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Mendigo da moeda de ouro

UM DIA — entre os dias do passado — achava-se Hassan El-Masquim, como de costume, sentado à
porta da grande mesquita de Osmã, quando por ele passou um mercador.

— Uma esmola! — exclamou Hassan, dando à voz aquela inexão de humildade que, sincera ou
articiosa, comove sempre os ânimos piedosos — Uma esmolinha, por amor de Deus!

Ao atentar no triste e mísero estado em que se achava o andrajoso pedinte, o mercador, que trazia
na mão uma pequena moeda de cobre, atirou-a sem hesitar aos pés de Hassan.

O mendigo apanhou a moeda, mas, ao invés de agradecer como devia o pequeno óbulo do bondoso
mercador, murmurou pesaroso julgando não ser ouvido:

— Louvado seja Allah! Que posso eu fazer se minha pobreza é tão grande e o valor desta moeda tão
pequeno!

Naquelas palavras ressumava, por certo, a ingratidão. Ao ouvi-las, o mercador, que mal transpusera
os umbrais da mesquita, revidou magoado:

— Se na verdade não te serve a moeda, ó ingrato, procura dá-la à primeira pessoa que passar por ti.

Dizendo isto, descalçou as sandálias e entrou na mesquita.

O inesperado conselho do mercador causou profunda impressão ao espírito do pobre Hassan, que
cou algum tempo a meditar nas estranhas palavras que acabava de ouvir.

À fé que ele se mostrara bastante ingrato. Que razão tinha, anal, para desfazer do valor daquela
moeda? Não representaria ela, talvez, um sacrifício para aquele que lha dera?

E Hassan, sentindo no seu bondoso coração de crente sincero que pecara gravemente aos olhos de
Deus, começou a virar re revirar a moedinha entre os dedos, tando-a como se fosse a imagem viva
do remorso que lhe estivesse presa nas mãos.

— Não. — murmurou — Diz-me a consciência que não devo car com esta moeda. Vou seguir o
conselho do mercador.

E, resoluto, armou:

— Darei esta moeda à primeira pessoa que passar por aqui.

Momentos depois apareceu um peregrino. Arrastava, descansadamente, suas ricas babuchas de


seda amarela.

— Senhor! — exclamou Hassan, dirigindo-se ao recém-chegado — Recebi esta moeda que mal acaba
de me vir às mãos. Guardai-a, peço-vos, como lembrança de El-Masquim, o mais infeliz mendigo de
Bagdá.

O peregrino tomou da moeda, examinou-lhes com certo cuidado ambas as faces e, ao cabo de
algum tempo, respondeu:

— Que Allah te proeja, meu amigo. Em troca desta moeda que tão amavelmente acabas de oferecer,
quero te dar outra que muito útil será para ti, em caso de necessidade.

E, tirando da bolsa uma moeda de prata, depositou-a delicadamente nas mãos de  Hassan, depois
do que, sem mais dizer, encaminhou-se no seu andar vagaroso para o interior da mesquita.

Ao examinar a dádiva que recebera, Hassan não pode conter o espanto que dele se apossara. “É um
milagre de Deus. — pensou ele — Só por um milagre que seria possível trocar uma moeda de cobre,
de tão pouca valia, por uma peça de prata de tamanho valor.

No mesmo instante, porém, inspirado pelo seu bom coração, lembrou-se o infeliz Hassan de que
fora ingrato com o mercador e de que aquela valiosa moeda de prata lhe viera às mãos graças à
moedinha de cobre, sobre cuja desvalia pronunciara palavras de que tanto se arrependia.
— Não. — murmurou Hassan — Diz-me a consciência que esta moeda de prata também não me deve
pertencer. Seria pecado conservá-la comigo. — Vou oferecê-la à primeira pessoa que passar por
aqui.

… e puxando por uma pequena bolsa de couro que trazia oculta na manga do vestido, entregou-a ao
mendigo. Depois do que, sem proferir uma só palavra mais, partiu, trêmula e incerta,
desaparecendo na primeira curva da extensa rua de Bagdá.

CRUZAVA nesse momento a mesquita de Osmã um velho comerciante judeu, que se dirigia ao
mercado, puxando o seu burrinho carregado de quinquilharias.

— Bondoso lho de Israel! — exclamou Hassan, dirigindo-se ao judeu — Gostarias de ter em tua bolsa
esta bela moeda de prata que um transeunte piedoso acaba de dar-me? Podes guardá-la. É tua.

Parou o israelita estarrecido diante do inesperado oferecimento de Hassan. Que um mendigo


coberto de andrajos ofereça dinheiro ao invés de pedi-lo é, realmente, uma inversão capaz de
causar assombro a quem quer que seja.

— Pelas barbas de mil profetas! — exclamou o judeu — És mais generoso que um príncipe, ó
muçulmano. Recebo a tua belíssima oferta e saberei — juro por Abraão — guardá-la com especial
carinho. Como não quero, porém, que te venha mais tarde o arrependimento pelo que acabas de
fazer, vou dar-te um troca desta moeda de prata a única moeda de ouro que tenho em meu poder.

— E passou para as mãos trementes de Hassan preciosa moeda de ouro, que parecia rebrilhar entre
os seus dedos amarelados.

— Maktub! Seja feita a vontade Allah! — exclamou Hassan.

Efetuada essa troca absurda, que nem mesmo os grandes ulemás seriam capazes de explicar
satisfatoriamente, retomou o judeu as rédeas de seu burrinho e partiu em direção ao mercado.

Hassan, ébrio de alegria, ao receber o dinar do judeu, ergueu as mãos para o céu e exclamou:

— Li-iatameged Allah er-Prahim er-rahaum! (Louvado seja Allah, Clemente e Misericordioso!) Pela
sua innita bondade, ganhei uma moeda de cobre; troquei-a por uma de prata e esta — ó milagre! —
acabo de trocá-la por uma terceira, mais valiosa, de ouro. — Bendito seja o nome do Altíssimo!

O esfarrapado mendicante, que nunca recebera esmola de tão grande valor, não se cansava de
admirar a bela e tão ambicionada moeda. Notou que ela trazia, gravada numa das faces, em
primorosos caracteres árabes a legenda: “O princípio de toda sabedoria é o temor de Deus”.

Em poucos momentos de meditação, porém, sentiu-se novamente censurado pela voz da


consciência a recordar-lhe que aquele dinheiro lhe viera às mãos graças à ingratidão que praticara
para com o mercador. “Esta moeda não me deve pertencer”, pensou. “Deus, na sua inexcedível
bondade, na sua innita sabedoria, quis mostrar-me quanto fui injusto para com aquele que me deu a
moedinha de cobre. Tanto é assim que ela, a princípio, tão desvaliosa para mim se transformou
rapidamente, por trocas sucessivas, numa peça de ouro”.

E, movido por uma resolução inabalável, renovou o protesto que zera por mais de uma vez. “Maktub!
Vou dar esta moeda de ouro à primeira pessoa que passar por mim”.

E, voltando-se para a porta da grande mesquita de Bagdá, pronunciou solene o seguinte juramento:

— Que pese sobre mim a maldição de Allah, se eu conservar em meu poder esta moeda ou o ouro
que dela provier.

Mal terminara o velho Hassan o seu julgamento sagrado, avistou uma velhinha muito magra e
acurvada, que passava com o seu andar incerto de octogenária a pequena distância da mesquita.

A anciã trazia o rosto descoberto e caminhava de cabeça baixa, olhando para um lado e para outro,
como se procurasse algum objeto que por ali tivesse perdido. De vez em quando parava para tocar
num seixo negro e nodoso.

Sem hesitar, Hassan dirigiu-se a ela e disse-lhe:


— Recebi, bondosa serva de Allah, esta moeda que aquele judeu acaba de oferecer-me. Que ela se
transforme em vossas mãos numa grande riqueza.

A desconhecida parou boquiaberta às palavras do mendicante. Os olhos baços abriram-se-lhe


desmesuradamente como se estivessem tando o sobrenatural; e depois de um momento de
angustiosa surpresa assim falou com profunda emoção:

— Vou guardar esta moeda, ó muçulmano, e muito agradeço a tua generosidade. E como gosto de
ser útil a todos quantos me auxiliam, vou dar-te um presente de que muito de poderá servir.

Disse, e puxando por uma pequena bolsa de couro que trazia oculta na manga do vestido, entregou-
a ao mendigo, depois do que, sem proferir uma só palavra mais, partiu, trêmula e incerta,
desaparecendo na primeira curva da extensa rua de Bagdá.

Hassan, ao abrir a bolsa, cou maravilhado. Era espantoso. A desconhecida do bordão negro dera-lhe
vinte moedas de ouro. Que força oculta, misteriosa, teria obrigado aquela anciã a fazer, assim, uma
troca tão desigual?

— É mais uma revelação milagrosa de Deus! — murmurou Hassan, refeito do profundo assombro que
o transtornava.

E, erguendo os braços para o céu, exclamou numa prece fervorosa:

— Louvado seja Allah, clemente e misericordioso! Pela sua innita bondade ganhei uma moeda de
cobre, troquei-a por uma de prata; a moeda de prata foi trocada por outra de ouro e esta última — ó
milagre — troco-a sem querer por uma bolsa cheia de ouro. Exaltado seja o nome do Onipotente!

E Hassan, entregue ao fatalismo religioso tão natural nos muçulmanos, disse consigo: “Se está
escrito — Maktub! — que um dia serei rico, de qualquer forma as riquezas virão ter-me às mãos. Hei
de dar esta bolsa à primeira pessoa que entrar na mesquita”.

— Aceito esta bolsa, ó dadivoso amigo, e vou guardá-la como se fosse um talismã do grande
Salomão nos cofres do meu palácio. Quero dar-vos, porém, um pequeno presente que trago
comigo…

TERMINARA apenas o alvoroçado mendigo de formular tal promessa quando surgiu, a pequena
distância, um rico viajante de turbante cor-derosa, que se encaminhava, acompanhado de três
escravos, para a mesquita de Osmã.

Quando o desconhecido entrou no pátio do grande tempo muçulmano, Hassan inclinou-se humilde
diante dele e, oferecendo-lhe a bolsa cheia de ouro, exclamou:

— Marhaba ia akal arab! (Saúdo-vos, ó irmão dos árabes!) Recebei, generoso senhor, esta bolsa.
Exorto-vos a que a guardeis como humilde lembrança de um velho mendigo de Bagdá.

O estrangeiro parou, tando no andrajoso Hassan os olhos negros, com voz trêmula, indício de
grande emoção, assim falou:

— Aceito esta bolsa, ó dadivoso amigo, e vou guardá-la como se fosse um talismã do grande
Salomão nos cofres do meu palácio. Quero dar-vos, porém, um pequeno presente que trago comigo
desde a longínqua província de que sou governador.

E, tirando de sob o mando uma pequena caixa de madeira, depositou-a reverentemente nas mãos
de Hassan.

— Eis, senhor — tornou o desconhecido — a modesta e desvaliosa lembrança que hoje vos dá o
xeique Omar Chahi.

Tendo dito tais palavras, inclinou-se respeitoso diante de Hassan. A seguir, vagaroso e solene,
encaminhou-se para o interior da grande e silenciosa mesquita.

Os três escravos negros, os braços cruzados sobre o peito, caram de pé, imóveis junto à porta do
templo à espera de que o rico senhor terminasse as suas preces.
Ao abrir Hassan a pequena caixa assaltou-o um assombro que jamais experimentara. Deparou-se-
lhe uma esmeralda que, pelo tamanho e limpidez, parecia ser de grande preço. “Não estarei, por
acaso, sendo vítima de algum delírio? Esta pedra deve valer mais de cimo mil dinares. É incrível o
que se acaba de passar”.

E, erguendo os braços para o céu, exclamou:

— Louvado seja Allah, clemente e misericordioso, pela sua innita bondade ganhei uma moeda de
cobre; troquei-a por outra de prata; a moeda de prata por outra de ouro; esta última por uma bolsa
cheia de ouro; e a bolsa

— ó milagre! — acabo de trocá-la por uma joia de subido valor. Exaltado seja o nome do Altíssimo!

Aquela transformação crescente de valores aparecia, aos olhos de Hassan, como uma revelação
milagrosa de Deus. Veio-lhe, porém, à lembrança, o juramento que zera. “Não posso car com esta
pedra. — pensou — Se faltar ao juramento que z é certo que cairão sobre mim todas as maldições
do mundo.” E asseverou convicto:

— Maktub! Vou dar esta esmeralda à primeira pessoa que passar por mim.

Nesse momento exatamente — por um inexplicável capricho do destino — avistou Hassan um


grande e riquíssimo cortejo, que se dirigia à mesquita de Osmã.

Na frente, montando belo e fogoso cavalo escuro, vinha o poderoso sultão Harun-al-Raschid, califa
de Bagdá. O soberano fazia-se acompanhar de seu grão-vizir, emires, cádis, ulemás, poetas, ociais
e nobres da corte muçulmana. Quando o califa estava a pequena distância da escadaria que levava
ao pátio da mesquita, Hassan adiantou-se alguns passos, inclinouse profundamente e, depois de ter
beijado três vezes a terra entre as mãos, assim falou:

— Allah ibarak sid! Ia ich ra ia malec ezzaman! (Que Deus proteja e prolongue por muitos anos
felizes a vida preciosa de nosso amo e senhor!). Permiti, ó Emir dos Crents, que eu, o mais humilde
dos vossos escravos vos ofereça esta pequena lembrança.

Surpreendido pelo inesperado oferecimento de tão vil criatura, mandou o califa que um dos seus
ociais lhe trouxesse a pequena caixa com que Hassan acabava de presenteá-lo. Ao abri-la, vericou
o califa, estupefato, que vinha dentro dela uma esmeralda como até então nunca vira.

— Allah akbar! — exclamou — Deus é grande! É inacreditável o que vejo. Um mendigo coberto de
andrajos oferecer ao califa de Bagdá um presente que só as posses de um príncipe atingiriam.

E, voltando-se para o seu grão-vizir, disse-lhe o califa:

— Leva-me este homem a palácio, ó Giafar. Quero que ele me conte a origem desta valiosa
esmeralda e a razão de tão singular oferecimento.

Giafar, o grão-vizir, expediu pressurosamente alguns instruções a um de seus auxiliares e Hassan


foi dali levado ao suntuoso palácio do sultão de Bagdá.

O grande califa, depois de feitas as suas preces, regressou a palácio, passando imediatamente ao
reservado às audiências. Ali chegado, fez vir Hassan à sua presença.

Interrogado pelo sultão, contou o mendigo a história da moedinha de cobre e as trocas sucessivas
que zera involuntariamente até receber das mãos do xeique a valiosa esmeralda.

Harun-alRaschid, tendo ouvido a singular narrativa do velho Hassan, exclamou:

— Não há força e poder senão em Allah, o Altíssimo! A aventura deste mendigo é digna da maior
atenção. Quero que tragam imediatamente à minha presença o mercador, o peregrino, o judeu, a
velha e o xeique, pois desejo ouvir de cada um desses súditos a explicação minuciosa das
estranhas e incompreensíveis trocas que zeram.

Sem perda de tempo, o chefe dos guardas, acompanhado de Hassan — cujo auxílio era, nesse caso,
indispensável — procedeu a uma busca pela cidade, percorrendo o mercado, as praças, os bazares,
o bairro dos judeus e as mesquitas. Ao m de algumas horas de laboriosas pesquisas, conseguiram
encontrar as seis pessoas reclamadas pelo califa.  Levados ao grande palácio, foram os heróis
desta história conduzidos à presença do soberano.

Harun-al-Raschid achava-se no salão de honra, sentado em riquíssimo trono de ouro e púrpura. À


sua direita, de pé, o judicioso Giafar, seu grãovirzir, e à sua esquerda Sayaf, o porta-alfange ou
carrasco da corte. A convite do poderoso monarca vieram também assistir à audiência os ulemás,
os doutores, os cádis, os emires, poetas, ociais e nobres ilustres da corte.

— Estamos, ó muçulmanos — disse o sultão — diante de um caso digno de ser gravado em ouro,
numa pedra preciosa. O velho El-Masquim, o mendigo, recebeu esta manhã de um mercador uma
moedinha de cobre, como esmola; deu-a a um peregrino, ganhando em troca uma de prata; com
esta presenteou um judeu, recebendo em retribuição um dinar de ouro; resolveu dar esse dinar a
uma velha e, com surpresa, ganhou dela uma bolsa de ouro; essa bolsa, nalmente, o mendigo
ofereceu-a a um xeique persa, e, atônito, obteve de volta uma gema avaliada em muitos mil
dinares. Foram assim efetuadas quatro absurdas e incompreensíveis trocas. Meu desejo, portanto,
é que, diante de todos os que aqui estão, os autores dessas trocas justiquem as transações
descabidas que zeram com o mendigo da mesquita. Que fale a verdade. O meu castigo cairá
tremendo e impiedoso sobre aquele que mentir!

CONVIDADO a falar, o mercador não hesitou. Depois de dirigir respeitoso salã ao rei e aos nobres,
narrou o seguinte:

Devo dizer, primeiramente, ó rei afortunado, que o meu nome é Salim Matalak e que sou lho de
Mossul, cidade onde vivo mercadejando tapetes, babuchas e turbantes. Tendo chegado a esta
gloriosa cidade de Bagdá, com uma caravana de mercadores persas, resolvi  hoje pela manhã
visitar a famosa mesquita de Osmã (Allah a nobilite cada vez mais!), onde pretendia, como bom
muçulmano, fazer as minhas preces habituais. Quis, porém, a vontade do Onipotente que, ao
atravessar a praça do Sultão AlMansor, junto à pequena fonte que lá existe, encontrasse no chão,
meio coberta de terra, pequenina moeda de cobre já um tanto gasta pelo tempo ou pelo uso.
Apanhei-a e pus-me a examiná-la. “A quem teria pertencido?”, pensava eu caminhando para a
mesquita. “Quem a teria perdido ali no meio da areia?” Absorto em tais cogitações, já me dispunha
a entrar no templo quando vi um mendigo de aspecto sórdido, que me estendia a mão implorando
um óbulo em nome de Allah. Tendo em mente que socorrer os necessitados é um dever de todos os
muçulmanos, conforme determina o nosso santo Profeta (com ele a oração e a paz!), sem hesitar
dei ao mendigo da mesquita a pequenina moeda que pouco antes achara junto à fonte de Al-
Mansor. O andrajoso pedinte, ao invés de balbuciar uma dessas fórmulas triviais com que a
mendicidade sói agradecer-nos, exclamou com certa ironia: “Que posso eu fazer, se minha pobreza
é tão grande e o valor desta moeda tão pequeno?”. Magoado com essas palavras, em que percebi
uma censura injusta à minha intenção, exclamei: “Se não queres essa moeda, ó ingrato, procura dá-
la de presente à primeira pessoa que passar por ti”. E, sem mais me preocupar com o caso,
descalcei-me e entrei na mesquita. É essa a minha história, ó califa generoso! Atal Allah unrak ai
maulay! (Que Deus prolongue a tua vida, ó rei!)

Finda a narrativa do mercador, declarou o sultão:

— Nada tem de extraordinário ou de misterioso a história que acaba de ser narrada por esse bom
mercador. O que, porém, não posso conceber é a razão por que esse peregrino, recebendo do
mendigo a moedinha de cobre, lhe deu em troca uma moeda de prata. Não encontro, dentro do
bomsenso, como justicar esse disparate.

Ao ouvir as palavras do soberano, o peregrino aproximou-se alguns passos do trono, prostrando-se


humildemente e beijando a terra entre as mãos, e assim falou:

Meu nome, ó Comendador dos Crentes, é Halef Khalid e vivo em Basra, minha terra natal, onde
exerço a modesta prossão de pasteleiro. Este ano, a conselho de meus parentes, vendi parte de
meus bens e com o dinheiro que apurei no negócio resolvi fazer uma peregrinação a Meca — a
cidade santa, pérola da fé –, a m de cumprir os meus deveres de crente el do Islã. Vindo de Basra,
cheguei ontem a esta cidade com um grupo numeroso de peregrinos. Hoje pela manhã, quando me
dirigia à mesquita de Osmã (Allah que a conserve!), de mim se aproximou esse mendigo (que agora
vejo neste divã) e, sem que eu nada lhe dissesse, ofereceu-me uma moeda de cobre. Surpreendeu-
me sobremaneira tão extraordinária oferta, não só pelas condições do ofertante, como também
porque veriquei, depois de ligeiro exame, que a moeda em questão era uma peça antiga do tempo
do nosso califa Otmã (Allah o tenha em sua glória!). Devo dizer que, à semelhança de meu pai, sou
colecionador de moedas antigas. Agradeci, pois, sinceramente ao mendigo o oferecimento que
acabara de fazer-me e, em troca da moeda história, dei-lhe uma moeda de prata corrente, que
representava o justo valor da lendária moedinha de cobre. Aí está, ó Comendador dos Crentes, a
razão por que troquei uma moeda de prata por outra de cobre. Yahia amir El-Manenin! (Que viva o
príncipe dos crentes!).

Com essa cortesia, calou-se o peregrino.

— Louvado seja Allah! — proclamou o sultão — a troca feita por esse homem nada tem de absurda
nem de extraordinário. É razoável e natural. Recebeu uma moeda rara e dá em troca outra de valor
equivalente. O que, porém, não compreendo é a razão que levou esse judeu a dar, por uma moeda
de prata, uma peça de ouro dez vezes mais valiosa.

— Vou contar-vos a minha história, ó califa generoso! — exclamou o judeu — e vereis que nada
houve de mais simples e natural.

— E, depois de beijar humildemente a terra entre as mãos, assim começou:

MEU NOME, ó generoso califa, é Isaac Ben-Moab. Nasci na pequena aldeia de Emaús, a pouca
distância de Jerusalém. Há vinte anos que vivo a mercadejar, percorrendo os países mais
longínquos do mundo. Já estive na Índia e na China. Levei minha tenda, nas costas dos camelos,
desde Ispahan até às margens do Hindus e desse rio famoso fui ter às planícies inndáveis do
Tibete. Não me falta, portanto, experiência que adquiri nas afanosas peregrinações feitas pelo
mundo. Nos últimos meses, como estivesse à espera de uma caravana de mercadores armênios,
deixei-me car nesta gloriosa cidade de Bagdá. Desde então, todos os dias, vou para o mercado
levando nas costas do meu burrinho a mercadoria que pretendo vender. Ao passar hoje, pela
manhã, junto à mesquita de Osmã, veio ao meu encontro esse mendigo e, posto que eu nada lhe
pedisse, ofereceu-me, ofereceu-me valiosa moeda de prata que, segundo armava, lhe teria sido
dada momentos antes por um desconhecido. Confesso que me causou grande estranheza a oferta
daquele esfarrapado. “É um louco” – pensei. – “Não tem migalha e oferece dinheiro aos que
passam”. É um pobre demente tomado da triste mania de passar às mãos alheiras os óbulos que
recebe das pessoas caridosas. Anal, de que lhe serviria aquele dinheiro, sem nem ao menos senso
comum tinha ele para dirigir-se na vida? Resolvi, portanto, aceitar a moeda com que o mísero, de
tão boa vontade, queria presentear-me. Ocorreu-me, porém, naquele momento uma dúvida: se eu
não dessa ao velho mendigo qualquer coisa, poderia ele, no triste estado de demência em que se
achava, e tomado de acesso furioso, praticar uma violência contra mim ou contra qualquer
transeunte descuidado. Assim, ouvindo o conselho da prudência, resolvi dar ao mendigo a única
moeda que levava comigo. Era uma moeda dourada, que eu trazia habitualmente como talismã.
Serviria apenas para distrair e curar o infeliz, pois era falsa. Dera-ma, dois anos antes, um muezim
de Damasco. Eis aí, ó generoso califa, o motivo por que z com Hassan a troca que parece estranha:
a prata era verdadeira, mas a do ouro, a outra moeda, tinha apenas a aparência. Não passava de
um amuleto.

Harun-al-Raschid, terminada a narrativa de Isaac Ben-Moab, exclamou encolerizado, num rompante:

— Ia kafer, ia Iáin! (Ó ímpio! Ó maldito!) O teu procedimento foi indigno, ó judeu sem crenças!
Recebes prata de verdade e dás, em troca, ouro de mentira! Não quero, porém, castigar-te agora.
Estou ansioso por saber a razão que levou essa boa anciã a receber uma moeda falsa e dar em
troca uma bolsa cheia de ouro.

Interrogada pelo califa, a mulher iniciou o seguinte relato depois de beijar humildemente entre as
mãos a terra:

É singular a minha história, ó califa dos crentes, e vi-me envolvida nas suas perifpécias em
consequência de um sonho. Chamo-me Fátima. Sou da tribo dos Anazeh e vivo para além da cidade
de Kerbela, na estrada que vai ter à torre de Babel. Uma tarde, quando dormia a sesta no terraço de
minha casa, sonhei que se viesse a Bagdá encontraria, junto à mesquita de Osmã, um grande
tesouro. Impressionada com esse sonho revelador, falei a meu lho e pedi-lhe que me deixasse vir a
Bagdá em busca dessa riqueza. Meu bom lho, a princípio, não quis consentir, alegando que a
viagem de Kerbela até Bagdá é longa e perigosa. Tamanha, porém, foi a minha insistência, que ele,
ao cabo de muita hesitação, deixou-me partir, recomendando-me a um velho amigo, que vinha de
Hail com uma grande caravana de mercadores damascenos. Foi assim que cheguei hoje, ao nascer
do dia, a esta gloriosa cidade, ó califa. Com as informações que me deram os guias, dirigi-me logo à
mesquita de Osmã (Allah que a nobilite para todo o sempre!), ansiosa por averiguar se ali estaria o
tesouro que me fora em sonho anunciado. A praça de Osmã, quando cheguei lá , estava deserta.
Meu primeiro cuidado foi procurar pelo chão, no meio da areia, a ver se ela ocultaria alguma bolsa
cheia de pérolas ou alguma caixa repleta de brilhantes. Nada, porém, vislumbrei que me
despertasse a atenção. Já me dispunha a voltar para o acampamento da caravana de Hail, quando
de mim se acercou esse mendigo e me ofereceu, inopinadamente, uma moeda de ouro, dizendome:
“Que esta moeda se transforme em vossas mãos numa riqueza”. Quase desmaiei, tão violenta foi a
emoção que me assaltou. Podia eu lá acreditar que um mendigo, andrajoso e faminto, por sua livre
vontade oferecesse moedas de ouro aos transeuntes? Não, não era possível. O desgraçado
procedia, com certeza, como um autômato, impelido por alguma força desconhecida. Lembrei-me
então do meu sobrinho. Allah é grande! Quem sabe se aquela moeda, na qual percebi uma
inscrição, não seria um talismã precioso, capaz de me levar à descoberta do sonhado tesouro? Sem
mais hesitar, guardei a moeda e, querendo recompensar o meu infeliz presenteador, dei-lhe, em
troca, a bolsa que trouxera com o dinheiro que me parecera necessário às despesas da viagem.
Imediatamente parti em busca de uma pessoa que me pudesse explicar os dizeres da moeda.
Lembrei-me do velho Mahomed Du-Khala, que exercia, junto à porta do “hamã’, ofício de carniceiro.
Não o encontrei. Procurei, então, um cameleiro chamado Zaid Saffah, que trab alho em minha casa
há tempos, e que vivia em Bagdá, para os lados do cemitério judeu. Não o encontrei também. Já
fatigada, dirigi-me ao primeiro homem com que topei no caminho e pedi-lhe que interpretasse a
inscrição da moeda do mendigo. Esse homem — que era, aliás, um mestre-escola –, ao tomá-la
entre os dedos ágeis e magros, exclamou: “Quem te deu isto, minha tia? Esta moeda é falsa! Falsa
como a consciência de um pecador”. E prosseguiu: “Nela só há de verdade esta legenda”. “E que
quer dizer essa legenda?”, perguntei. E ele explicou pacientemente: “É um pensamento famoso do
grande Salomão — ‘O princípio de toda sabedoria é o temor de Deus‘. Comecei a chorar
desesperada. Todo o dinheiro que trouxera de minha casa dera-o ao mendigo da mesquita em troca
daquela moeda falsa. Achava-me, assim, em terra estranha, sem parentes, sem teto e sem
recursos. Compadecido, o mestre-escola ofereceu-me a sua casa onde eu caria ao abrigo das
primeiras necessidades até que obtivesse recursos para tornar à minha terra. Aceitei o generoso
oferecimento e já ia caminhando da casa do meu benfeitor quando de mim se aproximaram vários
guardas que, acompanhados do velho mendigo, me trouxeram a este glorioso palácio. É esta a
minha história, ó Emir dos Crentes!

Disse Harun-al-Raschid:

— Parece perfeitamente esclarecido o caso dessa anciã. Na certeza de topar com tesouros ocultos,
não hesitou em dar vinte em troca de um.

E, voltando-se, a seguir, para o xeique, disse-lhe:

— Cabe-te agora, ó xeique, a vez de falar. Que nos diga bem claramente por que motivo trocaste
uma pedra de alto valor por uma bolsa que continha um punhado de ouro. Não vejo explicação
alguma para o teu caso.

O rico estrangeiro, depois de saudar respeitosamente o califa, contou-lhe o seguinte:

JÁ SABEIS, ó Comendador dos Crentes, que o meu nome é Omar Chahi e que sou governador de
Thous, a longínqua província persa recentemente pacicada pelas forças muçulmanas. Há muito
tempo me premia o vivo desejo de vir a esta gloriosa cidade de Bagdá. Preso, porém pelas múltiplas
ocupações de meu cargo, não me era possível, sem graves prejuízos para a comarca, afastar-e,
embora por poucos dias, da província de Khorassã. Ultimamente, entretanto, meu irmão Ali
Ferrhan, que se encontrava ausente, regressou a Thous. Pedi-lhe que me substituísse no governo
da cidade, ao que ele prontamente aquiesceu. Preparei uma grande caravana e, acompanhado de
meus guias e escravos, tomei a estrada de Adjemi, a caminho de Bagdá. Moviam-me a essa
fatigante viagem dois motivos principais: visitar Bagdá e falar-vos, ó poderoso califa, pois não tinha
a honra e a glória de conhecer-vos. Depois de viajar longos meses pelo deserto, cheguei, nalmente,
a um grande caravançará que ca aquém da cidade El-Dijileh. Como deveis saber, ó generoso califa,
é nesses caravançará que se reúnem as caravanas de mercadores, viajantes e peregrinos que vêm
da Pérsia, da Judeia e da Síria. Foi aí que encontrei um escriba chamado Chanfara, homem
prendado com quem z boa camaradagem. Como discorrêssemos acerca dos costumes dos reis,
faloume ele dos hábitos do nosso glorioso sultão (que Allah sempre conserve!). Contou-me, entre
outros fatos e curiosidades, que era vosso costume, ó Emir dos Crentes, andar pelas ruas de Bagdá
disfarçado em mendigo, a m de experimentar o bom coração e os sentimentos de caridade de
vossos numerosos súditos. Acrescentou o meu douto informante que mais de uma vez vos
reconhecera sob as vestes andrajosas de pedinte, estendendo humildemente a mão aos que
passavam. Esta particularidade da vossa vida impressionou-me profundamente. Hoje, pela manhã,
ao chegar a esta cidade, z minhas abluções e dirigi-me à mesquita de Osmã (Allah a enalteça!),
onde desejava, em preces fervorosas, agradecer ao Onipotente pela viagem feliz que me
proporcionou. Ao entrar no pátio do grande templo, não vi o mendigo que estava sentado numa
pequena laje, junto à escada. Foi para mim motivo de indizível surpresa perceber o infortunado, já
perto de mim, a oferecer-me uma bolsa cheia de ouro. “É o nosso grande califa disfarçado em
mendigo”, disse de mim para mim cheio de admiração. “Como poderia um mísero pedinte oferecer
bolsas de ouro aos transeuntes?” Para mim não havia, naquela estranha aventura, a menor dúvida
sobre a pessoa do ofertante. Não creio que possa existir no mundo pessoa mais generosa do que o
nosso glorioso soberano. Nesta convicção, portanto, aceitei a bolsa de ouro e dei ao mendigo,
cuidando dá-la ao seu destinatário, a esmeralda que eu havia comprado a um mercador hindu para
oferecer ao Príncipe dos Crentes. É esta a minha história, ó califa magnânimo! Que Allah prolongue,
até o m dos séculos, a vossa preciosa existência.

Ficou o sultão maravilhado ao ouvir a narrativa do que se passara com o cádi Omar Chahi e, com
palavras carinhosas, agradeceu o valioso e belo presente que o governador de Thous trouxera
especialmente para ofertarlhe.

Quis, no entanto, o grande califa recompensar equitativamente os heróis do original sucesso em


que se vira envolvido o velho Hassan.

E, para que orientassem naquele extraordinário caso, mandou que se aproximassem do trono dois
juízes da corte: Saan e Karim.

Na corte do sultão Harun-al-Raschid viviam os dois célebres juízes: o primeiro chamava-se Saan
Ben-Rammah e o segundo, Karim Abul Fadl.

Saan (Allah se compadeça dele!) era temido e odiado por causa das sentenças impiedosas que
habitualmente proferia:

— A lei — dizia Saan — foi feita para castigar o culpado e não para premiar o inocente.

A grande habilidade desse sábio muçulmano consistia em descobrir nas ações mais comuns e
simples da vida ofensas graves aos princípios sagrados o islamismo. Há um pensamento famoso do
juiz Saan que alcançou triste popularidade e bem traduz o exagero com que procurava interpretar o
Livro Sagrado; “Vejo em cada letra do Alcorão uma censura; em cada palavra, uma ameaça; em
cada linha, um castigo; e em cada período, uma sentença de morte!”.

O juiz Karim (Allah o tenha em sua glória!) era, na sua maneira de julgar os homens, exatamente o
contrário de seu colega. Tolerante em extremo, muito inclinado à benevolência e ao perdão,
procurava nos versículos famosos do livro de Allah interpretação que pudesse atenuar a culpa dos
réus. As sentenças do grande ulemá Karim Abul Fadl, ditadas pela mais pura bondade, eram sempre
justas e sábias.

O sultão Harun-al-Raschid, quando queria resolver com segurança e absoluta justiça sobre qualquer
caso, procurava conhecer previamente a opinião de Saan e a de Karim. Depois de tudo ouvido e
pensado, o califa tomava a decisão que lhe parecia mais conforme à justiça e à razão.
Resolveu, pois, o poderoso monarca ouvir a opinião dos dois ulemás e ordenou que cada um deles
dissesse ali mesmo, diante de todos, que recompensa ou castigo mereciam, pelo proceder que
tiveram, o mercador Salin, o peregrino Halef, o judeu Isaac, a velha Fátima e o rico Omar Chahi.

Determinou igualmente o califa que as sentenças fossem proferidas com clareza, de modo que
pudessem servir de ensinamento e aviso a todos os súditos muçulmanos.

Em primeiro lugar devia falar o juiz Saan.

FEZ-SE no grande e riquíssimo divã profundo silêncio. Todos os olhares convergiam ansiosos para o
magistrado famoso, de cuja decisão dependia a sorte e até a vida de várias criaturas. Como iria o
velho juiz — severo cumpridor da lei — julgar o peregrino? Que diria ele do judeu Isaac? Como
interpretaria o procedimento generoso do cádi?

Depois de meditar algum tempo com os braços cruzados sobre o peito, o juiz Saan inclinou-se
respeitoso diante do sultão e disse:

— Sou forçado a declarar, ó Emir dos Crentes, que analisei com cuidado as ações praticadas pelos
súditos trazidos à vossa presença por causa do mendigo Hassan-el-Masquim. Posso garantir — com
absoluta certeza — que nenhum deles praticou ação digna de recompensa ou feito que possa
merecer elogio.

O juiz Karim, adiantando-se em seguida, disse respeitoso com voz clara e pausada:

— Allah iabarak fama sidi! (Deus conserve a vida preciosa ao nosso rei!) Devo dizer, ó Rei dos Reis,
que esmiucei com cuidado o procedimento dos quatro súditos que zeram com o velho Hassan
trocas tão singulares. Todos — segundo pude concluir — se zeram merecedores de recompensa e
de justos encômios.

Embora esperada, aquela divergência radical entre os dois juízes causou profunda impressão. Onde
o juiz Saan via motivo para castigo, o juiz Karim — guiado pela luz da bondade — encontrava
altruísmo e valor. O grão-vizir Giafar fez soar fortemente o gongo e declarou solene:

— Por ordem do nosso amo e senhor, o califa Harun-al-Raschid, Emir dos Crentes, vai ser julgado o
mercador Salin Mutalak, de Mossul.

O mercador Salin ajoelhou-se humilde aguardando resignado a sorte que lhe seria destinada. E,
diante do profundo silêncio que reinava no deslumbrante salão, o juiz Saan assim justicou a sua
sentença:

— O mercador Salin Mutalak deu ao mendigo da mesquita uma moedinha de cobre que encontrara
pouco antes no chão. Conforme declarou, ignorava o verdadeiro valor da moeda. Deu-a, portanto, ao
mendigo na convicção de que a moeda nada ou muito pouco valia. Se uma pessoa dá a um pobre
um pedaço de pedra de rua ou um punhado de areia do deserto não está praticando ato de
caridade. E isto por que? Porque dá a um necessitado um objeto que não tem valor algum. É este
exatamente o caso de Salin Mutalak: deu a um mendigo uma moeda que, a seu ver, nada valia. E,
tanto assim, que ao ouvir a observação do mendigo, Salin replicou sem hesitar: “Se não queres
essa moeda, procura dá-la de presente à primeira pessoa que passar por ti”, querendo, com essa
advertência irônica, acentuar que o velho Hassan podia passar para as mãos de outrem a
moedinha, na certeza de que nada perderia ao desfazer-se dela. Tendo assim provado claramente
que o mercador Salin Mutalak, além de faltar ao dever da verdadeira esmola, procurou humilhar um
infeliz mendigo que lhe estendera a mão, julgo que ele deve ser condenado a vinte chibatadas e
uma multa de cinquenta dinares.

O exagerado rigor do magistrado caía, mais uma vez, impiedosamente, sobre um infeliz muçulmano.

— A sentença do juiz Saan — declarou o califa — parece-me justa e perfeita. Vejamos agora como
esclarece e justica o juiz Karin o seu modo de pensar.

Ao ouvir tais palavras, o bondoso Karim Abul Fadl — o grande sábio — assim falou:
— O mercador Salin Mutalak deu ao mendigo Hassan uma moedinha de cobre que encontrara no
caminho. Era, porém, conforme declarou, o único dinheiro que levava naquela ocasião. Ora, o valor
da esmola — conforme ensina o nosso santo profeta Maomé (com ele a oração e a glória!), não se
mede pelo valor da quantia data, e sim pela intenção daquele que pratica o ato de caridade. Tanto
assim que, ao ouvir a ingrata exclamação do mendigo, o mercador Salin aconselhou-o a que desse
a moedinha à primeira pessoa que encontrasse. Quis ele, com tais palavras, mostrar ao velho
Hassan que o pobre não deve ser ingrato para com aquele que o auxilia e que a mesma moedinha,
apesar de insignicante, poderia ser para outra pessoa uma peça de alto valor. Os fatos posteriores
provaram que era profundamente verdadeiro e exato o conselho dado pelo mercador. Aos olhos do
peregrino Halef Khalid, por exemplo, a moedinha perdida era uma preciosidade. Penso, portanto,
que o mercador Salin Mutalak, além de praticar o ato sublime da caridade (dando a um velho todo o
dinheiro que possuía), proporcionou ao mendigo Hassan uma sábia e profunda lição de moral. Julgo
(Allah, porém, é mais sábio, mais justo e mais clemente!), julgo que o mercador Salin Mutalak deve
receber um trajo de honra e uma recompensa de dez dinares em ouro.

O sultão Harun-al-Raschid, movido à generosidade, concordou em última instância com a sentença


do juiz Karim. Por sua ordem, o tesoureiro do palácio entregou imediatamente ao mercador Salin
Mutalak a quantia de dez dinares e um belíssimo trajo de honra. O mercador, agradecido, beijou a
terra junto aos pés do califa. A todos causou grande alegria o ato de magnanimidade do soberano
de Bagdá.

Foi, em seguida, anunciado pelo grão-vizir Giafar que ia ser julgado o peregrino Halef Khalid, de
Basra. O juiz Saan — a quem cabia a vez de se pronunciar sobre o caso — assim o fez:

— O peregrino Halef Khalid, ó Rei dos Reis, ao entrar na mesquita de Osmã foi surpreendido,
conforme declarou, pelo ato de um velho e sórdido mendigo, que lhe veio ao encontro para
oferecer-lhe espontaneamente uma moeda rara e altamente valiosa. Que fez o peregrino? Recebeu
a moeda rara e, tomando de sua bolsa outra moeda de prata, entregou-a ao velho Hassan do mesmo
modo como pagaria a um mercador no bazar das quinquilharias de Mossul. Além do pecado da
ingratidão  — ao esquivar-se a graticar o ancião que lhe oferecera amavelmente a moedinha
lendária — deixou o mercador Halef de praticar a esmola. Assim sendo, julgo que o peregrino Halef
Khalid, que tem (como reconheço) a seu favor a circunstância de se achar em peregrinação, deve
ser, apenas multado em vinte dinares e obrigado a ouvir publicamente uma enérgica censura, que
deverá ser proferida pelo imã mais antigo da mesquita de Osmã.

Ao ouvir a sentença do grande juiz, disse o califa:

— Parecem justas as tuas palavras, ó Saan. Quero, porém, ouvir o que pensa sobre o caso o juiz
Karim.

Sendo assim autorizado a falar, o famoso ulemá tomou a palavra.

— Ao entrar descuidado na mesquita, deparou-se ao peregrino Halef Khalid um velho mendigo que
lhe estendia a mão, oferecendo-lhe uma moeda. Ao examinar essa moeda, vericou Halef Khalid que
se tratava de uma peça histórica de muito valor. Recebera-a dando em troca, ao mendigo, o justo
valor da lendária moedinha. Procedeu, portanto, com honestidade. Certo, como estava, de que
Hassan ignorava o valor da moeda, podia, se quisesse, dar em troca duas ou três moedas de cobre.
Não. Não procedeu assim. Pagou ao velho Hassan como pagaria a um mercador ou a um tracante
do suque de Bagdá. E por que comprou Halef Khalid a moedinha a Hassan? Foi unicamente para
auxiliar o velho mendigo da mesquita. A aquisição de um objeto de que não precisamos é um modo
discreto de auxiliarmos os desamparados que, por timidez, não esmolam. Se, depois de efetuada a
transação desse Halef Khalid uma graticação ao pobre, procederia indelicadamente e poderia
ofender ou humilhar o infeliz Hassan. Não devemos nunca menosprezar aqueles que se mostram
bondosos e simples. Acho, portanto, que o peregrino Halef Khalid se houve com honestidade e
provou ser generoso e delicado. Um homem que possui tais qualidades merece sempre a nossa
amizade e admiração. Julgo (Allah é mais sábio, mais justo e mais clemente!), julgo que o bondoso
Halef Khalid — o peregrino –, pela sua maneira honesta e digna de proceder, merece como
recompensa um trajo de honra e um auxílio de vinte dinares de ouro.
Em denitivo concordou o sultão Harun-al-Raschid com a opinião do juiz Karim. Ao peregrino Halef
Khalid foi logo entregue a valiosa recompensa de que se zera merecedor.

Giafar, o grão-vizir, declarou, então, que ia ser julgado o judeu Isaac BenMoab. Esperavam todos
ansiosamente a sentença terrível do juiz Saan. Era certo que esse magistrado pediria para o infeliz
Isaac a pena de morte.

E como iria o juiz Karim justicar o caso da moeda falsa?

Saan Ben-Rammah, tendo na mão um exemplar do Alcorão, pronunciou com rmeza, sem a menor
hesitação, a seguinte sentença:

— SINTO-ME, ó Emir dos Crentes, obrigado a declarar, antes de tudo, que considero o
procedimento do judeu Isaac Ben-Moab como um dos mais torpes e mais criminosos de
quantos tenho apreciado. Esse homem recebeu de um pobre mendigo uma moeda de
prata e deu-lhe, em troca, dinheiro falso. Praticou, a meu ver, crime gravíssimo contra o
Islã, pondo em circulação moeda falsa. Revelou possuir caráter baixo, pagando o bem
com o mal, pois sujeitava o velho Hassan a ser preso como falsário. Praticou roubo,
dando a entender que comprava a moeda de prata por outra mais valiosa. Nestas
condições, o judeu Isaac Ben-Moab deve ser castigado como falsário e como ladrão.
Ladrão, deve ter a mão direita cortada; falsário, deve ser enforcado em praça pública,
conforme determinam claramente as leis do país.

Ao ouvir tais palavras, o sultão exclamou:

— Essa sentença é sábia e justa. Estou certo de que ela expressa rigorosamente a
verdade e não vejo como poderá alguém discrepar de um julgamento que se firma em
tão sólidas razões.

Cabia a vez de falar ao erudito Karim. O bom juiz adiantou-se alguns passos e,
depois de prostrar-se humilde aos pés do califa, exclamou:

— Peço perdão a vossa majestade, ó Rei do Templo, mas não posso concordar com a
sentença do ilustre e íntegro Safian. Penso mesmo que, se Vossa Majestade mandar
castigar o judeu Issac Ben-Moab, praticará grande injustiça. Devemos ser justos,
principalmente para com os estrangeiros que vivem e trabalham em nosso país.

— Injustiça? — exclamou Al-Raschid. — Como pode haver injustiça em castigar-se


um sujeito que é, a um tempo, falsário e ladrão?

— Há injustiça, ó Emir dos Crentes — continuou o sábio Karim com afável serenidade —
porque o infeliz Isaac Ben-Moab não é falsário nem ladrão. É, ao contrário, um dos
homens mais generosos e honestos que tenho encontrado. E Posso prová-lo, analisando
aqui, diante de Vossa Majestade, o procedimento que ele teve para com o mendigo
Hassan!

E, depois de pequena pausa, rompendo o profundo silêncio gerado pela ansiedade e


pelo espanto que dominava o grande salão, o famoso ulemá começou:

— O judeu Isaac Ben-Moab, ao passar pelo mesquita de Osmã, ficou grandemente


surpreso ao se lhe deparar um mendigo, que lhe oferecia valiosa moeda de prata. “É um
infeliz demente que tem a singular mania de dar aos desconhecidos as moedas que
recebe das pessoas caridosas”, pensou. E, nessa convicção, Isaac Ben-Moab resolveu
aceitar a moeda com que Hassan o preseteava, dando-lhe em troca a única moeda que
possuía: moeda falsa, sim, mas que lhe servia de talismã e que estava há mais de dois
anos em seu poder. Não se tratava, portanto, de um falsário. Um falsário, ó rei, não
conservaria dois anos uma moeda falsa em seu poder.
Tratava-se de um homem caridoso, que deu a um desafortunado, que tinha como louco, um
talismã a seus olhos valiosíssimo pois seria capaz de restituir ao infeliz mendigo o bem do
juízo perdido. Se ele não fosse bom e caridoso, não daria coisa alguma ao velho Hassan, visto
como este, em troca da moeda de prata, nada exigiu. Restituindo-lhe a razão, com a ajuda do
talismã, que ele recebera de um muezim, evitaria que com seus acessos futuros viesse o
velho praticar violências contra os transeuntes descuidados, muito embora corresse o doador
o risco de ser acusado de ladrão e falsário, além de perder os preciosos favores da
excepcional moeda. Isaac Ben-Moab não é, portanto, um criminoso; longe disso — é um
homem bom e digno, porque se compadeceu da triste situação de um mendigo (que supunha
ser um infeliz e demente), dando-lhe um talismã valioso que possuía. Julgo, portanto (Allah,
porém, é mais sábio, mais clemente e mais justo!), que o judeu Isaac Ben-Moab, pelo
proceder caridoso que teve, procurando curar um enfermo — com risco de sua liberdade e de
sua vida e sacrificando um talismã — merece a recompensa de mil dinares de ouro.

Mal tinha o juiz Karim proferido a sentença, ergueu-se o poderoso califa de Bagdá e
exclamou:

— Mach Allah! Extraordinária coisa é esta! Estou agora convencido de que o judeu
Isaac não é culpado. Este inteligente e sábio juiz acaba de provar que Iassac Ben-
Moab foi generoso e honesto. Deu ao mendigo não uma moeda falsa, mas um talismã
de alto valor.

E o grande Al-Raschid ordenou que fosse entregue ao piedoso Isaac Ben- Moab,
como recompensa, a quantia de mil dinares-ouro e ficasse dispensado, durante dez
anos, de pagar qualquer imposto ao governo muçulmano.

Foi em seguida anunciado pelo grão-vizir Giafar que ia ser julgada a velha Fátima, da
tribo dos Anazeh. O sábio magistrado Safian, convidado a proferir sua sentença,
formulou-a nestes termos:

— Devo dizer, ó Comendador dos Crentes, que a meu ver essa pobre anciã, que
realizou com o mendigo troca tão descabida, não passa de uma insensata e de uma
ambiciosa. Dando crédito a um sonho, veio do longínquo oásis em que vive perto de
Kerbela, para alcançar tesouro em Bagdá. Só mesmo uma demente poderia praticar
semelhante proeza. Essa pobre mulher ignora, com certeza, que não existe força ou
poder senão em Allah, o Altíssimo. Se ela tivesse de achar algum tesouro, — se tal
coisa estivesse escrita (Maktub!) no livro do destino — o tesouro iria a Kerbela cair-lhe
nas mãos. Penso, portanto, que a velha Fátima não passa de uma tola, uma cobiçosa
vulgar que tudo sacrificou por causa de um sonho enganador. Assim sendo, acho que
ela, se não merece castigo, não fez jus a recompensa alguma.

— Tens razão, ó Safian — exclamou o sultão. — A mim tambémme parece que ssa
pobre mulher procedeu como uma insensata, entregando ao velho Hassan, em troca
de uma moeda, todo o dinheiro que possuía. Vejamos, porém, se assim pensa também
o bom Karin, sempre propenso a reconhecer o mérito e o valor das ações alheias.

Ao ouvir tais palavras, o juiz Karim inclinou-se respeitoso diante do califa:

— Sou forçado a declarar, ó rei afortunado, que não considero a velha Fátima uma
insensata. Julgo-a, ao contrário, mulher dotada de elevas qualidades morais. Por que
veio ela a Bagdá? Unicamente por causa do sonho que teve. E que é o sonho? O sonho
é uma das manifestações de Deus. O sonho é a vida. Logo, essa boa anciã, na certeza
de que obedecia aos sábios desígnios do Onipotente, veio de Kerbela até Bagdá em
busca de um sonhado tesouro. Ora, mulher que revelou tão grande fé na vontade do
Altíssimo é crente sincera do Islã. Ao receber a moeda do mendigo, a velha Fátima
deu-lhe uma bolsa cheia de ouro. Agiu com elevada generosidade. Poderia ter dado ao
velho Hassan uma ou duas peças de ouro; ao ver, entretanto, a inscrição da moeda,
deu-lhe todo o dinheiro que levava. Que procurou ela retribuir? Procurou retribuir o
suposto benefício da inscrição. Essa inscrição, que se encontra na moeda, é a
seguinte: “O princípio de toda sabedoria é o temor de Deus”. Recompensando o
mendigo, a inteligente anciã quis provar que tinha encontrado um tesouro: esse
tesouro estava simbolizado naquela verdade sublime de Salomão. Essa mulher
proporcionou aos crentes uma profunda lição de moral e de religião. O tesouro que ela
pretendia descobrir é muito maior que todos os bens terrenos. Penso, portanto, que a
boa Fátima — já pela sua avançada idade merecedora do nosso respeito e atenção —
deve receber um prêmio de cem dinares de ouro e vinte camelos.

Mais uma vez Al-Raschid se viu dominado pela opinião do juiz Karim. Por uma ordem
dada, foram imediatamente entregues à anciã de Kerbela os presentes de que se
fizera credora. Ordenou também o sultão que igual recompensa recebesse o bom e
piedoso mestre-escola que havia auxiliado e oferecido assistência à velha Fátima.

Essa decisão do grande califa causou a todos magnífica impressão e fez aumentar a
confiança e a felicidade de seus numerosos súditos.

Declarou em seguida o grão-vizir Giafar que ia ser julgado o xeique Omar Chafihi.

Tocando-lhe a vez de falar, assim começou o douto e severo Safian.

DEVO dizer, ó Emir dos Crentes, que o xeique Omar Cafihi, quando acreditou ver na figura
grotesca e suja do velho Hassan a pessoa do nosso glorioso califa, cometeu verdadeiro crime
contra o prestígio e a honra do califado. Omar Chafihi teve a coragem de confessar que dera a
valiosa esmeralda ao mendigo na convicção de que estava presenteando o pródigo califa de
Bagdá. É um bajulador leviano que de Allah não recebeu, certamente, os dons preciosos da
inteligência. Devia ele ter percebido logo se fosse mediocremente perspicaz — que o velho
Hassan se desfazia da bolsa cheia de ouro movido pela ambição de receber, como já lhe
havia acontecido das outras vezes, presentes mais valiosos. Penso, portanto, que Omar
Chafihi, além de ter formado um conceito insultuoso do nosso califa, confundindo-o com o
mais sórdido mendigo de Bagdá, provou ser um vil adulador, indigno da amizade do nosso
soberano. É um homem que não pode merecer a confiança de um chefe de estado; ele seria
capaz de deixar nas mãos do primeiro intrujão que encontrasse, julgando dirigir-se ao grão-
vizir ou ao cádi, a mensagem mais secreta ou o documento mais valioso. Pela sua maneira de
proceder, julgo pois que o xeique Omar Chafihi deve ser condenado a vinte dias de prisão e
destituído das funções do governo de Thous.

— Por Allah! — exclamou o sultão. — A tua sentença é justa, ó Safian! Esse xeique
teve a audácia de confundir-me com um mendigo, fazendo assim da minha pessoa um
juízo pouco lisonjeiro. Bem merece o castigo. Não obstante, vejamos o que pensa
sobre o caso o juiz Karim.

O sereno magistrado, ao perceber que lhe cabia falar, assim exarou o seu juízo:

— A meu ver, ó rei magnânimo, o xeique Omar Chafihi teve um procedimento nobre e
correto. Iludido pelas palavras de um escriba, julgou que o velho Hassan fosse o
Príncipe dos Crentes, disfarçado em mendigo. E nessa convicção, deu ao pobre da
mesquita o valioso presente que trazia especialmente para o nosso monarca. Não vejo
nesse ato do xeique Omar Chafihi nada que possa ofender ou melindrar a honra e o
nome do nosso califa. Se ele admitiu ver o califa de Bagdá na pessoa de Hassan, fez do
rei um conceito elevadíssimo. Acreditou que o Comendador dos Árabes seria capaz (se
quisesse) de disfarçar-se tão bem a ponto de ser tomado por um verdadeiro e sórdido
indigente. Seria, a meu ver, o maior elogio que Omar Chafihi poderia fazer do nosso
príncipe, se dissesse a seus amigos da Pérsia: “O califa Harun-al-Raschid é tão hábil em
disfarçar-se que se torna irreconhecível sob os farrapos de um mendigo”. Devo ponderar
ainda que o xeique, ao dar a esmeralda ao velho Hassan, revelou ser correto e delicado:
sem deixar perceber que reconhecera o Emir dos Crentes, não quis ele conservar por
mais tempo em seu poder o valioso presente. Entendo, portanto, que, se não mandar
recompensar generosamente o xeique, praticará negra injustiça e deplorável
ingratidão. Injustiça, porque o rico Chafihi nada fez para merecer castigo; ingratidão,
porque ele se mostrou delicado trazendo da Pérsia valioso presente que, pela força
invencível do destino, chegou, como devia, às mãos daquele a quem era destinado.

Harun-al-Raschid, que era bom e justo, viu-se forçado a confessar que fizera juízo
errado acerca do proceder do xeique. E determinou imediatamente que fosse entregue
ao esforçado governador persa um traje de gala riquíssimo.

Proferida a sentença sobre o xeique, o sultão Harun-al-Raschid dirigiu-se à assistência:

— Muçulmanos! Estamos em presença de uma das mais extraordinárias aventuras que


até agora ocorreram no mundo. E como foram já devidamente recompensadas as
pessoas que tomaram parte nesta singular história, quero dar também uma
recompensa ao velho Hassan El-Masquim, ao qual devo a bela esmeralda que tenho
agora em meu poder.

— Determino, pois, — continuou sultão — que ao velho Hassan seja dado o palácio
denominado El-Jamal, de minha propriedade, que fica na beira do Eufrates; dez
escravos, vinte camelos; três caixas de joias; sete trajes de honra e cinco mil dinares-
ouro. Recomendo, outrossim, que ao velho Hassan El-Masquim seja conferido o título
de Xeique do Califado e concedida a regalia excepcional de entrar a qualquer hora nas
dependências deste palácio.

O infeliz Hassan, diante da inexcedível generosidade de Harun-al-Raschid, ficou tomado


de tamanho pasmo que quase veio ao chão desmaiado. Era ele, na verdade, quem
recebia a recompensa maior. E aquela riqueza prodigiosa — palácios, joias, ouro,
escravos — viera-lhe às mãos por causa da pequenina moeda que lhe dera o mercador
ao entrar na mesquita.

— Bismillahi ahmair rrahim! (Em nome de Deus, Clemente e misericordioso!) Louvado


seja o Onipotente criador de todos os mundos. A misericórdia é em Deus atributo
supremo. Nós te adoramos, Senhor! E te imploramos a tua divina assistência! Conduze-
nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que são esclarecidos e abençoados
por Ti!

Todas as pessoas que se achavam no grande divã de harun-al-Raschid ficaram


comovidas diante da sinceridade com que o velho Hassan, repetindo os versículos do
Livro Sagrado, agradecia a Deus os bens superabundantes recebidos das mãos
generosas do califa de Bagdá.

Harun-al-Raschid chamou os escribas mais hábeis e famosos da corte e


determinou-lhes que a singular aventura de Hassan El-Masquim fosse escrita com
letras de ouro e guardadas cuidadosamente nos arquivos do califado.

E esta história terminaria por aqui se Giafar Al-Barmaki, o grão-vizir, não o impedisse.

— Perdoai, ó Emir dos Crentes, a minha ousadia. Há, porém, nesta singular aventura,
ocorrida com o velho Hassan, um ponto obscuro que ainda não cheguei a esclarecer.

— Qual é, ó Giafar? — perguntou o califa. — Que achas ainda de estranho nesta


história?

— A minha dúvida é a seguinte: — respondeu Giafar — ouvi que o velho Hassan trocou
uma moeda de cobre por outra de prata; esta por um dinar de ouro; pelo dinar recebeu
da anciã uma bolsa cheia de ouro, que deu, afinal, ao xeique, para receber em
recompensa uma esmeralda. Todas essas trocas foram perfeitamente justificadas.
Achei-as todas simples e razoáveis, sabidos os motivos de cada uma. O que, porém,
não posso compreender nem justificar é a última troca que Hassan acaba de fazer.

— Que troca foi essa? — indagou pressuroso o califa sem dissimular o seu assombro.
— Além das que se discutiram, não vejo outra qualquer transação que o velho El-
Masquim pudesse ter realizado.

— É bem simples, ó Emir dos Crentes, — replicou o grão-vizir. — O bom Hassan deu a
Vossa Majestade uma esmeralda e recebeu um palácio, dez escravos, vinte camelos
e três caixas de joias, títulos e honrarias excepcionais. Essa troca, ó califa, tão
singular, — de uma joia por uma riqueza fabulosa — parece-me inconcebível. Creio
mesmo que os grandes ulemás aqui presentes não saberiam justificá-la.
Riu-se o soberano ao ouvir a judiciosa observação de seu digno ministro. E, como tivesse por
hábito elucidar qualquer dúvida que lhe fosse apresentada, falou desta sorte:

— Dei, é verdade, ao simplório Hassan presentes tão valiosos que seriam suficientes para
contentar o príncipe mais ambicioso do Islã. Revela, porém, acentuar que Hassan não me
deu apenas uma esmeralda.
Proporcionou-me também o conhecimento de uma encantadora história, cheia de curiosos
episódios, de grandes verdades, de profundos ensinamentos, de sábias sentenças, história
maravilhosa capaz de recrear, no futuro, as pessoas bem dotadas e inteligentes, quando se
dispuresem a meditar na sabedoria infinita que nos provém da longa experiência do passado.

Glória! Glóira, pois, a Allah, Onipotente e Onisciente, criador do céu e da terra, o eterno Senhor
dos mundos visíveis e invisíveis!

FIM

(Malba Tahan, do livro “Céu de Allah”.)

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