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ESCOLA DE MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA
SALVADOR, BAHIA
JULHO DE 1998
N244t Nascimento, Romério Humberto Zeferino
Tolê Fulni-ô: evidenciando a identidade étnica.
Salvador: UFBA-EMUS, 1998.
188 pp.
CDD 780.89
SALVADOR, BAHIA
JULHO DE 1998
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Membros da Banca
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.................................................................................................vi
AGRADECIMENTOS .......................................................................................................viii
GLOSSÁRIO.......................................................................................................................xii
RESUMO.............................................................................................................................xv
ABSTRACT........................................................................................................................xvi
CAPÍTULO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................1
2. REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................11
5. FESTAS NA ALDEIA.....................................................................................58
6. O TOLÊ............................................................................................................87
9. CONCLUSÃO...............................................................................................119
1ª PARTE.............................................................................................................124
2ª PARTE.............................................................................................................126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................180
Lista de Ilustrações
do Tolê
na Festa da Padroeira
Xixia-khla
no Ouricuri
dos Homens
Tolê
do Maracá
segurando um Maracá
Agradecimentos
atrelaram-se comigo na construção deste trabalho. Foram dias e mais dias de aprendizados:
que cada etapa posta possa ser bem atingida; humano, em que pude melhorar os meus
conceitos do que é ser companheiro, do que é ser pai e mãe, do que é ser amigo, do que é
ser irmão, do que é ser educador e educando, do que é ser pesquisador e pesquisado, e
instituições nas quais tenho trabalhado ao longo desta pesquisa, tais como: CNPq, CAPES,
estes últimos muito me ajudaram na definição do que viria a ser este trabalho.
contribuir com cada etapa de construção deste trabalho e com as disciplinas dadas durante
o mestrado, tem ensinado-me a ver e viver no mundo sem muitos anseios consumistas, os
- Ao Professor Dr. Manuel Veiga, que me ajudou a não aceitar tudo o que
do que vem a ser música. Problematização que se por um lado, não me permitiu ter
encontrado respostas universais e ter colocado em cheque a própria disciplina da qual faço
parte (a etnomusicologia), por outro, contribuiu para que eu seguisse com uma reflexão
mostrar-me os caminhos que devem ser seguidos para a realização de um bom trabalho
acadêmico.
- Aos meus amigos, de mestrado, Albergio e sua esposa Mírian, Luciano e família,
Maurílio, Regina e família, Ricardo, Tom K, Vladimir e sua esposa Jane, que muito me
Universidade Federal da Paraíba (Campus I), que me ajudou a dar os primeiros passos no
- A Ivonildes e Torquato por cederem sua casa para eu morar durante boa parte
do Mestrado. E a Dona Iaia, mãe de Ivonildes, pelo convívio diário, com a qual extrai
figuras presentes neste trabalho. E, acima de tudo, por sua grande amizade refletida em seu
- Ao meu tio Dilvan e minha tia Socorro, que juntamente com sua família
hospedaram-me em sua casa durante todo o curso de graduação até o meu ingresso neste
mestrado.
belense.
relações sociais. Mais precisamente quero agradecer: Ao Cacique João Pontes; ao Pajé
Cláudio; a Ivonildes e família; a Valério e família; a Léia e família; ao Sr. Manoelzinho (In
Memoriam); a Joventino e família; ao Sr. Nézio; ao Sr. Matinho; ao Sr. Fipa; ao Sr. Zé
Domingos (In Memoriam); as irmãs Ivolene, Sônia, Zélia e família; a Toinha; a Abidom; a
Dona Valentina, matriarca da aldeia Xixia-khla; ao grupo principal do Tolê Fulni-ô; aos
grupos Unakesa, Fuly e Fetxa de apresentação musical Fulni-ô. Quero dispensar especial
gratidão ao casal Fulni-ô Cícero Ferreira de Sá e a Marilena Araújo de Sá, que, juntamente
com seus filhos, me acolheram em sua casa durante todas as minhas viagens para a aldeia,
- Ao meu cunhado Tony, ao meu tio José e minha tia Leolina, por depositarem
longos bate papos, que têm enriquecido grandemente as minhas reflexões e ações para com
- Ao meu Pai José Severino do Nascimento, que, apesar de não estar mais aqui
entre nós para compartilhar comigo mais uma etapa de minha vida, me ensinou a encarar o
- A minha mãe Luzinete Zeferino Nascimento por ser a minha eterna torcedora
e amiga. Sem ela eu jamais teria chegado aonde cheguei, devo-lhe toda a minha vida.
Por fim, agradeço ao ar, ao sol, a chuva, a lua, as estrelas, a terra, as pedras, as
plantas, aos rios, aos mares e aos animais, todos corporificações Divinas presentes
Canela de Veado - Árvore de grande porte cuja madeira é de lei. Os Fulni-ô a utiliza para
Crauá - Também conhecida como caroá, é uma planta da família das bromeliáceas, de
onde os Fulni-ô extraem uma tinta de cor vermelha para pintar o Buzo.
Cuité - (Do Tupi kuya e'tê) - Fruto do cuitezeiro (Crescentia cujete), que, preenchido com
Facheiro - Também conhecido por facheiro preto (Cereus squamosus), é uma planta da
família das cactáceas em que os Fulni-ô utilizam para fabricar o corpo do Buzo.
flores pequenas, frutos amarelos e folhas procuradas pelos gados. Dentro da aldeia
1
Utilizamos como auxílio bibliográfico Corrêa (1926, 1; 1931, 2 e 3; 1969, 4; 1974, 5),
xiii
Ouricuri - (Do Tupi urucu'ri) - Também chamada de aricuri ou aricury, é uma espécie de
palmeira com mais de10 m de altura. Suas folhas são utilizadas, entre os Fulni-ô,
folhas eram usadas como cobertura de muitas casas do grupo. Pode também
referir tanto a Aldeia sagrada em que os Fulni-ô passam reunidos durante o final
Piriquiti - (Do Tupi piriki'ti) - Semente da erva piriquiti (Canna glauca) que os Fulni-ô
Sabugo de Milho - Espiga do milho (Talysia mays) que, debulhada, serve de base para
apoiar o taquari.
Taboca - (Do Tupi ta'boca) - Pedaço de madeira cavada, geralmente bambu, que é
Taquari - (Do Tupi takwa'ri) - O mesmo que taquara, nome dado a diversas gramíneas e a
vários tipos de bambu, onde o seu caule é oco. Os Fulni-ô utilizam como corpo do
Tauá- (Do Tupi ta'wa) - Espécie de argila vermelha em que os Fulni-ô utilizam para pintar
Xixia-khla - Palavra da língua yaathê que significa caatinga. Os Fulni-ô a utilizam para
de defesa podem ser percebidos dentro de um arcabouço cultural contidos entre os Fulni-ô.
algumas respostas que apontem para uma particularidade étnica do grupo. Para chegarmos
antropológicas que lidem com o fazer musical e com alguns conceitos de grupos étnicos,
evento no que diz respeito à conduta dos próprios Fulni-ô como também da conduta dos
expressa toda uma especificidade na identidade étnica dos Fulni-ô e também funciona
como um elo de comunicação com outras sociedades. Isto quer dizer que ao mesmo tempo
em que a música possui códigos gramaticais próprios do grupo, interligados a toda uma
rede social Fulni-ô, ela constrói limites com as demais sociedades que não fazem parte do
seu contexto étnico, sendo estes limites percebidos através da própria estrutura musical e
The Fulni-ô indians, former inhabitants in the inward areas of the state of
Pernambuco in the Northeast of Brazil, have been searching different ways to live with the
different cultural and economic domination processes in the contemporary society. The
mechanisms utilized in their defense can be noticed within a cultural skeleton that is
We try to find in the musical aspects manifested inside the Tolê Fulni-ô some
of the answers that can point out to an ethnic particularity of the group. Reaching these
that deal with the musical aspect and some concepts of ethnic groups, respectively; b) the
aspects of the Fulni-ô life with an emphasis on the inside stories and along with the
surrounding society; c) the importance of the social organization for the realization of such
an event concerning the conduct of the Fulni-ô themselves as well as the conduct of the
members of the Tolê; d) and above it all, the Tolê- Fulni-ô in its musical aspects.
Through all of this we can come to the conclusion that the music inside the
Tolê expresses a singularity in the ethnic identity of the Fulni-ô tribe and it also works as a
link to communicate with other societies. It all means that at the same time that the music
social web, it establishes limits with the other societies that are not within its ethnical
context. These limits can be noticed through the musical structure itself and the social
transcriptions of interviews.
Prefácio: um sertão nordestino com outro sotaque
Devo traçar alguns dos caminhos que levaram à construção desta dissertação.
Com essas mesmas veredas e estradas chegar à minha vivência com os índios Fulni-ô: os
serras, enfim, um sertão nordestino com outro sotaque e com olhares direcionados a mim
time de futebol desse grupo indígena veio da cidade do Recife jogar contra o Trezinho,
time de futebol juvenil da cidade de Campina Grande, minha cidade natal na Paraíba. Até
esse momento não havia conhecido nenhum índio de “carne e osso”, apenas os índios de
do Xingu. Lembro-me que quando criança tinha uma forte admiração pelos índios dos
Custer. Embora esses índios fossem invariavelmente apresentados como bandidos, cansei
de pedir a minha mãe que fizesse roupas desses grupos para eu vestir. Até hoje espero tais
vestes!
Como minha curiosidade em conhecer qualquer índio era muito grande fui ao
na cidade de Lagoa Seca – PB – e sendo recebido por várias pessoas da região que talvez
tive uma certa dificuldade de aproximar-me deles pelo fato de estarem muito sérios e
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falarem outra língua. Vale salientar que o time de futebol estava acompanhado por um
alguns índios Fulni-ô e dar início a uma amizade que perdura até hoje. Fiz perguntas
simples tais como o que comiam, como dormiam, como casavam, quais as dificuldades
indelicadas, fui convidado para ir às festas juninas da aldeia, que segundo os índios eram
as melhores que existiam. O índio Joventino, que estava acompanhando o time, deu-me o
endereço de uma professora de língua yaathê a índia Marilena Araújo de Sá para quem dias
depois escreveria. Passados alguns dias, o convite para participar das festas juninas estava
Em junho de 1990 juntei alguns trocados, que pouco ultrapassavam o valor das
passagens e fui para a aldeia, com um colega, conhecer os Fulni-ô. A chegada ao grupo foi
dada da melhor forma possível, parecia que já conhecia todos há muito tempo. Talvez
tenha sido nesta mesma data que se iniciou a minha observação da vida Fulni-ô. Pude
perceber suas farturas e misérias, suas desconfianças, a visão que tinham dos estranhos, as
dessa mesma sociedade por uma solução para os seus problemas internos, a existência de
um segredo grupal o qual estranho nenhum poderia conhecer. Convivi com alguns gêneros
musicais tais como o forró e o coco de roda. Isto é, nestes primeiros contatos presenciei
um viver em coletividade que jamais tinha visto em qualquer outra “cidade”2 pequena do
interior nordestino, onde os mais velhos confundiam-se com os mais jovens nas
2
Embora adiante venha a tratar de aldeia esta categoria espacial na qual os Fulni-ô vivem,
refiro-me a “cidade” pelo fato deste espaço social possuir uma infra-estrutura semelhante ao das cidades do
interior nordestino, tais como: casa em alvenaria, energia elétrica, água encanada, esgoto, clubes etc.
xix
arenoso, serras pedregosas, rios e riachos não perenes, uma economia praticamente rural
com criações bovinas, caprinas e ovinas e plantações de milho e feijão, além do artesanato,
que é uma das significantes fontes de renda Fulni-ô, o viver coletivo desse grupo dá um
caráter diferente, talvez mágico, a todos estes aspectos, o qual é intraduzível fora de sua
vivência diária.
de Ciências Sociais, UFPB, Maria Otilia Telles Storni, com a qual engajei-me no projeto
"Fulni-ô: Ser ou não ser . . . índio”? Este projeto teve como pretensão encontrar os
principais elementos que compõem a identidade étnica Fulni-ô. Sendo a terra, o idioma e a
apresentam um viver cultural muito mais dinâmico e envolvente do que a sociedade não
índia vizinha. Este trabalho conceituou este orgulho como sendo "uma série de expressões
também que "o idioma [yaathê] é o veículo da indianidade Fulni-ô" e "a religião é a
onde observei que a religião e o idioma são as principais fontes de motivação e reforço da
3
Também aprovado pelo PIBIC/CNPq/UFPB em julho de 1994.
xx
pela mesma instituição, não foi realizado, no tocante ao cronograma de atividades, devido
à minha aprovação para cursar o Mestrado em Etnomusicologia. Durante esse curso dei
continuidade aos objetivos propostos neste projeto com a visita à aldeia nas festas juninas
de 1996.
um material teórico que até então não tinha observado. Desta forma, os objetivos para o
novo enfoque etnomusicológico, com que até então não tinha me deparado de forma tão
profunda.
exemplo, para chegar à aldeia tanto podiam ser longas, quando fazia o trajeto
rodoviárias, como curtas, neste caso quando fazia o trajeto João Pessoa –
Salvador – Águas Belas. Vale salientar, que na maioria das vezes estavam
4
Também aprovado pelo PIBIC/CNPq/UFPB em julho de 1995.
xxi
Outro fator circunstancial era a recepção na aldeia que algumas vezes tinha
uma acolhida bastante calorosa e outras não, pelo simples fato dos anfitriões Cícero
qualquer família. E, por sua vez, os pesquisadores nem sempre sabem o melhor momento
de estar entre eles, acredito que só a prática ensina como deve ser o comportamento do
Minha presença no dia a dia da aldeia Fulni-ô, ao longo desses anos, tem sido
muitas vezes, este mesmo diferente tornava-se igual ao que eu sempre fui no meu convívio
social. Embora esta semelhança social estivesse presente entre mim e eles, era bastante
visível a alteridade entre nós. Diferença esta que podia ser percebida nos olhares dos Fulni-ô
vários pesquisadores entre os Fulni-ô deu-se de forma brutal e antiética, como exemplo
desta categoria de pesquisador não poderia deixar de citar Estevão Pinto – ao qual refiro-
me neste trabalho – que é consagrado pelos índios Fulni-ô como delator do segredo do
grupo. Pessoas como Estevão Pinto fizeram com que qualquer pesquisador entre o grupo
E como a cultura “matriz” Fulni-ô é sempre envolta por uma cortina, como um
5
Os materiais de gravação que utilizei na minha última pesquisa de campo (julho/1997), a qual
considero mais importante para o desenvolvimento final deste trabalho, foram: gravador DAT-CORDER
TCD-D3 (Walkman) da Sony, um microfone ECM-909A e o seu suporte MD Side Stereo, um tripé para
câmara de vídeo Photo Tripod PVG 135, gravador stereo TP-8S da Cassio, câmara de vídeo GR-AX650 da
JVC e máquina de fotografar F.3 (34 mm, foco livre) da Yashica.
xxii
observação. Estes obstáculos ocorriam por diversos motivos, tais como: as apresentações
estavam sempre interligadas aos cerimoniais religiosos e, portanto, de caráter secreto; por
ter um único dia fixo de apresentação para o público que não faz parte do grupo (Festa da
Padroeira Nossa Senhora da Conceição); pelo fato de não poder conversar sobre algumas
cantarolar os exemplos musicais no Tolê que havia gravado; e, sobretudo, pela minha
estar aprendendo a pisar no chão Fulni-ô e desta forma me livrando de algumas areias
movediças para onde a pesquisa de campo muitas vezes conduz o pesquisador. Embora,
não tenha apresentado cada diário de campo neste prólogo com todas as minhas emoções,
percepções, frustrações, avaliações, anseios in loco, basta para o momento às reflexões que
aqui faço, pois refletem parte do que tenho feito e aprendido entre os Fulni-ô.
1. Introdução
Os Fulni-ô, que têm o yaathê6 como língua materna, são povos que vivem
nestas terras brasileiras desde tempos imemoriais. Desde o século XVIII habitam o sertão
vida sociocultural é marcada intensamente pela presença da música, sendo o Tolê,7 nos
contatos com uma sociedade colonizadora, para então melhor compreendermos o fator
indígenas, com exceções de algumas centenas, foram dizimadas. Das que desapareceram,
apenas algumas ficaram registradas nos escritos dos viajantes. Contudo, salientamos que
grupos indígenas são aqueles que “tendo uma continuidade histórica com sociedades pré-
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O yaathê, que significa a nossa língua (fala), pertence ao tronco lingüístico Macro-Gê, porém
não é classificada dentro de uma determinada família lingüística, por ser unicamente falada pelos índios Fulni-ô.
Contudo, em Camêu (1979, 66), encontramos entre os índios Ramkôkàmekra, Município Barra do Corda – MA,
um instrumento musical chamado ka-txo-tsê (espécie de cítara), cujos fonemas assemelham-se com os fonemas
Fulni-ô tka-txo-tsê, que literalmente, conforme a índia Marilena Araújo de Sá, significa “a sujeira do
travesseiro”. Embora esta observação esteja bastante limitada em termos quantitativos, podemos supor uma
possível ligação lingüística Fulni-ô com este grupo.
7
De acordo com Andrade (1986 522-23) Tolê é o nome que os Fulni-ô dão à dança do Toré,
realizada por muitos grupos indígenas no Nordeste. Além de dança notamos que os Fulni-ô chamam de Tolê
tanto o Buzo, instrumento de sopro utilizado neste evento, quanto os cânticos. Além do que, o Tolê é tratado
pelos Fulni-ô como algo extremamente sagrado, cheio de significados religiosos. De acordo com o que
podemos observar estes significados podem estar presentes no Toque do Buzo e do Maracá (instrumento que
serve como marcação rítmica do evento), no canto e na dança. Desta forma, podemos concluir que o Tolê não é
apenas canto, dança ou instrumento musical, mas também um complexo de significados secretos que de algum
modo direcionam o fazer religioso do grupo.
2
indígenas à boca do canhão para despedaçá-los" (Almeida 1988, 33). Ao mesmo tempo
padres das várias missões e ordens do Brasil Colônia, tentavam mostrar aos velhos
habitantes das terras do além-mar-europeu o que deveriam fazer para darem melhore
impressão aos colonizadores recém chegados. Uma das exigências era de que os povos
desses povos cujas economias, sistemas sociais e culturais eram incompatíveis com os
escravizados, ou migraram para o interior por não terem um poderio bélico que pudesse
competir com o dos novos habitantes.8 Já outros conseguiam um convívio diário, sem que
isto significasse a perda total de seus elementos culturais, o que é, num dizer sociológico,
um estado de acomodação social, pois estes grupos passaram a ter um viver sócio-cultural
convivência com a sociedade dominante fez com que diversos grupos indígenas,
certo “mascaramento étnico” (Bastos 1997, 500) diante desta sociedade majoritária.
repetidas. Temos muitos exemplos intoleráveis de matança, genocídio que muitos desses
grupos continuam a sofrer e seus agressores continuam impunes. Entre tais citaremos dois:
8
Em Leite (1938), encontraremos vários relatos que descrevem estes fatos.
9
Brown (1973), traz diversas situações, na segunda metade do século XIX, nas quais as nações
indígenas que habitavam grande parte dos Estados Unidos vivenciaram junto da sociedade estadunidense,
relatando as guerras com seus principais personagens, os tratados que os índios faziam com o governo
estadunidense, onde este último sempre desfazia os tratados. Enfim, mostra um outro lado da moeda entre
dominadores e dominados.
3
O primeiro diz respeito a um depoimento presente em Martins (1978, 16)10, onde o autor
relata que
Santos, que no dia 21 de abril de 1997, quando estava dormindo em uma parada de ônibus em
11
Brasília, foi assassinado por cinco rapazes, que jogaram álcool em todo seu antes de lhe
tocarem fogo. Infelizmente, como tem ocorrido com os assassinos do índio Marçal de Souza que
assassinato do Cacique Chicão que foi morto em 20 de maio de 1998 por fazendeiros que
haviam invadido as terras do seu povo, a juíza Sandra de Santis, reafirmada pela 2ª Turma
São essas e muitas outras situações que rodeiam os povos indígenas no Brasil que
fazem com que tentemos compreender como se dão às diversas formas de resistência cultural
destes povos. Diante disto, concordamos com Bastos (1997, 495) ao dizer que o
10
Além de Martins (1978) podemos ver Melatti (1980), Ribeiro (1983), Ramos (1986),
Almeida (1988), Tassara (1991), Mota (1994), Ribeiro (1996), Ricardo (1996), Santos (1997), Moonem e
Mariz (1992), que relatam experiências semelhantes junto a outros grupos indígenas no Brasil.
11
Os nomes dos rapazes envolvidos são: Max Rogério Alves, 19 anos; Antônio Novély
Cardoso de Vilanova, 19 anos; Eron Chaves de Oliveira, 19 anos; Tomaz Oliveira de Almeida, 18 anos; e o
menor G., 16 anos.
12
Através do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) recebemos um total de 18 informes, 12
cartas (cimi@embratel.net.br) e 2 jornais PORANTIM (Cavalcante 1997 e 1998), que muito nos ajudaram a
entender como caminham as questões políticas a que estão sufeitas as diversas sociedades indígenas no
Brasil.
4
sua presença na história do Brasil a partir das observações presentes na Carta de Pero Vaz
e pesquisadores, seguindo um período que vai do “descobrimento” até este século. Este
fazer musical é um exemplo importante do que tem sobrevivido nestes últimos 500 anos de
contatos, pois representa um dos principais veículos de identidade, entre os diversos grupos
indígenas, sejam eles tradicionais ou emergentes, os quais estão presentes até hoje para
Apesar disso, grande parte da cultura musical brasileira ainda não foi
observada pela comunidade acadêmica que lida com música no Brasil. Suas atenções têm
desde o século IX até o século XIX. Essa falta de atenção e interesse levou, e tem levado,
ao esquecimento toda a riqueza musical que vem sendo construída ao longo destes cinco
séculos de Brasil. Mais grave ainda - e desta vez bem menos observada- é a falta de
atenção dada para as manifestações musicais das comunidades indígenas brasileiras. São
atualmente cerca de 206 povos indígenas (Ricardo 1996) existentes no Brasil, que quase
nada têm recebido em termos de registro no tocante a uma devida observação científica de
todo um viver musical sui generis que refletem as suas experiências sócio-históricas.13
Diante deste grande quadro musical, ainda não suficientemente observado, este trabalho
13
Em Aytai (1985, 10) são apresentados alguns autores que se dedicaram ao estudo da música
indígena brasileira. Porém, com relação aos índios no Nordeste ver o trabalho de Magalhães (1994), que faz
um estudo da música do Toré dos índios Kiriri do Município de Mirandela.
5
sociedade nacional envolvente, ou seja, a presença de algo musical entre o grupo tem tanto
hinos da igreja católica e até do rock. Ou seja, uma série de gêneros musicais que fazem
parte de um contexto não Fulni-ô. Mas, que, em alguns casos, foram reintroduzidos na
cultura Fulni-ô. Temos como exemplo destes o coco de roda, que é uma herança que os
ancestrais Fulni-ô tiveram do povo negro e a cafurna, uma herança dos grupos indígenas
Kariri-Xokó e Xucuru.
dançado em círculo e tem um coro responsorial ao solista, que por sua vez pode cantar
ser formada pela banda de pífano da aldeia, como pode ser composta de um pandeiro que é
grupo acerca de sua cultura, é também um modo que os Fulni-ô encontraram para
apresentarem uma cultura musical indígena para os não índios. Tem diversas coreografias
no Tolê Fulni-ô. E será a partir de um calendário de festas e/ou cerimônias religiosas que
poderemos observar a presença destes aspectos entre os Fulni-ô. Para tanto, tomamos a
ser mais bem pensada com esta delimitação, ou seja, a observação do Tolê nos seus
aspectos musicais. Contudo, relacionemos algumas questões que poderão nos ajudar a
musical com os conceitos teóricos de identidade étnica, para uma compreensão dos
estuda” (Becker 1994, 47). Utilizamos, para tanto, entrevistas diretivas, fotografias,
7
Cacique e Pajé Fulni-ô, aos dirigentes e alunos (um representante de cada faixa etária) da
14
Escola Bilingüe, a alguns componentes do Tolê, bem como a outros membros da
e arquivos públicos sobre os índios Fulni-ô. A discussão com pessoas inteiradas com o
problema da identidade étnica dos índios no Nordeste serviu como uma forma de
necessários a uma melhor compreensão do texto musical. Para a análise musical seguimos
14
Embora o nosso principal foco de observação seja o Tolê no qual fazem parte as pessoas
escolhidas a partir de uma linhagem familiar grupal, de que trataremos mais adiante, tais entrevistas foram
também direcionadas a outros grupos de Tolê, onde quem participa são pessoas não pertencentes a essa
categoria de escolha familiar.
8
Porém, para tal análise levamos em consideração a concepção de Blacking (1976, 26) de que a
música serve “em primeiro passo para compreender os processos da cognição musical e,
portanto, da musicalidade do ser humano”. A análise dos sons aqui não terá função em si
mesma, válida quando precedida do contexto sociocultural na qual foi gerada, tendo como
função maior identificar o grupo em estudo, algo próximo do que afirmou Sampaio (1986, 78)
exclusivamente do segredo deste grupo, fez com que preferíssemos chamá-lo de faceta
musical do Tolê. Ou seja, o Tolê é um ritual religioso dos índios Fulni-ô, do qual
que sua constituição ritualística é apenas do conhecimento do grupo. E ainda mais: faceta
musical diz respeito a uma pequena parte, musical, do Tolê, que serve como um modo de
identificar a música dentro deste ritual. De outra forma, se para referirmo-nos ao musical
presente no Tolê, utilizássemos o termo Música do Tolê poderíamos dar a entender que o
Tolê é apenas uma manifestação musical Fulni-ô. E o que na verdade ocorre é uma face
musical dentro de todo um complexo ritualístico, o qual não é de conhecimento dos não
Fulni-ô, com exceção dos Cariri Xokó, do município de Porto Real do Colégio em
Alagoas, que podem participar dos ritos secretos Fulni-ô. Desta forma, ao nomearmos esta
parte musical do Tolê como faceta musical estaremos enfatizando que há música dentro do
étnicas, possibilitaram uma observação mais elaborada deste aspecto musical da cultura
Fulni-ô.
dos ritmos dos Maracás e do som dos Buzos e os depoimentos dos membros do grupo
existente neste ritual é um dos fenômenos essenciais para a formação do mesmo, além do
entender como se realiza a construção conceitual de um grupo étnico bem como o conceito
queríamos chegar ao utilizar a antropologia como base para nossa percepção do que vêm a
ser as facetas musicais como elemento adscritivo dos Fulni-ô. Ainda, neste capítulo,
traremos algumas tendências teóricas da etnomusicologia que possam, também, nos ajudar
frente aos problemas existentes na observação das manifestações sonoras musicais Fulni-ô.
corrente antropológica, Barth (1969, 10-1) afirma que grupo étnico designa uma população
que:
posiciona-o como sendo um “tipo organizacional”, em que seus agentes formam critérios
que delimitam suas fronteiras e estabelecem relação com outros grupos, para que os
mesmos possam ser reconhecidos como pertencentes a tais grupos. Este mesmo autor
considera que o partilhar uma cultura não tem fundamental importância para o
entendimento do que é um grupo étnico, podendo ser apenas uma implicação ou resultado
antropológica nos anos 50, passam a ser pensadas em segundo plano, quando tratam de
definir uma determinada etnia. Como exemplo de teóricos culturalistas no Brasil temos
Galvão com o trabalho Índios do Brasil: áreas culturais e áreas de subsistência (1973),
que correlaciona as diversas etnias indígenas existentes no Brasil a partir dos seus artefatos
culturais. Esta divisão dos grupos indígenas por área cultural caiu num grande equívoco: o
de não levar em consideração às diversas experiências de contatos que cada grupo indígena
teve no decorrer de suas histórias junto à sociedade nacional, passando assim a pensar o
índio como constituinte de um certo modelo cultural, o que seria fatal para a maior parte
dos grupos que têm um grande contato com a sociedade nacional, já que
o padrão narrativo das três fases esplendor (antes do contato),
aculturação (contato) e decadência (dias atuais) imposto pelas
13
serviram para atribuir e formar dentro do grupo étnico sua forma de interação no convívio
entre os diferentes agentes sociais. Para tanto, Oliveira (1976) atribui, a estes segmentos
principalmente, étnica. Para tanto, Cunha enfatiza que um “mesmo grupo pode usar
identidades diferentes, dependendo do interesse específico que quer explorar” (1986, 94).
Portanto, será na identidade contrastiva que as diferentes étnicas marcarão suas presenças
15
Diga-se de passagem que estamos nos referindo aos índios no Nordeste etnográfico e não ao
geográfico. Fazem parte deste primeiro aqueles grupos presentes nos estados da Bahia (menos os do sul),
Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará. Todos estes grupos têm uma vivência histórica semelhante
junta a sociedade nacional (Sampaio, 1986).
14
determinada categoria étnica, principalmente quando este está inserido dentro da sociedade
intimamente interligada com as situações econômicas e sociais dos seus vizinhos não
índios, pois suas casas, seus objetos de trabalho, suas vestimentas, suas relações com a
fazem parte do seu convívio diário. Ao referir-se aos Terena e Tukuna, Brandão (1986,
104) apresenta um fator social semelhante ao que nós percebemos entre os índios no
Nordeste, onde
onde
não são conhecidos casos reais de tribos que, uma vez em contato
permanente com o colonizador ocidental, tenham conseguido
emigrar dele ou inserir-se, sem prejuízos, pouco a pouco, no
sistema de relação que ele fatalmente impõe (Brandão 1986, 145).
atuais vizinhos não índios. A identidade étnica, para tanto, será “útil para estabelecer a
priori como os sujeitos que se pensam, também, através dela, devem ser e se conduzir”
Para os grupos étnicos que vivem na diáspora ou num intenso contato com uma
sociedade dominante, numa relação de fricção interétnica, é posta em suas fronteiras uma
nova forma de convivência social. Desta forma, podemos concluir que a cultura16 original
“não se perde ou se funda simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se
acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste” (Cunha 1986, 99). E ainda mais:
de forma geral, a terra como o principal sinal diacrítico - se é que podemos tratá-la como
do maior problema que existe entre os grupos pertencentes a esta região, isto é, a terra.
Porém, para entender como se passa todo o processo de aglutinação em espaços territoriais,
ela procura diversos elementos que possibilitam a formação ou mesmo a lembrança de uma
Vale salientar que o “território indígena” cobre um espaço territorial que está
16
Cunha (1986, 101) percebe a cultura como sendo algo não apenas “dado, posto, algo
dilapidável também, mas algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados”.
16
propriedade dita do índio. O Estado funciona como uma entidade que “assegura” ao índio
que sua “propriedade” não será danificada por outrem, nem tão pouco sua cultura.
Mas, parece que tal proteção não tem ocorrido na prática, pois os povos
sendo inseridos dentro de uma sociedade que lhes tem tentado tirar a categoria de grupo
étnico, de início tratados como selvagens e agora como “caboclo”. Vale salientar, portanto,
que a “história do contato não se distingue muito de outras envolvendo outros povos
indígenas do Brasil no que diz respeito aos constrangimentos físicos e culturais entendidos
enquanto mecanismos inerentes ao ato de conquista” (Carvalho 1984, 171). Apenas que,
em se tratando dos índios no Nordeste, as perdas culturais já estão bem mais acentuadas do
De acordo com Carvalho (1984, 169-88) os elementos que darão força para que
seja possível o reconhecimento destes remanescentes étnicos pela sociedade nacional são
17
Para um maior aprofundamento do que é ser pessoa na relação entre índio e não índio ver
Carlos Rodrigues Brandão, “Papeis, personagens e pessoas”, in Identidade e Etnia: construção da pessoa e
resistência cultural (São Paulo: Brasiliense, 1986), pp. 13-34.
17
memória dos grupos que dão forma a uma lembrança de pertencer a um determinado
grupo, mas também o fato destes agrupamentos ocuparem estes territórios em uma data
imemorial. E para que isto possa ser percebido de forma mais concreta tomamos como um
percebe da seguinte forma: “É importante tomar em conta que ‘idioma’ não diz respeito
apenas à língua utilizada na comunicação cotidiana, mas, sobretudo, para que eles que não
Nordeste têm se valido para mostrar as diferenças diante da sociedade nacional. Os rituais
presentes no Toré são “práticas rituais que se nos apresentam como retorno dos guardiões
Reesink, por sua vez, trata da atual situação dos índios no Nordeste brasileiro
(tecnologicamente). Para tanto, ele define a ideologia étnica como sendo a visão
etnocêntrica que cada sociedade tem da (s) outra (s), ou seja, “as idéias implícitas e
explícitas de um povo sobre um outro com o qual se mantém relações de diversos tipos”
(Reesink 1982, 121). Contudo, é a situação assimétrica vivida entre a sociedade nacional
com os diversos grupos indígenas brasileiros que tem maior ênfase no seu trabalho.
para os grupos indígenas, formando uma “categoria genérica de ‘índio’” (Oliveira 1993,
18
vii) dentro de ambas as sociedades. E para oficializar este pensar o “outro”, de forma
na antropologia que por sua vez é inspirada na ideologia étnica da sociedade dominante –
acima citadas –, contém qualificações tais como: “(1) ascendência racial, ‘raça’, embora
sem mencionar essa palavra às vezes carregada de conteúdo negativo; (2) auto-
identificação; (3) identificação por outros; (4) traços culturais próprios” (Reesink 1982, 122).
Esta definição de índio remete a uma compreensão do índio com “I” (ou “índio
brasileiro puro”) em que é tomado como exemplo os índios do Parque Indígena do Xingu,
Ianomâmi etc., pois carregam entre si critérios que compartilham com os anteriormente
citados, pelo fato de possuírem pouco contato com a sociedade nacional. Porém, estas
imagens do índio com “I”, percebida por grande parte da sociedade majoritária,
preguiçoso, que vive na selva sem fazer coisa alguma; e segundo é a falta de conhecimento do
que vem a ser os demais povos indígenas existentes no território nacional (Reesink 1982, 123).
do estado-nação Brasil. Com isto, os novos invasores utilizaram tal termo para referirem-se
a todos os povos aqui existentes, sem levar em conta as diferenças étnicas de cada um.
Todavia, as diferenças, baseadas na negação de um grupo a partir do outro, não têm fim em
18
No capítulo 6 faremos algumas observações do que vem a ser Toré num contexto genérico
dos índios no Nordeste.
19
partir do momento que a mesma passa a ver o índio não apenas como um “bicho”, ou seja,
como algo a ser domado, e sim como um ser passível de ser integrado dentro da sociedade
econômica, e com isto determinam os centros de decisões das leis do país, passam a ceder
aos conceitos “morais” existentes dentro da sociedade. Porém, é bom salientar sempre que
sociedade não indígena, que vêm resistindo durante este grande período de expansão
político-econômica.
modo oficial, temos a FUNAI (antigo SPI, fundado pelo Marechal Rondon), órgão que
nacional, pois é tido pela mesma como “inocente”. A FUNAI, acompanhada de outros
agentes sociais como missionários, fazendeiros, funcionários públicos etc., tem como sua função
transformar o grupo diferente num tipo social “ideal” ou “branco civilizado” (Reesink 1982, 127).
apesar de tudo, veio da parte dos missionários, os quais no início do século XVIII
contribuíram para que a coroa portuguesa doasse um quadro de léguas para vários
industriais, o próprio estado etc) , tendo portanto grandes perdas culturais. Vale
utilizar diversos meios, além da lembrança histórica, para serem reconhecidos como
(Reesink 1982, 128). Existem casos em que, aparentemente, não há mais diferenças
culturais entre determinados grupos indígenas e a população regional, como por exemplo
neste caso a etnicidade pode ser percebida na memória do grupo, pelo fato de estar ali em uma
estereotipada de índio. Contudo, entre outros grupos indígenas foram mantidos “alguns
campo das concepções religiosas e visão do mundo” (Reesink 1982, 129) (grifos nossos).
Diante de tal pressão por parte da sociedade dominante, pelo fato de estarem
integrados, “por razões econômicas”, e “aculturados por razões etnocêntricas” (Reesink 1982,
Mesmo que o termo “raça” não seja mais utilizado pela ideologia oficial, nem
tão pouco pela ciência, continua a existir indiretamente sob o conceito de “pureza” que a
A construção conceitual do que vem a ser grupos étnicos – e não mais grupo
étnico, no singular, cujo sentido remete para a generalização, etnocêntrica, dos grupos
grupal – tem, desta forma, uma implicação diferente das citadas anteriormente (ver Barth,
sendo “coletivos sociais que procuram organizar-se politicamente” (Nascimento 1994, 287).
das bases de orientação social de que os membros deste grupo têm se valido para
diferença, a qual nos propomos observar, acontece através do aspecto sonoro musical
Até aqui tentamos situar o nosso principal objeto de estudo, a faceta musical
brasileiro nas questões sobre identidade étnica. Desta forma, ao mesmo tempo em que
posicionamos uma pequena face da cultura Fulni-ô dentro deste arcabouço teórico
22
mais adiante, a separá-lo do todo social Fulni-ô, o fazemos pelo simples fato de facilitar a
nossa leitura do fato musical em si, para com isto melhor compreendermos uma partícula
do ethos Fulni-ô. Vale salientar que esta tarefa de interligar o contexto social
(comportamento) com o musical (o som e sua gramática) tem sido ao longo destes cem anos
sua existência, a partir dos anos 80 do século XIX até o final dos anos 40 deste século,
diferentes, ditos exóticos. Contudo, duas invenções deram impulso a esta nova ciência: o
fonógrafo e o trabalho de J. Ellis em que divide o semitom em cem partes iguais o qual
chamou de cents. O fonógrafo permitiu a fixação do som, enquanto que o cents possibilitou
coletas sonoras eram feitas inicialmente por pessoas que, na maioria das vezes, não tenham
“primitivo” que, no final do século passado, inicia-se uma cadeia de arquivos fonográficos,
bifácie, em que “de um lado, ela seria uma Antropologia; de outro, uma Musicologia. Seu
etnomusicologia,19 será com Jaap Kunst, início da década de cinqüenta, que a disciplina
qualquer ciência. E com este novo nome a sedimentação das novas propostas de
etnomusicologia.
Um que tem o seu principal representante Mantle Hood (1977), em que observa a música
do “outro” com um enfoque estritamente musical, onde é dado ênfase a toda à parte de
construção da música por ela mesma, não entrando em detalhes nos seus aspectos sociais.
E um outro que tem como seu principal representante Alan P. Merriam, que inicialmente
trata a etnomusicologia como o “estudo da música na cultura” (1964) e por fim o estuda a
19
Podemos citar alguns autores e editores que estiveram envolvidos com o termo
etnomusicologia tais como: Merriam (1964), Soriano (1967), Nettl (1978, 1983), Hood (1970), Herndon
e Mcleod (1981), Lühning (1991 a, 1991 b), Myers (1992), Sadie (1994, 305), Krader (1980), Bastos
(1995),
24
diluira, pois o contigente formador de tal organização, ou mesmo ciência, chega a atingir
nesta época mais de duas mil pessoas, evidenciando uma série de linhas e perspectivas de
estudo.
próprios como de outras sociedades, para a afirmação de uma identidade étnica. Ao referir-se
ao processo em que os diversos segmentos sociais estadunidenses passam, Bastos (1995, 38)
da vida prática do grupo e não tão somente a um gozo estético autônomo, racional,
vemos que os Fulni-ô possuem uma linguagem própria e desta mesma linguagem
constróem entre si aspectos musicais que não fazem parte da nossa sociedade. Com isto, o
nosso fazer etnomusicológico procurou evitar os erros já tão repetidos pela nossa disciplina
e assim concordamos com o pensamento de Seeger (1980, 104) ao trabalhar com os índios
Suyá, em que a
podemos chamar de música as diversas práticas sonoras existentes nas muitas sociedades do
mundo, já que em muitos casos não existe, entre estes, um significado semântico de música. Não
seriam tais práticas sonoras partes inseparáveis de cada ethos grupal? E reduzi-las ao termo
música não seria cair mais uma vez no etnocentrismo ao qual estamos mergulhados enquanto
nós mesmos diante do “outro”, fundamenta-se na observação de Nettl (1983, 25) em que ao
mesmo tempo em que a etnomusicologia foi construída dentro de uma cultura ocidental ela
mencionadas, apenas, com elas, confirmar a nossa posição em observar um pequeno aspecto do
fazer musical Fulni-ô, de forma a considerarmos tanto as posições do insider como a visão do
20
Nettl (1983, 15-25) traz algumas implicações do que vem a ser música para a sociedade
ocidental, bem como alguns meios pelos quais os etnomusicólogos podem usar para abstrair o conceito de
música de cada sociedade estudada, já que nem todos têm este conceito.
3. Histórico do Grupo: sobre nomes e terras
município de Águas Belas (Ilust. 01).21 Tem seu território cortado pelas Rodovias BR-423, PE-300 e
PE-244, e pelo Rio Ipanema, o qual situa um dos limites do território Fulni-ô (Ilust. 02). Os Fulni-ô
estão aldeados, na maior parte do ano, na Aldeia Sede, a qual faz limite com a cidade de Águas Belas
(Ilust. 03) e na aldeia do Cipriano ou Xixia-khla. Esta última aldeia foi fundada há cerca de cinqüenta
anos, quando uma índia Fulni-ô (Ilust. 04) casou-se com um não Fulni-ô. Um outro aldeamento é a
aldeia do Ouricuri em que os índios reúnem-se durante pouco mais de três meses para partilharem
Os Fulni-ô, que tem o yaathê como língua de origem, eram denominados pelos
portugueses, da primeira metade do século XVII até o início deste século, de Carnijó ou Carijó
palavra de origem Tupi kari'yo, que tem diversos significados: "que procede do branco" (Lavisolo
1982, 188); a mistura de índias com negros (Costa 1983, 7: 198); “província do Estado de
significa índios “amansados” (Boudin 1949, 48-9). Vale salientar, que encontramos alguns dados que
supomos serem relevantes para a denominação dos Fulni-ô, pois se trata da denominação dada ao
grupo antes de serem denominados de Carnijós ou Carijós pelos portugueses. É uma referência aos
Tapuias de Pernambuco feita por Barlaeus em 1647 (1980, 264), onde este viajante faz menção a um
21
Esta ilustração foi elaborada a partir das figuras contidos nos trabalhos de Leite (1993) e
Ricardo (1996).
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genérica dada aos não Tupi, podendo ser aplicado até mesmo aos brancos. E embora o
termo Tapuia não dê uma designação própria ao grupo, pelo menos confirma não terem
Porém, desertaram da expedição e direcionaram-se para as altas montanhas que ficam entre
o Maranhão e a margem esquerda do rio Tocantins. Após terem aumentado grandemente sua
denominação que tem dois significados etimológicos. O primeiro atribuído por Boudin (1949,
32), segundo o qual seriam aqueles que “têm um topete de cabelos sôbre a cabeça (Fu = vertex,
li = cabelo, ni ka (nê ka) = ter, donde o adjetivo clássico, Fu-li-ni-ho – que deu: Fulni-ô”).
pela auto definição dos próprios Fulni-ô, é apresentado por Lapenda. Diz ele que
22
Os Fulni-ô reconheceram Titschyouh como uma palavra presente entre o grupo, porém não
disseram o seu significado.
32
Este mesmo autor (1968, 20) oferece um outro argumento para explicar a
acadêmicos como sendo os últimos representantes dos índios Cariri, já que nos tempos
Podemos citar Costa (1983, 5: 163) e entendermos a vastidão de área que era habitada pelos
Cariri:
Vale salientar que esta relação de origem entre um grupo e outro não tem muita
relevância, pois ambos fazem parte de uma família lingüística distinta. Percebemos que
esta confusão entre um grupo e outro se deve ao fato dos Cariri terem habitado uma grande
23
Apesar de Lapenda mencionar o termo Fulniô sem hífen, mais adiante, conforme a lingüísta
Januacele que atualmente desenvolve pesquisas entre os Fulni-ô e leciona no Departamento de Letras da
Universidade Federal de Alagoas, ele irá adicionar este sinal a palavra, como reconhecimento do
prolongamento sonoro da vogal i.
33
A partir das informações contidas em Leite (1993, 8-10), podemos situar, em linhas gerais,
porém de forma cronológica e concisa, o processo histórico pelo qual os Fulni-ô passaram, para então
Podemos constatar a presença dos Fulni-ô no atual território há muito tempo. De acordo
com alguns documentos públicos, o seu primeiro aldeamento neste espaço geográfico era localizado
onde hoje é a cidade de Águas Belas, mas precisamente, conforme vários relatos orais dos Fulni-ô mais
As terras foram doadas para os Fulni-ô pelo Governo Imperial através de Carta Régia nº
33 em 05 de junho de 1705, com uma área de duas léguas quadradas. Porém, em 1832 os Fulni-ô
cederam parte deste território para a Igreja Católica em homenagem à Padroeira da aldeia, Nossa
Senhora da Conceição.24 Vale salientar, que esta doação permanece ativa na memória do grupo,
que na realidade não veio a cumprir-se, pois um ano depois surgiria uma nova medida do Governo
estabelecendo que fossem distribuídos lotes de terras para os índios, o que ocorreria, de fato, quinze
anos depois.
Portanto, em 1877 a reserva indígena foi demarcada, ficando para cada família da aldeia
Apesar desta divisão em lotes, as desavenças entre os dois segmentos sociais, Fulni-ô e
Este novo decreto torna novamente válidos a definição dos lotes feita em 1877. Paralelo a
esta história oficial, portanto escrita, temos o depoimento do Sr. Manoelzinho (Ilust. 06), que relata as
Em 1906 meu pai foi mais um primo, pra falar com o Governador. Nessa
época a capital funcionava em Olinda, não era em Recife. O Governador
chamava-se Cigismindo Gonçalves. Então meu pai foi e pediu. Que várias
vezes os brancos atiravam fogo nas casinhas, nos casebres, e eles se retiravam
daqui. E eles [os brancos] tomavam conta, ficavam arrendando terra no preço
que queriam. O estranho, eles assufeitava pra ficar ali, como escravo, né? E os
índios que era legítimo dono, fora! E pra não continuar assim o Doutor disse:
“E é de vocês, é?” Aí o Doutor, o Governador, mandou uma comissão praqui
fazer uma investigação, colheu tudo direitinho e aí levou ao Governador, e ele
disse: “É verdade, não se contava às vezes que foi atirado fogo para eles se
retirarem de lá, porque a terra é deles”. Aí o Doutor mandou, em resposta, um
ofício para o maior político daqui, dizendo que entregasse a terra a seus
legítimos donos. Isso foi feito, e estamos aqui!
Atualmente a Reserva Indígena Fulni-ô possui uma área de aproximadamente 11.500 ha,
com 427 lotes, a maioria destes 30 ha. Esta divisão da terra em lotes desvirtua toda uma visão coletiva do
uso da terra, pois cada lote é possuído por uma determinada família, o que torna difícil à visão comunitária
da terra. Mas, por outro lado, a terra dividida tem um outro efeito benéfico para os índios, pois ao ter sido
distribuída para os seus usuários índios, impediu ou pelo menos diminuiu a possibilidade de invasões.
Há, porém, a gleba da terra sagrada, do acampamento Ouricuri, esta é coletiva e não pode ser arrendada
(dados fornecidos pelo Cacique João Pontes, Ilust. 07).Conforme Leite (1993, 8), apesar da
36
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38
população Fulni-ô ter sido estimada (pela FUNAI, 1991) em 2.790 indivíduos, este
passando, assim como a maneira como esses têm encarado a propagação dos valores de
modo que
Os Fulni-ô têm trabalhado os seus valores simbólicos e materiais nas relações que
envolvem o viver intra e interétnico, pois “as identidades sociais, por sua vez, demarcando as
fronteiras do grupo (seus limites) e estabelecendo tanto a coesão do nós quanto à diferenciação
em relação aos outros indicam com quem e como interagir” (Penna 1992, 60).
a língua de origem e residir na reserva, faz com que este grupo tenha em seu meio um
Vale salientar que o viver coletivo existe a partir do momento em que os Fulni-
ô mudam-se para a Aldeia do Ouricuri, na qual passam três meses reunidos sem a
feita no primeiro dia da abertura em que, neste caso, é permitida a presença de estranhos
40
até às treze horas. A partir de doações de índios ou não índios, todos os Fulni-ô presentes
ali recebem uma determinada quantidade de carne, de acordo com o número de pessoas
relações, fortes tensões no convívio cotidiano. Mas, antes de fazermos qualquer alusão às
questões que dizem respeito ao presente momento de vivência interétnica, queremos tratar
das perdas que, ao longo do processo de colonização, estes índios vêm sofrendo: e não uma
causaram fizeram com que estes índios guardassem grandes mágoas ao longo do processo
de colonização. A índia Iudete (Ilust. 09) 25 nos relata uma história bastante comovente do
início deste século, transmitida pela índia Malisi que fala sobre as perseguições sofridas
pelos Fulni-ô e ainda é bem lembrada entre o grupo. A história trata da mãe de Malisi
que ao dar a luz a uma criança teve que abandonar a aldeia dois dias depois do parte,
juntamente com outros índios, pelo fato de alguns moradores de Águas Belas invadirem
e tocarem fogo em suas choupanas, prática comum destes invasores. Eis nas palavras de
aí a parteira veio, [. . .] e disse “minha filha você vai ter já já” [. . .].
Com pouco tempo que ela foi ter a criança em cima do cepo, né? [.
. .]. Aí foram procurar o cepo, o cepo disse que a outra mulher já a
tinha levado para ganhar neném, sabe? Aí disse que o papai dela
cozinha chapéu em forma, forma de chapéu. Aí disse que “traga
uma fôrma uma fôrma depressa”. Aí disse que ela aperreada, [. . .]
25
As ilustrações em que estão descritas mais de uma pessoa deverão ser observadas da
esquerda para a direita.
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que chega a invasão do povo branco [. . .], disse que ela com dois
dias de resguardo correram, sabe?, os índios, não só ela , os índio
todo. Disse que correram com umas trouxinhas na cabeça, outros
de barriga [. . .], outras de menino novo e ela com dois dias de
resguardo, disse que elas saíram desembestadas, disse que tocaram
fogo nas casas [os águas-belenses].26 Quem já não tinha roupa,
quem já não tinha nada, queimar o resto que tem, já imaginou? Aí
disse que a mãe dela pegou, saiu o caminho do Cipriano [. . .]. Aí
disse que correu com dois dias de resguardo [. . .]. Disse que no
lado atrás dessa casa foram se amoitar lá, o menino morreu lá
mesmo . . . e ela ficou “doida”.
era localizado onde fica hoje a cidade de Águas Belas. Na medida em que foram chegando
ato de ceder parte do território não teve o sentido de uma simples transferência de direitos,
mas sim o fato dos Fulni-ô terem de se afastar por não resistirem às constantes investidas
O que mais ajudou os Fulni-ô a resistirem, ou seja, não fugirem totalmente dos
invasores foi, com efeito, a preocupação de sempre terem de se reunir para fazerem seus
Porque nessa época, quando eles fugiam, eles iam pra o Poço das
Trincheiras, eles iam pra Santana do Ipanema, eles iam pra outros
municípios, corriam. Só à noite, sabe? Eles voltavam. A
preocupação deles era de se juntar pra que eles pudessem fazer os
rituais deles. E esses rituais eram feitos, sabe? Às escondidas: três
horas da manhã.
26
A família que fazia estas coisas era do Coronel Salustiano, ainda resta membros na cidade de
Águas Belas.
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A prática desses rituais passa a ter, desta forma, um valor essencial para o
grupo. Isto porque, se antes os rituais eram praticados corriqueiramente na hora que
desejassem, com a chegada dos invasores em seu território, os rituais teriam que ser feitos
em outros locais. Estes locais não poderiam estar visíveis aos estranhos, em parte pelos
É importante ressaltar que este segredo não tinha a mesma intensidade de hoje.
Ao referir-se à primeira visita feita pelo pesquisador Boudin, Foti (1991, 10) diz:
retornamos à dissertação de Foti (1991, 3), quanto nos fala de alguns dos vários problemas
deixaram dominar. E, como vimos atrás, o principal motivo desta resistência foram os
fortificaram, e com isto a possibilidade de domínio por parte do não índio ficou cada vez
mais difícil. Com o segredo, o grupo pode delimitar os espaços com a sociedade nacional.
27
Contudo, podemos perceber que tais práticas religiosas ainda são vividas na “aldeia de cá”
(Aldeia Sede). Salientamos, porém, que os estranhos não têm direito de presenciar estes eventos.
45
Mas, não foi apenas o Ouricuri que deu forças para os Fulni-ô resistirem.
economia interna (artesanato, roça, etc.), deram, de uma certa forma, condições para
vivência interétnica, os Fulni-ô ao invés de cederem aos infortúnios causados pela sociedade
regional, fizeram com que todos os elementos culturais de que dispunham fossem reconhecidos
não apenas por si mesmos, mas, também, por toda sociedade não índia envolvente e dominante.
Os Fulni-ô sempre foram vítimas de uma história de massacres. Este fato provocou
Fulni-ô e o que não é; quem fala yaathê; quem tem a maior posse de terra local; quem chegou
primeiro, ou seja, quem realmente é o dono da terra. Uma série de elementos identitários foram,
com a necessidade, sendo relembrados entre os membros do grupo, para que assim pudessem ser
invocados como limites com os seus vizinhos. Construídos os limites, os Fulni-ô se percebem
como possuidores de um maior número de valores simbólicos: se os Fulni-ô podem ser bilingües
(falar yaathê e português), os águas-belenses não podem; se os Fulni-ô podem incorporar à sua
cultura danças, crenças, cantos da sociedade dominante, no momento que bem entenderem, esta
mesma sociedade não pode fazer o mesmo com a cultura Fulni-ô, devido à construção histórica
conhecidos entre estes dois grupos. Só que, ao estabelecerem as fronteiras, os Fulni-ô se vêem
possuindo um maior espaço simbólico, ou seja, os seus espaços morais, espirituais são bem
própria idianidade. O termo orgulho é indicado por nós, pesquisadores destes fenômenos.
Foti (1991) fala do segredo Fulni-ô, que conota uma série de atitudes de distanciamento e
é mais do que o segredo. O orgulho é composto por uma série de expressões presentes
constantemente no olhar, no falar e agir de cada membro do grupo, cujos motivos de tal
tem a função de enaltecer a cultura deste grupo. Não se apresenta somente como sendo um
conceito elevado e exagerado de si próprios, mas como uma maneira dos Fulni-ô se
possibilitaram que ambos construíssem seu modo particular de ser e agir. A aceitação
mútua dos modus vivendi distintos é a única forma que estes dois grupos encontraram para
materiais, por sua vez os águas-belenses possuem o poder público municipal e dominam
toda a parte comercial da cidade de Águas Belas. A cidade tem um comércio bastante
diversificado, com uma feira-livre bem abastecida de cereais, frutas, hortaliças e carnes.
Possui ainda pequenos mercados com vários artigos industrializados, livrarias, pousadas,
Os Fulni-ô, por outro lado, possuem a maior parte do território onde a cidade
de Águas Belas se encontra; na verdade, é cercada (ilhada) por terras indígenas. Com esta
posse da terra, são os índios que dizem o que deve ou não ser construído e acrescentado ao
seu território para uso comum de índios e não índios. Além de possuírem a maior parte
territorial do município, eles têm uma diferença cultural bem marcante. A posse da terra e
etc.) fazem com que os Fulni-ô sempre estejam lembrando – implícita ou explicitamente-
que, se não têm um poder econômico igual ao da sociedade envolvente, possuem um forte
Como os águas-belenses não podem mais lançar mão dos mesmos meios
agressivos, que seus antepassados utilizaram para expulsar os Fulni-ô de suas terras, usam
a indiferença referente aos valores culturais deste grupo, como forma de hostilidade,.
apresenta sempre uma visão distorcida do que os Fulni-ô sejam. Ao falar com alguns
moradores desta cidade, percebe-se que a figura do índio (Fulni-ô) não é muito diferente
daquela que a sociedade dominante passou anos reproduzindo: o índio preguiçoso, pedinte,
sujo, sem modos, faz parte do imaginário desses moradores, embora também considerem
podem ilustrar essa situação: o primeiro é o relato de uma manicure que trabalha tanto na
cidade de Águas Belas quanto na aldeia (e que não é natural nem de uma, nem de outra).
Relatou que ao atender uma freguesa aguasbelense, a mesma exigiu que a bacia, usada
momentos antes por uma índia Fulni-ô, fosse desinfetada antes que pudesse ser usada para
o seu próprio tratamento de limpeza. De acordo com a manicure, esta freguesa não fazia a
mesma exigência quando o tratamento anterior tinha sido feito em uma aguasbelense.
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Momentos como este deixam aflorar tensões e preconceitos mais profundos entre os Fulni-
a indagar sobre a visão deles dos Fulni-ô. Como éramos tidos como turistas e não como
pesquisadores, já que não tínhamos nos apresentado como tal, as pessoas que serviam a
refeição não fizeram a menor restrição em apresentar os seus vizinhos índios. Quando
obtivemos as seguintes respostas: “Eles são índios bons, civilizados, que não fazem mal a
sociedade nacional. São simplesmente comparados, ora como brancos quase civilizados e
organizando todos os elementos culturais (sejam originais ou por aquisição) que fazem
comunidade, do casar-se com cônjuges Fulni-ô, de ter traços físicos característicos, residir
na reserva e viver da própria idianidade (da terra), a partir do resgate da língua e de uma
vivência religiosa secreta, que este grupo formará, em seu meio, o que chamamos de
a visão do aguasbelense que propomos inserir nesta parte do trabalho fazem parte da regra
geral que a sociedade nacional tem do índio. As exceções, que fogem a regra, serão citadas
quando tratarmos dos elementos da identidade étnica Fulni-ô nos seus próprios aspectos
estruturais.
elementos que fazem ser possível a cultura do grupo existir, como também ser reconhecida
todos, ao menos aqueles que foram mencionados linhas atrás e que têm uma importância
Apesar dos Fulni-ô terem seu território dividido em lotes, eles têm conseguido
Ouricuri, que o grupo faz durante três meses (final de agosto ou início de setembro até o
Fulni-ô é marcante quando os mesmos são, de alguma forma, hostilizados pelos não índios.
Como exemplo podemos citar o caso em que os índios interditaram a BR-423, que liga
Recife a Paulo Afonso. Isto ocorreu porque quando dois índios Fulni-ô estavam
consertando suas bicicletas no acostamento desta BR, um motorista não índio atropelou-os,
causando a morte de ambos. Por causa deste acidente, vários índios se reuniram e
interditaram a BR. Exigiram que fosse construído um túnel por baixo da pista, para que os
índios pudessem trafegar livremente. Vale lembra que a reserva é cortada por esta BR. Em
A vida em comunidade também pode ser percebida nos rituais religiosos, nos
cantos, nas danças, nas festividades, tradicionais ou não, e no plantio e colheita do feijão.
51
Muitos índios se reúnem para plantar e bater feijão, usando como elemento motivador do
trabalho o Rojão, canto de trabalho utilizado no mutirão. Por fim, o viver em coletividade
entre os Fulni-ô é bem percebido quando eles defendem problemas causados pela vivência
interétnica.
discurso do orgulho de ser Fulni-ô. Dizem eles que, ao casar-se com pessoas do grupo, o
índio evitará muitos problemas que teriam de enfrentar se não o tivesse feito. Problemas
cônjuges; a introdução da participação nos rituais pelos cônjuges não índios; problemas
com a terra, pois quando o índio se casa com um não índio, este último passa a ter direito à
terra (ao lote), como também o direito de comprar mais chão. Diante de todos estes
características. Podemos observar bem isto com a afirmação de uma índia Fulni-ô, ao
referir-se aos mestiços: “Sem a gente querer, a gente discrimina o índio descaraterizado”.
O índio que não tem cabelos pretos, pele marrom, olhos melanesianos, poucos pêlos, tenta
se sobrepor a esta discriminação trazendo para sua vida todos os valores e práticas
simbólicas que envolvem a vida dos Fulni-ô. Os que pertencem a esta categoria e nem isto
filho de mãe negra com pai mestiço. Além de não ter características físicas indígenas, ele
52
não fala o yaathê. Para muitos Fulni-ô é uma vergonha quando ele afirma para qualquer
ô forte. Quando o índio sai da aldeia para tentar vencer a vida no mundo dos brancos, é
tido, pela comunidade, como sendo um índio que se enfraquecerá na medida em que mais
tempo permanecer fora. Sobre assunto, o índio Joventino disse que “a pessoa que pensa no
seu futuro, ele tem capacidade de se deslocar no seu futuro. E quem pensa mais como da
comunidade não tem vontade de sair”. Futuro aqui é visto como busca de emprego bom,
Para muitos Fulni-ô, no momento em que o índio assume o seu papel dentro do
grupo e rejeita muitas propostas que a sociedade dominante lhe oferece, este indivíduo
afastamento da aldeia não são bem aceitas pelos Fulni-ô. Daí o depoimento do Sr.
Francisco: “Eu quero ser pobre, mas com o meu costume, com minha família, com o meu
povo”.
sem precisarem sair da aldeia. Ou seja, os que trabalham na agricultura clamam por mais
trabalham com artesanato sentem falta de recursos para investir e comercializar essa
produção. Neste sentido, os Fulni-ô querem ter acesso a trabalho e renda como os não
relação com os não índios. Nas relações intraétnicas, o idioma funciona como uma forma
53
de tornar o grupo mais coeso. Proporciona uma interação maior com os rituais religiosos,
com os seus vizinhos águas-belenses. Podem manobrar, com o idioma, as discussões sobre
qualquer assunto que lhes digam respeito. Nas entrevistas, por exemplo, alguns
sentiam inseguros sobre o que deveriam responder. Nota-se que o mesmo ocorre nas
Saber falar yaathê fora das imediações da aldeia é essencial. Foi-nos dado um
caso de um índio que, quando vivia dentro da aldeia, falava pouco a língua, isto porque
sentia vergonha de se expressar diante dos outros índios que falavam melhor o yaathê. Ao
sair da aldeia, para morar fora, este índio sentiu falta do ambiente que antes o cercava e
logo procurou um dos seus parceiros Fulni-ô que estava no mesmo local para exercitar o
idioma.
O yaathê tem sido alvo de orgulho da comunidade, mas boa parte de seus
tem de se aprofundar nos seus valores religiosos e da maneira como eles são vistos pela
sociedade dominante, que os Fulni-ô têm tentado se apropriar cada vez mais da sua língua.
O idioma é o veículo da indianidade Fulni-ô. Cunha (1986, 99) enfatiza o papel da língua
entre qualquer grupo ao dizer que “a língua de um povo é um sistema simbólico que
impossível fazer menção a qualquer um dos pontos antes expostos. Foi na preocupação em
meses ao ano, tem o papel de ligar cada componente do grupo aos valores originais da
indianidade. Durante estes três meses, eles celebram seus rituais, garantem um maior e
intenso convívio grupal. Dizem eles que as relações – nesta aldeia – entre seus membros
não têm nada a ver com as outra aldeia. É nela que eles darão sentido a todo um viver
coletivo. O viver grupal, a língua, a solidariedade e a própria religião, na qual o Tolê está
fortemente inserido, são referenciais intensos entre cada componente do grupo. Basta
lembrar que a retirada dos Fulni-ô para o Ouricuri é feita de forma individual, ou seja, as
famílias saem de uma em uma, enquanto que a vinda do Ouricuri para a Aldeia Sede é feita
coletiva, enquanto que na aldeia de cá, onde os Fulni-ô passam a maior parte do ano, o
Embora a maior parte dos Fulni-ô não encontrem sua respeitabilidade através
de empregos bem remunerados, nem de outras forma legitimadas pela sociedade dos
observação deste trabalho, o Tolê, nos seus aspectos de representação do grupo para com
podemos ressaltar que este segredo funciona como uma barreira que estes índios
estabeleceram frente à sociedade dominante, devido a todas as perdas sofridas a partir dos
Percebemos que o orgulho do ser Fulni-ô sintetiza todo este conjunto de forças
orgulho é alimentado por uma história construída nos processos discriminatórios que
em situação de pedintes, esta comunidade encontra, com a sua cultura, uma forma de
balança nesta relação interétnica. Contudo, evocamos a observação de Cunha (1986, 162),
ao dizer que
Por isso os Fulni-ô querem possuir todos meios para conseguirem mais respeito
As festas têm a função de ligar agentes sociais, ou seja, dar melhores condições para que
indivíduos partilhem seus códigos culturais de forma lúdica. Ou ainda, a festa "destrói toda
'deboche' a que, geralmente, as conjecturas reduzem a festa" (Duvignaud 1983, 67). Diante disto,
podemos relacionar dois aspectos da vida sócio-cultural Fulni-ô, intimamente interligados ao Tolê ou
vice-versa, que possibilitarão compreendermos os limites e as ligações da relação interétnica que este
grupo vivência com a sociedade regional. O primeiro aspecto é a Festa da Padroeira Fulni-ô, Nossa
Senhora da Conceição (Ilust. 11), mas precisamente no momento em que ocorre a procissão, onde o
Tolê torna-se uma peça fundamental nas relações de representação da identidade étnica Fulni-ô para
os não índios. E o segundo é a abertura do Ouricuri (Ilust. 12), neste caso faremos considerações
referentes à realização do Tolê no tocante aos seus aspectos sociais que precedem a realização
intensiva do mesmo, isto é, daremos ênfase aos preparativos para a grande reunião grupal dentro do
Ouricuri.
fevereiro, durando cerca de cinco dias. De acordo com alguns relatos Fulni-ô esta Festa teve seu
início em meados da década de vinte deste século. O seu principal influenciador foi o Padre Alfredo
Dâmaso (Ilust. 13), que é tido, pelos índios Fulni-ô, como um grande guerreiro da causa do grupo.
Conforme o Sr. Nézio, índio Fulni-ô, a festa da Padroeira teve início em 21 de agosto de
1921, organizada pelo Padre Alfredo Dâmaso, tendo como visitante o Bispo D. João Tavares de
Souza.
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pois retrata a vida de um religioso totalmente alheio as causas indígenas, antes do contato
com este grupo. O motivo principal de sua vivência entre o grupo deveu-se a uma escolha
feita por um Cacique Fulni-ô nas primeiras décadas deste século. Como no início do século
os Fulni-ô estavam vivendo muitos conflitos com a sociedade regional (local), o Bispo
acima citado levou para a aldeia, a pedido dos próprios índios, seis Padres para que fosse
escolhido entre estes um que tivesse o papel de acolher e resolver os problemas sociais dos
Fulni-ô.
Apesar de não gostar de índio, no início de sua relação com os Fulni-ô, o Padre atendeu ao
cumprimento do dever e passou a trabalhar junto aos Fulni-ô, em defesa dos interesses
indígenas.
origem à Festa. A Festa no seu início tinha sua iluminação feita por uma vela inserida
dentro de uma taboca. Quem ensinava aos índios a rezarem era a velha índia Lulu. Esta
índia aprendeu a rezar com os brancos, pois nos tempos das perseguições fugia para outros
Senhora da Conceição (Ilust. 14) entre os Fulni-ô não foi um mistério 28 e sim
uma forma que os brancos utilizaram para conseguir que os índios doassem suas
terras para a Igreja. Esta Santa foi encontrada dentro de uma lagoa próxima da
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Esta prática era comum dentro do processo de expansão colonial. As estátuas eram
colocadas, pelo colonizador, em um local que os índios a achassem. Estes encontros com a Santa dava
impressão de algo Divino, mas na realidade era uma forma dos novos habitantes conseguirem expandir seu
domínio, fosse este domínio qual fosse: religioso, territorial, econômico, político etc.
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Santa que foi encontrada pelos Fulni-ô ficou nas mãos dos águas-belenses, retornando para
a aldeia com o Padre Alfredo, que a trouxe quando exercia a função de Padre entre os
índios. A Santa da cidade de Águas Belas e a Santa da aldeia Fulni-ô recebem o mesmo
nome. Porém, o que vai diferenciá-las é que a primeira tem no seu manto desenhos de
cultura que o Padre Alfredo trouxe para a aldeia. De acordo com a crença Fulni-ô, a
presença deste Padre entre os Fulni-ô já era prevista pelo grupo, através das profecias.
Entretanto, nas diversas declarações sobre qual era a reli gião dos
indivíduos Fulni-ô podemos entender que apesar de grande parte destes índios
entre sua sociedade e a nossa. Pois, ao afirmarem que são católicos, os Fulni -ô
esquivam-se de ter que dar declarações sobre as suas crenças. Valendo salientar que ser
católico atribui um certo status social a esses índios dentro de nossa sociedade. Porém, há
diversos indivíduos Fulni-ô que se dizem não católicos, afirmando que têm sua religião
própria. Com relação ao status de católico o Padre José Luís faz seguinte declaração:
29
Vicente é um índio Fulni-ô, que atualmente está cursando seminário na cidade de Garanhuns
para ser padre.
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Paralelo a estes três casos acima mencionados, dos índios que se dizem
católicos para não serem questionados pelos não índios, dos índios que se assumem
enquanto não católicos e dos índios que se dizem católicos para obter um status dentro da
temos a índia Iolina que queria de todo jeito que o Padre José Luís concordasse com a
edificação de uma igreja do Padre Cícero na frente de sua casa; o Padre não concordou, o
motivo que ele alegou é que já havia uma igreja na aldeia. O outro exemplo é o mês de
maio em que os Fulni-ô rezam terço para a Nossa Senhora da Conceição todos os dias,
com apresentação da Banda de Pífano Fulni-ô (Ilust. 15), ao mesmo tempo em que a
Santa, mas o que está por trás dela. É apenas mais uma maneira que os Fulni-ô utilizam
para esquivarem-se das imposições sociais feitas pela sociedade majoritária. E ainda: ela
evangelizado por ele, pois “ele sabia de muitas coisas [segredo] dos índios Fulni-ô, mas
não participava”.
quanto os Fulni-ô têm sua cultura invadida pelos não índios, sendo a homenagem a Nossa
de muitas pessoas que fazem parte dos municípios próximo ao aldeamento Fulni-ô,
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contando também com a participação de vários índios Fulni-ô. A organização é feita pelos
acompanhada de ritos religiosos como também de ocasiões festivas. Com relação a esta
última os Fulni-ô organizam bailes no clube da aldeia, enfeitam a aldeia com bandeirolas,
frente da capela.
partes: inicia-se com os cânticos católicos, que são dirigidos pelos próprios índios; depois há
apresentação do Tolê (Ilust. 17), o grupo principal da aldeia; e, por último, há apresentação da Banda de
Pífano Fulni-ô. Estas partes ocorrem durante toda a procissão de forma repetitiva, ou seja, sempre que
uma grande quantidade de pessoas, entre elas estão presentes o Padre, com seus ajudantes; alguns
líderes Fulni-ô; a banda de Pífano Fulni-ô; e o grupo de apresentação musical do Tolê. É importante
ressaltar que a apresentação durante a procissão não é a mais típica, porque ocorre a ausência da
coreografia tradicionalmente executada pelo grupo. Além do que os cantos são reduzidos a pequenos
Porém, o grupo do Tolê canta em diversas ocasiões da caminhada. São paradas bruscas
dos cânticos católicos, onde todos que estão ali respeitam e escutam como uma forma de respeito a
algo. Aos Fulni-ô cabe a veneração de algo que não sabemos o que é; e aos não índios resta apenas a
audição, sem maiores comentários, apenas sabendo que aqueles cantos não fazem parte dos dogmas
Quando a caminhada termina, o grupo de Tolê dos Velhos volta a apresentar-se de forma
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O Padre, o Cacique e o Pajé que estiveram presentes nesta procissão, no decorrer de nossa
pesquisa, foram: O Padre José Luís, o Cacique João Pontes e o Pajé Cláudio.
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discursos, como também todo o rito católico e Fulni-ô (Ilust. 19 e 20). Neste último caso
referimo-nos ao Tolê.
Para que seja possível uma melhor comunicação dos interlocutores deste evento
junto aos fiéis é posto um carro de som em frente da capela da aldeia. Neste mesmo carro são
interligados tanto as vozes como os instrumentos musicais (violão, teclado etc). A utilização
acontece ao ar livre.
De acordo com o Padre José Luís as funções dos dois líderes Fulni-ô são as
seguintes:
Padroeira da aldeia. Nesta ocasião o Padre dá oportunidade aos índios que têm algum papel de
liderança na aldeia para transmitir alguma palavra para o seu povo; e os grupos de apresentação
humano, sem que estejam atados pelas mãos, tornando praticamente impossível o acesso de um
momento de “apresentação” do grupo é que grande parte da população não índia começa a
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voltar para suas casas, não dando muita “atenção” ao evento. Talvez isto ocorra pelo fato
deles já estarem acostumados com a apresentação do Tolê ao mesmo tempo em que não
origem católica, os Fulni-ô demonstram um arcabouço cultural em que os não índios são
nas relações com os não índios. Ao mesmo tempo em que “cultuam” uma divindade, a
cultuar e venerar as Divindades de sua cultura, com os cânticos, toques e danças presente
no Tolê.
massiva, apontamos para a presença do Tolê dentro da procissão, isto é, sua função
enquanto elemento subjetivo de representação étnica dos índios Fulni-ô para com a
registros históricos de conflitos dos não índios com os Fulni-ô, principalmente em disputa
choupanas, mataram crianças, enfim, tomaram inúmeras atitudes agressivas para expulsá-
los do seu território. Como vimos também, os últimos ocorridos deram-se na primeira
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década deste século e, os índios que testemunharam ou ouviram falar sobre estas agressões nos
contaram que, à noite os Fulni-ô voltavam para fazerem seus rituais. Estas celebrações tem então, hoje,
o significado de dar força e resistência a este grupo, na defesa de seu território e de sua gente. A índia
Lea Araújo, afirma que o Ouricuri é como uma forma de purificar o índio que vive a maior parte do
tempo envolvido por uma sociedade que lhe trouxe problemas econômicos, morais e espirituais.
Nascimento (1994, 288), por sua vez trata o segredo entre os índios no Nordeste da seguinte forma:
Todos os anos os Fulni-ô deixam suas residências nas aldeias (Sede e Xixia-khla) (Ilust.
21 e 22) ou nas cidades onde moram, para viverem coletivamente durante um pouco mais de três meses
no território sagrado do Ouricuri (Ilust.23).31 Cada família tem uma casa neste local para residir durante
este período. Todos os Fulni-ô devem participar do Ouricuri, exceto os cônjuges não índios e os filhos
mestiços que não foram iniciados no ritual até uma certa faixa de idade infantil, cuja idade não quiseram
nos precisar.
Neste novo convívio social, todos vivem outro tipo de relações, por exemplo: não podem
brigar entre si; ajudam-se mutuamente; e, quando é o caso, resolvem-se às inimizades ocorridas durante
o resto do ano. Os Fulni-ô, em seu território sagrado devem viver dentro dos princípios e regras dos
antepassados. Os casais não devem ter relações sexuais neste território e os homens têm uma parte do
31
Há uma gleba de 360 a 380 ha (não há precisão na demarcação) destinada para o Ouricuri, que é de uso
coletivo e para os rituais. Seu uso é administrado pelo Pajé e pelo o Cacique.
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É nesta época e local que os Fulni-ô resgatam e reproduzem os valores originais da sua
segredo. Os estranhos não só ficam sem assisti-los, como eles também não podem saber o
que se passa nessas cerimônias. O único dia em que se permite a presença dos estranhos é
o dia da “Abertura do Ouricuri”. Para a aldeia do Ouricuri vão multidões de não índios,
tanto de Águas Belas, como dos municípios vizinhos ou mais longínquos. Isto porque são
atribuídos muitos poderes mágicos ao Juazeiro Sagrado (Ilust. 24), presente na parte da
casa dos homens, que atrai não índios para fazerem pedidos, cumprir promessas ou
agradecer as graças alcançadas pelo Juazeiro. Como os romeiros não podem chegar
próximo ao Juazeiro, visto esta árvore está localizada na casa dos homens, eles pedem aos
índios que levem suas fitinhas e pendurem-nas nesta árvore como forma de agradecimento
Ouricuri é feita num clima de euforia de preparo de bagagens, arrumação de móveis como
fogões, mesas, colchões, caixas de panelas, utensílios de cozinha e outros objetos que são
inicialmente colocados nas frentes de cada casa da aldeia de Águas Belas. Os índios
transitam pelas ruas num corre-corre cheio de empolgação e alegria. Nas vésperas da
obtivemos, todos os Fulni-ô devem estar de roupas novas para este dia.
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fica muito festivo. Esta motivação das vésperas caracteriza bem a primeira fase deste
ritual: a separação coletiva do espaço profano da aldeia para o local sagrado do Ouricuri
Neste último não haverá mais bebidas alcóolicas e com isto divertimentos provenientes das
mesmas. O dia da abertura, no domingo, começa muito cedo com os últimos índios saindo
que se dirigi para o Ouricuri, mas com certeza são mais de cinco mil pessoas. É uma
enorme quantidade de pessoas, dentro daquela “mini aldeia” (as casas são pequenas, de no
lado para o outro e a maioria dos índios acocorados na frente de suas casinhas ou
deitados em suas redes no lado masculino do Ouricuri, ficam observando o movimento dos
estranhos.
bolos etc. Ao que parece não é permitida a ingestão de bebidas alcoólicas, pois não
No meio da multidão de não índios ficam alguns índios que depois viemos
saber que são os líderes informais de prestígio do grupo. Esses ficam fazendo o papel de
maioria dos não índios que estão presentes (Ilust. 25). Do lado não indígena, o celebrante é
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sempre uma autoridade eclesiástica de fora, escolhida cuidadosamente por suas posições
favoráveis à causa indígena. Da parte dos Fulni-ô o celebrante é um índio que discursa em
yaathê. Esta missa é rezada e cantada parte em yaathê e parte em português. Quando em
demarcação e a falta de apoio aos índios por parte do governo. Intercalado a este discurso,
o sermão também enfatiza uma certa louvação aos índios, através de pedidos para os não
“santinhos” e ouvindo pedidos diversos de ajudas dos índios. Todos prometiam concessões
afirmou que essa negociação de favores era freqüente. Segundo ela, e outros índios, os não
índios devem uma indenização aos índios por terem roubado suas terras e devastado a
cultura indígena. Por isso, declararam-se com direito a fazerem esses pedidos e
índios. Por volta das 13:00 horas, horário limite da presença dos não índios nesta aldeia,
fotografia disforme deste ritual. O segredo sobre os elementos místicos dos Fulni-ô
atrapalha ainda mais a um espectador desavisado. Mas ao nosso ver, consideramos que a
celebração ritual desta abertura tem o significado central de um trégua entre os Fulni-ô e
fervorosamente, mas sempre mostrando que é ele que faz as regras, determina dia, hora e
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orgulho de sua posição que os Fulni-ô ostentam nesse ritual. Orgulho reforçado pelos seus
poderes místicos dos quais os não índios beneficiam-se indiretamente. Orgulho de uma
supremacia pacífica aspirada pelos Fulni-ô, depois da sua sofrida experiência com a
supremacia destrutiva dos não índios, no decorrer da história de suas relações interétnicas.
Orgulho que é alçado nas negociações de favores com os poderosos brancos, pelos direitos
dos índios a indenizações por todas as perdas que os brancos lhes proporcionaram.
momento de aceitação do não índio nesta aldeia, pois se trata do instante inicial onde será
realizado todo um complexo ritualístico, onde o Tolê, inclusive nos seus aspectos musicais,
Os Fulni-ô e brancos de Águas Belas, nos dias de hoje, só podem ser pensados
num contexto de dependência interétnica. Por detrás deste chavão antropológico encontra-
específicas”. Concordamos com o autor quando afirma que a questão indígena no Nordeste
brasileiro não pode ser reduzida a uma dimensão territorial, pois as causas e rituais comuns
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Com isto remontamo-nos para Nascimento (1994, 294) quando diz que as
“lideranças indígenas nordestinas, em geral, perceberam com muita clareza que apresentar
Ouricuri, poderiam ser vistas como uma festa religiosa qualquer, do interior nordestino,
São estes pontos distintos, do ser Fulni-ô, que nos fazem refletir acerca da
ocasião em que seus agentes sociais estarão inseridos. Todavia, não pretendemos, neste
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trabalho, caminhar para tal discussão, apenas evidenciar que a dinâmica sócio-cultural
apresenta-se de uma forma evidente e complexa entre este grupo. E que o Tolê,
brando, ou mesmo pelo fato de não haver significados etimológicos na língua yaathê para a
palavra Tolê. Contudo, pelo fato dos Fulni-ô serem bilingües eles utilizam ambos os
termos. Vale salientar que esta prática de adaptar certos vocabulários ao yaathê é comum
entre o grupo o que não implica na perda do mesmo nome na materna. Lapenda (1968,
- Xisêfa = Josefa
- Xulxi = Jorge
- Sô = Sol
- Umi = Homem
O termo Tolê também pode ter surgido do toque dos Buzos, a partir dos dois
tons existentes nos mesmos, onde os Fulni-ô teriam formado duas sílabas onomatopaicas,
TO e LÊ. Esta última hipótese foi-nos dada por um Fulni-ô que é músico-intérprete de
gêneros musicais da sociedade nacional e que não faz parte do grupo do Tolê.
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Veiga (1980, 91-4) discorre sobre as implicações semânticas e etimológica do termo Toré a partir de
várias pessoas que observaram alguns grupos indígenas. Portanto, de forma geral, o termo Toré pode ser atribuído
pelos seguintes fatores:
- toré ou turé, que pode designar diferentes tipos de tambores, onde a origem do “tu” pode está
relacionada as batimentos ou ao bater dos tambores;
- toré pode ser boré ou mboré, isto é, um tipo de aerofone;
- toré, pode está relacionado com “tiburée”, que significa “um assobio”;
- toré ou boré, um trompete feito com bambo ou taquara;
- toré, dança dos Carnijó [Fulni-ô] da Serra do Umã e dos índios dos Cimbres.
Cascudo (1988, 757) faz diversas referências ao termo toré como sendo uma dança indígena.
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por Nascimento (1994) sobre o ritual do Toré, praticado por diversos grupos indígenas no
Toré apresentam entre si, é de grande importância sabermos quais as relações de semelhança e
diferença que os grupos indígenas, neste contexto etnográfico, apresentam diante da ideologia
étnica presente na sociedade nacional. Lembramos, entretanto, que o Tolê é uma prática contida
conjunto de práticas e papéis sociais presentes no universo religioso dos índios no Nordeste, os
quais utilizam esta prática como um elemento adscritivo de identificação étnica perante a
sociedade nacional. Ou ainda, referindo-se aos índios Kiriri, este autor (1994, 288) diz que o
geral.”
Nascimento (1994, 139) afirma que nestes grupos há uma “onipresença de algum
tipo de Toré”. Para tanto, classifica estes rituais em três grandes conjuntos:
Um, que reúne os grupos que praticam o chamado Ouricuri, tendo nos
Fulni-ô de Águas Belas – PE seu principal realizador; outro, menos
comum, praticante do chamado Praiá, tendo nos Pankararu de Tacaratu
– PE seu principal realizador; e, por fim, aqueles que realizam tão
somente o Toré, que é o caso mais comum (Nascimento 1994, 139-
40).33
que estes estranhos são os observadores que não fazem parte do contexto sócio-cultural do grupo
– há uma certa simplificação do verdadeiro papel que representa este evento, vindo assim a ser
33
Dentro desta classificação Nascimento cita os grupos no Nordeste que pertencem a cada uma
desta categoria, inclusive os que não apresentam qualquer tipo de “Toré” (1994, 140-41).
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percebido como uma “dança de índio”. Os motivos religiosos pelos quais torna-se possível
a existência do Toré passam a ser omitidos pelos grupos e o Toré passa a demarcar as
com os estranhos e não querem lhes transmitir quaisquer informações a mais do que uma
simples referência ao evento. Por outro lado o termo Tolê é utilizado quando os diversos
para algum estranho que aquele evento faz parte da construção simbólica Fulni-ô. Portanto,
podemos observar que o nome Tolê34 serve como um possível referencial para os não
Fulni-ô entenderem que existe neste grupo algo socialmente construído que não faz parte
complexo simbólico que o compõe faz parte do segredo do grupo. Interligados a esse
segredo estão os significados culturais de cada fazer musical no Tolê, que, na sua maioria,
preocupação dos Fulni-ô em evitar falar sobre o assunto que diz respeito à musicalidade
Com relação a sua origem e significado, podemos perceber que faz parte
exclusiva do segredo Fulni-ô. Sempre que tentamos investigar este assunto ou nos foi
Bom aí essa parte que você tá falando, que se já existiu gente que
começou o Toré, cabei de de confirmar que ele é da outra geração,
né? Aí a gente não sabe da onde é que ele vem. E hoje através dos
nossos antepassados a gente vai encontrando e ele ensinando como
é que a gente pode fazer ele, mas só que ele do outro tempo, não é
do nosso alcance (Sr. Matinho).
34
Lapenda (1968) e Andrade (1989, 522) citam o termo Tolê como uma espécie de ritual que é
dançado pelos Fulni-ô ao som de trombeta (Buzo).
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algumas ocorrências dentro do Tolê que fazem da nossa observação algo mais concreto,
inspiração como os membros do grupo têm a diversos elementos da natureza como por
Ao ser interrogada sobre os nomes das danças que poderiam ser reveladas à
sociedade não Fulni-ô, Marilena Araújo de Sá afirmou que só poderia revelar os nomes das
danças que eram permitidos conhecer. Estas danças anteriormente apresentadas eram
permitidas torná-las públicas. Esta revelação deve-se ao fato dos princípios religiosos não
Podemos perceber que o Tolê, nos seus aspectos musicais, é realizado durante
calendário fixo percebemos a presença deste ritual na Festa da Padroeira da Aldeia. No dia
do Índio e nas Festas Juninas. No que diz respeito a um calendário móvel ele pode ser
Tolê, optamos por aquele que representa o grupo em seus aspectos simbólicos e é
considerado pelos Fulni-ô como o verdadeiro grupo de Tolê. Com isto todas as nossas
denominação é a mais comumente usada dentro do grupo, pois traz interligada a partícula
Lha que tem um sentido de reverência às crenças Fulni-ô, caracterizando o Tolê como
agregar o grupo, de trazer paz ao indivíduo, de trazer consciência política, de ligar a pessoa
com o sobrenatural. Cada faceta musical representa algo na cultura e sempre é dirigida
para uma determinada situação, para uma determinada pessoa. De acordo Awassury, um
Fulni-ô de apenas doze anos de idade e que tem, juntamente com sua mãe Marilena Araújo
91
de Sá e a professora Yvonildes, trabalhado como monitor da escola de língua yaathê, o Tolê não é tido
como uma diversão e sim como uma forma de comunicação com a natureza.
De acordo com Marilena Araújo de Sá os demais grupos de índios do Nordeste não utilizam
o mesmo Tolê que os Fulni-ô, embora possa apresentar, em alguns momentos, o mesmo significado.
Disse também que ao observar os Torés de outros grupos os mesmos têm muita influência negra. Para ela
a forma como os Fulni-ô encaram o Tolê é muito diferente como os outros grupos o fazem, pois estes
últimos muitas vezes dançam após terem tomado bebidas alcoólicas, o que, para os Fulni-ô, é totalmente
proibido.
interétnica com a socieLdade nacional. Para afirmar nossa posição trazemos o discurso do Pajé Cláudio, o
Faz o branco aproximar ao índio, é porque eles estão, essa [. . .] dança de nós
índio é esse Torezim, né? [. . .] Através desse Toré eu tô vendo o branco daqui
de Águas Belas, branco do Recife, branco de [. . .] todas cidades vizinhas vem
atrás, aí eu fico contente com isso e é a tradição da gente.
Ao que tudo indica o termo “Torezim” é atribuído àqueles grupos que são executados pelos
diversos conjuntos de apresentação musical existentes entre os Fulni-ô. A diferença principal entre estes
grupos e o TolêLha Fulni-ô é que os membros deste primeiro não fazem parte de um contexto religioso-
familiar de escolha para a participação de tal evento. Além da escolha acima citada, podemos observar
outros pontos de diferenciação do grupo principal (Ilust. 26) com relação aos outros grupos de
4. É exclusividade nas apresentações dos eventos religiosos não Fulni-ô, como por exemplo
Outros grupos
característica de “roupa de índio”, isto é, tangas, sutiã, pinturas corporais, cocais, colares,
pulseiras;
do TolêLha Fulni-ô, ou seja, do grupo principal, dão a estes toda uma qualificação sui
Para o Padre José Luís, atual líder católico da paróquia de Águas Belas e outras
cidades vizinhas, o Tolê expressa um sentimento muito forte dos Fulni-ô. É uma forma que
eles encontraram para mostrarem “sua fé, a sua religiosidade”. Embora, o Padre José Luís
não compreenda os significados que compõem o Ritual do Tolê, sua afirmação é que este
Ritual consegue transmitir “algo sagrado, algo profundo, algo que comunica a Divindade”.
7. Aspectos Organológicos no Tolê Fulni-ô
paráfrases da entrevista com o Sr. Matinho (executante de Buzo), o Sr. Fipa (executante de
assim como a própria entrevista, está anexada a este trabalho (Anexo 1).
diversas tribos da Guiana e também ao longo do Amazonas e seus tributários, como sendo
clarinetas idioglóticas. São cobertos por um pano pintado de vermelho, com crauá. A parte
exterior do Buzo que serve como uma caixa de ressonância é feita do facheiro ou "canela
de veado". Uma parte do pedaço escolhido é cavada com um pau qualquer para poder
inserir um pequeno instrumento de sopro de palheta simples feito de taquarí (madeira ôca),
que também recebe este mesmo nome. O taquarí é calçado e colado (com cera de abelha) a
forma diferente, esta afinação sendo modificada pelo acréscimo ou diminuição da cera
posta na base da palheta. Desta forma, um apresentando o "som de meio" (mais grave) e
Com relação ao Maracá ele pode ser feito de coco, de cuité ou de cabaça –
pintados com tauá –, que são presos a um pau roliço. Contudo, o material mais utilizado é a
cabaça. Dentro do Maracá pode ser colocado "semente de meiru, pedra ou até mesmo
chumbo".35
coincidem com o que eles afirmaram anteriormente, ou seja, o Buzo maior como sendo o
Estes instrumentos sonoros servem como um forte elo dos índios com o Tolê,
compõem o ritual recebem o nome genérico de Tolê ou Toré. Ao que parece o uso deste
nome ocorre quando os Fulni-ô estão em comunicação com pessoas não pertencentes ao
seu grupo. Apesar dos Fulni-ô terem em segredo o nome de seus instrumentos sagrados, o
Pajé Cláudio informou que o Buzo em yaathê tem o nome de Tsaka Tolelidowa e o Maracá
o nome de Tsaka. Cremos que esta informação não revela por inteiro o verdadeiro nome
35
Este último material o Sr. Matinho não recomendou pelo fato de tornar o Maracá mais
pesado.
96
Fulni-ô não nos foram revelados, de forma intencional, os nomes destes instrumentos no
yaathê.
observações. Primeiro, o termo trombeta, dado ao Buzo, cuja embocadura tem o lábio como
formação deste, já que a embocadura do Buzo é constituída de palheta simples como elemento
gerador do som, isto é, podendo ser mais comparado ou nomeado com os aerofones que fazem
parte desta categoria organológica, como por exemplo à clarineta com o corpo cilíndrico –
With cylindrical bore – presente no trabalho de classificação de Hornbostel e Sachs (1961, 27)
resonador – presente no trabalho de classificação de Dournon, onde esta autora toma como
khiithxa.
Terceiro, o Maracá (Tsaka) que é utilizado pelo grupo pode ser feito do cuité,
cabaça ou coco.
Portanto, com o desenho abaixo (Ilust. 27) podemos observar que o Buzo
possui um grande corpo resonador, com pouco mais de 1 m, feito de canela de veado ou
facheiro o qual é coberto por um pano atado, neste corpo, por fitas. O facheiro, de
superfície plana, tem ¼ do seu corpo cavado para a inserção do sabugo de milho – colado
no seu interior com cera de abelha – e do taquarí que tem como base o sabugo de milho.
taquarí, que tem um corpo oco e bastante leve, possui em sua parte superior uma lingüeta
feita de casca de bambu ou de milho, a qual é interligada por cordão vegetal e cera de
abelha ao corpo do instrumento. O ar, ao entrar no início do tubo, faz esta lingüeta vibrar
junto ao corpo do instrumento e sai por um orifício localizado no corpo do taquarí no fim
da lingüeta e, desta forma, produz o som. Semelhante aos caminhos que nós temos tentado
classificar o Buso, Camêu (1976, 243) menciona os trabalhos de Spix e Martius e Koch
Buzo:
sólido tem sua produção sonora a partir do entrechoque das sementes presentes dentro do
seu próprio corpo. Vale salientar que no corpo deste instrumento podemos verificar a
presença de alguns
furos, os quais, conforme seus executantes, têm o papel de expandir o som. Com relação a
estes, furos Camêu (1977, 207) supõe ser imprecisa a sua real validade dentro dos diversos
grupos indígenas que os utilizam. De acordo com os depoimentos dos músicos a função do
Buzo (Ilust. 28) é dar base à melodia cantada pelos membros do Tolê e a do Maracá (Ilust.
29) dar base ao ritmo. Estas conclusões êmicas coincidem com as nossas observações, pois
Os Fulni-ô percebem o cântico sem letra como sendo algo relacionado com o
início da humanidade. Dizem que grande parte da humanidade perdeu a consciência do que
significava estas melodias, ficando assim presentes apenas na consciência indígena. Para
Nem uma língua ou nem uma música ela tinham letra, todas elas
eram melodiosas [. . .] e hoje só os índios é quem sabem identificar,
sabe? O símbolo da música pela a melodia, mas aqueles índios que
têm um ritual e que sabe relacionar. O Toré, por exemplo, que são
só melodiosas, num é? Essas melodias, que até hoje que não muda,
há momentos muito interessante que aparecem palavras, no Toré,
mas que só nós entendemos.
O texto que serve de base para a melodia vocal tem sua formação constituída
de sílabas “onomatopaicas” como o he, ‘a, ke e e,36 que não apresentam um sentido
semântico. Esses fonemas são entoados de forma nasalizada, revelando uma ressonância
O Tolê tem o seu significado atrelado à língua yaathê, pois só os índios que
conhecem “a língua [. . .] sabem o significado do Toré, o que é que ele representa, o que
ele pode, o que ele deve, o que ele faz” (Marilena Araújo de Sá).
De acordo com Marilena Araújo de Sá, o que entendemos por facetas musicais
36
Para a transcrição gráfica dos cânticos onomatopáicos utilizamos o Alfabeto Fonético
Internacional. Salientamos que o 'a é um substituto do . Esta substituição deve-se ao fato de facilitar a
escrita. Para maiores explicações sobre tais signos ver: Dubois (1973, 34-40) e Cagliari (1992, 53-6).
103
no Tolê, já existia antes da origem dos Fulni-ô. Elas se encontram no espaço37 e durante a
realização do Tolê entram na mente das pessoas presentes no evento. Marilena Araújo de
Sá exemplifica este fato da seguinte forma: se por acaso alguém puxar uma determinada
cantiga que os outros ali nunca ouviram ou cantaram anteriormente, todos o acompanharão
de uma "nova" melodia como algo coletivo e espiritual que faz parte de um conhecimento
comum já existente, embora de fato possa ser uma melodia nova. Este fato é
coletivas de símbolos sonoros. Decodificações estas que dizem respeito aos aspectos da
cosmovisão do grupo. A estética sonora submete-se aos signos culturais, onde estes
últimos são quem direcionam os indivíduos para uma determinada produção sonora, pois,
conforme Marilena Araújo de Sá, os improvisos musicais são uma constante dentro do
Tolê, não obedecendo a uma regra determinada pelos ensaios, quando estes ocorrem. O
indivíduo retorna ao coletivo a partir das regras pré-estabelecidas pela tradição grupal, pois
a “ idéia de uma pessoa ser reconhecida como compositor e nada mais na sociedade em
37
Confirmando a afirmação Marilena Araújo de Sá, Alfred Metraux (1978, 137), ao assistir
uma apresentação de Tolê em 6 de dezembro de 1951, mencionou um índio Fulni-ô, afirmando que aquelas
músicas existiam em todo o ar.
38
De acordo com os Fulni-ô não há um número limitado de melodias no Tolê. Entretanto,
quando tais melodias surgem têm seus significados reconhecidos pelo grupo.
104
sonoramente o ritual do Tolê, porém apenas na última ida ao campo é que conseguimos fazer
uma gravação que possibilitasse uma boa compreensão da maior parte do material musical
existente no Tolê.
A maior parte dos dados musicais no Tolê demonstrados neste capítulo são partes de
uma apresentação do grupo do Tolê em uma sala da Escola de Língua Antônio José Moreira.39 A
Fulni-ô Marilena Araújo de Sá, que é professora pela FUNAI, exerce o cargo de conselheira de
cultura do estado de Pernambuco, no conselho de música, e tem um forte papel de líder informal
entre os Fulni-ô, coordenou a apresentação. O motivo da apresentação deu-se, até onde sabemos,
unicamente pelo fato de pedirmos que fosse feita esta demonstração do Tolê Fulni-ô para fins de
crianças. Antes de iniciar o Tolê as conversas cresciam à medida que aumentava o número de
“espectadores”. Porém, quando o puxador do Tolê iniciou o canto, com o chacoalhar do Maracá,
quatro homens. As mulheres têm “funções” de dançarinas e de cantoras. Os homens, por sua vez,
são divididos em dois grupos nos quais dois cantam ao mesmo tempo em que tocam Maracá (um
instrumento para cada homem) e os outros dois tocam o Buzo. No caso desta apresentação
39
Esta escola, reconhecida pela Secretaria de Educação, foi fundada em 1989 dentro da própria
aldeia Fulni-ô, com o auxílio da FUNAI, porém as iniciativas para o funcionamento da mesma partiram da
Índia Marilena Araújo de Sá, professora deste mesmo órgão governamental, que elaborou uma cartilha de
língua yaathê. Como o seu principal objetivo é alfabetizar os Fulni-ô na sua língua materna, participam todas
as pessoas das diferentes faixas etárias do grupo, porém são as crianças quem mais freqüentam a sala de aula.
Os professores que compõem o quadro de ensino são Fulni-ô, utilizam como programa de ensino os próprios
elementos da cultura.
105
consentimento do Cacique e do Pajé, que são, ao que nos parece, as parecem principais
lideranças do grupo. Porém, há outros líderes presentes dentro do próprio grupo do Tolê, os quais
exemplo, quem está com o Buzo fazendo a chamada para as mulheres tem um tipo de liderança e
quem está puxando o canto tem outro tipo de liderança. Maiores conclusões sobre o que são estas
lideranças, como podem ser denominadas na língua, quais as suas funções religiosas, como
podem ser eleitas, não foi possível conhecer por serem parte do segredo do grupo.
clânicas,40 de subgrupos dentro do próprio grupo, a índia Marilena Araújo de Sá afirmou não ser
proibido a execução do Tolê por qualquer membro Fulni-ô, mas “vai ser com índios de
determinado tronco [clã] que se irá encontrar o Tolê com os verdadeiros tons e ritmos”.
Quando uma criança dança o Tolê geralmente ela geralmente irá dançar
quando adulta. Segundo opinião de alguns informantes a partir desta colocação observar
que a questão da herança familiar é um ponto bem marcante para definir quem pode
participar do Tolê, pois, quase sempre, quando são feitos testes com crianças para
participarem deste evento, as que mais se destacam são justamente as mesmas que tiveram
seus antepassados envolvidos com o Tolê. Da mesma forma o índio Valério herdou a
função de tocar o Buzo no TolêLha, que tem a função de tocar o Buzo no TolêLha de seu
40
Tanto Pinto (1956) como Boudin (1949) trazem diversos considerações sobre este tipo
de organização Fulni-ô. Entendemos ser desnecessário a citação destes trabalhos por dois motivos: o
primeiro pelo fato do grupo não considerar tais informações como sendo verídicas e o segundo é que tais
pesquisadores tentaram, de uma certa forma, delatar a cultura do grupo para os não índios, não levando em
consideração os aspectos secretos existentes nesta sociedade.
106
É quando a gente toca para ele escutar pelo ritmo que a gente tá
levando. Pelo ritmo ou ele, se a gente leva um ritmo estirado aquele
leva um ritmo cortando [. . . ]. Pra cortando o ritmo da gente.
Quando eu levo um ritmo cortado [com contratempos, destacados]
ele já pode levar um ritmo arrastado, aí entrosa os cantos [. . .]. Aí é
quando encaixa [. . . ] Todo toque é nas mãos e nos pés. As mãos é
quem dá todo sinal, em toda a dança [. . .]. É a mão que dá todo
ritmo dos pés.
acesso a quatro, mais os toques dos Buzos acompanhados do Maracá (Anexo 2). Esses
dois últimos foram feitos à parte do evento realizado na Escola Antônio José Moreira. Expomos
graficamente alguns parâmetros musicais, como altura e duração, para desta forma
traçarmos um caminho lógico deste fazer musical Fulni-ô. Ou seja, apresentamos uma grafia
musical interligada apenas ao descritivo (Nettl 1983, 11) e não a execução musical como
um todo. Desta forma concordamos com Camêu (1977, 107) ao dizer que
totalidade.
foi iniciado pelo homem que estava com um Maracá – nesse caso apenas um homem
estava tocando o Maracá, enquanto dois homens geralmente tocam os Maracás. Os outros
dois homens que dançaram e tocaram o Buzo, de mãos dadas, bailaram com passos largos
para frente, para trás e para os lados, vindo logo buscar a primeira dançarina da fila. Esta,
por sua vez, ficou circulando os tocadores do Buzo com passos curtos até que estes a
devolvesse à fila. Vale salientar que o cântico pode ser iniciado por uma das mulheres
presentes na fila feminina e, geralmente, o número das mulheres fica em torno de oito a
dez, neste caso este número foi aumentado no decorrer da apresentação das últimas facetas
fila indiana em círculo ante horário, na qual ficaram circulando a sala de forma risonha.
a execução do Tolê pressupõe, mesmo para aqueles que não fazem parte da cultura Fulni-ô,
Cada faceta musical foi repetida até que a última mulher da fila entrasse para
dançar e voltasse para a fila. Neste momento é dado início a uma outra faceta musical e
com ela a “mesma” dança citada anteriormente. Existem casos em que duas mulheres
chegam a entrar na roda, mas isto não é comum. Esta ocorrência é citada por Estevão Pinto
108
(1956) como se fosse uma constante no bailado Fulni-ô. Só vimos esta forma de dança
É bom salientar que a disposição das mulheres na fila obedece a uma regra
social, a qual não foi revelada. Ou seja a primeira mulher, a segunda, a terceira e assim por
diante, que estão na fila cantando e participando do bailado, sempre ocupam o mesmo
aqui transcrita, devemos chamar a atenção para o fato de que a cultura ocidental criou uma
música baseada em uma escala de doze semitons e que estas acomodações intervalares
correspondem apenas aos instrumentos temperados. O que não ocorre quando tratarmos
Mesmo com o uso da partitura, não é possível chegar a uma execução que
atinja, nos mínimos detalhes, uma uniformidade sonora em todo um conjunto musical.
desta prática musical presente no Tolê Fulni-ô, estamos cientes de que os pequenos
nuances de duração e altura ficaram fora da grafia musical a que nos propomos fazer, pois
sinais necessários para uma descrição perfeita do evento, se é que isto possa ser atingido.
musical foram os passos com que os dançarinos marcavam de forma intensiva a execução
de cada faceta musical. Esta omissão nas partituras deve-se ao fato da pouca capacidade de
deste capítulo, nossa contribuição com relação aos passos dos dançarinos no Tolê Fulni-ô.
Por enquanto recorremos a Camêu (1977, 173), para as possíveis interpretações dos
Todavia, expomos, com as transcrições em anexo (Anexo 2), algumas teias que
formam esta rede musical, na qual podemos observar sua forma, as constâncias musicais,
Fulni-ô.
frases; o segundo como sendo “um enunciado musical concluído por uma cadência ou
concordamos com Schoenberg (1993, 29) para quem a frase é “uma unidade aproximada
àquilo que se pode cantar em um só fôlego. Seu final sugere uma forma de pontuação, tal
como uma vírgula”. Em relação aos finais de uma frase, Schoenberg (1993, 30) afirma que
indicar o desenho musical das vozes masculinas e femininas e dos dois Buzos e de uma
linha, como indicador da marcação rítmica do Maracá. Escolhemos a clave de sol por dá
110
mais comodidade às vozes na pauta. Os sinais de alteração de freqüência das notas foram
colocados ao lado das mesmas em substituto das armaduras de clave por não dar uma idéia
execução, as facetas musicais não dão uma idéia de um modo ocidental preexistente, e sim
bem como os números que as identificam, foram eliminadas pelo fato de percebermos um
A primeira transcrição apresenta dez ciclos musicais, onde todos têm três
segunda apresenta quinze ciclos musicais, todos constituídos por dois períodos e em
diversos momentos há uma relação de quinta entre as vozes. A terceira apresenta onze
ciclos musicais, onde os dez primeiros apresentam três períodos e o último apresenta dois
como auxílio para uma boa execução do canto. A quarta apresenta vinte e sete ciclos
sexta transcrições fazem parte da mesma gravação, entretanto percebemos duas formas de
divisão rítmica, onde a primeira apresenta uma divisão binária e a segunda uma divisão
ternária.
onde o sol41 funciona como a nota atrativa para quem as demais estarão sempre se
conduzindo. Ou seja, percebemos, sem nenhuma exceção, que o sol fará parte de todos os
finais de períodos. Em geral a forma rítmica que estará presente em todo o texto
musical é composto por três períodos. Podemos perceber algumas variações no primeiro
período do primeiro círculo o qual indicia a parte do solista, que é composta por apenas
quatro marcações. É o solista também que indica qual a faceta musical que deverá ser
cantada. No primeiro período do segundo círculo, ocorrem oito marcações, apesar desta
variação rítmica do Maracá, podemos perceber que a partir deste círculo todos estes
períodos serviram como uma ponte para iniciar o período B e com isto finalizar no período
C. Outra mudança na forma nesta faceta musical está no terceiro círculo musical em que no
O primeiro período do primeiro círculo, iniciado com o solista, tem duas frases
inseridas em um âmbito melódico de uma oitava mais um semitom. Dois tipos de acentos
podem ser percebidos neste período: um que diz respeito à linha melódica vocal e outro
partir da segunda frase toda a linha vocal será construída com uma acentuação e subdivisão
ternária. Talvez a diferença da primeira frase com as restantes deva-se ao fato da primeira
41
A nota aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o mib. Escolhemos o
112
marcação ternária. É importante frisar que a primeira frase é concluída com o fonema he e
'a segunda com fonema ´a, fator não muito comum no final de frases presente nas demais
melódico de uma oitava mais um semitom. Dois tipos de acentos podem ser percebidos
neste período: Um que diz respeito à linha melódica vocal e outro que diz respeito à
melodia apresenta-se com uma pausa de colcheia na primeira marcação do Maracá. A parte
uma quinta justa. Três tipos de acentos podem ser percebidos neste período: Dois que
dizem respeito à linha melódica vocal e um que diz respeito à marcação do Maracá, onde a
3 em 3 colcheias.43
melodia apresenta-se com uma pausa de colcheia na primeira marcação do Maracá. A parte
uma
sol, como nota atrativa, por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
42
É bom ressaltar que na passagem do primeiro período (A) para o
segundo período (A’) a acentuação na parte vocal ocorre num espaço de 3 colcheias. Da mesma forma
ocorrem nos terceiros períodos (C) para os primeiros períodos (A’) dos ciclos musicais seguintes.
43
É bom ressaltar que na passagem do segundo período (B) para o terceiro período (C) a acentuação
na parte vocal ocorre num espaço de 12 colcheias. Esta forma, de B para C, será seguida nos demais ciclos musicais.
113
sexta maior. Três tipos de acentos podem ser percebidos neste período: Dois que dizem
respeito à linha melódica vocal e um que diz respeito à marcação do Maracá, onde a
colcheias.44
musical, e outros ciclos musicais apresentam semelhanças com os que já foram expostos,
mostrando diferença nas disposições das vozes masculinas e femininas, que em muitos
casos
trabalham em terça paralela (ver retângulos em volta em tais notas) ou mesmo em alguns
silêncios que ocorrem nas vozes masculina e femininas. O último círculo é composto do
dentro de um âmbito total de uma oitava mais um tom, onde o fá45 funciona como a nota
nenhuma exceção, que o fá fará parte de todos os finais de períodos. A forma rítmica que
marcações binária de Maracá por círculo musical. Com isto podemos perceber que cada
composto por duas frases, inseridas em âmbito melódico de uma oitava. A primeira e
44
É bom ressaltar que na passagem do terceiro período (C) para o primeiro período seguinte (A) a
acentuação na parte vocal ocorre num espaço de 6 colcheias. Esta forma, de C para A, será seguida nos demais ciclos
musicais.
45
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é ré.
Escolhemos o sol por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
114
composto de duas frases, inseridas em âmbito melódico de uma oitava. O último círculo é
composta dentro de um âmbito total de uma oitava mais uma quinta justa. Onde o fá e o
sol46 funcionam como as notas atrativas em que as demais estarão sempre se conduzindo
parte dos dois primeiros períodos de cada círculo musical e o sol do terceiro período de
cada círculo musical, com exceção do último que terminará no final do segundo período.
Com exceção do último círculo musical que é composto pela forma A (10 marcações) + B
(16 macações) marcações do Maracá, a forma rítmica que estará presente no decorrer do
âmbito melódico de uma oitava mais uma quarta justa. A acentuação da melodia
solista, possui três frases, inseridas num âmbito melódico de uma oitava mais uma terça
O terceiro período possui duas frases inseridas num âmbito melódico de uma
oitava mais uma quarta justa. A acentuação corresponde àquela do período anterior.
46
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o mi e o fá#
consecutivamente. Escolhemos o fá e o sol por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no
pentagrama.
115
total de uma sétima menor, onde o fá47 funciona como a nota atrativa de todo o conjunto. A
forma rítmica que estará presente em todo o texto musical será de 6 marcações de Maracá
por círculo musical. O período que forma cada círculo musical desta faceta musical tem
A Transcrição Musical 4 difere das outras três tanto no texto musical onde o
número de notas é reduzida a uma escala hexatônica, cada círculo musical apresenta
envolvimento emocional dos participantes para aquele evento, onde, neste caso, todos
cantam e dançam ao som de altas gargalhadas. Vale salientar, que Marilena Araújo de Sá
Por outro lado podemos resumir que nas três primeiras facetas musicais existe
um
andamento rápido. Além de um ritmo binário ou ternário, construído com figuras curtas e
rítmico-vocal linear, sem muitas variações, apenas ressaltado pelos passos dos dançarinos
que contraponteiam sonoramente com as vozes e com o ostinato produzidos pelos Buzos,
acompanhados da marcação regular do Maracá, o qual faz com que ocorra uma
47
A nota atrativa aproximadamente real, a partir do lá 440, desta faceta musical é o si.
Escolhemos o fá por ser mais cômodo em termos de visualização das vozes no pentagrama.
116
dos seus rostos. Apenas leves expressões em suas faces ou no bailado do corpo exprimiam
mesmos que sempre irão acompanhar o conjunto do Tolê. Talvez a nossa percepção de um
ritmo binário e ternário deva-se ao fato destes instrumentos formarem um único desenho
rítmico que possa ser utilizado tanto em uma faceta de ritmo binário (ver transcrição 2 e 4)
uma forma em que ambos preenchem o espaço de silêncio formado pelo outro. É como se
houvesse um diálogo entre ambos, onde o Buzo 2 tem a função de pedal, em mi, e o Buzo
1 fica dando saltos de quarta aumentada formando um trítono de fá para si. Ao mesmo
tempo em que o Buzo 2 forma um trítono forma também uma quinta justa com o Buzo 1,
mi - si.
possa apresentar de forma bastante reduzida o que realmente são tais facetas musicais. Ou
seja, tais características musicais, como apresentamos, podem estar presentes em diversos
fazeres musicais na região Nordeste brasileira bem como em qualquer parte do mundo.
papéis sociais, os Fulni-ô demonstram manter o conhecimento tradicional sobre o seu fazer
117
musical dentro do Tolê. Com isto, concordamos com Seeger (1997, 479) ao dizer que
em si."
Antônio José Moreira, podemos entender o Tolê como sendo o “mastro da religião” Fulni-
ô. Ou seja, aquilo que pode ser visto como identificador da religião, mas que não revela o
que existe dentro desta mesma religião. É como ver um barco e o seu mastro como
elemento identificador. O barco seria o todo que forma a etnia Fulni-ô e o mastro o Tolê
um dos elementos que identificam esta etnia. Portanto, não nos é revelado a parte interna
musicais funcionam como a bandeira, ou seja, como um dos sinais diacríticos desta sociedade
que servem para comunicar algo etnicamente diferente em comparação com as outras
sociedades. Por sua vez, a quarta transcrição distancia-se daquilo que poderia ser chamado um
ethos Fulni-ô, visto tanto sua estrutura musical como a conduta dos membros apresentarem tal
faceta musical como uma brincadeira, algo lúdico que não está relacionado com o secreto, com
o sagrado.
9. Conclusão
brasileiras tem levado os Fulni-ô a dar novos rumos à sua cultura, principalmente no que se
refere à música. Ou seja, há entre o grupo um misto cultural que envolve tradições tanto
culturais estranhos aos seus, podemos perceber que este grupo tem mantido sua língua
tradicional, grande parte de suas regras sociais, seu território e, sobretudo, sua religião.
Esta última representa a essência do ser Fulni-ô. E é entre estes mecanismos culturais
peculiares ao Fulni-ô que está presente o Tolê e neste mesmo evento o seu aspecto musical,
Todavia, queremos deixar claro que o nosso direcionamento para esta parte da
cultura Fulni-ô explica-se, principalmente, por dois motivos: O primeiro está intimamente
segundo, diz respeito ao espaço de tempo disponível no Mestrado, que, por ser de curto
relações sociais externas ao grupo, em que a cafurna, coco de roda, o forró, o rock, os
entretenimento dos Fulni-ô entre si ou numa relação com quaisquer outros segmentos
sociais.
119
perceber que:
outros grupos.
homogeneidade sonora.
traço musical presente em sua cultura e relacioná-los com os conceitos de identidade étnica
percebemos ao mesmo tempo em que cada faceta musical presente no Tolê funciona como
elemento de alteridade do grupo e estas mesmas facetas têm a função de comunicar esta
120
diferença para todos aqueles que não fazem parte da cultura Fulni-ô. Neste último caso a
faceta musical tem o papel de fazer uma ponte de ligação, onde, "aparentemente", apenas
Mas, se estamos tratando de um grupo que tem língua, religião e muitos outros
fatores culturais originais, por que utilizamos o termo "aparentemente" quando nos
referimos aos aspectos musicais presentes no Tolê Fulni-ô? Seria porque a partir das
transcrições, em anexo, podemos perceber entre as três primeiras facetas uma linha
melódica que muito se assemelha aos chamados "modos nordestinos"? Pois, após Cabral os
Fulni-ô acrescentaram à sua língua palavras antes não existentes; acrescentaram às suas
crenças personagens da Igreja Católica, mesmo que seja como uma forma de
Contudo, através deste mesmo fio que nos conduziu no parágrafo anterior,
musicalmente toda uma sociedade regional envolvente. Pois, herdamos da cultura indígena
seus hábitos alimentares; suas crenças religiosas; o seu biótipo e muitas outras
impostação bem marcante entre muitos grupos indígenas inclusive nos Fulni-ô, em que são
Todavia, tentamos mostrar a essência, ou seja, aquilo que faz com que a música
presente no TolêLha Fulni-ô seja diferente de todas as outras existentes no mundo. E, para
chegarmos a esta etapa do trabalho, assumimos, antes de tudo, algo musical dentro do Tolê
Fulni-ô. Pensamos na musica no Tolê como uma figura de retórica, da mesma forma que
do grupo, pois as execuções de cada faceta musical são feitas dentro de um arcabouço
primeira, são formadas por uma escala, semelhante aos chamados "modos nordestinos",
influência dos aspectos musicais existentes dentro do Tolê Fulni-ô com relação as escalas
normalmente seguidas em alguns gêneros musicais desta região. Ou até mesmo apontar a
escrita musical ocidental, passamos a dar uma nova roupagem a elas, pois passam
femininas que fazem com que o grupo vocal esteja sempre "desfalcado" por uma voz, pois
sempre uma das mulheres presentes na fila está dançando em volta dos homens.
som musical entoado pelos componentes do Tolê. Basta dizer que se déssemos tais
transcrições para um regente executar estas facetas musicais ficariam longe da sua
verdadeira realidade sonora. A partir do momento que tentamos colocar para pauta esta
com os Fulni-ô, que ainda está em fase de amadurecimento, atingimos o nosso objetivo
enfatizado as culturas indígenas ditas exóticas. Basta dizer que a própria população do
Nordeste conhece pouco os grupos indígenas que aqui ainda sobrevivem. Mas talvez fosse
exigir muito desta população regional, uma vez que grande parte dos estudos acadêmicos e
das programações realizadas pelos vários tipos de mídia são dedicadas às populações que
ainda preservam grande parte de sua cultura e que não têm um forte contato com a
sociedade moderna.
É preciso dar melhores rumos para as etnias ainda existentes, sejam elas quais
forem. Lembrar, portanto, aos grupos que ainda permanecem unidos que se não
excluídos de seus grupos, não são poucos. Santos ratifica a nossa postura ao dizer que
preservação étnica destes grupos são por demais necessários, pois além dos estudos nestas
partes, feita com o Sr. Matinho, executante de Buzo, o Sr. Fipa, executante de Maracá, e o
entrevista damos uma pausa para fazer alguns comentários e logo depois iniciamos com a
1ª Parte
P. Que madeira?
nome? aquele [canela de veado, disse um dos índios] canela de veado, essas coisas. É isso
que a gente faz e e o pau a gente tira o pau quarquer um pau e vai furando ele pra poder
fazer os, ele dá o som dele . . . abrindo o pau, né? pra poder colocar a canela do do veado
dentro e outras, qualquer outro paus a gente que dê pra furar, né?
através do corte.
48
Utilizaremos as seguintes convenções para facilitar a compreensão: P=Pesquisador,
M=Matinho, F=Fipa e A=Alexandre.
124
M. É tipo uma paleta, assim como nem é o a música, tem a paletinha dele pra
madeira, só que a gente coloca uma cera, uma coisa pra poder ele modificar dá o som de
* Um índio enfatizou dizendo que era um alto e um meio ou seja, o alto seria
de cabaça.
* Seu Alexandre enfatizou dizendo que podia ser feito também de cuité como
M. Toda obra da natureza, né? num pega nada de de de feito por . . . [seu
Alexandre enfatizou que um Toré mesmo não poderia ser feito de côco, só de cabaça] cuité
M. É uma uma madeira um é um madeira dum dum pau, a gente prepare ele aí
coloca dentro.
A. Pode.
125
A partir de nossa análise percebemos que a afinação dos Buzos coincidiu com
o que eles afirmaram anteriormente, ou seja, o Buzo maior como sendo o sonoramente
juntos. Participaram da apresentação o filho do Sr. Alexandre (Buzo Agudo), o Sr. Fipa
(Maráca) e o Sr. Matinho (Buzo Grave). Antes de começar esta apresentação o Sr.
Alexandre apresentou a parte principal do Buzo que é um pequeno instrumento que tem
uma palheta de sabugo de milho amarrada por uns fios de palha e colada com cera de
abelha num bocal também com a base de cera de abelha. O Sr. Alexandre, num tom de
gargalhada, disse que o instrumento tinha “muitos privilégios”,. Talvez estes “privilégios”,
a que se referiu o Sr. Alexandre, deva-se ao atributo sagrado que o instrumento tem dentro
do grupo, já que pertence único e exclusivamente aos rituais exercidos pelo grupo.
rítmicos diferentes entre os dois Buzos. Relataram que aqueles ritmos são o que
instrumento a tocar é o Maracá, depois o Buzo mais grave e, por fim, o mais agudo.
2ª Parte
M. É oca.
P. Isso aqui é que que funciona como uma palheta? (apontando para uma parte
M. O sabugo ele não pode sair que já entra já justo, é justo ele não pode sair
M. Aí já faz parte aí já faz parte de de pano, que a gente pode cobrir com pano,
P. O que é crauá?
P. É do mato, né?
preparam (raspam) e colam na cabaça com cera de abelha, é colocado dentro da maracá
49
Este último material o Sr. Matinho não recomendou pelo fato de tornar o Maracá mais
pesado.
Anexo II: As Transcrições
50
O programa utilizado para edição de partitura foi o Finale 3.7 .
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