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A vela lançava sombras dançantes sobre minha máscara enquanto,


sentada à mesa de madeira desgastada, desenrolei cuidadosamente a
faixa de pano que envolvia meu braço, expondo a pele cravejada de
cicatrizes de confrontos passados. A ferida recente, cortesia de uma
criatura tão refinada quanto um punho de troll, clamava por atenção.
No entanto, eu não tinha muito tempo. A lua estava alta e em breve eu
estaria caçando outra, provavelmente tão desagradável quanto a última.
Rapidamente, apliquei algumas gotas da substância alaranjada
que borbulhava em seu frasco e cobri o braço com a faixa outra vez. A
porta rangeu suavemente, revelando a figura peculiar de Argul, com sua
corcunda e pele esverdeada. Seu único olho, um orbe amarelo, piscou em
minha direção, espreitando por trás de uma mata de sobrancelhas
espessas.
— Senhora, permita-me trazer um pouco de água para limpar
essa ferida? — ofereceu, com uma voz áspera, mas carregada de
sinceridade.
— Não é necessário, Argul — recusei, levantando-me. — Estou
de saída.
Notei quando seu olho examinou as manchas de sangue no tecido
em meu braço, à medida que se inclinava para descartar o frasco vazio
que deixei sobre a mesa.
— Foi feio, senhora?
Neguei com a cabeça.
— Quem poderia prever que um encontro com um ogro seria tão
acolhedor? Total surpresa — comentei com um frio descaso, como se a
violência fosse apenas um hábito monótono.
Contudo, ao perceber a preocupação em seu olhar, abri um
sorriso leve. Argul havia se tornado mais do que um simples criado, ele
era o que eu tinha de mais próximo de um confidente. Sempre presente
para momentos de cuidado após cada confronto, além do auxílio nas
funções domésticas enquanto eu estava fora.
— Só mais uma marca para a coleção. — Dei de ombros, ao que
ele assentiu com um sorriso torto. — Vejo você amanhã, estou indo para
mais uma dança com as aberrações mágicas.
Fingi erguer minhas saias invisíveis com um floreio e me dirigi à
porta.
A noite envolveu a casa em um manto de sombras enquanto eu
saía, fechando a porta atrás de mim. Ruas estreitas e empedradas se
estendiam como veias escuras através do coração do reino, iluminadas
apenas por lanternas trêmulas e pela luz pálida da lua.
À medida que a escuridão se intensificava, algumas figuras
encapuzadas se desviavam do meu caminho, seus olhares fugidios
revelando uma curiosidade muda por trás das máscaras. Eu detestava o
caminho até a Taberna da Lua Enfeitiçada, embora estivesse
acostumada a ser direcionada para lá. Localizada nos subúrbios da
cidade principal, era conhecida por atrair feiticeiros, bruxos e
alquimistas, que ali se refugiavam devido a um aspecto um tanto
particular do lugar... Quando a neblina parecia brotar das pedras e as
trevas se tornavam mais densas, era exatamente nesse ponto que
sabíamos que a taberna estava próxima.
A Taberna da Lua Enfeitiçada só se revelava sob o luar. Era
como se a magia que a envolvia estivesse intrinsecamente ligada aos
raios prateados que a lua derramava sobre ela.
Bastava a reles chama de uma vela nas imediações, e a taberna
desaparecia como se nunca tivesse existido. Uma lufada de vento suave
apagaria o brilho tênue da luz da lua filtrada pelas janelas,
transformando o lugar em uma miragem fugaz. Quem quer que tivesse
acendido a luz, fosse um viajante perdido ou um curioso, veria apenas o
vazio onde a taberna um dia esteve. As sombras pesadas que
preenchiam as ruas engoliam o espaço onde o refúgio mágico existia sem
deixar rastros.
Assim, depois de tatear pelo caminho sob o olhar cúmplice da lua,
avistei a taberna emergir das sombras, um santuário encantado e
impenetrável para aqueles que sabiam onde buscar.
O teto de colmo, inclinado de forma modesta, dava à taberna uma
aparência acolhedora e discreta. Ao longo da estrutura, pequenos
cristais translúcidos estavam embutidos, capturando a luz do luar e
transformando-a em uma suave luminosidade que banhava a entrada. A
porta exibia um entalhe sutil de uma lua crescente, como um convite
silencioso.
Ao empurrá-la, fui recebida pelo zumbido sutil de conversas
abafadas e o aroma intrigante de poções e bebidas exóticas. Minha
atenção foi imediatamente capturada ao centro do salão, onde um
dançarino habilidoso movia-se entre feixes de luz lunar. Carregava uma
máscara negra e ondulava lenços de organza prateados, criando
sombras que pareciam ter vida própria. A dança era um espetáculo de
contorções e movimentos graciosos, proporcionando uma experiência
hipnotizante. Desviei o olhar rapidamente. Sabia como todos ali eram
mestres em manipular a magia por trás das sombras e estava ocupada
demais para me permitir a possibilidade de ser fisgada.
E, como se aquele lugar já não me parecesse recheado de perigos
o suficiente, meus olhos miraram as criaturas que definitivamente eram
capazes de infundir o caos com sua ópera estelar. Sideríadas. Uma
espécie perigosa de fadas... Bem, mais perigosa do que o comum. Essas
criaturas etéreas possuíam pele que parecia ser feita de constelações
vivas e os cabelos brancos como o luar. Cada uma delas era única,
exibindo padrões de estrelas intrincados pelo corpo. Seus cantos eram
melodiosos e celestiais, porém capazes de gerar tormentas mentais,
inspirar visões ilusórias de outros mundos e até mesmo moldar a
realidade ao redor delas.
Geralmente, os feiticeiros apreciavam mergulhar na viagem
cósmica e perigosa orquestrada pelas fadas. Alguns, inclusive,
capturavam-nas para desfrutar da inspiração que podiam proporcionar.
Eu, por outro lado, gostaria de ficar o mais distante possível delas e de
qualquer outra magia capaz de afetar minha lucidez.
Em Findara, a lucidez era a única luz que guiava através das
sombras, a linha tênue entre sobreviver e sucumbir.

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