejo extensivo de várias das traduções anteriores,
especialmente para o português e para o inglês. Entre as traduções
para o português que me serviram de referência mais ampla, gostaria
de destacar a de Elias Davidovich (1932), a de Marion Fleischer
(1994), a de Marcelo Backes (2001), a de Erlon José Paschoal (2009) e
a de Claudia Cavalcanti (2014). Entre as traduções para a língua
inglesa, destaco a de David Constantine (2012), a de Stanley Corngold
(2012) e a de Jonathan Ashleigh (2017).
Se o senso comum propaga a ideia de que as traduções são efêmeras
e precisam ser substituídas de tempos em tempos por novas traduções,
por outro lado, um olhar disposto a levar em consideração as questões
levantadas pelo pensamento contemporâneo sobre o fenômeno
tradutório não poderá ignorar o valor crítico dessas traduções que,
falando de onde querem falar (do que propõem como tradução) e de
onde podem falar (de sua inscrição não apenas no tempo e na
linguagem, mas, também, como tempo e como linguagem), continuam
sendo objeto de imenso valor. E esse valor, por mais traduções do
Werther que ainda venham a surgir, não é meramente museológico,
não desperta a curiosidade apenas dos poucos estudiosos da matéria,
como se, para o círculo mais amplo de leitores, as traduções mais
antigas dessa obra tivessem expirado seu prazo de validade e só nos
coubesse descartá-las, substituindo-as por suas respectivas
atualizações. Ao contrário, as inúmeras traduções dessa obra
continuam se apresentando, cada qual a seu modo, como
possibilidades diferentes de leitura do Werther em português, como
objetos prestes a ganhar vida de novo na imaginação dos leitores,
sempre na constante iminência de representar e de constituir diferentes
forma de vida para a obra de Goethe nos dias de hoje.
Se algumas características sobressaem em uma ou outra das
traduções  — ora a sobriedade e a elegância do texto, ora a precisão
vernacular e o rigor no trato da letra estrangeira, ora a atenção ao
corpo da obra como textualidade em língua portuguesa, ora o cuidado
artesanal na construção de um registro de época  —, tornando-se seu
traço distintivo, qual uma assinatura de tradutor, é interessante notar
como cada uma das traduções também parece partilhar de
características que marcam mais emblematicamente as outras, embora
o explicitem de forma menos enfática. Ou seja, todas essas traduções
são, a seu modo, sóbrias, elegantes, precisas, rigorosas; todas resultam
de um esforço laborioso e artesanal na construção dos registros de
linguagem de que se servem, o que nos faz constatar que a
singularidade de cada uma dessas traduções não corresponde a
nenhuma espécie de limitação da visão de seus respectivos tradutores;
ao contrário, é sintoma daquilo que marca mais determinantemente a
relação particular de cada tradutor com a obra de Goethe.
A tradução que aqui se apresenta não encontraria o seu próprio
sentido sem o esforço de leitura, sem a companhia desse corpus
tradutório de inestimável valor crítico, do qual ela é profundamente
tributária, ora afastando-se, ora aproximando-se das traduções que a
precedem.
o nome werther

É curioso notar como a força do nome Werther é acompanhada por


um grau considerável de opacidade — o que, por sinal, não costuma
ser algo estranho, já que não é da “natureza” do nome querer dizer
algo: ele nomeia, o que é fazer muito sem ter de signi car grande
coisa. Sim, um nome também pode signi car alguma coisa, mas, em
geral, esse signi cado pode ou não ter a ver com aquilo que nomeia (o
que é forte indício de que não é necessariamente nesse signi cado que
reside a força do nome, mas em tudo o que pode signi car seu
nomear). Há poucos nomes como Werther, que a um só tempo nomeia
uma obra, um autor, um protagonista, uma época, uma forma de
amor, uma questão de vida e morte, uma questão de obra e vida.
Werther é o nome que diz muito ao dizer pouco, que diz pouco por
dizer demais. Werther é o nome da força do nome.
Se, num contexto estrangeiro como o da língua portuguesa, esse
nome nos é opaco, em alemão o vocábulo “werther” é objeto de
algumas reverberações laterais, mas produtivas, entre as quais duas se
destacam: a que remete ao campo semântico do substantivo Wert (no
sentido de valor, signi cado, importância) e do adjetivo wert (caro,
estimado, prezado, mas também digno, valoroso), e a que remete ao
substantivo Werder (no sentido de uma formação insular, termo ainda
corrente na toponímia das regiões mais ao norte da Alemanha).
É na primeira acepção que “mein werter Herr Werther” ganha o
valor de saudação formal como “estimado senhor Werther”  —
fórmula usada predominantemente no contexto epistolar, que, como
sabemos, é também o espaço de relação em que esta narrativa se
constrói  —, ou, ainda, desdobrando do próprio nome a mesma
acepção: “estimado senhor Estimado”. Mas não se trata de propor
uma tradução alternativa para esse nome; trata-se, antes, de apontar
suas reverberações. Aqui, o próprio nome do protagonista evoca um
modo de relação mais formal do que informal e, portanto, uma certa
condição de distanciamento. Esse detalhe ganha mais sentido se
lembrarmos que Werther é um sobrenome e que, em nossa condição
de leitores, nem sequer sabemos qual seria o primeiro nome do
protagonista, já que ninguém nunca o trata pelo prenome  — nem o
próprio protagonista quando se refere a si mesmo (o que, por si só, já
renderia boa discussão) —, já que Werther nunca toma parte de uma
relação de proximidade que lhe garanta um tratamento com o grau de
informalidade de um prenome.
Na segunda acepção, conforme registram os verbetes Wert e Werder
do dicionário Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm
Grimm, “Werther” remete ao sentido de uma formação insular, de
uma porção mais elevada de terra em meio à água, ou seja, ao sentido
de uma forma singular de “ilha”, de “ínsula”, de “ipuã”. Nessa
acepção, “mein werter Herr Werther” poderia ganhar corpo (e tez
ameríndia) como um “estimado senhor Ipuã”. Mais importante, no
entanto, é destacar que a reverberação de uma insularidade de
Werther reforça a condição de distanciamento (de certa resistência a
um regime de maior proximidade): como se o próprio nome do
protagonista antecipasse a ideia de um processo de conformação,
delimitação e singularização desse sujeito no espaço de suas relações;
como se à construção do protagonista como um “Werther”
correspondesse sua inscrição cada vez maior em uma condição de
insulamento.
o horizonte da tradução

Enquanto textualidade, o tecido wertheriano é marcado por um


registro alto, que é aquele que confere à obra sua dimensão mais
dramática e poética, mas também por um registro menos elevado,
nuançado por marcas sutis de informalidade, que é responsável
especialmente pela construção da relação entre Werther e Wilhelm
como um espaço de intimidade. As incessantes modulações do registro
alto  — numa dinâmica que se estende do piano (p) ao fortississimo
(fff) — em contraponto com os diferentes matizes desse registro mais
informal compõem, juntos, a rica e complexa tessitura da obra.
As traduções para o português costumam dedicar grande atenção à
construção do registro mais elevado da obra, possivelmente pelo que
essa dimensão estilística representa enquanto desa o ao tradutor, e
também pelo quanto ela é capaz de metonimizar a força dramática e
poética do Werther. Já as passagens que correspondem a uma espécie
de relaxamento da tensão dramática, escritas, em geral, num registro
menos elevado, por vezes até mais informal, nem sempre recebem o
mesmo tipo de tratamento. Como consequência disso, o contraste
entre esses dois registros nem sempre acaba se evidenciando no texto
em português, ou se evidencia muito sutilmente, seja pela força
contagiante do registro alto — que, não raro, acaba se impondo sobre
o modo como se constroem as demais passagens em registro menos
elevado —, seja em razão de certas escolhas estilísticas que, por força
de certa extemporaneidade em relação ao português brasileiro
contemporâneo, acabam produzindo uma impressão mais elevada até
mesmo das passagens mais representativas de uma dimensão de
informalidade. É o caso, por exemplo, da preferência pelo regime
pronominal do tu e do vós e sua respectiva conjugação verbal, do uso
corrente de mesóclises e da conformação sistemática à norma escrita
daquilo que no texto em alemão pode ser lido como marca de um
regime mais coloquial, a meio passo da oralidade. Tal equalização
textual acaba minimizando a possibilidade de percepção, por parte do
leitor brasileiro, de uma tessitura mais evidentemente contrastada da
obra.
Esta tradução se propõe a trabalhar a construção dessas diferentes
dimensões em contraponto, para que as modulações de cada registro e
o contraste entre eles possam se fazer mais evidentes.
Ao se discutirem os desa os de tradução de determinada obra
literária, é muito comum que a conversa passe pelas particularidades
dos regimes linguísticos da obra na língua de partida, até mesmo
porque essa discussão também costuma cumprir o papel de apresentar
a obra do ponto de vista de suas virtudes linguísticas. A nal, se é
importante que o tradutor tenha uma visão acurada das
especi cidades e da complexidade do uso da língua na obra original,
construindo uma percepção clara do que faz de uma forma particular
de escrita (na língua estrangeira) um modo especial de construção da
obra literária, explicitar tal percepção no espaço de uma nota ou de
um prefácio pode contribuir para uma leitura do texto traduzido na
chave de sua singularidade.
Curiosamente, são bem mais raros os prefácios que discutem as
especi cidades da construção de um regime linguístico capaz de
abrigar determinada obra na língua de chegada. Para abordar
minimamente esta questão, destacam-se a seguir três aspectos
pontuais, mas bastante importantes para a construção, na variante
brasileira da língua portuguesa, deste Werther que aqui se apresenta: a
modulação da dinâmica no registro alto, a variação entre os registros
de formalidade e informalidade e o uso do travessão.
Modulação da dinâmica no registro alto

Para dar conta da modulação da dinâmica no registro alto, a


construção do texto em português se desenvolve em torno de três
formas de atenção: 1) uma atenção aos momentos de menor e maior
tensão dramática e à sua respectiva evolução, que ora mantém
longamente um padrão de modulação em torno de uma espécie de
ponto médio (mais ou menos elevado), ora se desenvolve num
crescendo, ora irrompe num sforzando, não raro chegando a um
clímax  — em geral, esses efeitos são construídos a partir da
moderação da força sintática e prosódica dessas passagens do texto,
atenuada ou acentuada pelos cortes, encadeamentos e prolongamentos
sintáticos; 2) uma atenção à variação dos campos semânticos em que
se inscrevem, por exemplo, guras poéticas e metafóricas, que
contribuem decisivamente para a construção da ambiência dos
diferentes quadros narrativos; 3) uma atenção às inversões sintáticas
sempre que usadas como efeito estético, ou seja, de modo marcado,
para que constituam alguma forma de contraste (ainda que sutil) com
as passagens de sintaxe não marcada.
Variações entre o registro formal e o registro informal

A língua alemã em que o romance é escrito, por volta de 1774, é


provida de um dispositivo complexo para marcar diferentes níveis de
informalidade e formalidade, o que a distancia dos usos
contemporâneos da língua portuguesa no Brasil, até mesmo em sua
variante culta, em que os recursos para a marcação dessas distinções
são comparativamente menos abundantes. Portanto, ao reescrever o
Werther em nossa língua, temos, quanto a essa questão, pelo menos
duas opções mais evidentes: ou bem recuperamos as distinções entre
formalidade e informalidade de um português mais antigo  —
perfeitamente cabível se o projeto de tradução tiver em vista um
trabalho de escrita que assume o ônus de um possível arti cialismo em
prol de um efeito de remissão do leitor a um estado mais arcaico de
sua língua —, ou bem operamos nos limites dos usos contemporâneos,
assumindo o ônus de certa compactação na forma de marcar os
registros em prol da construção de um efeito de maior naturalidade,
especialmente no tratamento dos diferentes níveis de informalidade.
Nesta tradução do Werther, três estratégias são empregadas com o
objetivo de marcar uma diferença entre dois níveis de informalidade,
bem como uma diferença entre estes e um nível de formalidade.
As duas primeiras estratégias são adotadas sistematicamente: a
opção pelo você e vocês, em vez do tu e vós, para operar num registro
menos arti cial do ponto de vista dos usos do português brasileiro
contemporâneo, e a opção pelo uso informal do imperativo, que, por
remeter ao seu uso mais coloquial (na oralidade), ajuda a reforçar a
nota de informalidade. A terceira estratégia cumpre o m de marcar
dois níveis diferenciados de informalidade: uma na esfera mais íntima
e outra mais distanciada.
A informalidade na esfera mais íntima é determinante, por exemplo,
da relação entre Werther e Wilhelm — um dos eixos mais importantes
da narrativa —, ou das relações Werther-Albert e Lotte-Albert. Nesses
contextos relacionais, em alemão, os personagens se tratam pelo
prenome (com exceção de Werther, que é sempre tratado por seu
sobrenome independentemente da relação em que esteja) e usam os
respectivos pronomes do registro informal (du, deine). Em português,
os personagens também se tratam pelo prenome, mas como esta
tradução faz uma opção sistemática pelo uso do pronome você,
optou-se, para a construção desse primeiro nível de informalidade (na
esfera mais íntima) — a despeito do ônus da agramaticalidade —, pela
concordância do você com os pronomes em segunda pessoa (teu, tua),
em vez do convencional seu, sua.
O segundo nível de informalidade (mais distanciada) é
determinante, por exemplo, da relação entre Werther e Lotte: Werther
trata Lotte pelo prenome  — na verdade, por um apelido, a forma
íntima e afetiva do prenome Charlotte —, o que denota o registro de
informalidade, enquanto Lotte (como também todos os demais
personagens em qualquer circunstância) trata Werther pelo
sobrenome, o que marca uma forma de distanciamento mesmo no
âmbito de uma relação próxima de amizade. Em alemão, no entanto,
ambos usam sistematicamente o tratamento formal (Sie, Ihnen), e em
momentos de maior comoção, como na última carta do primeiro livro,
e também nos últimos fragmentos do segundo, Werther se dirige a
Lotte usando a forma de tratamento de maior intimidade (du, dein).
Em português, para que esse segundo nível de informalidade não se
confunda com o primeiro (consequência de se usar uma única forma
de marcação de informalidade ao longo do texto), ou para não
transformar esse segundo nível de informalidade numa relação mais
formal do que ela de fato é (consequência natural de se optar pela
forma do senhor e da senhora como tradução para o tratamento por
Sie, Ihnen), optou-se pelo uso mais convencional do regime informal,
com o pronome você associado ao uso dos pronomes em terceira
pessoa (seu, sua). A criação de uma estratégia de distinção entre esses
dois níveis de informalidade torna mais perceptível, para o leitor, a
variação sutil entre os dois regimes como forma adicional de
caracterização da relação entre os personagens.
A marcação mais corrente de formalidade, em alemão, se dá pelo
uso do sobrenome aliado ao uso dos pronomes Sie, Ihnen; em
português, além do uso do sobrenome, optou-se por um registro de
formalidade que associa senhor e senhora aos pronomes em terceira
pessoa (seu, sua). Embora marque, por exemplo, a relação de Werther
com o embaixador, esse registro tem pouca ocorrência ao longo da
obra. A língua alemã dispõe ainda de recursos para a marcação de
outro nível de formalidade (de coloração mais arcaica, usando-se os
pronomes Ihr, Eure), mas não há registro desse regime no Werther.
Cabe destacar ainda, nesse contexto, o caso particular das
invocações e dos monólogos de Werther com deus. Em alemão,
diferentemente do que costuma ocorrer em português, a forma
convencional do tratamento na relação com a divindade se dá a partir
da segunda pessoa informal (du, deine). Portanto, é no primeiro nível
de informalidade, nessa esfera de maior intimidade, que a relação de
Werther com deus se constrói ao longo da narrativa, como na
intimidade da relação de um lho com o pai. Se, em alemão, essa
dimensão relacional não se destaca mais explicitamente na
textualidade da novela em razão do regime não marcado dessa
convenção informal, ao reconstruí-la nesse mesmo nível de
informalidade em português, essa opção (que é a feita no contexto
desta tradução) resulta num regime marcado para a caracterização da
relação de Werther com deus em português (você, teu, tua), já que as
convenções da forma de tratamento, nesse caso, costumam se
inscrever mais correntemente num regime de formalidade (vós,
senhor). É também em razão dessa opção que a palavra “deus”, nesta
tradução, é grafada sempre em minúscula no texto.
O uso singular do travessão

Em língua alemã, como em diversas outras línguas, os diálogos no


corpo de um texto narrativo são convencionalmente marcados como
tal, em geral para explicitar a diferença entre a fala de um personagem
e a voz do narrador. Essa marcação, a depender da variante da língua
alemã (suíça, austríaca, alemã etc.) e/ou da tradição tipográ ca e
editorial em que se enquadra a publicação, é realizada por meio de
aspas invertidas ou de aspas angulares, que cumprem o m de
destacar, num período, a parte que corresponde ao discurso direto (a
fala do personagem). À gura das aspas, por sua vez, também pode
ser  — mas nem sempre é  — associada a gura do travessão
(Gendankenstrich), que, entre seus vários usos, cumpre a função de
marcar uma mudança de voz.
No Werther, tomando aqui por base as edições críticas da dkv e da
ub,* o travessão é o único recurso de que o autor se vale para fazer

qualquer forma de marcação do diálogo, destacando as mudanças de


voz, mas sem se servir da marcação adicional e convencional das
aspas, que colocam em destaque o discurso direto. Assim, ao abrir
mão de um corte mais preciso entre as vozes, acentua-se, no texto, a
impressão de certa indistinção entre as diferentes vozes da narrativa, o
que corrobora a hipótese de que o texto wertheriano erta com a
própria impossibilidade de se fazer esse corte de um modo mais
preciso na língua  — no sentido de que, olhando qualquer cena de
longe, sempre é possível fazer essa distinção de quem fala num
diálogo, mas, quanto mais fechamos o foco, mais difícil é saber quem
de fato fala quando alguém fala, uma questão que se torna ainda mais
complexa quando toda a narrativa se estrutura sob a forma de cartas
escritas sempre pelo mesmo “personagem”.
Para além desse uso como marcação de mudança de voz nos
diálogos, a gura do travessão desempenha ainda uma série de outras
funções importantes na construção da textualidade do Werther. Além
de comentada pela crítica, a centralidade do uso do travessão é
tematizada (ironicamente) no próprio corpo da narrativa, a exemplo
do que ocorre na carta de 10 de outubro. Ao longo do romance, o
travessão marca uma espécie de inacabamento e de suspensão forçosa
do dito, quando parece sumirem as palavras numa frase quebrada ou
faltar a pontuação necessária para arrematar o seu sentido, e marca
também uma forma de inter-calar diversos ditos, que se sobrepõem —
não apenas como ditos diferentes que cortam o tempo narrativo, mas
também como tempos diferentes do dito  — para dizer algo na soma
de tudo o que se cala, para dizer algo que transcende aos limites do
dito.
As traduções do Werther para o português lidam das formas mais
diversas com o travessão. Quando se trata da marcação de alguma
forma de corte, inacabamento ou suspensão, as traduções costumam
preferir a gura das reticências. Já quando o uso do travessão parece
cumprir o m de intercalar alguma outra ideia, é tão comum a
manutenção do travessão quanto a reestruturação sintática do período
ou a substituição por alguma outra forma de pontuação.
Ora, sempre que o uso da pontuação na construção de uma obra se
dá de modo estritamente convencional  — e, portanto, não
marcado  —, costuma-se traduzir o que é convencional na obra de
partida por alguma forma de convenção válida na língua de chegada:
seja dispondo dos recursos tradicionais de nossa língua portuguesa
(como já nos ensinava Paulo Rónai),** seja emulando a convenção de
uma língua estrangeira. O caso do Werther, nas edições tomadas aqui
por base, caracteriza um desvio da mera convenção, uma vez que, em
vez de se valer de diferentes sinais de pontuação para explicitar cada
efeito pretendido (a suspensão do dito, a intercalação de uma ideia, a
mudança de voz, a inscrição de um outro tempo etc.), o autor se serve
de uma única gura, a do travessão, para cumprir as mais diversas
funções. Esse dado, por mais divergente que seja entre as diferentes
tradições de edição do texto, reforça a hipótese de que a narrativa
alemã se constrói menos na chave de uma preocupação convencional
com certa legibilidade geral do texto do que com a dramatização de
um efeito geral de vagueza e indistinção, que, nesse sentido,
performaria certa compreensão da linguagem  — talvez fosse melhor
dizer: certa descon ança diante da linguagem  — tematizada pelo
próprio protagonista.
Esta tradução, em vez de desdobrar o Gendankenstrich goetheano
em reticências, dois-pontos, quebras de período etc., opta por
concentrar, na gura do travessão, a marcação de suas diferentes
funções em português, reproduzindo, assim, um efeito análogo à
indistinção que dramatiza os limites da linguagem (na comunicação
cotidiana, na expressão dos sentimentos e nas mais altas formas da
arte verbal) em várias passagens da obra em alemão.
O tradutor, desejando que os caminhos da reconstrução deste
Werther se multipliquem em caminhos de leitura, assenta aqui seu
ponto nal —

Morretes, 11 de fevereiro de 2021


* Cabe observar, no entanto, que a Hamburger Ausgabe, por exemplo, faz uma opção
sistemática pela explicitação do discurso direto com as aspas invertidas.

** Paulo Rónai, A tradução vivida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, pp. 73-4.
primeiro livro
Reuni com cuidado e apresento-lhes, aqui, tudo o que pude encontrar
da história do pobre Werther; sei que vocês me agradecerão por isso.
Não se furtem a estimá-lo e a admirá-lo por seu caráter e seu espírito,
nem lhe neguem as lágrimas em razão de seu destino.
E quanto a você, boa alma, que também sente como ele esse mesmo
ímpeto, faça dos sofrimentos dele o teu lenitivo e deixe que este
pequeno livro se torne teu amigo, caso — por sina ou por tua própria
culpa — você não consiga encontrar outro mais próximo!
4 de maio de 1771
Como estou feliz por ter ido embora! Mas que coisa é o coração
humano, meu caro amigo! Afastar-me de ti, de quem eu gosto tanto,
de quem eu era inseparável, e ainda assim estar feliz! Sei bem que você
me perdoa. Não terá o destino escolhido a dedo minhas demais
relações, com o simples propósito de angustiar um coração como o
meu? Pobre Leonore! Mas eu não tive culpa. O que é que eu podia
fazer, se uma paixão começava a se formar naquele pobre coração ao
mesmo tempo que me divertiam os caprichos encantadores de sua
irmã? Mas eu — será mesmo que não tenho culpa alguma? Não terei
eu alimentado seus sentimentos? Não terei me deixado encantar por
aquelas expressões tão genuínas de sua natureza, que nos zeram rir
tantas vezes, por menos risíveis que fossem? Não terei eu  — ah, que
coisa é o ser humano, que ca se queixando de si mesmo! Eu quero,
caro amigo, eu te prometo, quero melhorar, não quero mais car
ruminando esses poucos infortúnios que o destino nos impõe, como eu
sempre z; quero aproveitar o presente e deixar o que passou virar
passado. Você tem toda a razão, meu caro, o sofrimento seria muito
menor entre as pessoas se elas simplesmente tentassem suportar a
indiferença do presente, em vez de empenharem tanto sua imaginação
para remoer as lembranças dos infortúnios passados — sabe deus por
que elas foram feitas assim!
Diga à minha mãe, por favor, que resolverei seus assuntos da
melhor forma possível e que em breve lhe darei notícias. Fui ter com
minha tia, e ela nem de longe se parece com a mulher maldosa de
quem nos falavam lá em casa. É uma mulher animada, cheia de vida e
com um coração enorme. Expliquei-lhe as reclamações de minha mãe
a propósito da parte que lhe caberia na herança e que ainda não lhe
havia sido repassada; ela explicou-me suas razões, deu-me suas
justi cativas e também as condições sob as quais ela estaria disposta a
abrir mão de tudo, e até de um pouco mais do que reclamávamos.
En m, não vou entrar em detalhes aqui; apenas diga à minha mãe que
tudo correrá bem. Meu caro, esse pequeno imbróglio me mostrou,
mais uma vez, que os mal-entendidos e a falta de disposição talvez
causem mais confusão no mundo do que a malícia e os ardis. Estes, ao
menos, são certamente bem mais raros do que aqueles.
No mais, estou muito bem por aqui. A solidão é um bálsamo
precioso para o meu coração neste lugar paradisíaco, e esta época do
ano, com o viço e toda a exuberância da estação, aquece meu coração
tão frequentemente estremecido. Cada árvore, cada cerca viva é um
buquê de in orescências, e dá vontade de virar um besouro, para sair
voando por cada canto desse oceano de fragrâncias e descobrir nele
todo o seu alimento.
A cidade, em si, não tem nada de agradável, ao contrário de seus
arredores, de uma beleza natural indescritível. Foi isso que moveu o
falecido conde M… a fazer seu jardim no alto de uma dessas tantas
colinas que, entrecortando-se dos modos mais belamente variados,
vão dando forma aos vales mais adoráveis. O jardim é simples, e, logo
à sua entrada, temos a sensação de que ele não foi planejado apenas
por um jardineiro com ciência de seu ofício, mas sim por um coração
sensível, desejoso ele mesmo de desfrutar daquele lugar. Em memória
do nado, derramei já algumas boas lágrimas no que restou do
pequeno caramanchão, que um dia foi seu local predileto e que agora
é o meu. Em breve me tornarei senhor desse jardim; estou aqui há
poucos dias, mas o jardineiro já se demonstrou atencioso comigo, e ele
não há de se arrepender disso.

10 de maio
Minha alma foi inteiramente tomada por uma serenidade
maravilhosa, comparável à das doces manhãs de primavera, de que eu
gosto de desfrutar com todo o coração. Estou só, e como me alegro
com a vida neste lugar criado para almas como a minha. Estou tão
feliz, meu caro, tão inteiramente imerso nessa sensação de existir de
modo tão tranquilo, que minha arte acaba sofrendo com isso. Neste
exato momento, eu não seria capaz de desenhar coisa alguma, nem
mesmo um único traço, embora nunca tenha me sentido um pintor tão
grandioso quanto agora. Quando este vale adorável começa a bafejar
seus alentos ao meu redor, o sol alto repousa na superfície
impenetrável da escuridão de minhas matas e somente alguns poucos
raios se insinuam no interior do santuário; quando, deitado em meio à
grama alta à beira de um córrego, e então mais rente à terra, a
variedade sem m das milhares de plantinhas chama minha atenção;
quando sinto mais perto de meu coração o pulular desse pequeno
mundo entre os caules e as formas incontáveis e inescrutáveis dos mais
minúsculos vermes e insetos; quando sinto a presença do todo-
poderoso, que nos criou à sua semelhança, e sinto o sopro daquele que
ama a tudo e a todos, que nos enleva e nos sustenta nos ares de uma
alegria sem m; meu amigo, quando, no entorno de meus olhos, o
mundo começa a se pôr e o céu inteiro e tudo ao meu redor se aninha
em minha alma, feito a gura de uma mulher amada; aí então, não
raro, suspiro e penso comigo: ah, se você pudesse dar expressão a isso
tudo, se você pudesse insu ar, numa folha de papel, isso tudo que você
vive em ti tão plenamente, tão ardorosamente, de modo que a folha se
tornasse espelho de tua alma, assim como tua alma é espelho do deus
in nito! — Meu amigo — Mas eu sucumbo diante disso, não resisto à
força esplendorosa dessas manifestações.

12 de maio
Não sei se espíritos enganadores andam assombrando essa região ou
se é a fantasia ardente e sublime em meu coração que torna tudo ao
meu redor tão paradisíaco. Pouco antes de chegar ao vilarejo há uma
fonte, uma fonte que me atrai como que por encanto, assim como a
fonte de Melusina1 e suas irmãs.  — Você vai descendo a encosta de
um pequeno morro até se ver diante de uma arcada. Dali são mais
pelo menos vinte degraus até o fundo da gruta, onde a mais límpida
das águas brota do mármore bruto. A amurada baixa que cerca a
entrada na parte de cima, as árvores altas que cobrem todo o entorno,
o frescor do local: isso tudo tem algo que fascina e horripila. Não
passo um dia sequer sem car sentado ali por pelo menos uma hora.
Vejo então as moças do vilarejo, que vêm buscar água, a tarefa mais
inofensiva e a mais necessária, que em outros tempos era levada a
cabo pelas próprias lhas dos reis. Quando eu me sento nesse lugar, os
ares patriarcais2 parecem ganhar vida ao meu redor, e eu vivo de novo
o modo como eles todos, os antigos patriarcas, costumavam conhecer
e cortejar as moças à beira das fontes, mas revivo também o modo
como os espíritos benfazejos pairavam em volta das fontes e dos
olhos-d’água. Ah, só não é capaz de sentir o que estou sentindo aquele
que nunca matou sua sede com o frescor das águas de uma fonte
depois de uma caminhada fatigante num dia de verão.

13 de maio
Você quer saber se deve ou não me enviar meus livros? — Caro, eu te
peço, pelo amor de deus, que me mantenha longe deles! Não quero
mais ser guiado, encorajado, incitado: este coração já ferve o su ciente
por si mesmo. Preciso é de canções que me acalentem, e estas eu
encontro em abundância no meu Homero. Sabe quantas vezes tenho
de dar alento ao meu sangue revolto até que ele se acalme? Você
nunca há de ter visto nada tão desigual e tão instável como este
coração. Mas, meu caro, será que preciso dizer isso justo para ti, que
por mais de uma vez já arcou com o peso de me ver variar da euma
aos excessos mais sanguíneos, da doce melancolia à paixão mais
avassaladora? Cuido do meu coraçãozinho como de uma criança
enferma, satisfazendo-lhe todas as vontades. Só não conte isso a
ninguém, há quem possa me levar a mal por isso.

15 de maio
As pessoas simples do vilarejo já me conhecem e parecem gostar de
mim, sobretudo as crianças. Como me aproximei delas logo de início,
perguntando-lhes gentilmente sobre isso e aquilo, algumas delas
acharam que eu estava de brincadeira e acabaram me dispensando de
modo um tanto grosseiro. Mas eu não me deixei abalar, apenas senti
na carne o que já havia percebido algumas outras vezes: pessoas de
classes mais altas vão sempre se manter friamente distantes do povo
mais simples, como se acreditassem perder algo com a aproximação;
claro que há também aqueles bobocas levianos e maldosos, que dão a
impressão de querer se aproximar das classes mais baixas, mas o
fazem apenas para que o povo pobre se sinta ainda mais vulnerável
diante de sua arrogância.
Sei bem que não somos e nem podemos ser todos iguais, mas sou da
opinião de que aquele que, para manter o respeito, julga necessário se
distanciar da chamada arraia-miúda é tão repreensível quanto um
covarde que se esconde de seu inimigo por ter medo de ser vencido.
Um dia desses fui até a fonte e encontrei uma jovem criada, que
havia repousado seu pote de água no primeiro degrau ao pé da escada
e olhava à sua volta, para ver se alguma de suas colegas não vinha
ajudá-la a colocar o pote de volta sobre a cabeça. Desci até a fonte e
olhei para ela.  — Posso lhe ajudar, moça?  — perguntei. Ela foi
corando, corando. — Mas, meu senhor! — disse ela. — Não me custa
nada.  — Ela ajeitou a rodilha de pano na cabeça e eu a ajudei. Ela
agradeceu e subiu escada acima.

17 de maio
Conheci pessoas de todo tipo por aqui, mas companhia, de fato, eu
ainda não encontrei. Não sei o que há em mim que parece atrair as
pessoas; algumas delas simpatizam comigo e acabam se apegando a
mim, de modo que sempre me dói um pouco quando nossos caminhos
têm de se separar depois de certo tempo. Se você me perguntar como
são as pessoas daqui, só o que posso te responder é: como em
qualquer outro lugar. O ser humano tem mesmo algo de uniforme. A
maioria das pessoas passa grande parte de seu tempo se esforçando
para viver, e o pouco tempo de liberdade que lhes sobra causa
tamanha angústia que elas fazem de tudo para se livrar dele. Oh,
destinação humana!
Mas que gente boa, esta daqui! E quando eu às vezes nem mais me
dou conta de mim, quando às vezes partilho com eles daquelas
alegrias que ainda se concedem às pessoas, como a de car se
divertindo de modo solto e espontâneo ao redor de uma mesa bem
servida, de organizar oportunamente um passeio, uma dança ou algo
semelhante, ah, como isso me faz bem; só não posso me lembrar,
então, das várias outras forças que me habitam e que, por estarem em
desuso, vão apodrecendo e tenho de ir ocultando cuidadosamente.
Como isso me aperta o coração! — Mas, claro, ser incompreendido é
o destino de cada um de nós!
Ah, por que é que minha amiga de juventude não está mais aqui? E
por que é que eu a conheci? — Eu responderia a mim mesmo: você é
um tolo, você está em busca de algo que não pode ser encontrado
neste mundo! Mas eu a tive ao meu lado, senti aquele coração, aquela
alma imensa, em cuja presença eu tinha a impressão de ser mais do
que eu era, simplesmente porque eu era tudo o que podia ser. Meu
bom deus, terei eu, então, deixado de me valer de uma única de
minhas forças sequer? Terei eu sido incapaz de revelar-lhe totalmente a
sensação maravilhosa com a qual meu coração procura compreender a
natureza? Não terá nossa relação tecido uma trama sem m dos mais
re nados sentimentos, dos mais impetuosos arroubos, cujas variações,
mesmo beirando a indelicadeza, eram sempre marcadas com o selo do
gênio? E agora! — Ah, os anos a mais que ela tinha levaram-na antes
para o túmulo do que a mim. Nunca esquecerei dela, nem de sua
rmeza de espírito, nem de sua prodigiosa paciência.
Há alguns dias cruzei com o jovem V…, rapaz muito espontâneo e
de feição bastante feliz. Recém-saído da universidade, não se presumia
exatamente sábio, mas achava que sabia mais do que os outros. Havia
de ser também aplicado, como logo pude perceber; en m, tinha algum
conhecimento das coisas. Assim que ele soube que eu costumava
desenhar e que sabia grego (duas sensações meteóricas por aqui), o
rapaz se dirigiu a mim e começou a des ar todo o seu saber, de
Batteux a Wood, de De Piles a Winckelmann, assegurando-me que já
havia lido toda a primeira parte da teoria da arte de Sulzer e que seria
o possuidor de um manuscrito de Heyne sobre o estudo da
Antiguidade.3 Deixei-o falar à vontade.
Conheci também o superintendente, responsável pela administração
geral da região,4 uma pessoa generosa e leal, um bom homem. Dizem
que é uma alegria vê-lo na companhia de seus lhos, que contam nove
ao todo; mas é de sua lha mais velha que mais costumam falar. Ele já
me convidou para ir a sua casa, e devo visitá-lo nos próximos dias.
Moram numa das residências de caça do príncipe, a cerca de hora e
meia daqui, para onde obteve a permissão de se mudar depois que a
esposa faleceu, uma vez que a permanência em sua antiga residência
o cial, aqui na cidade, trazia-lhe muito sofrimento.
Além disso, acabei cruzando ainda com alguns indivíduos que são
versões falseadas de seus originais, nos quais tudo me parece
insuportável, mas nada mais intolerável do que suas demonstrações de
amizade.
Até mais, meu caro! Acho que você vai gostar desta carta, ela é toda
objetiva e factual.

22 de maio
A ideia de que a vida do ser humano seja apenas um sonho já foi
cogitada por outros antes, e é uma sensação que também há muito me
acompanha. Quando penso nas limitações que aprisionam a
capacidade de ação e de investigação do ser humano; quando percebo
que todos os nossos atos não cumprem senão o objetivo de satisfazer
uma série de necessidades que, em si mesmas, não têm sentido algum,
a não ser o de prolongar nossa pobre existência; e quando vejo que
toda contemporização de certas questões que nos mobilizam não
passa de mera resignação sonhadora, pois não fazemos mais que
enfeitar as paredes de nossa própria prisão com ilustrações coloridas e
perspectivas lúcidas  — quando me dou conta disso tudo, Wilhelm,
simplesmente me calo. Eu me volto para mim mesmo e descubro um
mundo! Mas um mundo que é feito mais de pressentimentos e de
desejos obscuros do que de demonstrações e de força viva.5 Aí, então,
tudo passeia diante de meus sentidos, e, mergulhado nesse mundo,
sorrio e sigo sonhando.
A ideia de que as crianças não saibam o porquê de suas vontades é
consensual entre todos os professores e preceptores mais bem
instruídos; mas pensar que, como as crianças, também os adultos
andem cambaios por este mundo, não saibam de onde vêm nem para
onde vão, não ajam segundo propósitos genuínos e, como as crianças,
também só se deixem guiar por biscoitos, bolinhos e varas de
marmelo: nisso ninguém gosta muito de acreditar, por mais que me
pareça tão evidente.
Não me importo em te dar razão, já antecipando aqui o que você
haveria de me dizer a esse respeito: as pessoas mais felizes são mesmo
aquelas que, como as crianças, vivem sempre um dia de cada vez,
arrastam consigo suas bonecas de um lado para o outro, vestindo-as e
despindo-as continuamente, e cam rondando aquela respeitável
gaveta de armário, onde a mamãe costuma guardar os doces; e
quando por m logram obter o que tanto desejam, regalam-se de boca
cheia e dizem: — Mais! — Estas são criaturas felizes. Mas também são
felizes aqueles que dão títulos gloriosos às suas lumpesinagens ou até
mesmo aos seus arroubos passionais, tomando-os por grandes feitos,
como se eles de fato contribuíssem para a salvação e o bem-estar de
toda a humanidade.  — Feliz daquele que é capaz de ser assim! No
entanto, aquele que reconhece com humildade aonde isso tudo vai dar,
aquele que enxerga o modo conformado com que cada cidadão, que
anda de bem com a vida, cuida de seu jardim até transformá-lo num
pequeno paraíso e percebe que também o indivíduo infeliz, por mais
exausto que esteja, continua insistindo em carregar seu fardo — todos
igualmente interessados em vislumbrar a luz deste sol por pelo menos
mais um minuto: este, sim, ca calado, constrói também seu mundo a
partir de si mesmo e é feliz, simplesmente porque é um ser humano. E
então, apesar de todas as limitações de sua condição, ele ainda
continua alimentando em seu peito a doce sensação de liberdade, bem
como a ideia de que pode deixar esta prisão assim que quiser.

26 de maio
Você já conhece bem esse meu jeito de chegar e ir me estabelecendo
nos lugares, de procurar um cantinho simples e reservado e de logo me
acomodar no local, a despeito de qualquer limitação. Pois também
aqui eu consegui encontrar de novo um lugarzinho que me cativou.
A cerca de uma hora da cidade, há um vilarejo que as pessoas
chamam pelo nome de Wahlheim.* Situado na encosta de uma colina,
sua localização é das mais interessantes, e quando seguimos pelo
caminho vilarejo afora, temos, lá de cima, a vista de todo o vale. A
dona da hospedaria, mulher simpática, bastante animada e prestativa
para sua idade, serve vinho, cerveja, café; mas o que mais chama a
atenção ali são as duas grandes tílias que, de braços bem abertos,
cobrem o pequeno pátio em frente à igreja, circundado ainda por
casas rústicas e seus quintais, paióis, celeiros. Não é em qualquer lugar
que se encontra uma pracinha assim tão reservada e acolhedora; pedi
que me trouxessem da hospedaria uma mesinha e uma cadeira, e co
ali, bebendo meu café, lendo meu Homero. A primeira vez que, numa
tarde linda, o acaso me levou até a sombra daquelas tílias, encontrei a
pracinha deserta. Estavam todos trabalhando no campo. Só havia por
ali um menino de mais ou menos quatro anos; sentado no chão, ele
abraçava contra o peito outra criança, de cerca de seis meses de idade,
que, sentada em seu colo, servia-se do mais velho como poltrona e
parecia bastante tranquila, não obstante a vitalidade irradiada
daqueles olhos negros que tudo viam ao seu redor. Ao observar
aqueles dois, fui tomado por uma sensação de comprazimento: sentei-
me então sobre um arado que estava logo à minha frente, e foi com
muito gosto que comecei a desenhar aquela cena fraternal. Acrescentei
ainda ao desenho a cerca mais próxima, o portão de um paiol e
algumas rodas quebradas de carroça, cada coisa em seu plano, bem
como eu as avistava dali, e achei que, depois de uma hora de trabalho,
consegui produzir um desenho bem organizado e muito interessante,
sem que, para tanto, eu tivesse de inventar qualquer coisa a mais; isso
me deu forças para seguir com o meu propósito de, a partir de então,
concentrar minha atenção apenas na natureza. Só ela é in nitamente
rica e só ela é capaz de formar o grande artista. É claro que há muito
o que dizer em favor das regras, assim como sempre há o que elogiar
numa sociedade civilizada. Uma pessoa que é talhada segundo as
regras nunca há de produzir algo ruim ou de mau gosto, assim como
aquele que se deixa moldar pelas leis e pela civilidade nunca há de se
tornar um vizinho insuportável nem um malfeitor de marca maior; em
contrapartida, todas as regras, não importa o que delas se diga,
sempre acabam corrompendo a verdadeira sensação da natureza e sua
expressão mais autêntica! Você vai me dizer: — Isso é muito radical!
Regras impõem apenas limites, não fazem mais que aparar os ramos
mais selvagens da videira etc.  — Meu bom amigo, permita-me fazer
uma comparação. Isso é como no amor. Um jovem coração se
enamora perdidamente de uma moça, passa todas as horas de seu dia
ao lado dela, desperdiça com ela todas as suas forças, todas as suas
posses, e o faz apenas para poder lhe dizer, a cada instante, que ele é
todinho dela. Aí surge um listeu, cidadão de alto cargo público, e diz
a ele: — Meu jovem e garboso senhor, amar é humano, mas é preciso
aprender a amar humanamente! Divida as horas de seu dia, deixando
uma parte para o trabalho. As horas livres, estas o senhor pode
dedicar a sua amada. Calcule suas posses, e, com aquilo que sobrar,
uma vez descontadas as necessidades, não o censurarei por comprar
presentes; só não o faça com tanta frequência, quiçá por ocasião de
um aniversário, no dia de seu santo etc. — Seguindo esse conselho, o
jovem decerto se tornará um cidadão de grande serventia, e eu mesmo
farei questão de recomendá-lo aos soberanos, para que ocupe assento
nos mais altos cargos públicos; quanto ao amor, porém, este já era, e
se acaso ele for um artista, eis também o m de sua arte. Ah, meus
amigos, vocês sabem por que é que a torrente impetuosa do gênio
rebenta tão raramente? Por que é tão raro que ela transborde aos
borbotões e chegue a estremecer as almas pasmas de cada um de
vocês?  — Meus caros, acontece que as duas margens desse rio são
habitadas por homens moderados, cujos jardins, canteiros e hortas
iriam todos por água abaixo não fossem suas represas e eclusas, com
que eles sabem se proteger dos perigos iminentes que sempre os
ameaçam.
27 de maio
Percebo agora que me deixei levar pelo entusiasmo, pelas
comparações e pelo tom dramático, esquecendo-me de te contar que
m tiveram aquelas duas crianças. Continuei sentado sobre o meu
arado por umas boas duas horas, completamente imerso na sensação
pitoresca daquela cena que a minha carta de ontem descreve muito
fragmentariamente. Ao cair da tarde, apareceu ali uma jovem senhora
com uma cesta debaixo do braço; ela chamou de longe as crianças,
que ainda se encontravam sentadas naquela mesma posição:  —
Philipps, mas que bom menino!  — A mulher me cumprimentou,
retribuí-lhe agradecido, levantei-me e cheguei mais perto,
perguntando-lhe se ela era a mãe daqueles meninos. Fez que sim e, ao
mesmo tempo que deu ao maior um pedaço de pão, tomou o menor
em seus braços e beijou-o com toda a maternidade do seu carinho. —
Pedi ao meu Philipps  — disse ela  — que cuidasse do pequeno e,
enquanto isso, fui até a cidade com o meu mais velho buscar pão
branco e açúcar, e também uma panelinha de barro nova. — Vi esses
itens todos em sua cesta, cuja tampa havia caído. — Quero ver se, à
noite, faço uma sopinha para o meu Hans (este era o nome do mais
novo); pois não é que ontem o mais velho, esse arteiro, foi me quebrar
a panelinha enquanto brigava com Philipps pela raspa do mingau. —
Perguntei então pelo mais velho, e ela mal acabara de me dizer que ele
ainda devia estar correndo pelo pasto atrás de um par de gansos,
quando o menino chegou todo saltitante, trazendo para seu irmão do
meio uma varinha de aveleira. Continuei conversando com a mulher.
Descobri que ela era lha do professor do vilarejo e que seu marido
havia viajado para a Suíça, atrás da herança de um primo.  — Eles
tentaram enganar meu marido  — disse ela  —, e simplesmente não
responderam as cartas dele; aí ele resolveu ir até lá pessoalmente. Só
espero que nada de ruim tenha acontecido, faz tempo que não tenho
notícias. — Foi difícil me despedir daquela mulher. Dei um tostão6 a
cada uma das crianças e mais um à mãe, para que, quando ela voltasse
à cidade, trouxesse um pãozinho também para a sopa do mais novo.
E, assim, cada um nalmente tomou o seu rumo.
Uma coisa eu te digo, meu querido amigo, quando meus sentidos
não querem mais dar conta das coisas, a agitação em mim ca de todo
remediada com a visão de uma criatura como esta, que, na alegria de
seu sossego, segue o circuito estreito de sua existência, vive cada dia
como pode, vê as folhas das árvores caírem e, diante disso, não pensa
em mais nada, senão que outro inverno já se aproxima.
Desde então, tenho estado com frequência nesse lugar. As crianças
parecem estar se acostumando com a minha presença. Quando tomo
meu café, elas ganham um torrão de açúcar, e, ao cair da tarde,
dividimos o pão com manteiga e a coalhada. Aos domingos, nunca
cam sem a sua moeda, e caso eu não consiga estar lá depois da igreja,
a dona da hospedaria tem ordens minhas para dar a cada um o seu
tostão de direito.
A essa altura, já ganhei sua con ança; elas me contam todo tipo de
coisa, mas o que mais me entretém é o seu jeito fervoroso e o modo
como se manifestam seus mais simples arroubos de desejo,
especialmente quando outras crianças do vilarejo vêm se juntar a nós.
Foi só com muito custo que consegui livrar a mãe daquela sua
preocupação de que as crianças pudessem estar “estorvando este
senhor”.

30 de maio
Aquilo que eu vinha te falando, um dia desses, sobre a pintura, vale
também, por certo, para a poesia: tudo é uma questão de identi car o
que há de excepcional e de ousar dizê-lo, o que, sem dúvida, é dizer
muito com muito pouco. Hoje mesmo vivenciei uma cena que, se
transcrita de modo apurado, daria o mais belo idílio deste mundo.
Mas para que poesia, cena, idílio? Será que precisamos sempre desses
artifícios para falar de nosso interesse por algo que se manifesta tão
naturalmente?
Se, ao ler essas palavras de abertura, você achou que algo de
grandioso e so sticado pudesse vir logo em seguida, sinto te dizer, mas
você se enganou de novo; foi apenas um jovem camponês que me
suscitou essas impressões mais vivas — eu, como de costume, vou te
contar tudo deste meu jeito malparado, e você, como de costume, vai
achar, penso eu, que tudo não passa de exagero; de novo é Wahlheim,
e sempre Wahlheim, que me propicia essas experiências tão
particularmente raras.
Sentado ao ar livre, um grupo da alta sociedade tomava seu café sob
as tílias. Como não me sentia à vontade diante daquela gente, inventei
um pretexto qualquer para me manter afastado deles.
Saindo de uma das casas da vizinhança, um jovem camponês
aproximou-se e veio mexer naquele arado que eu havia desenhado no
outro dia. Como simpatizei com o rapaz, puxei conversa com ele,
perguntei um pouco sobre sua vida, e, como não é raro acontecer em
minhas relações com pessoas assim, mal havíamos nos conhecido e já
se estabeleceu entre nós certa proximidade. Ele não tardou em me
contar que trabalhava na casa de uma viúva e que ela o tratava muito
bem. Falou-me tanto dela e a exaltou de tal modo que não pude
deixar de notar que ele se dedicava a ela de corpo e alma. Disse-me
que ela não era mais tão jovem, que havia sido maltratada por seu
primeiro marido e que, em razão disso, não pretendia mais se casar. O
modo como ele falava dela deixava mais do que evidente o quanto ela
era bela e encantadora aos seus olhos e o quão profundamente ele
desejava que, um dia, ela o escolhesse para apagar a lembrança dos
erros cometidos por seu primeiro marido. Eu teria de repetir aqui tudo
de novo, palavra por palavra, para te dar uma impressão mais
apurada do afeto sincero, do amor e da lealdade desse homem. De
fato, seria preciso o talento de um grande poeta para conseguir passar
uma impressão realmente viva da força expressiva dos seus gestos, da
harmonia de sua voz e do ardor discreto que habitava seus olhares.
Não, a verdade é que nenhuma palavra seria capaz de traduzir o
carinho presente naquele seu jeito de ser e de se expressar, e não há
nada que eu possa dizer aqui que não seja senão uma reprodução
grosseira disso tudo. Em especial, comovia-me perceber o quanto ele
receava que eu zesse mau juízo daquele relacionamento e que eu
duvidasse das boas intenções da viúva. Só posso repetir para mim
mesmo, aqui no fundo de minha alma, o quanto era fascinante ouvi-lo
falar da gura, do corpo daquela mulher que, mesmo sem os encantos
da juventude, atraía-o ferozmente e tornava-o cativo. Nunca antes em
minha vida havia visto, manifestados assim com tanta pureza, um
desejo tão urgente e um querer tão ávido e ardoroso; mais que isso,
sou mesmo capaz de dizer que, manifestados assim, não pude antes
nem sequer imaginar ou sonhar nada igual. Não me censure quando te
digo que a lembrança dessa inocência verdadeira incandesce os
recônditos mais profundos de minha alma, que a imagem dessa
lealdade carinhosa me persegue agora por toda parte, e que eu mesmo,
como que igualmente incendiado por isso tudo, anseio e sofro.
Também eu quero vê-la agora, tão logo seja possível; pensando
bem, vou tentar não fazer isso. Melhor continuar a vê-la pelos olhos
daquele que a ama; a nal, é possível que, com meus próprios olhos, eu
a acabe vendo de um modo diferente deste que eu a imagino agora. E
por que é que eu haveria de estragar uma imagem assim tão bela?

16 de junho
Por que é que eu não te escrevo mais? — De nós dois, você é aquele
que sabe das coisas, e ainda assim você me pergunta? Você bem que
podia ter adivinhado que estou ótimo e que, por sinal — Resumindo,
conheci alguém que mexeu com meu coração. Eu — eu não sei.
Não vai ser tarefa fácil te contar, na ordem das coisas, como
aconteceu de eu conhecer uma das criaturas mais adoráveis deste
mundo. Estou animado e feliz, o que também quer dizer que não estou
muito para contar histórias.
Um anjo! — Ora, isso é o que todos dizem das suas, não é mesmo?
Seja como for, não tenho a menor condição de te explicar de que
modo e nem por que razão ela é perfeita; basta te dizer que ela fez
prisioneiro cada um dos meus sentidos.
Tamanha singeleza em meio a tanta inteligência, tamanha
generosidade em meio a tanta rmeza, e aquela serenidade de espírito
em meio a toda a agitação da vida real. —
Não, isso tudo não passa de um palavrório insigni cante, de
abstrações infelizes, que não expressam, dela mesma, nem um único
traço sequer. Quem sabe outra hora — Mas que outra hora, que nada,
vou te contar tudo agora mesmo. Ou eu faço isso já, ou não faço
nunca mais. Pois, cá entre nós, desde que comecei a escrever esta
carta, por três vezes já estive prestes a largar a pena, mandar selar meu
cavalo e sair a galope. E olha que, hoje cedo, jurei a mim mesmo que
não sairia para cavalgar; ainda assim, não consigo evitar de ir a todo
instante até a janela, só para ver por onde anda o sol. — — —
Não consegui resistir, tive de ir até ela. Mas aqui estou eu de novo,
Wilhelm, para comer meu pão com manteiga de toda noite e para te
escrever. Você não imagina a alegria que toma conta de minha alma
quando a vejo em meio aos seus oito irmãos e irmãs, crianças
adoráveis e cheias de vida! —
De fato, se continuo assim, você não saberá muito mais ao nal da
carta do que já sabe neste início. Então preste atenção, vou me
empenhar para te dar mais detalhes.
Pois não te escrevi, um dia desses, contando que havia conhecido
aquele senhor S…, o superintendente destas terras, e que ele havia me
convidado a lhe fazer uma visita, assim que possível, em seu recanto
de eremita, ou, melhor dizendo, em seu pequeno reino? Acabei não
pensando mais nisso e, não fosse o acaso me revelar o tesouro que se
escondia nesta região tão pacata, talvez nunca tivesse ido parar lá.
Alguns jovens daqui haviam organizado um baile campestre, do
qual eu logo me mostrei disposto a participar. Convidei como
acompanhante uma moça da localidade, gentil, bonita, mas nada além
disso, e combinamos que eu tomaria um coche para ir até o local da
festividade, que levaria comigo minha parceira de dança e sua prima e
que, no caminho, apanharíamos Charlotte S…  — O senhor está
prestes a conhecer uma bela dama  — disse minha acompanhante,
enquanto atravessávamos as amplas clareiras da mata desbastada em
direção à casa de caça.  — E o senhor tome cuidado  — completou a
prima  — para não acabar se apaixonando!  — Como assim?  —
perguntei.  — Ela já está comprometida  — respondeu  — com um
ótimo rapaz. Como seu pai morreu, ele viajou para cuidar de negócios
e para se candidatar a um cargo muito distinto e bem remunerado. —
A notícia não me despertou maior interesse.
Quando chegamos aos portões daquela propriedade de campo, o sol
ainda tinha um quarto de hora para começar a se deitar por trás dos
morros. Estava quente e abafado, e as damas manifestaram sua
preocupação com um possível temporal, anunciado nas nuvenzinhas
escuras e carregadas que assomavam no horizonte. Ostentando certo
conhecimento meteorológico, procurei distraí-las e tranquilizá-las,
embora eu mesmo já começasse a suspeitar que nossa festividade
sofreria um grande golpe.
Desci do coche, e uma criada logo veio até o portão, pedindo-nos
que aguardássemos mais um instante, pois que a senhorita Lotte já
estaria vindo. Atravessei o pátio em direção àquela construção tão
distinta e, depois de subir os degraus que conduziam à sua porta,
entrei e me vi diante de uma das cenas mais encantadoras que meus
olhos já puderam testemunhar. Na antessala da casa, seis crianças,
entre dois e onze anos, faziam o maior alvoroço ao redor de uma
moça de bela gura e estatura mediana, que trajava um vestido
simples, de cor branca, com laços rosados à altura do busto e nas
mangas. Ela segurava nas mãos uma broa preta, cortava um pedaço
para cada um dos pequeninos à sua volta, regulando a porção
conforme a idade e o apetite, e fazia essa distribuição com tanto
carinho que as crianças já cavam de bracinhos erguidos antes mesmo
de ganhar o seu pedaço, ao qual retribuíam muito naturalmente com o
seu “obrigado”. Satisfeitos com a porção que lhes cabia de lanche, uns
saíram dali mais saltitantes, outros mais sossegados  — conforme os
traços de seu temperamento mais ou menos tranquilo —, e correram
todos até o portão da casa para ver aquelas pessoas estranhas e
também o coche, com o qual sua Lotte estava em vias de partir.  —
Peço que me desculpe — disse ela — por tê-lo feito vir até aqui e por
deixar as outras damas esperando no coche. Entre me arrumar e
tomar todas as providências para poder me ausentar de casa, acabei
esquecendo de dar o lanche às minhas crianças, e elas não admitem
que ninguém além de mim corte o pão para elas.  — Fiz-lhe uma
mesura qualquer, mas minha alma pousava toda sua atenção sobre a
gura, o tom de voz e o jeito daquela moça; e foi só no que ela correu
até a sala para apanhar ainda as luvas e o leque que tive tempo para
me recuperar da surpresa que me assaltara. Os pequeninos me
olhavam de soslaio, mantendo certa distância. Eu me aproximei do
menor, que era uma criança com traços da mais ditosa felicidade; ele
recuou e, no mesmo instante, Lotte surgiu de novo à porta e lhe
disse: — Louis, dê a mão ao primo. — Pois foi bem isso que o menino
fez, agora sem reservas, e não pude deixar então de beijá-lo
carinhosamente, apesar daquele seu narizinho melecado. — Primo? —
disse eu, ao estender à moça minha mão. — Acha mesmo que eu seria
digno da felicidade de ser seu parente? — Oh — disse-me ela com um
sorriso brejeiro  —, nossa família é muito numerosa, e seria mesmo
uma pena se a sua pessoa fosse justamente o pior de todos nós. — Na
saída, incumbiu Sophie, a mais velha das irmãs depois dela mesma,
uma menina de mais ou menos onze anos, de cuidar bem de todas as
crianças e de cumprimentar o papai assim que ele retornasse de seu
passeio a cavalo. Aos pequeninos, disse-lhes que deveriam obedecer a
sua irmã Sophie como costumavam obedecer a ela mesma, o que
alguns deles prometeram de bom grado. No entanto, uma loirinha
mais atrevida, com seus seis anos de idade, replicou: — Mas ela não é
a nossa Lotte, é de você que a gente gosta mais. — Os dois meninos
mais velhos haviam trepado no coche e, atendendo ao meu pedido, a
moça permitiu que eles seguissem conosco até chegarmos à entrada da
mata, mas só se eles prometessem segurar bem rme e não car
provocando um ao outro.
Nem bem nos havíamos acomodado direito, as damas ainda se
cumprimentavam umas às outras, trocavam elogios sobre seus trajes,
com destaque às observações sobre seus chapéus, e falavam mal dos
convidados que esperavam encontrar na festa, quando Lotte pediu ao
cocheiro que zesse uma breve parada para que seus dois irmãos
pudessem saltar. Ambos quiseram beijar mais uma vez a mão da irmã,
o que o mais velho fez com toda a ternura que cabe a um rapazote de
quinze anos, e o mais novo repetiu, mas com mais energia e menos
cuidado. Ela ainda lhes pediu que levassem lembranças suas aos
pequeninos, e seguimos adiante.
A prima de minha parceira de dança perguntou se Lotte já havia
acabado de ler o livro que ela lhe mandara recentemente. — Não —
disse Lotte  —, não gostei do livro, pode car com ele. O anterior
também não era muito melhor.  — Fiquei admirado quando, ao
perguntar de que livros elas falavam, descobri que se referiam a …
** — Eu percebia muito de sua personalidade nas coisas que ela dizia,
via em cada palavra um novo encanto, via novos lampejos do espírito
irrompendo dos traços de seu rosto que, de pouco em pouco,
começava a ganhar feições de contentamento, pois ela sentia algo em
mim que a compreendia.
— Quando eu era mais nova — disse ela —, não havia nada de que
eu gostasse mais do que ler romances. Só deus sabe como era bom
quando, aos domingos, eu me sentava num cantinho qualquer e
participava, com todo meu coração, das alegrias e dos infortúnios de
uma Miss Jenny.7 Também não vou negar que esse tipo de leitura
ainda tenha algum encanto para mim, mas como hoje é tão raro eu ter
tempo para ler um livro, pre ro que eles sejam mais do meu gosto.
Entre os autores, costumo gostar mais daqueles em quem eu
reencontro meu próprio mundo, daqueles para quem as coisas
acontecem como elas acontecem ao meu redor e cujas histórias vão se
tornando tão interessantes e emocionantes como a vida na minha
própria casa, que certamente não é nenhum paraíso, mas que, no
conjunto da obra, é uma fonte indescritível de felicidade.
Fiz de tudo para dissimular a emoção que aquelas palavras
suscitavam em mim, mas é claro que não consegui me conter por
muito tempo, pois assim que a ouvi falando com tanta verdade,
embora sucintamente, de O vigário de Wake eld,8 de …*** — quei
completamente fora de mim, contei-lhe tudo o que eu sabia, e só mais
tarde, quando Lotte voltou a puxar conversa com as outras damas no
coche, fui me dar conta de que, aquele tempo todo, elas haviam cado
mudas, de olhos arregalados, como se não estivessem presentes ali. A
prima mediu-me mais de uma vez com o escárnio de seu olhar, mas
não lhe dei muita atenção.
A conversa chegou, então, aos prazeres da dança. — Se essa paixão
é uma falha — disse Lotte —, só tenho a lhes confessar, e com muito
prazer, que não conheço nada melhor que a dança. E quando estou de
cabeça cheia e tamborilo uma contradança no meu piano desa nado,
tudo ca bem de novo.
O quanto eu me deliciava com aqueles olhos negros ao
conversarmos, o quanto minha alma se deixava atrair por aqueles
lábios vibrantes e por seu rosto alegre e cheio de vida, o quanto eu,
mergulhado no sentido esplendoroso de sua fala, por vezes nem bem
ouvia as palavras que ela dizia!  — Disso tudo você certamente
conseguirá fazer alguma ideia, pois, a nal de contas, você me conhece.
En m, assim que chegamos ao local do baile, desci do coche como um
sonhador e, cercado de sonhos, senti-me tão perdido naquele mundo
crepuscular que mal percebi a música que, lá de cima, do salão
iluminado, vinha ressoando ao nosso encontro.
Dois cavalheiros, um de nome Audran e um certo N. N.  — mas
quem é que guarda todos os nomes! —, que eram os pares de dança
da prima e de Lotte, vieram nos receber à porta do coche e logo se
puseram a acompanhar suas damas, assim como também eu assumi a
companhia de meu par.
Dançamos todos ao som dos minuetos, encadeando um depois do
outro; tirei várias damas para dançar, e as menos agradáveis eram
justamente aquelas que não me concediam ocasião de nalizar a
dança. Lotte e seu par puxaram então uma contradança inglesa,9 e
você bem pode imaginar como quei contente quando ela se en leirou
diante de nós para começar o movimento seguinte. Você precisava ver
ela dançar! Sabe, ela faz isso com o coração todo, com a alma toda,
seu corpo inteiro numa só harmonia, tão descontraída, tão livre, como
se, na verdade, tudo no mundo se resumisse a isso, como se ela não
pensasse em mais nada, não sentisse mais nada; e não tenho a menor
dúvida de que, nesse exato momento, tudo o mais se esvai diante dela.
Convidei-a para a segunda contradança; ela me concedeu a terceira,
mas me garantiu, com a franqueza mais adorável do mundo, que
gostaria de dançar uma alemanda.10 — Parece que é moda por aqui —
continuou ela  — que os pares que vierem juntos ao baile quem
juntos na dança à moda alemã, e como o meu par valsa muito mal, ele
certamente cará agradecido se eu o desobrigar desse trabalho. Sua
dama também não é muito boa nisso e nem parece fazer muita
questão, mas vi, na contradança inglesa, que você valsa muito bem;
portanto, se quiser ser meu par na alemanda, vá até o cavalheiro que
me acompanha e peça a ele para dançar comigo, enquanto eu vou e
converso com a sua dama.  — Dei-lhe a mão em seguida e
combinamos que, nesse meio-tempo, o par dela caria entretendo a
minha acompanhante.
Nossa dança nalmente começou, e nos divertimos por algum
tempo com os mais diversos movimentos de braço. Com que graça,
com que leveza ela se movimentava! E quando chegamos à valsa e
começamos a girar, como se orbitássemos uns em torno dos outros,
deu-se, de início, alguma confusão, já que poucos conheciam bem
aquela dança. Fomos espertos o su ciente para deixar que os outros se
acalmassem, e quando os menos habilidosos liberaram a pista,
retornamos ainda mais animados e tomamos conta do salão, na
companhia de apenas mais um par, formado por Audran e sua
parceira. Nunca antes havia sentido meu corpo se mexer tão
levemente. Não me sentia mais humano. Ter aquela criatura adorável
em meus braços e com ela sair voando feito um pé de vento, até que
tudo ao derredor esvanecesse e — Wilhelm, para ser sincero, jurei ali a
mim mesmo que jamais deixaria dançar com outra pessoa uma moça
que eu amasse e com quem eu pretendesse me envolver mais
seriamente, mesmo que isso me levasse à ruína. Você sabe bem o que
eu quero dizer com isso, não?
Demos algumas voltas pelo salão, mas apenas andando, para
recuperarmos o fôlego. Ela então se sentou, e as laranjas, que eu havia
reservado para nós e eram também as últimas que trazia comigo,
tiveram um efeito revigorante; mas eu sentia como que uma pontada
no coração a cada pedacinho que ela repartia muito respeitosamente
com uma vizinha intrometida.
Na terceira contradança inglesa, formamos o segundo par.
Dançamos juntos toda a sequência, e só deus sabe o quão alegre quei
de tê-la em meus braços e poder olhá-la nos olhos, repletos da mais
verdadeira expressão de um prazer sincero e puro. Foi quando nos
aproximamos de uma mulher, cuja feição amável, num rosto não mais
tão jovem, já havia me chamado a atenção antes. Ao passarmos à sua
frente, ela olha para Lotte, sorri, levanta seu dedo ameaçador e
menciona duas vezes, de modo enfático, o nome Albert.
— Quem é Albert?  — perguntei a Lotte  —, se perguntar não for
atrevimento de minha parte.  — Ela estava em vias de me responder,
quando tivemos de nos separar para formar a grande corrente de oito;
ao cruzar por ela novamente, tive a impressão de perceber algo
maquinando em sua testa. — Não há por que não lhe contar — disse
ela, ao me oferecer a mão para fazermos a promenade. — Albert é um
ótimo rapaz, de quem eu estou, assim por dizer, noiva! — De fato, isso
não era nenhuma novidade (as moças já me haviam dito isso no
caminho), mas, de certa forma, era algo completamente novo, pois eu
ainda não havia relacionado tal informação a essa moça que, em tão
pouco tempo, já se tornara tão importante para mim. Pois foi o que
bastou: eu me confundi todo, perdi o pé de mim mesmo e acabei me
metendo no meio de outro par, atrapalhando a tudo e a todos, o que
custou a Lotte toda sua presença de espírito, mais alguns puxões de lá
e de cá, até que ela, muito agilmente, conseguisse deixar tudo em
ordem de novo.
A dança ainda seguia seu curso, quando os raios, que já havia
algum tempo avistávamos no horizonte e que eu sempre acreditara
serem apenas anúncio de uma frente fria, começaram a se intensi car,
e os trovões caram tão altos que mal se podia ouvir a música. Três
damas logo abandonaram a la, seguidas por seus respectivos
cavalheiros; a desordem foi generalizada e a música parou de vez. É
bastante natural que, quando surpreendidos por uma desgraça ou por
algo de ruim que nos estraga o prazer, quemos mais fortemente
impressionados com o acontecido do que de costume; um pouco em
razão da própria contrariedade, que nessas ocasiões é vivenciada de
forma mais intensa; um pouco, e talvez de modo mais decisivo,
porque nossos sentidos se encontram, então, abertos à percepção,
assimilando muito mais rápido as impressões. É a isso que tenho de
atribuir as mais extraordinárias caretas que vi surgirem nos
semblantes da maior parte das damas naquele salão. A mais esperta
foi se sentar num canto, de costas para a janela e com os ouvidos
tapados. Uma outra ajoelhou-se diante desta e tentava esconder a
cabeça em seu colo. Uma terceira meteu-se entre as duas, abraçando
suas irmãzinhas e envolvendo-as em seu mar de lágrimas. Algumas
queriam ir para casa; outras, que sabiam ainda menos o que fazer, não
reuniam condições su cientes nem mesmo para rechaçar as investidas
daqueles jovens atrevidos, que pareciam mais ocupados em tomar dos
lábios de suas belas damas as preces apavoradas que elas dirigiam aos
céus. Alguns dos cavalheiros haviam descido para fumar
sossegadamente seu cachimbo, e os demais convivas não se zeram de
rogados, quando a an triã teve a feliz ideia de nos conduzir a uma
sala com persianas e cortinas. Nem bem havíamos chegado ao novo
cômodo, Lotte já se ocupava de dispor as cadeiras em círculo; e assim
que, atendendo ao seu pedido, os convidados tomaram assento, ela
começou a nos explicar a brincadeira que queria propor.
Vi alguns dos rapazes esticarem seus braços e fazerem biquinho, na
expectativa de ganharem uma prenda apetitosa. — Vamos brincar de
contar — disse ela. — Agora prestem atenção! Vou andar em torno da
roda, da direita para a esquerda, e, enquanto eu vou passando por
vocês, cada um vai acompanhando o meu movimento e contando o
seu número, até a coisa pegar fogo; quem hesitar ou se confundir, leva
um tapa; e seguimos em frente, até chegarmos a mil.  — Como era
divertido ver aquilo. Com seu braço esticado, Lotte dava voltas em
torno do nosso círculo.  — Um  — começou o primeiro.  — Dois  —
continuou seu vizinho. — Três — disse o seguinte, e assim por diante.
Ela então começou a andar mais rápido, e cada vez mais rápido.
Quando um se confundiu, plaft! Foi-se um pé de ouvido, e enquanto
todos caíam na risada, já na vez do seguinte, outro plaft! E tudo cada
vez mais rápido. Eu mesmo levei pelo menos uns dois sopapos, e não
foi senão com certo prazer que acreditei ter a impressão de que os
meus eram sempre mais fortes do que os que ela costumava aplicar
nos outros. As gargalhadas e uma barulheira geral puseram m à
brincadeira, muito antes mesmo de chegarmos ao mil. O temporal
havia passado, os mais próximos foram formando pequenos grupos, e
eu me ofereci para acompanhar Lotte de volta ao salão. No caminho,
ela me disse:  — Com os tabefes e pés de ouvido, todos acabaram se
esquecendo do mau tempo e do resto!  — Não sabia o que lhe
responder.  — Eu era uma das mais apavoradas  — continuou ela  —,
mas assim que me z de destemida, para ver se passava um pouco de
coragem aos outros, acabei eu mesma me sentindo mais corajosa. —
Fomos até a janela. Os trovões ainda ressoavam ao longe, a chuva
rumorejava sobre os campos, e uma fragrância das mais refrescantes
rompia seu caminho até nós por entre as lufadas de ar quente.
Apoiada sobre seus cotovelos, o olhar de Lotte corria a paisagem,
olhando para o céu, olhando para mim; vi seus olhos marejarem, ela
colocou sua mão sobre a minha e disse:  — Klopstock!11  — Eu logo
me lembrei da ode12 esplendorosa que ela devia ter em mente e acabei
sucumbindo à torrente de sensações que a simples menção dessa
palavra de ordem derramou sobre mim. Não pude resistir, curvei-me
diante de sua mão e beijei-a debaixo de lágrimas carregadas de
felicidade. Então ergui novamente meus olhos, em busca dos seus  —
Nobre Klopstock! Se você pudesse ver naquela troca de olhares o
quanto te venerávamos! Ah, quem me dera, depois disso, nunca mais
ouvir dizer de novo teu nome, tão frequentemente profanado.

19 de junho
Não sei mais onde foi que parei com a minha narrativa; o que sei é
que eram duas horas da madrugada quando fui me deitar naquela
noite e que, se eu tivesse tido ocasião de te contar tudo pessoalmente,
em vez de escrever, por certo teria te mantido acordado até amanhecer.
Ainda não te contei o que aconteceu no caminho de volta do baile,
mas hoje também não tenho tempo para isso.
O nascer do sol foi espetacular! Ao nosso redor, a mata gotejando
seu orvalho, os campos refrescados pela chuva! Nossas companheiras
haviam pegado no sono. Lotte me perguntou se eu não queria fazer o
mesmo, dizendo-me que, por ela, eu poderia car despreocupado. —
Enquanto eu continuar vendo estes olhos abertos — disse eu, olhando
em seus olhos  —, não corro o menor risco de dormir.  — Ambos
aguentamos acordados até chegarmos à casa de caça. A criada veio
abrir o portão, cuidando para não fazer muito barulho; e,
respondendo às perguntas de Lotte, assegurou-lhe que seu pai e os
pequeninos estavam todos bem e dormindo. Eu a deixei à porta de
casa, mas não sem antes lhe pedir para vê-la novamente, ainda
naquele mesmo dia. Ela concordou e fui-me embora. Desde então, sol,
lua e estrelas que toquem seus negócios como quiserem, pois não faço
mais diferença entre dia e noite, e o mundo vai se esvaindo todo em
meu entorno.

21 de junho
Venho vivendo dias tão felizes quanto aqueles que deus há de ter
reservado somente aos seus santos; e aconteça o que acontecer, só não
poderei dizer que nunca tive o gosto de experimentar das alegrias, das
mais puras alegrias dessa vida. — Você já conhece a minha Wahlheim;
lá estou muito bem instalado, de lá não levo meia hora até a casa de
Lotte, lá me é dado sentir a mim mesmo e toda forma de felicidade
que se concede ao ser humano.
Quando escolhi Wahlheim como destino de minhas caminhadas,
mal podia eu imaginar que esse vilarejo casse tão perto do céu!
Quantas vezes, em minhas caminhadas mais longas, não avistei, ora
do alto de um morro, ora da planície rio acima, aquela casa de caça,
que encerra em si todos os meus desejos!
Caro Wilhelm, tenho pensado muito sobre o desejo que há no
homem de se espalhar por toda parte, de fazer novas descobertas, de
andar ao léu; mas também sobre aquela vontade mais íntima de se
entregar deliberadamente à limitação, de andar nos trilhos do que é
habitual e de não se importar muito com o que há nem à direita, nem
à esquerda.
É mesmo admirável: como eu costumava vir até aqui, cava
observando esse belo vale do alto da colina e já me sentia atraído por
tudo ao meu redor. — Olha lá aquele pequeno bosque! — Ah, se você
pudesse se misturar às sombras dele!  — Olha lá o topo da
montanha!  — Ah, se de lá você pudesse enxergar mais longe!  — E
esses morros encadeados um atrás do outro, e esses vales tão
convidativos! — Ah, se eu pudesse me perder entre eles! — — Eu saía
em busca disso e voltava, mas não encontrava o esperado. A distância,
para mim, é como o futuro! É uma imensidão crepuscular que se
impõe diante de nossa alma e em que se turvam tanto nossas
sensações quanto nossos olhos. Ah, e como ansiamos nos entregar
completamente a isso, deixando-nos preencher por toda a alegria de
um sentimento único, desmedido, maravilhoso!  — E quando saímos
em busca disso, quando o lá acaba se tornando o nosso aqui, todo
antes passa a ser como depois, e continuamos então na nossa miséria,
nessa condição limitada, mas nossa alma segue desejosa de um lenitivo
que a nós não cessa de nos escapar.
Assim, mesmo o mais inquieto dos vagamundos acaba um dia
desejando voltar para casa e encontra, no aconchego de sua morada,
nos seios de sua esposa, na companhia de seus lhos e no trabalho que
o sustenta, a alegria que fora buscar em vão nos con ns deste mundo.
Quando, ao raiar do sol, parto logo cedo em direção à minha
Wahlheim e lá, no jardim da hospedaria, colho eu mesmo minhas
ervilhas-tortas, acomodo-me num canto e começo a tirar seus apos,
enquanto vou lendo o meu Homero; quando, na pequena cozinha,
escolho uma panela, pego uma colher de manteiga, coloco as vagens
no fogo, tampo tudo e me sento ali ao lado, para mexer a panela de
quando em vez: pois bem, em momentos como esse eu me sinto tão
cheio de vida quanto os ousados pretendentes de Penélope,13 quando
estes abatiam, destrinchavam e assavam seus bois e porcos. Não há
nada que me replete mais de uma sensação assim tão verdadeira e
profunda quanto esses antigos vestígios da vida patriarcal, que dou
graças de conseguir entretecer em meu próprio modo de viver, mas
sem maiores afetações.
Como co contente em saber que meu coração é capaz de sentir as
formas mais simples e inocentes de alegria, como a do homem que põe
em sua mesa uma cabeça de repolho que ele mesmo plantou; e não se
trata apenas do repolho em si, mas de desfrutar de novo, nesse
momento único, do conjunto de alegrias de cada dia de seu cultivo, da
bela manhã em que ele o plantou, dos ns de tarde agradáveis em que
ele o irrigou e da satisfação de ir acompanhando aos poucos o seu
crescimento.

29 de junho
Anteontem, o médico da cidade veio ver o senhor S… e me encontrou
deitado no chão, cercado pelos irmãos de Lotte, que pulavam em cima
de mim e buliam comigo, enquanto eu lhes fazia cócegas e aprontava
com eles a maior bagunça. O doutor, uma dessas marionetes
extremamente dogmáticas, que, enquanto falava, não parava de
ajeitar o engomado dos punhos e de co ar seu rendado, considerou
que aquilo estava abaixo dos limites da dignidade de qualquer homem
razoável; foi o que pude deduzir com base no quanto ele torcia seu
nariz. Mas não me importei nem um pouco com isso, deixei-o com
seus arrazoados de alta monta e me pus a construir de novo o castelo
de cartas, que as crianças haviam acabado de pôr abaixo. Eu soube
que, depois disso, por onde quer que passasse, o médico não se
furtava a reclamar, dizendo que os lhos do administrador geral já
eram su cientemente mal-educados, não carecendo, portanto, de um
Werther que os acabasse de estragar.
Pois é, meu caro Wilhelm, de tudo que há neste mundo, é sempre
das crianças que meu coração se sente mais perto. Quando eu as
observo e percebo, nos menores gestos, os germens das tantas virtudes
e aptidões, que um dia lhes serão tão necessárias; quando entrevejo
nas teimas a futura rmeza e constância de caráter, nas manhas, o
desembaraço e o bom humor necessários para enfrentar os perigos do
mundo, e tudo isso num estágio ainda tão singelo, tão intocado! — aí
eu sempre, sempre repito as valorosas palavras de nosso mestre: “Se
não vos tornardes como uma destas!”.14 Mas acontece, meu caro, que
justamente essas crianças, que são como nós e deveríamos tomar
como nossos próprios modelos, nós as tratamos como subalternos.
Supomos que elas não tenham vontade própria!  — E por acaso nós
não a temos? Em que reside esse privilégio? — Só porque somos mais
velhos e mais razoáveis! — Oh, meu bom deus! Aí, do teu céu, o que
você vê são crianças mais novas e crianças mais velhas, e nada além
disso; e há muito que teu lho nos anunciou, quais são as que mais te
agradam. As pessoas acreditam nele, mas não lhe dão ouvidos  — a
velha história de sempre  —, e acabam educando seus lhos a sua
própria imagem e  — Até logo, Wilhelm! Não quero mais car
devaneando sobre isso.

1o de julho
Sinto em meu pobre coração — que se encontra agora em pior estado
do que alguns corações que, enfermos, andam sofrendo em seus leitos
de morte — exatamente aquilo que Lotte deve suscitar em alguém que
está doente. Ela vai passar alguns dias na cidade, na casa de uma
senhora muito distinta, que, segundo relatam os médicos, estaria
chegando ao seu m e, em seus últimos momentos de vida, gostaria de
ter Lotte ao seu lado. Na semana passada, fui com ela visitar um
pastor na vila de St…, um lugarejo na montanha, a cerca de uma hora
daqui. Chegamos lá por volta das quatro horas. Lotte havia levado
conosco sua segunda irmã mais velha. Quando entramos no pátio da
casa paroquial, inteiramente sombreado por duas nogueiras
frondosas, encontramos o velho e bom homem sentado no banco em
frente à porta, e, assim que ele viu Lotte, foi como se ganhasse um
novo sopro de vida, dispensou a bengala e ensaiou alguns passos em
sua direção. Ela foi logo ao seu encontro, fez com que ele se sentasse
novamente e, tomando assento ao seu lado, transmitiu ao pastor as
tantas lembranças enviadas por seu pai, ao mesmo tempo que fazia
um carinho no lho caçula, um garoto todo emporcalhado e nada
agradável, mimo temporão da velhice. Você tinha só que ver como ela
conseguia entreter o velho: erguia um pouco a voz, para que os
ouvidos quase surdos do ancião pudessem percebê-la, contava
histórias de jovens fortes e saudáveis que haviam morrido
inesperadamente, exaltava a qualidade das termas de Karlsbad e sua
decisão de passar lá o verão seguinte e lhe garantia, ainda, que o
achava melhor e muito mais animado do que por ocasião de sua
última visita.  — Nesse meio-tempo, eu já havia dado meus
cumprimentos à esposa do pastor. O velho estava bastante animado, e
como eu não pude deixar de elogiar as belas nogueiras que nos
ofereciam tão gentilmente sua sombra, ele começou a nos contar a
história delas, ainda que não o zesse sem alguma di culdade.  — A
mais velha  — disse ele  —, não sabemos quem foi que a plantou.
Alguns dizem que foi o pastor tal, há quem diga que foi outro. Já
aquela lá atrás, que é a mais nova, tem a idade de minha mulher,
cinquenta anos agora em outubro. Seu pai a plantou pela manhã, e ela
nasceu no nal daquele mesmo dia. Ele foi meu antecessor aqui nesta
paróquia, e nem lhe conto o quanto ele gostava dessa árvore; aliás,
também gosto muito dela. Minha mulher estava sentada a sua
sombra, tricotando, quando, há vinte e sete anos, entrei neste pátio
pela primeira vez, ainda como um pobre estudante.  — Lotte
perguntou por sua lha; o velho respondeu que ela e o senhor Schmidt
tinham ido ver os trabalhadores no campo, e continuou a nos contar
como seu antecessor começou a simpatizar com ele, depois também
sua lha, e como ele primeiro se tornara seu auxiliar15 e, mais tarde,
seu sucessor. A história mal havia terminado, quando, atravessando o
jardim, chegou a lha do pastor na companhia do assim chamado
senhor Schmidt. Ela cumprimentou Lotte calorosamente e, preciso
admitir, não me causou má impressão: uma moça morena, airosa e
bem crescida, que por certo faria boa companhia a qualquer um que
passasse uma temporada no campo. Seu namorado (pois foi nesses
termos que o senhor Schmidt se apresentou) era um rapaz no, mas
reservado, que preferia não se envolver em nossas conversas, por mais
que Lotte insistisse sempre em incluí-lo. O que começou então a me
incomodar foi a impressão de que, pelas expressões de seu rosto, ele se
comportava desse modo mais por ser presunçoso e mal-humorado do
que por qualquer outra limitação que lhe di cultasse a comunicação.
Infelizmente, isso não tardou em car mais do que claro, pois,
enquanto passeávamos, Friederike seguia ora ao lado de Lotte, ora
também ao meu lado, o que foi turvando de modo tão evidente o
semblante daquele senhor — por si só, já de tez algo castanha — que
Lotte sentiu ser a hora de me puxar pela manga e de me dar a
entender que eu estava sendo lisonjeiro demais com Friederike.
Acontece que não há nada que me aborreça mais do que essas pessoas
que cam atormentando os outros; pior ainda quando são jovens, no
desabrochar de suas vidas  — que é justamente a idade em que as
pessoas, em geral, costumam estar mais abertas a qualquer forma de
alegria  — e, com suas toleimas e casmurrices, acabam estragando os
poucos dias bons que poderiam partilhar com os outros, e é sempre
tarde demais quando reconhecem o caráter irrecuperável de tudo o
que desperdiçaram. Aquilo cou me carcomendo por dentro. No nal
da tarde, retornamos à casa do pastor e nos sentamos à mesa para
beber um copo de leite; e quando a conversa tocou no assunto da
alegria e do sofrimento no mundo, não pude deixar de puxar de novo
aquele o solto e de fazer uma fala calorosa contra o mau humor. —
Estamos sempre reclamando — comecei eu — que são tão poucos os
dias bons e que são tantos os dias ruins; mas, quanto a isso, não me
parece sermos justos. Se mantivéssemos os corações sempre abertos e
conseguíssemos aproveitar aquelas coisas boas que deus nos
proporciona diariamente, também disporíamos de mais forças para
suportar melhor as coisas ruins quando elas nos acontecem.  — Mas
nós não temos o nosso ânimo sob controle  — disse a esposa do
pastor  —, quanta coisa não depende do próprio corpo! Quando
alguém não se sente bem, nada ca bem.  — Concordei com ela.  —
Pois então  — continuei  —, podíamos considerar isso como uma
doença e pensar se contra ela não haveria algum remédio!  — Faz
sentido  — disse Lotte  —, acho, pelo menos, que muita coisa só
depende de nós. Sei por mim mesma. Quando algo me incomoda e
começa a me deixar abatida, eu logo me levanto e saio cantarolando
pelo jardim um par de contradanças, e já me sinto melhor. — Pois era
justo isso que eu queria dizer — a rmei em seguida —, o mau humor,
para mim, é exatamente como a preguiça, que é um tipo de
indolência. Nossa natureza parece nos puxar nessa direção, mas, se
conseguimos reunir forças para resistir a isso, o trabalho não nos pesa
mais tanto, e podemos acabar encontrando grande satisfação em
nossas atividades.  — Friederike ouvia tudo com muita atenção; o
jovem rapaz objetou, então, dizendo que não somos senhores de nós
mesmos, e muito menos daquilo que sentimos. — A questão, aqui, é
quando esse sentimento se torna desagradável  — repliquei eu  —,
como algo de que todo mundo gostaria de se livrar; e ninguém nunca
sabe até onde vão suas forças, antes de elas serem colocadas à prova.
É claro: quem está doente procura consultar todos os médicos que
puder e, para recuperar a sua tão desejada saúde, não vai abrir mão
do que for necessário, nem vai deixar de tomar os seus medicamentos,
por mais amargos que sejam.  — Percebendo que o honorável ancião
se esforçava para nos ouvir e participar de nossa conversa, levantei um
pouco mais a voz no momento em que me dirigi a ele:  — Ouvimos
sermões contra tantos tipos de vício  — disse eu  —, mas não tenho
lembrança de ter ouvido, do púlpito, ninguém se voltar contra o mau
humor.****  — Isso é coisa para os pastores da cidade  — disse o
velho  —, os homens do campo não costumam ter mau humor; mas
bem que, de vez em quando, um sermão desses não faria mal, ao
menos seria uma lição para a sua senhora, e também para o nosso
senhor administrador.  — Todos caíram na gargalhada, e também o
velho, até que um ataque de tosse o assaltasse de repente,
interrompendo nossa conversa por um instante. Em seguida, o jovem
rapaz retomou a palavra: — O senhor se referiu ao mau humor como
um vício; a mim, isso parece um exagero.  — De jeito nenhum  —
respondi de pronto —, se é que podemos chamar meramente de vício
a algo que usamos para fazer mal aos outros e a nós mesmos. Será que
já não basta sermos incapazes de nos fazermos felizes? Ainda temos de
roubar uns aos outros aquele prazer que todo coração tem o direito de
se conceder de quando em quando? O senhor me diga uma só pessoa
que, padecendo de mau humor, tenha sido su cientemente forte para
ocultá-lo e mantê-lo apenas para si mesma, sem que seu
comportamento acabasse destruindo a felicidade à sua volta! Ou
ainda: será que o mau humor não seria, antes, uma espécie de
indisposição íntima diante de nossa própria falta de dignidade, um
descontentamento com nós mesmos? Será que não estaria sempre
ligado a uma inveja, instigada por alguma forma boba de vaidade? Às
vezes vemos pessoas que são felizes, mas que nós não somos capazes
de fazer felizes, e isso é insuportável.  — Lotte sorriu para mim ao
perceber o entusiasmo com que eu falava, e uma lágrima que corria do
olho de Friederike deu-me motivação para prosseguir.  — Ai
daqueles  — disse eu  — que se valem do poder que têm sobre o
coração do outro, apenas para lhe roubarem as alegrias mais simples,
que dele nascem tão naturalmente. Nem todos os presentes, nem todos
os favores do mundo são capazes de substituir aquele momento único
de prazer consigo mesmo, que o incômodo invejoso de nosso tirano
acabou estragando.
Àquela altura, senti que meu coração todo estava prestes a
transbordar; a lembrança de algumas coisas do passado me apertou o
peito, até que as lágrimas brotaram em meus olhos.
— As pessoas deveriam repetir diariamente para si mesmas: você
não pode fazer nada melhor por teus amigos do que deixá-los em paz
com suas alegrias e ajudá-los a multiplicar sua felicidade à medida que
você dela partilha  — exclamei.  — Você acha que será capaz de lhes
proporcionar uma gota sequer de alívio, quando suas almas forem
atormentadas por alguma paixão angustiante ou abaladas pela
a ição? E quando a última e mais temível das doenças cair sobre essa
criatura que você ajudou a debilitar nos seus dias em or? O que você
vai fazer quando ela estiver deitada ali, na mais miserável prostração,
com o olho torpe voltado para o céu, o suor da morte vertendo da
testa pálida, e você estiver diante de sua cama como um desgraçado,
sentindo a certeza de que você não é capaz de fazer coisa alguma, nem
com toda a tua fortuna? O que você vai fazer, então, quando o medo
te revirar por dentro, a ponto de você querer abrir mão de tudo,
apenas para poder dar a essa criatura moribunda uma única gota de
ânimo, uma única centelha de coragem?
Ao dizer essas palavras, a lembrança de uma cena semelhante, que
eu havia presenciado noutra ocasião, recaiu sobre mim com toda a
força. Levei o lenço até os olhos, afastei-me um pouco do grupo, e
somente a voz de Lotte, dizendo-me que estávamos de partida, foi
capaz de me trazer de volta a mim mesmo. No caminho, ela me
repreendeu por me deixar envolver tão apaixonadamente em tudo,
dizendo-me que isso ainda iria custar a minha ruína e que eu,
portanto, deveria tentar me poupar! — Oh, meu anjo! É por ti que eu
quero viver!

6 de julho
Ela continua ao lado de sua amiga moribunda e ainda continua a
mesma pessoa, aquela mesma criatura carinhosa e presente, que
ameniza os sofrimentos daqueles por quem ela olha, fazendo-os
felizes. No nal da tarde de ontem, ela saiu para passear com Mariane
e a pequenina Amalie; como tive notícias antecipadas disso, fui ao seu
encontro e passeamos juntos. Depois de uma caminhada de hora e
meia, quando retornávamos à cidade, chegamos àquela mesma fonte,
que eu antes já tinha em grande estima e que agora eu estimo mil
vezes mais.16 Lotte sentou-se na amurada, camos de pé a sua
frente.  — Olhei ao meu redor e foi como se eu revivesse, por um
instante, aquele tempo em que meu coração se encontrava tão
sozinho.  — Querida fonte  — disse eu  —, desde então nunca mais
busquei repouso em teus frescores e, em minha pressa, por vezes mal
te vi quando estava de passagem. — Olhei para baixo e percebi que a
pequena Amalie se empenhava para subir os degraus com um copo de
água na mão.  — Olhei para Lotte e entendi o quanto ela signi cava
para mim. Nisso chegou Amalie com o copo. Mariane quis pegá-lo de
sua mão.  — Não!  — gritou a menina com a mais doce das
expressões.  — Beba você primeiro, Lotte!  — Fiquei tão encantado
com o jeitinho sincero e bondoso com que ela disse aquilo, que não
pude expressar minha emoção de outro modo, senão erguendo a
menina do chão e dando-lhe um imenso beijo; e z isso com tanto
ânimo que a criança começou a gritar e abriu imediatamente o
berreiro.  — Você fez muito mal!  — disse Lotte. Fiquei confuso.  —
Venha, Amalie — continuou ela, puxando a menina pela mão escada
abaixo  —, agora lave teu rosto com a água fresca da fonte, rápido,
rápido, que não vai te acontecer nada. — Parado ali, quei prestando
atenção no esmero da pequena ao esfregar as bochechas com suas
mãozinhas molhadas, mas também no quanto ela acreditava que as
águas daquela fonte maravilhosa eram capazes de puri car toda
espécie de conspurcação e de reparar o opróbrio de ver crescer em seu
rosto uma barba horrível. E embora Lotte insistisse que já era o
su ciente, a criança continuava lavando o rosto, e cada vez mais
avidamente, como se muito tivesse mais efeito do que pouco.  —
Wilhelm, vou te contar que nunca presenciei um rito de batismo que
me inspirasse tanto respeito  — e quando Lotte subiu de volta os
degraus, senti vontade de me atirar a seus pés, como o faria diante de
um profeta que, com sua bênção, tivesse acabado de perdoar os
pecados de toda uma nação.
À noite, com aquela alegria toda em meu coração, não pude deixar
de contar essa história a um homem que eu julgava sensível às
questões humanas, uma vez que não lhe faltava inteligência; mas que
mau passo! Ele me disse que Lotte não deveria ter feito aquilo, que
não deveríamos fazer as crianças acreditarem em nada disso e que
coisas como essas acabam levando a um sem-número de ilusões e a
superstições, das quais temos de proteger as crianças desde cedo.  —
Mas logo me dei conta de que, oito dias antes, aquele homem havia
mandado batizar um de seus lhos, de modo que deixei a história por
isso mesmo e, no fundo do coração, mantive-me leal a esta minha
verdade: devemos proceder com as crianças da mesma maneira que
deus procede conosco, pois ele sabe que não há nada que nos faça
mais felizes do que ele deixar que continuemos cambaleando por aí,
vivendo nossos delírios de alegria.

8 de julho
Como somos crianças! E como é possível que desejemos tanto um
olhar? Como somos crianças!  — Havíamos ido até Wahlheim. As
damas foram na frente, de coche, e, mais tarde, durante nossa
caminhada, tive a impressão de ter percebido naqueles olhos negros de
Lotte  — Sou mesmo um tolo, me desculpe! Mas você tinha que ver
aqueles olhos!  — Para ser breve (já que estes meus olhos não se
aguentam de sono): as damas subiram no coche, e, do lado de fora,
caram o jovem W…, Selstadt, Audran e eu. Pela portinhola, elas
conversavam animadas com os rapazes, que eram seguramente
inofensivos e avoados o su ciente. — Eu buscava os olhos de Lotte! E
eles cavam saltitando de um rapaz para outro! Mas em mim, em
mim, em mim, que era o único a se concentrar inteiramente nela,
aqueles olhos não paravam jamais. — Meu coração se despediu dela
mil vezes! E ela nem olhou para mim! O coche foi-se embora, uma
lágrima surgiu em meus olhos. Meu olhar continuou buscando por ela
no coche que partia, até que vi o toucado de Lotte insinuando-se
portinhola afora, ela se virou e olhou… para mim?  — Meu caro,
continuo ainda nessa incerteza; mas este é o meu consolo: é possível
que ela tenha se virado e olhado para mim! É possível! — Boa noite!
Oh, como sou criança!

10 de julho
Você tinha só que ver a gura ridícula que eu faço quando os outros
falam de Lotte na minha frente! E quando então me perguntam se ela
me agrada?  — Agradar! Detesto essa palavra! Que tipo de gente
acharia que Lotte é alguém que meramente agrada? Que tipo de gente
não perceberia que ela é alguém que satisfaz por inteiro nossos
pensamentos e emoções? Agradar! Um dia desses alguém me
perguntou se Ossian me agradava!17

11 de julho
A senhora M… está muito mal; peço a deus por sua vida, pois
também eu acabo sofrendo junto com Lotte. Tenho-a visto apenas
muito ocasionalmente na casa de uma amiga, e hoje ela me contou um
caso impressionante.  — O velho M… é um sovina ganancioso e
miserável, que não fez mais que atormentar a esposa e impor-lhe
restrições ao longo de toda sua vida, embora a mulher sempre tenha
sabido como se virar. Há alguns poucos dias, quando o médico lhe
comunicou sua condição terminal, a senhora M… pediu que
chamassem seu marido (Lotte estava no quarto) e disse a ele:  —
Preciso te confessar uma coisa que, depois da minha morte, vai acabar
te deixando confuso e magoado. Até o momento, fui eu quem cuidou
das contas desta casa, sempre de modo tão regrado e econômico
quanto me foi possível, mas você vai ter que me desculpar por eu ter
te enganado durante esses trinta anos. No começo do nosso
casamento, você de niu um valor bastante modesto para os gastos
com a cozinha e outras despesas domésticas. E quando nosso
orçamento começou a car mais polpudo e os negócios começaram a
crescer, você teimou em não aumentar, na mesma proporção, o valor
para as despesas semanais; en m, você sabe muito bem que, na época
em que tínhamos as maiores despesas, você ainda exigia que eu me
virasse com apenas sete orins por semana. Pois eu aceitei isso sem
maior discussão, mas comecei a retirar de nossas próprias receitas o
valor que nos faltava a cada semana, uma vez que ninguém suporia
que a esposa estivesse roubando do marido. Nunca desperdicei um
tostão sequer e, mesmo sem fazer esta con ssão, partiria tranquila e
con ante para a eternidade, não fosse a consideração que tenho por
aquela que deve assumir as contas desta casa depois de mim; pois, se
ela acabar não conseguindo se virar com tão pouco, você ainda é
capaz de teimar, alegando que tua primeira mulher não tinha
problemas com isso.
Falei com Lotte sobre essa inacreditável cegueira do espírito
humano, que faz com que alguém nem mesmo suspeite haver algo de
estranho quando o outro, que dispõe apenas de sete orins, consegue
cobrir as despesas que ele próprio sabe serem pelo menos duas vezes
maiores. Mas eu mesmo conheci gente que, se tivesse em sua casa a
inesgotável jarra de óleo do profeta Elias, não perceberia nisso nada
de estranho.18

13 de julho
Não, não estou me iludindo! Leio naqueles seus olhos negros um
interesse sincero por mim, assim como pelo meu destino. Sim, eu
sinto, e quanto a isso posso con ar em meu coração, que me diz que
ela — oh, será que me é concedido dizer, será que sou capaz de dizer o
céu por inteiro nessas palavras? — que ela me ama!
Me ama!  — E você nem imagina como venho estimando cada vez
mais a mim mesmo,19 como eu  — para você eu não tenho receio de
dizer isso, você tem cabeça boa para essas coisas  — como eu venho
me admirando cada vez mais, desde que ela me ama!
Se isso é mera presunção ou se é o sentimento de uma relação
verdadeira? — Não, não conheço a tal pessoa que eu temia ocupar um
lugar no coração de Lotte. Mas, claro, quando ela fala dele — quando
ela fala de seu noivo  — com tanto carinho e tanto amor, sinto-me
como alguém que foi deposto de todas as suas honras e virtudes, e a
quem ainda obrigaram a entregar a espada.

16 de julho
Ah, como o sangue corre mais rápido nas veias quando meus dedos
tocam inadvertidamente os seus ou quando nossos pés se encontram
embaixo da mesa; recuo, então, como se diante do fogo, mas uma
força estranha me move de novo adiante — chego a car meio tonto
dos sentidos — Oh, e sua inocência! Sua alma ingênua nem imagina o
quanto essas pequenas con anças me castigam!  — E quando ela
coloca a mão dela sobre a minha enquanto fala e, no calor da
conversa, vem chegando mais perto de mim, a ponto de eu poder
sentir em meus lábios o alento sublime que emana de sua boca. — Ah,
aí eu vou a pique, como se atingido em cheio por um relâmpago. — E,
Wilhelm! Se um dia eu me atrevesse, esse céu, essa con ança —! Você
entende o que eu quero dizer. Não, meu coração não está tão perdido
assim! Fraco! Apenas bastante fraco!  — E isso já não signi ca estar
perdido? —
Para mim, ela é sagrada. Todo desejo parece calar em sua presença.
Nunca sei o que acontece comigo quando estou com ela; é como se
minha alma revirasse, a orando o avesso dos meus nervos.  — Tem
uma melodia que ela toca no piano com a sensibilidade de um anjo, de
um jeito tão simples e tão inspirado! É sua canção predileta, e basta
ela começar a tocar a primeira nota para que eu já me sinta como que
remido de toda a ição, de toda perplexidade e de quaisquer
conjecturas.
Nada que se diga a propósito da antiga força mágica da música é
improvável para mim; veja só como essa canção tão singela me
arrebata! E Lotte sabe muito bem quando exatamente tocá-la: em
geral, naqueles momentos em que me sinto prestes a meter uma bala
na cabeça! Aí os destemperos e a escuridão de minha alma começam a
se dissipar, e eu consigo respirar de novo mais livremente.

18 de julho
Wilhelm, o que seria o mundo, para o nosso coração, se não houvesse
amor! O mesmo que uma lanterna mágica sem luz!20 Pois basta você
acender uma luzinha lá dentro e já se projetam em tua parede branca
as imagens mais coloridas! E se nada mais existisse além dessas
imagens efêmeras, além dessas projeções fantasmáticas, ainda assim
elas conseguiriam fazer nossa felicidade sempre que estivéssemos
diante delas e nos encantássemos com esse fenômeno maravilhoso,
como acontece com os jovens na mais tenra idade. Hoje eu não
consegui ir até a casa de Lotte, impedido por uma reunião da qual não
tive como escapar. E o que eu poderia fazer num caso desses? Pois
mandei meu empregado dar uma passada por lá, somente para que,
depois, eu pudesse ter perto de mim alguém que tivesse estado com ela
hoje. Você não sabe com que impaciência quei aguardando por ele, e
com que alegria eu o vi retornando! Não fosse pelo vexame, eu teria
pegado o rapaz pela cabeça e beijado ali mesmo.
Contam que a pedra de Bolonha,21 quando exposta à luz do sol,
absorve seus raios durante o dia para brilhar por certo tempo durante
a noite. Pois, para mim, o mesmo se dava com o meu empregado. Só a
sensação de que os olhos dela haviam repousado em seu rosto, em
suas bochechas, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo
já fazia disso tudo algo sublime e de imenso valor para mim. Naquele
instante, eu não abriria mão da presença do rapaz nem por todo o
dinheiro deste mundo. Era bom senti-lo por perto. — Deus que te livre
de se rir disso, Wilhelm! Mas me diga, quando essas projeções nos
fazem tão bem, será que ainda são meros fantasmas?

19 de julho
— Vou vê-la!  — digo eu logo cedo, assim que desperto, e, tomado
então por uma sensação prazerosa de serenidade, co olhando para o
sol, contemplando sua beleza. —Vou vê-la! — Depois disso, não tenho
mais desejo algum durante o dia inteiro. Tudo, tudo se resume a essa
única perspectiva.

20 de julho
Essa ideia de vocês, de que eu parta para *** com o embaixador,
ainda não entrou na minha cabeça. Não sou muito simpático à
subordinação, e nós todos sabemos que esse homem, além de tudo, é
uma pessoa detestável. Minha mãe quer me ver em atividade, é o que
você me diz; disso eu só posso rir. Quer dizer então que não estou em
atividade neste momento? E, no fundo, não dá exatamente na mesma
se eu agora estou contando ervilhas ou lentilhas? Tudo neste mundo
acaba sempre em algo insigni cante. Portanto, tolo daquele que se
mata de trabalhar pelos outros — seja por dinheiro, por honra ou pelo
que for — sem levar em conta sua própria paixão nem suas próprias
necessidades.

24 de julho
Já que para você é tão importante que eu não deixe de lado os meus
desenhos, pre ro pular esse assunto a ter de te confessar que z muito
pouco por isso nos últimos tempos.
Nunca antes me senti tão feliz, nunca antes consegui perceber a
natureza de modo assim tão íntimo e completo  — até a menor das
pedrinhas, até a mais miúda das graminhas —, e ainda assim — Não
sei como me expressar, minha imaginação está tão fraca, tudo oscila e
vacila de tal modo diante de minha alma, que não dou conta de traçar
um único contorno sequer; mas, se eu tivesse barro ou cera à minha
disposição, quero crer que alguma forma eu poderia dar a isso. Aliás,
se a coisa continuar assim, quero ver mesmo se não arranjo um pouco
de barro e me ponho a modelá-lo, nem que disso não saia mais que
um bolo de argila!
O retrato de Lotte eu já comecei três vezes, e três vezes só passei
vergonha; isso me deixa ainda mais chateado porque, não faz nem
muito tempo, eu costumava ter mão boa para retratos. Acabei
desenhando apenas a sua silhueta, e é com isso que vou ter de me
contentar por enquanto.

26 de julho
Sim, cara Lotte, tratarei de cuidar de tudo; e pode me passar quantos
encargos você quiser. Peço somente uma coisa: cuidado com a areia22
nos bilhetinhos que você me escreve. O de hoje eu levei rapidamente
aos lábios, e estalaram-me os dentes.

26 de julho
Já me prometi inúmeras vezes que eu não deveria vê-la com tanta
frequência. Mas e quem é que consegue cumprir uma promessa
dessas!? Todo dia eu caio na mesma tentação e prometo de novo, por
tudo que me é mais sagrado, que no dia seguinte eu não vou visitá-la;
mas quando chega o dia seguinte, sempre acabo achando algum
motivo irresistível e, no que me dou conta, já estou na casa dela. Às
vezes, no nal do dia, ela me diz: — Amanhã você vem de novo, não
vem?  — E quem poderia dizer não a isso? Às vezes ela me passa
alguma tarefa, e sempre acho mais apropriado levar-lhe pessoalmente
a resposta. E tem vezes ainda, quando o dia está bonito, que vou até
Wahlheim, e, uma vez estando lá, não dá nem meia hora até a casa
dela! — Estou próximo demais de sua atmosfera — Aí, vupt! Lá estou
eu de novo! Minha avó costumava contar a história de uma certa
montanha magnética. Quando os navios se aproximavam
demasiadamente dela, a montanha lhes roubava tudo o que era feito
de ferro: pregos e parafusos saíam voando em sua direção, e os pobres
coitados naufragavam entre as pranchas e tábuas, que acabavam,
então, desmoronando umas sobre as outras.23

30 de julho
Albert acaba de chegar, e é hora de eu ir embora; pois ainda que ele
fosse o melhor, o mais nobre dos homens, diante do qual eu estivesse
disposto a reconhecer minha inferioridade sob todos os pontos de
vista, ainda assim seria insuportável vê-lo, bem diante de mim,
assenhoreando-se daquela soma de perfeições. — Sim, assenhoreando-
se!  — Agora basta, Wilhelm, o noivo chegou! Um ótimo rapaz, e
muito querido também, que merece todo o respeito. Sorte a minha de
não ter presenciado sua chegada! Isso teria deixado o meu coração em
frangalhos. Mas ele tem se mostrado tão irrepreensível em sua
conduta que não beijou Lotte nem uma só vez em minha presença.
Que deus lhe pague! Pelo respeito que ele demonstra ter pela moça,
sinto-me compelido a gostar dele. Por sinal, ele também parece
simpatizar comigo, embora eu suspeite que isso seja mais obra de
Lotte do que expressão de suas próprias inclinações, uma vez que,
nesses assuntos, as mulheres são requintadas e costumam ter sempre
razão: pois se conseguem fazer com que seus dois pretendentes
mantenham boas relações, por mais estranho que isso possa parecer,
são elas que sempre tiram o melhor proveito da situação.
Apesar de tudo, não posso negar a Albert minha consideração. Sua
compleição sossegada colide de modo vital com a inquietude de meu
caráter — o que não é algo que eu possa apenas ocultar. Ele tem muito
tato e sabe dar o devido valor a Lotte. Ele não parece sofrer muito
com o mau humor, e você sabe bem que, dentre todos os pecados, este
é o que eu mais odiosamente detesto no ser humano.
Ele me toma por uma pessoa inteligente; e meu apego por Lotte, a
alegria afetuosa que sinto a cada coisa que ela faz, parece apenas
multiplicar o seu triunfo, fazendo com que ele a ame ainda mais. Não
sei se, vez ou outra, ele não a acaba constrangendo com pequenos
ataques de ciúme; eu, em seu lugar, não me sentiria assim tão seguro
diante desse demônio.
Pois que assim seja! Aquela minha alegria de estar junto de Lotte
acabou! Será que devo chamar isso de loucura ou de cegueira? — Mas
quem é que precisa de nomes!? A coisa se explica por si só!  — Eu
sempre soube o que agora sei, mesmo muito antes de Albert retornar:
que eu não podia ter maiores pretensões em relação a ela, e eu
tampouco as tinha  — quer dizer, ao menos na medida em que é
possível não alimentar alguma forma de desejo em meio a tanta
amabilidade — E agora o bobalhão aqui ca de olhos arregalados, já
que o outro acabou mesmo voltando e levou-lhe embora a garota.
Ranjo os dentes e escarneço dupla, triplamente daqueles que se
acham no direito de me dizer que eu deveria me resignar diante disso
tudo, até porque a coisa nem poderia ser diferente.  — Tirem esses
cabeças-ocas da minha frente!  — Saio andando pela mata e, quando
chego à casa de Lotte, vejo Albert sentado ao lado dela no pequeno
jardim, à sombra do caramanchão, e não sei mais o que fazer; aí co
descompensadamente bobo e começo a fazer as brincadeiras mais
descabidas. — Pelo amor de deus — disse-me Lotte hoje —, peço, por
favor, que não me faça outra cena como a de ontem à noite! Você é
terrível quando ca agitado assim. — Cá entre nós, confesso que co à
espreita, aguardando a hora em que ele tenha um compromisso; aí,
então, vupt! Lá vou eu de novo! E quando a encontro sozinha, sempre
me sinto bem.

8 de agosto
Por favor, caro Wilhelm, é claro que eu não me referia a você quando
repreendia aquelas pessoas insuportáveis, que exigem que nos
resignemos mesmo quando diante dos destinos mais inevitáveis.
Sinceramente, nem cheguei a cogitar que você pudesse ser dessa
mesma opinião. Mas, no fundo, você tem razão! Só um detalhe, meu
caro: neste nosso mundo, é muito raro que os problemas se resumam
a uma simples escolha entre uma ou outra coisa; entre sentir e agir há
uma gama tão variada de nuances como entre um nariz aquilino e um
nariz chato.
Portanto, não me leve a mal se eu, mesmo concordando, no geral,
com o teu argumento, ainda assim tento me esquivar desse esquema
do um ou outro.
— Ou você tem alguma esperança em relação a Lotte, ou você não
tem  — diz você.  — Bom, no primeiro caso, tente fazer valer a tua
esperança, tente buscar a realização dos teus desejos; no outro,
recobre o ânimo e tente se ver livre desse sentimento infeliz, que só faz
devorar todas as tuas forças.  — Meu caro, você disse muito bem,
mas — dizer é bem mais fácil que fazer.
Por acaso você seria capaz de exigir de um infeliz, cuja vida vai se
esvaindo aos poucos pela ação de uma doença sorrateira e inevitável,
você seria capaz de exigir que ele, com um golpe de punhal, pusesse
um m em seu sofrimento? Será que esse mal, que só faz devorar suas
forças, também não lhe rouba a própria coragem necessária para se
livrar dele?
Sei que você poderia me responder valendo-se de uma analogia
semelhante:24 a nal, quem não preferiria amputar um membro em vez
de deixar que seus tombos e tropeços coloquem em risco toda a sua
vida? — Não sei, não! — mas não vamos car nos bicando por meio
dessas analogias. En m — Sim, Wilhelm, de vez em quando eu tenho
um desses momentos de coragem, um momento em que algo salta e se
sacode em mim, e então  — se ao menos eu soubesse para onde, por
certo que eu iria.

À noite
Meu diário, que eu vinha negligenciando já havia algum tempo, caiu-
me hoje de novo nas mãos, e quei surpreso ao perceber como foi que,
de modo tão deliberado, acabei me enredando aos poucos nessa
situação! Como foi que, apesar de sempre ter visto com clareza a
minha situação, insisti em agir como uma criança; e, mesmo agora,
vendo tudo tão claramente, ainda não vislumbro sinal algum de
melhora.

10 de agosto
Se eu não fosse um tolo, talvez pudesse levar uma vida muito melhor,
e das mais felizes. Não é comum que circunstâncias tão especiais,
como estas em que me encontro, con uam para satisfazer a alma de
um homem. Ah, é claro que o nosso coração faz, ele mesmo, a sua
própria sorte.  — Ser um membro da mais adorável das famílias, ser
amado pelo velho como um lho, pelos pequeninos como um pai e
por Lotte!  — e tem ainda o respeitável Albert, que não atrapalha a
minha felicidade com destemperos mal-humorados, que me acolhe
com uma amizade sincera e para quem, depois de Lotte, sou a pessoa
que ele mais estima neste mundo! — Wilhelm, dá gosto de nos ouvir
enquanto passeamos e conversamos sobre Lotte! Não inventaram
nada mais risível no mundo do que essa nossa relação e, ainda assim,
às vezes as lágrimas me brotam nos olhos.
Quando ele me conta, por exemplo, como a mãe dela era íntegra;
como, em seu leito de morte, ela teria entregado sua casa e seus lhos
aos cuidados de Lotte, do mesmo modo que ela teria con ado Lotte a
ele; como Lotte, desde então, havia ganhado novo ânimo, e como ela,
ao ter de cuidar de toda a casa e fazê-lo com seriedade, havia se
tornado uma verdadeira mãe; como ela não passava sequer um
instante de seu tempo que não fosse dedicado a amar diligentemente
cada um dos seus e a trabalhar por eles; e como, apesar disso tudo, ela
nunca perdia a vitalidade, nem seu jeito leve de ser.  — Vou
caminhando ao lado dele, colho ores no caminho, reúno-as
cuidadosamente num buquê e — atiro-as todas no rio que passa por
nós, observando como elas se deixam levar corredeira abaixo. — Não
sei se cheguei a te escrever contando que Albert deve mesmo se
estabelecer por aqui. Ele vai ser nomeado pela corte, onde simpatizam
muito com ele, para um cargo de alta distinção e muito bem
remunerado. Quanto à organização e à dedicação aos negócios,
conheci poucas pessoas iguais a ele.

12 de agosto
Albert é certamente o melhor dos homens sob este nosso céu.25 Ontem
tivemos uma cena digna de nota. Passei na casa dele para me despedir,
pois fui tomado por uma vontade de pegar o cavalo e partir em
direção às montanhas, que é também de onde eu agora te escrevo.
Enquanto eu andava de um lado para o outro da sala, dei com os
olhos em suas pistolas. — Você não me empresta essas pistolas para a
minha viagem? — perguntei. — Por mim — respondeu ele —, se você
não se importar de recarregá-las; aqui elas são meramente
decorativas. — Tirei uma delas da parede, e ele continuou: — Desde o
dia em que a precaução me pregou uma peça, não quero mais saber
dessas coisas.  — Fiquei curioso, queria ouvir mais sobre aquela
história.  — Passei um bom quarto de ano no campo, na casa de um
amigo — pôs-se ele a contar —, e como havia levado comigo um par
de pistolas de bolso,26 devidamente descarregadas, dormia tranquilo.
Certo dia, numa tarde chuvosa, tomado pelo ócio, não sei como foi
me ocorrer a ideia de que poderíamos ser assaltados e que poderíamos
precisar das pistolas e que — você sabe bem como são essas coisas. —
Dei as armas ao empregado, e pedi que ele as limpasse e as deixasse
carregadas; mas, querendo pregar um susto nas criadas, ele resolve
fazer uma graça e, só deus sabe como, a arma dispara, e a vareta, que
ainda se encontrava dentro do cano, acerta em cheio a mão direita da
criada, esmagando-lhe o polegar. Aí só me restou lamentar e, ainda
por cima, arcar com os custos do tratamento da moça. Desde então eu
deixo as armas todas descarregadas. Pois, meu caro, o que é a
precaução? Os perigos nunca se deixam antever completamente! É
bem verdade que — Você já sabe, Wilhelm, tenho grande apreço por
esse homem, exceto quando ele vem com aquele seu é bem verdade
que; a nal, já não é dado que toda regra tenha exceções? Mas não, ele
adora justi car o regrado! E sempre que tem a impressão de ter dito
algo de modo meio apressado ou genérico, uma meia-verdade, ele não
consegue parar de mostrar restrições e limitações, de fazer acréscimos
e subtrações, até que, por m, não reste mais nada do assunto. Pois
dessa vez ele não perdeu o ensejo e embrenhou-se profundamente na
questão: passado algum tempo, eu já não conseguia mais prestar
atenção no que ele me dizia e estava perdido nas minhas inquietações,
quando, num gesto súbito e nada discreto, apontei a pistola para a
minha testa, encostando-a logo acima do olho direito.  — Ei, ei!  —
disse Albert, e tomou a pistola de minha mão.  — O que signi ca
isso?  — Ela não está carregada  — disse eu.  — Mesmo assim, o que
signi ca isso?  — retrucou ele, impaciente.  — Não consigo imaginar
como alguém possa ser tão tolo a ponto de meter uma bala na própria
cabeça; só de pensar nisso já co indignado.
— Não entendo por que homens como você — exclamei eu —, ao
falarem sobre um assunto, têm logo que sentenciar: isso é tolice,
aquilo é sensato, isso é bom, aquilo é mau! E o que signi ca tudo isso?
Vocês por acaso zeram algum estudo mais aprofundado daquilo que
de fato motiva um ato como este? Vocês por acaso são capazes de
desvendar com precisão as causas, as razões pelas quais isso acontece
e as razões pelas quais é inevitável que isso aconteça? Se vocês
soubessem mais sobre o assunto, por certo não se afobariam tanto na
hora de desferir tais juízos.
— Mas você há de admitir  — disse Albert  — que atos como este
serão sempre imorais, seja qual for a razão que os motivou.
Dei de ombros, sem discordar dele. — Mas, meu caro — continuei
eu —, também em casos como este há exceções. Está claro para todo
mundo que roubar é um ato imoral. Mas quando uma pessoa apela ao
roubo apenas para que ela mesma e os seus não morram de fome, o
que será que ela merece: compaixão ou castigo? Quem atiraria a
primeira pedra num marido que, tomado pela sanha de vingança — e
não sem alguma razão  —, sacri ca sua esposa in el e seu indigno
sedutor? E na moça que, num momento de extrema alegria, se deixa
levar pelos prazeres irreprimíveis do amor? Até mesmo nossas leis,
essas pedantes de sangue-frio, deixam-se comover nessas ocasiões e
acabam moderando seus castigos.
— Mas isso é algo bem diferente — replicou Albert —, pois quando
alguém é completamente arrebatado por suas paixões, ele perde o
controle da razão e passa a ser visto como alguém inebriado, insano.
— Ah, senhores da razão!  — exclamei eu, sorrindo.  — Paixão!
Ebriedade! Insanidade! Vocês, homens de moral, mantêm-se sempre
tão sossegados, tão impassíveis diante disso! Vocês repreendem o
bêbado, abominam o insensato, passam ao largo disso tudo como
sacerdotes e agradecem a deus como os fariseus, por ele não os ter
feito como algum destes. Eu mesmo me embebedei bem mais de uma
vez, minhas paixões estiveram prestes a me levar à loucura, e não me
arrependo de nada disso: pois foi só assim que, do meu jeito, comecei
a compreender que toda pessoa fora do comum, que todo mundo que
fez algo de grandioso, algo que parecia impossível de ser realizado,
desde sempre foi tachado de ébrio ou de louco.
“Mas também no dia a dia é insuportável ouvir gritarem, para
quase todo mundo que é surpreendido num gesto inesperado,
honroso, um pouco mais livre: esse homem está bêbado, ele é um tolo!
Tomem vergonha na cara, seus sóbrios! Tomem vergonha na cara,
seus sabichões!”
— Lá vem você de novo com essas suas inquietações  — disse
Albert.  — Você exagera em tudo e, de nitivamente, não está sendo
razoável, pelo menos quanto a essa questão. Você compara o suicídio,
que é do que estamos falando aqui de fato, com grandes realizações,
mas não podemos considerá-lo senão uma fraqueza. A nal, é mais
fácil morrer do que continuar aguentando os tormentos de uma vida
sofrida.
Eu estava prestes a acabar com aquela conversa, pois não há nada
que me tire mais do sério do que quando alguém se veste de algum
desses chavões insigni cantes, justamente no momento em que eu
falava do fundo do meu coração. Mas consegui me conter; já tinha
ouvido isso muitas vezes antes e muitas vezes havia me irritado com
isso. Não z senão retrucar de modo um pouco mais enérgico: — Você
chama isso de fraqueza!? Por favor, não se deixe levar pela aparência.
Você chamaria de fraco a um povo que, lamentando-se por viver sob o
jugo insuportável de um tirano, certo dia nalmente se rebela e rompe
seus grilhões? E um homem que, no desespero de proteger a sua casa
do fogo, reúne todas as suas forças e se torna capaz de mover, com a
maior facilidade, pesos que ele, em geral, seria incapaz de deslocar em
qualquer outra situação mais tranquila; e um outro que, furioso em
razão de uma ofensa, briga com outros seis e os derruba sozinho:
caberia dizer que são ambos fracos? En m, meu bom amigo, se o
empenho ordinário de nossas forças costuma ser sinal de rmeza, por
que é que empenhá-las de modo extremo deveria ser justamente o
contrário?  — Albert olhou para mim e disse:  — Você não me leve a
mal, mas esses seus exemplos não me parecem ter muito a ver com
nossa discussão. — Pode até ser — disse eu —, já me disseram muitas
vezes que meu modo de associar as coisas é meio disparatado. Mas
vejamos, então, se não conseguimos encontrar outro modo de
imaginar o que é que passa pela cabeça de alguém que decide deixar
de continuar carregando esse fardo nem sempre tão agradável da vida.
Pois só podemos falar com verdade de alguma coisa se formos capazes
de senti-la por nós mesmos.
“A natureza humana — continuei — tem seus limites: ela é capaz de
suportar a alegria, a a ição e a dor até determinado ponto, mas acaba
logo cedendo assim que se excede a essa medida. Aqui, portanto, não
se trata de saber se alguém é fraco ou forte, mas, sim, se ele é capaz de
suportar seu sofrimento nessa medida determinada, seja ela moral ou
física. Para mim é tão estranho chamar de covarde a alguém que tira a
própria vida, como me parece impróprio dizer que é covarde aquele
que morre de uma febre malina.”
— Paradoxo! Puro paradoxo!  — exclamou Albert.  — Nem tanto
quanto você pensa  — repliquei eu.  — Você há de admitir que
chamamos de doença fatal àquela em que a natureza humana é
atacada de tal modo que suas forças ou são completamente devoradas
ou são su cientemente debilitadas, a ponto de a pessoa não ser mais
capaz de nenhuma reação que a ajude a retomar, com algum sucesso,
o curso normal de sua vida.
“Pois bem, meu caro, agora vamos transpor isso tudo para a
questão do espírito. Pense o ser humano a partir de suas limitações,
pense em como suas impressões vão aos poucos se impregnando nele,
como suas ideias vão se tornando aos poucos ideias xas, até que isso
nalmente desencadeia o crescimento de uma paixão arrebatadora,
que lhe toma de assalto a serenidade e a sanidade mental, arrasando-o
por completo.
“De nada adianta que o homem sensato e razoável consiga enxergar
amplamente a condição do infeliz, de nada adianta que ele seja capaz
de persuadi-lo do que for! Assim como o homem saudável, junto ao
leito de um enfermo, jamais será capaz de lhe transmitir uma gota
sequer de suas forças.”
Para Albert, eu generalizava demais. Lembrei então do caso da
moça que, não faz muito tempo, haviam encontrado morta nas águas
do rio. — Uma criatura bondosa, que crescera no círculo mais estreito
das ocupações domésticas, das tarefas que lhe eram designadas a cada
semana, e que não tinha outras perspectivas de prazer além de ir
passear na cidade aos domingos com suas colegas, num vestido
adquirido a muito custo, para vez ou outra dançar nas grandes
festividades locais e, de resto, passar algumas boas horas papeando
animadamente com uma vizinha sobre qualquer querela ou fofoca
maliciosa que despertasse seu interesse mais sincero — Com o tempo,
sua natureza apaixonada começa a sentir a demanda de seus anseios
mais íntimos, que só fazem se multiplicar diante das ledices dos
homens; suas pequenas alegrias de antes começam então a perder
pouco a pouco a graça, até o dia em que conhece alguém que desperta
nela um sentimento desconhecido e irresistível, que a arrebata por
completo. Ela deposita nele todas as suas esperanças, começa a
esquecer o mundo ao seu redor, não vê mais nada, não ouve mais
nada, não sente mais nada a não ser ele, essa única pessoa, essa única
pessoa que ela tanto deseja. Como ainda não havia sido corrompida
pelos prazeres vazios de uma vaidade efêmera, sua vontade se orienta,
então, num único sentido: ela quer se tornar sua mulher, ela quer
encontrar, na aliança eterna, toda a felicidade que lhe falta, a união de
todas as alegrias que ela tanto almeja. As promessas reiteradas, que
selam a certeza de realização de todas as suas expectativas, somadas
às carícias atrevidas, que avultam seus desejos, dominam sua alma por
inteiro. Antecipando o sentimento dessas alegrias todas, sua
consciência ca como que suspensa num estado inerte, a tensão eleva-
se ao grau máximo, até chegar o momento em que ela nalmente abre
seus braços para acolher todos os seus desejos  — e seu amado a
abandona.  — Perplexa, sem nada entender, ela se vê então diante de
um abismo; tudo é escuridão à sua volta, não há perspectiva, não há
consolo, não há indício de futuro! Pois foi ele quem a abandonou,
justo aquele que fazia com que ela se sentisse viva. Ela não enxerga
mais o vasto mundo que se abre diante dela, não enxerga os homens
todos que poderiam reparar a sua perda. Ela se sente sozinha,
abandonada pelo mundo  — e, cega, desesperada em razão do
infortúnio que esmaga seu coração, ela salta precipício abaixo, para,
com a morte que leva consigo tudo ao seu redor, afogar de uma só vez
todas as suas mágoas.  — Veja, Albert, esta é a história de muitas
pessoas! Agora me diga: não acontece o mesmo no caso de uma
doença? Como a natureza não encontra saída desse labirinto de forças
desconcertantes e contraditórias, a pessoa acaba morrendo.
“Ai daquele que, diante de um caso como este, ainda é capaz de
dizer: que tola! Ela bem que podia ter esperado um pouco mais, podia
ter deixado o tempo agir, e o desespero logo se aquietava, logo surgia
um outro e vinha consolá-la. A meu ver, isso é o mesmo que dizer: que
tolo, morreu de febre! Ele bem que podia ter esperado um pouco mais
até que recuperasse suas forças, até que seus humores se
equilibrassem, até que a agitação em seu sangue se aquietasse. Tudo
então teria corrido bem, e ele ainda estaria vivo, até os dias de hoje.”
Albert, para quem aquela comparação ainda não era
su cientemente clara, levantou mais algumas objeções, entre as quais
o fato de eu ter me referido a uma moça muito simples; pois o que ele
não conseguia compreender é como escusar, por um ato desses, uma
pessoa de mais bom senso, que não fosse tão limitada e dispusesse de
uma visão mais ampla das coisas. — Meu amigo — exclamei —, o ser
humano é humano, e a pouca compreensão que alguém é capaz de ter
sobre as coisas costuma importar muito pouco, se é mesmo que
importa, quando a paixão ferve e arrasta o indivíduo até os limites de
sua humanidade. Muito pelo contrário  — Mas falamos disso noutra
ocasião — disse eu, já pegando meu chapéu. Oh, e como eu sentia o
coração carregado  — nós nos despedimos, sem que chegássemos a
entender um ao outro. Aliás, como de praxe neste nosso mundo, em
que ninguém mesmo entende o outro tão facilmente.

15 de agosto
Uma coisa é certa: não há nada neste mundo que se faça mais
necessário ao ser humano do que o amor. Sinto que Lotte não gostaria
de me perder, e nem passa pela cabeça das crianças que eu pudesse
não vir de novo no dia seguinte. Hoje fui até a casa dela para a nar o
piano, mas não dei conta de fazê-lo, já que os pequeninos insistiram
para que eu lhes contasse uma história, e até ela mesma achou que eu
deveria fazer a vontade das crianças. Cortei para cada um deles um
pedaço de broa  — o que, por sinal, eles só aceitam de bom grado
quando feito por Lotte ou por mim mesmo  — e contei-lhes a parte
principal da história da princesa que era servida por mãos.27 Posso te
garantir que aprendo muito com isso, e co admirado de ver como
eles se deixam impressionar. E como eu às vezes tenho de interpor
algum detalhe improvisado, algo de que invariavelmente me esqueço
da segunda vez que conto a história, as crianças sempre acabam me
lembrando que, da vez anterior, havia sido diferente; por conta disso,
eu agora venho me esforçando para repetir as histórias sem maiores
alterações, entoadas num cadenciado de sílabas e recitadas de um só
fôlego. Aprendi com isso, ainda, que, ao fazer alterações na segunda
edição de alguma de suas histórias, um autor acaba necessariamente
prejudicando sua obra, por mais que ela possa ter se tornado
poeticamente melhor. É que a primeira impressão nos encontra de
coração aberto, e o homem é feito de tal modo que ele é capaz de se
deixar levar pelas maiores aventuras; mas como estas também logo o
marcam de modo intenso, ai daquele que quiser rasurá-las ou
remendá-las!

18 de agosto
Será que tinha mesmo que ser assim: que aquilo que faz a felicidade
do ser humano um dia também acaba se tornando a fonte de sua
desdita?
Aquela sensação intensa e apaixonante que a natureza viva
despertava em mim, que nutria meu coração, que o transbordava de
tanta alegria e tornava o mundo à minha volta um paraíso, agora só
faz me castigar insuportavelmente, transformada num espírito
torturador, que me persegue aonde quer que eu vá. Noutros tempos,
quando eu, do alto do rochedo, avistava o vale fecundo que se estende
até as colinas mais ao longe, para além do rio, e via tudo brotar e
borbotar ao meu redor; quando eu avistava, do sopé ao cume, aquelas
montanhas cobertas pelo arvoredo denso e altaneiro, e via os vales,
com seus serpeios mil, sombreados pelas matas mais adoráveis, e o rio
que deslizava suavemente por entre as touças do junco sussurrante,
re etindo em suas águas as formações graciosas das nuvens que o
vento brando do m da tarde embalava nos céus; quando eu ouvia os
pássaros à minha volta dando vida à mata, e os milhares de milhões
de insetos dançavam intrepidamente à luz dos últimos raios
rubicundos do sol, cujo olhar palpitante despertava do relvado o zum-
zum-zum dos besouros; quando os zunidos e o alvoroço ao meu redor
chamavam minha atenção para o chão, onde o musgo, que da pedra
dura extrai seu alimento, e a ramagem da genista, que desce a encosta
árida e vai cobrindo os morros arenosos, abriam para mim os
recônditos e os brasidos mais sublimes da natureza viva; e quando,
en m, eu acolhia isso tudo em meu coração candente, aí então eu me
sentia como que dei cado no transbordo de tamanha plenitude, e as
guras maravilhosas de um mundo in nito moviam-se em minha
alma, dando vida a tudo! Eu via montanhas imensas no meu entorno,
via abismos diante de mim, e os córregos com as águas da chuva
lançavam-se do precipício, entornando o caldo dos rios mais abaixo e
fazendo ressoar a mata e a montanha; eu via todas essas forças
inescrutáveis agirem e impactarem umas sobre as outras nas
profundezas da terra, enquanto sobre a terra e sob o céu pululam
gerações das mais variadas criaturas. Tudo, tudo povoado com
milhares de formas diferentes, enquanto os seres humanos se reúnem
na segurança de seus casebres, neles se aninham e exercem seu
domínio, em favor próprio, sobre o vasto mundo! Pobres daqueles
tolos, que, de tão pequenos diante disso, julgam ser tudo
insigni cante!  — Das alturas inacessíveis da montanha, passando
pelas regiões mais ermas e ainda não pisadas pelo homem, até os
con ns do oceano ignoto, sopra o espírito do eterno criador, e ele se
regozija com cada grão de pó que, ao percebê-lo, ganha vida. — Ah,
aqueles tempos! Quantas vezes não desejei que as asas de um grou,
que passasse voando sobre mim, me levassem junto até a outra
margem desse imenso mar, para que eu pudesse beber, da copa
espumante do in nito, aquela alegria latejante da vida, e para que eu
pudesse sentir, ao menos por um instante, na condição nita da força
que se encerra em meu peito, uma única gota de felicidade daquele ser
que tudo cria em si e de si.
Meu irmão, só a lembrança daqueles tempos me faz bem. O próprio
esforço para evocar aquelas sensações indescritíveis, para dizê-las aqui
de novo, já projeta minha alma para fora de si e me faz sentir em
dobro o medo da situação em que me vejo agora enredado.
É como se a cortina se abrisse diante de minha alma e o palco da
vida in nita se transformasse, logo à minha frente, no poço sem fundo
de uma cova eternamente aberta. Você diz:  — É assim!  — Mas e se
tudo vem e logo passa? E se tudo passa por nós e segue adiante no
compasso das tormentas, já que é também tão raro que alguém
consiga resistir até esgotar todas as suas forças, sendo, antes disso,
arrastado pela correnteza, engolido pelas águas e esmagado em
pedaços contra as pedras? Não há um só momento que não devore a
ti e aos teus, não há um só momento em que você já não seja ou não
acabe se tornando necessariamente um destruidor. O mais inocente
passeio pelo campo custa a vida de milhares de vermezinhos, esses
coitados! Basta uma única pisada no edifício construído com tanto
esforço pelas formigas, e um pequeno mundo logo se reduz à infâmia
de uma cova. Ah, o que mais me comove não são as grandes e raras
adversidades do mundo  — as enchentes que arrasam os vilarejos, os
terremotos que tragam as cidades; o que me assola o coração é essa
força devoradora inerente à própria natureza, que não é capaz de
fazer nada sem destruir ao seu próximo ou a si mesma. E assim,
tomado pelo medo, sigo cambaleando por aí. Tenho o céu e a terra e
as forças que tudo tecem ao meu redor! Mas não vejo nada além de
um monstro descomunal, que não cessa de devorar, e que rumina sem
cessar.

21 de agosto
Em vão estendo o braço à sua procura de manhã, assim que desperto
de meus sonhos pesados; em vão busco por ela à noite em minha
cama, quando um sonho feliz e inocente me ilude, fazendo-me crer
que eu estava sentado ao seu lado sobre a grama e que segurava sua
mão e a cobria de beijos e mais beijos. Ah, e quando eu, ainda meio
sonolento, vou tateando para ver se a encontro e, nisso, desperto por
completo — uma torrente de lágrimas irrompe então de meu coração
apertado, e choro desconsoladamente diante da perspectiva sombria
que o futuro me reserva.

22 de agosto
Que infelicidade, Wilhelm! Uma lassidão inquietante acabou
embotando minhas forças todas, não consigo fazer nada, mas
tampouco consigo car sem fazer coisa alguma. Não há o que me
desperte a imaginação, os livros me enfastiam e até mesmo a natureza
me é indiferente. Quando sentimos falta de nós mesmos, todo o resto
nos faz falta. E eu te juro: tem dia que eu queria ser um simples
trabalhador, apenas para acordar de manhã e ter alguma perspectiva,
algo que me movesse ao longo do dia, uma esperança. Às vezes tenho
inveja de Albert, a quem sempre vejo em meio aos processos,
soterrado até as orelhas, e co imaginando que eu talvez fosse feliz se
estivesse em seu lugar! Quantas vezes já não pensei em escrever a você
e ao ministro, para me candidatar àquele cargo na embaixada, que,
como você me garantiu, não me seria negado. Não duvido disso. Há
muito tempo que o ministro tem simpatia por mim e insiste para que
eu nalmente me dedique a algum negócio. Às vezes também acho que
isso me faria bem, mas, logo em seguida, quando penso de novo no
assunto e lembro da fábula do cavalo28 que, impaciente com sua
liberdade, deixa-se selar, encilhar e depois acaba sendo cavalgado até a
exaustão; — não sei mais o que devo fazer — Meu caro, será que esse
desejo em mim, de querer mudar minha situação, não é uma forma
íntima e angustiada de impaciência, que vai continuar me perseguindo
por toda parte?

28 de agosto
É verdade, se minha doença fosse curável, as pessoas ao meu redor já
o teriam feito. Hoje é meu aniversário,29 e logo ao romper da manhã
recebo um pequeno pacote de Albert. Quando eu o abro, meus olhos
logo se deparam com um daqueles laços rosados que Lotte usava no
dia em que a conheci e que eu, desde então, insisti tantas vezes que ela
me desse de lembrança. No pacote ainda havia dois livrinhos em
formato de bolso: o Pequeno Homero de Wetstein, numa edição que
há tempos eu queria adquirir, para não ter de carregar comigo o peso
do Ernesti em meus passeios.30 Olha só como eles antecipam as
minhas vontades, como eles todos procuram fazer aquelas pequenas
gentilezas da amizade, que são mil vezes mais valorosas do que
presentes deslumbrantes, com que a vaidade do doador só nos
diminui. Eu beijo este laço rosado mil vezes e me embebo, cada vez
que respiro, na lembrança dos momentos de felicidade, com os quais
aqueles poucos dias felizes e irrecuperáveis me inundavam o coração.
Wilhelm, é assim que a coisa anda por aqui, mas não vou car
resmungando; as ores da vida não passam de manifestações
efêmeras! Quantas não são as que surgem, vivem e desaparecem sem
deixar vestígios; algumas até dão frutos, mas somente alguns poucos
frutos chegam a amadurecer! E, ainda assim, há tantos deles por aí; e,
ainda assim  — Oh, meu irmão!  —, será que podemos simplesmente
ignorar esses frutos maduros, desdenhar deles, deixar que apodreçam
sem que sejam degustados?
Até logo, meu caro! O verão está maravilhoso; às vezes subo nas
árvores do quintal da casa de Lotte e, com uma vara longa, tento
alcançar as peras que cam mais no alto. Ela ca embaixo, e vai
apanhando os frutos que eu jogo para ela.

30 de agosto
Seu pobre infeliz! Será que você é mesmo um tolo? Será que você não
percebe que está enganando a si mesmo? Que sentido faz alimentar
essa paixão delirante, sem m? Minhas preces só se voltam a ela;
nenhuma outra gura se projeta em minha imaginação, a não ser a
dela, e tudo o que vejo no mundo à minha volta eu relaciono com ela.
É verdade que isso me proporciona algumas boas horas de alegria —
até que então sou obrigado a me afastar dela novamente! Ah,
Wilhelm, que coisas esse meu coração não me leva a sentir?  —
Quando co sentado ao lado dela por duas, três horas a o,
deliciando-me com sua gura, com seu jeito de fazer as coisas, com a
expressão divinal de suas palavras, pouco a pouco meus sentidos
começam a se tensionar, a vista me escurece, eu mal consigo ouvir, e a
garganta me aperta, como se esganada pelas mãos de um
estrangulador; meu coração, então, dispara num batimento selvagem,
buscando aliviar meus sentidos a itos, mas não sem aumentar ainda
mais seu descompasso — Wilhelm, de vez em quando eu não sei nem
se ainda estou neste mundo! E aí  — quando a melancolia me pesa
sobre os ombros e Lotte me concede o triste consolo de chorar minhas
mágoas em suas mãos  —, aí eu tenho que ir embora, tenho que me
afastar, saio dali e co vagando longamente pelos campos! Minha
única alegria, então, é escalar uma montanha bem íngreme, abrir uma
trilha na mata fechada, passando por arbustos que me machucam, por
espinhos que me rasgam a pele! E isso me deixa um pouco melhor!
Um pouco! E quando, vencido pelo cansaço e pela sede, eu às vezes
co deitado pelo caminho, ou quando, às vezes no avançado da
madrugada, a lua cheia se ergue sobre mim e, apenas para dar
descanso aos meus pés doridos, eu me sento sobre um tronco retorto
na solidão da mata e, nas barras da manhã, acabo pegando no sono
de tão exausto  — Oh, Wilhelm! Nesses momentos, sinto que a
reclusão solitária de uma cela, as vestes grosseiras de pele e o cinto de
espinhos seriam um bálsamo para a minha alma.31 Até logo! Não vejo
outro m para essa a ição que não o túmulo.

3 de setembro
Tenho que ir embora daqui! Obrigado, Wilhelm, por ter me ajudado a
tomar essa decisão em meio às minhas tantas hesitações. Já faz duas
semanas que venho ertando com a ideia de deixá-la. Tenho que ir
embora. Ela foi de novo para a casa de uma amiga, na cidade. E
Albert — e — tenho que ir embora daqui!
10 de setembro
Mas que noite, Wilhelm! Sinto agora que sou capaz de superar
qualquer coisa. Não a verei novamente! Oh, meu caro, quem me dera
eu pudesse te dar agora um abraço e, arrebatado pelo caudal das
minhas lágrimas, pudesse te falar das emoções que inundam meu
coração! Mas aqui estou eu, arfando como se o ar casse cada vez
mais rarefeito; tento me tranquilizar e aguardo o amanhecer; ao raiar
do sol, os cavalos estarão prontos para a partida.
Ah, ela agora deve estar dormindo tranquila, e nem lhe passa pela
cabeça que não vá me ver nunca mais. Consegui nalmente me
libertar, e fui forte o su ciente para não lhe revelar meus propósitos,
mesmo depois de duas longas horas de conversa. Meu deus, e que
conversa!
Albert havia me prometido que, logo após o jantar, iria com Lotte
até o jardim. Enquanto eu aguardava por eles no terraço, à sombra
das grandes castanheiras, quei acompanhando o curso do sol, que
dali eu via se pôr pela última vez por detrás daquele vale tão adorável,
além daquele rio de curvas tão suaves e graciosas. Quantas vezes não
estive ali com ela, quantas vezes não assistimos juntos a esse
espetáculo maravilhoso, e agora  — Eu andava de um lado para o
outro, cruzando de cima a baixo a alameda que me era tão cara. Uma
misteriosa força de atração já havia me trazido a esse jardim mesmo
antes de conhecer Lotte, e como nos alegramos ao descobrir, numa
época em que ainda mal nos conhecíamos, que ambos nutríamos a
mesma simpatia por esse lugar! De nitivamente, um dos mais
românticos que eu já vi serem criados pela arte.
Primeiro você tem essa vista ampla que se abre por entre as
castanheiras  — Ah, creio que já te escrevi bastante sobre isso, não?
Acho que cheguei a te contar como as enormes muralhas de faia vão
aos poucos emparedando a gente e a alameda vai cando cada vez
mais sombria em razão de um bosquete contíguo, que se estende a sua
margem, até que, por m, tudo termina num lugarzinho mais
reservado, que encerra em si todos os arrepios da solidão. Ainda me
lembro da sensação estranhamente familiar que senti quando ali entrei
pela primeira vez, em pleno sol do meio-dia; era como se algo em mim
pressentisse que esse mesmo lugar ainda seria palco de uma grande
felicidade, mas também de grande sofrimento.
Eu já me encontrava ali havia cerca de meia hora, distraído pelos
pensamentos angustiantemente doces da separação, do reencontro,
quando ouvi os dois subindo em minha direção. Corri de pronto até
eles e, tomado por um calafrio, segurei a mão de Lotte e a beijei.
Tínhamos acabado de chegar ao terraço, quando a lua começou a
nascer por detrás da colina coberta de arbustos; caminhamos e
conversamos sobre os mais diversos assuntos, até que, sem nos
darmos conta, fomos nos aproximando daquela espécie de gabinete
sombrio. Lotte entrou e logo se sentou, Albert tomou lugar ao seu
lado, eu também; mas é claro que minha inquietação não me permitia
car sentado por muito tempo; eu me levantei, quei a sua frente,
andei de um lado para outro e me sentei novamente: a situação era
angustiante. Ela então nos chamou a atenção para o belo efeito
produzido pelo luar, que, naquele instante, iluminava todo o terraço
ao nal do corredor de faias que se abria diante de nós: uma vista
maravilhosa, e tanto mais fascinante porque, emoldurando a cena
toda, envolvia-nos ainda o último lusco-fusco do arrebol. Ficamos em
silêncio, até que ela começou:  — Nunca saio para caminhar ao luar,
nunca, sem que a lembrança dos entes queridos venha ao meu
encontro, sem que me sobrevenha a sensação da morte, do futuro que
me aguarda. Nós continuaremos existindo!  — disse ela com a voz
tomada pela emoção mais sublime.  — Mas Werther, será que
voltaremos a nos encontrar? Será que nos reconheceremos? Qual o seu
pressentimento? O que você diz a esse respeito?
— Lotte  — disse eu, dando-lhe a mão, os olhos cheios de
lágrimas  —, nós vamos nos ver de novo! Aqui e além, nós nos
veremos de novo!  — Não fui capaz de dizer mais nada  — Wilhelm,
por que é que ela tinha que me perguntar isso justo no momento em
que meu coração vinha já carregado com a sensação angustiante da
despedida?
— E aqueles nossos entes queridos, que já se foram, será que eles
cam sabendo de nós  — prosseguiu ela  —, será que eles sentem
quando nós estamos bem, quando nos lembramos deles com todo o
carinho? Ah, a gura de minha mãe! Ela está sempre comigo naquelas
noites serenas, em que me sento à mesa com os lhos dela, agora
lhos meus, reunindo-os à minha volta do mesmo modo como ela os
reunia à sua. Olho então para os céus, com uma lágrima de saudade, e
desejo que ela pudesse dar uma espiada aqui embaixo, por um
instante que fosse, para ver como estou mantendo minha palavra,
como estou cumprindo o que lhe prometi na hora de sua morte: ser a
mãe de seus lhos. E de tão emocionada, então, eu exclamo: Me
perdoe, minha mãe, se não consigo ser para eles o que você era! Mas
faço tudo o que posso! Eles estão vestidos, alimentados; ah, e muito
mais do que isso: eles são bem cuidados, são amados! E se você
pudesse ao menos ver como somos unidos, minha santa mãezinha,
tenho certeza de que você agradeceria fervorosamente àquele deus, a
quem você pediu, com suas últimas e mais amargas lágrimas, pelo
bem-estar de seus lhos!
Foi isso o que ela disse! Mas, Wilhelm, quem seria capaz de repetir
o que ela disse? Como pode a letra fria e morta representar um
desabrochar tão magní co do espírito!? Albert cortou-lhe gentilmente
a palavra: — Isso tudo a comove demais, querida Lotte! Sei bem que
sua alma é muito apegada a essas ideias, mas, por favor  — Oh,
Albert — disse ela —, sei bem que você não se esquece daquelas noites
em que papai estava de viagem e, depois de termos mandado os
pequeninos para a cama, sentávamos os três em volta da mesinha
redonda. Você quase sempre tinha contigo um ótimo livro, mas apenas
muito raramente chegava a lê-lo — A nal, a convivência com aquela
alma maravilhosa não valia mais do que tudo? Que mulher bonita,
gentil, animada, e sempre tão ativa! Deus sabe as lágrimas que
derramei das tantas vezes que, em minha cama, ajoelhei-me diante
dele, pedindo-lhe que me tornasse igual a ela.
— Lotte! — exclamei eu, ao ajoelhar-me diante dela, tomando sua
mão e cobrindo-a com o véu de lágrimas que eu vertia.  — Lotte! A
bênção de deus repousa sobre ti, assim como o espírito de tua mãe! —
Ah, se você tivesse tido ocasião de conhecê-la — disse ela, apertando-
me as mãos  —, pois ela bem que merecia tê-lo conhecido!  — Tive a
sensação de que perderia os sentidos. Nunca ninguém havia se
referido a mim com palavras de tamanha altivez e grandeza. E ela
continuou:  — E essa mulher acabou sendo levada embora em plena
or da idade, quando seu lho mais novo nem bem havia completado
seis meses! A doença não se prolongou por muito tempo; ela se
manteve calma, aceitou tudo sem grande resistência, sofria apenas
pelos seus lhos, especialmente pelo menor. Quando se aproximava do
m, ela me pediu que eu os fosse buscar, e eu os trouxe: os menores
não sabiam de nada, os mais velhos caram confusos. Quando
estavam todos reunidos ao redor da cama, ela levantou as mãos e fez
uma prece por cada um deles; e foi beijando e mandando embora um
depois do outro, até que chegou a minha vez e ela me disse: Seja a mãe
deles! Assentindo, dei-lhe a minha mão. Sei que é muito o que você
está prometendo, minha lha, disse ela, ser o coração de uma mãe, ser
os olhos de uma mãe. Mas, em tuas lágrimas de gratidão, já percebi
mais de uma vez que você sente exatamente o que isso signi ca. Pois
seja-o pelos teus irmãos; e, por teu pai, tenha a delidade e a
obediência de uma esposa. Você é quem vai consolá-lo. Ela então
perguntou por ele, mas ele havia saído, na tentativa de ocultar de nós
a dor insuportável que sentia; o homem estava em frangalhos.
“Albert, você também estava no quarto. Ela ouviu alguém andando,
perguntou quem era e pediu para falar contigo; e ela então olhou para
ti e para mim com um olhar sereno e aliviado, certa de que seríamos
felizes, de que juntos seríamos felizes. — Albert abraçou Lotte, beijou-
a e disse:  — Nós somos felizes! E continuaremos sendo!  — Albert,
sempre tão impassível, cou completamente fora de si, e eu mesmo já
não sabia mais nada de mim.
— Werther — começou ela —, pois esta foi a mulher que tiraram de
nós! Deus, quando penso como às vezes deixamos que nos levem o
que mais amamos neste mundo! E ninguém sentiu isso tão na carne
como as crianças, que por muito tempo ainda caram se queixando
daqueles homens de preto que haviam levado a mamãe embora.
Quando ela se levantou, foi como se eu despertasse, mas, ainda
abalado com tudo, continuei sentado e segurando sua mão. — Vamos
embora daqui — disse ela —, já é hora. — Ela tentou soltar sua mão
da minha, mas eu a segurei ainda mais rme. — Nós vamos nos ver de
novo — gritei —, nós vamos nos reencontrar e, mesmo que perdidos
no sem- m das formas, nós vamos nos reconhecer. Eu vou embora —
continuei  —, vou embora por minha própria vontade, mas, se eu
tivesse que dizer que é para sempre, não suportaria fazê-lo. Até logo,
Lotte! Até logo, Albert! Nós nos veremos de novo  — Imagino que
amanhã — replicou ela, jocosamente. — Ah, como senti pesar em meu
peito aquele seu “amanhã”! Mas, ao soltar sua mão da minha, ela mal
podia imaginar isso — Eles foram embora pela alameda, e eu quei ali
mesmo, acompanhando-os de longe à luz do luar. Atirei-me então no
chão e caí no choro e levantei-me num sobressalto e corri até o terraço
e ainda consegui avistar, lá embaixo, uma réstia de vestido branco
reluzindo à sombra das enormes tílias quando ela passou pelo portão
do jardim; estendi meus braços o quanto pude, mas nada mais se pôde
ver.

* Que o leitor se poupe o esforço de procurar pela localidade aqui mencionada; fez-se
necessário alterar todos os nomes verdadeiros que ocorrem no manuscrito original.

** Fez-se necessário excluir essa passagem da carta, para que não se criassem, aqui, motivos
para quaisquer reclamações, muito embora, no fundo, nenhum autor possa levar muito a
sério os juízos de uma moça, em particular, e de um jovem irrequieto.

*** Também aqui foram omitidos os nomes de alguns autores de nossa terra. Quem partilha
das aclamações de Lotte certamente os sentirá em seu coração ao ler essa passagem; quanto
aos demais, ninguém precisa saber do que se trata.

**** Há um sermão excepcional de Lavater a esse respeito, entre aqueles que tratam do Livro
de Jonas.
segundo livro
20 de outubro de 1771
Chegamos aqui ontem. O embaixador não se encontra muito disposto
e cará de repouso por alguns dias. Se ele ao menos não fosse um
homem de tão difícil trato, tudo estaria bem. Mas percebo, já percebo
que o destino me reservou as mais duras provações. En m, nada de
desanimar! Com leveza de espírito, tudo se suporta! Leveza de
espírito? Disso eu só posso rir. Como foi que essa expressão veio dar
aqui à minha pena? Ora, uma dose mínima de leveza em meu sangue
faria de mim o mais feliz dos mortais. O quê? Enquanto os outros, em
sua mais cômoda autocomplacência, cam se gabando de suas poucas
habilidades e de seus parcos talentos, eu mesmo não consigo senão
duvidar de minha capacidade e de meus dons? Ah, bom deus, que
tudo me concede, por que você não guardou para ti a metade disso
tudo e não me deu, em troca, um pouco mais de autocon ança e de
satisfação comigo mesmo?
Paciência! Paciência! Tudo vai melhorar. Pois vou te dizer, meu caro:
você tem toda razão. Desde que venho passando meus dias em meio a
essa gente mais simples, vendo de perto o que eles fazem e como eles
levam a vida, tenho me sentido bem melhor comigo mesmo. Sem
dúvida — até porque somos feitos de tal modo que comparamos tudo
conosco e nos comparamos com tudo —, nossa felicidade ou miséria
depende daquilo e daqueles que nos servem de comparação, e, nesse
sentido, nada mais perigoso do que a solidão. Nossa força
imaginativa, compelida naturalmente às exaltações desmedidas e
nutrida pelo imaginário fantástico da arte poética, inventa para si uma
série de criaturas, entre as quais costumamos gurar como a menos
privilegiada; tudo o que está fora de nós parece muito mais
maravilhoso, todos os outros sempre nos parecem mais perfeitos. E
isso se dá de modo muito natural. É comum sentirmos que carecemos
de algo, e aquilo que nos falta, em geral, um outro parece sempre
possuir; e a essa imagem do outro acrescentamos, ainda, tudo o que
nós possuímos, bem como certa condição idealizada de bem-estar. E
eis que nalmente está pronta essa criatura feliz, criada por nós
mesmos.
Em compensação, quando, apesar de toda nossa fraqueza e
di culdade, conseguimos ir tocando adiante, é comum descobrirmos
que, mesmo com esse nosso modo de bordejar e de navegar a
contravento, às vezes ainda chegamos mais longe do que outros que
remam e velejam de vento em popa  — e  — quando nos sentimos à
altura dos outros, ou conseguimos superá-los, temos de fato uma
sensação muito verdadeira de nós mesmos.

10 de novembro32
Estou começando a me sentir razoavelmente bem por aqui, na medida
do possível. O melhor de tudo é que há muito o que fazer; e tem ainda
todo tipo de gente, as mais diversas guras, que acabam
proporcionando à minha alma um espetáculo sempre muito colorido.
Conheci o conde C…, um homem que respeito mais a cada dia que
passa, de mente aberta e arejada, e que, justamente por ter uma visão
mais ampla das coisas, não é uma pessoa fria, e inspira amizade e os
melhores sentimentos em todos que com ele convivem. Começou a
simpatizar comigo quando entrei em contato com ele a propósito de
um negócio de que eu havia sido encarregado, e, já ao ouvir minhas
primeiras palavras, ele percebeu que nos entenderíamos bem, que
poderia conversar comigo de um modo que ele não se permitia
conversar com qualquer pessoa. Eu poderia car aqui elogiando
longamente o modo franco e aberto com que ele se relaciona comigo,
pois não há no mundo alegria mais verdadeira e reconfortante do que
a de ver uma alma grandiosa disposta a se abrir para o outro.

24 de dezembro
Como eu já previa, o embaixador só me dá desgosto. É um louco, a
pessoa mais pontilhosa que existe, faz tudo passo a passo, com a
morosidade de uma velha caquética; é alguém que nunca está
satisfeito consigo mesmo e que, por essa mesma razão, ninguém
jamais será capaz de contentar. Gosto de resolver minhas coisas com
rapidez, e em geral tudo ca exatamente do jeito que me sai; ao
contrário dele, que está sempre pronto para me devolver o que
escrevo, dizendo-me:  — Está bom, mas o senhor dê mais uma boa
olhada, sempre há uma palavra mais apropriada, uma expressão
enfática mais precisa.  — Aí tenho vontade de mandar tudo para o
diabo que o carregue. Nem um simples “e”, nem uma conjunçãozinha
sequer pode car fora de lugar; quanto às inversões sintáticas, que às
vezes não consigo evitar, ele é delas um inimigo mortal; e se os
períodos não forem organizados seguindo a melodia mais
convencional da língua, ele simplesmente não entende nada do que
está escrito. Ter de lidar com uma pessoa como esta é um sofrimento
só.
A con ança do conde C… ainda é minha única compensação.
Outro dia ele me disse, com toda a sinceridade, o quanto estava
insatisfeito com a lentidão e com o excesso de zelo do meu
embaixador. — Assim as pessoas só complicam a própria vida e a dos
outros — disse ele —, mas temos de nos resignar diante disso, como
um viajante que tem uma montanha em seu caminho; claro que, se a
montanha não estivesse ali, o caminho seria muito mais curto e
confortável; mas ela está ali e é preciso passar por ela!
O velho também já deve ter percebido que o conde tem mais
simpatia por mim do que por ele, e, como isso o deixa irritado, ele
não perde a oportunidade de falar mal do conde para mim:
naturalmente, eu o desdigo, o que só piora as coisas. Ontem mesmo
ele quase me fez perder a paciência, até porque era também a mim que
ele se referia: disse-me que, para os negócios em geral, o conde era
muito bom, sabia resolver as coisas com muita facilidade e tinha uma
escrita precisa; mas também me disse que, como sói acontecer com os
beletristas, faltava-lhe consistência na erudição. E fez ainda uma cara
de quem parecia querer dizer:  — Sentiu a pontada?  — Mas ele não
conseguiu me provocar; eu só podia desprezar alguém que se permite
pensar e se comportar desse jeito. Pois quei em guarda e respondi ao
seu ataque, dando-lhe uma estocada um tanto dura. Disse-lhe que o
conde era um homem a quem se devia todo o respeito, tanto por seu
caráter quanto por seus conhecimentos. — Jamais conheci alguém —
disse eu  — que tivesse sido capaz de ampliar tanto os horizontes de
seu espírito, tornando-se conhecedor de um sem-número de assuntos,
mas sem nunca perder o pé das questões mais simples da vida prática
e cotidiana.  — Isso era grego para aquela cachola; deixei-lhe então
meus cumprimentos, para não ter que car ali, engolindo outras de
suas desrazões.
Pois saiba que vocês todos são os culpados disso! Foram vocês que
caram me encasquetando a ideia de aceitar esse jugo depois de tanta
cantoria sobre o exercício dessa atividade. Atividade! Se alguém que
planta batatas e cavalga até a cidade para vender seus grãos não faz
mais do que eu por aqui, quero mais é que me deixem escangalhar por
dez anos nessa galé a que me sinto agora agrilhoado.
E essa miséria radiante! O enfado que é moeda corrente entre o
povo insosso que se vê por aqui! O vício da posição social, que faz
com que as pessoas quem vigiando e controlando tudo para ver se
conseguem se colocar um passinho à frente dos outros. E as manias
mais infelizes, mais lamentáveis, sempre tão nuas e cruas. Há por
aqui, por exemplo, uma mulher que não se cansa de falar, para todo
mundo, de sua nobreza e da terra de onde ela vem, e alguém que não
a conhecesse logo poderia pensar: Deve ser só uma mulher tola, que
ca se gabando de seu bocadinho de nobreza e inventando histórias
maravilhosas de sua terra. — Mas não, a situação é muito pior, pois a
mulher é daqui mesmo, da vizinhança, e não passa de uma lha de
escrivão.  — Veja só, não dá para entender um ser humano cuja
estreiteza de espírito é tamanha a ponto de se prestar tão banalmente
a esse ridículo.
A bem da verdade, meu caro, venho percebendo dia após dia como
é insano medir os outros a partir de nós próprios. E já que tenho
coisas demais para resolver comigo mesmo e este meu coração anda
tão atormentado — ah, faço questão de deixar que os outros tomem o
rumo que quiserem em suas vidas, e como seria bom se a mim
também deixassem seguir o meu caminho.
Mas o que de fato mais me incomoda por aqui são as relações
desastrosas entre as classes sociais. Sei tão bem quanto qualquer outra
pessoa que as diferenças de classe são necessárias, e sei também dos
vários privilégios que elas proporcionam, inclusive a mim mesmo. Só
não entendo por que elas têm que me atravessar o caminho e me
impedir de aproveitar os poucos momentos de alegria, os lampejos de
felicidade que ainda me sobraram neste mundo. Outro dia, durante
um passeio, conheci uma certa senhorita B…, criatura adorável, que
conseguiu conservar muito de sua naturalidade apesar de viver a vida
tão travada de seu meio. A conversa tanto nos agradou que, na hora
de me despedir, pedi a ela que me permitisse visitá-la em sua casa. E
foi tamanha a franqueza com que ela consentiu nisso que mal pude
esperar o momento mais apropriado para ir vê-la. Ela não é daqui,
está passando uns dias na residência de uma tia. A sionomia da velha
não me agradou muito. Dediquei-lhe boa parte de minha atenção,
minha conversa quase sempre se dirigia também a ela, mas em menos
de meia hora já pude compreender o que a própria senhorita viria a
admitir logo em seguida: que sua querida tia, no avançado da idade,
vivia a carestia de tudo; que não tinha mais a fortuna que lhe fazia jus,
nem a força de espírito, nem nada mais que a sustentasse, a não ser a
linhagem de seus antepassados; que não tinha outro respaldo que não
o da casta em que ela se entrincheirava; e que, do andar mais alto de
sua posição social, não tinha nenhuma outra satisfação além de olhar
por sobre as cabecinhas burguesas. Dizem que quando jovem foi
muito bonita e que acabou desperdiçando sua vida: primeiro, ao
atormentar alguns pobres rapazes com seus caprichos e, mais tarde, já
nos anos da maturidade, ao sujeitar-se à autoridade de um velho
o cial, que, em troca de sua submissão e de mais uma pensão
considerável, passou com ela os anos de bronze até falecer. Agora, ao
chegar à idade de ferro, ela se encontra sozinha no mundo, e, não
fosse por sua sobrinha tão gentil, ninguém mais a levaria em
consideração.33

8 de janeiro de 1772
Mas que pessoas são essas, que parecem concentrar todos os seus
esforços e sua atenção em questões de etiqueta, que pintam e bordam
durante anos tão somente para ver se conseguem se sentar à mesa
numa cadeira cada vez mais próxima da cabeceira! Não que essas
pessoas não tenham com o que se ocupar: pelo contrário, seus
trabalhos vão se acumulando cada vez mais, justamente porque as
pequenas contendas acabam impedindo o expediente das coisas mais
importantes. Pois foi o que aconteceu semana passada, durante um
passeio de trenó, quando um desses embates acabou com toda a
diversão.
Tolos daqueles que não veem que pouco importa se chegam em
primeiro ou em segundo lugar, e que aquele que chega em primeiro
nem sempre desempenha o papel principal! Assim como alguns reis
são regidos por seus ministros, e alguns ministros, por seus
secretários! E quem vem primeiro nesses casos, quem é o mais
importante? É aquele, penso eu, que não dá importância demasiada
aos outros, e que tem poder ou astúcia su ciente para colocar as
paixões e as competências deles a serviço da execução de seus próprios
planos.

20 de janeiro
Aqui, neste quarto modesto de albergue, onde vim me abrigar de uma
forte tormenta, sinto uma necessidade urgente de lhe escrever, cara
Lotte. Enquanto me encontrava naquele ninho triste de D…, vagando
em meio a uma gente estranha, completamente estranha ao meu
coração, não houve um só momento em que este mesmo coração me
chamasse a lhe escrever; mas agora, nesta choupana, nesta condição
de solidão e con namento, enquanto a neve e o granizo fustigam
minha janelinha com suas saraivadas, aqui, meu primeiro pensamento
foi todo seu. Assim que entrei nesta pequena hospedaria, fui logo
assaltado por sua gura, por sua lembrança, Lotte! Tão sublime, tão
ardente! Meu deus, há quanto tempo não tinha um momento feliz!
Minha cara, se você visse como meus sentidos vão aos poucos se
ressequindo no remoinho dessas distrações; não há um único instante
de felicidade, nem um momento sequer em que eu sinta meu coração
por inteiro! Nada! Nada! É como se eu estivesse diante do espetáculo
raro proporcionado por um daqueles dispositivos ópticos chamados
caixas de perspectiva: vejo homenzinhos e pequenos pangarés
moverem-se à minha frente e co me perguntando se tudo não passa
de ilusão de óptica. Entro na brincadeira, e mais que isso: são eles que
brincam comigo, manipulam-me como a uma marionete; e às vezes
toco a mão de madeira de meu vizinho e, de susto, dou um passo
atrás. De noite desejo ver o sol nascer, mas não consigo sair da cama
na manhã seguinte; de dia me alegro com a expectativa do luar, mas
nem saio do meu quarto. Não sei por que me levanto, não sei por que
vou dormir.
A massa levedada que pôs minha vida em movimento agora me faz
falta; o estímulo que me deixava acordado até a alta madrugada e que
me despertava do sono de manhã agora sumiu de vez, desapareceu.
Por aqui, só encontrei uma única criatura feminina, uma senhorita
B…, e ela é parecida com você, se é que a posso comparar com
alguém, minha cara Lotte. — Ei — você me dirá —, o homem agora
deu de me fazer lisonjas!  — Pois isso não deixa de ter um fundo de
verdade. De uns tempos para cá, acabei me tornando mais gentil, até
porque não consigo mesmo ser diferente, e também mais espirituoso.
As moças me dizem que ninguém é capaz de fazer galanteios como eu
(nem de contar tão bem algumas mentiras, acrescentaria você, mas é
que, sem isso, nada acontece, entende?). Eu queria lhe falar da
senhorita B… Ela tem uma alma grandiosa, que logo se vê reluzir
através de seus olhos azuis. Sua classe social é para ela um peso, e não
satisfaz nenhum dos desejos que habitam seu coração. Ela gostaria
mesmo é de se ver longe do tumulto, e tem horas que camos nos
imaginando em cenas bucólicas, repletas da mais intocada felicidade.
Ah, e também falamos muito da sua pessoa! Quantas vezes ela não
tem de admitir a simpatia que sente por você. Não, ela não tem que
fazer isso, ela o faz deliberadamente, pois gosta de me ouvir falar a
seu respeito, ela adora você.
Ah, Lotte, queria tanto estar sentado a seus pés naquele quartinho
acolhedor, queria ver os nossos pequeninos rolando uns sobre os
outros à minha volta; e se a gritaria passasse dos limites, contaria a
eles outra história horripilante, para que nalmente sossegassem ao
meu redor.
Aqui, vejo o sol se pôr com toda a majestade, espalhando seu
resplendor sobre esta região completamente coberta de neve. A
tempestade passou e eu — está na hora de voltar à minha jaula. — Até
logo! Albert está aí ao seu lado? E como — ? Deus me perdoe por essa
pergunta!

8 de fevereiro
Esse tempo abominável já persiste agora por oito dias, mas a mim até
que faz bem. Pois desde que estou por aqui não tive sequer um dia
bonito que alguém não tivesse conseguido frustrar ou estragar de vez.
Já quando chove para valer e vem a nevasca e tudo regela e degela
logo em seguida, aí eu penso: ah, a coisa aqui dentro não pode estar
pior do que lá fora! Ou vice-versa, e assim é bom. Se de manhã o sol
nasce anunciando um belo dia, nunca deixo de pensar: eis que a eles se
concede de novo uma dádiva divina, pela qual podem voltar a brigar
uns com os outros! Não há nada que não os faça brigar uns com os
outros. Saúde, fama, felicidade, diversão! E, em geral, movidos por
uma bobagem, por um desentendimento qualquer, por ignorância; e se
damos ouvidos ao que eles dizem, não há nada que aconteça sem a
melhor das intenções. Às vezes tenho vontade de lhes pedir, de joelhos,
que não se revolvam tão raivosos em suas próprias entranhas.

17 de fevereiro
Receio que o embaixador e eu não consigamos continuar trabalhando
juntos por muito mais tempo. Esse homem é inteira e absolutamente
insuportável. Seu jeito de trabalhar e de conduzir os negócios é tão
ridículo que não consigo parar de contradizê-lo e, não raro, acabo
fazendo as coisas do meu próprio jeito, como me dá na telha, o que,
naturalmente, nunca sai dentro de seus conformes. Em razão disso, há
alguns dias, ele resolveu reclamar de mim junto à corte, o que me
rendeu uma advertência do ministro; uma advertência leve, é bem
verdade, mas, ainda assim, uma advertência. Eu já estava quase
desejando minha demissão, quando recebi dele uma carta particular;*
uma carta diante da qual eu só pude me pôr de joelhos, venerando
aquele espírito tão altivo, nobre e sábio. Nela o ministro me repreende
por minha sensibilidade excessiva, mas também elogia minhas ideias
excêntricas de e ciência, de in uência sobre os outros e de persistência
nos negócios; ele as trata como iniciativas de um jovem de boa
vontade e, em vez de querer destruí-las, procura modalizá-las e
reorientá-las, para que eu possa me servir delas lá, onde elas fazem
parte efetiva do jogo, onde elas podem produzir seus maiores efeitos.
Agora sinto que tenho forças para aguentar por mais oito dias, entrei
em consonância comigo mesmo. O sossego da alma é uma coisa
maravilhosa, assim como o contentamento consigo mesmo. Ah, caro
amigo, se essa joia não fosse tão frágil quanto é bonita e preciosa.

20 de fevereiro
Meus caros, que deus os abençoe e conceda a vocês todos aqueles dias
bons, de que ele vem me privando!
Albert, muito obrigado por ter me traído: estava esperando notícias,
queria saber a data do casamento de vocês, e já havia até decidido
que, no mesmo dia, com toda pompa e circunstância, eu retiraria da
parede aquela silhueta de Lotte e a sepultaria em meio ao restante dos
meus papéis. Agora vocês já são um casal, e o retrato dela ainda
continua pendurado aqui! Pois vai continuar assim mesmo! E por que
não? Sei que também estou aí com vocês; sei que, sem prejuízo do
respeito que tenho por ti, estou no coração de Lotte, ocupo nele o
segundo lugar e quero, tenho de mantê-lo. Oh, eu caria furioso se ela
fosse capaz de esquecer  — Albert, há todo um inferno nesse meu
pensamento. Até logo, Albert! Até logo, Lotte, até logo, anjo divinal!

15 de março
Acabei de ter um desgosto que há de me levar para longe daqui. É de
ranger os dentes! Que diabos, não tem mais conserto! E vocês são os
únicos culpados disso tudo; foram vocês que me meteram as esporas e
me incitaram e me atormentaram para assumir este posto, que não
tinha nada que ver comigo. Eis o que tenho disso! Eis o que vocês têm
disso! E para que você, Wilhelm, não me venha de novo com a
história de que são as minhas ideias excêntricas que estragam tudo,
segue aqui, meu caro senhor, um relato de tudo, simples e sem rodeios,
como o faria um bom cronista.
O conde C… gosta muito de mim e me trata com distinção, disso
você já sabe, já te contei centenas de vezes. Pois ontem fui almoçar em
sua casa, justamente no dia em que ele, ao nal da tarde, costuma
reunir uma roda de senhores e senhoras da nobreza. Nunca antes
havia considerado, nem sequer havia percebido, que subalternos como
eu não faziam parte daquele grupo. Pois bem. Almocei com o conde e
depois nos dirigimos ao grande salão; camos andando de um lado
para o outro, conversei muito com ele, conversei com o coronel B…,
que também havia se juntado a nós, e assim o tempo foi passando, até
que nos aproximamos da hora da reunião. Deus é testemunha: eu não
tinha nada mais em mente. Foi quando chegou a distintíssima senhora
S… com o senhor seu esposo e a gansinha bem chocada de sua lha,
uma magricela sem graça e sem busto, metida num espartilho airoso.
Ao passarem por mim, também me passaram em revista com aquele
seu olhar costumaz e com narinas da mais alta nobreza; e, dado que
detesto essa grei do fundo do meu coração, já estava prestes a deixar
ao conde minhas recomendações, aguardando tão somente que ele se
liberasse por um instante daquela conversa mole, quando vi entrar no
salão minha senhorita B… Como meu coração costuma bater mais
forte toda vez que a vejo, acabei cando mais um pouco, tomei lugar
atrás de sua cadeira e, só depois de certo tempo, fui perceber que ela
não falava comigo com a mesma naturalidade de sempre, que ela
parecia um tanto constrangida. Isso me chamou a atenção. Será que
ela era igual a toda essa gente?, pensei comigo mesmo. Atingido pelo
ferrão, quis mais uma vez ir embora, mas, de novo, acabei cando,
pois eu a teria desculpado de bom grado, não conseguia acreditar
naquilo e ainda esperava ouvir dela uma palavra gentil e — seja como
você quiser. Nesse meio-tempo, foram chegando os demais
convidados: o barão F…, com seu guarda-roupa da época da coroação
de Francisco ;34 o conselheiro R…, ali não na qualidade de
i

conselheiro, mas em sua nobre gura de senhor R…, acompanhado de


sua esposa surda etc.; e sem esquecer do tão maltrajado J…, que
remendava os buracos de suas vestimentas démodé com retalhos da
última moda. A roda já se fazia numerosa, puxei conversa com alguns
de meus conhecidos, e todos me trataram laconicamente. Fiquei
pensando nisso — mas só dava atenção à minha senhorita B… A essa
altura, ainda não havia percebido que as mulheres do outro lado do
salão cochichavam uma no ouvido da outra, que também entre os
homens havia um burburinho e que a esposa do conde conversava
com o marido (isso tudo me foi relatado mais tarde pela senhorita
B…), até que o próprio conde se aproximou de mim e me levou à
janela.  — O senhor conhece bem  — disse ele  — essas nossas
circunstâncias excepcionais; os convidados, ao que me parece, não
estão contentes em vê-lo aqui. De modo algum eu queria que  —
Excelência  — interrompi  —, peço-lhe mil desculpas. Eu deveria ter
pensado nisso antes, e sei que o senhor há de me desculpar por
tamanha inconsequência; já queria ter me despedido há pouco, mas
um gênio maligno me segurou aqui por mais tempo — disse eu, rindo,
prestando-lhe reverência. O conde apertou minha mão de um modo
que já me dizia tudo. Retirei-me sorrateiramente daquela roda tão
distinta, entrei num cabriolé e parti em direção a M…, para, do alto
daquela colina, contemplar o pôr do sol enquanto eu lia, em meu
Homero, aquele canto magní co em que Ulisses é tão bem servido
pelo divino porqueiro.35 Até então, tudo corria bem.
À noite, voltei à hospedaria ainda em tempo de jantar. Havia
poucos hóspedes no salão; num dos cantos, alguns deles tinham
afastado a toalha de mesa e jogavam dados. Nisso chega o sincero
A…,36 que, ao me ver, tira seu chapéu, aproxima-se de mim e me diz
em voz baixa:  — Você está aborrecido?  — Eu?  — retruquei.  — O
conde não te pôs para fora daquela roda de nobres? — O diabo que
os carregue!  — disse eu.  — Aliás, achei ótimo poder sair e car um
pouco ao ar livre. — Que bom — disse ele — que você não levou isso
a mal; só acho chato que todo mundo esteja comentando. — E foi aí
que a coisa começou de fato a me incomodar. Todos que se sentavam
à mesa e olhavam para mim, pensei eu, só me olhavam por causa
disso! E isso fez meu sangue esquentar.
Agora, que as pessoas parecem ter pena de mim aonde quer que eu
vá, e ainda tenho de ouvir os invejosos dizerem triunfantes: — Olha só
o que acontece com os presunçosos que, ensoberbados com seu
bocadinho de inteligência, presumem que podem simplesmente passar
por cima de todas as convenções sociais — isso e outros tantos dislates
mais; agora só me dá vontade mesmo é de meter uma faca no coração.
Pois digam o que quiserem sobre a rmeza de espírito, quero ver quem
é capaz de aguentar esses imbecis que cam falando dos outros,
sobretudo quando o que eles dizem incomoda de verdade. Quando seu
falatório cai no vazio, ah, aí é muito fácil ignorá-los.

16 de março
Tudo agora me irrita. Hoje encontrei a senhorita B… na alameda do
jardim. Não pude deixar de abordá-la e, assim que nos afastamos um
pouco dos outros, não consegui deixar de dizer a ela o quanto havia
me incomodado aquele seu comportamento no outro dia.  — Oh,
Werther — disse-me ela, com intimidade —, então foi assim que você
interpretou minha falta de jeito, mesmo conhecendo meu coração?
Você não sabe o quanto sofri por sua causa, desde o momento em que
entrei naquele salão! Logo vi o que estava por acontecer, e quantas
vezes eu não estive prestes a lhe avisar. Sabia que a senhora S… e a
senhora T… teriam preferido ir embora com seus maridos a
permanecerem ali, em sua companhia; e sabia que o conde não
poderia se indispor com eles  — e agora, ainda por cima, esse
burburinho!  — Como, senhorita?  — perguntei, dissimulando meu
espanto, pois tudo o que Adelin havia me contado anteontem corria-
me agora pelas veias como água fervente.  — Você não imagina o
quanto isso já me custou!  — disse a doce criatura, enquanto as
lágrimas começavam a brotar em seus olhos. Eu já não era mais
senhor de mim mesmo, estava a ponto de me atirar aos pés dela.  —
Você poderia se explicar melhor?  — pedi-lhe. As lágrimas lhe
escorriam agora pelo rosto. Eu estava fora de mim. Ela as enxugou,
sem fazer questão de ocultá-las. — A minha tia você conhece bem —
começou ela —, pois ela estava presente e viu, oh, e com que olhos ela
viu tudo aquilo! Werther, sofri muito ontem à noite, e hoje cedo ainda
tive de aguentar um sermão sobre essa nossa ligação: tive de car
ouvindo você ser depreciado e humilhado, e não fui capaz, nem me foi
concedido o direito de defendê-lo minimamente.
Cada palavra que ela dizia era como uma espada que me
atravessava o coração. Ela parecia não perceber o quanto teria sido
misericordioso, de sua parte, poupar-me daquilo tudo; ao contrário,
ela ainda acrescentou detalhes sobre as maledicências que estavam por
vir e sobre o tipo de gente que triunfaria com aquilo. E não me
poupou de ouvir, tampouco, o quanto essas pessoas se empolgariam e
se alegrariam com o castigo da minha presunção e do meu desprezo
pelos outros  — algo de que já me acusam há muito tempo. Tive de
ouvir isso tudo dela, Wilhelm, e com aquela voz da mais sincera
consideração por mim  — quei arrasado, e até agora estou furioso.
Queria mesmo é que alguém tivesse a coragem de me dizer isso na
cara, para que eu lhe metesse a espada no ventre; se eu visse sangue,
quem sabe me sentisse melhor. Ah, quantas centenas de vezes eu já
não passei a mão na faca para aliviar de vez este meu coração
apertado. Conta-se que existe uma raça nobre de cavalos que, quando
terrivelmente acossados e perseguidos, mordem-se instintivamente a si
mesmos, rasgando uma veia para conseguir respirar de modo mais
livre. Pois é assim que venho me sentindo, queria rebentar uma veia
que me abrisse o caminho para a liberdade eterna.

24 de março
Acabo de solicitar à corte minha demissão, e espero obtê-la em breve.
Desculpem-me se não recorri a vocês antes em busca de
consentimento. É que eu preciso ir embora daqui, e já sabia o que
vocês me diriam para me convencer a car, e assim — Dê a notícia à
minha mãe em pequenas doses, não consigo ajudar nem a mim
mesmo, ela que se conforme com o fato de que não tenho como ajudá-
la agora. Claro que isso a deixará magoada: ver de repente
interrompida a bela carreira que conduziria seu lho diretamente ao
cargo de conselheiro ou embaixador, e vê-lo voltar à estaca zero!
Façam com isso o que vocês bem entenderem, e combinem entre vocês
as conjecturas possíveis que poderiam e deveriam ter feito com que eu
casse; para mim, chega, vou-me embora. E só para que vocês saibam
para onde vou, encontrei aqui o príncipe …, que tem grande apreço
por minha companhia. Quando ele soube de minhas intenções,
convidou-me a acompanhá-lo até sua propriedade, para passarmos lá
esta bela primavera. Prometeu-me que carei completamente à
vontade, e como em certa medida nos entendemos bem, vou arriscar a
sorte e seguir em sua companhia.

Para conhecimento.

19 de abril
Obrigado por tuas duas cartas. Não as respondi antes porque preferi
aguardar até que chegasse a con rmação de minha dispensa da corte.
Tive receio de que minha mãe quisesse intervir junto ao ministro e
pudesse di cultar meus planos. Mas agora a coisa está feita, já tenho a
dispensa em mãos. Não vou entrar aqui no mérito da contrariedade
com que ela me foi concedida, e tampouco vou contar a vocês o que
me escreveu o ministro: vocês só lamentariam ainda mais. Pela
dispensa, o príncipe herdeiro mandou-me vinte e cinco ducados,
acompanhados de palavras que quase me comoveram ao choro; en m,
não preciso mais daquele dinheiro que havia pedido recentemente à
minha mãe.

5 de maio
Parto daqui amanhã. E já que minha cidade natal ca a apenas seis
milhas do meu caminho, quero aproveitar para revê-la e me lembrar
daqueles velhos tempos, em que eu passava os dias sonhando, feliz.
Quero entrar na cidade por aquele mesmo portão pelo qual saí com
minha mãe depois da morte do meu pai, quando ela deixou essa
localidade bonita e acolhedora para ir se isolar em sua cidade.37 Até
mais, Wilhelm! Não te deixarei sem notícias de minhas andanças.

9 de maio
Fiz a peregrinação até minha cidade natal com toda a devoção de um
romeiro, e acabei sendo assaltado por algumas sensações inesperadas.
Ao passar pela imensa tília que ca a um quarto de hora da cidade,
nos arredores de S…, pedi para parar, saltei do coche e mandei o
postilhão seguir viagem, de modo que, a pé e guiado apenas por meu
coração, eu pudesse saborear cada uma das lembranças como algo
absolutamente novo e cheio de vida. E ali estava eu, à sombra daquela
tília que, noutros tempos, quando garoto, costumava ser destino e
última fronteira de meus passeios. Que diferença! Naquela época, na
condição feliz de minha ignorância, eu ansiava sair pelo mundo
desconhecido, onde esperava encontrar alimento e prazer su cientes
para preencher e satisfazer este meu peito tão ansioso e desejoso.
Agora, era justo desse vasto mundo que eu retornava  — oh, meu
amigo, e quantas esperanças malogradas, quantos planos destruídos
eu não trazia de volta comigo! — Diante de mim, via de novo aquelas
mesmas montanhas que por milhares de vezes foram objeto de meus
desejos. E como, então, eu era capaz de car horas a o sentado ali,
desejando partir em sua direção, desejando me perder profundamente
naquelas matas, naqueles vales que se apresentavam aos meus olhos
em seu simpático lusco-fusco; e quando chegava a hora de ir embora,
como eu me sentia contrariado em ter que deixar para trás aquele
lugar adorável!  — Fui me aproximando da cidade. Saudava de bom
grado todos os velhos jardins e caramanchões que eu reconhecia,
enquanto os novos só me desgostavam, assim como todas as demais
mudanças que haviam sido feitas. Entrei pelo portão da cidade e logo
me senti em casa. Caro, não vou entrar aqui em detalhes; para mim
foi tudo o tempo todo tão fascinante, que disso não resultaria senão
uma narrativa invariavelmente enfadonha. Tinha decidido me
hospedar perto da praça do mercado, bem ao lado de nossa antiga
casa. No caminho até lá, percebi que a sala da escola, onde outrora
uma honorável senhora de idade encurralara nossa infância, havia se
transformado numa mercearia. Lembrei-me de toda a inquietação, das
lágrimas, da apatia dos sentidos e da profunda angústia que tive de
suportar naquele buraco.  — Eu não dava um passo sequer que não
fosse digno de maior atenção. Nem um peregrino na Terra Santa se
depara com tantas localidades que evocam reminiscências religiosas, e
di cilmente sua alma é tomada de modo tão pleno por comoções tão
sagradas.  — Mais um entre tantos exemplos: fui beirando o rio a
jusante, até chegar ao quintal de uma certa propriedade  — esse
costumava ser também o meu caminho e o lugarejo em que nós,
garotos, brincávamos de atirar pedrinhas planas na água para ver
quem as fazia saltitar mais vezes. Lembrei-me com muita vivacidade
de como costumava car ali, olhando aquelas águas correrem;
lembrei-me de como eu tentava prever prodigiosamente seu curso,
imaginando os lugares mais aventurosos em que elas haveriam de
desaguar; e lembrei-me também de como, então, eu logo pude
perceber os limites da minha imaginação. Mas era preciso ir adiante,
sempre adiante, até me perder por inteiro na contemplação dos
con ns mais invisíveis.  — Veja, meu caro, quão ingênuos, mas
também quão felizes eram os antigos patriarcas! Quão pueris, mas
também quão admiráveis eram os seus sentimentos, a sua poesia!
Quando Ulisses fala do mar in nito e da terra imensa,38 isso é tão
autêntico, humano, profundo, intenso e misterioso. Mas de que me
adianta poder repetir, hoje em dia, com qualquer garoto em idade
escolar, que a Terra é redonda? O ser humano não precisa mais do que
um pedacinho de terra para viver em sua superfície, e menos ainda
para repousar debaixo dela.
Agora estou aqui, no castelo de caça do príncipe. Até o presente
momento, tem sido relativamente fácil conviver com esse senhor, que é
uma pessoa sincera e sem complicações. Ele vive cercado de pessoas
esquisitas, e estas eu não consigo compreender muito bem. Não me
parecem vigaristas, mas tampouco aparentam ser pessoas honestas. Às
vezes elas até me passam uma impressão de honestidade, mas não
consigo con ar nelas. Lamento, ainda, que o príncipe costume falar de
coisas que ele só conhece de ouvido ou porque leu a respeito, e não o
faça a partir de seu próprio ponto de vista, mas, sim, do mesmo modo
como essas coisas lhe foram apresentadas.
Além disso, ele parece ter em mais alta conta minha inteligência e
meus talentos do que este meu coração, que é meu único orgulho e a
única fonte de tudo: de toda a minha força, de toda a fortuna e de
toda a desdita. A nal, o que eu sei, qualquer um é capaz de saber —
mas só eu sou portador deste meu coração.

25 de maio
Eu tinha uma ideia em mente que não quis contar a vocês até que
fosse colocada em prática: agora, sabendo que ela não dará em nada,
posso contá-la. Eu queria ir para a guerra; há tempos que acalento
esse desejo. Foi principalmente por essa razão que aceitei acompanhar
o príncipe, que é general a serviço da … Por ocasião de um de nossos
passeios, revelei-lhe esse meu propósito; ele logo me dissuadiu da
ideia, e eu teria de ser movido mais por uma paixão do que por
caprichos para não dar ouvidos aos seus motivos.

11 de junho
Você diga o que quiser, mas não consigo car aqui por mais tempo. O
que é que estou fazendo aqui? O tempo me custa a passar. O príncipe
me trata muito bem, da melhor maneira possível, mas, mesmo assim,
sinto que este não é o meu lugar. No fundo, somos bem diferentes. Ele
é um homem de bom senso, mas de um senso por demais comum. Sua
companhia não me entretém mais do que a leitura de um livro bem
escrito. Ainda co por oito dias e, em seguida, vou-me embora de
novo por este mundo afora. A melhor coisa que me aconteceu aqui foi
voltar a desenhar. O príncipe tem alguma sensibilidade para a arte, e
seria ainda muito mais sensível se não se deixasse cercear por seu afã
desagradavelmente cientí co e pelos clichês de seu linguajar
terminológico. Chego a ranger os dentes de impaciência quando, às
vezes, guiado pelo calor da imaginação, eu me proponho a conduzi-lo
pelos domínios da natureza e da arte e ele, como que do nada,
julgando-se grande entendedor das coisas, atropela-me com a
repetição de um de seus chavões pretensamente técnicos.

16 de junho
Sim, sim, sou apenas um viajante, um peregrino sobre a face da terra!
Mas e vocês, por acaso são algo mais do que isso?

18 de junho
Para onde eu quero ir? Vou te contar, mas que isso que só entre nós.
Ainda vou ter que permanecer aqui por mais duas semanas. Em
seguida, acabei me convencendo de que tenho que visitar as minas em
…; não, no fundo não tenho que fazer nada disso, só quero estar de
novo mais perto de Lotte, é disso que se trata. Como eu rio do meu
próprio coração — e faço todas as suas vontades.

29 de julho
Não, está bem assim! Está tudo bem! — Eu — marido dela! Oh, deus,
que me fez assim, tivesse você me concedido tamanha felicidade,
minha vida inteira seria uma só prece. Mas não quero entrar aqui em
contendas: me perdoe estas lágrimas, me perdoe estes meus desejos
vãos!  — Ela, minha mulher! Tivesse eu ao menos acolhido em meus
braços essa criatura, a mais adorável que existe sob o nosso sol  —
Wilhelm, um tremor me abala da cabeça aos pés quando Albert enlaça
aquele corpo esbelto.
Mas será que não posso mesmo dizer isso? E por que eu não
poderia, Wilhelm? Sim, ela teria sido muito mais feliz comigo do que
com ele! Ele não é o homem que vai satisfazer os desejos todos
daquele coração. Uma certa falta de empatia, uma falta  — entenda
como você quiser. O coração dele não pulsa no mesmo compasso do
dela quando  — oh!  — quando eles leem passagens de um livro
querido, enquanto, em horas como estas, o meu coração e o de Lotte
batem sempre juntos, como um só coração, assim como também em
tantas outras circunstâncias, em que acontece de manifestarmos em
voz alta nossos sentimentos em relação aos atos de outras pessoas.
Caro Wilhelm! — É bem verdade que ele a ama do fundo da alma, e
um amor assim, o que não merecerá um amor assim!? —
Uma pessoa desagradável veio me interromper. As minhas lágrimas
secaram. Acabei me distraindo. Até mais, meu caro!

4 de agosto
Não é só comigo que essas coisas acontecem. Todas as pessoas se
iludem com suas esperanças, deixam-se enganar por suas expectativas.
Fui visitar a boa senhora que conheci naquela pracinha, à sombra da
tília. O lho mais velho veio correndo ao meu encontro, e seu grito de
alegria acabou trazendo também sua mãe, que me pareceu
extremamente abatida. A primeira coisa que ela me disse foi:  — Ah,
meu bom senhor, meu pequeno Hans morreu!  — Hans era o mais
novo de seus lhos. Fiquei calado.  — E meu marido  — disse ela  —
voltou da Suíça, mas não trouxe nada do que foi buscar; e não fosse
pela ajuda de algumas pessoas caridosas, ele ainda teria que mendigar
para chegar em casa, pois acabou pegando a febre no meio do
caminho. — Eu não me senti capaz de dizer nada a ela, apenas dei um
trocado ao seu lho; ela insistiu para que eu levasse algumas maçãs, o
que z de bom grado, deixando para trás aquele lugar de lembranças
tão tristes.

21 de agosto
Como num passe de mágica, tudo me parece diferente. Vez ou outra
uma esguelha de alegria insiste em se erguer no horizonte da vida,
mas, ah, não por mais que um segundo!  — Quando me perco assim
em meus sonhos, não consigo evitar de pensar: E se Albert morresse?
Sim, eu iria! E ela iria — saio então correndo atrás dessa fantasia, até
que me percebo à beira de abismos, diante dos quais eu, cambaleante,
hesito.
Quando saio por este portão e me vejo seguindo aquele mesmo
caminho pelo qual passei da primeira vez em que fui apanhar Lotte
para o baile, percebo como as coisas eram diferentes! Aquilo tudo já
passou, aquilo tudo é passado! Não me restou nem um único laivo
daquele mundo de então, nem um último pulso do que meu coração
então sentia. Aqui, sinto-me como haveria de se sentir também um
fantasma que retorna ao mesmo castelo, agora em cinzas e ruínas, que
ele um dia, como príncipe jovem e promissor, havia construído e
ornamentado com todo o esplendor e magni cência e que, depois de
morto, havia deixado, ainda cheio de esperanças, para seu lho
amado.

3 de setembro
Às vezes eu não consigo entender direito como é que um outro é capaz
de amá-la, como é que um outro se permite amá-la, quando sou o
único que a ama assim tão profundamente, tão completamente, e não
conheço nada, não sei de nada, não tenho mais nada além dela!

4 de setembro
Sim, é isso mesmo. Assim como a natureza cede ao outono, faz-se
outono também em mim e em tudo ao meu redor. As árvores na
vizinhança já descaíram suas folhas, e também as minhas folhas
começam a amarelar. Lembra da história daquele jovem camponês,
que conheci quando cheguei aqui? Andei perguntando por ele em
Wahlheim; disseram-me que ele havia sido mandado embora e que
ninguém mais quis saber dele depois disso. Pois ontem eu o encontrei
por acaso a caminho de um outro vilarejo; puxei conversa e ele me
contou sua história, que me comoveu dupla, triplamente, como você
bem há de perceber enquanto conto o que aconteceu. Mas para que
tudo isso? Por que não guardo comigo essas coisas que me angustiam
e me aborrecem? Por que ainda co te incomodando? Por que é que
eu vivo te dando ocasião para você ter pena de mim e me repreender?
Pois que assim seja, vai ver que também isso faz parte do meu destino!
Parecendo-me de início um tanto ressabiado, como se calasse uma
tristeza, aos poucos o rapaz começou a responder minhas perguntas e,
sentindo-se cada vez mais à vontade, como se de repente tivesse
reconhecido a mim e a si mesmo, admitiu que havia errado e lamentou
seu infortúnio. Meu amigo, quem dera eu pudesse reproduzir aqui
cada uma de suas palavras, para que você pudesse julgá-las melhor!
Ele confessou, sim. E, deixando transparecer uma espécie de prazer e
de felicidade ao relembrar tudo, ele me contou que sua paixão pela
dona da casa vinha crescendo dia após dia e que a situação chegou a
um ponto em que ele já não sabia mais o que fazer; não sabia nem
mesmo — para usar aqui a sua expressão — onde é que andava com a
cabeça. Ele não conseguia mais comer, nem beber, nem dormir, sentia
um aperto na garganta, fazia o que não devia fazer e se esquecia de
fazer o que era a sua obrigação, como se fosse perseguido por um
espírito maligno; até que um dia, sabendo que a mulher estava no
quarto de cima, foi atrás dela, ou, melhor dizendo, sentiu-se atraído
em sua direção. E como ela não deu ouvidos ao que ele tinha a dizer,
tentou possuí-la à força; só não sabia explicar como isso foi acontecer,
já que deus era testemunha de que suas intenções em relação a ela
eram as mais corretas, e de que o que ele mais desejava era que ela
quisesse casar com ele e passar o resto de sua vida ao seu lado. Depois
de falar por algum tempo, o rapaz começou a gaguejar, como alguém
que ainda tem algo a dizer mas não se sente à vontade para fazê-lo;
nalmente ele me contou, todo envergonhado, as pequenas
con dências que a mulher se permitia con ar a ele e a intimidade com
que ela o tratava. Interrompendo-se a si mesmo por duas ou três
vezes, ele fazia toda questão de reiterar que não me contava aquilo
tudo com o intuito de falar mal dela  — para usar novamente suas
próprias palavras —, que ele ainda a amava e a admirava como antes,
que nunca havia contado aquelas coisas a ninguém e só o fazia a mim
para me convencer de que ele não era um homem completamente
pervertido e estúpido.  — E aqui, meu caro, retomo mais uma vez
aquela minha velha cantilena que vou seguir entoando por todo o
sempre: ah, se eu pudesse apresentar esse homem para ti assim como
ele se apresentou a mim, assim como ele ainda se faz presente diante
de mim! Ah, se eu pudesse dizê-lo todo em seus detalhes, para que
você sentisse como também eu faço parte, tenho que fazer parte desse
mesmo destino! Mas agora chega, pois como você conhece o meu
destino, e também a mim, você sabe até bem demais o que é que me
faz sentir tão próximo de todos os infelizes, e desse infeliz em especial.
Lendo de novo o que acabo de escrever, vejo que esqueci de te
contar o nal da história, embora não seja difícil imaginá-lo. Ela
resistiu a ele; e logo chegou seu irmão, que havia muito odiava o rapaz
e havia muito desejava vê-lo longe daquela casa, pois tinha receio de
que um novo casamento da irmã, que até aquela altura ainda não
tivera lhos, pudesse frustrar as faustas expectativas que ele e sua
própria descendência nutriam em relação à herança. O irmão, de
pronto, enxotou o rapaz daquela casa e fez tamanho estardalhaço em
torno da história que a mulher, mesmo que assim desejasse, jamais
teria a possibilidade de acolhê-lo de volta. Nesse meio-tempo, parece
que ela já arrumou um novo empregado. E dizem que, também por
causa deste, ela acabou se desentendendo com o irmão, havendo até
quem dê por certo que ela vai se casar com o rapaz, por mais que o
irmão pareça decidido a não deixar que isso venha a acontecer.
No que eu te conto aqui, não exagero nem douro a pílula; aliás,
acho que posso mesmo dizer que não o z bem, não contei bem, e
talvez tenha até simpli cado demais a história ao recontá-la com essas
nossas palavras tão tradicionais e moralmente carregadas.
Esse amor, essa lealdade, essa paixão toda não é, portanto,
nenhuma invenção poética. Ela está muito viva, e se manifesta de
modo ainda mais genuíno entre essas pessoas que nós costumamos
chamar de incultas, de simplórias. E nós, pessoas cultas — deformadas
de tão bem formadas! Peço que você leia a história com todo o teu
desvelo. Hoje, enquanto escrevo esta carta, eu me sinto bastante
tranquilo; e você vai perceber isso pela minha letra, que não se rendeu
aos borrifos e borrões como de costume. Leia a carta, meu querido
Wilhelm, e não esqueça que se trata também da história deste teu
amigo. Sim, eis o que aconteceu comigo, eis o que ainda há de me
acontecer, mas não sou nem tão corajoso nem tão decidido quanto
esse pobre infeliz, com quem eu mal me atrevo a me comparar.

5 de setembro
Ela havia escrito um bilhetinho para o marido, que estava fora, no
campo, a negócios. Começava assim: Meu querido, meu amor, volte
assim que puder, te espero cheia de alegria.  — Um certo amigo, ao
chegar, trouxe-lhe a notícia de que as circunstâncias não permitiam
que o marido voltasse tão cedo. O bilhete cou sobre a mesa e, no
nal da tarde, acabou vindo parar nas minhas mãos. Eu o li e sorri;
ela me perguntou por que eu sorria.  — Ah, a imaginação é uma
dádiva divina! — exclamei. — Por um momento, alimentei a ilusão de
que o bilhete tivesse sido endereçado a mim. — Ela cortou a conversa,
que pareceu desagradá-la. E eu me calei.

6 de setembro
Foi com muita di culdade que acabei decidindo me desfazer daquela
casaca simples, de cor azul, que usei da primeira vez que dancei com
Lotte; a nal, nos últimos tempos, ela já não se mostrava mais tão
apresentável. Mas mandei fazer outra, idêntica à primeira, com a
mesma gola e lapela, e também um colete amarelo e calções da mesma
cor.39
Não é como aquela. Não sei direito — Mas acho que, com o tempo,
vou acabar me acostumando com ela também.

12 de setembro
Ela esteve viajando durante alguns dias, foi buscar Albert. Hoje, logo
que entrei na sala de sua casa, ela veio ao meu encontro e eu, todo
cheio de alegria, beijei sua mão.
Um canário voou de cima do espelho e veio pousar sobre o ombro
dela.  — Amigo novo  — disse ela, fazendo com que ele pousasse em
sua mão  —, é para os meus pequeninos. Não é bonitinho? Olha só
para ele! Quando lhe dou pão, ele bate as asas e vai dando suas
bicadas com delicadeza. E ele também sabe me beijar, veja só!
Quando ela ofereceu sua boca ao bichinho, ele encostou o bico com
tanto carinho naqueles lábios doces que era como se ele pudesse
mesmo sentir a felicidade que aquele gesto lhe proporcionava.
— Agora deixe que ele também o beije — disse ela, passando-me o
pássaro. O biquinho afastou-se de sua boca em direção à minha e, ao
toque da bicada, senti como que um sopro, o prenúncio de um prazer
amoroso.
— O beijo dele — disse eu — não é desprovido de desejo. Ele vem
em busca de alimento, mas volta insatisfeito depois de um carinho
vazio.
— Ele também sabe comer da minha boca — disse ela, oferecendo-
lhe algumas migalhas de pão com seus lábios que sorriam prazenteiros
as alegrias de um amor inocentemente compassivo.
Virei logo o rosto. Ela não devia fazer isso! Não devia incitar minha
imaginação com essas imagens etéreas de inocência e felicidade! Não
devia despertar meu coração desse sono não raro embalado pela
indiferença da vida! — Mas e por que não? — Ela con a em mim! Ela
sabe o quanto a amo!

15 de setembro
Se tem algo que me tira do sério, Wilhelm, é perceber que há pessoas
sem a menor consideração nem sensibilidade para as poucas coisas
que ainda têm algum valor neste mundo. Lembra daquelas nogueiras
na casa daquele honorável pastor da vila de St…, à sombra das quais
eu costumava me sentar na companhia de Lotte? Nogueiras
magní cas! Só deus sabe os momentos de imenso prazer que elas
sempre me propiciavam! Suas frondes eram majestosas! E que frescor,
que ar acolhedor elas conferiam ao pátio da casa paroquial! E ainda
traziam à memória a lembrança dos distintos pastores que as haviam
plantado ali muitos anos antes. O professor do lugarejo, que tinha
ouvido falar de um deles ainda da boca de seu avô, às vezes
mencionava o nome dele; que grande homem ele não havia de ter sido,
e rememorá-lo debaixo daquelas árvores era sempre um momento
sagrado para mim. Pois vou te dizer: ontem, enquanto conversávamos
sobre essas coisas, os olhos do professor se encheram de lágrimas ao
me contar que elas foram derrubadas — Derrubadas! Fiquei possesso
de raiva, capaz até mesmo de matar o cão que deu a primeira
machadada. E justo eu, que já caria profundamente de luto se
alguma das árvores em meu quintal morresse apenas de velha, ainda
tenho que assistir a isso tudo. Mas, meu querido amigo, ao menos
uma coisa me consola! Ah, o sentimento humano! O povo todo do
vilarejo anda resmungando, e espero sinceramente que a mulher do
pastor logo perceba, quando lhe faltarem a manteiga, os ovos e outros
favores, o mal que ela in igiu ao lugarejo. Pois foi ela! A mulher do
novo pastor (nosso velho também já se foi), uma criatura escanzelada
e doentia, com todos os motivos para não simpatizar com nada neste
mundo, já que ninguém simpatiza com ela. Uma tola, que se faz de
erudita, que se mete a examinar o cânone bíblico, que se engaja na
última moda da reforma crítica e moral do cristianismo, dá de ombros
aos enlevos de Lavater,40 tem uma saúde toda em frangalhos e, em
razão disso tudo, não é capaz de encontrar alegria alguma neste
mundo de deus. Só uma criatura dessas seria capaz de derrubar as
minhas nogueiras. Veja, ainda estou fora do sério! Imagine que,
segundo ela, as folhas que caíam deixavam o pátio sujo e umedecido,
as árvores roubavam-lhe a luz do dia, e, quando as nozes
amadureciam, os garotos cavam atirando pedras para derrubá-las.
Parece que essas coisas atacavam seus nervos e atrapalhavam aquelas
suas re exões tão profundas, em que ela confrontava as obras de
Kennicott, Semler e Michaelis.41 Quando percebi que as pessoas do
vilarejo estavam insatisfeitas, especialmente as de mais idade,
perguntei-lhes: — Mas e por que vocês aceitaram isso? — Por aqui —
disseram eles —, quando o prefeito quer, o que se há de fazer? — Mas
ainda aconteceu algo de justo. O pastor pretendia tirar algum proveito
daquelas manias de sua mulher  — que nem sempre lhe caíam como
sopa no mel  — e combinou com o prefeito de dividir a madeira. A
Câmara logo cou sabendo disso e se pronunciou a respeito: — Direto
para os nossos cofres!  — Pois ela ainda detinha os direitos de
propriedade justamente sobre aquela parte do pátio paroquial em que
se erguiam as árvores, de modo que as vendeu a quem fez a melhor
oferta. E lá estão elas agora, derrubadas: no chão! Ah, se eu fosse
príncipe! Trataria de fazer com que a mulher do pastor, o prefeito e a
Câmara — Príncipe! — Sim, mas se eu fosse príncipe, por que haveria
de me importar com as árvores de minha terra?

10 de outubro
Basta eu ver os olhos negros dela e já me sinto bem! Mas veja, o que
me deixa mesmo aborrecido é perceber que Albert não parece estar
tão feliz como ele  — quem me dera poder dizer: como eu  —
acreditava estar, quando — Não gosto de usar esses travessões todos,
mas não consigo me expressar aqui de outro jeito — e, a mim, parece-
me claro o su ciente.

12 de outubro
Ossian acaba de tomar o lugar de Homero em meu coração. E que
mundo é este para onde me leva o glorioso poeta! Poder andar ao léu
sobre as campinas, levado pelas rajadas de vento que, em meio ao
nevoeiro espesso, conduzem os espíritos dos patriarcas sob a claridade
morrediça da lua. Poder ouvir, no estrondo das corredeiras que
rasgam a mata montanha abaixo, os gemidos difusos dos espíritos nas
grutas e os lamentos doridos da moça que, entre quatro pedras
musgosas, cobertas pela relva, chora seu nobre amado, tombado em
combate. Até que, então, eu o encontro, o bardo errante e grisalho,
que nessas campinas remotas, ao seguir os rastros de seus patriarcas,
ah… esbarra em seus túmulos e, lamentoso, olha em direção à
adorável estrela vespertina, que, confundida entre as vagas do mar
tempestuoso, faz reviver na alma do herói o ido dos tempos, em que
aquele resplendor amical ainda clareava aos bravos os caminhos
arriscosos e a lua alumiava seus navios, que voltavam para casa
coroados de vitórias. E quando leio em sua fronte a tristeza mais
profunda, vejo que o último dos gloriosos, abandonado e
completamente exaurido, cambaleia em direção ao túmulo, e então,
sorvendo da presença impotente das sombras daqueles que se foram
um prazer que é sempre de novo abrasador, ele volta seus olhos para a
terra fria, para a relva alta e varrida pelo vento, e exclama: — Há de
vir o viajante! Há de vir aquele que me conheceu em minha beleza, e
ele há de perguntar: Onde está o bardo, o mais admirável entre os
lhos de Fingal?42  — Seus passos repisarão meu túmulo e seguirão
adiante, e em vão ele perguntará por mim sobre a terra. — Oh, meu
amigo! Qual nobre escudeiro, queria poder sacar de pronto a espada,
libertar de uma vez meu príncipe do suplício palpitante dessa vida que
esmorece lentamente e deixar que minha alma siga adiante, na
companhia desse semideus, então liberto.

19 de outubro
Oh, esse vazio! Esse vazio desesperador que eu sinto aqui em meu
peito! — De vez em quando, co pensando comigo: Se você pudesse,
ao menos uma vez, se ao menos uma vez você pudesse apertá-la
contra esse teu coração, ah, esse vazio estaria de uma vez por todas
preenchido.

26 de outubro
Sim, tenho claro para mim, meu caro! Tenho claro e cada vez mais
claro que a vida de uma criatura importa pouco, muito pouco. Uma
amiga veio visitar Lotte. Eu me dirigi ao quarto ao lado, peguei um
livro, mas, como não conseguisse ler, peguei uma pena e comecei a
escrever. Eu as ouvia conversarem baixinho sobre coisas sem maior
importância, como as últimas novidades na cidade: que aquela uma
havia se casado, que aquela outra estava doente, muito doente. — Ela
anda com uma tosse seca, o rosto dela é só pele e osso e ela vive
desmaiando; não dou um tostão furado por sua vida  — disse a
primeira.  — N. N. também tem passado mal  — disse Lotte.  — Sim,
ele está até cando inchado  — replicou a primeira.  — Minha
imaginação vigorosa logo me transportou para o leito dessas pobres
criaturas; eu as via, e via com que contrariedade elas voltavam as
costas para a vida, como elas  — Wilhelm, acontece que as duas
moças, elas falavam dessas pessoas do jeito que costumamos falar —
de um estranho que morre. — E quando olho ao meu redor e observo
o quarto todo com atenção, vejo que estou cercado pelos vestidos de
Lotte, pelos manuscritos de Albert, por esses móveis, que já me são
tão caros, e até mesmo por esse tinteiro, e aí eu penso: — Veja o que
você é agora para os desta casa! Tudo em todos.43 Teus amigos te
respeitam! Você também consegue deixá-los felizes e, no fundo do teu
coração, é como se você não pudesse viver sem eles; ainda assim — e
se, de repente, você fosse embora, deixando para trás as pessoas desse
círculo, será que, por quanto tempo será que elas continuariam
sentindo o vazio que tua ausência causaria na vida delas? Por quanto
tempo? — Ah, o ser humano é tão efêmero, que mesmo no lugar em
que ele se assegura de sua própria existência, mesmo nesse lugar, em
que ele produz a única impressão verdadeira de sua presença, até
mesmo desse lugar, que é o da memória e da alma de seus entes
queridos, ele também acaba sendo apagado, acaba sumindo, e tão
rapidamente!

27 de outubro
Às vezes, ao perceber como signi camos pouco uns para os outros,
tenho vontade de rasgar meu peito e arrebentar meus miolos. Ah, o
amor, a alegria, o afeto e a satisfação, que já não posso mais oferecer,
o outro também não será capaz de me dar. E, mesmo com meu
coração repleto de felicidade, tampouco serei capaz de fazer feliz a um
outro, que se apresenta de modo tão frio e inerte diante de mim.

27 de outubro, à noite
Tenho tanto, mas o que sinto por ela devora isso tudo; tenho tanto,
mas isso tudo nada vale sem ela.

30 de outubro
Quantas não foram as vezes em que estive a ponto de tomá-la em
meus braços! Só deus sabe como é difícil ver tanta amabilidade car
passeando diante de nossos olhos e não podermos nem mesmo tocá-la;
e olha que tocar é o mais natural dos impulsos humanos; por acaso as
crianças não têm vontade de tocar em tudo o que lhes chama a
atenção? — E eu, então?

3 de novembro
Deus sabe quantas vezes não acabo indo me deitar com o desejo, ou,
ainda, com a esperança de não mais acordar: na manhã seguinte, abro
os olhos, vejo de novo o sol e me sinto um miserável. Ah, se eu
pudesse dizer apenas que sou de lua, que a culpa é do mau tempo, de
um projeto malogrado, de outro alguém; só teria então de arcar com
metade desse fardo insuportável, desse desgosto que tanto me pesa.
Mas ai de mim! A bem da verdade, sinto que a culpa é toda e
exclusivamente minha  — não, culpa, não! Já basta que eu traga no
fundo do peito a fonte de toda essa miséria, assim como noutros
tempos eu trazia em mim a fonte de toda a felicidade. Por acaso não
sou mais o mesmo, que outrora adejava na plenitude dos sentimentos,
que a cada passo descobria um paraíso, que tinha um coração capaz
de acolher com tanto carinho um mundo inteiro? Sim, mas esse
coração agora está morto, nele não brotam mais encantos e fascínios,
meus olhos estão secos, e meus sentidos, que não mais se deliciam com
o consolo das lágrimas, só me fazem franzir receoso o cenho. Estou
sofrendo muito, pois perdi a única coisa que me dava alegria na vida:
aquela força sagrada e revigorante com a qual eu criava os mundos
todos ao meu redor; pois ela se foi! — Quando olho pela janela e vejo
como o sol da manhã rompe o nevoeiro sobre a colina distante e
ilumina o fundo silencioso do vale, enquanto, por entre os salgueiros
desfolhados, o riacho vem serpeando mansamente em minha
direção  — ah, quando essa natureza ca assim paralisada diante de
mim como um pequeno quadro envernizado, e nem todo esse deleite é
capaz de bombear uma gota sequer de felicidade do meu coração até o
cérebro, aí então eu me vejo ali, face a face com deus, como um poço
seco, como um balde rachado. Foram muitas as vezes em que me
joguei no chão e roguei a deus por lágrimas, assim como o lavrador
costuma rogar pela chuva quando sobre ele se abre o céu de bronze e
a terra morre de sede ao seu redor.44
Ah, mas tenho a impressão de que deus não dá a chuva e o sol
conforme nossas súplicas. E aqueles tempos, cuja lembrança ainda me
tortura, se foram felizes, foi porque esperei com paciência pelo ar de
sua graça e porque, com meu coração tão profundamente grato,
acolhi a felicidade que ele derramava sobre mim.

8 de novembro
Ela criticou meus excessos! Ah, mas tão carinhosamente! Excessos
que, vez ou outra, fazem com que uma taça de vinho me leve a beber
toda uma garrafa. — Não faça isso — disse ela —, pense em Lotte! —
Pensar — disse eu —, você acha que precisa me pedir para pensar? Eu
penso! — Mesmo quando não penso! Você não sai da minha cabeça.
Hoje mesmo estive sentado naquele lugar em que, um dia desses, você
saltou do coche — ela logo puxou outra conversa, sem deixar que eu
me aprofundasse no assunto. Meu caro, estou acabado! Ela pode fazer
o que quiser comigo.

15 de novembro
Obrigado por teu interesse sincero e por teu conselho tão bem-
intencionado, Wilhelm. Só te peço que que tranquilo. E me deixe
aqui com meus sofrimentos, pois, apesar de estar tão cansado da vida,
ainda tenho força su ciente para suportar a situação. Como você bem
sabe, respeito muito a religião, e percebo que ela é escora para
algumas pessoas que se sentem exaustas, mas também refresco para
algumas das mais sedentas. Só me pergunto  — será que a religião
consegue mesmo ser assim, será que ela tem de ser assim para todos?
Se você olhar este mundo imenso com atenção, vai ver que, para
milhares de pessoas, a religião não foi e nunca será assim, com prédica
ou sem prédica; e por que é que ela teria de ser assim para mim? Não
é o próprio lho de deus quem diz que ele teria ao seu redor todo
aquele que o pai lhe concedesse?45 Mas e se eu não lhe fui concedido?
E se o pai quis me guardar só para ele, como me diz aqui o meu
coração? — Por favor, não me interprete mal; não tome por escárnio
essas minhas palavras inocentes. É a minha alma que estou abrindo
aqui para ti; do contrário, teria preferido calar, já que não costumo
perder meu latim com todas essas coisas de que os outros sabem tão
pouco quanto eu. A nal, o que será o destino do ser humano, senão
suportar sua própria medida de sofrimento, beber desse cálice até a
última gota?  — Pois se, aos lábios humanos daquele que é deus dos
céus, o cálice já soube amargo demais, por que eu deveria me gabar de
algo e fazer de conta que ele me soube doce?46 E por que é que eu
deveria me envergonhar justo no momento assustador em que toda
minha existência vacila entre ser ou não ser, neste momento em que o
passado relampeja sobre o abismo tenebroso do futuro, tudo ao meu
redor sucumbe e o mundo inteiro desmorona comigo?  — Será que
essa não é a voz de uma criatura absolutamente oprimida, carente de
si mesma e à beira de sua inevitável ruína, que, ao revolver em vão os
recônditos mais profundos de suas forças, range seus dentes e grita:
Meu deus, meu deus, por que você me abandonou?47 E será que eu
deveria me envergonhar dessas palavras? Será que eu deveria car com
medo num momento como este, que não passou indiferente nem
mesmo àquele que enrola e desenrola a tenda dos céus como se fosse
um pano?48

21 de novembro
Ela não vê, ela não percebe que está preparando um veneno que vai
acabar destruindo tanto a mim quanto a ela; e eu, inteiramente
tomado pela volúpia, sorvo até a última gota desse cálice que, para a
minha desgraça, ela continua a me oferecer. Qual o sentido daquele
olhar bondoso, com o qual ela me olha tão frequentemente  —
frequentemente? — não, frequentemente não, mas de vez em quando?
Qual o sentido daquela gentileza, com a qual ela acolhe as expressões
espontâneas do meu sentimento? Qual o sentido da compaixão que se
desenha em seu cenho, quando ela se vê diante do meu martírio?
Ontem, quando estava de saída, ela me deu a mão e disse:  — Até
logo, querido Werther! — Querido Werther! Foi a primeira vez que ela
me chamou de querido, e isso mexeu profundamente comigo. Fiquei
repetindo isso centenas de vezes, e ontem à noite, na hora de ir para a
cama, eu falava com meus botões quando me peguei dizendo: — Boa
noite, querido Werther! — Só pude rir de mim mesmo.

22 de novembro
Não posso pedir em minhas preces: Deixe que eu a tenha! Mas, por
vezes, tenho a impressão de ela já ser minha. Não posso pedir em
minhas preces: Deixe que ela seja minha! A nal, ela já é de outro
alguém. Escarneço das minhas próprias dores, e não fosse eu me
conter, des aria aqui toda uma ladainha de antíteses.

24 de novembro
Sinto que ela percebe o que estou tendo de suportar. Hoje mesmo seu
olhar pareceu se embrenhar fundo no meu peito. Estava sozinha
quando a encontrei; eu não disse nada, ela me olhou. Mas não vi mais
nela aquela beleza encantadora, não vi mais irromperem aqueles
lampejos de seu espírito admirável, isso tudo tinha simplesmente
sumido diante dos meus olhos. O que se projetava sobre mim, ali, era
um olhar mais magnânimo, a expressão plena de um interesse sincero,
da mais doce compaixão. E por que não me permiti cair de joelhos aos
pés dela? Por que não me permiti tomá-la em meus braços,
respondendo-lhe com meus beijos mil? Ela foi logo buscar refúgio
junto ao piano e, com uma voz doce e suave, começou a solfejar
algumas notas em perfeita harmonia com a música que tocava. Nunca
antes aqueles lábios me pareceram tão atraentes: era como se eles se
entreabrissem sequiosos para sorver cada um dos tons que emanavam
docemente do instrumento, e apenas a reverberação celestial de cada
um desses sons se desse a ouvir de sua boca tão pura.  — Ah, se eu
fosse capaz de te dizer como foi!  — Não consegui resistir por mais
tempo, inclinei-me e jurei: Oh, lábios, sobre os quais adejam os
espíritos dos céus, jamais roubarei um beijo de vocês!  — E ainda
assim  — sim, eu quero  — Viu só, isso é como uma parede divisória
diante de minha alma — essa felicidade — e então, tendo sucumbido,
expiar esse pecado — pecado?

26 de novembro
Às vezes digo para mim mesmo: Teu destino é incomparável; considere
que todos os outros são felizes  — ninguém no mundo foi tão
atormentado como você! Em seguida, leio os versos de um poeta da
Antiguidade, e é como se eu enxergasse neles meu próprio coração.
Tenho tanto o que aguentar! Ah, será que antes de mim as pessoas já
eram tão miseráveis assim?

30 de novembro
Não, eu não tenho mais volta. Por onde quer que eu ande, sempre
acabo esbarrando em alguma coisa que me tira completamente do
sério! Hoje mesmo! Oh, destino! Oh, humanidade!
Na hora do almoço, como não estava com fome, saí para caminhar
à beira do rio. Não havia vivalma, o vento frio e úmido do início da
tarde soprava do alto da montanha, e as nuvens cinzentas, que
anunciavam chuva, começavam a encobrir o vale. De repente, vi ao
longe um rapaz de casaco verde e puído, que parecia engatinhar entre
as pedras à procura de alguma planta. No que me aproximei dele, e
ele, alertado pelo barulho de meus passos, virou-se para mim, deparei-
me com uma sionomia digna de atenção, cujo traço mais marcante
era uma espécie de prostração calada e profunda, mas que, de resto,
expressava um senso de retidão e bondade; seus cabelos negros
repartiam-se em dois rolos, presos por grampos, enquanto o restante,
entrelaçado, formava uma trança farta, que descia pelas costas. Como
suas vestimentas me zessem crer que se tratava de alguém das classes
menos abastadas, achei que ele não se importaria se eu demonstrasse
minha curiosidade pela atividade que o ocupava, e então perguntei o
que ele estava procurando.  — Estou procurando  — respondeu ele
num longo suspiro  — ores  — e não acho nenhuma.  — É que não
estamos na estação — disse eu, sorrindo. — Tem tantas ores — disse
ele, descendo até onde eu estava.  — No meu jardim tem rosas e
madressilvas de duas qualidades, uma delas foi meu pai quem me deu,
elas crescem feito mato; já tem dois dias que estou procurando, mas
não consigo encontrar or nenhuma. Aqui fora sempre tem das
amarelas, das azuis e das vermelhas, e a genciana tem uma orzinha
linda; não consigo encontrar nenhuma delas.  — Notei algo de
estranho, e então, sem ser mais direto, perguntei o que ele queria com
as ores. Um sorriso exuberante e convulsivo retorceu-lhe as
feições.  — Se o senhor não contar para ninguém  — disse ele,
colocando um dedo diante de seus lábios  —, prometi um ramo de
ores para a minha amada. — Muito bem — disse eu. — Oh, mas ela
já tem de tudo, ela é muito rica  — disse ele.  — E mesmo assim ela
ainda gosta das suas ores  — repliquei.  — Oh, ela tem joias, e uma
coroa  — continuou ele.  — E qual é o nome dela?  — Se os Estados
Gerais49 tivessem me pagado  — disse ele  —, eu seria outra pessoa!
Sim, já tive uma vida boa, outros tempos! Agora estou acabado. Não
passo de um — Seu olhar marejado, voltado para os céus, disse tudo o
que havia ali por dizer. — Então o senhor era feliz? — perguntei. —
Ah, queria era ser assim de novo — disse ele. — Eu me sentia tão bem
e tão alegre, leve como um peixe na água! — Heinrich! — gritou uma
senhora mais velha, que vinha descendo pelo caminho em nossa
direção. — Heinrich, por onde você andou? Procuramos você em toda
parte, venha comer! — É seu lho? — perguntei-lhe, aproximando-me
dela.  — Sim, meu pobre lho!  — respondeu ela.  — Deus me fez
carregar uma cruz pesada. — Faz quanto tempo que ele está assim? —
perguntei. — Assim, mais calmo, tem meio ano. E graças a deus que
ele não voltou a piorar; antes disso, passou um ano inteiro fora de si e
teve que car acorrentado num hospício. Agora ele não faz mal a
ninguém, e passa o tempo todo cuidando de reis e imperadores. Ele
era um rapaz tão bondoso e tranquilo, que me ajudava com as
despesas e tinha uma bela caligra a. De uma hora para outra, cou
calado, caiu de febre, começou a ter ataques de raiva, até car desse
jeito, como o senhor o encontrou agora. Ah, se eu lhe contasse, meu
senhor — Interrompi aquele caudal de palavras com uma pergunta: —
E que outros tempos foram aqueles, em que ele diz ter vivido tão bem
e ter sido tão feliz? — Ah, esse tolo — exclamou ela, com um sorriso
compassivo  —, ele quer dizer o tempo em que esteve fora de si, ele
sempre fala disso; foi o tempo em que ele cou no hospício, sem nem
saber de si mesmo.  — Isso tudo me atingiu como um raio; pus um
tostão na mão da mulher e saí logo dali, apressando o passo.
— Naquele tempo em que você era feliz!  — gritei, enquanto me
apressava em direção à cidade. — Naquele tempo em que você vivia
tão bem quanto um peixe na água! — Deus do céu! Será mesmo que
foi este o destino que você traçou para os seres humanos, de só serem
felizes antes de tomar juízo e depois de perdê-lo de vez?  — Pobre
coitado! Como eu invejo esse teu jeito taciturno, essa confusão dos
teus sentidos, em que aos poucos você vai se perdendo. Você sai, todo
cheio de expectativas, para colher ores — em pleno inverno — para a
tua rainha, você ca triste por não as ter encontrado e nem se dá
conta do porquê você não as encontrou. E eu — eu saio sem propósito
nem expectativa, e volto depois para casa exatamente do mesmo
modo como saí. — Você consegue supor a pessoa diferente que viria a
ser, caso os Estados Gerais tivessem te pagado. Bendita seja a criatura
que ainda é capaz de remontar a sua falta de felicidade a um óbice
mundano! Você não percebe, não consegue perceber que teu coração
destruído e tua cabeça em frangalhos são o verdadeiro motivo para
essa tua condição miserável, da qual nem mesmo todos os reis da terra
poderão te livrar.
Pois que morra de desolação quem ridiculariza o enfermo que, por
viajar até a mais distante das fontes, acaba acirrando o quadro de sua
doença e tornando ainda mais dolorosa a pouca vida que lhe resta!
Que morra de tristeza quem menospreza o coração oprimido que,
para se livrar do peso em sua consciência e aliviar a dor em sua alma,
parte, como peregrino, em direção ao santo sepulcro. Cada passo
dado nos caminhos acidentados é como uma gota de alívio para a
alma angustiada; e ao nal de cada longo dia de viagem, mitigando
pouco a pouco suas a ições, o coração repousa cada vez mais leve. —
E vocês aí, aboletados nesses seus estofados, vocês se permitiriam
chamar isso de loucura, seus mascates da palavra? Loucura!  — Oh,
meu deus, veja só estas minhas lágrimas! E se você já criou o ser
humano assim tão pobre, por que é que tinha que lhe dar também
irmãos, para que estes ainda lhe roubassem sua pouca pobreza e a
pouca crença em ti? Em ti, que ama a tudo e a todos! A nal, o que é a
crença em uma raiz medicinal ou nas lágrimas da videira, senão uma
crença em ti, que conferiu a tudo o que nos cerca o poder da cura e do
lenitivo de que carecemos a todo instante? Pai, que eu não conheço!
Pai, que um dia me inundou a alma toda e que agora me vira o rosto!
Por que você não me chama para ti? Não que mais aí calado! Teu
calar não é mais capaz de deter esta alma sequiosa — E um homem,
um pai não haveria de se zangar com seu lho50 que retorna da
viagem sem avisar, dá-lhe um abraço e diz: Estou de volta, meu pai!
Não que bravo comigo por eu ter interrompido a viagem que, pela
tua vontade, deveria ter se estendido por muito mais tempo. O mundo
é o mesmo em toda parte: depois do esforço e do trabalho, vêm a
recompensa e a alegria; mas de que me vale isso? Só me sinto bem
onde eu também te encontro, e meus sofrimentos e prazeres, só quero
vivê-los diante de ti. — E você, querido pai do céu, você enjeitaria um
lho como este?

1o de dezembro
Wilhelm, sabe aquele rapaz, sobre quem te escrevi? Pois não é que o
feliz do desinfeliz foi escrevente do pai de Lotte; e foi justamente uma
paixão por ela  — que ele alimentou, dissimulou e, quando resolveu
revelar, rendeu-lhe sua demissão — que o deixou completamente fora
de si. Sinta, nestas palavras poucas e secas, o quanto quei perplexo
com essa história quando ela me foi contada por Albert do mesmo
modo impassível com o qual também você talvez a leia.

4 de dezembro
Por favor  — Você está vendo que estou acabado, não aguento mais!
Hoje eu estive com ela — sentado ao lado dela, enquanto ela tocava
seu piano, diversas melodias, e tanta expressividade! tanta!  —
tanta! — Mas você queria o quê? — Em meu colo, a irmãzinha dela
brincava de enfeitar sua boneca. Meus olhos começaram a marejar.
Abaixei-me, e a aliança de casamento logo me saltou aos olhos — aí
as lágrimas correram de vez  — De repente, com a sensibilidade
angelical de sempre, ela começou a tocar aquela sua antiga melodia,
assim de repente, e minha alma logo se sentiu atravessada por uma
sensação reconfortante, mas também pela lembrança de tudo o que
havia passado, dos tempos em que eu costumava ouvi-la tocar essa
sua canção predileta, dos momentos tenebrosos de desgosto, das
expectativas frustradas, e então — Comecei a andar de um lado para
o outro da sala, meu coração parecia sufocar de a ição. — Pelo amor
de deus — disse eu, dirigindo-me a ela num rompante tempestuoso —,
pelo amor de deus, pare já com isso! — Ela parou e olhou para mim,
como que paralisada. — Werther — disse ela, com um sorriso que me
atravessou a alma  —, Werther, você está muito doente, até mesmo
seus pratos prediletos lhe causam aversão. Vá para casa! E, por favor,
tente se acalmar. — Tratei de sair de perto dela, e — deus, veja só a
condição miserável a que cheguei! Acabe logo com isso!

6 de dezembro
Como a imagem dela me persegue! Acordado ou sonhando, ela toma
conta de toda minha alma. Quando fecho os olhos, aqueles olhos
negros estão bem aqui, aqui dentro da minha cabeça, onde minha
visão interior ganha forma. Simplesmente aqui, não sei como te dizer
isso de outro jeito! Fecho meus olhos, e aqui estão eles de novo,
aqueles olhos negros; em mim, diante de mim como um mar, como um
abismo, e eles inundam os sentidos em minha cabeça.
Mas que criatura é o ser humano, esse semideus tão exaltado! Será
que não lhe faltam as forças justamente nas ocasiões em que ele delas
mais necessita? Será que não o reprimem tanto em seus voos de alegria
quanto em seus mergulhos de desgosto? E será que não o fazem
recobrar sua consciência fria e embotada justamente nessas ocasiões,
quando o que ele mais desejaria era se perder por inteiro na imensidão
sem m?

* Em respeito a esse excelente senhor, a referida carta — assim como outra, mencionada mais
adiante — foi subtraída do conjunto aqui reunido, por acreditarmos que nem o mais caloroso
reconhecimento do público poderia desculpar tamanha ousadia.
o editor ao leitor
Como eu gostaria que, dos últimos dias memoráveis de nosso amigo,
tivessem restado testemunhos su cientes de seu próprio punho para
que eu não precisasse interromper, com minha narrativa, a sequência
das cartas que ele deixou.
Tomei o cuidado de reunir relatos detalhados da boca daqueles que
pudessem estar mais a par de sua história; ela é simples, e, exceto por
alguns poucos detalhes, as narrativas todas acabam sempre se
encontrando; é apenas quanto ao jeito de ser de alguns dos
personagens que as opiniões divergem e os julgamentos se dividem.
Diante disso, não nos resta senão narrar de modo consciencioso
tudo o que conseguimos descobrir depois de reiterados esforços,
intercalando as cartas deixadas por aquele que se foi e cuidando para
não desconsiderar nem os menores bilhetes que encontramos; a nal, é
muito difícil descobrir as verdadeiras motivações pessoais, até mesmo
de um único gesto isolado, quando se trata de pessoas tão pouco
comuns.

O desalento e o desconsolo vinham lançando raízes cada vez mais


profundas na alma de Werther, entrelaçando-se de modo mais forte e
apossando-se aos poucos de todo o seu ser. A harmonia de seu espírito
estava completamente destruída; uma inquietação e uma
impetuosidade, que baralhavam as forças mais íntimas de sua
natureza, produziam efeitos desastrosos, rendendo-lhe, por m,
apenas uma forma profunda de cansaço, cuja tentativa de superação o
deixava ainda mais a ito do que os males que ele vinha combatendo
até então. A angústia que carregava no peito havia exaurido sua
vivacidade, seu discernimento e a força de espírito que ainda lhe
restava, de modo que ele acabou se tornando uma companhia das
mais tristes, cada vez mais infeliz e cada vez mais injusto à medida que
se aprofundava nele essa sua infelicidade. Ao menos é isso o que
dizem os amigos de Albert: segundo eles, Werther não foi capaz de
entender esse homem simples e pacato, que havia alcançado uma
felicidade tão longamente desejada, nem de julgar melhor seu jeito de
ser, concentrado em manter essa felicidade também no futuro — justo
ele que, por assim dizer, devorava todas as suas posses ao longo de
cada dia, reservando as noites para sofrer e passar fome. Já Albert,
dizem eles, não havia mudado em nada nesse pouco tempo;
continuava sendo o mesmo homem que Werther soube admirar e
respeitar quando eles se conheceram. Amava Lotte acima de tudo,
tinha orgulho dela, e gostava de que todos a reconhecessem como a
criatura mais maravilhosa do mundo. E será que podemos repreendê-
lo por ele ter tentado se proteger de qualquer vislumbre de suspeição e
por não ter tido, nem por um instante sequer, a menor disposição para
dividir a sua preciosidade com mais ninguém, nem mesmo da maneira
mais inocente? Os amigos de Albert con rmam que ele costumava
deixar o quarto de sua esposa quando Werther estava com ela: não
por ódio ou rejeição, mas porque sentia o quanto sua presença
oprimia o amigo.
O pai de Lotte fora acometido por um mal, o que o impedia de sair de
casa. Mandou um coche apanhar sua lha na cidade, e ela foi visitá-
lo. Fazia um belo dia de inverno, a primeira neve havia caído
fartamente e cobria toda a região.
Na manhã seguinte, Werther partiu ao encontro dela, na esperança
de poder acompanhá-la no caminho de volta, caso Albert não fosse
buscá-la.
Nem mesmo o bom tempo foi capaz de produzir maior impacto
sobre seu ânimo nebuloso: uma pressão torpe comprimia-lhe a alma,
imagens tristes haviam se xado em sua mente, e seu estado de
espírito não sabia variar, senão à medida que se movia entre um e
outro pensamento doloroso.
Como vivia constantemente insatisfeito consigo mesmo, também a
situação dos outros lhe parecia inquietante e confusa; ele acreditava
ter perturbado a boa relação entre Albert e sua esposa, e recriminava-
se por isso, mas não sem deixar de misturar a essa censura de si
próprio um descontentamento velado com o marido.
Também ao longo do caminho seus pensamentos acabavam sempre
recaindo nesse assunto. Pois sim, dizia ele para si mesmo, rangendo
furtivamente os dentes: então esse é o relacionamento de con ança,
cordialidade e afeto em que um se entrega ao outro por inteiro, a
lealdade quiescente e duradoura? Isso não passa é de
autocomplacência, e de indiferença também! Pois não é verdade que
qualquer trabalho ingrato desperta nele mais a atenção do que sua tão
cara e preciosa esposa? Será que ele sabe a felicidade que ele tem? Será
que ele a respeita como ela merece? Ele a tem, pois bem, ele a tem —
Sei disso, assim como também sei de outras coisas, mas creio ter me
acostumado a essa ideia, e ela ainda vai acabar me deixando louco,
vai acabar me matando — E será que a amizade dele por mim ainda
conseguiu resistir? Será que ele não vê no meu apego por Lotte já uma
invasão dos seus direitos, assim como uma forma velada de
repreensão no cuidado e na atenção que dedico a ela? Sei muito bem!
Eu sinto que ele não quer me ver, que ele preferiria que eu mantivesse
distância, que minha presença para ele é um fardo.
Durante a caminhada, Werther ora refreava sua marcha acelerada,
ora estacava completamente, parecendo querer dar meia-volta; mas
sempre acabava dando um passo adiante, até que, mergulhado nesses
seus pensamentos e falando sozinho, ele nalmente chegou à casa de
caça — ainda que, de certo modo, a contragosto.
À porta da casa, perguntou pelo velho e por Lotte, mas encontrou
todos em polvorosa. O garoto mais velho disse-lhe que havia
acontecido uma desgraça ali nas redondezas, em Wahlheim: um
camponês havia sido morto!  — A notícia não lhe causou maior
impressão. — Entrou na sala e encontrou Lotte ocupada em persuadir
o velho, que, a despeito de sua condição enferma, queria ir até o
vilarejo para investigar o atentado no próprio local do crime. O autor
ainda era desconhecido, a vítima fora encontrada naquela manhã na
soleira da porta de sua casa, mas já havia suspeitas: o corpo era do
empregado de uma viúva. E antes deste, a mulher tivera a seu serviço
um outro rapaz que havia sido demitido em razão de uma desavença.
Quando ouviu isso, Werther ergueu-se exaltado: — Será possível! —
gritou ele.  — Não há o que esperar, tenho que ir até lá.  — Saiu às
pressas em direção a Wahlheim. As lembranças foram aos poucos
ressurgindo em sua memória, e ele não tinha a menor dúvida de que o
autor do crime era aquele rapaz com quem ele havia conversado
algumas vezes e que ganhara a sua simpatia.
Para chegar até a taverna onde o corpo havia sido colocado,
Werther teve de passar por entre as duas grandes tílias, e, ao rever
aquele lugar que outrora lhe fora tão caro, sentiu-se consternado.
Aquela mesma soleira, onde as crianças da vizinhança costumavam
brincar, estava agora manchada de sangue. Amor e lealdade, os mais
belos sentimentos humanos, haviam se transformado em violência e
assassínio. As duas árvores vigorosas haviam perdido suas folhas e
estavam cobertas pela geada; a bela cerca viva, que crescia em arcos
sobre o muro baixo do cemitério, também estava desfolhada, e, por
entre suas frestas, dava-nos a ver as lápides cobertas de neve.
Quando se aproximou da taverna, em frente à qual se reunia todo o
vilarejo, teve início uma gritaria. Ao longe, podia-se avistar a chegada
de uma tropa de homens armados, e todo mundo ali dizia que traziam
o assassino. Werther olhou com atenção e não teve dúvidas. Sim, era
aquele mesmo empregado que tanto amava a viúva, aquele mesmo
rapaz que, mais recentemente, ele havia encontrado andando ao léu,
remoendo sua raiva, calando seu desespero.
— Mas o que é que você foi fazer, seu infeliz! — exclamou Werther,
chegando perto do prisioneiro. — O rapaz olhou calmamente para ele,
calou por um instante, mas por m respondeu, com toda a
serenidade: — Ela não vai ser de mais ninguém, ela não vai ter mais
ninguém. — Levaram o prisioneiro para dentro da taverna, e Werther
saiu dali às pressas.
O encontro atroz e brutal estremeceu e embaralhou as coisas todas
que lhe vinham ocupando as ideias. De um instante para o outro,
Werther foi como que arrancado do fundo de sua prostração, de sua
falta de ânimo, de sua indiferença por tudo; sem que pudesse resistir,
uma forma de compadecimento assenhoreou-se dele, e ele foi tocado
por uma vontade indescritível de salvar o rapaz. Sentia-o tão infeliz,
julgava-o inocente mesmo em sua condição criminosa e colocava-se
tão profundamente na pele do rapaz, que tinha absoluta convicção de
conseguir convencer os outros disso. Nem bem desejou poder
interceder em seu favor, e a mais vigorosa das defesas já lhe saltava
boca afora. Voltou correndo para a casa de caça e, no caminho, não
pôde deixar de repassar a meia voz tudo aquilo que ele pretendia
relatar ao superintendente.
Ao entrar na sala, topou com Albert, o que o deixou incomodado
por um momento; mas ele logo se recompôs e, de modo ardente e
fervoroso, expôs o que tinha em vista ao superintendente. Este
balançou uma ou outra vez a cabeça, e embora Werther tivesse feito a
sua exposição com muita verve, paixão e verdade  — en m, dizendo
tudo o que alguém poderia dizer em defesa de outro alguém  —, o
velho, como era de esperar, não se comoveu. Pelo contrário, mal
deixou nosso amigo acabar de se explicar e divergiu dele avidamente,
repreendendo-o por partir em defesa de um assassino traiçoeiro!
Mostrou-lhe que, procedendo assim, as leis se tornariam inoperantes e
toda a segurança pública cairia por terra; e ainda acrescentou que,
num caso como aquele, ele nada poderia fazer sem assumir ele próprio
toda a responsabilidade e que, en m, tudo precisava correr segundo a
ordem e os trâmites prescritos.
Werther não se deu por rendido e pediu-lhe que, pelo menos, zesse
vistas grossas, caso alguém resolvesse ajudar o rapaz a fugir! Também
isso ele se recusou a fazer. Albert, que somente a essa altura se
permitiu entrar na conversa, colocou-se em favor do velho: Werther
foi voto vencido. Desanimado e magoado, foi-se embora dali, mas não
sem antes ouvir o superintendente dizer ainda mais de uma vez:  —
Não, ele não tem salvação!
Um bilhete encontrado entre seus papéis, e que por certo há de ter
sido escrito nesse mesmo dia, permite-nos estimar o quanto essas
palavras deixaram nosso amigo perturbado:

Você não tem salvação, seu infeliz! Bem vejo que não temos mais salvação.

O que Albert havia dito a propósito do prisioneiro, na presença do


superintendente, causou em Werther um imenso desgosto: julgou ter
percebido certa indisposição em relação a ele. E ainda que, depois de
muito re etir, sua agudeza de espírito não lhe permitisse ignorar que
os dois, no fundo, tinham de fato razão, ter que reconhecer ou admitir
isso, para ele, era como abrir mão de toda a sua existência.
Também encontramos, em meio aos seus papéis, um bilhete que se
refere justamente a isso e que talvez possa nos dar uma ideia mais
completa de sua relação com Albert:

De que me adianta dizer e repetir de novo para mim mesmo que ele é um homem correto e
bondoso, enquanto, bem dentro aqui, isso me rebenta as entranhas? Simplesmente não
consigo ser justo.

Como fazia uma noite amena e a neve parecia querer começar a


derreter, Lotte e Albert resolveram voltar para casa a pé. No caminho,
ela olhava vez ou outra ao seu redor, como se sentisse falta da
companhia de Werther. Albert começou a falar dele, criticando-o, mas
fazendo-lhe justiça. Mencionou a sua paixão frustrada e expressou o
desejo de fazer o possível para afastá-lo deles. — É por causa também
de nós dois que desejo isso — disse ele. E continuou: — Por favor, veja
se você consegue dar um sentido diferente ao modo como ele se
comporta contigo, quem sabe diminuindo suas visitas tão frequentes.
Isso está começando a chamar a atenção das pessoas, e sei muito bem
o que já andam falando por aí.  — Lotte cou calada, e Albert não
pareceu ignorar seu silêncio, tanto que, desde então, parou de falar de
Werther em sua presença, e sempre que ela o mencionava, ele tratava
de deixar a conversa morrer ou mudava de assunto.
A tentativa inútil de Werther para salvar aquele infeliz foi o último
clarão de uma chama em vias de se apagar. Depois disso, ele
mergulhou ainda mais em suas mágoas e em uma profunda
prostração; e cou quase completamente fora de si ao saber que
cogitavam chamá-lo, como testemunha, para depor contra o rapaz,
que, àquela altura, resolvera negar o crime.
Tudo o que de desagradável já havia acontecido ao longo de sua
vida pro ssional, o desgosto que lhe causara o embaixador, cada um
de seus planos malogrados, todas as coisas que o haviam irritado,
en m, isso tudo se revolvia agora em sua alma. Achava que sua falta
de ação era mais do que justi cada, pois se sentia apartado de toda
perspectiva e incapaz de segurar qualquer que fosse a mão que viesse
em seu auxílio com o propósito de ajudá-lo a retomar as atividades
mais básicas da vida. E assim, completamente entregue às suas
emoções, aos seus pensamentos esquisitos e a uma paixão in nita,
mergulhado no sensabor eterno de uma relação infeliz com a criatura
amada e adorada, cuja paz ele só conseguiu perturbar, e usurpado em
suas forças, empregadas sem propósito nem perspectiva, cada vez mais
ele foi se aproximando de um triste m.
Quanto à sua perplexidade, à sua paixão, à sua incessante agitação
e aspiração, ao seu cansaço da vida, algumas das cartas que ele
deixou, e que incluímos a seguir, oferecem o testemunho mais
marcante.
12 de dezembro
Caro Wilhelm, encontro-me no estado daqueles infelizes que acreditam terem sido
possuídos por um espírito maligno. Às vezes isso toma conta de mim; não é angústia, não é
desejo — é um furor estranho aqui dentro, que ameaça rasgar meu peito, que me aperta a
garganta! Ai de mim, ai de mim! É quando, então, eu saio vagando à toa pelos cenários
noturnos e tenebrosos desta estação desalmada.
Ontem à noite não tive como não sair de casa. Como a temperatura havia subido de
repente, o gelo começou a derreter e, segundo ouvi dizerem, o rio transbordou, os córregos
estavam inundados e, do alto de Wahlheim até o fundo deste vale que eu tanto estimo,
cou tudo alagado. Por volta das onze horas da noite, corri até lá. E que espetáculo
horrendo foi ver, do alto do rochedo, as águas da enchente revolverem-se, à luz do luar,
por sobre os campos e as plantações e as cercas vivas e o mais, e toda a amplidão do vale
virar um só mar imenso, varrido pelo vento! E quando a lua ressurgiu ainda mais alto nos
céus, despontando acima de uma nuvem negra, e vi diante de mim a enchente reboando e
correndo o espelho medonho e majestoso de suas águas, aí então senti um calafrio e, em
seguida, um anseio! Ah, de braços bem abertos, eu estava à beira de um abismo, respirava
fundo, olhava para baixo! Bem para baixo! Foi quando me perdi na delícia da ideia de
atirar todos os meus tormentos e sofrimentos naquele precipício e vê-los arrastados para
longe, como as ondas! Oh! — Mas você não foi capaz de levantar o pé do chão e acabar
de vez com todo o tormento! — Meu tempo ainda não se esgotou, sinto isso! Oh, Wilhelm,
eu teria dado toda a minha existência para romper as nuvens feito um vento tempestuoso e
acabar tocando as águas da enchente! Ah, será que um dia não se há de conceder esse
prazer ao condenado? —
Qual não foi minha tristeza ao olhar para o vale lá embaixo e avistar um lugarzinho em
que, à sombra de um salgueiro, Lotte e eu descansamos, certa vez, de uma longa e
escaldante caminhada  — estava tudo inundado, mal consegui reconhecer o salgueiro,
Wilhelm! E quei pensando naqueles campos todos, na região em torno da casa de caça, e
como até o nosso caramanchão devia ter sido destruído pela força avassaladora da
enchente. Foi quando o raio de sol de um tempo passado reluziu em mim, como num
condenado o sonho com rebanhos, campos e cargos honorí cos! Fiquei ali, de pé! — Não
me repreendo, pois não tenho medo de morrer. — Eu teria — Agora estou aqui, sentado
como uma velha caquética, que cata a sua lenha junto à própria cerca e mendiga o pão de
porta em porta, para tornar mais suportável e prolongar por um momento ainda a sua
existência desgraçada e moribunda.

14 de dezembro
O que é isso, meu caro? Fico assustado comigo mesmo! Será que o que eu sinto por ela
não é uma forma sagrada, pura e fraterna de amor? Será que já cheguei a alimentar em
minha alma algum desejo condenável?  — Não quero responder tão enfaticamente  — E
agora, esses sonhos! Ah, como sabiam o que diziam aqueles que atribuíram a essas forças
estranhas efeitos tão diversos! Essa noite  — tremo só de lembrar!  — eu a tive em meus
braços, colada em meu peito, e cobri com meus beijos sem m os cicios apaixonados de
sua boca; meus olhos se banhavam na embriaguez dos olhos dela! Deus, será que devo ser
condenado pela felicidade que ainda sinto ao me lembrar tão afetuosamente desses
prazeres ardentes? Lotte! Lotte!  — Estou mesmo acabado! Meus sentidos se confundem,
faz oito dias que já não tenho mais forças para pensar, meus olhos se encheram de
lágrimas. Não me sinto bem em parte alguma, eu me sinto bem em toda parte. Não desejo
nada, não exijo nada. Melhor seria ir embora.

A essa altura, as circunstâncias zeram com que a decisão de deixar


o mundo fosse ganhando cada vez mais força na alma de Werther.
Desde a última vez que estivera com Lotte, esta havia se tornado sua
opção nal, sua esperança derradeira; mas prometera para si próprio
que não faria isso precipitadamente, num gesto impulsivo: daria esse
passo com toda convicção e determinação, de modo tão sereno quanto
possível.
Suas dúvidas e o embate consigo mesmo saltam aos olhos num
bilhete que, muito provavelmente, pretendia ser o início de uma carta
para Wilhelm e que foi encontrado sem datação entre seus papéis.

A presença dela, sua sina e o interesse que ela tem por mim ainda conseguem arrancar as
últimas lágrimas deste meu cérebro ressequido.
Abrir as cortinas e dar um passo além! Isso é tudo! Mas por que todo esse chove não
molha? Só porque ninguém sabe como é do outro lado? E porque não tem volta? É que é
próprio de nosso espírito tomar como algo que presumimos confuso e obscuro aquilo que
não sabemos por certo.

Ele foi se habituando e foi se afeiçoando cada vez mais a esse


pensamento funesto, até que este acabou se tornando um propósito
rme e irrevogável, do que nos dá testemunho uma carta ambígua,
escrita para o seu amigo.
20 de dezembro
Sou grato ao carinho que você tem por mim, Wilhelm, e que o fez entender tão bem as
minhas palavras. Sim, você tem razão: o melhor seria eu ir embora. A tua sugestão, de eu
voltar para junto de vocês, não é de todo do meu agrado; antes eu gostaria de fazer pelo
menos um pequeno desvio, especialmente porque, com o tempo frio que deve continuar
fazendo, a expectativa é de que as estradas se mantenham em boa condição. Também
simpatizo muito com a ideia de você vir ao meu encontro; mas me dê ainda duas semanas
e aguarde a minha próxima carta com os detalhes. É importante que nada seja colhido
antes de estar maduro, e duas semanas a mais ou a menos fazem toda a diferença. Diga à
minha mãe que rogue por seu lho em suas preces e que me perdoe por todo o desgosto
que eu lhe dei. Parece que este foi mesmo o meu destino, deixar tristes aqueles a quem eu
mais deveria alegrar. Até logo, meu caro amigo! Que as bênçãos dos céus recaiam sobre ti!
Até logo!

Não nos atreveremos a descrever o que se passava naquele


momento na alma de Lotte, o que ela sentia por seu marido, por seu
amigo infeliz, mas podemos muito bem imaginá-lo pelo que
conhecemos de sua personalidade, e uma boa alma feminina há de
poder se identi car com a dela e compreendê-la.
O que se sabe por certo é que ela estava rmemente decidida a fazer
de tudo para afastar Werther; e se ela às vezes hesitava, fazia-o apenas
como um gesto sincero de preservação do amigo, já que sabia o
quanto isso havia de lhe custar, já que sabia que a separação seria
quase impossível para ele. Acontece que, naquele momento, Lotte
sentia-se ainda mais pressionada a agir com rmeza; seu marido não
dizia absolutamente nada sobre a relação dos dois, assim como
também ela sempre calara a respeito, e por isso mesmo estava ainda
mais disposta a provar-lhe, com suas ações, o quanto seus sentimentos
eram dignos dos dele.
Naquele mesmo dia em que escreveu ao seu amigo a carta que
incluímos aqui por último, no domingo logo anterior à semana do
Natal, Werther chegou à casa de Lotte no nal da tarde e encontrou-a
sozinha. Ela estava colocando em ordem alguns brinquedos que
arrumara para dar de presente de Natal aos seus irmãos mais novos.
Ele falou da alegria que os pequeninos por certo iriam sentir,
lembrando ainda dos tempos em que uma porta inesperadamente
entreaberta e a visão de uma árvore de Natal, toda montada com
velas, guloseimas e maçãs, eram capazes de transportá-lo para um
mundo de encantos paradisíacos.  — Você também  — disse Lotte,
escondendo o constrangimento por trás de um sorriso carinhoso  —,
você também vai ganhar presente, se você se comportar bem; uma
velinha e mais alguma coisa.  — E o que você quer dizer com
comportar-se bem?  — perguntou ele.  — O que devo fazer? O que
posso fazer, minha cara Lotte? — Quinta-feira à noite — disse ela — é
véspera de Natal. Esperamos a visita das crianças, do meu pai, e todo
mundo vai ganhar presente. E esperamos que você também venha nos
visitar na quinta — mas não antes. — Werther cou surpreso. — Por
favor — continuou ela —, agora é assim que as coisas vão ter que ser;
por favor, é pelo meu sossego, não dá mais, não dá mais para
continuar assim! — Ele desviou o olhar e começou a andar de um lado
para o outro da sala, murmurando entredentes: — Isso não pode car
assim!  — Percebendo o espanto que aquelas palavras lhe causaram,
Lotte tentou distrair sua atenção com todo tipo de pergunta, mas foi
tudo em vão. — Não, Lotte — exclamou ele —, eu não vou mais vê-la
de novo! — E por que isso agora? — replicou ela. — Werther, é claro
que você pode vir, você tem que vir nos visitar, só modere um pouco
as visitas. Oh, por que é que você tinha que nascer com essa sua
tempestuosidade, com essa paixão tão indomável quanto cativante por
tudo o que você toca na vida? Por favor — continuou ela, pegando-lhe
pela mão  —, modere um pouco as coisas! Seu espírito, seus
conhecimentos, seus talentos, quantas coisas diferentes eles não lhe
proporcionam? Seja o homem que você é! Deixe de lado esse apego
doloroso por uma criatura que não sabe fazer nada mais do que se
lamentar por você.  — Rangendo os dentes, Werther dirigiu-lhe um
olhar soturno. Ela segurou ainda mais rme a mão dele:  — Só lhe
peço um pouco de tempo para acalmar os sentidos!  — disse ela.  —
Você não percebe que está se enganando, que está se arruinando de
modo deliberado? Por que eu, Werther? Por que justo eu, que já sou
de outro? Ou será que não é justamente por isso? Eu receio, sim,
receio que é a impossibilidade de eu ser sua que faz desse seu desejo
algo tão excitante. — Ele afastou sua mão das mãos dela, xando nela
seu olhar irritado. — Mas que sensato — disse ele —, muito sensato!
Por acaso o autor de tal observação não terá sido o próprio Albert?
Político! Muito político!  — Qualquer um é capaz de fazer uma
observação assim  — replicou ela logo em seguida.  — Você acha que
no mundo todo não existe outra garota que possa corresponder aos
desejos do seu coração? Resolva-se consigo mesmo, vá à procura dela,
e eu garanto que vai encontrá-la; faz tempo que estou preocupada
com esse isolamento ao qual você se condenou nos últimos tempos:
temo por você, temo por nós. Resolva-se consigo mesmo! Uma viagem
talvez pudesse distraí-lo; não, certamente o distrairá! Saia à procura
dela, encontre um objeto valoroso para o seu amor, e depois volte
para que nós todos possamos desfrutar juntos da alegria de uma
amizade verdadeira.
— Puxa — disse ele com um sorriso frio —, poderíamos até mandar
imprimir isso, recomendando a leitura a todos os preceptores! Cara
Lotte, deixe-me descansar por mais alguns dias e tudo vai se
resolver!  — Só uma coisa, Werther: não volte antes da véspera de
Natal!  — Ele estava prestes a lhe dar uma resposta, quando Albert
entrou na sala. Ambos se cumprimentaram com frieza e,
constrangidos, puseram-se a andar de um lado para o outro da sala.
Werther começou a falar sobre algo sem maior importância, mas logo
parou. Albert fez o mesmo e, logo em seguida, perguntou a sua
mulher sobre certos afazeres; e ao ouvir dela que estes ainda não
haviam sido feitos, disse-lhe algumas palavras que, aos ouvidos de
Werther, soaram frias, ou mesmo duras. Sentiu vontade de ir embora,
mas não conseguiu e foi cando, até que, lá pelas oito horas, quando
seu mau humor e seu mal-estar já haviam se multiplicado inúmeras
vezes, a mesa do jantar foi posta, e ele então passou a mão no chapéu
e na bengala. Albert ainda o convidou a car, mas Werther, que não
ouviu naquele convite senão uma forma vazia de gentileza, agradeceu
friamente e foi embora.
Ao chegar em casa, tomou a lamparina das mãos do empregado que
veio iluminar seu caminho e seguiu sozinho para o quarto. Pôs-se logo
a chorar copiosamente, gritou zangado consigo mesmo, começou a
andar agitado de um lado para outro, até que se atirou de roupa e
tudo na cama, onde seu empregado o encontrou lá pelas onze horas
da noite, quando resolveu arriscar entrar no quarto e perguntar ao
patrão se não desejava que ele lhe tirasse as botas. Permitindo-lhe que
o zesse, proibiu o empregado de entrar no quarto antes de ser
chamado por ele na manhã seguinte.
Na manhã de segunda-feira, dia 21 de dezembro, Werther escreveu
a seguinte carta, que foi encontrada lacrada sobre a sua escrivaninha,
endereçada e entregue a Lotte logo após a sua morte; incluo aqui
alguns de seus parágrafos, que talvez possam esclarecer melhor as
circunstâncias em que ele a escreveu.
Está decidido, Lotte, quero morrer, e escrevo isso de modo muito tranquilo, sem maiores
arroubos sentimentalistas, na manhã do dia em que irei te ver pela última vez.51 Quando
você ler esta carta, minha querida, a cova funda e fria já terá enterrado os restos
enrijecidos desta criatura inquieta e infeliz, que, nos últimos momentos de sua vida, não
soube escolher prazer mais doce do que o de conversar contigo. Tive uma noite terrível!
Ah, mas até que me fez bem. Pois foi ela que me deu rmeza, que determinou a minha
decisão: quero morrer! Ontem, assim que me separei de ti, em meio à revolta medonha dos
meus sentidos, com o coração confrangido e enfrentando a frieza horrenda desta minha
existência triste e desesperançosa ao teu lado — mal consegui chegar ao meu quarto, atirei-
me de joelhos, completamente fora de mim, e… oh, deus, você então me concedeu o
lenitivo derradeiro das lágrimas mais amaras! Milhares de possibilidades me tomavam de
assalto, milhares de perspectivas revolviam minha alma, até que vislumbrei essa ideia, e ela
foi ganhando corpo e foi se rmando como a única, como a última e única ideia no meu
pensamento: quero morrer! — Finalmente me deitei, e quando despertei, na tranquilidade
da manhã seguinte, lá estava ela, ainda rme e forte no meu coração: quero morrer!  —
Não é desespero, é certeza: de que passei por muita coisa até chegar a essa decisão; e de
que me sacri co por ti. Sim, Lotte! Por que é que eu deveria me calar agora? Um de nós
três precisa partir, e quero que seja eu. Oh, minha querida, quantas vezes este meu coração
partido e furioso não esteve às voltas com a ideia de  — matar o teu marido!  — matar
você! — matar a mim mesmo! — Pois que assim seja! — E da próxima vez que você subir
até o alto da montanha num belo m de tarde de verão, não deixe de lembrar de mim, das
tantas vezes que percorri esse mesmo vale colina acima; e olhando então na direção do
cemitério, do meu túmulo, sinta como o vento varre a relva alta à luz raiada do arrebol —
Eu estava tranquilo quando comecei, mas agora, agora estou chorando feito criança, pois
isso tudo ganha vida ao meu redor.

Por volta de onze horas, Werther chamou seu empregado e,


enquanto se vestia, disse-lhe que, como estava para viajar nos
próximos dias, ele deveria escovar suas roupas e deixar tudo
preparado para fazer as malas; mandou também que ele fechasse
todas as suas contas, que fosse buscar alguns livros que havia
emprestado e que adiantasse dois meses de pagamento àqueles
desfavorecidos a quem ele costumava dar semanalmente algum
dinheiro.
Pediu ainda que lhe servissem a comida no quarto; depois da
refeição, saiu a cavalo em direção à casa do superintendente, a quem
Werther, no entanto, não encontrou. Resolveu então andar pelo
jardim, pensativo, como se quisesse cumular em si toda a tristeza de
suas lembranças.
Os pequeninos não o deixaram sossegado por muito tempo,
correram atrás dele, pularam em seu pescoço e contaram-lhe coisas.
Contaram-lhe que, quando fosse amanhã, e amanhã de novo, e mais
um dia todo, eles iriam buscar os presentes de Natal na casa de Lotte;
e contaram-lhe, ainda, as maravilhas que sua imaginação de
pequeninos lhes prometia. — Amanhã! — exclamou ele. — E amanhã
de novo! E mais um dia todo! — Beijou-os todos carinhosamente e já
estava prestes a ir embora, quando o menor deles fez sinal de que
queria lhe dizer algo no ouvido. O pequenino con denciou-lhe que os
irmãos mais velhos haviam escrito belos cartões de Ano-Novo, e que
eram bem grandes! Um para o papai, um para Albert e Lotte e um
também para o senhor Werther; e eles planejavam entregá-los bem
cedo na manhã do dia de Ano-Novo. Aquilo foi demais para ele.
Dando a cada um alguma coisa, montou em seu cavalo, deixou seus
cumprimentos ao velho e saiu cavalgando com os olhos cheios de
lágrimas.
Chegou em casa por volta das cinco da tarde, pediu à criada que
cuidasse do fogo e o mantivesse aceso até a madrugada. Ao
empregado, pediu-lhe que arrumasse os livros e as roupas íntimas na
mala e que empacotasse o restante de seus trajes. Depois disso, é
muito provável que tenha escrito o seguinte parágrafo da carta
endereçada a Lotte:
Você não está esperando por mim! Você acha que eu vou te obedecer e que só vou te ver
na noite da véspera de Natal. Oh, Lotte! É hoje ou nunca mais. À noite, na véspera de
Natal, você vai segurar esta folha de papel, suas mãos vão tremer, e você vai molhá-la toda
com tuas queridas lágrimas. Eu quero, eu tenho que! Oh, como é bom me sentir nalmente
decidido.

Nesse meio-tempo, Lotte acabou se vendo numa situação muito


particular. Depois da última conversa com Werther, percebeu o quanto
seria difícil para ela separar-se dele e o quanto ele sofreria por ter de se
afastar dela.
Numa conversa com Albert, comentou casualmente que Werther
não os visitaria antes da noite da véspera de Natal. Albert pegou o
cavalo e foi resolver seus negócios com um funcionário que morava
nas vizinhanças, onde ele teria que passar a noite.
Lotte acabou cando em casa sozinha, e como não tinha nenhum
dos irmãos ao seu redor, entregou-se aos seus próprios pensamentos,
que andavam às voltas com suas relações pessoais. Via-se ligada para
sempre a um homem cujo amor e lealdade ela conhecia bem, e de
quem ela gostava de coração; um homem cuja serenidade e
con abilidade pareciam ter sido forjadas pelos céus para abrigar a
felicidade de uma mulher determinada; en m, ela sentia exatamente o
que ele representava e continuaria representando para ela e para as
crianças. Por outro lado, havia se afeiçoado muito a Werther. Já desde
o primeiro encontro a a nidade entre os dois se revelara tão bela, e a
longa e duradoura convivência com ele, somada a algumas situações
pelas quais acabaram passando juntos, havia produzido em seu
coração uma impressão simplesmente impossível de se apagar.
Acostumara-se a partilhar com Werther tudo o que sentia e pensava
de interessante, de modo que a distância dele ameaçava abrir em sua
vida uma imensa lacuna, que não mais poderia ser preenchida. Ah, se
naquele momento ela pudesse transformá-lo num irmão! Como ela
caria feliz! — Se ao menos tivesse sido capaz de casá-lo com uma de
suas amigas, talvez ela tivesse conseguido reconstruir até mesmo a
relação dele com Albert!
Ela havia pensado em cada uma de suas amigas, uma por uma, mas,
como todas sempre tinham alguma coisa que não falava de todo em
seu favor, não encontrou nenhuma que julgasse ser merecedora dele.
Somente em meio a todas essas considerações começou a sentir que,
no fundo, embora não admitisse, seu desejo mais íntimo e secreto era
o de guardá-lo apenas para si mesma; ao mesmo tempo, porém,
rea rmava que não podia, que não lhe era permitido guardá-lo para
si. Sua alma pura e bela, em geral tão leve e acostumada a suportar
tudo com tanta leveza, carregava agora o peso de uma tristeza que
fechava para si qualquer perspectiva de felicidade. Sentiu o coração
apertado, e uma nuvem escura obnubilou seu olhar.
Era algo em torno de seis e meia quando ela ouviu subirem as
escadas, e logo reconheceu os passos e a voz de Werther, que chamava
por ela. E como a chegada dele fez palpitar o seu coração, quiçá pela
primeira vez! Ela teria preferido fazer de conta que não estava, e
quando ele entrou na sala, disse-lhe, tomada por uma espécie de
perplexidade apaixonada:  — Você não cumpriu sua palavra.  — Não
prometi nada — foi a resposta dele. — Mas você podia ao menos ter
levado o meu pedido em consideração — replicou ela —, só lhe pedi
isso pelo nosso próprio bem.
Ela não sabia direito o que dizer, muito menos o que fazer, até que,
para não car sozinha na companhia de Werther, resolveu mandar
chamar algumas amigas. Ele colocou sobre a mesa alguns livros que
trouxera consigo, perguntou por alguns outros, enquanto ela desejava
ora que suas amigas chegassem logo, ora que elas cassem bem longe
dali. A criada retornou em seguida, trazendo a notícia de que suas
duas amigas se desculpavam por não poderem vir.

Lotte pensou em pedir à criada que viesse fazer o seu trabalho no


quarto ao lado, mas logo mudou de ideia. Werther andava de um lado
para o outro da sala. Ela sentou-se ao piano e começou a tocar um
minueto, mas a música não parecia uir. Tentou se controlar e,
mantendo a serenidade, foi se sentar ao lado de Werther, que já havia
tomado assento no seu lugar de sempre no canapé.
— Você não trouxe nada para ler? — perguntou ela. Ele não havia
trazido nada.  — Ali, naquela gaveta  — começou ela  —, você vai
encontrar a sua tradução dos cantos de Ossian;52 eu ainda não os li,
pois sempre tive a esperança de que você os lesse para mim; mas,
desde então, não se deu, não quis se dar a ocasião para tanto. — Ele
sorriu, foi buscar os cantos, sentiu um calafrio correr-lhe o corpo
quando os viu em suas mãos, e seus olhos caram cheios de lágrimas
ao correrem as páginas. Sentou-se e começou a leitura.

Estrela da noite que vem, quão bela fulges no Ocidente. Tu ergues por entre as nuvens teu
cenho radiante, vagas por sobre os morros alterosa.53 O que buscam teus olhos na planura
das campanhas? Cessaram de ventar os ventos mais revoltos. Já se ouve ao longe o reboo
das águas. Ondas ruidosas brincam ao pé do rochedo distante. O burburinho dos insetos
toma conta da campina ao m do dia. O que veem teus olhos, luz que bela reluz? Tu
sorris, mas vais embora, e as ondas se deleitam ao te enredar, banhando-te as adoráveis
cãs. Adeus, astro quiescente. Pois que agora brilhas tu, luz majestosa da alma de Ossian!
E eis que ela surge em todo o seu fulgor. Vejo meus amigos falecidos, que em Lora se
reúnem como outrora  — Fingal chega como chega a cerração; seus heróis estão ao seu
redor. Ei-los, os bardos do canto: o grisalho Ullin, o majestoso Ryno, o melodioso Alpin! E
tu, Minona, canora dos mais doces lamentos! — Mas, meus amigos, quanto não mudastes
desde os dias de festim, quando em Selma disputávamos as honras do canto, como as
virações da primavera, que varrem os morros e, a seu turno, bolem a relva que cicia
silenciosa.
Surgiu então Minona em toda sua beleza, com os olhos marejados, o olhar abatido. Seu
cabelo esvoaçava ao vento que soprava suas rajadas morro abaixo.  — Turvou-se a alma
dos heróis quando se ergueu o doce som de sua voz; pois tantas vezes viram o túmulo de
Salgar, e tantas vezes viram a lúgubre morada de Colma, a dos seios brancos. Colma,
abandonada sobre o morro com sua voz harmoniosa; Salgar prometera vir, mas fez-se
noite ao derredor. Escutai a voz de Colma, solitária sobre o morro.
colma

É noite!  — Estou sozinha, perdida neste morro tempestuoso. O vento sopra nas
montanhas mais distantes, as corredeiras esbravejam encosta abaixo. Não tenho abrigo
que da chuva me proteja, a mim que abandonada neste morro tempestuoso.
Levanta-te, oh, lua! Sai de trás de tuas nuvens! Surgi nos céus, astros da noite! Que um
brilho alhures me conduza aonde repousa meu amor da extenuação da caça, seu arco teso
junto a si, seus cães bufando ao seu redor! Mas aqui hei de car, sozinha, junto à
corredeira, sentada sobre a pedra recoberta pela relva. Reboam as torrentes e as tormentas,
não ouço a voz do meu amado.
Por que meu Salgar se demora? Terá ele esquecido sua promessa?  — Aqui já estão
rochedo e árvore, aqui ressoa a corredeira! Prometeste que chegavas ao romper da noite.
Ah! Por onde foi que te perdeste, Salgar? Contigo quis fugir, abandonando pai e irmão, tão
presunçosos! Nossas famílias são há muito inimigas. Mas, Salgar, nós não somos inimigos,
não!
Cala-te um instante, oh, vento! Aquieta-te um momento, oh, corredeira! Que a minha
voz ecoe pelo vale e que me possa ouvir meu viajante. Salgar! Sou eu quem chama! Aqui já
estão a árvore e o rochedo! Salgar, meu amado, aqui estou eu! Por que tu te demoras?
Olha a lua como surge, rebrilham as águas no vale, a escarpa se acinzenta encosta
acima; mas não o vejo no alto do morro, seus cães não o antecedem anunciando a sua
chegada. Aqui hei de car, sozinha.
Quem são aqueles lá embaixo, estirados na campina? — Meu amado? Meu irmão? —
Falai, amigos meus! Eles não respondem. Minha alma se carrega de angústia! Oh, mas
estão mortos, e suas espadas turvas do rubro da batalha. Meu irmão, meu irmão! Por que
mataste Salgar, meu amado? Amado Salgar, porque mataste meu irmão? — Eu vos amava
tanto a ambos. Tu eras belo ao pé do morro entre os milhares! Ele era horrível na batalha.
Respondei-me! Escutai minha voz, amados meus! Mas não: todos estão mudos! Mudos
para sempre! E frios como a mais fria terra estão seus peitos!
Do rochedo no alto do morro, de cima da montanha tempestuosa, falai, espíritos dos
mortos! Falai, pois que não hei de estremecer! — Onde fostes buscar pouso? Em que antro
na montanha hei de encontrar-vos?  — Não ouço nenhum o de voz no vento, respostas
não adejam nas rajadas sobre o morro.
Sentada aqui com meus lamentos, aguardo a aurora aos prantos. Cavai a cova, amigos
dos mortos, mas não fecheis a sepultura até que eu chegue. Vai se esvaindo como um
sonho a minha vida, como haveria eu de car p’ra trás? Quero morar aqui com meus
amigos, junto à corredeira do rochedo retumbante — e quando a noite cair sobre o morro
e a ventania vier varrendo essas campinas, meu espírito há de erguer-se em pé de vento,
lamentando a morte dos amigos. Então há de escutar-me o caçador em seu refúgio. E há de
temer-me e há de amar-me, pois doce é a minha voz, a voz que canta os dois amigos mais
queridos!

Assim cantaste tu, Minona, lha enrubescida de Torman. E nossas lágrimas correram
por Colma, turvaram-se nossas almas.
Ullin então surgiu com sua harpa, entoando-nos o canto de Alpin — a voz de Alpin era
afável, ardia em fogo a alma de Ryno. Mas havia muito repousavam em seus jazigos, havia
muito que sua voz esvanecera em Selma. Certo dia, ao retornar de sua caçada, antes de os
heróis tombarem na batalha, Ullin ouviu os dois, no alto do morro, cantando em desa o.
Era terna a sua canção, mas era triste. Lamentavam a queda de Morar, primeiro dos
heróis. Sua alma era como a alma de Fingal; sua espada, como a espada de Oskar — Mas
ele tombou. Seu pai chorou de dor, os olhos de sua irmã se encheram de lágrimas, os olhos
de Minona, irmã do majestoso Morar, também se encheram de lágrimas. E ouvindo Ullin
entoar seu canto, Minona retirou-se, como a lua no Ocidente, que, antevendo a
tempestade, esconde o rosto donairoso atrás das nuvens.  — Toquei a harpa com Ullin,
ouviu-se em canto o lamento.
ryno

Cessam o vento e a chuva, faz-se calmo o dia a pino, as nuvens se dividem pelo céu. O sol
clareia os morros, inconstante e fugaz. Rúbeas correm as águas da montanha pelo vale. É
doce o teu murmúrio, corredeira; mas tão mais doce é a voz que ouço, é a voz de Alpin,
que lamenta o morto. Corcovado pela idade, vermelhos os olhos de choro. Alpin,
admirável bardo! Por que tu estás sozinho sobre o morro que se cala? Por que lamentas tu
qual pé de vento na mata, qual onda que rebenta na costa mais distante?
alpin

Minhas lágrimas, Ryno, são todas para o morto; minha voz, para os que habitam a cova
funda. Tu te ergues tão esbelto sobre o morro, e és tão belo entre os lhos das campanhas.
Mas, como Morar, tu também hás de tombar, e um dia o enlutado há de sentar-se no teu
túmulo. Os morros hão de te esquecer, e então teu arco, frouxo, há de quedar no adro.
Tu eras lépido, oh, Morar, como a corça sobre o morro; e como um rastro de fogo, que à
noite rasga os céus, eras terrível. Teu furor era a procela, tua espada na batalha lampejava
na campanha. Tua voz na mata era a enxurrada após a chuva, era o trovão que ribombava
nas montanhas mais longínquas. Quantos não tombaram sob a força do teu braço,
consumidos nos ardores da tua ira! Mas quando tu da guerra retornavas, como era calma
a tua voz! Teu semblante era o sol depois da tormenta, a lua na noite silente, e teu peito,
espelho plácido, era um lago quando cessam de soprar os ventos.
Estreita é a tua morada, sombrio é o teu jazigo! Por mais que outrora foste tu tão
grande, três passos bastam p’ra medir tua cova agora! Somente quatro pedras, recobertas
de musgo, se erguem em tua memória. Uma árvore esfolhada e a relva alta, ciciando ao
vento, é tudo o que designa, ao caçador de olhos atentos, o túmulo do majestoso Morar.
Tu não tens mãe que chore por ti, nem moça que de amor mareje os olhos. Morreu aquela
que lhe deu à luz, tombou também a lha de Morglan.
Quem é este que vem com seu cajado? Quem é este que traz nas cãs a idade, que tem de
tanto pranto os olhos rúbidos? Este é teu pai, oh, Morar! O pai de lho algum além de ti!
Ele bem soube de tua fama na batalha, bem soube de inimigos derrotados; soube das
glórias de Morar! E das feridas, ah, não soube nada? Chora, pai de Morar! Chora! Mas
teu lho não te ouve! Profundo é o sono dos mortos, raso o seu travesseiro de pó. Jamais
ele ouvirá a tua voz, jamais despertará ao teu chamado. Oh, quando há de se fazer manhã
no túmulo, oferecendo-se àquele que dorme: Acorda!
Adeus, mais nobre entre os homens, senhor nos campos de batalha! Não te verão nunca
mais as campinas! Não mais reluzirão as matas escuras ao brilho do teu aço. Tu não
deixaste lhos, mas este canto manterá teu nome vivo. Tempos por vir ouvirão falar de ti,
ouvirão falar de Morar, tombado em combate.
O luto dos heróis ressoava em toda parte, mas os suspiros de Armin eram os mais altos.
Lembrava-lhe, o canto, a morte de seu lho, tombado em pleno alvor da idade. Carmor,
príncipe da ressonante Galmal, sentou-se junto ao herói. Por que irrompem os suspiros do
peito de Armin, perguntou ele, o que há aqui que tanto a ige? Acaso o canto e a música
não regalam e enternecem a alma? Pois são como a névoa suave, que se ergue do lago e se
espalha pelo vale e deita sua umidade nos botões ainda em or; mas o sol sempre ressurge
com sua força, e a névoa então se esvai. Por que estais tão a ito, Armin, senhor da
insulana Gorma?
Muito a ito! É assim que estou, e não é menor a causa de todo este pesar.  — Tu não
perdeste um lho, Carmor, tu não perdeste lha em plena oração; Colgar, o intrépido,
ainda vive, e assim também Amira, entre as belas a mais bela. Ainda vicejam os brotos de
tua cepa, Carmor; Armin é o último da estirpe. Sombrio é o teu leito, oh, Daura! Pesado o
sono no fundo da cova  — Quando hás de despertar com teus cantos, com tua voz
melodiosa? Erguei-vos, ventos do outono, erguei-vos! Soprai sobre as campanhas
sombrias! Retumbai, corredeiras da mata! Troai, tormentas, na copada dos carvalhos. E
tu, oh, lua, segue errante entre o talhado das nuvens, mostra de quando em vez teu rosto
pálido! Lembra-me da noite infausta, em que morreram meus lhos, em que tombou o
poderoso Arindal, em que se foi minha tão querida Daura.
Como eras bela, Daura, minha lha. Bela como a lua sobre os morros de Fura, branca
como a neve, doce como o ar que respiro. E tu, Arindal, teu arco era tão forte, tua lança
era tão célere nos campos de batalha, teus olhos como a névoa sobre as ondas, teu broquel
como um relampo em meio às nuvens tempestuosas!
Armar, guerreiro renomado, chegou p’ra conquistar de Daura o coração; Daura logo
acedeu. Seus amigos se nutriram de esperanças.
Erath, lho de Odgall, encheu-se de rancor, pois Armar era o nome do assassino de seu
irmão. Erath veio disfarçado de barqueiro. Era belo sobre as ondas seu batel, grisalho o
cacheado do cabelo, serena a seriedade no semblante. Oh, mais bela entre as belas, querida
lha de Armin, disse ele, junto ao rochedo lá adiante, não muito longe mar adentro, onde
as frutas purpurejam em seus pés, lá se encontra Armar à espera de Daura; vim buscar a
sua amada, vim levá-la a ele pelo mar revolto.
Com ele ela seguiu, e lá chegando ela chamou por Armar; mas não ouviu senão a voz do
rochedo. Armar! Meu amado, amado meu! Por que me deixas angustiada assim? Ouve,
lho de Arnath, ouve! É Daura quem te chama!
Erath, o traidor, dali fugiu-se rindo e retornou à praia. A moça ergueu sua voz, chamou
seu pai, chamou o irmão: Armin! Arindal! Ninguém virá salvar sua Daura?
Sua voz cruzou o mar. Nesse entanto, Arindal, meu lho, descia o morro na crueza dos
espólios de sua caça. Suas echas roçavam-lhe o dorso, trazia o arco na mão e cinco
dogues pardos no seu rasto. Viu na praia o atrevido Erath, prendeu-o, amarrou-o no
carvalho, apertou-lhe seus quadris. O prisioneiro então gemeu aos quatro ventos.
Arindal parte em busca de Daura, rompe as ondas no batel. Armar chega à praia
furibundo, tende o arco, solta o gris da pena, a echa soa e desferida fere fundo o coração,
teu coração, oh, Arindal, meu lho! Ao invés de Erath, o traidor, perdeste tu a vida. O
barco atingiu o rochedo, Arindal soçobrou e morreu. E, Daura, qual não foi tua dor,
quando aos teus pés correu o sangue de um irmão!
As ondas esmagaram o batel. Armar atirou-se ao mar, para salvar sua amada Daura ou
morrer. De repente um pé de vento desce o morro e esmurra as ondas. Armar afunda para
nunca mais voltar.
Ouvi os clamores de minha lha, sozinha, no alto do rochedo fustigado pelas ondas.
Eram altos e eram muitos os seus gritos, mas seu pai não pôde mais salvá-la. Passei na
praia a noite inteira, vendo-a ao longe ao brilho baço do luar. Ouvi seus gritos noite
adentro, o vento e a chuva forte castigavam a encosta. Sua voz foi rareando e, antes de
raiar o dia, sumiu de si, como os bafejos da noite em meio à relva nos rochedos.
Extenuada pela dor, ela morreu, deixando Armin sozinho neste mundo! Foi-se a minha
força na guerra, foi-se o meu orgulho entre as moças.
Quando as tormentas descem o morro e o vento norte encrespa as ondas, sento-me na
praia ruidosa e olho para o infausto rochedo. Vez ou outra, quando a lua se recolhe, vejo
os vultos dos meus lhos, que andam juntos na penumbra, compartindo a mesma dor.

Uma torrente de lágrimas rebentou dos olhos de Lotte, aliviando-lhe


o coração apertado e interrompendo a leitura que Werther fazia do
canto. Ele largou de lado aquelas páginas, segurou a mão dela e
chorou as lágrimas mais amargas. Lotte amparava o rosto com a
outra mão, escondendo os olhos com o lenço. A comoção dos dois era
tremenda. Sentiam, no destino daqueles nobres, sua própria desdita, e
sentiam-no juntos, unidos por suas lágrimas. Os lábios e os olhos de
Werther ardiam em brasa junto ao braço de Lotte; ela quis se afastar,
um calafrio correu-lhe o corpo, mas a dor e a compaixão
entorpeciam-na, pesando-lhe feito chumbo. Na tentativa de recobrar o
fôlego, ela respirou fundo e, soluçante, pediu-lhe, com todo o céu de
sua voz, que seguisse adiante! Werther tremia, o coração prestes a
explodir; juntou de novo aquelas páginas e, com a voz alquebrada,
continuou a leitura.

Por que tu me despertas, viração da primavera? Tu boles comigo e dizes: eu te rocio com as
gotas do céu! Mas meu tempo de murchar já se aproxima, e se aproxima o vendaval que
abaterá minhas folhas! Amanhã há de vir o viajante, aquele que me viu em minha beleza,
seus olhos buscarão por mim em toda parte e em parte alguma hão de encontrar-me. —54
Todo o peso das palavras desabou sobre o infeliz. No mais
completo desespero, ajoelhou-se aos pés de Lotte, segurou-lhe as
mãos, aproximou-as de seus olhos e apertou-as contra a fronte; algo
como um pressentimento atravessou a alma de Lotte, como se ela
antecipasse as intenções terríveis que ele tinha em mente. Na
convulsão dos sentidos, ela apertou as mãos dele, trouxe-as de
encontro aos seios e, consternada, comovida, inclinou-se em sua
direção até que os rostos ardentes se tocaram. O mundo deixou de
existir para ambos. Envolvendo-a em seus braços, apertou-a contra o
peito e cobriu com a fúria de seus beijos os lábios trêmulos,
balbuciantes de Lotte.  — Werther!  — disse ela com a voz abafada,
esquivando-se.  — Werther!  — e, com as mãos enfraquecidas, tentou
descolar o peito dele do seu. — Werther! — disse ela no tom rme e
contido do mais nobre sentimento.  — Ele acabou cedendo, abriu os
braços e atirou-se aos seus pés completamente fora de si. Confusa e
assustada, Lotte levantou-se de ímpeto e, titubeando entre o amor e a
raiva, disse-lhe:  — Esta foi a última vez, Werther! A última vez que
você me viu!  — E, olhando para o infeliz com todo o amor de seus
olhos, correu para o quarto ao lado e trancou a porta atrás de si.
Werther ainda lhe estendeu os braços, mas não se atreveu a detê-la.
Estava largado no chão, a cabeça sobre o canapé, e permaneceu nessa
posição por mais de meia hora até que um barulho fez com que ele
voltasse a si. Era a criada que vinha pôr a mesa. Ele começou a andar
de um lado para o outro da sala e, ao perceber-se ali sozinho de novo,
foi até a porta do quarto ao lado e chamou em voz baixa:  — Lotte!
Lotte! Só mais uma palavra, um adeus! — Lotte calou-se. Ele esperou
e insistiu e esperou, até que decidiu ir-se embora e disse:  — Adeus,
Lotte! Para sempre, adeus!
Chegando aos portões da cidade, os guardas, já familiarizados com
ele, deixaram-no sair sem o incomodar. O tempo variava entre a neve
e a chuva, e já batiam onze horas quando ele veio dar de volta à porta
de casa. Assim que entrou, seu empregado logo percebeu que, ao
patrão, faltava-lhe o chapéu. Não se atreveu a dizer nada, ajudou-o a
se trocar, estava todo ensopado. Tempos depois, o chapéu foi
encontrado no alto de um rochedo que, despenhando-se pela encosta
do morro, precipita-se em direção ao vale. Ninguém entendeu como
ele foi capaz de chegar até lá em cima, em uma noite tão úmida e
escura, sem despencar abismo abaixo.
Deitou-se em sua cama e dormiu longamente. O empregado só o
encontrou de novo na manhã seguinte, quando, atendendo ao seu
chamado, veio trazer-lhe o café. Ele estava escrevendo o seguinte
adendo à carta que endereçaria a Lotte:

Pela última vez, é pela última vez que eu abro estes meus olhos. E eles nunca mais vão ver
o sol que este dia nublado e nebuloso só faz encobrir. Pois comece então teu luto, oh,
natureza! É teu lho, teu amigo, teu amante que se aproxima do m. Lotte, eis um
sentimento sem par, mas que muito se aproxima do ocaso de um sonho: essa coisa de dizer
a si mesmo que esta vai ser a última manhã. A última! Lotte, essa expressão não faz
sentido para mim: a última! Não estou agora aqui, em todo meu vigor? Pois amanhã
estarei inerte, estirado no chão. Morrer! O que é que isso signi ca? Veja só, falamos da
morte como se estivéssemos sonhando. Eu já vi muitas pessoas morrerem, mas a
humanidade é tão limitada que não entende o signi cado nem do princípio, nem do m de
sua existência. Agora ainda minha, tua! Tua, oh, minha amada! E num instante  —
separados, afastados  — talvez para sempre?  — Não, Lotte, não  — Como eu poderia
deixar de ser? E você, como você poderia deixar de ser? Sim, nós ainda somos! — Deixar
de ser!  — O que é que isso signi ca? Mais uma expressão! Um som vazio, que meu
coração não sabe sentir.  — Morte, Lotte! Enterrados na terra fria, tão estreita, tão
escura!  — Tive uma amiga que era tudo para mim nos tempos mais desenganados de
minha juventude; ela morreu, acompanhei o corpo, quei junto a sua cova, vi baixarem o
caixão e vi as cordas rangerem por debaixo dele quando puxadas de volta para cima. Ouvi
o som surdo da primeira pá de terra na tampa do caixão e ouvi a arca temerosa percutir
repetidas vezes o mesmo som, cada vez mais surdo, até car coberta de terra! Caí de
joelhos ao lado da cova — atingido, abalado, amedrontado, espedaçado por dentro, sem
nem mesmo saber o que estava acontecendo comigo — o que ainda viria a me acontecer —
Morrer! Cova! Não entendo essas palavras!
Por favor, me perdoe! Me perdoe! Ontem! Quem dera tivesse sido aquele o último
momento de minha vida. Oh, anjo meu! Pela primeira vez, sem dúvida foi pela primeira
vez que um prazer tão intimamente ardente atravessou-me por inteiro: ela me ama! Ela me
ama! Em meus lábios ainda queima o fogo sagrado que os teus lábios zeram arder, e esse
prazer aquece de novo o meu coração. Me perdoe! Me perdoe!
Ah, eu sabia que você me amava. Eu soube já na primeira troca mais expressiva de
olhares, no primeiro aperto de mão; e ainda assim, sempre que eu ia embora e via Albert
ao teu lado, as dúvidas mais febris me faziam perder as esperanças.
Você se lembra ainda das ores que me mandou depois daquela reunião maldita, em que
você não pôde me dirigir a palavra, tampouco me dar a mão? Pois passei metade daquela
noite de joelhos diante delas. Para mim, elas selaram o teu amor. Ah, mas com o tempo
essas impressões foram todas se esvaindo, assim como também vai sumindo aos poucos, da
alma do el, a sensação daquela graça divina, que lhe fora concedida outrora, na mais
excelsa celestialidade, por meio de manifestações visíveis e sagradas.
Tudo isso vai deixar de existir um dia, mas eternidade alguma poderá apagar essa chama
de vida que eu ontem provei dos teus lábios e que agora arde em mim! Ela me ama! Estes
mesmos braços ontem a envolveram, estes mesmos lábios tremeram sobre os lábios dela,
esta boca balbuciou junto à sua. Ela é minha! Você é minha! Sim, Lotte, e para sempre.
E o que signi ca isso, de Albert ser o teu marido? Marido! — Isso vale apenas para este
mundo  — e, neste mundo, não seria então pecado eu te amar e querer te arrancar dos
braços dele para te sentir acolhida nos meus? Pecado? Muito bem, pagarei por isso, pois
desse pecado provei em sua fruição mais sublime, nutrindo meu coração da força e do
bálsamo da vida. Desde então, você é minha! Minha, oh, Lotte! Vou indo na frente! Vou
para o meu pai, para o teu pai.55 Com ele quero me queixar de minhas dores, e ele há de
me consolar até que você chegue, quando então sairei correndo ao teu encontro e te
envolverei de novo em meus braços e, diante daquele que é in nito, carei contigo para
sempre, num abraço sem m.56
Não estou sonhando, não estou delirando! Quanto mais me aproximo da cova, mais as
coisas se tornam claras para mim. Nós continuaremos existindo! Vamos nos ver de novo!
Vamos ver tua mãe! Vou vê-la, vou encontrá-la e abrir o meu coração todo para ela! Tua
mãe, tua imagem.

Por volta das onze horas, Werther perguntou ao seu empregado se


Albert já havia retornado. O empregado disse que sim, que havia visto
alguém passando com o cavalo dele. O patrão entregou-lhe então um
bilhete aberto, contendo a seguinte mensagem:

Você poderia me emprestar suas pistolas para uma viagem que pretendo fazer? Deixo-lhe
meu mais sincero adeus!

Na noite anterior, a pobre Lotte dormira muito pouco. O que ela


tanto temera estava prestes a acontecer, mas de um modo que ela não
era capaz nem de antever nem mesmo de recear. Seu sangue, que
costumava correr tão leve e tranquilo, revolvia-se agora febrilmente,
milhares de sensações diferentes assolavam seu belo coração. Será que
era o ardor dos abraços de Werther que ela sentia em seus seios? Será
que era indignação pelo atrevimento dele? Será que era irritação por
comparar a própria situação atual com seus dias de inocência
descomplicada e ingênua e de con ança inabalável em si mesma?
Como ela haveria de encarar o marido? Como lhe falar de uma cena,
que ela bem poderia lhe confessar, mas que não se atrevia a admitir
para si mesma? Ambos haviam calado por tanto tempo a esse respeito,
e justo agora, em momento tão inoportuno, deveria ser ela a primeira
a quebrar esse silêncio e fazer ao seu marido uma revelação tão
inesperada? Ela temia que a simples notícia da visita de Werther já
bastasse para causar ao marido uma impressão su cientemente
desagradável; e agora, ainda por cima, essa catástrofe inesperada! Será
que ela poderia esperar, de seu marido, que ele visse a situação com
olhos justos, aceitando tudo sem maiores preconceitos? Será que ela
conseguiria desejar que ele quisesse ler o que se passava em sua alma?
E será que ela seria capaz de esconder algo daquele homem, diante de
quem ela sempre se portara franca e abertamente, como o mais
cristalino dos cristais, e de quem ela nunca antes havia ocultado  —
tampouco fora capaz de ocultar — nenhum de seus sentimentos? Essas
coisas todas deixavam-na preocupada e constrangida; mas seus
pensamentos sempre voltavam a Werther, que para ela estava agora
perdido, que ela não conseguia abandonar, que ela — infelizmente! —
tinha de largar à própria sorte, mesmo sabendo que nada mais lhe
restaria quando ele a tivesse perdido.
Àquela altura, Lotte ainda não se dera conta do quanto lhe pesava a
condição de estagnação que havia se estabelecido entre eles. Às vezes,
mesmo pessoas boas e compreensíveis, por força de determinadas
diferenças que guardam somente para si, começam a se calar uma
diante da outra, cada qual acreditando que é a única a ter razão; a
relação, então, vai cando complicada, incômoda, até que se torna
impossível desfazer o nó, e justamente no momento mais crítico, em
que tudo passa a depender disso. Se a alegria da con dencialidade
tivesse conseguido aproximá-los mais cedo, se o afeto e a
complacência tivessem prosperado de modo recíproco entre os dois,
abrindo seus corações, quem sabe, então, nosso amigo ainda tivesse
alguma salvação.
A isso tudo se somava uma outra circunstância peculiar. Como
sabemos por suas cartas, Werther nunca zera segredo de seu anseio
de abandonar este mundo. Albert discutira com ele algumas vezes por
causa dessa ideia, e o assunto também tivera lugar nas conversas de
Lotte com o marido. Este, como repudiasse declaradamente o referido
ato, dava a entender, por conta do tipo de suscetibilidade manifestada
nessas ocasiões  — estranha ao seu modo habitual de ser  —, que ele
duvidava da seriedade de tal propósito; chegara até mesmo a fazer
alguma piada disso, partilhando com Lotte de sua descrença. Se por
um lado isso chegava a acalmá-la sempre que essa imagem trágica lhe
vinha ao pensamento, por outro, era isso também que a impedia de
partilhar com seu marido das preocupações que a assolavam naquele
instante.
Quando Albert chegou em casa, Lotte foi logo ao seu encontro, sem
muito jeito, de modo algo precipitado. Ele não estava nada feliz. Não
conseguira dar cabo do negócio que fora resolver, pois encontrara, na
gura do superintendente da região vizinha, um homem in exível e
mesquinho. Também a estrada ruim contribuíra para a sua irritação.
Albert perguntou se havia alguma novidade, ao que Lotte apressou-
se em responder que Werther estivera ali na noite anterior. Perguntou
então se chegara alguma correspondência, e ela disse que havia uma
carta e alguns pacotes em seu quarto. Ele foi até lá, deixando Lotte
sozinha na sala. A presença do homem que ela amava e respeitava
acabou produzindo uma impressão renovada em seu coração. A
lembrança da generosidade, do amor e da bondade de seu marido
conseguiu acalmar um pouco seu ânimo; sentindo-se intimamente
impelida a segui-lo, pegou suas coisas e foi até o quarto, como
costumava fazer. Encontrou-o ocupado em ler e em abrir seus pacotes.
Alguns deles não pareciam conter nada de agradável. Fez ao marido
algumas perguntas, que ele respondeu de modo breve, sentando-se em
seguida à escrivaninha.
Assim caram durante uma hora, um ao lado do outro. O ânimo de
Lotte começou aos poucos a se turvar. Ela sentiu como seria difícil
fazer com que o marido, mesmo no melhor de seus humores,
descobrisse o que se passava em seu coração. Foi tomada, então, por
uma melancolia que a deixava tanto mais angustiada quanto mais ela
a dissimulava, engolindo suas lágrimas.
A chegada do empregado de Werther deixou-a ainda mais
constrangida. Ele entregou o bilhete para Albert, que logo se voltou
para sua mulher, dizendo: — Entregue as pistolas ao rapaz. — E diga
a ele que lhe desejo boa viagem!  — recomendou ainda ao
empregado.  — Aquelas palavras atingiram Lotte como um trovão,
suas pernas bambearam ao se levantar, sem que ela entendesse direito
o que estava acontecendo. Lentamente, deu um passo em direção à
parede; com as mãos tremendo, pegou as armas e tirou-lhes o pó;
hesitante, teria cado parada ali por um bom tempo, não fosse Albert
apressá-la com um olhar inquiridor. Sem conseguir dizer palavra, ela
entregou aquele instrumento infausto ao rapaz; assim que ele foi
embora, acabou de fazer suas coisas e foi direto para o seu quarto,
tomada pela mais inenarrável das incertezas. Seu coração predizia-lhe
toda sorte de desgraça. Não tardou muito e ela estava prestes a atirar-
se aos pés do marido e a revelar-lhe tudo: a história da noite anterior,
sua culpa, seus pressentimentos. Mas logo percebeu que isso também
não levaria a lugar algum, já que ela nunca conseguiria convencer o
marido a ir atrás de Werther. A mesa estava posta, e uma velha amiga,
que viera apenas perguntar algo e já pretendia ir embora, acabou
cando para o almoço, tornando a conversa à mesa mais
suportável  — forçaram-se a falar, contaram coisas, esqueceram-se de
si mesmos.

O rapaz chegou com as pistolas à casa de Werther, que cou fascinado


ao saber que o empregado as recebera diretamente das mãos de Lotte.
Pediu que lhe trouxessem pão e vinho, mandou o criado ir almoçar e
pôs-se de novo a escrever.
Elas passaram por tuas mãos. Você tirou delas o pó e eu as cubro com mil beijos, já que
você as tocou. Espírito celestial, você encoraja a minha decisão! E você, Lotte, você me
oferece o instrumento. Você, de cujas mãos eu tanto desejava receber a morte, e agora, ah,
agora eu receberei. Cobri meu criado de perguntas. Tuas mãos tremeram ao entregá-las ao
rapaz, e você não disse nem adeus! — Ai de mim, ai de mim! Nem mesmo um adeus! —
Será que, por causa deste momento que me amarra eternamente a ti, você acabou fechando
o teu coração para mim? Lotte, nem mil anos apagarão essa impressão! E sinto que você
também não conseguirá odiar aquele que arde assim por ti.

Depois de comer, mandou o empregado acabar de arrumar as


malas, rasgou uma porção de papéis, saiu e tratou de saldar algumas
pequenas dívidas que ainda restavam. Voltou para casa e, como se não
se importasse com a chuva, logo saiu de novo, passou pelos portões da
cidade na direção dos jardins do conde, seguiu adiante e cou
andando ao léu pela região. Voltou para casa somente ao cair da
noite, quando escreveu o seguinte:

Wilhelm, vi pela última vez a mata e os campos e os céus. Adeus também para você!
Minha querida mãe, perdoe-me! Peço que você a console, Wilhelm! Que deus abençoe a
vocês todos! Meus negócios estão todos em ordem. Adeus! Nós nos veremos de novo, e
mais felizes.

Não te dei o devido valor, Albert, e peço que você me perdoe. Perturbei a paz da tua
casa e z nascer a descon ança entre vocês dois. Adeus! Vou acabar de vez com isso. Ah, e
que minha morte possa fazê-los felizes! Albert! Albert, faça esse anjo feliz! E que a bênção
de deus recaia sobre você!

Naquela noite, ele ainda mexeu longamente em seus papéis, rasgou


e atirou muita coisa ao fogo, lacrou alguns pacotes endereçados a
Wilhelm. Os pacotes continham pequenos ensaios e fragmentos de
seus pensamentos, muitos dos quais eu até cheguei a ler. E às dez
horas da noite, depois de pedir que pusessem mais lenha no fogo e que
lhe trouxessem uma garrafa de vinho, dispensou seu empregado, cujo
aposento, assim como o dos demais criados, cava localizado no
fundo do quintal, do lado de fora da casa. O empregado, para estar
pronto logo que acordasse, deitou-se sem tirar a roupa do corpo, pois
o patrão lhe dissera que o coche do correio passaria em frente à casa
antes das seis horas.

Depois das onze


Tudo está tão quieto à minha volta, e minha alma, tão tranquila. Eu te agradeço, meu
deus, por me conceder esse calor e essa força nestes últimos momentos.
Vou até a janela, minha querida, e ainda co aqui olhando e olhando as estrelas perdidas
entre as nuvens tempestuosas, que correm a imensidão dos céus! Não, estrelas, vocês não
vão cair! O deus eterno continuará carregando vocês todas em seu coração, e também a
mim. Vejo as estrelas mais brilhantes da Ursa Maior, a predileta entre todas as
constelações. De noite, sempre que me separava de ti e assim que passava pelo portão da
tua casa, essas mesmas estrelas logo se erguiam acima de mim. Quantas vezes eu não as
quei observando, como que inebriado! E quantas vezes eu não ergui minhas mãos aos
céus, desejando desenhá-las como um símbolo, como um marco sagrado da felicidade que
eu então sentia. E ainda sinto — Oh, Lotte, mas e o que é que não me faz lembrar de ti?
Acaso não te vejo em toda parte? E, como uma criança, acaso não fui reunindo
imoderadamente todo tipo de coisa insigni cante que um dia você, minha santa, havia
tocado?
Minha querida silhueta! Pois eu agora a devolvo, Lotte, e peço que você tenha por ela
toda a consideração. Eu a cobri com tantos milhares dos meus beijos, e quantas vezes não
a cumprimentei quando saía de casa ou quando retornava.
Escrevi um bilhete para o teu pai, pedindo que ele resguarde o meu corpo. Há duas
grandes tílias no cemitério, bem ao fundo, no canto, com vista para o campo; é ali que eu
gostaria de repousar. Sei que ele pode e fará isso por este amigo dele. Mas peça a ele você
também. Não posso exigir de cristãos devotados que enterrem seus corpos ao lado de um
pobre desgraçado. Ah, queria mesmo é que vocês me enterrassem à beira da estrada, ou
num vale ermo e abandonado, para que sacerdotes e levitas se benzessem e o samaritano
chorasse uma lágrima sempre que passassem diante da indicação de meu túmulo.57
Veja, Lotte! Não estremeço ao pegar em minhas mãos este cálice frio e tenebroso, de
onde devo beber o delíquio da morte! Não deixarei de beber do cálice que você me
ofereceu.58 Pois só assim é que todos os desejos e todas as esperanças de minha vida se
darão por realizados! Tão frio, tão rijo, bato aos portões de bronze da morte.
Se me fosse concedida a felicidade de morrer por ti, Lotte! De oferecer minha vida por
ti! E se eu assim fosse capaz de restituir tua paz e teu prazer pela vida, aí então eu morreria
intrépido e contente! Ah, mas somente a alguns poucos homens nobres concedeu-se a sorte
de derramar o sangue pelos seus e de instigar, com sua morte, uma vida multiplamente
renovada em seus amigos!
Com estas mesmas roupas, Lotte, é com elas que quero ser enterrado, você um dia as
tocou, tornando-as sagradas; pedi o mesmo também ao teu pai. Minha alma já paira sobre
o ataúde. E não deixe que mexam em meus bolsos. Este laço rosado, que você levava à
altura do busto quando eu te vi pela primeira vez entre os teus pequeninos  — Oh, não
esqueça de beijá-los milhares de vezes e de contar a eles o destino deste teu pobre amigo.
Meus queridos! Sempre agitados ao meu redor. Ah, como eu me apeguei logo a ti e, desde
o primeiro momento, não consegui mais me afastar!  — Este laço deve ser enterrado
comigo; você me presenteou com ele no dia do meu aniversário! Como eu devorava essas
coisas todas! — Ah, nunca pensei que esse caminho me trouxesse até aqui! — — Por favor,
que tranquila! Eu te peço, que tranquila! —
Estão carregadas — Bateu meia-noite! Que assim seja! — Lotte! Adeus, Lotte! Adeus!

Um vizinho viu o clarão de pólvora e ouviu o tiro; mas, como tudo


então continuasse em silêncio, não deu maior importância ao fato.
Às seis da manhã, o criado entra no quarto com a lamparina. Ele
encontra seu patrão estirado no chão, a pistola e sangue. Chama por
ele, mexe nele; nenhuma resposta, respirava com di culdade. Sai
correndo à procura de um médico, de Albert. Lotte ouve tocar a
sineta, um tremor toma conta de seu corpo. Ela acorda o marido,
levantam-se. O empregado, soluçando, gaguejando, dá a notícia. Lotte
cai desmaiada diante de Albert.
Quando chegou, o médico encontrou o infeliz no chão, já sem
salvação. Tinha pulso, mas os membros estavam todos paralisados.
Metera uma bala na cabeça, logo acima do olho direito, estourando os
miolos. Tentaram em vão uma sangria, o sangue correu do braço,
ainda respirava.
A julgar pelo sangue no encosto da poltrona, pôde-se deduzir que
ele estava sentado diante da escrivaninha ao cometer o ato; depois foi
deslizando até cair no chão, onde cou revolvendo-se convulsivamente
em torno da poltrona. Estava deitado de costas junto à janela, inerte,
vestido e calçado, de casaca azul e colete amarelo.
A casa, a vizinhança, a cidade toda cou em polvorosa. Albert
chegou. Deitaram Werther sobre a cama, com uma atadura na testa;
seu rosto semelhava o de um morto, não movia membro algum. O
peito ainda arquejava de modo horrendo, ora débil, ora com mais
força. Esperava-se seu m.
Do vinho, tomara apenas uma taça. Uma edição de Emilia Galotti
encontrava-se entreaberta sobre a escrivaninha.59
Quanto à consternação de Albert e ao desespero de Lotte,
permitam-me não dizer nada.
O velho superintendente veio correndo assim que soube da notícia
e, debaixo das lágrimas mais calorosas, beijou o moribundo. Seus
lhos mais velhos vieram a pé, chegando logo em seguida. Caíram
logo de joelhos ao lado do leito e beijaram-lhe as mãos e a boca, na
expressão da dor mais indomável. O maior, por quem Werther sempre
nutrira um carinho especial, cou colado em seus lábios até o último
suspiro, tendo de ser afastado à força. Morreu ao meio-dia. A
presença do superintendente e as providências por ele tomadas
evitaram maiores tumultos. À noite, por volta das onze horas,
ordenou que o enterrassem no local que havia escolhido. O velho
seguiu o cortejo, assim como os lhos. Albert não pôde fazê-lo. Temia-
se pela vida de Lotte. Artesãos carregaram o corpo. Nenhum clérigo o
acompanhava.
Notas do tradutor

primeiro livro

1. Figura mítica da tradição europeia, cujos primeiros registros remontam ao século xii.
Trata-se de uma ninfa das águas (metade mulher, metade serpente, ou peixe), objeto de vários
contos, lendas e narrativas famosos desde pelo menos o século xiv. Na terceira parte da obra
Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister (1821-9), Goethe reproduz a sua versão da
lenda, sob o título de A nova Melusina.
2. Aqui, referência aos patriarcas bíblicos do Velho Testamento, bem como aos seus costumes.
Em outras passagens, os ares patriarcais englobam também referências à literatura da
Antiguidade, com destaque para personagens que guram na Odisseia, de Homero.
3. Teóricos que, em geral, defendiam a ideia de que a essência da arte poderia ser apreendida
de modo sistêmico ou a partir de um conjunto de regras. Opunham-se, portanto, às
concepções de arte mais ligadas à noção de gênio. Em ordem de citação: Charles Batteux
(1713-80), Robert Wood (1716-71), Roger de Piles (1635-1709), Johann Joachim
Winckelmann (1717-68), Johann Georg Sulzer (1720-79) e Christian Gottlob Heyne (1729-
1812).

4. Em alemão, Amtmann ou Amtsmann, espécie de secretário-geral ou encarregado


administrativo e/ou jurídico em determinada região, a serviço de seu soberano (semelhante à
gura do bailio na Idade Média). Cabe lembrar que, no século xviii, o território hoje
identi cado com a Alemanha era formado por um sem-número de pequenos ducados,
condados, principados, cidades imperiais livres etc., reunidos sob o poder descentralizado do
Sacro Império Romano-Germânico, encontrando-se ainda muito distante, portanto, de uma
forma política de unidade semelhante à atual.
5. Em alemão: lebendige Kraft. Vide a noção leibniziana de vis viva, corrente na ciência do
século xix como expressão de uma forma de energia.
6. Em alemão: Kreuzer. Até o século xix, moeda comum na região que hoje corresponde ao
Sul da Alemanha, à Áustria e à Suíça, em geral de metal menos precioso, de baixo valor, e que
levava impressa na face uma dupla cruz, que lhe rendia o nome (Kreuzer, uma espécie de
“cruzado”).
7. Provável referência à protagonista da obra Histoire de Miss Jenny Glanville, romance
sentimentalista de Marie-Jeanne Riccoboni (1713-92), publicado em tradução alemã de J. G.
Gellius em 1764.
8. Referência à novela The Vicar of Wake eld (1766), do escritor irlandês Oliver Goldsmith
(1728-74), obra que alcançou grande popularidade no século xviii. Goethe se refere mais
amplamente a essa novela em sua autobiogra a De minha vida: poesia e verdade,
especialmente no décimo livro.
9. Ao contrário do minueto (de origem francesa), que era dançado em pares, a contradança
inglesa (designação que, nos séculos xvii e xviii, correspondia a uma variedade de estilos
ingleses de dança) é dançada em mais de um par, formando-se, tipicamente, las que dispõem
os parceiros frente a frente. Vale notar que, a cada um desses estilos de dança, corresponde,
também, um estilo de música, tocada para a sua execução.
10. Em alemão, deutsch tanzen, dançar à moda alemã, como o texto volta a referir na
sequência. Aqui, referência à allemande em voga no século xviii, que amplia a contradança
inglesa com uma gura dançada apenas em pares e, como tal, antecipa elementos da valsa.
11. Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803), um dos mais importantes poetas de seu tempo,
associado à corrente sentimentalista (Emp ndsamkeit) e precursor do movimento Sturm und
Drang. Sua obra teve forte impacto sobre os jovens da geração de Goethe (incluindo ele
próprio), alcançando grande popularidade. Nessa cena, a menção de seu nome parece já dizer
tudo, constituindo per se um elemento de ampla identi cação entre Lotte e Werther.
Klopstock foi também um inovador no campo da literatura, defendendo um modo particular
de se fazer poesia em língua alemã — a exemplo do uso que fez de seu “hexâmetro alemão”,
na obra Messias (1749-73), que o levaria a esboçar uma nova teoria rítmica, precursora de
uma forma de poesia em versos livres.
12. A cena do espetáculo natural da chuva e da tempestade, assistida da janela, evoca o canto
de um espetáculo análogo da natureza na ode intitulada “A festa da primavera” (“Die
Frühlingsfeier”, 1759), de Klopstock.
13. Na Odisseia de Homero, Penélope, esposa de Ulisses, foi cortejada por inúmeros
pretendentes. Enquanto aguardavam por uma decisão de Penélope — que, como Ulisses não
retornasse, deveria escolher um novo marido  —, esses pretendentes participavam de
portentosos banquetes.
14. Vide a passagem bíblica em Mateus 18,3.
15. Em alemão, Vikar: nos contextos católicos, o equivalente a um vigário; nos contextos
protestantes, como é o caso aqui, jovem estudante de teologia, que desempenha as funções de
um auxiliar de pastor.
16. Em alemão: “an den Brunnen, der mir so wert und nun tausendmal werter ist” (grifo
meu). Cabe notar, nessa passagem, como o uso do adjetivo wert e de sua forma comparativa
werter, antigamente grafados werth e werther, reverberam aqui o nome do protagonista desta
narrativa: Werther. A forma declinada do adjetivo wert também é de uso comum, a exemplo
do que ocorre na expressão formal de tratamento “mein werter Herr” (estimado senhor).
17. Ossian é o nome do narrador e também suposto autor de um ciclo de poemas épicos, de
tradição céltica — supostamente traduzidos do gaélico pelo escocês James Macpherson (1736-
96) e publicados a partir de 1760  —, que mais tarde se provariam de autoria do próprio

Macpherson. Ao lado de Homero e Klopstock, Ossian foi um dos grandes objetos de culto
dos jovens da geração de Goethe.
18. Vide a passagem bíblica em 1o Reis 17,16.
19. Em alemão: “Und wie wert ich mir selbst werde” (grifo meu). Além de reverberar o
próprio nome do protagonista (como já apontado na nota 16), cabe destacar aqui ainda outra
acepção do vocábulo wert, a saber: a que reverbera seu uso substantivado (cf. verbete Wert e
Werder no Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm Grimm) no sentido de uma
formação insular (porção mais elevada de terra em meio à água), isto é, no sentido de uma
forma singular de “ilha”  — o vocábulo, hoje em dia, é mais corrente como topônimo. Ou
seja, se o uso predicativo mais direto de wert reforça, na frase em destaque, uma relação de
valor e (auto)estima, a reverberação de seu uso substantivado (Wert ou Werder) sugere a ideia
de um processo de conformação, delimitação e singularização desse sujeito no espaço de suas
relações, como se à construção do protagonista como um Werther correspondesse sua
inscrição cada vez maior em uma condição de insulamento.
20. Em alemão: Zauberlaterne. Referência a um modelo precursor (século xvii) dos projetores
contemporâneos.
21. Objeto de mistério desde que descoberta, no século xvii, trata-se aqui da barita, mineral
que, entre outras substâncias, contém uma porcentagem elevada de sulfato de bário. Os íons
de cobre, quando presentes em sua composição, são os responsáveis por seu efeito
luminescente.
22. A areia era utilizada para secar a tinta com que eram escritos cartas e bilhetes, tendo o
efeito de um mata-borrão.
23. Tema corrente em narrativas de diversas tradições, como a indiana e a chinesa, e também
n’As mil e uma noites.
24. Vide a passagem bíblica em Mateus 18,8.
25. Em alemão, unter dem Himmel: a expressão (sob o céu, debaixo do céu), de carga
proverbial, signi ca aqui tanto quanto “neste mundo”, mas reverbera também a formulação
bíblica bastante corrente na tradução de Lutero (vide, entre outros: Jó 28,24).
26. Em alemão, Terzerolen (plural), Terzerol (singular).
27. Referência a uma passagem de La Chatte Blanche [A Gata Branca] — um dos contos de
fadas reunidos e publicados por Madame d’Aulnoy (Marie-Catherine Jumelle de Berneville,
condessa de Aulnoy), no nal do século xvii  —, em que as criadas que servem a princesa
aprisionada, sob efeito de um feitiço, são reduzidas apenas às suas mãos e aos seus braços.
28. Fábula recorrente na obra de autores da Antiguidade, como o poeta grego Estesícoro (c.
632-553 a.C.) e o lírico e satírico romano Horácio (65-8 a.C.), mas também retrabalhada

pelo francês La Fontaine (1621-95). Segundo a fábula, o cavalo, para vencer um cervo, pede
ajuda ao homem, que o aprisiona em seguida e o mantém como animal de carga.
29. A referida data coincide com o dia do aniversário do autor, 28 de agosto.
30. Pequeno Homero de Wetstein: edição de bolso no formato in-doze, em dois volumes
bilíngues grego-latim, publicada em Amsterdam por J. H. Wetstein, em 1707. Ernesti: edição
no formato in-oitavo (portanto, maior do que a edição de Wetstein), em cinco volumes
bilíngues grego-latim, publicada em Leipzig por J. A. Ernesti, entre 1759 e 1764.
31. Vide a passagem bíblica em Mateus 3,4.
segundo livro

32. Segue-se aqui a datação da edição crítica da Deutscher Klassiker Verlag, tomada como
texto de base para esta tradução. Essa edição é diferente de outras disponíveis (como, por
exemplo, a da Universal-Bibliothek, da Reclam) e da maior parte das traduções brasileiras,
que datam essa carta como sendo de 26 de novembro de 1771.
33. Referência às cinco idades (eras, raças) do mundo (do homem): idade de ouro, idade de
prata, idade de bronze, idade dos heróis e idade de ferro. Essas idades (eras), derivadas da
mitologia antiga (vide Hesíodo e, mais tarde, Ovídio), retratavam uma espécie de degradação
contínua da condição original (paradisíaca) do mundo e do homem.
34. Francisco i (Franz Stephan von Lothringen, 1708-65) foi coroado imperador do Sacro
Império Romano-Germânico em 1745. Portanto, se as roupas do barão remontavam a essa
ocasião, não eram exatamente a melhor expressão da moda de 1772.
35. Vide o canto xiv da Odisseia, de Homero.
36. Aqui, a edição da Universal-Bibliothek registra o nome Adelin, em vez de suprimir
também esse nome, como de praxe ao longo do romance. Na carta seguinte, porém, o nome é
explicitado em todas as edições.
37. A edição da Universal-Bibliothek quali ca a cidade da mãe de Werther como unerträglich
(insuportável).
38. Vide, entre outros, os cantos x e xv da Odisseia, de Homero.
39. Com o lançamento do romance, esse modo de Werther se vestir, com sua casaca azul e seu
colete e calções amarelos, acabou fazendo moda entre os jovens da época.
40. Johann Kaspar Lavater (1741-1801), pastor reformado, lósofo e escritor, um dos
maiores representantes da siognomia. Lavater era defensor de uma perspectiva sentimental e
não histórica do cristianismo.
41. Referência aos teólogos Benjamin Kennicott (1718-83) e Johann Salomo Semler (1725-
91), bem como ao orientalista Johann David Michaelis (1717-91), importantes representantes

da perspectiva histórico-crítica de estudo das Sagradas Escrituras.


42. O lho mais admirável de Fingal, referido na passagem, é o próprio Ossian.
43. Vide as passagens bíblicas em 1a Coríntios 12,6 e 15,28, assim como Efésios 1,23.
44. Vide a passagem bíblica em Deuteronômio 28,23. Vide também o terceiro livro da
Odisseia, de Homero.
45. Vide a passagem bíblica em João 6,37.44.65.
46. Vide a passagem bíblica em Mateus 26,39.
47. Vide a passagem bíblica em Mateus 27,46.
48. Vide a passagem bíblica em Apocalipse 6,14 (referência ao céu como um livro enrolado),
assim como no Salmo 104,2 (referência ao céu como uma tenda estendida). A expressão de
Goethe funde essas duas referências.
49. Em alemão, Generalstaaten. Os Estados Gerais dos Países Baixos (designação utilizada até
1795) eram tidos, em geral, como muito ricos.

50. Referência à parábola do lho pródigo. Vide a passagem bíblica em Lucas 15,11-24.
o editor ao leitor

51. Depois de manter, na relação com Lotte, um registro de informalidade mais distante ao
longo de praticamente todas as cartas mencionadas até aqui, nesses últimos fragmentos
Werther nalmente se permite dirigir a ela no registro de uma informalidade mais íntima. A
esse respeito, vide a nota introdutória a esta tradução.
52. Em 1771, em Estrasburgo, por sugestão de Herder, Goethe traduziu para o alemão alguns
dos cantos de Ossian (Macpherson). Como registra a edição crítica da dkv, para a
incorporação no manuscrito do Werther, Goethe teria retrabalhado sua tradução, dando
maior ênfase à questão rítmica, que é também o que pauta mais centralmente esta tradução.
53. Em alemão, “Stern der dämmernden Nacht, schön funkelst du in Westen, hebst dein
strahlend Haupt aus deiner Wolke, wandelst stattlich deinen Hügel hin”, tradução para o
alemão do início de The Songs of Selma [Cantos de Selma], de Ossian: “Star of descending
night! Fair is thy light in the west! Thou liftest thy unshorn head from thy cloud: thy steps are
stately on the hill”. Selma seria o palácio do grande Fingal (inspirado em Fionn Mac
Cumhaill, gura heroica da tradição gaélica), pai de Ossian, o bardo cego e ancião que canta
suas histórias.
54. Essa passagem não se encontra logo na sequência do poema anterior de Ossian, mas seu
nal reverbera a passagem já citada na carta de 12 de outubro. Trata-se de um fragmento de
outro poema de Ossian, intitulado Berrathon: “‘Why dost thou awake me, O gale?’ it seems
to say: ‘I am covered with the drops of heaven. The time of my fading is near, the blast that
shall scatter my leaves. Tomorrow shall the traveller come; he that saw me in my beauty shall
come. His eyes will search the eld, but they will not nd me’”. Na tradução alemã: “Warum
weckst du mich Frühlingsluft? Du buhlst und sprichst: Ich bethaue mit Tropfen des Himmels!
Aber die Zeit meines Welkens ist nahe, nahe der Sturm, der meine Blätter herabstört! Morgen
wird der Wanderer kommen, kommen der mich sah in meiner Schönheit, ringsum wird sein
Auge im Felde mich suchen, und wird mich nicht nden”.
55. Vide a passagem bíblica em João 14,28.
56. Reverberações da Ode a Fanny [em sua primeira publicação, em 1748, intitulada Ode a
Daphne], de Klopstock: “Wenn einst ich todt bin, wenn mein Gebein zu Staub’ […] Dann eil’
ich zu dir!” [Quando um dia estiver morto, e minha ossada virar pó… irei correndo ao teu
encontro!].
57. Vide a passagem bíblica em Lucas 10,30-37.
58. Vide a passagem bíblica em João 18,11.
59. Tragédia burguesa, em cinco atos, publicada em 1772 por Gotthold Ephraim Lessing
(1729-81). Ao nal da peça, para poupar Emilia da desonra, seu pai Odoardo deixa que a
lha o convença a matá-la. A morte, nesse contexto, surge como uma saída digna para Emilia
manter sua honra e escapar das ameaças do príncipe, e, nesse sentido, como uma opção digna
de liberdade, de liberdade eterna.
Copyright © 2021 by Penguin-Companhia das Letras
Copyright da introdução © 1989 by Michael Hulse

Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.

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Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (usa) Inc.

título original

Die Leiden des jungen Werthers

tradução da introdução

Odorico Leal

preparação

Osvaldo Tagliavini Filho

revisão

Ana Maria Barbosa


Thiago Passos

versão digital

Rafael Alt

isbn 978-65-5782-249-4

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32


04532-002 — São Paulo — sp

Telefone: (11) 3707-3500


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As afinidades eletivas
Goethe, Johann Wolfgang von
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Um estudo original e profundo sobre amor e destino neste que


é um dos romances mais sutis e penetrantes da literatura
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Eduard e Charlotte formam um casal elegante e aristocrático que


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edição permite conhecer (ou revisitar) a obra que é uma das pedras
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Quincas Borba
Assis, Machado de
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Um dos três grandes romances da fase realista de Machado de


Assis, que narra as desventuras do provinciano Rubião,
herdeiro do filósofo incompreendido Quincas Borba, na capital
do Império. Leitura obrigatória do vestibular da Fuvest.

Publicado pela primeira vez em livro em 1891, Quincas Borba é uma


das obras mais marcantes da fase realista de Machado de Assis.
Talvez por se situar justamente entre esses dois monumentos da
obra machadiana, o romance muitas vezes foi considerado uma
realização menor, uma espécie de mera continuação das Memórias
póstumas - para irritação de seu autor, que em um raro comentário
sobre a própria ficção afirmou que a presença do personagem
Quincas Borba era "o único vínculo" entre os dois livros.
Mais do que ao marco inaugural do Realismo no Brasil, porém,
Quincas Borba remete ao Machado contista que começava a
abordar temas historicamente mais próximos de sua época e a
explorar os conflitos psicológicos de seus personagens com sua
sofisticada e irônica narrativa em terceira pessoa presente em
contos clássicos como "A cartomante" e "A causa secreta". Neste
romance da maturidade do autor, a história do provinciano Rubião -
herdeiro da fortuna do idiossincrático filósofo Quincas Borba - e dos
tipos urbanos da corte que o levam à ruína é narrada com o
distanciamento, o ceticismo e o senso de humor implacável de que
só Machado de Assis era capaz.
Esta edição de Quincas Borba, além de mais uma centena de notas
explicativas, traz uma extensa e abrangente introdução do britânico
John Gledson, estudioso da obra machadiana e tradutor de Dom
Casmurro para o inglês.

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Dom Quixote
Cervantes, Miguel de
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O clássico fundador do romance moderno em nova tradução de


Ernani Ssó, com introdução do acadêmico britânico John
Rutherford e posfácios de Ricardo Piglia e Jorge Luis Borges.

Dom Quixote de La Mancha não tem outros inimigos além dos que
povoam sua mente enlouquecida. Seu cavalo não é um alazão
imponente, seu escudeiro é um simples camponês da vizinhança e
ele próprio foi ordenado cavaleiro por um estalajadeiro. Para
completar, o narrador da história afirma se tratar de um relato de
segunda mão, escrito pelo historiador árabe Cide Hamete
Benengeli, e que seu trabalho se resume a compilar informações.
Não é preciso avançar muito na leitura para perceber que Dom
Quixote é bem diferente das novelas de cavalaria tradicionais - um
gênero muito cultuado na Espanha do início do século XVII, apesar
de tratar de uma instituição que já não existia havia muito tempo. A
história do fidalgo que perde o juízo e parte pelo país para lutar em
nome da justiça contém elementos que iriam dar início à tradição do
romance moderno - como o humor, as digressões e reflexões de
toda ordem, a oralidade nas falas, a metalinguagem - e marcariam o
fim da Idade Média na literatura.
Mas não foram apenas as inovações formais que garantiram a
presença de Dom Quixote entre os grandes clássicos da literatura
ocidental. Para milhões de pessoas que tiveram contato com a obra
em suas mais diversas formas - adaptações para o público infantil e
juvenil, histórias em quadrinhos, desenhos animados, peças de
teatro, filmes e musicais -, o Cavaleiro da Triste Figura representa a
capacidade de transformação do ser humano em busca de seus
ideais, por mais obstinada, infrutífera e patética que essa luta possa
parecer.

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Sobre a brevidade da vida / Sobre a
firmeza do sábio
Sêneca
9788543809724
80 páginas

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Na coleção Grandes Ideias, dois textos clássicos e


incontornáveis de Sêneca sobre a arte de viver.
Os escritos do filósofo estoico Sêneca pertencem à categoria de
obras que mudaram a humanidade e que, universais, resistem à
passagem do tempo. Por meio de insights poderosos, eles
transformam a maneira como nos vemos e já serviram de guia para
inúmeras gerações por sua eloquência, lucidez e sabedoria.
Sobre a brevidade da vida e Sobre a firmeza do sábio foram
concebidos em forma de cartas e apresentam reflexões essenciais
quanto à arte de viver, à passagem do tempo e à importância da
razão e da moralidade.
Traduzida do latim por José Eduardo S. Lohner, esta edição conta
ainda com notas esclarecedoras do tradutor.

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David Copperfield
Dickens, Charles
9788554510732
1160 páginas

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Um dos maiores romances do século XIX, David Copperfield é


também o mais autobiográfico do autor que definiu o realismo
inglês.
Publicado originalmente na forma de folhetim entre 1849 e 1850,
David Copperfield é o romance mais autobiográfico de Charles
Dickens. Mas não só: nas palavras do grande escritor, que inspirou
outros gigantes da literatura ocidental como Tolstói, Kafka, Woolf,
Nabokov e Cortázar, este é seu "filho predileto".
Nele, acompanhamos a jornada do herói, nascido na Inglaterra dos
anos 1820: órfão de pai desde o nascimento, David Copperfield
pertence à imensa massa de desfavorecidos que a literatura do
século XIX, pela primeira vez, presenteou com o protagonismo.
Parte fundamental da tradição do grande romance realista, este livro
oferece não apenas um retrato acurado de seu tempo como também
um contundente relato sobre a vocação literária.

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