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CENAS BRASILEIRAS
Um Documento Inédito — A Presença de Kipling no Brasil
Tradução de
Pinheiro de Lemos
(texto)
e Geir Campos
(poemas)
ra
GDITORFV R€CORD RECORD
Título original inglês: B R A Z I L I A N SKETCHES
R. Magalhães Júnior
(Da A c a d e m i a Brasileira de Letras)
de A rpoador e Ipanema
Rio
Canção das Bananas
4*
Das suas agonias forçadas, nasce a "energia", que todos sabem natu-
ralmente explicar, mas de que ninguém sabe coisa alguma, exceto que a
mesma deve ser vigiada. E quando, graças às Rodas Pelton, pelas quais
não é responsável, A b u B i j l ' desenvolve a energia elétrica de que é capaz
normalmente, isto é, para que possa ser t r a n s m i t i d a a tarifas mais baixas, é
represado e alteado de seis m i l para oitenta e o i t o m i l volts por meio de
" t r a n s f o r m a d o r e s " , que são esqueletos de pagodes chineses c o m carrape-
tas de porcelana.
Os t r a n s f o r m a d o r e s são colocados n o exterior das construções, de
m o d o que, se a " e n e r g i a " sobrecarregada sai dos limites, o escândalo é dis-
cretamente c o n t i d o entre paredes de concreto, e o óleo necessário à trans-
formação ( c o m o o t r i g o e o v i n h o p r o d u z e m estranhos resultados em ou-
tros p o n t o s ) pode ser esgotado imediatamente. T o d o esse processo é cha-
m a d o de "elevação da v o l t a g e m " .
O resto da história de A b u B i j l ' é tão simples q u a n t o a de A d ã o : T e n d o
criado essa força, o h o m e m consome t e m p o e energia em conservá-la den-
t r o dos limites. A s águas d o céu que descem das m o n t a n h a s não p o d e m
deixar de fazer as rodas g i r a r e m . A b u B i j l ' não pode deixar de criar
" e n e r g i a " e, p o r isso mesmo, é forçado a desenvolver u m a consciência.
H á u m andar tranqüilo neste edifício onde o r o n c o das águas liberadas
das rodas m a l é o u v i d o . A s luzes a q u i m u d a m de cor, caem números c o m o
n u m q u a d r o de hotel mas não p o d e m ser apagados. Os números sobem a
certas alturas e ali registram os seus máximos indeléveis. Governadores co-
m u n i c a m aos governados as concessões p e r m i t i d a s e que vantagens f o r a m
tomadas. A s f o r m a s mais grosseiras de pecado elétrico são marcadas em si-
lêncio e desaparecem. T u d o isso se destina a fazer que nada em t o d a a ins-
talação se arrogue p o r u m só instante o d i r e i t o de desprender-se das neces-
sidades da carga o u s o f r a u m acidente momentâneo e isso — aí é que está o
t o q u e i n f e r n a l — sem esperar que o Espírito Superior conserte as coisas.
Chama-se a isso de ciência! Mas, de vez em q u a n d o , as generosas tempes-
tades tropicais m o s t r a m o que realmente significa a "produção de ener-
gia".
A i n d a assim os homens e l a b o r a r a m " c a p t o r e s dos relâmpagos", que
c o m o t r a n s f o r m a d o r e s , estão d o l a d o de f o r a . M a s eu h a v i a n o t a d o nas pa-
redes de o u t r a construção manchas azuis m u i t o parecidas c o m as que os
raios d e i x a r a m certa vez em m i n h a casa. Espero, p o r t a n t o , que A b u B i j l '
às vezes se alegre c o m a visita dos seus c o m p a n h e i r o s que vão d a r u m a es-
piada.
Ele estava t o c a n d o o seu t r a b a l h o e n q u a n t o o observei e os telefones
dos seus senhores lhe d i z i a m q u a n d o havia necessidade de mais o u de me-
nos energia para m o v i m e n t a r bondes e trens em cidades distantes e u m a pe-
na n u m t a m b o r mostrava o que ele estava fornecendo. Nessa h u m i l d e posi-
ção, deixei-o "cego em Gaza", c o m o Sansão. D e n t r o em pouco, o u t r o s i r -
mãos serão acorrentados ao lado dele e a i n d a mais, se f o r necessário de-
pois. A usina de força f o i p r o j e t a d a para expandir-se c o m o u m a estante
m o d u l a d a sobre o r i o z i n h o espantado.
Fomos depois olhar as águas acima d o f i r m a m e n t o que parece tão bai-
xo acima de nós. Fomos içados para o a l t o da m o n t a n h a n u m b o n d i n h o su-
penso ao lado dos canos e t o d a a v i v i d a paisagem, caindo c o m o o f u n d o de
u m a caixa, f i c o u abaixo até que pudemos avistar a quente Santos e os seus
d i m i n u t o s navios seiscentos metros abaixo.
Disseram-nos que t i n h a m t i d o algumas dificuldades c o m aquela en-
costa depois de havê-la desmatado para o assentamento dos canos. Esta-
vam p l a n t a n d o no m o m e n t o milhões de eucaliptos para dar mais coesão ao
solo. Mas as f o r m i g a s t i n h a m gostado t a m b é m da nova árvore e estavam
pensando em matá-las c o m gases. Acrescentaram que, q u a n d o se começa
a i n t e r f e r i r c o m a natureza, não se pode mais parar.
Assim, o nosso b o n d i n h o f o i p u x a d o para as nuvens e t o d o o m u n d o
conhecido desapareceu. Desembarcamos n o vazio branco na beira de u m
c a m i n h o de concreto que fazia u m a c u r v a e se lançava n o espaço. U m mo-
t o r invisível a r f o u abaixo de nós. E r a u m g r u p o de homens despreocupa-
dos a c a m i n h o de São Paulo. Nosso b o n d i n h o c o n t i n u o u e nos levou mon-
tanha acima para a densa i n v i s i b i l i d a d e de nuvens mais espessas. À d i r e i t a ,
havia a s o m b r a de longas florestas. À esquerda, u m a claridade sinistra que
sugeria longas chuvaradas. O engenheiro estava u m p o u c o a b o r r e c i d o c o m
isso porque queria que víssemos a sua cadeia de lagos. Mas c o m o p o d e r i a
ser de o u t r a maneira? A serra detém e extrai chuva de todas as nuvens que
vêm d o mar e faz cair p o r a n o três metros e meio de água. Se não fosse is-
so, não haveria represa e, t a n t o q u a n t o nos interessava, não haveria mais
que uma lavanderia em ação. Os deuses estavam à p r o c u r a de efeitos mais
requintados.
A sombra de uma m i s t u r a d o r a de cimento de dez metros, que p o d e r i a
ter sido u m b l o c o de sienito para u m a estátua de Ramsés, surgiu d o espesso
nevoeiro e, quase n o mesmo instante, a terra se a b r i u n u m a t r i n c h e i r a de
u m vermelho violáceo que os homens lá e m b a i x o f a z i a m ainda mais funda.
E r a u m f l a n c o da represa. Estavam cavando para f i r m a r u m a ala de con-
creto da mesma. O u v i m o s o b a r u l h o chocalhante das águas que caíam d o
a l t o c o m o para c o r r o b o r a r a afirmação. A l i estava a represa, a menos de
cinqüenta metros. Q u a n d o estivesse p r o n t a , teria t r i n t a metros de a l t u r a .
Deram-nos todos os detalhes em metros cúbicos e quilômetros. A represa,
insensível a todos os elogios, t o r n o u a sussurrar, mas não se m o s t r o u , exce-
to p o r u m v i s l u m b r e de u m segundo de águas plúmbeas apartadas c o m o
u m a saia ao passar p o r u m a p o r t a .
T e n t a m o s o u t r o ângulo. A l i , o m u n d o t o d o descia a p r u m o c o m o u m a
parede. D a estátua de Ramsés se p r o j e t a v a u m a e n o r m e haste c u j o gancho
c o m a r o l d a n a pendia sobre o a b i s m o e por lá se perdia. Servia a u m a o b r a
em construção a b a i x o , mas não podíamos a d i v i n h a r em que p r o f u n d i d a d e .
Estávamos ali i n t e i r a m e n t e cegos. Podíamos o u v i r homens e ferramentas
em ação, b e m c o m o o perpassar da água na pedra, mas da própria represa,
que era o coração de t u d o , não nos chegava o m e n o r traço o u v i s l u m b r e ,
salvo o riso b a i x o de águas invisíveis que escapavam para a liberdade.
O engenheiro estava, pois, a b o r r e c i d o . Mas o t r a b a l h o dele até então
t i n h a sido r i d i c u l a m e n t e fácil. O platô n o alto da serra se afasta da costa
em pequenos m o r r o s que não são m u i t o bons para a a g r i c u l t u r a . T u d o o
que ele t i n h a de fazer era fechar o c o l o de certos vales c o m concreto e espe-
rar até que a precipitação de três metros e meio p o r a n o os enchesse. En-
q u a n t o t r a t a v a disso, e n c o n t r o u u m r i o e o seu sistema que seguiam o seu
curso pré-histórico para o sul até Buenos Aires. N o t a n d o que a bacia d o r i o
não era grande coisa, dragou-a e represou-a u m p o u c o e e n c a m i n h o u as
suas águas de cheia (pois era u m r i o temperamental) para as suas represas
e, através das suas Rodas P e l t o n para o pé d a serra e, depois, através da
planície, para S a n t o s — para leste e não para o sul. C r e i o que houve neces-
sidade de u m túnel o u dois. Mas, de qualquer m o d o , ele t e m agora uma re-
de de lagos e mares interiores ligados p o r seus encanamentos e c o m u m a
capacidade de i n f i n i t a expansão mediante o f e c h a m e n t o de novos vales. As
necessidades estão sempre em expansão à m e d i d a que São Paulo descobre
que pode fazer as coisas p o r si mesmo e mais u m a estrada de ferro é eletri-
ficada para que as greves nas minas de carvão inglesas não a venham fe-
( F o i o "Agência E s t a d o " , 1927) Usina Cubatão, da Light & Power, no caminho da cidade de Santos
char. E a coisa mais simples d o m u n d o é colocar alguns A b u B i j l ' a mais
nas suas prisões de concreto. D i z e m agora que p o d e m p r o d u z i r mais meio
milhão de cavalos só deste lugar e este é apenas u m dos lugares em v o l t a de
São Paulo que podem vender mais energia.
Mas esquecem que o mistério que agora anda para c i m a e para b a i x o
pelos fios poderá d a q u i a alguns anos ser t r a n s m i t i d o pelo ar para navios e
a indústria marítima será representada por peritos diante de painéis de ins-
trumentos, d i s t r i b u i n d o em ondas direcionais a energia c o n t r a t a d a por vá-
rias linhas de navegação. Nesse t e m p o , as tempestades dos mares serão tra-
duzidas em linhas ascendentes e descendentes nos indicadores. Nessa épo-
ca, os distantes comandantes se limitarão a regular a energia de que preci-
sam, do mesmo m o d o que os seus guinchos hoje t r a t a m os cabos de atraca-
ção.
Nessa época, que será a n u n c i a d a pelo h a r a q u i r i dos barões d o petró-
leo, o Brasil, c o m o seu p o t e n c i a l i l i m i t a d o de energia elétrica, venderá ele-
tricidade dos 25 graus de L a t i t u d e N o r t e aos 60 de L a t i t u d e Sul de ambos
os lados d o seu continente, até ao m e r i d i a n o 180 a oeste e a leste, até o ou-
t r o lado da árida África.
E x p l i c o t u d o isso ao engenheiro em breves palavras. Mas ele, que pas-
sou a v i d a fazendo coisas inconcebíveis, disse que eu era "visionário" e
c o n t i n u o u a falar do seu mísero meio milhão a mais de cavalos.
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