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CENAS BRASILEIRAS

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RUDYARD KIPLING

CENAS BRASILEIRAS
Um Documento Inédito — A Presença de Kipling no Brasil

Tradução de
Pinheiro de Lemos
(texto)
e Geir Campos
(poemas)

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GDITORFV R€CORD RECORD
Título original inglês: B R A Z I L I A N SKETCHES

Copyright (C) 1927 b y Rudyard K i p l i n g

Capa: retrato do autor em litografia por William Nicholson

Guardas: Rio de Janeiro: a "Cinelândia" na Praça Marechal Floriano, em 1928


( F o t o A. Malta, Col. G. F e r r e z )

Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela


D I S T R I B U I D O R A R E C O R D DE S E R V I Ç O S D E IMPRENSA S. A.
Rua Argentina 171 - 20921 R i o de Janeiro, RJ que se reserva
a propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil por ZEZ Programação Visual Ltda.


Sumário
Rudyard Kipling e o Brasil 11
A Viagem 19
Rio 33
O Pai dos Relâmpagos 49
Uma Criação de Cobras 65
São Paulo e Uma Fazenda de Café 79
Estradas de Ferro e Uma Subida de Seiscentos Metros 95
Um M u n d o à Parte 113
Rudyard Kipling
e o Brasil
No início do ano de 1927, o Brasil foi visitado por uma celebridade literária,
então no apogeu de sua fama. Rudyard Kipling, detentor, vinte anos antes, do
Prêmio Nobel de Literatura, pela primeira vez atribuído a um escritor de língua
inglesa. Na época de sua prerniação e na de sua visita ao Brasil, na última década
de sua existência, encerrada em 1936, aos 71 anos, a Inglaterra ainda era a maior
potência colonial do mundo. E Kipling, que fora o romancista e o poeta da domi-
nação britânica nas terras asiáticas, pôde cerrar os olhos na ilusão de que havia ce-
lebrado glórias perenes, ao exaltar o estoicismo e a coragem com que os ingleses
enveredavam por terras desconhecidas, entre gentes de costumes, línguas e crenças
estranhos, desconfiadas e hostis, arcando com os sacrifícios a que num de seus
poemas deu o nome de the w h i t e man's b u r d e n (o fardo do homem branco), isto
é, a sua missão civilizadora, que implicava na redução de tudo a um denominador
comum — o estilo de vida britânico.
Exaltando com fervor o Império 'inglês — a coroa da imperatriz fora aceita
pela Rainha Vitória em 1876, um ano antes da comemoração do jubileu de ouro
de seu reinado — Kipling estava exaltando a si mesmo e a seus pais. A si mesmo,
porque nascera como súdito britânico em Bombaim, em 1865, em pleno esplendor
imperial, e fora na índia, escrevendo sobre temas locais, que se fizera escritor e
começara a alicerçar sua fama. E a seus pais porque estes, pouco depois do casa-
mento, tinham deixado a Inglaterra para participar da incorporação da índia à
cultura ocidental. Seu prenome era uma expressão do saudosismo paterno. Fora
às margens do Lago Rudyard que John Lockwood Kipling, então um jovem pin-
tor, declarara seu amor a Alice Macdonald, filha de um pastor metodista, que o
acompanharia à índia e seria a mãe do futuro escritor. Na índia, o pai de Kipling
seria diretor de uma escola de arte industrial e, mais tarde, o diretor do Museu de
Belas-Artes de Lahore. Como geralmente acontecia com os filhos dos funcioná-
rios coloniais, Rudyard foi mandado, menino de apenas cinco anos e meio, para a
Inglaterra, a fim de ser ali educado, sob o cuidado de parentes, em cuja casa ficou
como pensionista. Aos 12 anos, doente dos olhos e ameaçado de cegueira, a mãe
foi buscá-lo em Southsea, onde vivia. Ficou, depois, internado num colégio inglês
até completar 17 anos, quando regressou à índia. Nessa viagem atravessou pela
segunda vez o Canal de Suez, de que a Inglaterra, a princípio simples co-
financiadora, com 20% do capital, era então a dona exclusiva.
Em pouco, entrava para a redação da G a z e t a C i v i l e M i l i t a r . Na Inglaterra,
começara a escrever versos dos quais enviava cópias aos pais, em letra caprichada.
Ficaram eles tão impressionados com o talento do filho que mandaram imprimir,
em Lahore, numa edição de apenas 50 exemplares, alguns desses versos, com o tí-
tulo de P o e m a s de U m E s t u d a n t e . Foi, pois, pela porta da poesia que Kipling en-
trou na literatura. Mas parecia tão desconfiado da validade de seus primeiros es- 13
forços que recorreu ao completo anonimato, ao publicar, em 1886, o livro de ve
sos humorísticos e satíricos Departmental Ditties. Embora anônima, essa obra
mereceu o interesse do famoso crítico Andrew Lang, o primeiro a louvar, na I
glaterra, o talento de Kipling, em artigo no qual lamentava que a identidad
autor desses excelentes versos não houvesse sido revelada. Muitos hoje pro
mam — e Graham Greene é um desses — que mesmo quando estiverem esqueci-
das, como já estão sendo, muitas das obras de Kipling, principalmente as ma
comprometidas com a dominação inglesa na índia, seus versos ainda serão lem
brados e publicados nas grandes antologias. Raras delas até hoje deixaram de i
cluir poemas como I f , Recessional, Mandalay, Danny Deever, Gunga Din, Song
of the Banjo e outros.
Depois de escrever poesias e reportagens, Kipling começou a se dedicar à f
ção em prosa, estampando na Gazeta Civil e Militar seus primeiros contos, entre
os quais The Phantom Rickshaw ficaria lembrado como de suas melhores produ-
ções do gênero. Os admiráveis contos iriam convertê-lo num escritor de ren
internacional, com a publicação, em 1887, de Plain Tales From the Hills, cuja pri
meira edição foi inteiramente absorvida na própria índia. Logo depois da publi
ção da segunda, o livro foi traduzido para o francês e, desde então, o nome de K
pling continuou a atravessar fronteiras. Chegaram-lhe convites para escreve
tras publicações e as casas editoras disputavam os seus escritos. Publicou um
rie de livros de contos, poemas e novelas. Entre os volumes de narrativas em pr
sa, Wee Willie Winkie, Soldiers Three, Under the Deodars, The Day's Work, The
City o f Dreadful Night, etc. Isso era alternado com livros de impressões de via
gens, pois a partir de 1889 seus horizontes se alargaram grandemente. Viajou a
vés dos Estados Unidos, da costa do Atlântico à do Pacífico. Foi ao Japão e, mai
tarde, à extremidade meridional da África. Fez amizade com Cecil Rhodes, o ú
mo grande aventureiro do imperialismo britânico, magnata dos diamantes e aut
do ousado projeto da estrada de ferro Cape Town — Cairo. Era hóspede de Rho-
des na África do Sul, em 1898, quando escreveu o famoso poema O Fardo do Ho-
mem Branco, com estes versos que ficariam famosos:

"Take up the White Man's Burden


Send forth the best you breed
Go bind your sons to exile
To serve the captives' need."

Mal acabara de escrevê-los, fez uma cópia e a enviou a Theodore Roosevelt


coronel de cavalaria que, voltando aos Estados Unidos como herói da guerra con
tra os espanhóis em Cuba, acabara de ser eleito Governador do Estado de Nova
York, de onde sairia Vice-Presidente dos Estados Unidos e não tardaria muito a ir
para a Casa Branca, após o assassinato do Presidente William McKinley, em 1901.
E seria o homem da big stick policy... Com as derrotas inglesas na guerra dos bôe-
res, a indignação de Kipling seria tão grande que escreveria versos contra "os im-
becis de flanela branca", tomadores de chá e jogadores de criquete, frívolos e
egoístas, que em vez de se adestrarem nas artes militares se dedicavam a esportes
menores e efeminados. E, com todo o seu imperialismo, escreveria também um
poema de indignado protesto, quando uma parte da esquadra inglesa, juntando-
se a uma parte da esquadra alemã, bloqueou e bombardeou a Venezuela, por não
estar amortizando em dia os empréstimos contraídos com banqueiros britânicos e
germânicos.
Logo depois, quando se reunia em Haia uma conferência internacionl para
examinar esse problema, sendo o Brasil representado pelo Senador Rui Barbosa,
recebia ele o Prêmio Nobel de Literatura, que aceitou, embora tivesse sistematica-
mente recusado outras honradas, inclusive o cobiçado título de "poeta laureado"
da Inglaterra, que ficara vago com a morte, em 1892, de Alfred Tennyson, autor
da Carga da Brigada Ligeira. A viagem de Kipling ao Brasil, vinte anos depois do
Prêmio Nobel, foi laboriosamente preparada. Antes mesmo do início, havia sido
anunciada por O Jornal, que iria publicar suas impressões do Brasil, e por outros
órgãos da nossa imprensa. Na sessão realizada pela Academia Brasileira de Letras
a 3 de fevereiro de 1927, o presidente Rodrigo Otávio comunicava a seus pares que
Kipling já havia embarcado na Inglaterra. Acrescentava que "o célebre romancis-
ta inglês se demorará alguns dias nesta cidade, sendo conveniente nomear-se uma
comissão para recebê-lo, realizar-se uma sessão solene em sua homenagem e
oferecer-lhe a Academia um banquete, no qual tomarão parte não só acadêmicos
como outros homens de letras". Carlos de Laet diz não ser contra os banquetes,
mas promovê-los a própria Academia de Letras era, no seu entender, uma inova-
ção. Consultado, concordou o plenário com a parte inicial da proposta: autorizou
a diretoria a receber e dar as boas-vindas a Kipling, sendo designado pelo presi-
dente, para saudá-lo, o acadêmico Gustavo Barroso. Rodrigo Otávio sugeriu que,
além da saudação oficial, fosse feita também uma breve saudação, em inglês, ao
visitante, com o que o plenário concordou.
O próprio presidente da Academia Brasileira de Letras compareceu ao de-
sembarque de Kipling, na noite de 13 de fevereiro. O escritor fez uma visita à Aca-
demia, no Petit Trianon, para agradecer a deferência, sendo acompanhado pelo
Embaixador da Inglaterra, o escritor e diplomata Ronald de Carvalho, represen-
tante do Ministério das Relações Exteriores, e ainda pelo escritor Antônio Batista
Pereira, futuro tradutor do romance Kim. Não havia diretores presentes, mas Ki-
pling expôs a finalidade de sua visita ao chefe da secretaria, deixando um ca
com palavras amáveis para ser entregue ao presidente. Rodrigo Otávio, inform
do desse gesto, logo procurou Kipling, no Hotel Glória, onde o escritor ingl
hospedara, a fim de combinar o dia em que ele seria recebido, em sessão pública
extraordinária. Kipling havia saído. Mas Rodrigo Otávio voltou, mais tarde
hotel, ficando combinado que a sessão seria no dia 2 de março, às 17 horas, como
toda a imprensa logo anunciaria.
Nesse dia, estiveram presentes 17 acadêmicos — Rodrigo Otávio, Antônio
Austregésilo, Augusto de Lima, Adelmar Tavares, Luís Carlos, Fernando Maga
lhães, Afonso Celso, Afrânio Peixoto, Aloysio de Castro, Coelho Neto, Const
cio Alves, Dantas Barreto, Goulart de Andrade, Gustavo Barroso, João Ribeiro
Laudelino Freire e Silva Ramos — além dos Embaixadores da Inglaterra, da Fran
ça, dos Estados Unidos e da Argentina, representantes do Presidente da Repúbl
ca, dos Ministros das Relações Exteriores, da Fazenda e da Justiça, do Prefeito
Distrito Federal e do Chefe de Polícia, além de numerosos diplomatas, membro
da colônia inglesa e jornalistas. O Ministro da Fazenda era Getúlio Vargas, fu
acadêmico. O Embaixador da França, Alexandre Conty, era também sócio corres
pondente da Academia, título que lhe fora dado em retribuição à sua atuação,
quatro anos antes, como intermediário na doação, pela França, do Petit Tria
a essa instituição literária. Havia ainda outra presença conspícua na sessã
viúva do' Presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos, então conhecend
o país que seu marido visitara pouco depois de deixar o poder e sobre o qual escr
vera em 1914 o livro T h r o u g h t h e B r a z i l i a n W i l d e r n e s s .
Rodrigo Otávio abriu a sessão e, logo, passou a discursar em inglês, saud
do não só Kipling como ainda a viúva Roosevelt. Falou depois Gustavo Barroso
analisando longamente a obra do visitante inglês, discurso ao qual, cumprind
veres de cortesia, mesmo sem nada ter entendido, Kipling respondeu, em comov
do agradecimento, recebendo calorosos aplausos. Como Gustavo Barroso o sa
dara em português, foi também em português que Kipling lhe enviou uma carta
de agradecimentos, em texto provavelmente traduzido pelo diplomata Ronald d
Carvalho, colocado pelo Ministro Otávio Mangabeira à sua disposição. Tal cart
dizia:
"Rio de Janeiro, 7 de março de 1927. /Meu caro Barroso./ Peço-lhe não me
julgar impertinente por ter a felicidade de exprimir-lhe o grande prazer que
causou o seu discurso na Academia. O que V. externou sobre o autor está fora de
discussão. Não mereço tanto. Mas na minha qualidade de homem de letras pud
sentir e apreciar, mesmo através dos véus de uma língua que, infelizmente, nã
nheço, o poder, a sutileza e a força do seu discurso, verdadeira obra de art
16 fundo e na forma./ Tenho, pois, para com V., de consciência, uma dívida de ad
miração, criadora de amizade fraternal./ Seu, muito sinceramente,/ R u d y a r d K i -
pling-" . ,„ C • /-
A Rodrigo Otávio, que o saudara em inglês, escreveu em sua própria língua,
dizendo-lhe que mal acabara de descer de Petrópolis e reconhecia que, antes de su-
bir para lá, devia ter-lhe escrito para significar-lhe quão profundamente apreciara
a honra que a Academia lhe tributara durante sua permanência no Rio. Pedia-lhe
que recebesse e transmitisse a seus colegas os mais vivos sentimentos de gratidão.
Acrescentava que a lembrança daquela sessão ficaria para sempre na sua memó-
ria, como motivo de orgulho. Com essa carta, encerraram-se os contatos entre a
Academia e o Grande escritor. Mas Kipling, no último capítulo deste livro, faria
uma expressiva referência a tal sessão, aludindo ao discurso de Gustavo Barroso,
proferido com "dignidade, cadência e a clareza de uma antiga cultura". Do Rio,
partiu ele para São Paulo, a fim de conhecer outros aspectos do Brasil, inclusive o
serpentário do Instituto Butantã. Seus artigos, mandados para o M o r n i n g Post,
de Londres, foram traduzidos e publicados por iniciativa de Assis Chateaubriand
em O Jornal. O tradutor inicial foi seu acompanhante, Ronald de Carvalho, que
abandonou a tarefa, irritado com a impontualidade do pagamento, e foi substituí-
do por Austregésilo de. Ataíde, redator efetivo daquela folha.
A visita de Kipling ao Brasil parece ter tido como principal conseqüência a
promoção de sua obra, com mais de quarenta volumes, em nosso país, onde até
então só era conhecida através de edições inglesas, francesas ou espanholas, ou de
um ou outro trabalho avulso, traduzido e estampado em publicações literárias.
Mas ainda em vida do autor saíram no Brasil apenas duas seleções de suas obras:
M o w g l i , o M e n i n o - L o b o (1933) e Jacalá, o C r o c o d i l o (1934), ambas em tradução
de Monteiro Lobato, e o romance K i m (1934), em tradução de Batista Pereira,
mais tarde desprezada pela Companhia Editora Nacional e substituída por outra,
também do autor de Urupês. Surgiram também traduções de alguns poemas de
Kipling, como o I f , num admirável texto de Guilherme de Almeida. Depois do de-
saparecimento de Kipling, surgiram outras traduções de suas obras em edições
brasileiras, como O L i v r o da Jângal, prosa por Monteiro Lobato e verso por Ja-
mil Almansur Haddad, editado em 1941; A L u z que se A p a g o u , primeira tra-
dução por Azevedo do Amaral, na década de 40, e segunda por João Távora, em
1962; M a r u j o s Intrépidos, por Lília Barros, 1947. Em alguns casos, foram as fil-
magens dessas obras que provocaram o interesse dos nossos editores.
Agora, é a vez dos Brazilian Sketches, uma das raridades da bibliografia de
Rudyard Kipling, no momento em vias de ser reeditada na Inglaterra, graças aos
esforços conjugados do Professor João Lourenço da Silva, diretor da Casa do
Brasil em Londres e da Kipling Society. A idéia dessa reedição surgiu durante um
17
almoço na Casa do Brasil em honra de Lorde Cobham, presidente da Kipling So-
ciely, a que esteve presente o Professor Charles E. Carrington, autor de um l
notável, publicado em 1955: R u d y a r d K i p l i n g : His L i f e and W o r d . O autor dessa
admirável biografia, durante aquele almoço, recordou a grande admiração de
pling pelo Brasil e suas profecias sobre o nosso futuro. E frisou a circunstân
ter Kipling tido, na primeira infância, uma babá de Goa, que falava a língua p
tuguesa. Quem sabe se por causa disso o discurso com que foi saudado por Gusta
vo Barroso não ecoou no seu subconsciente como uma música vagamente fami-
liar?
O Brasil não é mais o mesmo que Kipling observou nos primeiros meses de
1927, quando se iniciava, euforicamente, o governo de Washington Luís, sob o
ma rodoviário de que "governar é abrir estradas". Mas ainda guarda alguma co
sa do que ele viu. E o mesmo o entusiasmo popular pelo carnaval. As bananeiras,
que tanto o encantaram com sua folhagem e seus frutos, ainda aí estão. A vitóri
régia descomunal, que ele sonhara ver desde a juventude, ainda pode ser contem-
plada no Jardim Botânico. O serpentário de São Paulo ainda oferece as mesmas
emoções que fornecera a Theodore Roosevelt e Kipling. Petrópolis é que deixo
de ser a cidade dos embaixadores, dos presidentes e dos ministros. Já não somo
tanto, como outrora, um "mundo à parte". Nem as florestas impedem hoje
pouso dos aviões, como em 1927. Mas o que escreveu Kipling vale muito, princ
palmente como termo de comparação entre o que fomos e o que somos, ou entre o
que éramos e deixamos de ser neste meio século.

R. Magalhães Júnior
(Da A c a d e m i a Brasileira de Letras)

Rio, abril de 1977


A Viagem
Os Amigos

Uns amigos eu t i n h a — e sonhava que m o r t o s estavam —


que ao redor d o m e n i n o na cama c o m suas lanternas dançavam.
E r a m verdes e brancas lanternas de um lado para o u t r o vagando:
e ao f i m de t a n t o tempo passado eu jamais o l h a r a u m p i r i l a m p o !

Uns amigos eu tinha — e as coroas no céu empinavam —


que ao passar o m e n i n o inclinavam-se e até c o m o que suspiravam.
E eram cocos caindo n o chão e era a brisa em seu sopro ligeiro:
e ao f i m de t a n t o t e m p o passado eu j a m a i s t i n h a visto u m c o q u e i r o !

Um amigo tinha eu — que sobre o Cabo Horn apareceu


c o m u m Saco de Carvão nos o m b r o s q u a n d o o m e n i n i n h o nasceu.
E ele viu-me aprender a falar, e a j u d o u a tornar-me u m rapaz:
e ao f i m de t a n t o t e m p o o C r u z e i r o do Sul eu não vira jamais!

Um barco tinha eu — sai nele e deixei-o vagar,


até ver que meu sonho era falso e v i v i a m em t o d o lugar
meus amigos: vivos os coqueiros, bem vivo o C r u z e i r o do Sul:
e também eu dancei — c o m o os m i l p i r i l a m p o s dançando no azul!
H á m u i t o tempo, nos meus sonhos de m e n i n o , andei pela q u i n t a parte
do m u n d o e t u d o c o m que deparei era diferente de t o d o o meu conheci-
mento anterior, c o m o só crianças e velhos desejam que seja. A g o r a o so-
nho se t o r n o u realidade.
Os navios sul-americanos são por si mesmos u m m u n d o , mais íntimo e
especializado que qualquer o u t r o . A s perguntas começaram a ser respondi-
das em espanhol o u português enquanto ainda estávamos n o cais de Sou-
t h a m p t o n . Os letreiros d o navio são escritos nas duas línguas e os passagei-
ros não m o s t r a m o menor interesse por qualquer pessoa o u coisa, por qual-
quer m o t i v o o u atitude que até então t i n h a m parecido i m p o r t a n t e s . Antes
que o nosso vapor mudasse de posição sob o sol, os centros de gravidade
f o r a m m o d i f i c a d o s e nós passamos a girar em novos eixos.
U m c o m p a n h e i r o de viagem era, de berço e tradição, n a t u r a l das Ilhas
F a l k l a n d e conhecia a mulher que (em 1914) m a n d a r a dizer à gente de Stur-
dee que o i n i m i g o (os alemães) estavam chegando, sem saber que os nossos
navios a n d a v a m p o r perto. Ele costumáva circular de barco p o r entre os
braços de mar e os fiordes das ilhas e percorrer o i n t e r i o r a cavalo ("Com
alforjes, é claro. N ã o havia j e i t o de levar u m a mala."). Atravessando rios
de pedra e pântanos onde não cresce u m a só árvore e onde os homens le-
v a n t a m cercas para prender as aves marinhas q u a n d o estão nos ninhos pa-
ra que assim possam estrumar as pastagens. T i n h a sido essa a v i d a de seu
pai antes dele e ele a amava mais que todos os seus o u t r o s grandes bens.
Outros companheiros v i v i a m além dos limites da imaginação — entre
as neves e as ardências das cordilheiras o u nas concessões sufocantes nas
florestas d o norte, onde rios desconhecidos que saem d o coração de matas
desconhecidas enchem e a f o g a m índios cujas tribos ninguém conhece e cu-
j o s corpos chegam de b o r c o às fronteiras da civilização. H a v i a criadores de
gado que possuíam terras planas e sem pedras à razão de centenas de léguas
quadradas, que as estradas de ferro c r u z a m em linhas que nunca se aca-
bam, sem jamais haver necessidade de fazer u m a curva, galgar u m a r a m p a
o u transpor u m a ponte. As mulheres e as filhas deles e t a m b é m as dos prín-
cipes d o café pareciam ter estado até ao último m o m e n t o na Rua de l a
Paix. H a v i a t a m b é m homens c o m nomes ingleses o u irlandeses que pare-
ciam tão meridionais q u a n t o suas mulheres argentinas, e os f i l h o s , que pa-
reciam m o v i d o s a eletricidade, usavam três línguas ao mesmo t e m p o nos
seus b r i n q u e d o s e i a m para a cama q u a n d o estavam c o m sono, nunca an-
tes.
Q u a n d o o b e n d i t o calor restabeleceu todas as n o r m a s da b o a v i d a —
roupas leves, bebidas em abundância e indiferença ao que os relógios ma-
n u f a t u r a d o s dizem lá n o N o r t e — os homens começaram a falar. T o d o s
j u l g a r a m d o seu dever dizer que o lugar para onde se ia não era exatamente
o lugar que se devia ver, p e l o menos p r i m e i r a m e n t e . H a v i a cidades e estra-
das incas, a mais de q u a t r o m i l metros de a l t u r a , sobre minas de cobre o u
talvez depósitos glaciais de ouro... E r a tão fácil chegar até lá c o m o a u m
piquenique. M a s o u t r o d i z i a que isso não era nada em comparação c o m
centenas de quilômetros c o m p a c t o s de excelente gado H e r e f o r d que ia ser
t o d o t r a n s f o r m a d o em e x t r a t o de carne e t u d o isso acessível mediante u m a
viagem em confortáveis vagões Pullmans. O u desejava eu ver cidades tão
progressistas q u a n t o B i r m i n g h a r n , c o m teatro de ópera e p r e f e i t u r a , bem
c o m o prados de c o r r i d a de custo e t a m a n h o i l i m i t a d o s ? O u então m u n d o s
verdes de plantações de café, o u fazendas sussurrantes de coqueiros onde
velhas casas se escondiam ao l a d o de capelas m u i t o velhas, e a pessoa p o d i a
ter u m a impressão d o que f o r a a v i d a n o t e m p o d o soberbo Império d o
Brasil? O u c a m i n h o s de f e r r o suburbanos que s u b i a m sinuosamente p o r
m o n t a n h a s de m i l metros o u trens transcontinentais que atravessavam à
noite os Andes e serviam u m a c o m i d a bem decente d u r a n t e o c a m i n h o ? Es-
sas coisas e m u i t a s outras estavam ao nosso alcance e os homens d o gado,
d o café, dos navios, d o petróleo, das estradas de f e r r o e de todos os o u t r o s
interesses d i z i a m c o m t o d a a sinceridade que nos d a r i a m boas o p o r t u n i d a -
des de passeio e d i v e r t i m e n t o . A s condições d o t e m p o e r a m cada vez me-
lhores à m e d i d a que o calor a u m e n t a v a e tínhamos u m a escolta constante
de peixes-voadores que evoluíam diante da nossa p r o a .
Os emigrantes portugueses e espanhóis embarcados em V i g o e em Lis-
boa se a c o m o d a v a m ao ar livre na p r o a , de acordo c o m o seu costume sim-
ples. Disseram-me que a v i d a que i a m ter seria a mesma que t i n h a m conhe-
c i d o até então, c o m a diferença de que n o Sul p o d e r i a m ficar ricos, se tives-
sem capacidade para t a n t o . N ã o t e r i a m grandes dificuldades a superar.
U m i t a l i a n o p o d i a aprender o português que bastasse para as suas necessi-
( F o t o A u g u s t o M a l t a , 1928, Coleção G i l b e r t o Ferrez) Rio de Janeiro: Praça Paris em final de construção; em primeiro plano, o
antigo Senado Federal
dades em quinze dias. Os costumes e a língua h a v i a m reservado aqueles
países d o Sul para os latinos. H a v i a t a m b é m alguns bascos. E r a u m raça
que sempre vencia. Por exemplo, o atual dirigente de u m dos grandes paí-
ses d o Sul era de origem basca, e havia m u i t a necessidade de imigrantes.
Citaram-me então cifras de quilômetros quadrados e de população que
m o s t r a v a m quantos milhões p o d e r i a m ser a i n d a jogados no i l i m i t a d o Sul,
antes que começasse a haver a l g u m eco. A l g u n s dos meus i n f o r m a n t e s d i -
ziam especificamente " S u l " , porque, segundo eles, o N o r t e significava os
trópicos, onde os homens são preguiçosos, ao passo que o Sul a t i v o e práti-
co é v a r r i d o pelos ventos polares e f o r t a l e c i d o p o r invernos gelados. A o
que os do N o r t e replicavam: "Vocês não desejariam ser c o m o nós? Q u a n t o
não d a r i a m para ser a Paris d o S u l ? " , e assim p o r diante.
Fica-se h a b i t u a d o a essas coisas à m e d i d a que os dias f i c a m mais quen-
tes e mais a língua franca, m i s t u r a de espanhol e português, se insinua nas
conversas e as vozes das crianças se elevam através d o convés. Eduardo, 11

ahora vea. C u i d a d o , cuidado, petU imbécüe!" O u q u a n d o era necessário


conter ainda mais E d u a r d o em português: " O r a , vá plantar b a t a t a s ! "
Mas m i n h a ânsia era a p r o c u r a da beleza e, salvo o desejo de e n f o r c a r
os arquitetos, nunca me interessara m u i t o pelas construções m u n i c i p a i s .
Os mares azuis e purpúreos passavam sob nós e i a m acumular-se atrás d o
navio. As nascentes surgem sem u m só t r e m o r q u a n d o o d i a nasce e d o m i -
nam plenamente as coisas todas, já inteiramente a d u l t o ; e o cair instantâ-
neo da noite que surge logo ao d o b r a r d o crepúsculo t i n h a sido esquecido
havia m u i t o e isso não era b o m para a alma. E r a preciso ficar em d i a c o m
essas coisas.
U m dia, bem cedo, o n a v i o p a r o u e, p o r isso, todos os pequenos ven-
tos e correntes de ar que por ele c i r c u l a v a m se i m o b i l i z a r a m também. E en-
tão o calor — o genuíno calor das terras que não conhecem mudanças de
tempo — nos bateu amistosamente nas costas. Estávamos em Pernambu-
co, ao amanhecer de o u t r o d i a precioso c o m o u m a jóia, cercados de barcos
onde homens v e n d i a m mangas douradas e róseas e periquitos verdes, c o m
todos os fragmentos e explosões de cor definidos c o m o em esmalte, t u d o
isso debruado pelo concreto dos novos cais, tanques de petróleo e arma-
zéns. Além dessas coisas, a costa baixa cheia de palmeiras e bananeiras de
verdade, do mesmo jeito com que tinham sido vistas pela última vez antes
disso, e alguns trechos entrevistos de vilas num cabo cheio de árvores que
avançava pelo mar cor de turquesa. Por sobre a borda do navio, vultos va-
gos de tubarões de focinhos em forma de pá que são os lixeiros do porto e
não precisam ser pescados. E de repente, como um trecho de filme já visto,
chegou uma lancha com um homem vestido numa roupa branca que já t i -
nha sido muito lavada. Subiu a bordo e apresentou-se a um homem muito
moço, que trazia a sua roupa branca de Londres ainda com os vincos por
todo o comprimento das calças, e virou-se para os companheiros de viagem
e despediu-se deles. Era apenas um novo funcionário que chegava para um
banco de Pernambuco. Quando os dois se foram — o moço voltava os
olhos para tudo ao mesmo tempo — e eu acabara de calcular o número de
lanchas de marcas diferentes que trafegavam em diferentes portos àquela
hora, descontando as diferenças de fuso horário, perguntei a um homem:
— Acha, que ele vai-se dar bem?
— Claro que vai e se lembrará pelo resto da vida da sua primeira de-
signação para Pernambuco. Isso acontece com todos. Sei por experiência
própria. É um lugar adorável.
Que isso possa ser uma boa notícia para alguma mãe do outro lado do
mar.
Estas costas me proporcionaram ainda a história que vou contar para
esclarecimento dos psicólogos. N ã o faz muito, dois empregados de banco
de Pernambuco saíram três milhas mar afora (há quem tome liberdades
com essas águas) numa pequena canoa tipo canadense que virou. Depois
de bem pesadas as circunstâncias, o que sabia nadar melhor partiu para a
praia a f i m de pedir socorro. Levou muitas horas nadando, mas o que mais
o afligia nas últimas etapas era avistar o seu pequeno clube na praia, onde
sabia que, àquela hora, os seus amigos estavam alegremente bebendo. Che-
gou afinal à praia, deu a notícia e uma lancha se apressou em ir buscar o
outro homem, que ficara dez horas dentro da água. Com ele, dizia a histó-
ria, correu tudo bem, mas o que saiu nadando se absteve por completo de
gim e de bitters durante algumas semanas. Dizia que o gosto da bebida lhe
lembrava muito de perto o da água salgada.
H á uma vida fascinante e antiga por trás da verdura das costas — c o m
aventura e atrativos ainda hoje e u m a tradição i n i n t e r r u p t a desde o t e m p o
da Rainha Elizabeth, tendo em segundo p l a n o u m m u n d o quase intacto.
Tínhamos entrado n u m a corrente dessa sociedade — pessoas que v i n h a m
para c i m a e para baixo em pequenas excursões pela costa, todas evidente-
mente ricas, todas simpáticas e descontraídas, bem relacionadas entre si e
c o m os amigos umas das outras. Isso quebrava qualquer laço que pudesse
ter existido com o resto d o m u n d o . Esses lugares pertenciam a o u t r o poder
e se t i n h a m erguido sobre bases que nos eram completamente estranhas.
Era o que sugeria u m velho f o r t e português ao lado de novas obras d o
porto. U m j e i t o holandês n o f e i t i o dos barcos a vela era o u t r a sugestão,
pois holandeses e portugueses estiveram aqui j u n t o s há dois o u três sécu-
los. Os passageiros de gestos e fala descansados c o m p l e t a v a m a sugestão.
Iam, para tratar de negócios próprios, à Bahia, cerca de trezentas milhas
abaixo da costa, ao R i o , a m i l milhas, o u a Buenos Aires, a duas m i l e tan-
tas milhas. O vapor que se v i a c o m as chaminés em listras era d o Lóide
Brasileiro. Ia viajar m i l e duzentas milhas para o n o r t e e então subir o R i o
Amazonas durante mais m i l o u duas m i l milhas. As cartas para a E u r o p a
p o d i a m ser postas n o correio em P e r n a m b u c o , p o r q u e u m navio holandês,
francês o u i t a l i a n o estaria ali no d i a seguinte para levá-las.
Depois de saber disso, passamos pelas costas verdes e vazias até que
uma grande baía se a b r i u e nós chegamos à Bahia, onde t a m b é m todos se
conheciam e a impressão de idade e solidez era reforçada pelas velhas igre-
jas e as antigas casas serenas. Sentia-se, sem precisar que ninguém dissesse,
que a Bahia era a Cidade-Mãe, o centro de t o d a a f l a m a n t e energia d o tem-
po em que o Brasil nasceu. A l i t a m b é m o domínio da Igreja f o r a absoluto e
para ali t i n h a m i d o escravos aos milhares sem saberem que u m dia seus f i -
lhos seriam cidadãos de u m a república onde não existe a questão da cor.
A l i se encontram os pratos e as comidas d o velho tempo, admiráveis con-
fecções que derivam p r i n c i p a l m e n t e d o azeite-de-dendê, as frutas e os su-
cos de frutas; cores excessivas, verdes, vermelhos e amarelos, c o m o n u m
turbante de negra; a claridade e o calor d o m i n a m mas não o f e n d e m ; e a al-
ternação regular dos ventos d o m a r e da terra. A q u i há t u d o de que homens
realmente civilizados p o d e m precisar. E justamente graças a essas vanta-
gens, p r e f e r e m falar de suas docas que, a f i n a l de contas, p o r o b r a da natu-
reza o u dos empréstimos públicos, existem em todas as cidades marítimas.
C o n t i n u a m o s a v i a g e m e passamos p o r u m certo cabo, onde as águas
são sempre frias d u r a n t e algumas horas, enquanto u m brasileiro me conta-
va histórias antigas dos exploradores e dos capitães, b e m c o m o dos padres
que chegaram depois deles, q u a n d o o árdego P o r t u g a l puxava para as suas
m ã o s metade d o m u n d o . T i n h a m tão p o u c o medo, juízo o u b o m senso co-
m o os nossos navegantes d o mesmo tempo. D o contrário, t e r i a m desistido
da empresa. N a verdade, disse-me ele, d a Bahia até ao sul d o R i o se estende
u m a cadeia de m o n t a n h a s de até m i l metros de a l t u r a a p o u c a distância da
costa. Para conseguir-se a l g u m a coisa, era preciso p r i m e i r o e n f r e n t a r as
t r i b o s ao nível d o mar, para então subir a serra que levava realmente ao i n -
t e r i o r d o país.
— Verá m e l h o r isso q u a n d o estiver n o R i o o u em Santos — disse ele.
— Essa serra nos a t r a s o u cinqüenta anos. A n t i g a m e n t e galgava-se a serra
em l o m b o de b u r r o , c o m o fez meu p a i . T u d o descia em cargas nos bur-
ros... café e t u d o mais. E r a p o r isso que precisávamos de escravos. A s pes-
soas não t i n h a m escravos p o r prazer. T u d o era u m a questão de t r a n s p o r -
tes. As estradas acabaram c o m a escravidão.
E e n q u a n t o ele estava d a n d o explicações, o calor, depois de C a b o
F r i o , caiu de n o v o sobre nós, as m o n t a n h a s se ergueram mais majestosas e
fantasticamente c o m feitios de martelos e presas de elefante de pedra, ave-
ludadas, em todas as encostas que não fossem absolutamente verticais, p o r
u m a vegetação c o m p a c t a de floresta. N o convés, h a v i a rebuliço e senti-
m e n t o de posse. A m a i o r i a de nossos passageiros, procedentes de Sou-
t h a m p t o n , estava quase em casa.
(Foto A. Malta, c. 1925, Col. G. Ferrez) Rj de Janeiro: Lagoa Rodrigo de Freitas; ao fundo, as praias
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de A rpoador e Ipanema
Rio
Canção das Bananas

Pois não tendes bananas, m i n h a gente? V i v e m lá passarinhos, m i n h a gente,


'Mas logo a q u i as teremos, jóias quase do porte de uma abelha:
certamente: nós as c o m p r a m o s e borboletas de azul sem jaça que
dos quitandeiros, que vêm p l a n a m , pousam, f u l g e m , esvoaçam,
trazendo seus tabuleiros, entre as frondes em verde a se arquear
bem c o m o melancias e verduras (malacachetas e jades do mar).
(que a nossa terra p r o d u z com f a r t u r a ) .
Trabalha e ofega a terra, minha gente,
Isso não é banana, minha gente: dia e noite, em nobre fecundidade,
legume das Canárias, pode ser! para que a flor e a serpente estejam
Banana mesmo tem a cor d o u r a d a prontas e atentas q u a l j u n t o
e não é em qualquer barco encontrada: à A r v o r e do Eden (quando
só n u m raro país sabe nascer viu-se a P r i m e i r a Lua prateando).
(e vem gente de longe para ver).
Ide para o trabalho, minha gente,
de t r e m , ônibus, bonde.
As folhas dela apontam para o Sol
a pé — depressa! Entre o Fárpar
ou se e m p i n a m c o n t r a a brisa do mar,
e o Abanas não crescem
ou então b a i x a m e se levantam entre
pés de bananas (e o Jordão
os cordames da chuva t a n t a
é uma longa sede ausente)
que as nuvens deixam do alto j o r r a r
e o resto deixem para m i m somente.
(ern catadupas entre a serra e o mar).
Nos países sensatos, não há pressa, nem mesmo para a Saúde o u a Po-
lícia d o P o r t o . P o r isso, e m b o r a houvéssemos entrado n o p o r t o d o R i o n o
começo da tarde, já estava começando a escurecer q u a n d o nos a p r o x i m a -
mos d o cais e toda a cidade e as costas ao l a d o dela escolheram esse mo-
mento para acender constelações e vias-lácteas de desenfreada eletricidade.
S u b i r a m então a b o r d o homens dispostos, c o m o os homens d o m u n d o
i n t e i r o , a mostrar a u m estrangeiro a cidade que amavam. D e n t r o de dois
minutos, as linhas escuras dos cais repletos t i n h a m desaparecido e o carro
c o r r i a p o r uma avenida cheia de luzes e f o r t e m e n t e q u a d r i c u l a d a p o r filas
duplas de folhagem das árvores e m a r g i n a d a de clubes, lojas e cafés i l u m i -
nados e repletos. Esse m u n d o de luz cedeu lugar de súbito, entre os topos
de edifícios gigantescos, a espaços a i n d a mais vastos de avenidas de pista
única, entre árvores, tendo a baía de u m l a d o e franjadas de luzes elétricas
que c o r r i a m para a frente aparentemente para sempre e se r e n o v a v a m em
colares de pérolas atirados em v o l t a de cantos invisíveis. E sempre, acima
de t u d o , viam-se e sentiam-se os c o n t o r n o s das m o n t a n h a s cobertas de ma-
tas. T o d o o m u n d o estava conosco em carros, todos cheios de gente sem
chapéu, todos em velocidade máxima, mas não mais rápidos d o que certos
diabólicos ônibus cujos b a r u l h o s funcionais eu iria c o n f u n d i r depois c o m o
t r o v e j a r de u m aeroplano diante da m i n h a j a n e l a n u m o i t a v o andar. À nos-
sa direita, u m m o r r o cujas luzes profusas subiam e se i n t e r r o m p i a m , i n d i -
cando a meio curvas de c a m i n h o . Conheciam-se bastante os velhos r o m a n -
ces para saber que a q u i l o devia ser Santa Teresa, o b a i r r o onde os f u n c i o -
nários virtuosos e os amantes exilados pelo destino c o s t u m a v a m viver para
refazer as suas fortunas. É hoje, c o m o sempre f o i , u m lugar de aprazíveis
residências. Está diante exatamente da entrada da barra — dois lisos dentes
de c r o c o d i l o de rocha nua que m u i t o s olhos devem ter visto a fechar o ca-
m i n h o para a pátria n o t e m p o em que os homens m o r r i a m entre o meio-dia
e o crepúsculo. H á visões de casas brancas e cor-de-rosa c o m plumas de
palmeiras sobressaindo ou, ainda c o m m a i o r i n t i m i d a d e , frisos de bananei-
ras tranqüilas p o r trás de m u r o s de m a r f i m . Ficamos, porém, à beira da
água, c o m a multidão que estava t o m a n d o fresco.
A noite estava razoavelmente, isto é, t r o p i c a l m e n t e quente. Chapéus,
sobretudos, pressa, hora e outras insignificâncias t i n h a m f i c a d o d o o u t r o
lado d o E q u a d o r . A única preocupação que restava era de que aquela cida-
de de sonho, de f o l h a g e m verde intensamente i l u m i n a d a , de imponente es-
tatuária e m o n t a n h a s altaneiras desaparecesse de repente se a gente tivesse
a coragem de o l h a r para o lado. Mas c o n t i n u o u , c o m u m a enorme curva de
c a m i n h o sucedendo a o u t r a , a i n d a c o n t o r n a n d o o mar, ainda i l u m i n a d a
pelas luzes insolentes e onipotentes mas — deve-se pagar a l g u m t r i b u t o aos
deuses — i m p r e g n a d a d o p e r f u m e dos carros que v o a v a m . (Deve-se notar
que o b r a s i l e i r o , c o m o m o t o r i s t a , pode paralisar q u a l q u e r c h o f e r de táxi da
Place de la Concorde. Os sulistas ciumentos dizem que u m a r g e n t i n o
" p i s a d o " leva-lhe vantagem. Para m i m , ele é mais que suficiente.)
Por f i m , a t o r r e n t e d o tráfego se desviou da baía, e n t r o u p o r u m túnel
ressoante onde todos b u z i n a v a m ao mesmo t e m p o e f o i sair n u m a extensão
de p r a i a , em que as ondas livres d o Atlântico Sul se a l i n h a v a m sob as estre-
las e se q u e b r a v a m nas areias cor de m a r f i m ao pé dos refletores elétricos.
T o d o s os que não estavam sobre rodas passeavam em miríades em calçadas
de mosaico j u n t o ao mar. D i a n t e da p r a i a , viam-se casas isoladas cujos
proprietários d e v i a m ter p e r d i d o a cabeça em todos os detalhes, arrebi-
ques, caprichos, a t r i b u t o s e curiosidades d a q u i l o a que se chama de
" a r q u i t e t u r a " e que seus cérebros o u suas posses p o d i a m abranger. E des-
de que as construções não se pareciam c o m q u a l q u e r o u t r a coisa na terra,
ajustavam-se exatamente ao inexplicável cenário que sob os altos céus as
contemplavam.
— O n o m e desta praia é C o p a c a b a n a — disseram meus companhei-
ros. — N ã o faz m u i t o t e m p o que começou a ser construída. N ã o . Isto não
é a cidade. É apenas u m dos seus distritos. A cidade fica a m u i t o s quilôme-
tros de distância. A i n d a há muitas outras praias pela frente, mas...
V o l t a r a m em m a r c h a mais lenta, de tal m o d o que se podia ter uma i m -
pressão das ondas leitosas que chegavam, d o m o v i m e n t o das multidões ale-
gres à beira da areia, d a pulsação dos carros compactos — r a d i a d o r c o n t r a
tanque — da projeção a d i v i n h a d a das m o n t a n h a s n o alto e das casas c o m o
g n o m o s expostos à claridade. Estava de acordo c o m a irrealidade de t u d o
que alguns carros estivessem cheios de gente fantasiada que cantava.
— Falta u m a semana para o C a r n a v a l e essa gente se está preparando.
Mas veja! Se olhar para aquela m o n t a n h a c o m a luz no alto verá que a
princípio ela estava atrás de nós.
De f a t o , a m o n t a n h a estava parada. A nossa velocidade era de sessen-
ta quilômetros.
— A g o r a , vai correr ao nosso lado.
A m o n t a n h a obediente p a r t i u imediatamente e f i c o u em posição.
— Acabará p o r passar à nossa frente. E então irá esperar-nos ao f i m
da enseada seguinte.
Isso t a m b é m aconteceu e a m o n t a n h a p a r o u justamente n o lugar i n d i -
cado, sem mostrar sinais de fadiga. P o r mágicas m u i t o menores, houve ho-
mens que m o r r e r a m na fogueira.
O passeio t e r m i n o u diante de u m a f o l h a g e m verde i l u m i n a d a c o m o
um cenário de teatro, n u m hotel de mármore em frente às águas serenas
onde u m cargueiro estava saindo para o mar. Mas o tráfego sob as janelas
c o n t i n u o u até aquela h o r a v i d r a d a e m o r t a depois d o amanhecer q u a n d o
não há vento da terra nem do m a r e as árvores g a n h a m o descanso que é
possível. Nessa suspensão de vibração e m o v i m e n t o , a cidade f o i i n u n d a d a
pela a l v o r a d a d i v i n a m e n t e aquecida — enorme, o p u l e n t a , imaculada, e,
apesar d o m o d e r n i s m o ansiosamente p r o c u r a d o , antiga e estável.
A s luzes n o passadiço de u m couraçado ancorado se apagaram. U m a
lancha de t i p o americano p a r t i u para os subúrbios d o o u t r o l a d o da água
deixando leves sulcos na lisa superfície azul. Irrequietas lanchas d o gover-
no p a r t i r a m de u m a i l h a f o r t i f i c a d a v i z i n h a e v o a r a m em t o r n o de u m a
p o n t a de terra que t i n h a sido u m m o r r o vermelho, mas se estava t r a n s f o r -
m a n d o n u m a esplanada. U m n a v i o a vela começou a mexer n o seu corda-
me e u m último traço de nevoeiro se dissipou p a r a deixar ver o que se q u i -
sesse da baía d o R i o .
Pode haver águas mais belas em a l g u m lugar, mas nem Sidney, nem
Cape T o w n , que eu sempre j u l g u e i supremas nos seus gêneros, p o d e m
comparar-se c o m estas em t a m a n h o — o q u a l , a f i n a l de contas, não i m p o r -
ta m u i t o — mas em indescritível diversidade, cor, a m p l i t u d e e esplendor de
cenário. U m a serra de m o n t a n h a s coroadas de nuvens fechava a baía de
u m lado, a cinqüenta o u sessenta quilômetros de distância. Estavam sem
dúvida à espera de u m b o m t e m p o r a l . A s m o n t a n h a s não se c o b r e m de
mantas de nuvens de grande espessura apenas para algumas horas de chu-
va. Picos f u r a v a m a cerração, a c o r d a v a m trovoadas distantes e t o r n a v a m a
recolher-se. Certas faces gigantescas de penhascos avançavam c o m o gado
pela névoa, o l h a v a m e v o l t a v a m para trás d o véu.
Para aquelas bandas deve ficar Petrópolis, u m a cidade de recreio, on-
de embaixadores e a d m i n i s t r a d o r e s v i v e m h o j e em dia, mas para onde a n t i -
gamente todos os que p o d i a m f u g i a m d a febre, t o m a n d o o t r e m todas as
tardes. Os passageiros d o n a v i o em que eu viajei disseram que a passagem
para lá custava agora o equivalente a cinco shillings, o que é sem dúvida
bem b a r a t o para u m lugar evidentemente em c o m u n h ã o c o m os deuses e
que f i c a , t a m b é m evidentemente, a cavaleiro de seus campos de j o g o s .
Quase d i r e t a m e n t e a b a i x o das janelas d o h o t e l , u m pequeno g r u p o de
pescadores sérios e calados em suas canoas chegou e t o m o u posição em l u -
gares que se sentia t i n h a m sido distribuídos às suas famílias q u a n d o o Papa
deu o Brasil a P o r t u g a l . Já n o t a r a m que em todas as cidades marítimas há
sempre essa imutável reunião ao amanhecer e que a mesma desaparece
q u a n d o a v i d a d o dia começa, c o m o as duas sombras da b o l a de cristal que
s o m e m q u a n d o a visão chega?
A o l o n g o d o cais i m a c u l a d a m e n t e l i m p o onde os ônibus p r o c u r a v a m
presas, u m a família passou em alegres roupões — P a i , M ã e e algumas
crianças. O u t r a família passou p o r u m pequeno parque. Aliaram-se, passa-
r a m p o r u m a máquina de asfalto e u m guindaste e chegaram a u m a escadi-
nha pela q u a l desceram para o mar. Desde que nunca vi m u i t a s famílias i n -
glesas banhando-se, digamos, n o cais d o Tâmisa, o f a t o me interessou es-
tranhamente. O mesmo posso dizer de u m cavalheiro que passou de r o u p a
de b a n h o n u m a m o t o c i c l e t a e de duas moças tão m o l h a d a s d o seu banho
em o u t r o p o n t o da p r a i a que f o r a m colocadas nos dois estribos d o c a r r o da
família e a l i f i c a r a m c o m o duas figuras heráldicas p i n g a n d o água e conver-
sando p o r c i m a da capota. Lembrei-me então de que, n u m c l i m a sadio, as
pessoas t o m a m b a n h o sempre e c o m freqüência, em q u a l q u e r lugar onde a
água seja segura. Isso explica a limpeza coletiva das multidões locais. E f o i
42 agradável ver u m a vez mais que a c h u v a é detestável para as pessoas bem-
nascidas e bem-criadas. Uns b o r r i f o s de chuva fazem sempre u m a pessoa
procurar proteção c o m o se u m a m e t r a l h a d o r a estivesse a t i r a n d o . V i c o m
satisfação t o d a u m a família que ia para o b a n h o de m a r ser d e r r o t a d a p o r
u m leve chuvisco e correr para refugiar-se debaixo de algumas árvores.
A cidade acorda a horas razoáveis. H o m e n s c o r r e m para o t r a b a l h o
nos seus carros particulares por v o l t a das o i t o horas, q u a n d o os ônibus e os
bondes já levaram os seus empregados. O hotel estava desperto e a n i m a d o
n u m a hora em que as criadas inglesas semivivas d e v i a m estar enchendo
corredores escuros com correntes de ar geladas e penugens c o m cheiro de
fuligem. T u d o isso provava a justeza da v i d a real e me m a n d o u às pressas
para o J a r d i m Botânico antes que ondas de i m i n e n t e hospitalidade desces
sem sobre m i m e me impedissem os compromissos particulares.
Até os mais humildes têm u m ideal! O meu, n u t r i d o desde o início da
juventude, era ver o lírio c h a m a d o de vitória-régia no seu meio e, se possí-
vel, aquela ave c o m os dedos das patas m u i t o c o m p r i d o s (Jacara talvez fos-
se seu nome) que aparecia n o mesmo l i v r o de gravuras passeando por gosto
sobre as suas folhas.
O chofer do táxi, exceto pelas suas maneiras que p o d e r i a m ser um
exemplo para príncipes, não pôde fazer nada por m i m . O J a r d i m Botânico
ele conhecia, mas lírios, não, Senhor... E saiu a guiar o c a r r o i n t e r m i n a v e l -
mente sob o ar fresco da m a n h ã . Depois de haver passado por vilas e casas
simplesmente ricas e belas, levou-me p o r b a i r r o s mais humildes, onde as
pessoas saíam o u f i c a v a m paradas às portas e onde até se p o d i a ver c o m o
penteavam os cabelos. V i o que pode ser f e i t o c o m as pequenas casas gra-
ças àquela luz, pintando-as de azul, amarelo, rosa e vermelho. A i n d a que
estejam irremediavelmente encardidas, há sempre montões de arbustos o u
de árvores em vermelho sangüíneo, púrpura o u o u r o para dar beleza e efei-
t o . Comecei então a compreender o b o m senso das casas de gnomos de Co-
pacabana na noite anterior e que (pode ser isso o segredo dos latinos) c o m
u m sol daqueles é preciso exagerar e insistir.
Mas sempre, de u m lado o u de o u t r o , u m a grande m o n t a n h a , coberta
de florestas da cabeça aos pés, se debruçava sobre nós. Depois de correr-
mos sob o flanco da mais alta de todas que fechava todas as aragens, che-
gamos ao J a r d i m Botânico. Estava completamente vazio, completamente
43
tranqüilo e belo além de t u d o o que se pode dizer. Todas as coisas estavam
nos lugares certos e cresciam n a t u r a l m e n t e n o seu meio próprio — as f r u -
tas, as flores, as árvores e os cheiros que despertam lembranças, tristezas
o u prazeres em t o d o s os cantos da terra, desde as mangueiras de folhas b r i -
lhantes, que segundo m i n h a s p r i m e i r a s crenças eram habitadas à noite p o r
" C o i s a s " , até as jacas que cheiram a gente m o r t a , mas que fazem os que as
p r o v a r a m ansiosos c o m o v a m p i r o s lúgubres a prová-las de novo. Através
dos arcos escuros das árvores e debaixo das cornijas f l o r i d a s de maciços
suspensos, v o a v a m raramente b o r b o l e t a s d o t a m a n h o de morcegos, mas
coloridas de luar. D e r a m o m a i o r b r i l h o à glória d o d i a e então, c o m o f a n -
tasmas, assinalaram a sua presença e se f o r a m para o a l t o . H á pessoas que
as c a p t u r a m , recortam-lhes as asas em padrões alucinados e então as pren-
d e m e m b a i x o de cinzeiros de v i d r o para vender aos turistas, entre os quais
— que Alá me perdoe! — estive eu c o m o réu desse crime.
A l é m delas, viam-se p o r t o d a a parte as palmeiras em busca de ar e os
bambus que s u f o c a m a atmosfera. Crescendo, c o m o se fosse mato, as ba-
naneiras, das quais costumava dizer a m i n h a velha ayah' que, se a pessoa
saísse de casa cedo e encontrasse uma bananeira nova, cujas folhas o vento
não tivesse rasgado nem o sol ressecado, poderia f o r m u l a r u m desejo, que
este seria cohcedido pelos deuses. Mas essa variedade não estava incluída
nessa coleção.
N ã o obstante, a Providência f o i generosa comigo. O grande lírio v i v i a
n u m tanque e era t u d o o que os livros d i z i a m . As suas folhas t i n h a m quase
dois metros c o m bordas de quase dez centímetros. A f l o r — quase que só
basta desejar u m a coisa nesta t e r r a para tê-la — a f l o r era d o t a m a n h o de
uma caixa de chapéus e t o m a a metade de u m q u a r t o de hotel. Q u a n t o à tal
ave c h a m a d a jacara, e n c o n t r e i duas delas à venda na m a n h ã seguinte den-
t r o de u m a gaiola, p e r t o d o m e r c a d o de peixe, que é u m lugar onde se ven-
dem milagres. A s patas e r a m exatamente c o m o estavam desenhadas em
meu l i v r o de gravuras.
H o u v e mais sentido d o que p o d e r i a parecer na m i n h a visita às
vitórias-régias. O J a r d i m Botânico g r i t a v a alto e b o m som, c o m o os políti-
cos, que p o d e r i a p r o d u z i r t u d o a q u i l o de q u e o h o m e m necessita entre cer-
tos graus de l a t i t u d e . Basta depositar a m u d a o u a semente e t u d o vicejará
*Ayah = babá. (N. do T.)
3

4*

(Foto A. Malta, Col. Cândido de Paula Machado)


continuamente. A isso, a intensa verdura d o paredão de montanhas, onde
as preguiças ainda se balançam dos galhos a pouca distância da capital d o
Brasil, dá a resposta: "Mas, se a pessoa deixar, nem que seja p o r u m mês,
de combater minhas trepadeiras e meus matos, eles acabarão c o m t o d o o
seu belo t r a b a l h o e ela acabará dentro de seis meses debaixo de m i m ! "
A o s 50 graus de L a t i t u d e N o r t e , é fácil esquecer c o m que facilidade o
h o m e m vive na velha Terra. Isso só é l e m b r a d o nas florestas tropicais onde
não há lugar, a menos que seja aberto pelo machado, onde o h o m e m possa
desviar-se do seu c a m i n h o o u d o seu c a m p o e abandonar-se n o regaço da
Natureza.
Q u a n d o voltamos para casa na m a n h ã calma e v i m o s os vapores que
entravam e saíam, tive a impressão de que o m a r p o d i a ser mais fácil de do-
minar do que as árvores. Depois, vários brasileiros c o n f i r m a r a m essa o p i -
nião. Parece, pois, que a T e r r a , c o m o o sol e as casas pintadas de cores ale-
gres, exagera e acentua o seu papel n o d r a m a imenso e f l o r i d o deste M u n d o
em Si.
Mas, antes de t r a t a r m o s dessas insignificâncias, temos de pensar nu-
ma cidadezinha, quinhentos quilômetros abaixo pela costa, que t e m nove-
centos m i l habitantes, chama-se São P a u l o e onde, entre outras coisas, há
u m a fábrica de energia e de luz, que me dizem ser "coisa que vale a pena
v e r " . As cidades d o Brasil, c o m o muitas localidades inglesas, passaram d i -
retamente das velas e d o querosene para a eletricidade, mas a eletricidade,
n u m clima já saturado dela, difere u m p o u c o da coisa gerada pelo vapor
que faz f u n c i o n a r aspiradores de pó e torradeiras em outros lugares. Va-
mos ver isso.
O Pai dos Relâmpagos
Canção do Dínamo

C o m o saber a O r d e m que me faz


vir a ser?
Apenas sei que, em certos atos vossos,
hei de ser vosso O u v i d o e vossa Vista
e a Força vossa — a mover grandes rodas,
p o u p a n d o vossos filhos da exaustão,
e n q u a n t o eu me m a n t e n h o em submissão!

A mim, que importa o uso que ireis fazer


das energias minhas?
Apenas sei que sou U m c o m as Forças
tremendas que sustentam bem no alto
o F i r m a m e n t o e, varejando a Terra,
só em último lugar me salvarão
— mas, covardes, de m i m não abris m ã o !
Q u e m quer ir d o Rio para São Paulo por mar, v a i até ao f i m da aveni-
da p r i n c i p a l e pega u m n a v i o , pois os navios ali são tão numerosos c o m o
ônibus.
T o m a m o s o nosso n u m a tarde em que a cidade t o d a se acendia. O m i -
lagre de suas luzes começou q u a n d o saímos d o p o r t o e passamos pelo cen-
t r o da cidade. A luz descia em curvas faiscantes até à beira d o mar cheia de
recortes e subia para as alturas p o l v i l h a d a s de diamantes às suas costas.
Interrompia-se d u r a n t e alguns m i n u t o s c o m o u m colar p a r t i d o , enquanto
dobrávamos uma p o n t a de terra que a interceptava e retomava o fôlego nas
tríplices glórias de Copacabana, c o m u m monstruoso q u a d r a d o de luz n o
alto de u m edifício branco, tal c o m o se fosse a pedra central d o colar. I a
t e r m i n a r m u i t o adiante na costa sob as montanhas mais próximas, por sua
vez desenhadas c o n t r a névoas líquidas suspensas sobre partes ocultas da
tiara da cidade. Q u a n d o a f i n a l a revelação t e r m i n o u , f o i c o m o se tivésse-
mos visto a própria Belkiss cerrar a c o r t i n a diante dos tesouros d o Rei Sa-
lomão.
U m a lua débil b r i l h a v a sobre as luzes da costa d e n t r o da escuridão
aveludada e quente, na q u a l de vez em q u a n d o u m a i l h o t a coroada de pal-
meiras se estendia sob a planície enluarada.
Chegamos a Santos, p o r t o de São P a u l o , sob a claridade bronzeada de
u m céu da África O c i d e n t a l , subimos u m t o r t u o s o r i o holandês p o r entre
planícies verdes. A t r a c a m o s a u m cais onde todos os vapores d o m u n d o
descarregavam artigos de l u x o , mecanismos e aparelhos e carregavam sa-
cos de café que deslizavam sobre extensões de chãos movediços e se deixa-
vam cair, c o m o porcos agarenos sem cabeça, nos porões próprios. M o n -
tões de bananas desciam o r i o em barcaças e se j u n t a v a m às cargas verdes
de vapores cremes c o m chaminés pretas e vermelhas. A a t m o s f e r a é a d o
Sul da índia, mas os homens usavam apenas chapéu de palha, pois não há
insolação. Nos velhos tempos, os navios p o d i a m perder várias vezes a sua
tripulação v i t i m a d a pela febre amarela. Os banqueiros e os negociantes d o
p o r t o subiam todas as tardes para as montanhas, vinte quilômetros para o
interior, onde p o d e r i a m viver até o dia seguinte. Nas piores épocas, quan-
do o p o r t o f i c o u paralisado e alguém nas montanhas queria u m a encomen-
da tanto que chegava a arriscar a v i d a , era costume que ele agarrasse qual-
quer coisa em que pusesse as m ã o s nos armazéns desertos, acertando de-
pois as contas c o m os testamenteiros.
— Naquele t e m p o , não nos dávamos ao t r a b a l h o de verificar as mar-
cas que estavam nos volumes.
M a i s tarde, os pântanos f o r a m drenados, a febre f o i c o m b a t i d a , os ca-
minhões substituíram os b u r r o s e t u d o f i c o u l i m p o . M a s a velha cidade vio-
lenta, c o m as suas casas de cores claras e os seus armazéns a b a r r o t a d o s de
café, parece falar a i n d a em voz baixa dos barracões de escravos e da doen-
ça. A s pessoas usam agora o lugar c o m o u m passeio e vêm de São Paulo, a
80 quilômetros de distância, p a r a passar o d i a lá, c o r r e n d o c o m os seus car-
ros rebrilhantes pela areia d u r a das praias.
Saímos da cidade p o r u m a estrada vermelha, ao l a d o de u m a estrada
de f e r r o de pista d u p l a , e atravessamos u m a região c o m grandes plantações
de bananeiras r u m o a u m a serra de cimos cobertos de nuvens que levantam
u m a m u r a l h a atrás de Santos, c o m o acontece n o R i o e em t o d a a costa, da
Bahia para baixo. U m espigão m o s t r o u u m a escoriação rósea d i v i d i d a p o r
u m a l i n h a vertical.
É a n o v a usina de energia, para onde vamos. O t r e m será p u x a d o p o r
u m cabo serra acima. O senhor t a m b é m mas não n o t r e m . É u m a pena que
essas nuvens estejam tão baixas. V ã o estragar a vista.
O c a r r o e n t r o u p o r u m a estrada lateral que l e m b r a v a o sopé d o H i m a -
laia, e m b o r a o c l i m a fosse tão quente q u a n t o o de Madrasta. Sentiam-se
trabalhos de construção nas barreiras e cortes sob a f l o r i d a vegetação pur-
púrea da m o n t a n h a . As valas de terras ao l a d o fluíam vermelhas e cheias.
P a r a m o s n u m a depressão vermelha aos pés de enormes pinheiros que des-
c i a m de u m teto p l a n o de nuvens q u i n h e n t o s metros acima. Bangalôs de te-
lhas e c o n c r e t o se elevavam p o r todos os lados. E r a m u m a p r o v a de que
a q u i l o seria u m a sede permanente, e m b o r a houvesse t a m b é m construções
de madeira e zinco. U m deles era u m refeitório inconfundível e agradável,
que l e m b r a v a o Canadá, c o m a n o t a estranha dos grous que se debruçavam
sobre u m r i o z i n h o espantado, que evidentemente r o l a v a mais água d o que
aquela p a r a a q u a l f o r a feito.
A m i s t u r a de países e associações se d i v i d i u p o r ocasião da comida. A
conversa se d i s t r i b u i u entre homens que t i n h a m v i v i d o pendurados diante
(Foio "Agência Estado", 1928) São Paulo: No centro da cidade, o Largo de São Bento vendo-se, à frente,
a entrada da rua de mesmo nome
da face do penhasco cheio de vegetação acima deles nos últimos dois anos.
T i n h a m s o f r i d o muitas coisas, espantosas, especialmente com o solo t r a i -
çoeiro, que é parecido c o m o q u e i j o R o q u e f o r t , as alternativas de u m i d a d e
e secura, a d e m o r a da chegada d o material e, depois da chegada, o esforço
de colocar t u d o n o lugar, o i m p r e v i s t o dos problemas surgidos caprichosa-
mente e resolvidos p o r métodos improvisados, muitas vezes no escuro e
c o m lama até aos joelhos. Aquelas ravinas e gargantas escavadas pela chu-
va t i n h a m u m j e i t o de p o d e r e m virar u m lodaçal d e n t r o de poucos m i n u -
tos. Mas os canos anelados que t i n h a m v i n d o da Silésia estavam em posi-
ção sobre os blocos de concreto de cinco m i l toneladas cravados a vinte me-
tros de p r o f u n d i d a d e no solo, as válvulas t i n h a m sido testadas e as águas
rebeldes t i n h a m entrado. Os homens h a v i a m enxugado a u m i d a d e dos
olhos e a n d a v a m à p r o c u r a de a l g u m a coisa nova da q u a l pudessem pra-
guejar. Foi u m almoço c o r d i a l na cabana dos engenheiros e d u r a n t e t o d o o
tempo os canos nada d i z i a m mas s u b i a m paralelos c o m o os canos de velhas
garruchas para o teto p l a n o das nuve'hs, ao mesmo tempo que homenzi-
nhos tintos de vermelho se agitavam sobre os seus ventres de m e t r o e meio.

Fomos para a nova usina de energia, onde se usam algumas centenas


de litros da água represadas acima. A enorme extensão de água de dois q u i -
lômetros se precipita de u m a a l t u r a de seiscentos metros sobre rodas arma-
das nas pontas c o m baldes fendidos, colocados para receber j a t o s de mais
de quinze centímetros. O d i s p o s i t i v o , que é chamado de R o d a P e l t o n , gira
então rapidamente. Duas rodas dessas dão v i d a ao Demônio de Capuz —
A b u B i j F — o Pai dos Relâmpagos, d o q u a l é preciso aproximar-se de ca-
beça descoberta, pois o simples sopro d o seu hálito arranca os chapéus das
cabeças. O A b u B i j l ' é conhecido pelos seus servidores c o m o u m D i n a m o
(de muitos milhares de cavalos) e gira sobre os mancais maiores d o mundo.

Das suas agonias forçadas, nasce a "energia", que todos sabem natu-
ralmente explicar, mas de que ninguém sabe coisa alguma, exceto que a
mesma deve ser vigiada. E quando, graças às Rodas Pelton, pelas quais
não é responsável, A b u B i j l ' desenvolve a energia elétrica de que é capaz
normalmente, isto é, para que possa ser t r a n s m i t i d a a tarifas mais baixas, é
represado e alteado de seis m i l para oitenta e o i t o m i l volts por meio de
" t r a n s f o r m a d o r e s " , que são esqueletos de pagodes chineses c o m carrape-
tas de porcelana.
Os t r a n s f o r m a d o r e s são colocados n o exterior das construções, de
m o d o que, se a " e n e r g i a " sobrecarregada sai dos limites, o escândalo é dis-
cretamente c o n t i d o entre paredes de concreto, e o óleo necessário à trans-
formação ( c o m o o t r i g o e o v i n h o p r o d u z e m estranhos resultados em ou-
tros p o n t o s ) pode ser esgotado imediatamente. T o d o esse processo é cha-
m a d o de "elevação da v o l t a g e m " .
O resto da história de A b u B i j l ' é tão simples q u a n t o a de A d ã o : T e n d o
criado essa força, o h o m e m consome t e m p o e energia em conservá-la den-
t r o dos limites. A s águas d o céu que descem das m o n t a n h a s não p o d e m
deixar de fazer as rodas g i r a r e m . A b u B i j l ' não pode deixar de criar
" e n e r g i a " e, p o r isso mesmo, é forçado a desenvolver u m a consciência.
H á u m andar tranqüilo neste edifício onde o r o n c o das águas liberadas
das rodas m a l é o u v i d o . A s luzes a q u i m u d a m de cor, caem números c o m o
n u m q u a d r o de hotel mas não p o d e m ser apagados. Os números sobem a
certas alturas e ali registram os seus máximos indeléveis. Governadores co-
m u n i c a m aos governados as concessões p e r m i t i d a s e que vantagens f o r a m
tomadas. A s f o r m a s mais grosseiras de pecado elétrico são marcadas em si-
lêncio e desaparecem. T u d o isso se destina a fazer que nada em t o d a a ins-
talação se arrogue p o r u m só instante o d i r e i t o de desprender-se das neces-
sidades da carga o u s o f r a u m acidente momentâneo e isso — aí é que está o
t o q u e i n f e r n a l — sem esperar que o Espírito Superior conserte as coisas.
Chama-se a isso de ciência! Mas, de vez em q u a n d o , as generosas tempes-
tades tropicais m o s t r a m o que realmente significa a "produção de ener-
gia".
A i n d a assim os homens e l a b o r a r a m " c a p t o r e s dos relâmpagos", que
c o m o t r a n s f o r m a d o r e s , estão d o l a d o de f o r a . M a s eu h a v i a n o t a d o nas pa-
redes de o u t r a construção manchas azuis m u i t o parecidas c o m as que os
raios d e i x a r a m certa vez em m i n h a casa. Espero, p o r t a n t o , que A b u B i j l '
às vezes se alegre c o m a visita dos seus c o m p a n h e i r o s que vão d a r u m a es-
piada.
Ele estava t o c a n d o o seu t r a b a l h o e n q u a n t o o observei e os telefones
dos seus senhores lhe d i z i a m q u a n d o havia necessidade de mais o u de me-
nos energia para m o v i m e n t a r bondes e trens em cidades distantes e u m a pe-
na n u m t a m b o r mostrava o que ele estava fornecendo. Nessa h u m i l d e posi-
ção, deixei-o "cego em Gaza", c o m o Sansão. D e n t r o em pouco, o u t r o s i r -
mãos serão acorrentados ao lado dele e a i n d a mais, se f o r necessário de-
pois. A usina de força f o i p r o j e t a d a para expandir-se c o m o u m a estante
m o d u l a d a sobre o r i o z i n h o espantado.
Fomos depois olhar as águas acima d o f i r m a m e n t o que parece tão bai-
xo acima de nós. Fomos içados para o a l t o da m o n t a n h a n u m b o n d i n h o su-
penso ao lado dos canos e t o d a a v i v i d a paisagem, caindo c o m o o f u n d o de
u m a caixa, f i c o u abaixo até que pudemos avistar a quente Santos e os seus
d i m i n u t o s navios seiscentos metros abaixo.
Disseram-nos que t i n h a m t i d o algumas dificuldades c o m aquela en-
costa depois de havê-la desmatado para o assentamento dos canos. Esta-
vam p l a n t a n d o no m o m e n t o milhões de eucaliptos para dar mais coesão ao
solo. Mas as f o r m i g a s t i n h a m gostado t a m b é m da nova árvore e estavam
pensando em matá-las c o m gases. Acrescentaram que, q u a n d o se começa
a i n t e r f e r i r c o m a natureza, não se pode mais parar.
Assim, o nosso b o n d i n h o f o i p u x a d o para as nuvens e t o d o o m u n d o
conhecido desapareceu. Desembarcamos n o vazio branco na beira de u m
c a m i n h o de concreto que fazia u m a c u r v a e se lançava n o espaço. U m mo-
t o r invisível a r f o u abaixo de nós. E r a u m g r u p o de homens despreocupa-
dos a c a m i n h o de São Paulo. Nosso b o n d i n h o c o n t i n u o u e nos levou mon-
tanha acima para a densa i n v i s i b i l i d a d e de nuvens mais espessas. À d i r e i t a ,
havia a s o m b r a de longas florestas. À esquerda, u m a claridade sinistra que
sugeria longas chuvaradas. O engenheiro estava u m p o u c o a b o r r e c i d o c o m
isso porque queria que víssemos a sua cadeia de lagos. Mas c o m o p o d e r i a
ser de o u t r a maneira? A serra detém e extrai chuva de todas as nuvens que
vêm d o mar e faz cair p o r a n o três metros e meio de água. Se não fosse is-
so, não haveria represa e, t a n t o q u a n t o nos interessava, não haveria mais
que uma lavanderia em ação. Os deuses estavam à p r o c u r a de efeitos mais
requintados.
A sombra de uma m i s t u r a d o r a de cimento de dez metros, que p o d e r i a
ter sido u m b l o c o de sienito para u m a estátua de Ramsés, surgiu d o espesso
nevoeiro e, quase n o mesmo instante, a terra se a b r i u n u m a t r i n c h e i r a de
u m vermelho violáceo que os homens lá e m b a i x o f a z i a m ainda mais funda.
E r a u m f l a n c o da represa. Estavam cavando para f i r m a r u m a ala de con-
creto da mesma. O u v i m o s o b a r u l h o chocalhante das águas que caíam d o
a l t o c o m o para c o r r o b o r a r a afirmação. A l i estava a represa, a menos de
cinqüenta metros. Q u a n d o estivesse p r o n t a , teria t r i n t a metros de a l t u r a .
Deram-nos todos os detalhes em metros cúbicos e quilômetros. A represa,
insensível a todos os elogios, t o r n o u a sussurrar, mas não se m o s t r o u , exce-
to p o r u m v i s l u m b r e de u m segundo de águas plúmbeas apartadas c o m o
u m a saia ao passar p o r u m a p o r t a .
T e n t a m o s o u t r o ângulo. A l i , o m u n d o t o d o descia a p r u m o c o m o u m a
parede. D a estátua de Ramsés se p r o j e t a v a u m a e n o r m e haste c u j o gancho
c o m a r o l d a n a pendia sobre o a b i s m o e por lá se perdia. Servia a u m a o b r a
em construção a b a i x o , mas não podíamos a d i v i n h a r em que p r o f u n d i d a d e .
Estávamos ali i n t e i r a m e n t e cegos. Podíamos o u v i r homens e ferramentas
em ação, b e m c o m o o perpassar da água na pedra, mas da própria represa,
que era o coração de t u d o , não nos chegava o m e n o r traço o u v i s l u m b r e ,
salvo o riso b a i x o de águas invisíveis que escapavam para a liberdade.
O engenheiro estava, pois, a b o r r e c i d o . Mas o t r a b a l h o dele até então
t i n h a sido r i d i c u l a m e n t e fácil. O platô n o alto da serra se afasta da costa
em pequenos m o r r o s que não são m u i t o bons para a a g r i c u l t u r a . T u d o o
que ele t i n h a de fazer era fechar o c o l o de certos vales c o m concreto e espe-
rar até que a precipitação de três metros e meio p o r a n o os enchesse. En-
q u a n t o t r a t a v a disso, e n c o n t r o u u m r i o e o seu sistema que seguiam o seu
curso pré-histórico para o sul até Buenos Aires. N o t a n d o que a bacia d o r i o
não era grande coisa, dragou-a e represou-a u m p o u c o e e n c a m i n h o u as
suas águas de cheia (pois era u m r i o temperamental) para as suas represas
e, através das suas Rodas P e l t o n para o pé d a serra e, depois, através da
planície, para S a n t o s — para leste e não para o sul. C r e i o que houve neces-
sidade de u m túnel o u dois. Mas, de qualquer m o d o , ele t e m agora uma re-
de de lagos e mares interiores ligados p o r seus encanamentos e c o m u m a
capacidade de i n f i n i t a expansão mediante o f e c h a m e n t o de novos vales. As
necessidades estão sempre em expansão à m e d i d a que São Paulo descobre
que pode fazer as coisas p o r si mesmo e mais u m a estrada de ferro é eletri-
ficada para que as greves nas minas de carvão inglesas não a venham fe-
( F o i o "Agência E s t a d o " , 1927) Usina Cubatão, da Light & Power, no caminho da cidade de Santos
char. E a coisa mais simples d o m u n d o é colocar alguns A b u B i j l ' a mais
nas suas prisões de concreto. D i z e m agora que p o d e m p r o d u z i r mais meio
milhão de cavalos só deste lugar e este é apenas u m dos lugares em v o l t a de
São Paulo que podem vender mais energia.
Mas esquecem que o mistério que agora anda para c i m a e para b a i x o
pelos fios poderá d a q u i a alguns anos ser t r a n s m i t i d o pelo ar para navios e
a indústria marítima será representada por peritos diante de painéis de ins-
trumentos, d i s t r i b u i n d o em ondas direcionais a energia c o n t r a t a d a por vá-
rias linhas de navegação. Nesse t e m p o , as tempestades dos mares serão tra-
duzidas em linhas ascendentes e descendentes nos indicadores. Nessa épo-
ca, os distantes comandantes se limitarão a regular a energia de que preci-
sam, do mesmo m o d o que os seus guinchos hoje t r a t a m os cabos de atraca-
ção.
Nessa época, que será a n u n c i a d a pelo h a r a q u i r i dos barões d o petró-
leo, o Brasil, c o m o seu p o t e n c i a l i l i m i t a d o de energia elétrica, venderá ele-
tricidade dos 25 graus de L a t i t u d e N o r t e aos 60 de L a t i t u d e Sul de ambos
os lados d o seu continente, até ao m e r i d i a n o 180 a oeste e a leste, até o ou-
t r o lado da árida África.
E x p l i c o t u d o isso ao engenheiro em breves palavras. Mas ele, que pas-
sou a v i d a fazendo coisas inconcebíveis, disse que eu era "visionário" e
c o n t i n u o u a falar do seu mísero meio milhão a mais de cavalos.
Uma Criação de Cobras
Veneno de Cobra

" E m nossos lábios, veneno de c o b r a " ?


P o r que nos vindes p r o c u r a r , então,
c o m vossos homens de pés barulhentos
r o m p e n d o os laços d a nossa união?

Ouvindo tudo e pondo-nos de lado,


vez sobre vez deixamo-los passar:
revidamos os golpes, e m o r r e r a m ,
só q u a n d o nos vieram perturbar.

"Em nossos lábios, veneno de cobra"?


P o r que os abris c o m violência, então?
Só para ver c o m o a peçonha b r o t a
e pinga e r u m a para o coração?

Não é justo, sabendo que nós temos


todas as coisas que u m a cobra tem,
pegardes nossos dentes, u m p o r um,
e os espremerdes para o vosso bem.

"Em nossos lábios, veneno de cobra":


é a vossa última palavra? N ã o !
A razão de t a n t o nos odiardes
é que vaiamos a queda de A d ã o .
H á , na extremidade de u m dos intermináveis subúrbios de São Paulo,
uma fazenda de criação de cobras onde se p r e p a r a m e d i s t r i b u e m soros
contra as dentadas das cobras venenosas, que são abundantes p o r aqui.
C o m o t u d o o que t e m a l g u m v a l o r , resultou da idéia e d o t r a b a l h o de
u m só homem. Infelizmente, p o r ocasião da nossa visita, o h o m e m estava
ausente na costa. M a s encontramos a " f a z e n d a " entre belos terrenos, ao
f i m de uma impecável estrada — u m a grande casa fechada entre o verde
agressivo dos gramados bem aparados e dos canteiros de flores.
U m g r a m a d o , cercado p o r u m m u r o b a i x o , era p o n t i l h a d o de estrutu-
ras semelhantes aos kraals dos cafres de meio m e t r o de a l t u r a , cada q u a l
aberto n u m pequeno arco. U m fosso, de a l g u m a largura, se estendia entre
o g r a m a d o e o m u r o que se p r o j e t a v a u m p o u c o ao elevar-se da água.
N a d a mais aparecia, movia-se o u fazia b a r u l h o d e n t r o d o calor, d o es-
paço e da luz avassaladora, até que u m a p o r t a se a b r i u na fachada d o pré-
d i o e nós passamos m u i t o satisfeitos p a r a u m silêncio refrescante. U m a
m o ç a vestida de l i n h o branco nos levou-por u m c o r r e d o r que nos p e r m i t i u
ver de relance u m a sala c o m prateleiras cheias de vidros e u m leve cheiro de
verniz, madeira e substâncias químicas. Depois, houve u m b l o c o de sólido
silêncio, enquanto retratos de homens eminentes nos o l h a v a m das paredes
claras.
O u v i m o s então passos ressoantes e u m h o m e m m o ç o e n t r o u , vestido
c o m o u m j u i z de algum esporte c o m calças curtas de l i n h o , sapatos baixos
e meias brancas. Convidou-nos a sair para o ar quente e trêmulo. Levava
como a r m a uma bengala c o m u m pedaço de arame d o b r a d o em ângulo re-
to na ponta.
Levou-nos para o pequeno recinto m u r a d o , e n t r o u nele pelo fosso e f i -
cou de pé entre os pequenos kraals c o m o se estivesse t o m a n d o u m a deci-
são. T i n h a ele, p o r acaso, esquecido as perneiras? De m o d o algum, mas as
perneiras eram desnecessárias, além de quentes. E, p o r falar em perneiras,
é preciso saber que em geral as cobras não p o d e m atingir u m h o m e m acima
do j o e l h o . P o r isso, em muitas fazendas e fábricas distribuem-se perneiras
aos homens que t r a b a l h a m nos campos. São usadas? N ã o , a menos que os
homens sejam obrigados a isso. E m p r i m e i r o lugar, é uma idéia nova; de-
pois, impede o livre m o v i m e n t o das pernas.
Acontece que uma cobra da floresta que se preza detesta a claridade,
tanto quanto o elefante. Por isso, existem os pequenos kraals com suas di-
minutas aberturas. O moço experimentou o interior de um deles com a
bengala e t i r o u , balançada na arma, uma cobra, cujo nome nos disse. O
corpo da cobra caiu com um som rascante no mato seco à beira do fosso
mas logo se recuperou com uma rapidez de relâmpago, com a cabeça já le-
vantada e voltada para o homem. Este fez menção de atingi-la com o pé
calçado. A cobra reagiu a meio, mostrou a boca cor de morte e enrolou-se
de novo nos seus anéis, praguejando um pouco. Talvez já conhecesse a ro-
tina ou estivesse atordoada pela claridade do sol.
O homem foi de kraal em kraal, tirando, sempre suspensa do arame
da bengala, uma cobra após outra, que ele jogava ao lado da primeira, de-
pois de dar-lhe o nome. E cada cobra, quando ficava no chão, voltava a ca-
beça para ele como se o homem tivesse estado em serviço desde a expulsão
do Éden. A recuperação, depois que eram atiradas ao chão, era mais rápi-
da do que a visão podia seguir, porque uma cobra fora de sua posição é a
coisa mais indefesa que pode existir, mas a orientação da cabeça é mais rá-
pida do que a recuperação.
Então, quando o rolo desordenado e indignado de cobras aumentou,
uma delas foi tirada do seu escuro e caiu do arame desajeitadamente, quase
em linha reta, e ficou de barriga para cima a arquejar penosamente por to-
da a extensão dela. Parecia unicamente interessada na tarefa de morrer e
foi abandonada a si mesma. U m animalzinho correu sobre ela no fosso on-
de ela se debateu ansiosamente para cima e para baixo, em busca de fuga.
Mas o Arquiteto do Universo delas tinha previsto que não haveria desenla-
ce na água calma e ela voltou, por sobre a borda convenientemente áspera
para o lado da prisão. Uma companheira, aproveitando a confusão, flu-
tuou pelo fosso sem esforço num grande rolo, mas sempre com a cabeça
voltada para o homem.
Algumas outras no bolo de cobras começaram a voltar para os kraals
mais próximos, como minhocas que deslizam pela grama quando a lata de
iscas se entorna.
Havia entre elas algumas cascavéis — grandes e zangadas — que le-
vantavam a cabeça e avisavam. O chocalho lembra o barulho de sementes
(Foio • Agência Estado", 1920) Pequena vista das docas de Santos, o maior porto de exportação de café
em todo o mundo
secas dentro de u m a fava, pelo menos o suficiente para insinuar que há
m o r t e na panela e, curiosamente, o ruído impressiona a quem já o tenha
o u v i d o alguma vez, tanto atrás de m u r o s seguros q u a n t o em c a m p o aberto.
Tínhamos um c o m p a n h e i r o que conhecia e parecia amar as cobras de sua
terra. Ele e o m o ç o conversaram m u i t o sobre elas (o nome de muitas parece
começar pela sílaba ja) e, para p r o v a r alguma coisa, u m a cabeça chata de
cobra f o i presa pela bengala com arame, agarrada por trás d o pescoço f i n o
e, c o m u m ruído c o m o o de camarões que se descascam, a boca f o i forçada
a abrir-se para pôr em ação as presas. Mas estas não c o n t i n h a m veneno no
m o m e n t o e a cobra f o i j o g a d a no refugo, c o m o um j o r n a l lido o u c o m o um
político que t e r m i n o u o seu mandato.
— Sim, todas as cobras neste cercado são venenosas. Umas mais, ou-
tras menos, mas todas o são bastante. São recolhidas aqui. D u r a m de u m
ano a u m ano e meio. N ã o , não são alimentadas porque, q u a n t o mais f a -
mintas, mais venenosas se t o r n a m . — ( F o i t a m b é m u m d o m que a Serpente
legou aos filhos de Adão.) — A l é m dos nossos caçadores regulares, os f a -
zendeiros nos m a n d a m cobras. E m t r o c a de cada cobra, venenosa o u ino-
fensiva, o I n s t i t u t o remete u m a dose de soro, j u n t a m e n t e c o m caixas per-
furadas para que nos sejam mandadas mais cobras. É claro que o melhor
soro é o f e i t o c o m a mesma espécie de cobra que m o r d e u a pessoa. Mas
nem i o d o m u n d o sabe qual f o i a cobra que atacou e, p o r isso, um soro
" g e r a l " é m a n d a d o para os fazendeiros. C u r a t a m b é m sem dúvida, mas a
cura é mais d e m o r a d a e mais d o l o r o s a d o que c o m o soro especializado.
N ã o há perigo a l g u m em pegar cobras e, se a l g u m a coisa acontecer, as inje-
ções estão sempre à m ã o . As cobras caçam realmente os homens? Só há
uma espécie de cobra que gosta de caçar homens. Todas as outras só que-
rem é f u g i r , as inofensivas p r i m e i r o e, depois, as venenosas. C o m p r e e n d a ,
uma cobra venenosa nunca t e m medo. N ã o se apressa nunca. Bem, há his-
tórias a respeito de u m a cobra que é atraída pelo cheiro da fumaça da lenha
ou do f u m o e segue o cheiro até cair d e n t r o d o f o g o . Q u e m sabe? A s co-
bras são todas curiosas. Quer ver agora as inofensivas?
Seguimos ao l a d o d o m u r o d o cercado mortífero e passamos por o u t r o
local t a m b é m m u r a d o , mas onde a g r a m a não era aparada h a v i a a l g u m
tempo e quase encobria os pequenos kraals. Por quê?
— É onde as cobras p r o c r i a m . N ó s as deixamos em paz aí d e n t r o .
Deve ter sido imaginação, desde que não h a v i a o m e n o r sopro de ven-
t o , mas u m t u f o de m a t o se a b r i u e c u r v o u q u a n d o estávamos o l h a n d o ,
mas, de q u a l q u e r maneira, dava satisfação pensar que as cobras f i c a v a m às
vezes em paz e não t i n h a m de arreganhar os dentes p a r a os estranhos.
A s cobras não-venenosas v i v i a m n u m cercado c o m u m a pérgula cober-
ta de trepadeiras e u m a árvore n o centro. Os t r o n c o s se entrelaçavam de
u m l a d o p a r a o u t r o e ultrapassavam a pérgula. E r a exata e perfeita a camu-
flagem de c u r v a e cor ( u m a vez que a vista percebesse o t r u q u e ) c o m que al-
gumas cobras m u i t o finas a g u a r d a v a m esperançosas os pássaros que n u n c a
pousavam ali.
O h o m e m que nos a c o m p a n h a v a disse que a árvore estava t a m b é m
cheia de cobras, mas os pássaros d o lugar sabiam de t u d o . Aquelas cobras
são de u m a espécie que sempre caça dessa maneira. P o r isso, subiam e co-
p i a v a m as trepadeiras, o m o s q u e a d o e os discos de sol entre as folhas e até
a f o r m a dos galhos. De f a t o , até h a b i t u a r m o s os olhos a ver sem pestane-
j a r , ficamos sem perceber que se t r a t a v a de o u t r a coisa. A g r a m a curta p o r
trás d o m u r o estava cheia de cobras, a princípio invisíveis. Depois, q u a n d o
então não se v i a nada mais, a m o n t o a d a s em grupos de duas e de três, entre
as folhas. U m a delas, ostensivamente n o a l t o , sem p r o c u r a r esconder-se
mais d o que u m a l a r a n j a , era u m a c o b r a amarela e vermelha c o m cauda de
r a t o , e q u a n d o atacou o pé d o h o m e m fez u m m o v i m e n t o rígido, sôfrego e
frenético c o m o o de u m c a c h o r r o . P a r a meter mais medo, e s t u f o u as fibras
atrás d o pescoço e pareceu mais o u menos u m a c o b r a capelo.

— Pode m o r d e r u m p o u c o , m u i t o não — disse o h o m e m , oferecendo-


lhe u m a d o b r a das calças de l i n h o . A c o b r a atacou e m o r d e u , mas l o g o lar-
g o u o p a n o de boca seca e saiu c o m o pescoço rígido, suplicante e erguido,
c o m o se estivesse p r o c u r a n d o f u g i r de si mesma o u em busca de u m liberta-
dor. ( P o r que ela me l e m b r o u L a d y M a c b e t h na cena de s o n a m b u l i s m o é
o u t r o mistério.) E n q u a n t o isso, nosso c o m p a n h e i r o i d e n t i f i c a r a uma pe-
quena c o b r a que ele certa vez t r o u x e r a d o N o r t e .

— E u não sabia se ela p o d i a fazer a l g u m a coisa, mas nada fez d o Pará


até aqui. P o r isso, devia estar bem.
Ele a a f a g o u e a cobra, graciosa c o m o L i l i t h , enroscou-se em t o r n o d o
seu braço.
Por último, vimos u m a pequena jibóia, menos a b a n d o n a d a d o que o
resto, porque as jibóias têm queixadas quase humanas e pequenos focinhos
de porco. Estava m u d a n d o a pele e, p o r isso, estava quase cega, bem c o m o
enegrecida e esfolada em t o d o o seu c o n t o r n o .
— A jibóia pode m o r d e r também. Mas n o N o r t e , onde é criada c o m o
a n i m a l doméstico para combater os ratos, nunca m o r d e as pessoas da casa.

N ó s a deixamos parada e a t o r d o a d a , esperando a m u d a que a fará de


n o v o verde, purpúrea e d o u r a d a , e o h o m e m deu a nosso c o m p a n h e i r o a
cobra pela q u a l se afeiçoara, n u m a caixa de papel p e r f u r a d a .
F o m o s então para u m dos distantes museus onde estão as tarântulas; e
modelos de cera em t a m a n h o n a t u r a l d o que acontece ao c o r p o h u m a n o
depois das dentadas. A l i havia de n o v o silêncio e calor e u m a j o v e m estu-
dante vestida de l i n h o b r a n c o estava presente, enquanto as flores c i n t i l a -
v a m d o l a d o de f o r a da sala de paredes claras. Os modelos eram repulsivos,
mas havia dois que d e m o n s t r a v a m a diferença entre os arranhões mistos
dos dentes de u m a c o b r a não-venenosa e a d u p l a perfuração suficiente das
presas venenosas, que me t r o u x e r a m , acima da náusea, a lembrança de
u m a noite em que a perna de u m h o m e m quase desfalecido f o i examinada à
luz de fósforos à p r o c u r a de certos sinais, e ele desatou a c h o r a r lágrimas
de alívio ao saber que i r i a sobreviver.
As tarântulas são manifestamente criações pessoais d o D i a b o . N ã o
são maiores d o que o p u n h o fechado e se a l i m e n t a m v i v e n d o em compa-
nhia de u m a c o b r a f i n a de t r i n t a centímetros de c o m p r i m e n t o que fica viva
até ao f i m da quinzena seguinte. Nessa ocasião, a tarântula m a t a a c o b r a e
come-a descansadamente. Olha-se p a r a os belos m u n d o s de teto de gaze e
paredes de v i d r o , cada q u a l c o m u m chão de terra vermelha e u m a l a t i n h a
de lã m o l h a d a para manter a u m i d a d e necessária à i n q u i l i n a e à sua ração.
N u m a j a u l a , u m a fêmea tivera filhotes d o t a m a n h o de moedas de u m pen-
ny. Concedem-se, o f i c i a l m e n t e , vinte e q u a t r o horas a u m a pessoa m o r d i -
da p o r tal senhora, mas, nesse tempo, não poderá ela tratar da sua vida.
V o l t a m o s , já de saída, à claridade exterior e passamos p o r o u t r a série
silenciosa de prédios brancos, onde f i c a m os cavalos e o u t r o s animais atra-
vés de cujos organismos os venenos são atenuados e c o n t r o l a d o s a f i m de
que possam viver mais t e m p o pessoas que de o u t r o m o d o t e r i a m t i d o u m a
m o r t e horrível.
D i z e n d o as coisas pelo a l t o , o processo começa c o m u m a injeção i n f i -
nitamente pequena d o veneno n u m c a v a l o t r a t a d o cuidadosamente. O ani-
m a l reage mas vive, pois a dose é agora b e m conhecida, e a injeção é grada-
t i v a m e n t e a u m e n t a d a até que o mesmo possa resistir p r o p o r c i o n a l m e n t e a
tanta q u a n t i d a d e d o veneno q u a n t o u m c o m e d o r de ópio resiste ao láuda-
no. Depois, recolhe-se u m p o u c o d o seu sangue e o soro, depois de atenua-
do e esterilizado, passa a ser o antídoto. Q u a n d o o mesmo é a p l i c a d o n u m
h o m e m que dele necessita, os dois poderes se g u e r r e i a m n o l a d o físico, co-
m o se pode ver o espírito a dilacerar a a l m a de u m pecador "em j u l g a m e n -
t o " até que ele encontre a salvação. T o d o s os músculos, nervos e corpúscu-
los sangüíneos p o d e m entrar em ação, mas n o r m a l m e n t e , depois dos ester-
tores e desintegrações, o c o r p o se recupera e, desde que é irmão da alma,
d e n t r o de p o u c o t e m p o põe t o d o aquele pesadelo a serviço d o restabeleci-
m e n t o da saúde. D i z e m , porém, que tal processo não é agradável de ver, e
há pessoas que pensam e t r a b a l h a m a v i d a i n t e i r a para torná-lo menos vee-
mente.
Mas, a f i n a l de contas, a cura única das dentadas venenosas é o pé d o
h o m e m que abre c a m i n h o s de cabana a cabana, de c a m p o a campo, de san-
tuário a santuário, de u m e x t r e m o a o u t r o da terra.
A c o b r a odeia o aspecto e o j e i t o d o chão pisado pelo pé d o h o m e m , o
cheiro d o gado que segue o h o m e m , as enxadas e os machados que c o r t a m
os matos perto dos seus n i n h o s e as pesadas rodas que p r o d u z e m terremo-
tos sob as suas barrigas sensíveis.
São Paulo e Uma
Fazenda de Café
Portas Abertas

Agradável país é a Inglaterra,


salvo o vento que pelo chão resvala.
P o r isso, a t o d o instante és prevenido,
q u a n d o é de f r i o a passagem: " Q u e r i d o ,
olha a p o r t a , esqueceste de fechá-la!"

O Vento Sul sopra isso, no tapete


j u n t o à lareira as felpas m o s t r a m isso,
a T i a em sua mesa sabe disso:
" O l h a a p o r t a , esqueceste de fechá-la!"

Fecha, fecha essa porta, meu querido!


N ã o deixes a p o r t a aberta, p o r nada,
até que, envelhecendo, possas ir
lá onde o f r i o não se faz sentir
nem há p o r t a que u r j a ser fechada!

E...

A esplêndida varanda mostra isso,


a magnólia branca sabe disso,
a f l o r - t r o m b e t a branca toca isso:
não há p o r t a que u r j a ser fechada!

A perereca atenta sabe disso,


o vaga-lume à noite mostra isso,
o clarão do L u a r revela isso:
não há p o r t a que u r j a ser fechada!

As praias cor de leite sabem disso,


as mais sedosas brisas sopram isso,
raios do Sol nascente m o s t r a m isso:
não há p o r t a que u r j a ser fechada!
H á u m a história, amada pelas cidades rivais, segundo a qual São Pau-
lo está onde está p o r q u e f o i o p r i m e i r o lugar onde os viajantes p o d i a m des-
cansar para sacudir e enxugar o c o r p o depois de passarem pelo cinturão de
nuvens de chuva d o l i t o r a l . Os homens eram naquele t e m p o uma raça tur-
bulenta e aventurosa que se espalhava p o r todos os cantos em busca de es-
cravos, de minerais e de todas as espécies de morte. Q u a n d o t o m a r a m
consciência das suas virtudes, e isso não d e m o r o u m u i t o , chamaram-se de
paulistas e o l h a r a m c o m superioridade para o resto d o mundo. A t u a l m e n -
te, alegam guiar o país espiritual e m a t e r i a l m e n t e e f a l a m do " B r a s i l " u m
p o u c o c o m o B i r m i n g h a m , Manchester e o u t r o s lugares assim f a l a m da
" I n g l a t e r r a " . E, o que é m u i t o p i o r , c o n f i r m a m c o m atos as suas palavras.
Chega-se à cidade de c a r r o através d o c a m p o aberto e preparado para
desenvolvimento desde várias léguas antes que se avistem no h o r i z o n t e os
contornos cinza e creme de várias imensas M a d r i s , p o r assim dizer. N ã o é
preciso que ninguém nos diga que a q u i está u m a metrópole. A s necessida-
des d o transporte a c r i a r a m e ela ficou-como u m a espécie de c ô m o d a pou-
sada e centro de distribuição, c o m u m a alegre história própria. C h e g o u en-
tão o Café, que é o rei destas bandas, e São Paulo cresceu até ser u m a cida-
de e oferecer aos fazendeiros os prazeres da " v i d a " . Depois, começaram
t i m i d a m e n t e as fábricas e u m a grande imigração de latinos. P o r último, a
Guerra, q u a n d o os fornecimentos se estancaram, forçou o Brasil a desen-
volver a sério os seus recursos. São Paulo t o m o u a frente então e expandiu-
se para o i n t e r i o r , onde não há razão p o r que deva parar. A s suaves ladei-
ras e colinas que a cercam f o r a m feitas para o c o n s t r u t o r , que pode encon-
trar areia e b a r r o para t i j o l o s em t o d a a parte. A localização dos bairros re-
sidenciais e fabris f o i estabelecida há m u i t o tempo. Os palácios se s i t u a m
no centro de j a r d i n s perfumados, as fábricas não e c o n o m i z a m espaço, nem
a grande estrada de ferro que as a l i m e n t a c o m os seus desvios. Os subúr-
bios estendem os seus campos de jogos e a P r e f e i t u r a tem vistas largas a
respeito da construção de parques e passeios públicos.
Bastam alguns hectares de terra quente e úmida, palmeiras sortidas,
u m p u n h a d o de orquídeas e quaisquer plantas de estufa que crescem à bei-
ra da estrada. Distribui-se isso diante de uma vista de sessenta quilômetros,
acrescenta-se u m a o u o u t r a p l a t a f o r m a de concreto e, d e n t r o de dez anos,
t u d o é u m sonho de langorosa beleza. Mas o h o m e m c i v i l i z a d o , d o mesmo
m o d o que o selvagem, precisa de ter amigos, i n i m i g o s e drinques ao alcan-
ce da voz p a r a as conversas. P o r isso, o c e n t r o c o m e r c i a l de São P a u l o se
c o m p r i m e em t o r n o de u m p r o f u s o j a r d i m o r l a d o de palmeiras d e f r o n t e d o
T e a t r o M u n i c i p a l e dos clubes, onde os edifícios são constantemente derru-
bados p a r a que sejam reconstruídos c o m mais a l t u r a . Neste m o m e n t o , o
m u n d o acredita que há u m a espécie de m a g i a nas vigas de aço e nas facha-
das de pedra. Os clubes, que são mais bem i n f o r m a d o s , não têm mais nada
que aprender seja lá onde f o r em matéria de l u x o , detalhes e e q u i p a m e n t o .
M i s t u r a m lembranças de B o m b a i m e Calcutá c o m os seus a r r a n j o s pró-
p r i o s e (se a a t m o s f e r a não ilude p o r c o m p l e t o ) têm a grande e fácil aceita-
ção de Johannesburg nos velhos tempos. O que se sente em São P a u l o é o
m e s m o que se c o s t u m a v a sentir n o R a n d sul-africano — não é i m p o r t a n t e
que a pessoa em d e t e r m i n a d a época seja p o b r e o u rica; e a c o m u n i d a d e não
é capaz de dispersar-se em pânico se há acentuada crise n o mercado. O
m a i o r dos sul-africanos disse u m d i a que u m a pequena guerra estava fazen-
do todas as ações s u b i r e m ao i n f i n i t o e acrescentou: " G o s t o de ver os ho-
mens sentados n o seu d i n h e i r o e não conversando e m b a i x o dele." São
P a u l o dá certamente a impressão de estar sentado onde deve estar, c o m lar-
gueza, c o n f o r t o e c o n t e n t a m e n t o . Mas não anda mais d o que deve.
Carros e caminhões movem-se p o r t o d a a parte c o m o elétrons nos
compêndios de Física, p o r sobre grades de t r i l h o s de bondes. T o d o s os
bondes são decorados dos dois lados p o r u m f r i s o de passageiros aglutina-
dos. O trânsito — m u i t a s das ruas internas são de m ã o única — é regulado
p o r homens da polícia de cassetete e caderno n a m ã o (esta última parte é
u m a f r a q u e z a dos latinos n o m u n d o i n t e i r o ) , p o r policiais de patente supe-
r i o r c o m cadernos maiores e rédeas na m ã o , m o n t a d o s nos cavalos mais sa-
bidos e mais calmos que já nasceram; e p o r superpoliciais, segundo creio
c o m livros de escrituração, e encarregados dos sinais l u m i n o s o s verdes e
vermelhos. A o f i m de t u d o isso, d e i x a m o trânsito ultrapassar de u m l a d o e
do o u t r o i n d i f e r e n t e m e n t e , e se espantam de que o índice de acidentes não
baixe. Mas, c o m o influências n o sentido da estabilidade, a i n d a há o b u r r o
reacionário, e nos subúrbios, o tranqüilo c a r r o de bois que até os cami-
nhões respeitam.
-» 1

Um bonde elétrico da Light, na capital paulista, no ano de 1927


(Foto "Agência Estado")
Os enormes subúrbios que crescem dia e noite c o m e ç a m p o r u m a pa-
vimentação irrepreensível e t e r m i n a m , o i t o quilômetros adiante, em ravi-
nas, barrancas e atoleiros de terra vermelha. Mas que é que se vai fazer? O
t r a b a l h o dos homens é necessário para outras coisas; e, em m u i t o s lugares,
até o material é escasso. U m a estrada para ter a l g u m a utilidade a q u i deve
ter uns cento e cinqüenta quilômetros de extensão e as condições d o tempo
arrancarão e levarão t o d o o metro desprotegido dela, c o m o pode ver por si
mesma qualquer pessoa que v i u uma torrente de quinze centímetros de pro-
fundidade precipitar-se pelas ruas pavimentadas, depois de uma hora de
um aguaceiro leve.
Os inúmeros carros deste lugar fazem o possível para combater as con-
dições existentes. T ê m suspensões m u i t o altas, a l a r g u r a é regulada pela b i -
tola dos trilhos dos bondes, que são muitas vezes nos subúrbios as únicas
partes utilizáveis de u m a estrada. D a n ç a m c o m o cestos, m e r g u l h a m e mar-
telam c o m o tanques e os seus cavalos lhes p e r m i t e m desvencilhar-se de u m
chão vermelho escorregadio c o m o q u i a b o e sobreviver. P o r o u t r o l a d o , as
portas são ruins e m a l projetadas, há faixas niqueladas na frente e atrás, as
capotas baixas e grosseiras i m p e d e m a visão e ainda há u m r e b o t a l h o de
cortinas de oleado c o m janelas de m i c a que têm de ser pescadas de detrás
dos bancos e presas p o r meio de ganchos e botões c o m o r o u p a na corda.
Suas capotas cheias de ferros e em f e i t i o de crinolinas são praticamente f i -
xas e suas mudanças são quase tão barulhentas q u a n t o os anúncios que as
recomendam.
Todas essas coisas f o r a m percebidas n u m a viagem de u m a estação n o
interior para u m a fazenda de café, u m a pequena propriedade de meio m i -
lhão de pés, cuja sede ficava apenas a sete quilômetros. A q u i , o h o m e m
d o m i n o u visivelmente a natureza. Até onde a vista alcançava, os cafeeiros
plantados a intervalos regulares de três metros e meio e suas cerejas que se
avermelhavam c o b r i a m t o d a a terra o n d u l a n t e . B l o q u e a v a m t o d o o ar que
pudesse correr pelas estradas retas e pareciam amortecer todos os ruídos.
Era c o m o se estivéssemos a n d a n d o d e n t r o de u m a pelagem p r o f u n d a e ma-
cia de a n i m a l . N ã o v i m o s ninguém, exceto u m a italiana, u m p o n t o minús-
culo a princípio entre pinceladas paralelas produzidas até ao i n f i n i t o .
Disseram-me que os pés de café são distribuídos, tantos milhares de pés a
cada família, a q u a l , na h o r a e de a c o r d o c o m os a r r a n j o s que fizer, t r a t a
deles. Depois que isso é f e i t o na estação própria, as pessoas têm liberdade
de c u l t i v a r a terra p o r sua conta, p l a n t a n d o o que quiser. H a v i a u m a aldeia
de trabalhadores nas p r o x i m i d a d e s , mas não v i m o s n e m o u v i m o s sinal dela
na densa c o b e r t u r a e silêncio de t u d o .
Chegamos então a u m silêncio a i n d a mais p r o f u n d o — o sossego com-
pleto de u m a velha casa de telhados baixos e grandes varandas, pousada
c o m as m ã o s cruzadas entre os seus gramados, terraços, piscinas, estátuas
e árvores f l a m e j a n t e m e n t e f l o r i d a s . S i m , a l i estava o c e n t r o das coisas, a
sede da administração. O coração começou a bater. Vozes de crianças, es-
pantosamente distintas, levantaram-se de detrás de sebes e de paredes p i n -
tadas, aparecendo então u m a vigilante c o o r t e de i n f a n t a r i a , que ia de qua-
se u m m e t r o a m e t r o e m e i o de a l t u r a . Fizeram o reconhecimento e desapa-
receram, e suas exclamações, n u m a comparação dos fatos experimentados,
ecoaram em barracões e armazéns atrás das paredes. H o u v e então uma
h o s p i t a l i d a d e p r o n t a , fácil e em voz b a i x a que datava — sabe-se lá desde
q u a n d o ? — d o t e m p o em que a casa era nova.
O lugar t i n h a s o f r i d o alterações e modernização e devia estar repleto
de aparelhos elétricos, talvez geladeiras que se e n c o n t r a m em todos os
a p a r t a m e n t o s acanhados de São P a u l o , mas o espírito que o animava,
através de t o d o s os q u a r t o s m a l i l u m i n a d o s que se a b r i a m uns nos o u t r o s ,
v i n h a de gerações inalteradas. P r o c u r a m o s saber a l g u m a coisa sobre a ve-
lha casa. Q u e m h a v i a m o r a d o ali antigamente? E especialmente, q u e m vive
lá à noite? É evidente que não se p o d e m colher m u i t a s informações d u r a n t e
u m a simples visita para t o m a r u m a xícara de café. A casa? Oh, a casa f o r a
c h a m a d a assim e assim. T i n h a p e r t e n c i d o sempre a f u l a n o . P r o d u z i a café,
sem dúvida. H a v i a mais de cem anos, p r o d u z i a café. E, antes disso, sempre
t i n h a h a v i d o u m a casa a l i .
— A mesma?
— P o r que não?
H a v i a u m a porção de antigos d o n o s para escolher. A terra poderia ter
sido parte da concessão de u m A l b u q u e r q u e o u sua c o n q u i s t a pessoal em
1560; o u de João R a m a l h o em 1520; o u de a l g u m Souza de espada em pu-
n h o e a r m a d u r a mais o u menos na mesma época. Podia-se pesquisar isso
depois, mas o que se sentiu n o m o m e n t o , acima das xícaras e dos cigarros,
f o i a alucinante certeza de que qualquer velho servidor nas imensas cozi-
nhas provavelmente sabia t o d a a sucessão dos donos (e de suas mulheres)
tão bem q u a n t o as vigas d o teto. M a s t u d o isso estava trancado e não era
de m o d o a l g u m tão i m p o r t a n t e q u a n t o o sabor e a m i s t u r a d o café. Daque-
le café basta dizer que me p e r m i t i u descobrir que eu nunca havia p r o v a d o
realmente café até então. Pode-se t o m a r a beberagem mágica em grandes
xícaras, cada q u a l m e l h o r que a a n t e r i o r , e d o r m i r beatamente depois. E o
café a j u d a t a m b é m fortemente a realçar o sabor dos cigarros brasileiros,
que, c o m o o café, são u m a coisa à parte. M a s a própria casa, a casa tran-
qüila e de pálpebras pesadas, ficava atrás e acima de m i m , t o d o o t e m p o a
m u r m u r a r que antigamente — pelo espaço de gerações — u m h o m e m era
aqui senhor, rei e j u i z sem apelação. O q u e poderia atingi-lo através d o ca-
fé, exceto c o m sua permissão? Para a q u i p o d i a ele trazer a noiva e, se q u i -
sesse, ela aqui ficaria para sempre. M a s agora as noivas vão ao Rio e a Pa-
ris e t r o c a m os velhos brilhantes, m a l lapidados e sedosos das mães, p o r
duras pedras modernas. Perto d a q u i (não me m o s t r a r a o local) os donos
p o d i a m enterrar os seus mortos. P o r estas intermináveis avenidas de árvo-
res fiéis, cavalgavam amigos e companheiros de prazeres e havia u m lugar
(que t a m b é m não me seria m o s t r a d o mas de que a casa se lembrava m u i t o
bem) onde as questões se resolviam c o m espadas o u pistolas nas manhãs
frias. Q u e m poderia j u l g a r u m h o m e m o u j u l g a r os velhos capitães das
bandeiras? A l i , insistia a casa, quem tivesse olhos de ver veria o coração d o
velho Brasil, na sua c o n t i n u i d a d e , nas suas reservas, nas suas cortesias e na
sua força.
— T o d o o nosso café v a i para o N o r t e em vapores a f i m de ser mistu-
rado para os mercados europeus. O M o c a não é o verdadeiro café, mas
apenas uma maneira de secá-lo. Q u a n d o o preço d o café sobe, o j o g o é ani-
m a d o nos clubes. O governo está tentando estabilizar os preços do café,
guardando-o em armazéns que deve ter visto ao lado da estrada de f e r r o .
Assim c o r r i a a conversa em t o r n o da mesa onde o nosso m o t o r i s t a ,
tão imponente q u a n t o os outros, f u m a v a o seu cigarro e t o m a v a o seu café.
E n q u a n t o isso, a casa e os móveis nos o p r i m i a m c o m o peso de inefáveis
lembranças.
H a v i a u m a casa de fazenda p e r t o de Cape T o w n , que, antigamente,
c o n v i n h a deixar vazia p o r u m período de seis semanas todos os anos pois
havia certas visitas que precisavam dos q u a r t o s e, se a pessoa não saísse p o r
bem, era expulsa p o r elas. Mas q u a n d o a pessoa não era de raça holandesa,
elas c o n t i n u a v a m nos seus d i v e r t i m e n t o s rigorosamente d e n t r o da q u a r t a
dimensão e não se t o m a v a c o n h e c i m e n t o delas. T i v e de tranqüilizar-me
c o m esse pensamento, q u a n d o comecei a pensar n o que seria u m a noite
passada d e n t r o daquela casa.
M o s t r a r a m - m e depois o que acontece aos montões de cerejas verdes-
cinza e sem gosto e c o m o são as mesmas misturadas debaixo de grandes te-
lhados cujos mourões e c u j o m a d e i r a m e é t o d o f e i t o de preciosas madei-
ras de lei, que m a l vale a pena indicar.
— A h , sim, isso é tal o u q u a l madeira, mas não sei q u a n d o f o i coloca-
da aí. Nossas madeiras são u m p o u c o difíceis de conseguir. N ã o crescem
nas matas em grupos t o d o s de u m a só espécie. São achadas u m a por u m a e,
depois de cortadas, têm de ser arrastadas por d e n t r o d a mata, que em geral
fica n u m m o r r o b e m íngreme.
E u t i n h a visto isso ao l o n g o da estrada de f e r r o e f o r a de São P a u l o ,
onde, d u r a n t e a G u e r r a , f o i preciso fazer lenha e arrastá-la pelas encostas a
p r u m o das m o n t a n h a s devastadas. As cicatrizes estão sarando graças a no-
vos crescimentos que parecem manchas na floresta mais alta. D i z e m que o
preço da lenha q u a n d o era entregue fazia até São P a u l o reclamar. Mas a le-
nha era necessária e as fábricas e as estradas de f e r r o não p o d i a m parar.
— A G u e r r a nos ensinou m u i t o e deu u m a chance a São Paulo.
Seguiu-se u m a discussão geral que m o s t r o u que os p r o d u t o r e s de a r t i -
gos básicos se e s t i m a m t a n t o q u a n t o quaisquer o u t r o s especialistas. H a v i a
outras terras que p r o d u z i a m café, é verdade, o Quênia era u m a delas, mas
a produção de cada país carecia de a l g u m a sutileza de a r o m a o u de cor que,
e m b o r a m u i t o s tipos fossem realmente excelentes, não chegava aos pés
de... E cada q u a l p o d i a t i r a r as suas conclusões.
O u v i r a assim, nos velhos tempos, os plantadores de chá de Assã e de
T i r h u t f a l a r e m dos de Ceilão e vice-versa, o u críticos que se esforçavam
p o r explicar a u m público desinteressado p o r que a o b r a de A é tão b o a e a
de B é tão medíocre. Lembrei-me então das palavras de u m displicente do-
no de tabacaria inglês: "Em nosso comércio, t u d o se reduz a alguns gran-
des nomes de marcas e o resto é falsificação. C h a m a m o s a isso de
'mistura'."
O que me d e r a m para t o m a r naquela casa de fazenda não t i n h a nada
de c o m u m com qualquer coisa que se encontre f o r a d o Brasil.
Atrás dos armazéns, havia pomares vastos e bem cuidados, nos quais,
não obstante, u m desperdício de inúmeras frutas r o l a v a pelo chão.
— O que podemos fazer? As frutas crescem aos milhões. Expedimos
sempre grandes quantidades. Sempre resta mais. Sim,foi t u d o p o d a d o e ca-
pinado recentemente. V ê c o m o t u d o está agora?
A vegetação rasteira b r o t a v a p o r t o d a a parte e já l u t a v a em t o r n o dos
troncos das árvores, c o m aquela ínfima sugestão apavorante, mais b a i x a
do que u m a lamúria, da terra a sugar através dos lábios úmidos.
— O que aconteceria se deixassem de cuidar de t u d o d u r a n t e u m ano?
U m lento gesto c o m as m ã o s sobr,e as folhas verdes e as gavinhas sô-
fregas disse t u d o .
O r o n c o de nossos carros f o i u m agradável regresso às coisas n o r m a i s
da vida. A casa da fazenda, q u a n d o a deixamos sob o pálio de u m a n u v e m
baixa, tornou-se rapidamente, c o m o u m a cigana que se t r a n s f o r m a de u m a
leitora de buenadicha m o r e n a n u m a mulher c o m u m chapéu grande, u m a
velha casa de fazenda, u m t a n t o digna de ser vista, e a algazarra das crian-
ças a manteve nessa h u m i l d e tentativa.
A chuva caiu então de repente, c o m o acontece nos trópicos, e os t r i -
lhos vermelhos de terra se s o l i d i f i c a r a m imediatamente. Nosso m o t o r i s t a
t i n h a trazido as correntes para os pneus, mas c h o v i a m u i t o para suspender
algumas das inadequadas cortinas laterais e voltamos sem correntes, e dan-
do guinadas — não apenas derrapando, mas p a t i n a n d o , meio m e t r o em ca-
da derrapagem — até que caímos em a l g u m t r i l h o .
Onde duas estradas de fazenda se c r u z a v a m n u m terreno de subida, v i -
mos u m enorme caminhão carregado, governado c o m d i f i c u l d a d e p o r u m
m o t o r i s t a negro de pescoço de t o u r o , agarrado ao volante desobediente.
Surgiu de u m f u n d o de cafezais molhados, elevou-se c o n t r a o céu tempes-
tuoso exatamente c o m o uma escuma em m a r r e v o l t o . C a i u com o vento,
levantou-se de novo e m e r g u l h o u além da crista n u m espalhar de espumas.
Chegamos à estação da estrada de f e r r o e a todos os luxos das viagens
modernas, graças a repetidos milagres, n u m tobogã que precisava m u i t o de
esgotar a água.

92
Terreiro para a secagem do café numa antiga fazenda no Estado de São Paulo
Estradas de Ferro e Uma
Subida de Seiscentos
Metros
"Só em Navios"

Só em Navios mesmo e em frágeis Barcas


singrando os altos Mares
se vê c o m o dependem dessas Arcas
nossos finos manjares.
Pois q u a n d o necessita algo de usar,
mastigar o u beber,
precisa o H o m e m rodar o Hemisfério
e o Oceano vencer.

Lembrem-se agora de que junto ao mar


a plantação indiana
dá chá e algodão para o nosso gasto,
e dá açúcar de cana
— cujas rotas não nos preocupam mais
que o pão de cada dia...
Mas q u a n d o os H o m e n s têm de ir lá buscá-los
— ah, que imensa p o r f i a !

Nação e Povo lançam-se à colheita


nas terras tropicais,
c o m máquinas de fôlego pesado
trazendo materiais
— que já, c o m o p o r força de Hecatombes,
atulhados se v ê m
nos ventres de nossas Frotas, trazendo
à cidade os seus bens.
Já dissemos c o m o tínhamos sido içados n u m a diferença de nível de
seiscentos metros que ocorre abruptamente na estrada entre Santos e São
Paulo, e nos h a v i a m p r o m e t i d o que desceríamos de trem.
Isso serviu de pretexto para u m passeio. Os homens da estrada de fer-
ro que ligava as duas cidades disseram: "Certamente! Haverá u m c a r r o de
inspeção c o m gente para explicar. N ó s lhe mostraremos u m a l i n h a ! "
Era u m a c o m p a n h i a de p r o p r i e d a d e estrangeira e em grande parte ad-
m i n i s t r a d a por estrangeiros que, pelos termos d o seu c o n t r a t o , está p r o i b i -
da de pagar mais d o que d e t e r m i n a d o d i v i d e n d o . O resto t i n h a de ser inves-
t i d o na estrada. P o r isso, há quem diga que, depois de ter sido t u d o pinta-
do com três demãos de t i n t a , os postes telegráficos serão esculpidos e dou-
rados e o lastro, caiado.
Salvo pelo f a t o de ser mais luxuoso, o c a r r o p o d e r i a ter sido i n d i a n o ,
sul-africano o u canadense. N ã o f o i de m o d o a l g u m diretamente para o
mar, mas fez a viagem descansadamente, para que pudéssemos ver as coi-
sas da p l a t a f o r m a de observação, onde estão as p o l t r o n a s . Depois de u m a
viagem na lancha de u m a l m i r a n t e inglês e de ver os navios da M a r i n h a
saindo da frente, não há nada que se c o m p a r e aos carros de inspeção.
Pode-se fazer t u d o menos andar para trás a f i m de o l h a r pela segunda vez e
t u d o o que se quer saber é imediatamente explicado pelo h o m e m que sabe
ou fez. E não é preciso dizer que todas as novas linhas férreas têm os seus
cheiros especiais. Saindo de São P a u l o através dos subúrbios, as estações
sólidas, espaçosas e limpas, c o m os seus cheiros de material, r o d a n t e enver-
nizado sob o sol ardente, cargas sortidas, concreto, poeira, flores, constru-
ções de t i j o l o s e ladrilhos e u m a n o t a constante de madeiras fragrantes ser-
radas, t u d o isso sobe imediatamente à cabeça. O mesmo acontecia c o m a
conversa dos homens no c a r r o , que, de acordo c o m os seus cargos, rece-
b i a m os c u m p r i m e n t o s corteses dos agentes de estação, g a r i m p e i r o s e sina-
leiros que, c o m o todos os ferroviários, prosseguiam nos seus trabalhos. De
f a t o , a l i n h a é sempre r e t i f i c a d a , m e l h o r a d a e a m i m a d a nas curvas e des-
vios, e conversam sobre t u d o isso c o m o n u m a reunião de mães.
— Alô! Lá está o velho Pereira. O que está ele fazendo aqui?
— R e t i f i c a n d o a curva (número citado) e t r a t a n d o daqueles desvios
que prometemos.
— M a s não temos espaço. Se n o começo tivéssemos c o m p r a d o t e r r a
suficiente!
E r a a mesma queixa de todas as estradas de f e r r o de W a t e r l o o a Salt
River — o inevitável resultado de homens f r i o s em reuniões de diretores
que há t r i n t a anos r e j e i t a r a m as pretensões dos homens em c o n t a t o d i r e t o
com o trabalho.
M a i s o u menos na mesma época, u m superintendente d o tráfego cha-
m a d o V a n H o r n e explicava a u m passageiro recentemente desembarcado
de u m vapor a m a r r a d o a u m t o c o d o p i n h e i r o , c o m o u m a l i n h a sobre pon-
tes de madeira e entre cortes m a l f e i t o s que às vezes chegava a M o n t r e a l nu-
m a semana l o g o seria u m a estrada de f e r r o de imensa importância. Quan-
do sua p r o f e c i a se c u m p r i u , c o n s t r u i u uns simples setecentos quilômetros
de t r i l h o s através de C u b a p a r a ter o que fazer. Seu espírito ter-se-ia regozi-
j a d o c o m aquela conversa e as troças j u n t o à p l a t a f o r m a de observação.
Os homens das estradas de f e r r o nunca sabem ter f o l g a . I d e n t i f i c a m
os trens que passam pelos seus números particulares e os seus horários o f i -
ciais, e trechos de l i n h a provisória o u e x p e r i m e n t a l pelo que sentem sob os
truques. Nos i n t e r v a l o s , troçam da p i n t u r a dos carros de passageiros das
outras linhas o u então e x p l i c a m c o m o são superiores os seus vagões de car-
ga de aço, construídos, diga-se de passagem, de acordo c o m modelos da
índia. A n d a m o s em várias redes d u r a n t e a nossa excursão, eletrificadas o u
a v a p o r , e p o r u m r a m a l que a i n d a não se t i n h a d e c i d i d o p o r u m a coisa o u
p o r o u t r a , onde e n c o n t r a m o s u m a velha l o c o m o t i v a de dorso arqueado,
que q u e i m a v a lenha c o m a sua chaminé e o seu sino a tocar. M a s puxava
u m a carga completa de p r o d u t o s sortidos e de passageiros d o i n t e r i o r a que
servia, e ia, através da névoa d o calor, resfolegando, s o l t a n d o faíscas e ar-
q u e j a n d o c o m o se estivesse de v o l t a aos campos de t r i g o d o V e r m o n t .
Isso fez a conversa transferir-se para o desenvolvimento ferroviário e
para a maneira em que, nesta terra, toma-se a l g u m d i n h e i r o emprestado e
inicia-se u m a estrada de f e r r o de um t e r m i n a l cheio de anúncios e de j o r -
nais e se prossegue até e n c o n t r a r u m a árvore. Coloca-se então a l i u m ho-
m e m m o ç o c o m o r d e m de esperar até que o a f l u x o de carga e de passagei-
ros aumente e faça t u d o c o n t i n u a r mais alguns quilômetros n o r u m o d o
desconhecido.
( F o t o A. Malta, C o l . G. F e r r e z ) O grande viaduto da São Paulo Railway na Serra do Cubatão
— Lugar para estradas de f e r r o nesta terra? U m q u a r t o de milhão,
meio milhão de quilômetros não seria demais para começar.
— E vocês c o m o fazem? E m que árvore pararam? — perguntei.
_ N5 ? _
S disseram todos j u n t o s n u m a voz carregada de certeza. —
Nós transportamos o café. T r a n s p o r t a m o s tantos milhares ( o u milhões) de
sacas p o r dia ( o u p o r m i n u t o ) . L e v a m o s o café para Santos.
L e v a m de f a t o , mas me f i z e r a m pensar em o u t r a estrada de f e r r o , que
t r a n s p o r t a v a leite, c o m alguns quilômetros de extensão e que c o r r i a u m
pouco abaixo d o l i m i t e m á x i m o das cheias n u m vale inglês. De vez em
quando, p o r t a n t o , ficava i m o b i l i z a d a . U m d i a , conheci u m dos diretores
que me disse que os passageiros e o vagão de leite estavam p e r t o d a l i , meti-
dos d e n t r o da água.
— O que v a i fazer? — perguntei-lhe.
— O r a , os passageiros p o d e m sair caminhando. Só lhes pode fazer
bem. Mas tenho de levar o leite. Sabe onde é que posso encontrar dois bons
cavalos?
N ã o aumentei essa história. F i q u e i escutando os homens f a l a r e m de
construções, inspeções e m e l h o r a m e n t o s , c i t a n d o os nomes de engenhei-
ros, esquecidos p o r todos menos p o r seus colegas, que consagraram sua
vontade férrea ao t r a b a l h o , através de múltiplos contratempos, conquista-
r a m c o m unhas e dentes na terra as suas posições e, no f i m , m a r c h a r a m pa-
ra a sepultura, reclamando mas satisfeitos. Esta o u aquela o b r a , por exem-
plo, era a Fulano que se devia. T e i m o s o c o m o três b u r r o s j u n t o s , u m t e r r o r
no escritório, mas — que d i a b o ! — p r o v o u que estava certo até o último
metro cúbico de terra. M o r t o ? Sim, h a v i a m u i t o tempo. N u m acampamen-
to à margem da linha... o u t i n h a sido em Santos? Insistiram c o m paciência
e no começo, q u a n d o o t e m p o p e r d i d o p u n h a em risco a própria reputa-
ção, c o n t i n h a m c o m d i f i c u l d a d e o seu temperamento, bem c o m o a sua i n -
tegridade em face de subornos e pressões. F a l a v a m t a m b é m de melhora-
mentos e invenções que o u t r o s homens h a v i a m elaborado após longas lutas
e experiências e depois t i n h a m cedido n a t u r a l m e n t e à linha. Mas uma his-
tória mais leve se destaca das outras e eu espero poder reproduzi-la correta-
mente.
N o t e m p o em que não se descobrira a i n d a u m m e i o de combater a pra-
ga, u m t r e c h o em construção tivera de ser a b a n d o n a d o aos mosquitos. Os
bichos eram d o t a m a n h o de cavalos e r e l i n c h a v a m q u a n d o atacavam. A
notícia d o a b a n d o n o chegou à I n g l a t e r r a , onde u m h o m e m da a d m i n i s t r a -
ção não f o i capaz de compreender. Os m o s q u i t o s e r a m pequenos insetos
estrangeiros que voavam. Ninguém desiste de u m t r a b a l h o p o r causa deles.
E r a u m v e r d a d e i r o absurdo. F o i c o n v i d a d o a v i r ver pessoalmente. P o r is-
so, n u m a v i a g e m que a b r a n g i a interesses maiores, e m b a r c o u n u m n a v i o e
chegou ao t r e c h o em questão, onde lhe deram para acampar e colocar a sua
cama e t u d o mais que lhe pertencia n o p o n t o onde eram mais abundantes
os m o s q u i t o s . N o d i a seguinte, q u a n d o os homens chegaram para remover
o cadáver t o d o m a r c a d o pelas picadas, e n c o n t r a r a m u m a pessoa incólume,
que lhes disse:
— M o s q u i t o s ? Que mosquitos? N ã o v i m o s q u i t o s de espécie alguma.
E u b e m sabia que a coisa era absurda!
O D i a b o t i n h a a r r u m a d o as coisas para que aquele inglês de u m a f i g a ,
que v i v i a p r e g a d o a u m a mesa de papéis, fosse i m u n e às picadas dos mos-
q u i t o s ! Aí acabou a história. N ã o h o u v e j e i t o de fazê-la prosseguir.
Então alguém que sabia de levantamentos disse que aquela região não
era p a r t i c u l a r m e n t e favorável ao engenheiro. E r a u m a m o n t o a d o de mon-
tanhas compactas o u de baixadas c o m rios que r e c l a m a v a m extravagantes
pontilhões, cortes abertos em m a t e r i a l sem consistência o u aterros ao l a d o
de encostas que p o d i a m desabar e onde, se o aguaceiro começa a cair, os
trabalhadores se recolhem debaixo das lonas e esperam que a chuva passe.
— N ã o , essas coisas não acontecem mais conosco. H á m u i t o t e m p o
que passamos dessa fase. Estamos f a l a n d o das o u t r a s linhas.
— P o r que é então que têm t o d o esse m a t e r i a l r o d a n t e pesado? — per-
guntei.
— P o r q u e t o d o s insistem em v i a j a r c o m l u x o .
Pensando bem, nada há de mais i m p i e d o s o d o que u m a democracia.
U m vagão cheio de milionários pode ficar p a r a d o t o d a u m a noite e os ho-
mens são capazes de apenas r i r . M a s excursionistas a preços populares têm
de ser tratados c o m distinção. D o contrário, desde que a natureza h u m a n a
é o que é e esta c o m p a n h i a em p a r t i c u l a r é estrangeira e a d m i n i s t r a d a p o r
estrangeiros, as críticas públicas serão imediatas, drásticas e eloqüentes. A
grande cidade, p o r o u t r o lado, está sempre querendo a l g u m a coisa. O mes-
m o acontece c o m os subúrbios fabris, que gostam de acumular vagões de
carga e carregá-los descansadamente, c o m o fazem os pequenos centros
produtores de gêneros em volta. Os transportes, que são v i d a , os a f e t a m
em muitos pontos. A s várias exigências têm de ser atendidas n a m e d i d a d o
possível, tomando-se o c u i d a d o de ofender da mesma maneira a todos, que
é o segredo de todas as administrações.

Mas todos os quilos i m p o r t a d o s o u exportados pelo m a r têm de circu-


lar por meio de u m p l a n o i n c l i n a d o que cai de u m a a l t u r a de seiscentos me-
tros em onze quilômetros d o p l a n a l t o para a costa.
A p r o x i m a m o - n o s dessa escada r o l a n t e sobre o m e l h o r leito de l i n h a e
os trilhos mais fortes da c o m p a n h i a , que soltavam u m som c l a r o e alegre
ao c o n t a t o das rodas. Q u a n d o chegamos à região da névoa que cobre a ser-
ra e v a i encher as represas das usinas elétricas, os pontilhões e as valas se
t o r n a r a m mais extensos e mais largos.
Passamos por u m pátio de m a n o b r a s m u i t o grande e s o m b r i o , estendi-
do em projeção n u m espaço vazio. Sua b o r d a c o r t a v a o h o r i z o n t e a meio
c a m i n h o d o zênite. E r a c o m o se estivéssemos n o alto de u m d i q u e gigantes-
co, que se derramasse n o ar. M a s o t r e m a que tínhamos pertencido estava
já d i v i d i d o em blocos de três vagões que pareciam empenhados em c o n t i -
nuar. O u t r o s blocos de três vagões v i n h a m de baixo desse inexplicável f i m
de m u n d o e começavam a f o r m a r trens c o m o animálculos em bastonetes
vistos ao microscópio.
— A g o r a — disseram os homens — vamos deixar o t r e m descer, mas
nosso c a r r o vai ficar f o r a d o c a m i n h o neste trecho.
Seguimos em v o l t a de u m a p l a t a f o r m a e paramos, v o l t a d o s de banda
para abismos azulados, que m o n t a n h a s cobertas de matas flanqueavam.
N o f u n d o , havia u m a claridade de sol através de neblinas e u m a perspecti-
va de ilimitadas ravinas. U m montão de destroços ficava p e r t o d o nosso es-
t r i b o . U m homem, que conhecia madeiras de l e i , i d e n t i f i c o u as diversas
qualidades e t o c o u u m a raiz c o m o pé, a q u a l r o l o u c o m o u m suicida que se
atira de u m penhasco.
Ouvia-se uma nota vibrar no ar, como se fosse produzida por um
imenso instrumento de cordas, com um subtom estridente de metal. Vinha
do pátio e quando lá chegamos, vimos que as notas provinham de cabos de
aço que corriam sobre roldanas no centro de trilhos e caíam do f i m do pá-
t i o , como a água que cai de um sangradouro, e desapareciam numa curva.
As roldanas eram colocadas em diversos ângulos para seguir o curso dos
cabos vibrantes. Camadas de ar impregnado de óleo subiam de Santos até
que se podia quase sentir o cheiro dos vapores lá embaixo. De repente, os
cabos pararam durante alguns minutos. Um tipo especial de locomotiva
com um fundo exagerado se apoderou do seu bloco de vagões e os levou
para uma posição acima do cabo parado. U m sino tocou. A locomotiva es-
tremeceu, pegando o cabo. Moveu-se de novo e o cortejo transpôs o san-
gradouro.
Disseram-me que todos os trens se desengatam, se dividem nesses blo-
cos de três e são manobrados sobre o precipício, com os carros que sobem
equilibrando os que descem, todos movidos pelos cabos através de cinco
estações de elevação e de locomotivas que têm principalmente ganchos e
freios. Os ganchos agarram o cabo de cada trecho até ao fim. Soltam-no
então e pegam a outra seção e assim por diante até embaixo. Se o cabo se
quebra e os fios se enrolam em torno das rodas, os freios da locomotiva e
dos três carros devem paralisar tudo instantaneamente. Nada, como tem
sido provado, poderia ser mais simples, como o prova o tráfego que conti-
nua, dividindo-se em grupos de três vagões e descendo, enquanto os carros
que sobem se organizam em trens completos e seguem para São Paulo,
com os passageiros lendo os seus jornais.
— O que faz o cabo mover-se?
— U m Corliss. Venha vê-lo.
H á muitas coisas belas feitas pelo homem neste mundo de Deus, mas
entre as mais perfeitas em matéria de força, beleza e silêncio está um Cor-
liss de m i l cavalos em funcionamento. Esse motor vivia por si mesmo.
Diante dele, estavam os grandes tambores de profundas calhas pelas quais
corre a sua parte do cabo com um movimento regular, aparentemente lento
e silencioso. No alto, atrás do motor, ficava a ponte de comando de um
transatlântico, com mostradores, alavancas, campainhas elétricas e um só
São Paulo a Santos
h o m e m a cuidar de t u d o . É ligado c o m a estação seguinte d o p l a n o inclina-
do e ali estava, intocável c o m o u m sacerdote, enquanto os cabos chegavam
e se retesavam, ajustavam-se à b o r d a d o t a m b o r e saíam para o exterior,
retos c o m o raios de soJ, e ponteiros de relógio m a r c a v a m os m i n u t o s e se-
gundos da subida e da descida. U m estalo quase inaudível de alavancas dis-
p u n h a desses assuntos.
— Isso nunca pára? — perguntei n u m sussurro.
— Só p o r algumas horas, entre a meia-noite e a m a n h ã . É q u a n d o se
fazem as mudanças e os reparos.
A o s domingos? Os d o m i n g o s s i g n i f i c a m o trânsito de excursionistas
dos dois lados. E se há u m atraso de três m i n u t o s a q u i em cima, São P a u l o
quer logo saber se estamos d o r m i n d o . T r a n s p o r t a m o s a m a i o r parte da
carga à noite. C o m qualquer tempo? Que é que acha? N a t u r a l m e n t e , quan-
do chove de verdade, não podemos ver a própria m ã o à nossa frente. E v i -
vemos a m a i o r parte d o t e m p o a q u i sob u m b a n h o de chuveiro.
Contaram-me a história da m o n t a g e m de grande peça de m o t o r que t i -
nha de ser r e m o v i d a e substituída n o escasso período de q u a t r o horas de
suspensão d o tráfego. T o d o s os atores encarregados de encenar o número
ensaiaram até ficar em sincronização perfeita, sabendo até por u m a fração
de segundo q u a n d o d e v i a m pôr as m ã o s n o m a t e r i a l . N o instante em que o
tráfego p a r o u , saltaram para o palco, i l u m i n a d o mais que o de qualquer
teatro, desaparafusaram, encaixaram e balançaram t u d o o que era preciso.
A nova peça f o i colocada n o lugar, p r o n t a para entrar n o serviço no ins-
tante exato em que as duas cidades a c o r d a r a m e quiseram fazer negócios e
v i a j a r , n a m o r a r e t o m a r banhos de mar, d o mesmo m o d o que n o d i a ante-
r i o r . Foi u m a epopéia. F u i apresentado a Ulisses, que t i n h a p l a n e j a d o t u -
do; ao centauro Quíron, que tivera de frear os seus cavalos-vapor e prague-
j o u m u i t o , e a Aquiles, que disse que a coisa não poderia ser feita no prazo
marcado, mas chegou a t i r a r t o d a a r o u p a para ter certeza d o contrário.
T r a d u z i n d o d o grego, tratava-se de homens calmos d o Y o r k s h i r e e da Es-
cócia, pela razão de que todos os rolamentos na m a q u i n a r i a h u m a n a de-
vem girar nos mais resistentes mancais d o mercado.
— E agora, se lhe agrada, vamos descer.
C o m isso, nosso c a r r o juntou-se a mais dois amigos e desceu pelo san-
g r a d o u r o para o calor e o cenário dos trópicos, sob a música das roldanas
gritantes.
Deve haver regiões piores para estradas de f e r r o n o m u n d o , mas não
as conheço. C a d a m e t r o das encostas dessas m o n t a n h a s traiçoeiras conspi-
r o u c o n t r a o h o m e m das encostas quase verticais e invisíveis n o a l t o às r a v i -
nas quase verticais a b a i x o . N ã o se p o d e deixar de l a d o a perícia quase dia-
bólica da água em atacar os p o n t o s mais fracos dos suportes dos v i a d u t o s ,
das bocas dos túneis e das curvas. T o d o s os declives e cortes f o r a m canali-
zados, empedrados, cimentados e, sempre que possível, desviados. T o d o o
t e r r e n o que oferecia espaço para q u a l q u e r coisa, salvo para u m a b r i g o da
neve, f o i t r a z i d o para a l i n h a de frente. Nada"se d e i x o u na natureza n o es-
t a d o n a t u r a l o u desguarnecido. A s valas são p r o f u n d a s c o m o cisternas e os
pontilhões vão pelo m e s m o c a m i n h o . H a v i a v i a d u t o s estendidos sobre
abismos o n d e se p o d e r i a cair d u r a n t e t r i n t a metros em florestas de quinze
metros de a l t u r a antes que se começasse realmente a cair. T o d o aquele tre-
cho era u m t r a b a l h o que devia ser estudado p r o p r i a m e n t e a pé c o m guias e
bastões de alpinista e não sentado n u m a p o l t r o n a confortável. C r e i o que os
homens g o s t a v a m de m o s t r a r as artes d o f i l h o rebelde. U m deles disse.
— A g o r a , na A r g e n t i n a , nada disso é preciso. É t u d o p l a n o e pode-se
ver u m t r e m chegando d a c u r v a t u r a d o m u n d o .
— E a C o r d i l h e i r a , meu velho? — disse o u t r o engenheiro.
— Mas é m u i t o diferente. T u d o é pedra p o r lá. Pode-se a b r i r c a m i n h o
a d i n a m i t e a v i d a i n t e i r a , se se quiser.
— N ã o gostei de lá. N ã o gosto de terras onde há terremotos.
Nesse p o n t o , u m h o m e m debruçou-se d o lado dos t r i l h o s n u m a das es-
tações de e n r o l a m e n t o d o cabo que ficava naquele lugar p o r m e i o de p u r a
sucção. E u sei que f o i certificar-se de que a vibração d o t a m b o r não se esta-
va exercendo n o vácuo, mas ele me disse que t i n h a i d o ver " u m trecho da
l i n h a , pessoalmente". E v i o pessoal que estava n o a l t o d a p l a t a f o r m a co-
m o n u m n i n h o de águia ficar imóvel ao sol.
O calor t i n h a a u m e n t a d o alguns graus d u r a n t e a descida de u m q u a r t o
110 de hora. Q u a n d o chegamos à planície p e r t o de Santos, a respeitável loco-
m o t i v a atrás de nós, que havia passado conosco pelas montanhas fecha-
das, não m o s t r a v a o menor sinal dos milagres p o r entre os quais tínhamos
descido.

111
Um Mundo à Parte
Duas Raças

Eu não p r o c u r o o que a alma dele anseia,


e ele não teme o que me faz temente.
Nossas Estrelas têm brilhos diversos
e os nossos Fados são bem diferentes.

Nossas auroras, nossos ancestrais,


traçaram para nós, e ainda v i g i a m ,
vidas clivadas desde o nascedouro
e que, c o m o os Pólos, se distanciam.

Vivendo embora em mundos apartados,


q u a n d o há u m e n c o n t r o , cada u m pode bem
abrir o coração c o m uma franqueza
que nem parentes nem vizinhos têm.

(Praxes e leis comparam-se, brincando,


sem pejo de fraquezas revelar
e uns pecados comuns que todos sabem
e que ninguém se atreve a censurar.)

É sempre assim, e é assim que deve ser


t o d o m o m e n t o v i v i d o e contente:
cada qual acha o o u t r o ainda m e l h o r
— e v o l t a a seguir sua própria gente!
Aconteceu-me ser levado n u m a pequena lancha elétrica p o r entre ilhas
e águas, orladas de florestas cingidas de púrpura e o u r o e c o m u m a comba-
tiva vegetação rasteira. A q u i e a l i , bosques de goiabeiras apareciam ao l a -
do de majestosos bambuzais e longas extensões de pastos perdidos se de-
senrolavam abruptamente das matas para as águas ondulantes. A s ilhas se
cerraram em t o r n o de nós até que perdemos t o d o o senso de orientação e
f o m o s lançados em pequenos lagos em m i n i a t u r a d e n t r o d o lago. E m d a d o
m o m e n t o , entramos p o r u m canal sem saída, recoberto de lianas, onde
uma pequena cascata à pálida luz verde m u r m u r a v a sozinha e n q u a n t o f a -
zia cair escamas prateadas na face esmeraldina da rocha. E n t r e t a n t o , as
ilhas encantadas eram apenas o a l t o de pequenos m o r r o s e os cursos de
água não passavam de vales que, vinte anos antes, t i n h a m sido submersos a
f i m de f o r m a r u m lago destinado a a l i m e n t a r usinas hidrelétricas para o
Rio.
E m certo m o m e n t o , u m a cabeça branca e cautelosa emergiu da água
e, sem fazer b a r u l h o , c o m o u m rato de pesadelo, de u m m e t r o de c o m p r i -
mento, g a n h o u u m a margem. Disseram-me que se t r a t a v a de uma capiva-
ra, u m roedor sem préstimo que traz consigo os carrapatos que t a n t o a f l i -
gem o gado. Esse cavalheiro se revelou u m parasito d o gado d o t a m a n h o
de u m a ervilha. Já conhecia seus irmãos de tê-los visto no gado da Ásia, a
mesma espécie de gado, c o m c u p i m e t u d o , que pasta p o r a q u i .
Desse m o d o , c o m a Vaca Sagrada que eu não esperava ver p o r aqui e
c o m as cabeças das capivaras que i m i t a v a m cabeças de crocodilos, bem co-
m o c o m os cheiros de especiarias das matas, o d i a f o i u m a confusão de ma-
ravilhas que se s o b r e p u n h a m . T u d o t e r m i n o u n o bangalô de u m p l a n t a d o r
do Assã. Minúsculos pássaros cinzelados v o a r a m em t o r n o das madressil-
vas até chegar a hora dos morcegos e então todas as flores n o t u r n a s entre-
garam a alma às estrelas. H o u v e fatias de manga gelada à mesa d o almoço
e depois u m a alegre família de jovens se debateu c o m o u m cardume de t r u -
tas na grande piscina e quase não se deram ao t r a b a l h o de comentar quan-
do uma cobra venenosa m o r t a desceu pelo esgoto.
— M u i t o bem, está m o r t a ! — disse u m rapaz de quatorze anos de cal-
ções e t o r n o u a mergulhar na piscina.
Encontram-se vidas agradáveis assim no m u n d o i n t e i r o , onde os mo- 117
ços m o n t a m o cavalo o u n a d a m nas piscinas seguindo a própria natureza.
Mas c o m o t r a d u z i r isso adequadamente? O u o que se segue?
H a v i a u m a reunião n u m a grande cidade dos sobreviventes locais de
u m contingente sul-americano que t i n h a p a r t i c i p a d o da guerra. E r a m ale-
gres e sinceros, mas cada q u a l devia levar u m p o u c o de a m a r g u r a o u nos-
talgia por trás de t o d a a despreocupação e t o d o o riso. B r i n c a d e i r a à parte,
que era a v i d a para eles? E a resposta, c o m alguns parênteses e alusões l o -
cais, f o i a seguinte: " É u m a b o a v i d a . N ã o deixamos de reclamar mas, de
u m m o d o geral, é u m a v i d a tão b o a q u a n t o se pode querer. N ã o há necessi-
dade de ficar doente, n e m de separações q u a n d o há d i n h e i r o . Mas a v i d a é
cheia de tentações e t u d o depende de ter o u não ter d i n h e i r o . " E cada q u a l
deve ficar contente c o m o que tem.
O u t r a reunião em o u t r o lugar teve a participação de alguns homens,
mulheres e crianças ingleses que estavam à vontade n u m belo clube depois
de u m d i a de t r a b a l h o . A l i , parecia que estávamos mais p e r t o de sugestões
e semiconfidências sobre a v i d a . M a s a convenção, o que é u m a pena, não
p e r m i t e que se i n t e r r o g u e m as pessoas que passam perguntando: " C o m o
vivem vocês? Que pensam das coisas d a q u i , dos negócios, d o comércio,
dos empregados, das doenças das crianças, da educação e de t u d o m a i s ? "
Assim, o r i o das f i s i o n o m i a s corre placidamente e só se pode a d i v i n h a r o
que v a i por b a i x o das suas ondulações.
Os brasileiros c o m q u e m falei estavam a par dos p r o b l e m a s externos,
mas eles não f a z i a m parte d o seu m u n d o essencial. D i z e m b r i n c a n d o que
Deus é brasileiro. P o r exemplo, q u a n d o t i v e r a m u m a safra de café excep-
c i o n a l , Deus m a n d o u u m a geada n o m o m e n t o exato, o que r e d u z i u a co-
lheita a u m q u a r t o e estabilizou convenientemente o mercado. O vasto inte-
r i o r estava cheio de t u d o o que se pudesse querer, p r o n t o para ser usado
q u a n d o chegasse o m o m e n t o o p o r t u n o . D u r a n t e a Guerra, q u a n d o os bra-
sileiros t i v e r a m de c o n t a r consigo mesmos para obter metais, fibras e coi-
sas assim, apresentavam u m a a m o s t r a a u m índio e p e r g u n t a v a m onde po-
d e r i a m achar mais d a q u i l o . O índio os levava ao lugar exato. Mas a posse
dessas coisas não i m p l i c a o desenvolvimento i m e d i a t o das mesmas p o r con-
cessionários. O Brasil era u m grande país, c o m a metade o u u m terço ainda
i n t a c t o e livre de exploração. Tratar-se-ia de t u d o n o seu devido tempo.
(Foto M. Ferrez, Col. G. Ferrez) Rio de Janeiro: de frente, Teatro Municipal; à direita, o antigo Suprem
Tribunal Federal, Biblioteca Nacional, Museu de Belas-Artes; atrás, a s
da A.CM., primeiro prédio na ainda por terminar Esplanada do Castelo
Por f i m , h a v i a a impressão de que, n o f u n d o , t u d o não passava da raiva
que os donos de terras têm dos homens que se l i m i t a m a c o m p r a r e a ven-
der mercadorias, o que pode indicar u m a fundação aristocrática d a estru-
t u r a nacional.
Os complexos rituais de c u m p r i m e n t o s e despedidas entre pessoas co-
muns i n d i c a v a m a mesma coisa. Desde que a v i d a é longa e as horas ligei-
ras, eles se espraiam em cerimoniais. P o r o u t r o l a d o , a cortesia nacional
generalizada é quase sempre resultado de u m m o t i v o poderoso. Perguntei
se esse m o t i v o existia a q u i . N a t u r a l m e n t e , disseram-me. O p o v o ressentia
mais que t u d o a grosseria, a desconsideração, a ofensa cara a cara. Nestes
casos, a pessoa o f e n d i d a via t u d o vermelho e p o d i a haver a l g u m problema.
Por isso, a acomodação mútua dos mais altos aos mais baixos era a n o r m a .
Tive p r o v a disso depois, no t e m p o d o C a r n a v a l , q u a n d o a cidade d o
R i o fica alucinada. T o d o s se vestem c o m todas as espécies de fantasias, en-
chem os carros, c o m p r a m ilimitadas serpentinas de papel que se desenro-
lam metros e metros a u m simples i m p u l s o . D u r a n t e três dias e três noites,
ninguém faz nada senão andar pelas ruas, aglomerar-se e bombardear os
vizinhos c o m serpentinas e esguichos de u m terrível perfume. Saí-me bem
c o n t r a cinco anjos em l a r a n j a e p r e t o , u m c a r r o cheio de meninos não m u i -
t o disfarçados em d i a b i n h o s e u m a solitária d i v i n d a d e coroada de turquesa
e prata. Os passeios eram bloqueados p o r gente a pé, todos c o m serpenti-
nas e vestindo as roupas de que t i n h a m vontade. Clubes e organizações
r e u n i a m e f a z i a m sair de suas sedes grandes carros e figuras, escoltados p o r
u m a cavalaria de amadores. G r u p o s de negros e negras se cercavam d e n t r o
de u m a corda que todos seguravam, f o r m a n d o coortes bárbaras e pelotões
de vermelho, verde e amarelo, que avançavam fazendo tremer céus e terra
c o m o bater e o r i b o m b a r de músicas i m e m o r i a i s a dançar o charleston p o r
entre as multidões. E r a p u r a África sem a m e n o r atenuação.
Os carros de doze metros que f l u t u a v a m acima d o p o v o delirante tra-
t a v a m rudemente de assuntos que a imprensa tivera decerto escrúpulos em
discutir, como, por exemplo, u m a estrada de ferro o f i c i a l da q u a l se a f i r m a
que é m u i t o negligente n o seu tráfego. E r a representada por duas l o c o m o t i -
vas que arremetiam u m a c o n t r a a o u t r a c o m o carneiros.
Segundo t u d o i n d i c a v a , a populaça t o m a v a c o n t a de t u d o e a gente
a b r i a c a m i n h o , p o r u m m e t r o de cada vez, a o u v i r t u d o o que o c o r r i a às ca-
beças m a l i n f o r m a d a s dizer e todos c o b r i n d o t o d o o m u n d o de confetes.
A s serpentinas p e n d i a m c o m o destroços depois de u m a inundação dos ga-
lhos das árvores das avenidas, amontoavam-se em rolos e f r a n j a s na r u a
c o m o algas n u m a p r a i a e se a c u m u l a v a m na frente dos carros que f i c a v a m
parecendo carroções de f e n o n u m palco de ópera.
M a s em n e n h u m a h o r a e em n e n h u m lugar h a v i a q u a l q u e r coisa que
sequer se aproximasse da desordem o u qualquer cheiro de bebida. À s duas
horas da m a d r u g a d a na última n o i t e , vi u m a avenida de doze metros j u n c a -
da de u m passeio a o u t r o de serpentinas e confetes. À s cinco horas dessa
mesma m a n h ã , t u d o desaparecera p o r c o m p l e t o , c o m as fantasias e os f o -
liões. N ã o havia nem mesmo u m a d o r de cabeça p a i r a n d o no ar l i m p o !
C o n v e r s a n d o sobre isso, disseram-me que a bebida não era u m defeito
brasileiro e que, c o m o o estado das ruas depois d o C a r n a v a l p r o v a v a , os
homens não c o s t u m a v a m n o r m a l m e n t e j o g a r l i x o n o meio da r u a . E m p r i -
m e i r o lugar, e r a m r a c i a l m e n t e l i m p o s c o m o são aqueles que l i d a m , sob u m
sol f o r t e , c o m madeira, f i b r a s , cana e p a l h i n h a . Além disso, a l u t a c o n t r a a
febre n o passado lhes ensinara a ter higiene. Pode haver coisas m u i t o desa-
gradáveis para q u e m não conserva as suas caixas-d'água limpas na cidade e
j u n t a l i x o , coisas que a t r a e m mosquitos. É p o r isso que é tão difícil encon-
t r a r a l g u m m a u cheiro n o R i o .
Intelectualmente, os jovens escritores parecem orientar-se pela França
e na descoberta renovada e n o e n c a n t a m e n t o de sua t e r r a , que c o m o v e m
tantos deles a t u a l m e n t e , as palavras são usadas c o m r i g o r e exatidão gaule-
ses.
T i v e a h o n r a de o u v i r u m a oração da A c a d e m i a Brasileira n u m p o r t u -
guês literário que t i n h a a d i g n i d a d e , a cadência e a clareza da antiga c u l t u -
r a , c o m o os copofones que trazem consigo os d u p l o s mistérios d o f o g o e da
água. M a i s tarde, u m a canção p o p u l a r , cantada n u m a reunião de amigos
por u m a m o ç a c o m u m violão. Penso que a canção era originária d o N o r t e ,
da região das secas, onde c a n t a m para o gado à noite.
A chuva caía lá f o r a , t r a z e n d o o p e r f u m e dos j a r d i n s de Petrópolis, e
seus meios-tons c o n d i z i a m c o m o espírito d a velha casa, dos resplandecen-
tes móveis antigos, da inestimável p r a t a r i a p o l i d a e, de a l g u m m o d o mági-
co, c o m o prazer e o equilíbrio da c o m p a n h i a . O rosto pálido da m o ç a era
refletido pela luz, e três o u q u a t r o moços atrás dela tocavam os seus violões
no t o m o u fora dele, c o n f o r m e era necessário. T o d o s na reunião conhe-
ciam a canção, e o seu lamento simples e pungente não precisava ser t r a d u -
zido para u m estrangeiro.
Seguiu-se u m a melodia negra viva e dilacerante — sem qualquer pa-
rentesco c o m a música negra americana. P r o v i n h a da majestosa e intacta
Bahia, onde creio qüe ainda bate c o m força o velho coração da terra. Po-
d i a m ouvir-se os tambores da Costa O c i d e n t a l p a l p i t a n d o por trás das cor-
das, enquanto observava os pés batendo compasso no chão e os rostos i l u -
minados pelas associações das palavras sonoras. Talvez as babás lhes tives-
sem cantado essas músicas q u a n d o eram crianças. Naqueles breves instan-
tes, senti-me mais p e r t o d o Brasil do que j a m a i s t i n h a estado. Disse isso a
u m a m i g o e acrescentei:
— Mas vocês não são u m p o v o fácil de alcançar.
— N ã o é p o r q u e você sempre nos j u l g a espanhóis? E nós não somos
espanhóis. Somos originários de P o r t u g a l , de u m P o r t u g a l que está m o r t o .
Que coisa grande deve ter sido P o r t u g a l ! Mas deixou a sua marca em nós.
Isso t a m b é m parece lógico. O brasileiro está estabelecido a q u i há qua-
trocentos anos, sob céus que não respeitavam encadernações de l i v r o s , re-
lógios e estrados de camas. E n t r e t a n t o , a sua f i b r a nacional parece ter
m a n t i d o o seu caráter de p o n t a a ponta. Este f o i estabelecido por u m a cole-
ção de terríveis piratas iguais aos que p a r t i r a m de Bristol o u de P l y m o u t h
na mesma era. Aliaram-se sem hesitação c o m qualquer raça encontrada no
interior o u c o m p r a d a na costa d o o u t r o lado d o mar. N a d a t e m i a m exceto
a sua Igreja e, ainda assim, c o m moderação, e p l a n t a r a m obstinadas d u p l i -
catas da a r q u i t e t u r a de sua terra natal diante das desesperadas florestas e
dos grandes rios nos quais desapareciam. Por m u i t o tempo, v i v e r a m f o r a
do espírito da h u m a n i d a d e e d o sentimento de mudança, l u t a n d o as suas
guerras próprias c o n t r a q u e m quer que os ventos atirassem às suas costas,
enquanto a morte c o m b a t i a i m p a r c i a l m e n t e todos os intrusos. O p r i m e i r o
Imperador que t i v e r a m lhes f o i t r a z i d o p o r u m a obscura organização cha-
mada a M a r i n h a Inglesa, no t e m p o em que Napoleão estava fazendo reis
demais através da E u r o p a . O último I m p e r a d o r , não faz m u i t o s anos, f o i à
E u r o p a e d e i x o u n o t r o n o u m a f i l h a c o m plenos poderes. L e v a d a pelos
mais nobres m o t i v o s , ela l i b e r t o u c o m u m a simples assinatura centenas de
milhares de escravos. H o u v e então u m a rebelião e, depois de a l g u m a dis-
cussão, o Brasil se separou d o seu I m p e r a d o r c o m expressões de grande es-
t i m a de parte a parte e a d o t o u u m a constituição democrática. Felizmente,
as comunicações lentas e deficientes sobre enormes distâncias e u m c l i m a
calmante i m p e d i r a m que grande m a l adviesse disso. Os antecedentes da v i -
da nacional t i n h a m resolvido a questão da cor, de m o d o que os homens po-
d i a m f a c i l m e n t e recorrer ao m e l h o r e t o m a r providências sobre o p i o r dos
fios brancos, vermelhos e pretos que f o r m a v a m a t r a m a d o seu destino. O
Deus d o Brasil dispôs a i n d a que a Banana tomasse o lugar d o Subsídio aos
desempregados e que duas roupas fossem mais que suficientes para a maio-
ria dos homens d u r a n t e o a n o i n t e i r o . C o m o gume dos problemas de a l i -
mentação, vestuário e habitação assim e m b o t a d o e c o m o t a m a n h o e a f o r -
ça d o seu céu e de sua terra forçando os mais ricos dos seus habitantes a
u m a certa s i m p l i c i d a d e de alma, a política, n o mais b a i x o sentido da pala-
vra, se t o r n o u u m esporte arriscado, mas exclusivamente das classes altas.
O brasileiro d i z que o seu país é cheio de "corrupção". M a s desconhe-
ce a p r o f u n d a corrupção espiritual de certas espécies de "serviço s o c i a l "
em outras terras. A c a b a , c o m o acontece q u a n d o os homens f a l a m a estran-
geiros, u m p o u c o o r g u l h o s o de suas monstruosidades nacionais e dá-lhes
nomes cerimoniosos. É uma pena, p o r q u e os latinos recorrem tão n a t u r a l -
mente a t e r m o s grandiosos q u a n t o os anglo-saxões aos termos de amesqui-
n h a m e n t o . O que u m inglês c h a m a r i a de "agitação" é aqui u m a
"revolução", e abrange p o r i g u a l as proezas de u m b a n d i d o de o r i g e m ín-
dia que percorre o i n t e r i o r r o u b a n d o gado até levar u m t i r o o u o levante de
u m r e g i m e n t o cujos oficiais c o n s i d e r a m que os seus méritos f o r a m preteri-
dos. Este é u m país grande o n d e as revoluções p o d e m desenvolver-se sem
serem molestadas. A s pessoas que as e l a b o r a m são profissionais, que acei-
t a m riscos especiais e são j u l g a d o s p o r códigos especiais. O prejuízo mate-
rial é u m a dentada de p u l g a em comparação c o m o que se segue à "ação d i -
r e t a " em outras terras. O p i o r que acontece é o r o u b o de dinheiros públi-
cos p o r u m indivíduo conhecido, que então foge p a r a a Europa. Esses as-
( F o i o A. Malta, 1928, Col. G. Ferrez)
Rio de Janeiro: Na Av. Vieira Souto, à altura do Canal, a linha do bonde
Jardim —Leblon; ao fundo, o Leblon
suntos não são camuflados c o m a alegação de m o t i v o s elevados o u de exi-
gências políticas, pois este p o v o é m u i t o d i r e t o nas suas idéias e já t e m ex-
periência dessas coisas. É t a m b é m por isso que os latinos raramente apare-
cem nas delegacias c o m o vítimas de u m vigarista. Além disso, grandes pla-
nos e empreendimentos para o desenvolvimento d o Brasil estão sendo ela-
borados e todos sentem que a "corrupção" está abaixo da dignidade das
coisas e dos homens.
A não ser os franceses, nunca vi u m a raça mais p r o n t a e reconhecer as
suas fraquezas e a t i r a r p a r t i d o delas. Eis u m exemplo:
Os brasileiros j o g a m continuamente e desde a mocidade, exatamente
c o m o os ingleses. Mas os governos lhes dão diariamente u m a chance de j o -
gar nas loterias federal o u estaduais. L a d o a lado c o m o j o g o legítimo, há
u m fascinante j o g o ilegal c h a m a d o " B i c h o " . Os números de 0 a 99 são d i -
vididos em grupos de q u a t r o e cada g r u p o é governado p o r u m a n i m a l —
Leão, Galo, C a c h o r r o e assim p o r diante. Se o a n i m a l em que se apostou
c o n t r o l a dois o u mais algarismos finais d o número p r e m i a d o na loteria d o
Estado que c o r r e u naquele dia, recebe-se u m pagamento p r o p o r c i o n a l . Os
preços estão ao alcance das bolsas mais pobres, porém, embora, c o m o dis-
semos, a Banana t o m a o lugar d o Subsídio aos desempregados, não é acei-
t a c o m o moeda corrente. P o r conseguinte, para j o g a r n o Bicho, o h o m e m
deve ter a l g u m a ocupação que lhe p e r m i t a receber d i n h e i r o de verdade.
Desse m o d o , o sistema é u m incentivo ao t r a b a l h o honesto e aos sonhos de
riqueza sem esforço que dão sal à vida.
Mas ricos e pobres g o z a m de luxos sociais na escala mais ampla. Ago-
ra mesmo, acabaram de fazer u m p r a d o de corridas de pista tríplice n u m
dos subúrbios do R i o , o qual encerra t o d a a beleza, c o l o r i d o e a r q u i t e t u r a
que se pode congregar n u m a paisagem. De u m lado, contemplam-no mon-
tanhas cheias de matas; do o u t r o l a d o , há u m grande lago e o m a r por onde
passam os transatlânticos não está m u i t o longe. Os argentinos, que j u l g a m
saber a l g u m a coisa a respeito de corridas, estão que não p o d e m de inveja e
se d e s f o r r a m dizendo que os brasileiros não têm cavalos que prestem.
O brasileiro não se deixa empolgar pelos d i v e r t i m e n t o s c o m o não se
deixa empolgar pela v i d a , e a sua fala e os seus gestos rápidos não vêm
m u i t o do espírito. Vem estudando as amostras de todas as nacionalidades
estabelecidas sob os seus céus há m u i t o s e m u i t o s anos. Está h a b i t u a d o há
gerações ao comerciante inglês — e há m u i t a s famílias de o r i g e m inglesa
que se l i g a r a m desde m u i t o t e m p o ao destino n a c i o n a l d o Brasil. São pes-
soas bilíngües, de cabeça b i l a t e r a l , que servem de intérpretes e embaixado-
res n u m a emergência f i n a n c e i r a o u comercial. As velhas e experientes f i r -
mas mercantis m a n d a m para cá o t i p o de inglês mais aceitável. N a verdade,
o brasileiro a i n d a não a t i n g i u a " i m p e s s o a l i d a d e " de u m h o m e m de negó-
cios ideal. Q u a n d o gosta de u m indivíduo, faz até o impossível p o r ele.
Q u a n d o não gosta, faz menos d o que nada. Q u a n d o conhece p o u c o a pes-
soa, mas vê que t e m maneiras e algumas n i n h a r i a s dessa espécie, espera pa-
r a ver. E t e m t e m p o de sobra para isso.
N ã o obstante, n o decurso de cem anos o u mais de comércio, a colônia
inglesa parece ter a d q u i r i d o n o Brasil u m a reputação de honestidade e pon-
t u a l i d a d e . Se M o s c o u tivesse p e r m i t i d o à I n g l a t e r r a v o l t a r ao t r a b a l h o de-
pois da G u e r r a , os negócios entre os dois países p o d e r i a m ser agora mais
prósperos. Q u a n d o se e n c o n t r a m pequenas colônias inglesas esparsas que
t e n t a m superar as conseqüências da Greve G e r a l , em face da r e n h i d a com-
petição e d o ridículo, é que se vê c o m o f o i soberbamente a r q u i t e t a d a aque-
la greve e c o m o , a despeito d o h u m o r i s m o da imprensa, esteve m u i t o longe
de ser engraçada.
Nesses assuntos, c o m o em m u i t o s o u t r o s , o brasileiro reserva a sua
opinião. A consciência de sua espantosa riqueza p o t e n c i a l pode até certo
p o n t o explicar-lhe a calma. Talvez ele simplesmente p r e f i r a t r a t a r dos seus
casos à sua maneira. T e m de pensar nas suas relações c o m as o u t r a s repú-
blicas d o c o n t i n e n t e , t e m de resolver inúmeras questões i m p o r t a n t e s de
imigração às tentativas e recuos, e é forçado a apaziguar eventuais questões
e discussões entre os Estados. P o r exemplo, u m Estado quer saber p o r que
paga em i m p o s t o s a m a i o r parte d a receita federal p o u c o recebendo em t r o -
ca. O u t r o , d o t a m a n h o d a A l e m a n h a , sugere que o f u t u r o n a c i o n a l estaria
assegurado se os seus planos de transportes fossem i m e d i a t a m e n t e executa-
dos c o m carta branca. E m a l g u m p o n t o , p o r trás de t u d o isso, u m h o m e m
está e m p e n h a n d o a v i d a e a capacidade para fazer os índios a b r i r e m estra-
das na região da b o r r a c h a . E n q u a n t o isso, os habitantes das grandes cida-
des, que n u n c a enxergam nada além dos seus subúrbios, p e r g u n t a m por t o -
dos os deuses jornalísticos que r e n d i m e n t o se pode esperar disso; o u u m
o u t r o subúrbio f a b r i l clama que caiu nas m ã o s de concessionários impiedo-
sos e pede u m a revisão de todos os contratos. Se isso não f o r bastante para
o t r a b a l h o de u m a m a n h ã , pode haver ainda as oscilações sazonais dos
p r o d u t o s básicos — café, cacau o u açúcar — que podem congestionar u m a
ou duas estradas de f e r r o . O u então a l g u m p o r t o , no c a m i n h o d o Cabo
H o r n , pode declarar-se em greve, prendendo cento e cinqüenta navios c o m
repercussões que p o d e m i r até ao Amazonas.
Esses assuntos são resolvidos p o r homens deliberados e urbanos que
têm u m conhecimento íntimo das idéias e das reações uns dos outros. As
suas frases são u m p o u c o mais longas e mais bem-acabadas d o que as nos-
sas, mas nada há de visionário nas idéias que têm d o f u t u r o . Estradas de
ferro e rodovias — agora que os carros chegaram, a estrada ao l a d o dos t r i -
lhos — são a necessidade f u n d a m e n t a l d o país. Os aviões também, q u a n d o
f o r possível, embora, c o m tantas florestas, os pousos sejam difíceis, ao
contrário d o que acontece na Austrália. As-comunidades, seja qual f o r a
raça que nelas predomine, v i v e m há m u i t o isoladas. C o m isso, esquecem-se
das coisas. Descobriram-se, d e n t r o de certos limites, quais as raças que
mais se a d a p t a m à terra, mas há o u t r a s experiências em andamento.
Encontram-se exemplares de todas as raças a q u i e a l i . N o f i m , serão todos
brasileiros. N ã o p o r meio de pressão o u exortação, pois a terra é grande
demais para p e r m i t i r isso. A própria terra fará isso c o m o tempo.
E quanto aos seus vizinhos nos países sul-americanos? C o m p r e e n d e m
as idéias dos brasileiros e são compreendidos p o r eles. Desentendimentos
c o m eles n o passado? Sem dúvida, alguns. F o i a tradição daquele tempo.
Os anos passaram e a n u l a r a m essa espécie de coisa. O f u t u r o pertence de-
certo aos "negócios" e o continente m e r i d i o n a l sabe disso. H á muitas es-
pécies de negócios. Mas todos eles convergem para a formação dos Brasis.
T o d o s eles têm uma f o r m a mais o u menos c o m u m .
Perguntei então a u m filósofo, que não fazia parte de qualquer gover-
no, se u m toque de t r o m b e t a , p o r exemplo, n o Mediterrâneo p o d e r i a che-
gar aonde nós estávamos. Ele s o r r i u e disse que era possível.
E n q u a n t o o vapor em que eu regressava saía do p o r t o , as lembranças
das semanas maravilhosas começaram a arrumar-se. As estradas de f e r r o ,
os carros, as fábricas, os hotéis suntuosos e as casas de l u x o onde tínhamos
passado m o m e n t o s tão agradáveis começaram a desvanecer-se. Os rostos
dos a d m i n i s t r a d o r e s deliberados e u r b a n o s tornaram-se mais claros, bem
c o m o trechos inteiros de serras cobertas de matas e u m desfiladeiro ao cre-
púsculo cheio de vaga-lumes solenes e lucilantes. T a m b é m u m rugir imenso
de corredeiras o u v i d o através de u m a n o i t e de calor sufocante.
As costas, ao lado das quais o vapor avançava, desapareceram de nós
até que deparamos c o m a fímbria m e r i d i o n a l das ofuscantes praias de areia
" c o m o toalhas brancas a secar" que os velhos m a r i n h e i r o s d i z i a m que
" m a r c a v a m o p o n t o onde se pode ter a coragem de a p o r t a r à B a h i a " .
A Bahia se ergueu suarenta e fulgente à luz d o sol. G u a r d a em si gran-
de parte da m a g i a d o Brasil, pois é preciso compreender que, d a q u i para o
n o r t e até P e r n a m b u c o , segue-se pela r o t a fantasmagórica dos navios lou-
cos, desesperados e pequenos que v i e r a m uns atrás dos o u t r o s através de
séculos, e c o m as tripulações devoradas pelo escorbuto e mortas de m e d o
dos demônios que as a g u a r d a v a m em terra, c o m chefes tão ignorantes
q u a n t o os m a r i n h e i r o s e trazendo c o m o passageiros certos capitães aventu-
reiros, a q u e m P o r t u g a l concedera displicentemente territórios maiores d o
que os reinos europeus. E r a m l i m i t a d o s , violentos e sem escrúpulos, mui-
tos deles preparados na escola s o m b r i a e sangrenta das índias, e todos con-
vencidos de que, para ganhar a l g u m a coisa, era preciso apostar t u d o .
Lançaram-se p o r aquela costa a f o r a e, apesar de t o d o o m a l que fize-
r a m , estabeleceram os alicerces de u m a potência de u m só pensamento
e de u m a só língua sobre mais de o i t o milhões de quilômetros quadrados.
Aí é que está o mistério! A s velhas senhorias franco-canadenses, as
antigas colônias holandesas e inglesas d a América d o N o r t e são historica-
mente interessantes, mas as suas origens f o r a m há m u i t o superadas pelos
acontecimentos e pelos homens. De acordo c o m os antecedentes, isso devia
ter acontecido t a m b é m n o Brasil. M a s não aconteceu. P o r trás de t o d o o
l u x o e de t o d o o progresso e desenvolvimento, das exigências desta o u da-
quela escola de pensamento o u d o clamor dos estrangeiros recém-
desembarcados, sente-se o espírito certo dos p r i m e i r o s capitães e das ban-
deiras o c u l t o s mas à espera c o m o brasas vivas sob as cinzas de uma esta-
ção, para se reacenderem e d o m i n a r e m este fascinante m u n d o à parte.

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