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2 . a sociologia entra sem pedir licença, sem piedade, sem complacência! quando ela
circula em nossas veias, aprendemos que não temos que esperar ler isto ou aquilo, e
aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo para nos atrever a falar em nossos nomes. nossa
relação com autores, teorias, discursos autorizados, com dogmas, é de assalto, como
alguém que invade, que ocupa, que entra e sai sem permissão, que rouba o beijo, o sexo,
o prazer, sem respeito sacralizante, sem prestar continências, nem seguir scripts. tudo
bem que os autores falem pelas nossas bocas de sociólogos, mas o que lhes fazemos
dizer tem algo de monstruoso, porque envolve a força do fluxo e agenciamento deles,
mas potencializa também descentramentos, deslizes, deformações, usos imprevistos,
traições, trocas de fluxos discursivos, que são apenas fluxos, sem primazia sobre outros
fluxos como os de merda, sangue, esperma, saliva, suor, medos, correntes políticas,
ação e contra-ação, de subjetivação, de trabalho de suspensão de si e do naturalizado, ao
sabor da corrente e da contracorrente.
3 . a sociologia permite um gozo em certa medida perverso: o gosto de todo ser dizer as
coisas que quer dizer em nome próprio: não como um sujeito, um eu, uma pessoa que
fala respeitosamente em seu nome, mas quando, através de um rigorosíssimo exercício,
nos despersonalizamos, nos abrimos de ponta a ponta para sermos atravessados pelas
multiplicidades e intensidades que nos percorrem. é quando aprendemos a falar do
fundo do que não sabemos, de dentro da nossa ignorância desejante, interessada, armada
com uma atenção dificultada, como aquela exigida dos que habitam pântanos e se
acostumam com nenhum chão firme nunca. quando nos tornamos uma legião, um
conjunto de singularidades soltas, de nomes, sangue, unhas, respiração dos pequenos
acontecimentos, de estrias do magma dos fenômenos é que somos mesmo sociólogos.
quando somos atravessados, enrabados de assalto por um estilo, um jeito, um modo de
olhar e ser as coisas que queremos ver e entender.
não atrapalha. o que ouvimos ou lemos não será entendido a partir de um livro ou
discurso que já lemos ou ouvimos, como se tudo fosse igual às bonecas russas, uma
contendo a outra.
5 . o lance agora é considerar os discursos que produzimos e com que nos deparamos
em termos do que funciona ou do que não funciona; do como funcionam para mim,
para você, para outros. se não funcionam, passemos para outra coisa. nosso encontro
com os discursos escritos, lidos, desenhados, tocados, mostrados, nossa produção de
comentários, descrições, associações, todo nosso exercício da sociologia é regido pela
intensidade, ao modo das correntes elétricas: passa ou não passa. trata-se menos de
explicar, compreender, interpretar e mais de sentir, de se deixar atravessar, de se
permitir afetar. todo discurso será colocado imediatamente com o fora dele, algo como
uma engrenagem menor contida em engrenagens maiores e mais complexas, a serem
entendidas nelas, com elas e contra elas. em que medida os nossos discursos serão
compreendidos e compreendemos os dos outros depende das correntes que ativamos e
que são em nós ativadas, da funcionalidade delas para nós próprios e para os outros.
8. a aposta da sociologia não é na ontologia dos fenômenos, dos grupos, das identidades,
das instituições, mas nas relações transversais em que esses e outros traços e efeitos da
vida social são produzidos, sem se preocupar em estabelecer com certeza que se
pretende científica o ser e o estar no mundo – nenhuma bicha, nenhum hétero, nenhum
professor, aluno, ou qualquer coisa em que pensemos e pelo que nos definamos, embora
existindo, jogando os jogos da inteligibilidade, nas dobras dos sistemas hierarquizantes
e de controle, poderá saber ao certo o que se é: ao dizer eu sou uma bicha, eu sou
hétero/homem, eu sou hétero/mulher, eu sou hetero/homo-transx/y/z, eu sou professor,
eu sou aluno etc. mobilizamos jogos de linguagem em cujo âmbito e a partir dos quais
pinçamos conceitos, categorias, com as quais antes de querer oferecer fórmulas
explicadoras aos moldes das ciências duras, construímos interpretações de subterrâneos
e mecanismos invisíveis em atuação nas camadas figuracionais (metonímicas,
metafóricas, fantasmagóricas) e não ontológicas. a sociologia opera em um regime do
incerto, dos improváveis, do devir universal, pensando como os grupos, indivíduos,
instituições, nações, descobrem, simbolizam, definem, usam, encenam, narrar os vários,
as populações, as espécies, os materiais, sentimentos, símbolos, discursos e práticas
diversos que os habitam, em que habitam e que os atravessam.
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11. o/a sociólogo/a faz seu trabalho de revolver os jogos de tensões, as tensões dos
jogos, montando, através de sua paixão antidocumental, aquela que desconfia de sua
potência de ‘registro do verdadeiro’, maquinações antimaquínicas, assumidas em seu
caráter pluriperspectivístico, parcial, contaminado, resultante do deixar-se
atravessamento pela legião de autores, de sujeitos que falam pela sua boca e são por
ele/ela falados, gaguejados, silenciados, distorcidos, empoderados, desentendidos,
estendidos, traídos, usados, parafraseados, negados, atravessados – os léxicos em cujos
fluxos e contrafluxos somos forjados, constroem-nos como falantes, constroem nossos
lugares de fala e não o contrário.
12. depois que passa pelas mãos, pelos olhos, pelo nariz, pelo desejo do sociólogo, tudo
parece seu. depois que passa pelas suas mãos, olhos, desejo, nariz, nada parece seu! a
tarefa do sociólogo: dar aos fenômenos uma voz, uma imagem, uma fantasmagoria
elaborada, sem medo de perdê-los, traí-los! ao contrário, só interessa ao sociólogo o
que teve força, caráter, para se perder dele. o sociólogo não trancafia afetos, cheiros,
memórias, paisagens, funcionamentos, fluxos e contrafluxos, imagens que ele criou. o
sociólogo é parteiro desanestesiador do mundo, que o marca e que é por ele
ousadamente reconstruído.
14. o olhar/o ouvir/o sentir/o imaginar/o adivinhar sociológico serão tão mais
interessantes e flamejantes quanto mais capazes de perceber modulações, consonâncias,
dissonâncias, cadências, pausas, silêncios, vagarosidades, acelerações, variações nas
espessuras fenomênicas e epifenomênicas, o contraponto espesso dos sentidos e dos
não-sentidos da complexa rede de acontecimentos que formam a vida social, oferecendo
para os indivíduos interessados modos de tradução do que vivem e deixam de viver, aos
quais eles eventualmente sejam indiferentes ou mesmo resistentes.
17. nos que fazem sociologia, o pensamento/razão e as emoções não dirigem ‘de fora’ a
interpretação exercitada: sociólogos são eles mesmos, enquanto analistas, fenômenos e
devires a serem analisados. eles sujeitos se constroem à medida que reconstroem os
seus objetos, criando meios de expressão, idiomas analíticos que se moldam de acordo
com sentidos e não-sentidos fenomênicos e epifenomênicos, tomados como pontos a
serem iluminados, dobrados, redobrados.
18. toda análise sociológica é também uma fonte de recriação dos instrumentos teórico-
metodológicos através dos quais se exercita e passam a ser manejados segundo sintaxes
novas, despertadas pelas relações sujeito-objeto ativadas. o senso comum limita-se a
abordar por signos convencionais as significações dos fenômenos já instaladas na
sociedade/cultura. a sociologia é a arte de captar sentidos e não-sentidos não dantes
objetivados, tornando-os acessíveis aos sujeitos que os ativam/experimentam, como se
fosse a produção em prosa de uma poética das relações humanas – em suas implicações
com o não-humano – através da qual emerge o apelo arriscado de liberdades e
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19. a maneira mais interessante de entender uma época e seus fenômenos não é se
concentrando nas características explícitas que definem seus edifícios sociais e
ideológicos, mas sim nos seus fantasmas renegados, que assombram das profundezas,
que habitam uma região misteriosa de entes cuja visibilidade nos é negada, os quais, no
entanto, persistem e continuam a ser eficazes na afetação das dinâmicas da vida social.
fazer sociologia é intercruzar imagens especulares do simbólico/imaginário (mitos,
narrativas, atos fundacionais reconhecidos e disseminados pelas sociodiceias
disseminadas pelas instâncias socializadoras legítimas) com o material que compõe a
história secreta dos grupos, instituições sociais, aquela referida à ordem do substrato
obsceno do tecido social, a zona fantasmática, ‘espectral’, que sustenta efetivamente o
caráter explícito do que dizemos, fazemos e dizemos fazer, tão mais poderosos quanto
permanecerem implícitos, habitando o espaço tateante das entrelinhas, do segredo que
não ousa sequer se pensar, das fantasias traumáticas que se transmitem nas lacunas, nas
fraturas, naqueles momentos nos quais se olha sem saber para onde ou o quê.
20. é quando somos tomados pelo não entendimento, atravessados pelas falhas dos
jogos de linguagem, pela gagueira que nos desconcerta e embaraça, quando criamos
uma língua estrangeira a partir da matéria-prima do léxico da nossa língua materna, nas
suas veias e artérias e no meio dela, para falar, sentir, ouvir e ler os fenômenos do
mundo, que podemos ser mais radicalmente sociólogos.
que as coletividades e quem se debruça sobre a vida social vão fazendo emergir ao
longo do tempo e do espaço, sempre subvertendo as interpelações que sistemas, grupos
dominantes e dominados, os próprios fenômenos sociais ativam. esse estilo é sempre
excessivo, metacientífico, radical, estremecente, pantanístico, abjeto, teratológico,
instaurando estranhezas para dentro e para fora dos sujeitos, deslocamentos, dilemas,
nomadismo, entrangeiridades, singularidades universalistas, desenraizamentos
desprovincializantes.
27. o que se busca com a teratossociologia são as estruturas elementares das
ignorâncias que nos atravessam em agenciamentos e contra-agenciamentos. sociólogues
aprendem logo que conhecer teorias, metodologias, filosofias de quaisquer que sejam os
autores não significa saber sobre o mundo nada além do que as teorias, as filosofias, as
metodologias deles, que estiveram ou estão nos mundos que lhes foram possíveis.
sociólogos têm compromisso existencial com o mundo e interesse e curiosidade
estético-epistemológica em ideias/teorias/epistemologias und so weiter.
28. a teratossociologia é um combate a toda pretensão de que seja possível conhecer os
fenômenos sociais assim como se pensa que 2+2=4. contra a arrogância limitante da
ambição de cientificidade, mobiliza o ceticismo para dentro e para fora; contra o saber
que enclausura e acomoda, ativa a subversão libertária da ignorância produtiva, aquela
que não se festeja, que não se orgulha de si, mas que se busca reconhecer e dela
saborear as consequências, buscando saber como a partir dela se pode ver o mundo
sempre de modo diferente do que no momento anterior se viu, lembrando sempre que
ele é fabricado pelos humanos em termos objetivos e simbólicos, operando com um
material que já encontra pronto e com base em invenção e engenhos
teratorrepresentacionais, ativando diferentes potenciais de continuidade e ruptura.
29. analistas da vida social não exercitam suas análises para. apenas produzem suas
análises como um modo de estar no mundo e olhar/ser olhado pelos fenômenos sociais,
de modo a