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PRM-GRU-PE-00005614/2017

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
SECRETARIA DE APOIO PERICIAL

Assinado com certificado digital por OTAVIO ROCHA DE SIQUEIRA, em 03/08/2017 16:22. Para verificar a autenticidade acesse
- Centro Regional de Perícia 5 -

PARECER TÉCNICO Nº 2/2017 - SEAP/CRP5

REFERÊNCIA PA 1.26.005.000007/2015-12

UNIDADE SOLICITANTE PRM-Garanhuns

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AUTORIDADE REQUERENTE Procurador da República Marcel Brugnera Mesquita

EMENTA Acompanhar a execução do termo de ajustamento de


conduta celebrado entre a CHESF, a comunidade Fulni-ô,
o MPF, a FUNAI, e a Procuraroria Federal Especializada
da FUNAI, o qual tem por objeto disciplinar o pagamento
da indenização devida à comunidade indígena Fulni-ô
por todos os danos causados pela passagem, na Terra
Indígena Fulni-ô, das Linhas de Transmissão PA
III/Angelim C1, PAIII/Angelim C2 e C3, PA III/Angelim
C4, Luiz Gonzaga/Angelim Ci e PA IV/Angelim II C2, de
230 e 500kv, com extensão de 7,5 km de comprimento
por 192 metros de largura, perfazendo um total de 163, 7
hectares, danos estes abarcando o período que vai da
instalação de cada linha de transmissão até o dia
31/12/2015, cujo montante da indenização chegou a R$
3.000.000,00 (três milhões de reais), transferidos à
Associação Comunitária Indígena Pajé Julião Pereira
Júnior (ACIPJPJ).

TEMÁTICA Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais

GUIA SISTEMA PERICIAL SEAP/PGR - 001188/2017

COORDENADAS Feição considerada : ( x) pontual ( ) linear ( ) poligonal


GEOGRÁFICAS Lat/Long dec.: 8°31'40.2" Lat. S 39°19'02.7" Long. W

Av. Gov. Agamenon Magalhães, 1800, Espinheiro - CEP 52.021-170 - Recife-PE


Tel. (81) 2125-8928 - PGR-Pericial-centroregionaldepericia5@mpf.mp.br
1. INTRODUÇÃO

O presente Parecer Técnico visa cumprir determinação contida no despacho1


exarado nos autos do Procedimento Administrativo em epígrafe, no qual o Procurador da
República Marcel Brugnera Mesquita solicita a realização de “estudo antropológico que

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examine as possíveis repercussões no seio da Comunidade Fulni-ô caso o referido TAC seja
concluído”, necessário devido à “complexidade do objeto do presente feito”.
O mesmo despacho elenca os quesitos que devem ser respondidos neste estudo,
os quais reproduzo a seguir:
a) quais os possíveis impactos (territoriais, políticos, socioculturais e
similares) causados no grupo indígena Fulni-ô em razão da existência das

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torres e das linhas de transmissão da Chesf em sua Terra Indígena, situada
no município de Águas Belas/PE ?;
b) em que medida o acordo proposto entre as partes, nos termos da minuta
do Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta contida nos autos e
segundo as reuniões ocorridas nesta Procuradoria da República, pode
mitigar ou compensar satisfatoriamente os Fulni-ô por tais possíveis
impactos?;
c) quais as sugestões de modalidades de partilha dos valores decorrentes do
acordo são encontradas no seio da comunidade Fulni-ô?
d) considerando a resposta do quesito anterior, quais os potenciais efeitos
para a comunidade indígena considerando cada um dos modelos de partilha
defendidos pelos integrantes do grupo Fulni-ô?
e) qual o posicionamento da comunidade Fulni-ô, de acordo com suas
instâncias decisórias e representativas próprias, com relação ao acordo
proposto, explicitando os motivos e implicações de possíveis divergências
ou abstenções?;
f) há erros, divergências ou questionamentos relativos aos limites dos lotes
individuais e coletivos e ao tamanho da área afetada, que poderiam
repercutir na forma de pagamento do valor total?;
g) se, segundo os Fulni-ô, a particularidade da área conhecida como Fazenda
Peró – adquirida pela Funai em 2000, contígua à atual Terra Indígena e que
não passou pela divisão de lotes nos moldes do território já reconhecido –,
tem algum efeito sobre a compensação prevista no acordo proposto,
considerando o possível impacto produzido na fazenda pelas torres e linhas
supracitadas?;
h) outras questões que sejam consideradas pertinentes.

1 Cadastrado sob a etiqueta nº PRM-GRU-PE-00002631/2017.

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Para que tais questionamentos sejam satisfatoriamente respondidos, foram
realizadas pesquisas bibliográficas e documentais diversas sobre a comunidade indígena
Fulni-ô, como também foram consultados os autos do presente Procedimento Administrativo e
do Inquérito Civil nº 1.26.000.000716/2004-87, já arquivado, que versava sobre o mesmo
objeto, além de pesquisa de campo realizada entre os dias 8 a 12 de maio do corrente. Nesse

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trabalho de campo, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com representantes de
diversos setores da comunidade indígena Fulni-ô, em especial aqueles diretamente envolvidos
na questão ora tratada, além de lideranças (em especial o cacique e o pajé), servidores da
Funai local (também indígenas Fulni-ô) e alguns outros membros da comunidade não
vinculados explicitamente à questão tratada aqui. Também realizei visitas a vários pontos da
Terra Indígena Fulni-ô e da Fazenda Peró por onde passam as linhas de transmissão da Chesf,
onde estive acompanhado, em ocasiões distintas, de indígenas que manifestam diferentes

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posições relativas ao tema aqui abordado.
Uma boa compreensão dos fatos e das situações relativos ao objeto dos autos
só é possível com a apresentação de alguns aspectos e características da comunidade indígena
Fulni-ô, em especial aqueles que contribuíram para sua atual configuração fundiária, além dos
acontecimentos que se desenrolaram desde o início da mobilização para o recebimento de uma
compensação pela passagem das linhas de transmissão da Chesf no território indígena até o
momento atual.
Assim, dividi esse parecer em três partes: na primeira, exponho um histórico do
território Fulni-ô, com foco nos fatores que foram fundamentais para configurar seu atual
formato, limites, modo de ocupação e usufruto singulares, que tem consequências diretas
sobre o caso em tela; na segunda, faço uma descrição analítica dos principais fatos recentes
que culminaram na assinatura de um TAC entre a comunidade indígena Fulni-ô e a Chesf em
2007, com o consequente pagamento de indenização pela última, cujas aplicações, repasses,
execuções de projetos e prestações de contas foram alvo de inúmeras denúncias e trocas de
acusações nos anos seguintes até o presente; e, por fim, analiso o presente momento,
respondendo então às perguntas apresentadas na solicitação de perícia.

2. TERRITÓRIO FULNI-Ô

A área hoje conhecida como Terra Indígena Fulni-ô está localizada


majoritariamente no município de Águas Belas, em Pernambuco, na transição entre as áreas
do agreste e do sertão do estado. Segundo dados da Sesai (Secretaria Especial de Saúde
Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde)2, sua população hoje é de 4689 habitantes.

2 Embora este seja o número atualizado mais confiável que se pode obter, já que virtualmente todos os indígenas
Uma série de circunstâncias históricas, locais, regionais e nacionais, fizeram
com que esta Terra Indígena adquirisse características sui generis, que, somadas, a torna
particularmente distinta de todas as outras Terras Indígenas no Brasil hoje. Elas são,
principalmente: a) a divisão da Terra Indígena em lotes numerados, em sua maioria de
usufruto particular de indivíduos e famílias indígenas; b) a presença do arrendamento de

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terras, em diversas modalidades (na maioria das vezes a não-índios), como prática usual e
prolongada; e c) a presença da sede do município de Águas Belas no interior da Terra
Indígena.
Para entender a sua formação com tais características, retomo a seguir os fatos
históricos mais relevantes relativos ao seu território. Segundo Schroder, após a expulsão dos
holandeses de Pernambuco, no século XVII, “os esforços de aldear grupos indígenas nos
sertões nordestinos foram aumentados pelos portugueses” (2003: 37). Aldear significava,

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nesse período, concentrar e fixar um ou mais grupos indígenas que circulavam em uma
determinada área ou região em uma localidade – a missão, ligada a uma ordem católica –,
onde ficavam submetidos a um missionário responsável por “civilizá-los” e catequizá-los. As
missões católicas prosperaram nos sertões nordestinos principalmente ao longo do século
XVIII, e serviram também, ao concentrar as populações indígenas, para liberar vastas áreas
para a criação extensiva de gado, que avançava primeiro pelo vale do Rio São Francisco, e
depois pelas demais regiões sertanejas.
Com os Fulni-ô não foi diferente: embora não se saiba a data exata em que os
seus antepassados foram aldeados, chamados então de Carnijós ou Carijós, o primeiro
registro que se tem é de meados do século XVII, um documento que lista duas aldeias na
região: uma chamada “aldea da Alagoa da Serra do Comonaty” e outra intitulada “Aldea dos
Carnijós, cita na Ribeira do Panema” (foram mantidas as grafias originais; idem: 38).
O primeiro documento oficial que assegura a posse e o domínio dos Fulni-ô
sobre seu território, contudo, é o Alvará Régio de 1700, que determinou a “doação” de uma
“légua em quadra” aos indígenas dos “certões” do Brasil. Uma Carta Régia de 1703 confirma
o Alvará anterior, declarando que tal doação “comprehende somentre aos Tapuyas, que vivem
no Certam”. Por fim, uma Carta Régia de 1705 determina a execução da resolução anterior
(idem: anexos 5, 6 e 7).
Schroder chama a atenção para o fato de que não há mais registros nas décadas
posteriores aos anos 50 do século XVIII à aldeia do rio Ipanema, seu destino restando incerto
até hoje (idem: 42). O autor também nota que não há registros históricos sobre a localização
exata nem sobre os limites das duas aldeias. Isso se torna um problema especialmente quando
se verifica que o conceito de légua em quadra, tão presente no período colonial na definição

residentes em Águas Belas possuiriam cadastro no Siasi (Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena), é
preciso dizer que com frequência declara-se que ele está subdimensionado, e que seriam na realidade cerca de 7
mil. Contudo, não temos outra fonte segura para confirmar tal informação. Dados obtidos em
https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3667#demografia, acesso em 7/2/2017.

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das áreas pertencentes às missões, é bastante impreciso, e há várias dúvidas e questionamentos
sobre como tais terras seriam demarcadas. Há indicações de que ele “teria variado segundo os
lugares e as épocas em que foi aplicado, e, ainda, segundo as intenções e manipulações de
interesses contraditórios” (Agostinho, 2003:1, apud Schroder, 2003: 41). No entanto, o exame
de alguns documentos do período indicam que “essas terras eram demarcadas a partir de um

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'pião' central (…), um ponto de referência a partir do qual eram marcadas linhas de rumo, que
viriam a definir e delimitar o polígono a ser concedido”. Assim, vê-se que, ao contrário do que
o conceito faz pensar, tais terras não formariam um quadrado, mas sim um octógono.
Tais informações são relevantes para que se entenda o formato atual da Terra
Indígena, como ficará explícito mais adiante.
De todo modo, um Decreto de 1755 determinou a transformação das aldeias de

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missão em vilas, o que aconteceu na aldeia da Lagoa na década de 1760 (idem: 42). Em algum
momento nas décadas seguintes, um homem chamado João Rodrigues Cardoso, suposto
descendente da nobreza portuguesa, tomou as “primeiras iniciativas que deram origem ao
povoado de Ipanema”. Segundo o autor, “com a ajuda dos índios ele conseguiu construir a
capela de Nossa Senhora da Conceição, e, com isso, fundar o núcleo da futura cidade de
Águas Belas” (idem). Em 1788, “foi criada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das
Águas Belas” (idem: 43).
Em 1832, “um ato decisivo para o futuro do território indígena – e da cidade de
Águas Belas – foi a doação de uma área para a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição”
(idem), conhecida como “doação à Santa”. Tal doação foi fundamental para a consolidação e
expansão da cidade de Águas Belas, já que a área doada tornou-se justamente o núcleo da
povoação. Os Fulni-ô já há algum tempo contestam a legitimidade desta doação, dizendo que
foram enganados ou até que os indígenas desconheciam por completo então qualquer
transação ou acordo, sendo uma mentira histórica. O fato de que o documento que oficializou
tal doação nunca foi encontrado reforça essas teses. Há, contudo, registros posteriores
confirmando o ato, sem que haja registro se os indígenas consentiram, tomaram conhecimento
ou participaram de alguma maneira, já que são citados apenas representantes dos índios que
não eram membros da comunidade (idem: 43-44).
De todo modo, outra consequência dessa doação foi a obrigação dos moradores
de pagar foro à Igreja, a partir daquela data – com exceção dos índios. (idem: 44).
Ainda no século XIX, a Lei de Terras, de 1850, e uma lei posterior, de 1860,
regulamentaram a distinção entre terras públicas e privadas, e permitiram o “aforamento e a
venda das terras das antigas aldeias achadas abandonadas” (grifo original; idem: 46). Estas
leis, somadas ao crescimento de Águas Belas, ampliaram as tensões existentes entre seus
moradores e os Fulni-ô, com pressões sobre suas terras, provocando investidas violentas por
parte dos brancos. (idem). Segundo Schroder, foi nesse período, por conta da escalada de
conflitos com os brancos da região, que os Fulni-ô começaram a se afastar deles, com o
objetivo de preservar sua língua, religião e identidade específica.
A Guerra do Paraguai (1864-1870) teve grandes efeitos sobre os Fulni-ô. Alvos
de recrutamentos forçados, muitos não retornaram da guerra, e o medo de ações similares
provocou a dispersão dos que permaneceram por toda a região. A história oral da comunidade
também conta que, por conta de sua participação na guerra, a Princesa Isabel teria doado e

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demarcado sua área atual, assim como realizado o loteamento. Não há, entretanto, nenhum
documento que corrobore esta versão.
O que se sabe é que, provavelmente como consequência da supracitada lei de
1860, que permitiu o aforamento e a venda das terras antigas aldeias achadas abandonadas, em
1875 o Governo Imperial publicou outra lei, que declarava extintos os diversos aldeamentos
em Pernambuco (idem: 49). No mesmo ano, foi formada a Comissão de Medição de Terras

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Públicas, encarregada de medir e lotear tais aldeamentos. No caso dos Fulni-ô, isso foi
realizado entre 1876 e 1878.
O loteamento de terras indígenas era prática corrente na época, com o claro
objetivo de transformar os índios, cujos territórios etnicamente diferenciados eram vistos,
vividos, usufruídos, organizados e ocupados segundo lógicas e critérios específicos, em
ocupantes e proprietários individuais de lotes rurais, estimulando assim a desagregação
comunitária, e, mais grave ainda, facilitando o arrendamento e a transação comercial de terras.
Tal medida, portanto, em lugar de ser propriamente uma demarcação de terras, visava, por um
lado, reduzir as terras indígenas a um mínimo, já que eram vistas como obstáculos ao
progresso (idem: 48), e, por outro, a partir de uma perspectiva assimilacionista vigente então,
estimular sua “integração” à sociedade envolvente, em especial com o campesinato regional
não-indígena.
Segundo Carneiro da Cunha aponta, o tamanho de tais lotes parece ter variado
segundo o local e ao período histórico. Entre os Fulni-ô, foram demarcados 427 lotes, sendo
300 deles de 62.500 braças (cerca de 30 hectares) e o restante de tamanhos menores variados.
Para a demarcação dos limites, o engenheiro responsável pela Comissão claramente baseou-se
na antiga légua em quadra, entendida como um quadrado. Assim, “é possível deduzir que
Silva [o engenheiro] escolheu um ponto no terreno, e, a partir dele, traçou linhas de uma légua
aproximadamente em quatro direções, com ângulos retos entre cada linha adjacente, para
depois ligar os pontos finais com linhas retas” (idem: 49). Não se sabe, contudo, qual critério
foi utilizado para a escolha do ponto central, já que não há registro da localização exata da
aldeia da Lagoa, e porquê as linhas traçadas se alinham com os pontos cardeais – ao contrário
das linhas de limites dos lotes, o que faz com que estas não sejam paralelas àquelas que
limitam a área demarcada. Isso permanece um enigma. É justamente esse aspecto o
responsável pela variedade de tamanho dos lotes contíguos aos limites da área, como podemos
ver a seguir no mapa desta demarcação a seguir.

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Figura 1 – Mapa da Terra Indígena Fulni-ô, segundo demarcação realizada pela Comissão de Medição de Terras
Públicas, em 1876-1878. Vê-se aqui também os 427 lotes então criados pela mesma comissão. Reproduzido de
Pinto, 1956: 15)

De todo modo, como já expus acima, é certo que a demarcação como feita pela
comissão responsável por demarcar a Terra Indígena Fulni-ô não corresponde à área “doada”
durante o período colonial, pelos argumentos apresentados anteriormente sobre as dúvidas que
pairam sobre a “légua em quadra” e a localização e os limites exatos da missão. De toda
maneira, ainda que correspondesse, tal “doação” não respeitou a territorialidade e a
especificidade da comunidade, sendo antes feita unilateralmente pela Coroa portuguesa.
Esta demarcação, em lugar de pacificar qualquer dúvida que poderia persistir

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sobre a propriedade e usufruto da terra, intensificou a relação conflituosa dos Fulni-ô com os
moradores não-indígenas no município. Estes contestaram continuamente a demarcação, com
a Câmara de Vereadores local pedindo sua anulação e a legalização dos posseiros que se
encontravam dentro da Terra Indígena. As pressões sobre a terra indígena e o esbulho contínuo
permaneciam. A situação se agravou com a Constituição de 1891, cujo artigo 64 deu margem
a interpretações de que as terras indígenas eram devolutas, e assim pertenceriam às províncias.
Com a emancipação de Águas Belas, em 1893, e a elevação à categoria de cidade, em 1903, as

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investidas sobre as terras indígenas se intensificaram (idem: 53).
Em 1908, as terras dos Fulni-ô são arrendadas por um período de 6 anos a
Nicolau Cavalcanti de Siqueira, retornando depois aos indígenas.
Esses primeiros anos do século XX foram marcados principalmente pela
violência sofrida reiteradamente pelos Fulni-ô por parte dos brancos. Suas casas foram
incendiadas em mais de uma ocasião, entre outros episódios de agressões. Vários Fulni-ô se
dispersaram nesse período.
Este estado das coisas foi em grande parte responsável pelo início da
mobilização do Padre Alfredo Dâmaso, que atuava na região neste período, para que o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI), assistisse aos indígenas e instalasse ali um novo posto. Um
funcionário do órgão deslocou-se à região em 1922, e declarou que aqueles “que se
apropriaram de suas terras” estariam dispostos a “pagar foros a um recebedor legal e idôneo”
(apud Schroder: 56). Em 1924, enfim, é instalado o Posto Indígena General Dantas Barreto, o
primeiro no Nordeste.
Baseando-se nos estudos de Sidnei Peres, dedicados à ação indigenista no
Nordeste entre 1910 e 1960, Schroder declara que

A criação do posto representou uma nova configuração de forças que passou


a orientar a distribuição de recursos fundiários em Águas Belas. O SPI
conseguiu impor-se como porta-voz legal dos Fulni-ô colocar sob sua
jurisdição os “intrusos” da terra indígena por transformá-los em
arrendatários do órgão indigenista. Desse modo, os invasores deixaram de
pagar foro às respectivas coletorias estaduais e o SPI, através de seus
representantes legais e regionais, passou a intervir na dinâmica de
valorização de terras (Peres, 1999: 54-55 apud idem: 56).

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Justamente nesse período, o SPI ampliava um modelo de ação e controle de
recursos fundiários, “aplicado como dispositivo de resolução de conflitos agrários e de
controle de populações não-indígenas estabelecidas em terras reivindicadas por indígenas”
(idem: 57, a partir de Peres, 1992). Tal modelo, que predominou em regiões que já tinham
sofrido fluxos de colonização passados, caracterizadas por “uma intricada trama de direitos

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territoriais muitas vezes justapostos e conflitantes”, teve como “procedimento paradigmático
de negociação com autoridades governamentais estaduais” o arrendamento de terra (Peres,
199:55, apud Schroder, idem: 57-58). Além da função mediadora, o arrendamento de terras
indígenas ainda representava uma fonte financeira para seu sustento, já que recolhiam uma
parcela da renda anual, e cumpria o objetivo assimilacionista em voga, procurando
transformar os povos indígenas em pequenos agricultores através do contato cotidiano com a
população rural não-indígena (idem: 58).

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Em 1925, foi implantado o sistema de arrendamento das terras do Posto
Indigena do SPI. No entanto, uma gestão inicial malsucedida, em que o encarregado do Posto
tentou entrar em confronto com figuras dominantes do cenário local (idem), fez com que em
1928 ele fosse afastado, e Antonio Estigarribia nomeado para ocupar o posto, com o fim
primordial de promover com o governo de Pernambuco as bases de um acordo sobre as terras
do antigo aldeamento de Ipanema (idem).
Tal acordo se concretizou com a edição do Decreto nº 637, de 1928, cujos
efeitos perduram ainda hoje, com a consolidação de um determinado formato e modo de
ocupação da Terra Indígena Fulni-ô. Os seus principais pontos estabelecidos através dele são
os seguintes:
a) o governo do Estado reconhece que “o direito dos remanescentes dos índios
Carnijós apóia-se em título certo e justo”, transferindo a área do antigo aldeamento para a
administração do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ao qual estava vinculado o
SPI;
b) institucionaliza o arrendamento, que passou a ser intermediado pelo SPI,
estabelecendo que terceiros que ocupassem essas terras deveriam pagá-lo mediante recibo e
escrituração;
c) é reconhecida a “doação à Santa” de 1832, e é estabelecida a doação de uma
nova área à municipalidade, contígua à primeira, além das fontes d'água, consideradas de
utilidade pública;
d) determina que sejam emitidos os títulos de posse de cada indígena sobre seu
lote, “com a condição de não fazer sobre essa propriedade nenhuma transação”.
Quanto ao item c, vale dizer que nos meses seguintes foi publicado um termo
de cessão das áreas, descrevendo os locais exatos dos marcos e das linhas que estabeleciam os
novos limites; já com relação ao item d, foram emitidos, em 1929, 140 títulos provisórios de
posse.
É importante notar que, não obstante ter se constituído como prática comum, o
arrendamento de terras indígenas era vedado já pelo decreto que instituiu o SPI em 1910, além
serem considerados ilegais por todas as Constituições promulgadas desde então, assim como
pelo Estatuto do Índio, de 1973 (Coutinho Jr. e Melo, 2000: 59-60). Até mesmo um dos

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encarregados do Posto Indígena se manifestaria contrário à prática em relatórios na década de
1940 (Schroder: 2003: 63). Ainda assim, ela perduraria até os dias atuais.
Depois do decreto de 1928, o poder público só viria a se ocupar com a TI
Fulni-ô em 1971, quando a Funai supostamente realizou uma demarcação física da área.
Supostamente porque as informações sobre tal ato são imprecisas, e não restaram documentos
que comprovem sua efetiva realização. Em 1985 foi determinada a realização de um

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levantamento topográfico para que fossem definidos os limites entre a área pertencente à
cidade de Águas Belas e a Terra Indígena, sem que se tenha conhecimento dos seus resultados
(Coutinho Jr. e Melo, 2000: 58). Em 1993, foi solicitado um novo levantamento topográfico,
além de uma avaliação antropológica da Terra Indígena sobre os seguintes temas: a) os limites
entre a área indígena e o perímetro urbano pertencente à Águas Belas; b) os limites das áreas
de uso coletivo e lotes particulares dentro da área indígena; e c) impasse entre a comunidade
indígena e a Prefeitura municipal a respeito da cobrança de taxas. A antropóloga responsável
aponta que a delimitação do patrimônio da cidade chegou a ser concluída, mas não se assinou
um acordo por negativa da Prefeitura.
Em 2002, é constituído um Grupo Técnico pela Funai para proceder à
demarcação e delimitação da Terra Indígena Fulni-ô sob os parâmetros lançados pela
Constituição de 1988 e pelo Decreto 1.775, de 1996. Contudo, embora um relatório preliminar
circunstanciado tenha sido apresentado (justamente aquele de Peter Schroder, bastante citado
nesse parecer), a demarcação não chegou a prosperar – segundo Souza (2017: 25, nota 39)
houve divergências entre o GT e a comunidade indígena, sem especificar quais foram3. Em
2009, um novo GT é constituído para efetivar a demarcação da área, mas a antropóloga Eliane
Quirino, sua coordenadora, faleceu antes que pudesse finalizar os estudos necessários.
Portanto, não obstante tenham tido seu direito às terras reconhecido pelo Estado brasileiro
ainda na década de 1920, inclusive com o primeiro Posto Indígena no Nordeste, ainda hoje os
Fulni-ô não viram a conclusão da demarcação de suas terras, que permanecem em uma
situação jurídica indefinida e que suscita constantes dúvidas.
Isso porque o único ato formal do século XX a tratar das terras pertencentes aos
Fulni-ô ainda é o Decreto nº 637, e ele padece de contradições e omissões, como ressalta
Coutinho Jr. e Melo:

3 Embora não seja o relatório final, constando ainda algumas lacunas e poucos trechos ainda não definitivos no
texto (a maioria dependendo de informações que seriam levantadas por outros membros do GT), ele é uma
importante fonte de informações sobre os Fulni-ô, devido à extensa pesquisa documental e bibliográfica, além
das informações relevantes e bem sistematizadas colhidas em campo.

10
não há, propriamente falando, qualquer artigo doando ou concedendo as
terras do antigo aldeamento aos índios Fulniô. Ao contrário, a concessão é
presumida pelo art. 1º do decreto, que transfere apenas a administração da
área ao MAIC/SPI para que nela residam os descendentes de índios
Carnijós. Por outro lado, em seu último artigo, o decreto revela a convicção
de que as terras por ele mencionadas seriam de domínio estadual (2000: 59)

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Ainda sobre a incerteza do estatuto jurídico atual, embora algumas fontes
classifiquem a Terra Indígena Fulni-ô como dominial, isso é contestável. A própria Funai, em
seu site, apresenta dois registros: o de reserva indígena regularizada e o de tradicionalmente
ocupada em estudo4. Chama a atenção, no entanto, o fato de que a proposta territorial da área
em estudo incluiria, a princípio, a área entendida como regularizada, o que lança a dúvida de

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qual categoria prevaleceria diante dessa sobreposição.
Quanto à possível classificação como dominial, é preciso primeiro lembrar sua
definição, de acordo com o Estatuto do Índio, de 1973. No inciso III do art. 17, diz-se que “as
terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas” são “aquelas adquiridas por
qualquer das formas previstas no Código Civil brasileiro por indivíduos ou comunidades
indígenas”. É provável que a categorização da Terra Indígena Fulni-ô como dominial se deva à
demarcação de lotes individuais, e sua distribuição a algumas famílias indígenas em 1878, e
pela emissão de títulos provisórios de posse após o Decreto nº 637, de 1928. Contudo, como
aponta Bruno Souza no Parecer Técnico nº 252/2017 (realizado no âmbito do Procedimento
Administrativo nº 1.26.005.000031/2014-62),

há no entanto que se considerar que a área da Terra Indígena Fulni-ô já era


habitada tradicionalmente pelos Fulni-ô desde antes da chegada dos
primeiros colonizadores. A relação da Comunidade Fulni-ô com essas terras
extrapola a dimensão civilista da propriedade, posto que a própria
identidade étnica do grupo, suas relações sociais, sua cultura e o território
estão profundamente imbricados. (…) Por fim, importa ressaltar que os
Fulni-ô reconhecem que sua relação com essas terras não se confunde com o
direito de propriedade da sociedade envolvente (2017: 29).

A própria constituição de Grupos Técnicos pela Funai com vistas a demarcar as


mesmas terras onde hoje estão os Fulni-ô (mas não apenas essas terras, já que a área
ultrapassaria a atual), tratando-as assim como de ocupação tradicional indígena, é um indício
forte o suficiente para indicar que a categoria “dominial” não é apropriada para este caso.
Devemos fazer ainda algumas observações sobre o arrendamento nas terras
4 http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Consulta realizada em 4/7/17.
Fulni-ô. O Posto Indígena do SPI, e, posteriormente, da Funai, recolheu por um longo período
um percentual do valor da renda anual pago pelos arrendatários aos indígenas – Ferreira
(2000: 45) fala em 30%, mas outras fontes, como os próprios indígenas, relatam que era na
realidade 20% da renda – o perito Bruno Souza (2017: 21) apresenta em seu parecer técnico
cópia de um recibo de arrendamento (na modalidade chão de casa, que exploro adiante), em

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que consta o campo “20% de percentagem p/ caixa de idenizações (sic)”. Como já foi dito,
esse valor era, ao menos em parte, revertido para a manutenção do próprio Posto, mas Ferreira
(idem) indica que não há clareza sobre seu destino, embora haja registros, na Funai, de
inúmeros projetos de desenvolvimento comunitário na área, que poderiam ser derivados desse
repasse.
Ferreira também nota que o órgão indigenista controlava de perto todas estas
transações. Segundo levantamento realizado por ele em 1996, foram encontrados então os

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chamados Livros de Registros de Terras do Posto Indígena Fulni-ô5 datados a partir de 1956
até o ano de 1988 (embora neste último haja registros de informações do início da década de
1990). Não se pode excluir a possibilidade, no entanto, de que tenha havido livros anteriores a
esta data, que podem ter sido perdidos. Sabe-se, em todo caso, que há recibos mais antigos
comprovando tais transações, como aquele reproduzido por Souza em seu parecer sobre o
chão de casa entre os Fulni-ô. Como um dos objetivos manifestos da instalação do Posto
Indígena em Águas Belas era disciplinar o pagamento de foro ou renda dos posseiros aos
índios, é de se imaginar que esse controle tenha sido feito desde o início de suas atividades,
em 1924.
Tais livros eram destinados a manter controle não só sobre as transações, mas
sobre a ocupação de cada lote. Cada um trazia informações sobre cada lote em folhas
separadas (geralmente, o número da folha corresponde ao número do lote) a cada novo ano,
como o nome dos proprietários6, ocupantes ou arrendatários, o valor da renda paga e o
tamanho da área arrendada, além de outras transações realizadas ao longo daquele ano.
Enquanto nas primeiras décadas constavam nos livros várias outras informações
complementares, como o tipo de cultura ou produção e a categoria da terra, Ferreira observa
que nos últimos, já nos anos 1980, há várias lacunas, omissões e erros com relação a diversos
lotes, e mutos anos sequer contam com livros que descrevam sua situação fundiária.
O último “livro” (na verdade, levantamento da situação atual de domínio de
cada lote) foi produzido em 1996, por uma equipe da Funai capitaneada pelo já citado Ivson
Ferreira, antropólogo do quadro, em meio a um processo faccional entre os Fulni-ô que tinha

5 Referidos usualmente pelos Fulni-ô e pela própria Funai como “livro dos lotes” ou “livros de registros dos
lotes”. Assim, emprego tais expressões, sem aspas, como equivalentes ao longo deste parecer.
6 Utilizo o termo “proprietários” sem aspas ao longo do texto, para tornar a leitura mais fluida e por ser
empregado correntemente pelos Fulni-ô. Contudo, deve-se manter em mente que não o são no sentido estrito do
termo, já que não têm a propriedade de suas áreas, mas apenas a posse ou o direito ao usufruto. Um ex-
coordenador local da Funai, inclusive, diz que em sua gestão não permitia que ele fosse utilizado, mas apenas
“usufrutuário”.

12
como um de seus principais objetos de disputa questões relativas ao território – daí a
necessidade de um levantamento da situação de então e da cadeia dominial de cada lote.
Paralelamente aos livros, vários recibos foram sendo produzidos documentando
transações envolvendo as partes. Em geral, embora sejam intitulados Termo de Doação ou
Termo de Transferência, as transações registradas ali envolviam pagamentos (em espécie ou

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em bens), o que é confirmado por vários indígenas. É provável que tenham sido
documentados assim para evitar alguma interpretação conflitante com o estabelecido pelo
Decreto nº 637, que estabelecia que a emissão dos títulos de posse tinha “a condição de não
fazer sobre essa propriedade nenhuma transação”. Embora algumas das informações dos
recibos tenham sido também registradas nos livros, muitas delas não foram atualizadas. Com
o fim da produção de livros novos, os recibos tornaram-se a única fonte de informação sobre
transações de terra entre os Fulni-ô. O problema é que não há critérios nem procedimentos

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estabelecidos para organizar e armazenar tais documentos: muitos deles estão empilhados
aleatoriamente pelo Posto ou estão em posse do “dono” do lote, o que torna difícil verificar
qual a informação mais atual sobre cada gleba de terra.
De acordo com os indígenas, o fim dos livros de lotes está relacionado a dois
fatores em especial: o advento da Constituição federal de 1988 e a delimitação de cada lote.
Segundo contam, por um longo tempo não havia a delimitação física, com cercas, de cada lote
ou trecho de lote. Quem tinha o controle exato do tamanho e dos limites das áreas em posse
de cada um e/ou sob arrendamento era exclusivamente o Posto Indígena – provavelmente para
evitar negociações diretas entre as partes, o que poderia impedir o repasse do percentual
devido ao Posto. Aos poucos, porém, os indígenas foram cercando suas áreas por conta
própria. Em paralelo, a Constituição de 1988, ao reconhecer a autonomia das comunidades
indígenas e acabar com o instituto da tutela (embora ainda conste no Estatuto do Índio), abriu
espaço para uma interpretação de que os índios poderiam fazer tais negociações diretamente,
sem intermédios. Vendo-se livre de obrigações com o Posto, os índios passaram a envolvê-lo
nas negociações somente quando entendem que há necessidade de registrá-las e legitimá-las –
evitando futuras contestações, por exemplo. Embora os funcionários do Posto não se neguem
a assinar tais documentos e recibos, também não os organizam, como já afirmei, o que torna
difícil ter informações precisas e atuais sobre a situação atual dos lotes.
Além do arrendamento de áreas rurais dos lotes, há uma outra modalidade, que
ganhou grande relevância ao longo do tempo: o chamado chão de casa. A cidade de Águas
Belas, circunscrita aos limites estabelecidos em 1928, inevitavelmente cresceria, e
ultrapassaria esses limites, invadindo as terras indígenas ao seu redor. Quando isso começou a
acontecer, inaugurou-se esse novo tipo de arrendamento, que diferencia-se do arrendamento
de áreas rurais, voltadas para o plantio ou criação de animais, por constituírem-se em áreas
menores, destinadas somente à construção de casas. O chão de casa parece ter se iniciado na
área indígena há um tempo considerável, já que Bruno Souza (2017: 21) encontrou recibo
datado de 1949 que já discrimina o pagamento de um chão de casa na Terra Indígena Fulni-ô.
O fato é que esse “negócio” cresceria bastante nas décadas seguintes, tendo assumido grandes
proporções a partir da década de 1980. Já nesse período centenas de casas construídas na área
urbana se encontravam dentro dos limites da TI. Similar ao IPTU, o chão de casa é um valor
anual cobrado por casa, mas, ao contrário desse, geralmente é fixo, assim como o tamanho dos

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terrenos – hoje está na casa de 170 reais. Os índios declaram que boa parte dos moradores
paga esse valor regularmente, mas não têm o que fazer para cobrá-los quando se negam.
Outro problema surgiu quando a Prefeitura Municipal começou a oferecer
serviços urbanos nessas residências, como ligação de energia elétrica e água. Como
contrapartida, passou a cobrar IPTU dessas casas, e os moradores deixaram de pagar o chão de
casa aos indígenas. Hoje, a prefeitura considera que tais áreas foram incorporadas à cidade,
enquanto os índios ainda declaram que, mesmo urbanizadas, ainda pertencem a eles. A

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divergência com relação à atual área do município fica clara considerando o mapa produzido
por um perito judicial no âmbito de um processo judicial de manutenção de posse 7,
sobrepondo três áreas: aquela estabelecida pelo decreto de 1928, aquela acordada pelos
indígenas conjuntamente com a Funai, durante o processo demarcatório iniciado em 2002, e
aquela considerada pela prefeitura do município – bem maior que as demais. De todo modo,
hoje o chão de casa representa uma renda considerável e segura para as famílias que possuem
lotes contíguos à cidade, embora não se tenha a exata dimensão da área em que é praticado.
Também é importante notar que, no caso do chão de casa, o órgão indigenista
recolhia, além do percentual anual da renda, um percentual também sobre transações sobre o
imóvel, como atesta o inspetor do SPI já em 1951 – declarando ter sido ele mesmo a criar o
tributo (apud Souza, idem: 21).
Outro ponto relevante em relação ao território Fulni-ô é em relação aos seus
aspectos coletivo e privado. Como vimos, a intenção do Estado brasileiro, ao lotear e
estimular o arrendamento em terras indígenas, facilitado pelos lotes individuais, foi contribuir
para o processo assimilacionista dos membros dessas comunidades, aproximando-os dos
pequenos agricultores circunvizinhos e incutindo uma noção da terra como unidade
econômica privada, e não mais como um território coletivo e portador de símbolos e marcas
vinculados à identidade étnica. O objetivo final era que tais comunidades se desfizessem com
o tempo, podendo os indígenas então se “emancipar” e se tornar cidadãos plenos, livres da
tutela. Como sabemos, tal fim não foi atingido, mas não deixou de ter grande impacto na terra
indígena. Isso porque a introdução de lotes individuais, como declarei em parecer anterior
(2016), fez com que a terra entre os Fulni-ô passasse
a ter dois significados simultâneos, porém antagônicos, e que diversas vezes
entram em choque entre si. Por um lado, seguindo distinção do antropólogo
Jorge Hernandez Díaz (1983), a Terra Indígena Fulni-ô permanece um

7 Processo nº 98.0006054-5,a na 23a Vara da Seção Judiciária do Estado de Pernambuco – Garanhuns.

14
território, isto é, espaço geográfico ligado indissoluvelmente à sua história e
sua cultura, suporte de sua identidade étnica. Assim, todo a área, incluindo
os lotes, é vista como pertencente exclusivamente aos Fulni-ô, devendo
permanecer sob seu domínio, sem que lotes ou trechos deles sejam jamais
desvinculados ou retirados do território. Contudo, em paralelo, a terra
também é vista como meio de produção e exploração econômica; com a

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vigência da divisão em lotes e de seu arrendamento, tais aspectos passaram a
ser vistos unicamente como circunscritos aos indivíduos ou às famílias, e
não mais como de interesse coletivo. Assim, cabe exclusivamente ao
'proprietário' de um lote a decisão do quê e como produzir ou construir no
lote que lhe pertence, assim como é permitido vendê-lo para outros Fulni-ô
(ainda que isso nem sempre seja declarado) [ou arrendar para brancos], e é
decisão exclusivamente individual para quem e por quanto (…) O problema

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da coexistência destes dois significados está no fato de que o aspecto
privado da terra pode terminar por afetar profundamente, ou até por esvaziar
seu aspecto coletivo, como território propriamente dito (p. 4 e 5).

Nesse mesmo sentido, Coutinho Jr. e Melo declaram:


a existência dos lotes gera um processo dialético de pulverização das
unidades produtivas, dada a quantidade finita de terra face ao crescimento
demográfico da unidade familiar que dela sobrevive, ao mesmo tempo em
que possibilita a concentração desse meio produtivo por segmentos
familiares específicos da sociedade Fulniô, que passaram a exercer, ao longo
do tempo, o controle produtivo sobre mais de um lote. Muitas vezes a
apropriação da terra como meio de produção contraria o ideário
indígena sobre a terra considerada como território. (2000: 60, grifo meu)

Assim teríamos por um lado um entendimento dos lotes como espaços


privados, nos quais a transmissão, herança e qualquer tipo de transação seguem regras
parecidas com unidades agrárias comuns; por outro, contudo, são parte de um território
herdado dos ancestrais, e assim não podem ser desfeitos ou vendidos a não-índios. Há,
contudo, dois espaços que são vistos como inteiramente coletivos, isto é, pertenceriam à
comunidade como um todo, e cuja gestão cabe ao cacique e pajé, vistos como as duas maiores
lideranças indígenas entre os Fulni-ô: a área da aldeia urbana (chamada geralmente de
Patrimônio da Aldeia) e a chamada Reserva do Ouricuri, espaço onde acontece nos meses de
setembro a dezembro o maior e mais importante ritual Fulni-ô, que também leva o nome de
Ouricuri. Ali também se realizam outros eventos rituais ao longo do ano, em especial de
janeiro a maio, em uma dimensão menor. Durante o Ouricuri, os Fulni-ô se mudam em massa
para a aldeia do Ouricuri (chamada por Miguel Foti (2011) e seus informantes de aldeia de
lá), onde não é permitida a presença de qualquer um que não seja considerado Fulni-ô,
durante os três meses do ritual. Salvo algumas situações excepcionais, nesse período todos os
Fulni-ô que residem na região dormem na aldeia do Ouricuri, e sua saída durante o dia é
permitida a depender do período e das obrigações dentro do ritual. Há duas características
fundamentais envolvendo o Ouricuri: a primeira é que evento mais mobilizador e fundamental
para a marcar a fronteira étnica e definir a identidade Fulni-ô; quem não participa desde tenra
idade, não pode participar mais adiante, e sua identidade como Fulni-ô pode até vir a ser

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contestada. A segunda é que o ritual é marcado por um segredo que permeia todos os aspectos
vinculados a ele, e seu acesso é estritamente vedado a quem quer que seja – mesmo esposas,
maridos e parceiros dos indígenas desconhecem por completo o que se passa. Não se pode ver,
ouvir, nem saber quase nada sobre o que acontece durante o ritual. Sabe-se apenas que lá há
uma divisão do espaço, com uma área pública, onde ficam as casas e circulam as mulheres e
crianças durante todo o período, e um espaço comum reservado exclusivamente aos homens.
Também há restrições para o consumo de bebida alcoólica e qualquer contato sexual.

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Os Fulni-ô são bastante cuidadosos para manter esse segredo preservado: ao
redor do local onde é praticado o ritual foi reservada uma região de caatinga preservada, sem
desmatamento – presumivelmente também por motivos rituais –, além dos diversos avisos na
estrada principal de acesso da aldeia urbana à aldeia do Ouricuri. Não-índios que
acidentalmente ou não entraram na área durante o Ouricuri provocaram uma grande
insatisfação. Mesmo fora do período do ritual, o acesso pode ser restrito.
Já com relação ao Patrimônio da Aldeia, há um problema fundamental: não há
clareza sobre seus limites com os lotes privados. Não foram encontradas, na bibliografia
pesquisada, referências a documentos que tenham estabelecido sua área exata. O mapa da
Terra Indígena produzido em 1995 pela Funai (anexo 1), embora delimite a área do
patrimônio, conta com a inscrição que foram utilizadas informações de várias fontes (sem
citá-las especificamente), e que estaria sujeita a correções. De qualquer maneira, vários índios
confirmaram que há dissidências sobre os limites da área, e que essa indefinição traria
problemas, como a apropriação particular de terrenos que seriam coletivos; por outro lado,
outros acusam de terem seus terrenos privados invadidos por pessoas que declaram se tratar
de parte do Patrimônio da Aldeia. A própria Funai encaminhou esta questão à antropóloga do
quadro Cláudia Menezes (já citado à p. 10 deste parecer), para ser respondida em um
levantamento realizado em 1993, sem que fosse possível executá-lo integralmente, por conta
de reações locais contrárias (Ferreira, 2000: 47).
Interessa-nos aqui, particularmente, a área do Ouricuri, por motivos que serão
expostos adiante. Segundo relatos, o Ouricuri já foi realizado em outros locais anteriormente,
em um tempo passado não muito preciso. Segundo contam alguns indígenas, o que também é
afirmado por Schroder e Pinto, em sua etnografia de 1956, o último local antes do atual teria
sido nas suas proximidades, porém um pouco mais próximo da aldeia. A mudança, todavia,
teria acontecido há bastante tempo, em data imprecisa, mas certamente há algumas gerações.
Os indígenas declaram que teria havido uma epidemia de cólera no período, e também

16
declaram ter sido uma época de difícil relação com os brancos – um informante declarou que
“o Ouricuri foi 3 vezes mudado. Mas não é do tempo da gente. O primeiro mesmo, há 200
anos pra lá, é aí onde tá. Aí houve uma epidemia, que aí acabou a parte dos índios, aí eles se
espalharam, passara 20 anos sem se juntarem”. No entanto, não é possível saber como e
porquê escolheram o local atual.

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O fato é que, em alguma data incerta do século XX, foram resguardados 9
dentre os 427 lotes para o Ouricuri. Embora esta informação seja confirmada por todos os
indígenas com os quais conversei, não foram encontrados registros desse ato em documentos.
Diz-se que alguns dos lotes vizinhos (três em uma das laterais e um na entrada), embora nos
livros do posto estivessem registrados com nomes de proprietários, na prática eram
“intocáveis”, deixados pra reserva, não podendo ser explorados. Em certo momento – segundo
um informante, por volta do final da década de 1960 e início de 1970; segundo outro, teria

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sido em data mais recente – teriam sido trocados por outros lotes em outras áreas, e
absorvidos à área do Ouricuri. Quem teria articulado isso teria sido o chamado “velho Paulo”
(Paulo Ferreira de Sá), sub-pajé, que, de acordo com este mesmo informante, era o articulador,
“porque o pajé mesmo era surdo. Aí ele era quem resolvia tudo com o chefe do posto, com a
Funai...”. Assim, os 9 lotes antigos teriam se somado aos outros 4, totalizando os atuais 13,
como se vê no mapa na próxima página:
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Figura 2 – Recorte do mapa elaborado em 1995 pela Funai, indicando os lotes do Ouricuri. Reproduzido de
Schroder, 2003: 69

Cabem ainda alguns comentários sobre o território indígena Fulni-ô. Vários


autores já apontaram as consequências, por vezes nefastas e complexas, dessas três
características marcantes na Terra Indígena Fulni-ô, já apontadas, quais sejam: a presença da
cidade de Águas Belas em seu interior; a divisão em lotes; e o arrendamento de terras, em suas
diversas modalidades. Alguns desses efeitos já foram apontados aqui, mas há outros também

18
bastante relevantes. Além dos arrendamentos rurais e dos chãos de casa, a presença de alguns
empreendimentos, obras, imóveis e outras atividades nos lotes privados ou coletivos ensejou a
mobilização por parcelas da comunidade por algum tipo de compensação/indenização pela sua
presença e usufruto de parte do território. Alguns atingem a terra indígena incidentalmente,
outros passam por ali para atender à sede do município. O fato é que vários deles atingem a

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área diretamente, como é o caso das duas estradas estaduais (PE-244 e PE-300), de uma
estrada federal (BR-423), das linhas de transmissão da Chesf e da Celpe, da tubulação e da
captação de água dentro do território pela Compesa, além de alguns imóveis construídos pela
Prefeitura, a torre da Companhia Telefônica Oi (em área cuja propriedade é alvo de
controvérsia) assim como um posto de gasolina, um motel e alguns estabelecimentos
comerciais às margens da BR-423, e atualmente a adutora do agreste, que está sendo
construída também pela Compesa, dentre outros.

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O modo como cada processo de indenização ou compensação foi negociado e o
acordo a que se chegou será tratado posteriormente. No entanto, é importante ressaltar que nos
casos em que houve pagamento de indenização ou compensação financeira, assim como no
arrendamento em suas duas vertentes, foram beneficiados apenas aqueles em posse dos lotes
diretamente afetados – no caso de atingirem os lotes da comunidade, como aqueles do
Ouricuri ou da aldeia, a ela foram pagos. Isso não impediu que alguns outros benefícios de
outras naturezas fossem revertidos para a comunidade como um todo, como no caso da
Compesa, que citarei mais adiante.
Com o tempo, o recebimento dos valores oriundos do arrendamento rural e do
chão de casa, e em menor grau das compensações financeiras, produziu uma concentração de
renda e de terras nas mãos de poucas pessoas ou famílias, que por sua vez produziu uma
grande desigualdade social dentro da comunidade Fulni-ô. As duas se retroalimentam aqui, já
que terra gera renda (pelos meios já citados), e a renda possibilita compra de novas terras.
Isso foi possível por alguns fatores: em primeiro lugar, a propriedade do lote
em lugares estratégicos, por herança ou aquisição, como no entorno da cidade (onde é possível
possuir inúmeros chãos de casa), em áreas valorizadas (pela localização ou presença de água
mais abundante, recurso escasso na região) ou em áreas sujeitas ao recebimento de outros
benefícios e indenizações. A possibilidade de aquisição de novos lotes é bastante restrita aos
indígenas, já que boa parte não tem renda suficiente para comprar glebas para si, em especial
as mais visadas. Assim, muitas vezes são feitas por aqueles que ocupam uma das poucas vagas
de emprego disponíveis, e portanto tem renda fixa (geralmente na Coordenação Técnica Local
da Funai8 (CTL), nas escolas indígenas ou trabalhando para o Pólo-Base de Saúde) e maior
poder aquisitivo, ou é feita por um branco(a) casado(a) com um(a) indígena. Embora não se

8 A partir de 2009, com a reestruturação da Funai, os antigos Postos Indígenas passaram a se chamar
Coordenações Técnicas Locais. Contudo, a antiga denominação continua a ser utilizada amplamente pelos
indígenas e não-indígenas, e por vezes pela própria Funai. Assim, nesse parecer utilizo os dois termos como
equivalentes.
possa registrar o lote em nome do(a) branco(a), ele(a) pode adquiri-lo e registrar em nome do
cônjuge (Ferreira, 2000: 47). Isso abre espaço para que pessoas não-pertencentes à
comunidade, mas que contam com um poder aquisitivo maior, acabem usufruindo de suas
terras e concentrando renda.
De uma forma ou de outra, o fato é que vários autores têm notado esta flagrante

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desigualdade entre os Fulni-ô, e geralmente creditado esta situação à concentração de renda e
de terras, bastante associadas.
Assim, Schroder, por exemplo, declara:
a prática dos arrendamentos formalmente institucionalizada pelo SPI em
1928 teve como um de seus efeitos produzir, em longo prazo, diferenciações
sociais e econômicas consideráveis dentro da sociedade Fulni-ô, e com isso,

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excluir uma parcela significante da população indígena do acesso à terra,
criando um problema de verdadeiros sem-terras indígenas e colocando em
risco seu auto-sustento.

Ferreira (2000: 47-48 e 50) chega a ligar o processo faccional que teve seu auge
na década de 90 à escassez de terras disponíveis. Carla Siqueira Campos, em seu artigo sobre
a organização econômica entre os Fulni-ô, reforça as conclusões de Schroder, e declara que o
loteamento e o arrendamento chega a comprometer “atividades como, por exemplo, o
artesanato, a agricultura e a pesca” (2011: 159).
Outro artigo publicado na mesma coletânea apresenta uma pesquisa que buscou
levantar dados quantitativos sobre a distribuição de terra, renda familiar e uso dos recursos
produtivos entre os Fulni-ô (Albuquerque Gerum e Doppler, 2011). Os dados são bastante
representativos. Ao comparar a terra disponível por família entre os Fulni-ô, os Kambiwá e o
Xukuru (também grupos indígenas em Pernambuco), os autores verificaram que entre os
primeiros o total era de 13,83ha, enquanto entre os dois últimos eram respectivamente, de
2,8ha e 2,58ha – ou seja, substancialmente maior. Não obstante, também verificaram que entre
os Fulni-ô “apenas 37% da terra disponível por família foi utilizada para cultivos (Tabela 1),
enquanto para os Kambiwá e Xukuru esse número foi de praticamente 100%” (idem: 168).
Mais adiante, eles afirmam: “o não-cultivo de parte (ou o total) da terra disponível deve-se ao
fato de que as famílias não possuem condições financeiras para fazer face à copra de insumos
e implementos ou por falta de mão-de-obra familiar ativa” (idem: 169). Os autores também
notam que os Fulni-ô são um raro grupo indígena em que há registro de sem-terras, quando
entre os Xukuru e Kambiwá o tamanho das terras que cada família possui varia pouco, sem
registro de famílias sem-terra. Segundo dados de alguns autores, mais da metade dos Fulni-ô
hoje não possuem terras próprias, dependendo de terras alheias ou de outras fontes de renda.
Outro dado relevante é relativo à quantidade de terra em posse de arrendatários.
Segundo Schroder (2003), relatórios da Funai produzidos na década de 1980 e 1990 indicam

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que a grande maioria das áreas rurais estavam em posse de não-índios – o que é corroborado
pelos próprios indígenas, em visitas anteriores realizadas por mim. Há, contudo, um aspecto
interessante referente em relação ao arrendamento de terras. Ao contrário do que pode-se
pensar, muitas vezes arrenda-se terra não porque é uma boa fonte de renda, mas porque, como
já disseram Albuquerque Gerum e Doppler, os indígenas não têm condições financeiras de

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adquirir insumos e materiais agrícolas para investir na própria terra. A estiagem da área muitas
vezes também não permite que o plantio seja mais abundante.
Um indígena me relatou, contudo, que em anos recentes vários proprietários
estariam reassumindo a posse de seus lotes, diante da diminuição de interesse dos
arrendatários. Não pude confirmar tal informação.
Pudemos perceber, portanto, ao longo desse tópico, como a Terra Indígena

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Fulni-ô foi moldada pelas circunstâncias históricas, e resistiu às diversas pressões, violências,
tentativas de expulsão e ações do Estado com o objetivo de desmobilizá-los e desagregá-los
enquanto coletividade. Não obstante tenham resistido e permanecido como comunidade diante
de tais condições, estes processos históricos tiveram forte impacto sobre eles, e, no período de
pouco mais de um século, a sua demarcação na limitada área atual, a divisão em lotes, o
crescimento da cidade de Águas Belas e o instituto do arrendamento foram bastante
responsáveis para os problemas e dilemas vividos.
Passaremos agora à segunda parte do parecer, onde retomo os principais fatos e
a trajetória percorrida desde que a demanda por compensação foi apresentada pela primeira
vez até a negociação atual.

2. CHESF E COMUNIDADE FULNI-Ô: HISTÓRICO RECENTE

2.1. A primeira negociação

Segundo o Inquérito Civil 1.26.000.000716/2004-87, tudo começou quando


Eduardo João dos Santos Neto, indígena Fulni-ô, que havia adquirido há pouco um lote da
Terra Indígena, envia uma carta à Funai de Brasília, declarando que “algumas famílias,
principalmente aquelas que moram ou que tem criações embaixo da linha de transmissão,
encontram-se prejudicados, pois a Chesf proíbe muitas atividades naquela faixa”. Pede então
que o órgão tome providências, para saber se já houve alguma negociação com a Funai e os
Fulni-ô, e que solicite à Chesf a relação das linhas de transmissão, com sua origem e da
tensão, assim como que esta esclareça quais são os “nossos direitos de indenização e se os
mesmos foram respeitados pela Chesf” (fl. 6).
Inicialmente, nem a Funai de Brasília, tampouco a Administração de Recife ou
o Posto Indígena de Águas Belas souberam dar respostas às perguntas feitas. Contudo, um
servidor da Funai de Brasília, do então CGPIMA (hoje CGLIC), fez sua própria interpretação
das intenções de Eduardo, a partir de suas declarações, antecipando uma questão que viria a se
tornar central no processo: “há uma clara expectativa de direitos, conflitante com os
pressupostos de uso e direito coletivo dos recursos naturais e mesmo da terra, formulados no

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artigo 231 da Constituição Federal. Dito de outra forma, a reivindicação apresentada pelo
Fulni-ô Eduardo, tem como pressuposto demandar uma solução pessoal, acreditando
que o objeto, a LT, gera prejuízos apenas para as propriedades nas quais incide. [grifos
meus] (…) trata-se de uma realidade (ou uma deformação dela) diante dos pressupostos e
instrumentos legais e em desconformidade com a atuação do CGPIMA, que sempre trata os
aspectos de compensação, danos e recuperação ambiental, em decorrência de
empreendimentos incidentes em Terra Indígena, amparados no direito coletivo, ou seja, para

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todos os ocupantes da Terra Indígena. Pelo exposto, verifica-se a necessidade de parecer da
Procuradoria Jurídica da Funai, orientando a condução da negociação que ora se incia, no seu
mérito [grifos originais], no que diz respeito a tratar-se de direito coletivo ou apenas das
famílias ocupantes das propriedades diretamente afetadas pelas linhas de transmissão da
Chesf” (fls. 11-12).
Depois de troca de ofícios, a Chesf enfim envia a relação das linhas de
transmissão, indicando sua tensão, datas de instalação, data de conclusão da obra e número de
torres de cada linha incidente sobre o território indígena (fl. 19). Em 2004, a Funai pede a
participação do MPF como intermediador “visando o disciplinamento da utilização do
território indígena Fulni-ô pela CHESF, com a concessão de compensação em favor da
comunidade indígena e dos índios individualmente afetados”. A partir daí a Procuradoria da
República em Pernambuco instaura o auto para acompanhar a questão, mas a uma certa
distância; a negociação direta continua a ser feita principalmente entre Funai, Chesf e
comunidade Fulni-ô. Na esteira de Eduardo, outros indígenas, também proprietários de lotes
atingidos pelas torres, enviam carta à Funai, requisitando assistência jurídica da Funai nas
negociações com a Chesf, alegando que “não podem exercer atividades agrícolas ou criar
algum tipo de animal nas dependências das referidas torres, por se tratar de área de risco.
Portanto estamos sendo prejudicados, e gostaríamos que fossemos beneficiados de alguma
forma, para que tenhamos meios de trabalhar para manter nossas famílias” (fl. 23).
A Chesf encaminha ao MPF, no mesmo ano, cópias de duas Escrituras Públicas
de Constituição Amigável de Servidão de Eletroduto, de 1957 e 1976, celebradas entre SPI e
Funai, respectivamente, representando os Fulni-ô, com a Chesf. Nelas, fica instituído que os
indígenas confeririam a servidão sobre a gleba citada na escritura, por onde passam as linhas
de transmissão, além de sua posse. A escritura também estabelece que as benfeitorias
destruídas deveriam ser pagas a quem de direito.
A Funai se manifesta às fls. 52-72, em resposta a um ofício enviado pela

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PR/PE, que havia pedido informações detalhadas sobre as torres. Consta ali informações
fundamentais:
a) levantamento planimétrico das redes da Chesf, com o mapa das propriedades
atingidas, uma a uma;
b) manifestação do cacique, em que diz que “não há interesse na retirada das

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linhas de transmissão de nossa área indígena; há interesse de tratar de forma pacífica todas as
questões relacionadas à presença da Chesf em nossa área”. Sugere a promoção de uma reunião
ou audiência pública na comunidade, com a presença do MPF, Funai, Chesf e Fulni-ô, “para
que possamos discutir todas as questões referentes ao assunto em pauta e na oportunidade, a
comunidade Fulni-ô apresentará sua proposta”;
c) quantitativo de torres por propriedade, no total de 75; e

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d) relação de ocupantes, lotes e área de servidão.
A Funai não indica, contudo, quais foram suas fontes de informação: tanto com
relação aos limites entre os lotes, quanto aos seus ocupantes (já que então não existiam mais
ou livros de registros de lotes), a área de servidão que se sobrepunha a cada um e a quantidade
e localização das torres em cada um deles. Não se sabe quem prestou estas informações aos
servidores da Funai, e se elas foram confirmadas pelos demais. Isso é de grande relevância no
presente caso porque determinou a parcela da indenização que seria paga a cada um, e foi o
único levantamento feito com esse intuito em todo o processo.
A partir de 2005, tem início uma sequência de estudos realizados pela Funai e
pela Chesf. Em resumo, tais estudos têm o objetivo de tentar valorar uma compensação
financeira pelos impactos ambientais provocados pelas linhas de transmissão na terra
indígena. O primeiro estudo é produzido por um técnico da Funai, engenheiro agrônomo
(anexo I, volume 1/4). Nele, são realizados cálculos dos impactos ambientais de cada linha de
transmissão, de acordo com as datas de instalação, segundo modelo de valoração econômica
dos impactos ambientais em unidades de conservação, elaborado pelo Ibama. Ele declara no
relatório que “para valoração da compensação econômico-financeira dos impactos das linhas
de transmissão da Chesf no patrimônio cultural da sociedade indígena Fulni-ô, não existe
modelo matemático, consequentemente, se faz necessário incluir, neste processo,
profissionais da área sócio-antropológica” (grifos meus). Como conclusão, o técnico afirma
que “existe um grande impacto ambiental no patrimônio físico causado pelas 5 linhas de
transmissão da Chesf; existe um impacto ambiental imensurável no Patrimônio Cultural
devido à proximidade do Ouricuri”. Pelo impacto ambiental, o técnico chega ao total de R$
13.995.019,42 como pagamento pelos próximos 100 anos. E, por fim, sugere que deve-se
estabelecer um convênio com interveniência da Funai e MPF, “bem como levar em
consideração a forma atual de regularização fundiária da reserva indígena Fulni-ô, onde hoje
exitem 427 lotes, distribuídos entre as famílias”.
A Chesf, por sua vez, elabora um estudo em que apresenta suas ações e suas
próprias conclusões, ao tempo em que responde às conclusões do relatório da Funai (anexo I,
volume 3/4). A empresa afirma que constituiu dois Grupos de Trabalho, que tiveram o
objetivo de compilar informações sobre casos semelhantes, estudar possibilidades e caminhos
para o presente caso, além de estudar os supostos impactos socioambientais e sugerir maneiras

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de compensá-los. Eles narram a visita de um indigenista à Terra Indígena, que teria declarado
que a Chesf “deverá estruturar o pagamento em duas partes: uma parte em dinheiro a ser paga
aos proprietários dos lotes atingidos pelas Linhas de Transmissão e outra parte em ações que
venham beneficiar toda a comunidade indígena”. Também diz que “existem dois grupos
divergentes na comunidade indígena Fulni-ô: um grupo liderado pelo cacique que aceita uma
solução coletiva para o problema e o outro grupo, liderado pelo pajé, que defende a solução
individual, com o valor da indenização sendo pago totalmente aos proprietários dos lotes

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atingidos”.
A Chesf declara que as linhas de transmissão na área possuem 7,5 km de
extensão, com uma área total de 163,7 ha, e 75 estruturas das linhas de 230 e 500kV.
Ela passa então a contestar a metodologia da Funai, rechaçando a possibilidade
de sua aplicação para o presente caso. Ela também reconhece o impacto ambiental no
patrimônio físico e cultural, “sendo necessário definir uma forma técnica e legalmente
adequada para negociação quanto à forma de aplicar a compensação ambiental desses
impactos”. Afirma ainda que “deve ser reconhecido aos índios o direito de participar em todas
as decisões que os afetem ao longo das etapas de planejamento, construção e operação de
empreendimentos”.
A empresa então propõe outra metodologia de cálculo do impacto, intitulada
metodologia dos custos de reposição, em que “a valoração é calculada levando-se em
consideração o levantamento dos custos/despesas que ocorrem na execução de ações que
teriam como objetivo a reposição de ativos/recursos produtivos que foram danificados pela
implantação das Linhas de Transmissão da Chesf”. Através dessa metodologia, a empresa
contratada pela Chesf para fazer os estudos para valoração de impacto da passagem das linhas
chega a algumas possibilidades, de acordo com as variáveis econômicas, climáticas e
produtivas. Para cada uma, calcula-se um cenário otimista e um cenário provável. Assim, a
empresa conclui que deve-se “considerar aceitável o resultado dos cenários otimistas, tendo
como base o fato de que ocorrem outras perdas que não são mensuráveis por esta
metodologia”, além de “considerar que estas perdas que não puderam ser calculadas por esta
metodologia estariam cobertas e valoradas pela diferença entre os valores dos cenários
provável e otimista”. O valor da diferença entre os cenários corresponderia ao limite máximo
que a Chesf aceitaria pagar para um período de 10 anos, já que em 2015 venceria a concessão
da área – entre as alternativas estudadas pela empresa, a de número 4 é a que possui os
maiores valores, sendo de R$531.090,00 no cenário provável, e de 2.585.858,00 no cenário

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otimista.
Entre as conclusões do relatório da empresa contratada pela Chesf, destaca-se
aquela que diz que “as linhas de transmissão (…) não podem ser caracterizadas como o
grande causador dos impactos culturais provocados no decorrer dos últimos 50 anos na
reserva indígena Fulni-ô”.

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A Funai, por sua vez, responde novamente, defendendo sua metodologia de
cálculo, e recalculando o valor para um período de 10 anos. Também reafirma que não levou
em conta o patrimônio cultural (anexo I, volume 2/4).
Traz como anexos dois quadros: em ambos, consta a área de cada lote
(reproduzindo a informação prestada pela Funai anteriormente, já citada, às fls. 52-72 do auto)
e valor que cada um teria direito a receber como compensação, segundo seu método de

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cálculo, de acordo com o tamanho da área; no primeiro deles, toma-se como referência
período passado, desde a data da instalação de cada linha de transmissão, chegando ao
montante de R$ 7.195.81,16; no outro, consta o valor pelos 10 anos seguintes, de R$
1.191.535,52.
Já a Chesf afirma em seu segundo relatório (anexo I, volume 4/4) que o GT
sugeriu negociar tendo como referência o maior valor estudado, ou seja, o cenário otimista da
alternativa 3, de 2.585.858,00, mas ao mesmo tempo mencionam reunião ocorrida com Funai,
PGF/AGU e comunidade Fulni-ô, em que foi proposto o valor de R$ 1.500.000,00. Declara
ainda que “deve manter sua decisão, já apresentada à comunidade Fulni-ô em 6/1/2006,
de que o valor da indenização a ser acordado entre as partes, deverá ser aplicado em
ações ambientais que venham gerar benefícios a toda a comunidade Fulni-ô” (grifos
meus), e que “a definição de qualquer valor ou percentual a ser rateado entre os índios
proprietários dos lotes atingidos pelas linhas de transmissão, caberá ao Ministério Público”.
Prossegue dizendo que a fase de negociação “deverá envolver um comitê formado por
representantes da Chesf, Funai, PGF/AGU, Ministério Público e da comunidade Fulni-ô, na
pessoa do seu cacique”.
Por fim, afirma que o “Termo de Ajustamento de Conduta – TAC a ser assinado
para referendar o acordo entre as partes deverá: apresentar as ações que serão executadas com
os recursos acordados; definir a Funai como instituição responsável pela execução das ações
definidas; definir o Ministério Público como instituição responsável pela fiscalização das
ações estabelecidas; definir a Chesf como responsável pelo repasse dos recursos acordados;
apresentar cláusula garantindo à Chesf, a execução das atividades de manutenção das linhas
de transmissão sempre que considerar necessária; dar quitação à Chesf pelas perdas dos
recursos naturais causadas pelas linhas de transmissão que atravessam a área da reserva
indígena Fulni-ô. A execução das ações acordadas só deverá ser iniciada após a assinatura do
TAC”.
Em maio de 2006, os Fulni-ô enviam carta ao MPF (fls. 102-3), em que pedem
pagamento de acordo com a área, separando proprietários e comunidade; pedem que a parte
comunitária seja paga em projetos coletivos, de desenvolvimento social (como construção de
ginásio de esporte e casa de cultura, reflorestamento da mata do Ouricuri, compra de máquina
de esteira para escavação das barragens e melhoramento das estradas, casa em Recife como

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ponto de apoio aos Fulni-ô) e a parte dos proprietários em dinheiro, diretamente, sem a
interveniência da Funai, com acompanhamento do MPF. Seguem mais de 20 folhas com
assinaturas.
Em reunião ocorrida em 23 de maio de 2006 – sem a participação do MPF
tampouco do cacique ou do pajé, importante notar –, contando com a Chesf, Funai,
Procuradoria Federal Especializada da Funai e representantes dos proprietários, a Chesf
propôs 2,5 milhões de reais à comunidade. O Procurador Federal Especializado, Cláudio

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Henrique C. M. Dias, que acompanhou a negociação, e o administrador da Funai de Recife
consideram razoável, mas dizem que o valor pode aumentar. A comunidade pede 3 milhões
reais, e a Chesf enfim aceita. Todos acertam que o valor vale até o fim de 2015. A Chesf
declara que vai submeter às suas instâncias internas, e
a Funai e a comunidade indígena Fulni-ô fariam acertos para determinar a
forma e o modo em que tais valores seriam aplicados, para fins de
elaboração e assinatura do Termo de Ajuste de Conduta. Diante de
questionamentos dos índios presentes, ficou determinado que a comunidade
indígena Fulni-ô, acima citada, compreende tanto a comunidade em geral
como os detentores dos lotes atingidos. (fls. 146-7)

Já em uma nova reunião, dessa vez ocorrida na Terra Indígena, entre


representantes da Funai local, Funai-Recife, PFE e “lideranças indígenas e comunidade”, fica
registrado em ata que os índios
comunicam que concordam plenamente reconhecendo que estão praticando
a mais pura justiça de forma democrática, respeitando nossa organização
social, religiosa costumes e tradição, que a indenização a ser paga pela a
CHESF deverá impreterivelmente proceder da seguinte forma:

I – os recursos na ordem de R$995.195,00 (…) correspondente à área do


Ouricuri e Peró, deverá ser creditado em favor da AER-Recife, após
pagamento será discutido a forma de aplicação na comunidade,
conforme gerenciamento das lideranças e comunidade.
II – o montante dos demais recursos financeiros que complementa a
soma de R$3.000.000,00 (…) de acordo com pacto firmado entre
comundiade e Chesf, deverá ser pago em espécie diretamente a cada
proprietário de lote, conforme relação de nomes e valores
correspondente a cada um. (fls. 144-5, grifos meus)

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Segue então uma tabela com a relação dos proprietários, números do lote, a
área e o valor correspondente que seria pago para cada um, segundo o seu tamanho,
reproduzindo a informação já encaminhada pela Funai em 2004 e constante também no
segundo relatório da Funai – embora não citem a fonte, a área exata de cada lote e a ordem
dos nomes são idênticas em todas estas listas, que denunciam sua origem. Por fim, declaram:

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“esclarecemos ainda que qualquer posição contrária as nossas decisões, estão ferindo
seriamente os direitos originais de nossa organização social e religiosa interna já reconhecida
constitucionalmente” (fls. 144-5).
Dessa vez, assinam pajé, cacique e proprietários.
Em 30 de junho, o Procurador Federal da Funai lotado em Recife encaminha
ofício à Procuradoria-Geral da Funai em Brasília, pedindo resposta com relação a vários

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questionamentos envolvendo o caso (fls. 134-142). Dentre eles, há alguns relevantes para a
atual situação, e portanto os reproduzo parcialmente aqui. Ao descrever a história Fulni-ô e
sua divisão em lotes, declara que esta “não encontra resistências nem protestos por parte da
comunidade indígena, mas que possibilita a existência de 'latifúndios indígenas' e
arrendamentos a não-índios”. Ele prossegue dizendo que “tal situação gera um conflito de
normas constitucionais, uma vez que embora a Cara Magna estabeleça um regime de uso
coletivo por parte dos índios nas terras tradicionalmente por ele ocupadas, impõe, ao mesmo
tempo, o respeito à sua organização social, costumes e tradições”. Pergunta, então se a divisão
fundiária deve ser considerada como usos, costumes e tradições, segundo os termos do art.
231, §1º, já que não surgiu no seio da comunidade Fulni-ô, mas foi imposta por autoridades
governamentais do Império; e se for considerada assim, se a indenização como proposta é
cabível (fl. 137).
Segue dizendo que a Carta Magna não prevê apropriação privada da terra, nem
por índios quanto por não-índios. Assim, entende que “não seria possível, juridicamente
falando, a indenização ser paga individualmente ao índios afetados proporcionalmente
aos lotes” (grifos meus).
Também questiona o fato de que, como a indenização abarca um período
passado, antigos titulares reivindicarão valores referentes ao período em que tinham posse das
glebas – o que de fato aconteceu e ainda acontece, como veremos adiante.
Fazendo suas considerações pessoais sobre o caso, o Procurador Federal segue
descrevendo o “risco, sempre presente, de conflitos entre os indígenas, que podem vir a ficar
insatisfeitos com a forma de indenização ora pleiteada, tendo eu constatado uma certa
disparidade de soluções por parte dos índios Fulni-ô, ora entendendo alguns que todo o
dinheiro deveria ser aplicado de forma comunitária, com a exclusão de pagamentos
individuais, ora pleiteando outros que deveria ser a grande parte partilhada entre os
detentores dos lotes prejudicados, entendimento este que conta com o aval do cacique e
do pajé” (fl. 139, grifos meus).
Por fim, ele questiona se é possível pagar a maior parte em espécie aos 17
índios detentores de lotes diretamente afetados, para que estes o apliquem da forma que
desejarem.
Na fl. 149, de 9 de junho, há uma manifestação do chefe do Posto Indígena

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Fulni-ô, em que diz:
os lotes de nºs353, 354, 355, 374, 375, 376, 392, 393 e 394, totalizando
26,7350 há, localizados na área do Ouricuri e as duas áreas com 16,1418
há e 5,6797 ha, localizados na área denominada “Fazenda Peró”, esta
ainda não loteada, pertence a Comunidade Fulni-ô, sendo de total
responsabilidade dos seus representantes legais – o Cacique JOÃO

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FRANCISCO DOS SANTOS FILHO e o Pajé CLÁUDIO PEREIRA
JÚNIOR, não pertencendo, desta forma, individualmente a qualquer
indígena, são localidades onde passam as linhas de transmissão da Chesf.
(grifos originais)

Em resposta ao memorando enviado pelo Procurador Federal Cláudio


Henrique, o Procurador-Geral da Funai Luiz Fernando declara às fls. 132-133, em 1° agosto
2006:
a posição desta Procuradoria-Geral reconhece a plena autonomia dos
índios e das comunidades para gerirem seus patrimônios, inclusive
transigindo no que tange às perdas e recomposições em relação à passagem
das linhas de transmissão da Chesf na Terra Indígena Fulni-ô. Inclusive,
idêntica solução já foi por diversas vezes utilizada por essa Funai (…) o
valor de R$3.000.000,00 (três milhões de reais), mesmo que discordante das
avaliações realizadas por esta Fundação Nacional do Índio – Funai pode ser
aceito, pois acordado livremente pela comunidade Fulni-ô e Chesf, com a
assistência desta Funai. Com relação à forma de aplicação da indenização
recebida, a autonomia da comunidade também é reconhecida (grifos
meus).

Ele prossegue dizendo que o valor destinado à comunidade (R$995.195,00)


pode tanto ser administrado pela Funai como repassado ao cacique e pajé. Mas se o último
caso for o escolhido, “é necessário que a aplicação desse valor seja realmente revertido
em favor da comunidade, tendo a Funai que acompanhar a aplicação desse dinheiro,
através, talvez, de abertura de conta específica para sua administração” (grifos meus).
Afirma ainda que
não há óbice para que o montante de 2.004.805,00 seja dividido entre os
17 indígenas cujas áreas foram afetadas. Garante a transmissão dos

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direitos sobre as terras indígenas de forma livremente estabelecida pela
comunidade a Convenção 169 da OIT (...).
Por fim, esta Procuradoria solicita que seja realizada audiência pública com
toda comunidade para deliberação formal sobre a indenização e a forma de
sua aplicação, com participação obrigatória do Ministério Público Federal.

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As questões e decisões colocadas no memorando em referência devem
ter um respaldo da comunidade como um todo e suas lideranças, para
que se evite uma responsabilização futura da Funai sobre eventual
desentendimento ou não concordância entre a comunidade. (grifos meus)

Este memorando, como demonstram os trechos ressaltados, dá especial ênfase


à autonomia da comunidade indígena para celebrar acordos como o proposto, sem apresentar

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óbice algum para o pleito de destinar a maior parte do montante a ser pago pela Chesf aos
proprietários, segundo proposta encaminhada anteriormente, de acordo com a área afetada de
cada lote. Afasta, assim, a dúvida jurídica levantada pelo Procurador Federal relativa ao
usufruto coletivo das terras indígenas, e não leva em conta suas preocupações com relação às
“disparidades de soluções por parte dos índios Fulni-ô” e a indicação que a divisão de lotes
possibilita a formação de “latifúndios indígenas”. Por ser certamente favorável à forma de
divisão dos recursos defendida pelos proprietários, com frequência os Fulni-ô se valem desse
memorando para que suas reivindicações sejam reconhecidas e legitimadas, especialmente
quando acreditam haver alguma ameaça a tal formato.
Com o acordo já acertado entre Funai, comunidade indígena, Chesf e
Procuradoria Especializada da Funai, os Fulni-ô passam a cobrar a manifestação do MPF para
que o acordo seja enfim formalizado e o pagamento seja realizado, como consta nas cartas
juntadas às fls. 214, 249 e 250.
O Procurador da República, por sua vez, solicita um laudo antropológico
através do despacho às fls. 238-242, requisitando que seja “verificado se a divisão da tribo em
glebas se traduz como uso, costume e tradição da etnia; se esse partilhamento do território
elidiu, por completo, o caráter coletivo da posse indígena; se é possível tratar os lotes de
maneira particularizada, inclusive para efeito de indenização por atos praticados pelo poder
público no interior da terra indígena; se o pagamento em dinheiro de dois milhões de reais a
uma minoria da tribo pode afetar sócio-culturalmente a etnia ou os índios beneficiários; em
caso positivo, indicar a melhor forma de aplicação dos recursos”.
Em resposta, o antropólogo então lotado na 6 a Câmara de Coordenação e
Revisão Marco Paulo Schettino apresenta o Parecer 156/2006 (fls. 256-268). Seu parecer,
salienta, foi produzido tendo como base apenas as informações contidas nos autos e em
pesquisas bibliográficas, sem que se tenha realizado trabalho de campo. Dito isso, ele cita
trechos do relatório de Schroder e de textos de Ivson Ferreira, em que é descrita a questão
fundiária Fulni-ô, singular e complexa, e as consequências diretas da divisão em lotes e do
arrendamento de terras – incluindo alguns trechos citados anteriormente. Relata a
concentração de terra e de renda e a desigualdade observada entre os Fulni-ô e faz uma citação
de Ferreira que relaciona os conflitos vividos pelos Fulni-ô, direta e indiretamente, aos
problemas pela posse e acesso à terra (fls. 263-4). Citando Schroder, lembra também que “a

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má distribuição dos recursos auferidos em nome da comunidade junto aos órgãos públicos, em
especial a Funai”, também refletiria na concentração de renda, já que “internamente esses
recursos são apropriados por algunmas famílias, e, desse modo, não chegam à coletividade
como um todo (fl. 265). Todo esse processo histórico, somado às suas relações interétnicas,
impactou o modo de vida tradicional Fulni-ô (fl. 266).
Respondendo diretamente às perguntas encaminhadas pelo Procurador da
República, ele conclui que:

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1 – a divisão em lotes “foi incorporada como uso pelo grupo a partir de uma
imposição decorrente do contato interétnico, chegando, portanto, a se constituir em costume
entre os Fulni-ô. É preciso perguntar pelo grau de legitimidade que esse uso tem hoje entre os
Fulni-ô, se é aceito como razoável e justo, ou se ainda é objeto de muitas controvérsias
internas”;
2 – o partilhamento do território não elidiu por completo o caráter coletivo da
posse indígena;
3 – os lotes são tratados internamente “enquanto posse exclusiva, particular,
privada (…). Os critérios ora escolhidos [para o pagamento de indenização] se apresentam
como elaborados e disputados internamente, atendendo antes a parâmetros estabelecidos
segundo a correlação de forças entre as facções e respectivos interesses”.
4 – pode haver impactos sócio-culturais positivos e negativos. Negativos “ao
acentuar a desigualdade socioeconômica já existente entre famílias e grupos políticos Fulni-ô;
ao fomentar disputas internas pela apropriação de recursos; ao gerar novas expectativas de
consumo não sustentáveis, que sujeitam aumentar a dependência em relação a recursos
advindos de fora da comunidade (…). Positivo, se esses recursos forem redistribuídos entre os
agraciados, o que deverá ocorrer em pequena escala entre as famílias e indivíduos próximos,
vinculados por laços de parentesco e afinidade.
Se houvesse consenso, o ideal é a aplicação dos recursos em projetos
comunitários, com acompanhamento externo, de modo a beneficiar o maior número de
pessoas e não aprofundar a desigualdade já existente”.
5- “a divisão da Terra Indígena Fulni-ô autoriza o pagamento individual?
Tecnicamente podemos afirmar que não, uma vez que os impactos das linhas de transmissão
não se restringem apenas às áreas compreendidas pelos lotes onde foram implantadas, mas a
todo o território indígena, em maior ou em menor grau (…)”. Lembra também que se os

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titulares dos lotes estiverem arrendando, quem sofre é o arrendatário, e não os indígenas.
Também fala a possibilidade de aumento da desigualdade, concentração de renda e de terra.
Possibilidade de criação de precedente para futuras indenizações que alijariam parte
significativa da população Fulni-ô, que não possui terra, dos benefícios decorrentes.
Por fim, declara que,

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não obstante ser questionável do ponto de vista técnico, a divisão e a
respectiva possa da terra foi escolhido como critério para aplicação de maior
parte da indenização. Nesse sentido é recomendável observar se esse critério
tem legitimidade dentro da comunidade. Para tanto, é interessante a proposta
da Procuradoria da Funai em submeter tal decisão a uma audiência pública.

Sugere também a submissão ao conselho de famílias Fulni-ô.

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Diante das conclusões do parecer antropológico, o Procurador da República
declara em despacho que
é conveniente que sejam ouvidos um número maior de representantes, que
reflitam, com mais segurança, a opinião da maioria. Nesse sentido, mais
adequada seria uma deliberação interna mais ampla possível, a ser feita com
o conselho de famílias da tribo, intermediada pela Funai, consoante sugerido
pelo antropólogo Marco Paulo Fróes Schettino. Após sua realização, poderá
ser convocada uma audiência pública, conforme a necessidade.

Determina, então, que a Funai viabilize uma deliberação interna junto ao


Conselho de Família da tribo Fulni-ô, urgente, colhendo a provação ou rejeição da proposta de
pagamento individualizado de R$2.004.805,00 entre os 17 indígenas (269-275).
Os proprietários reagiram ao parecer antropológico, entendendo que ele ia de
encontro ao que já havia sido acordado entre as partes quanto à distribuição e aplicação dos
recursos. Nas fls. 277-281, cartas de Eduardo e dos proprietários contestam diversos pontos
do parecer, defendendo sua proposta de pagamento individual aos proprietários de acordo com
a área. Eduardo pede que se considere o acordo feito entre as partes, e que se isso não for feito
ferirão a organização do povo Fulni-ô; comunica ainda que “enquanto não houver consenso
está proibida a entrada de técnicos da Chesf em área dos referidos lotes indígenas Fulni-ô”. Os
proprietários, por sua vez, dizem que
temos direitos aos lotes, que somos proprietários e desde então não podemos
abrir mão dos nossos direitos, uma vez que desejam difundir os mesmos (…)
Portanto, solicitamos a V. Senhoria que considere nosso acordo como
encontra-se relatado em documentos enviados ao Ministério Público (…),
para assim, prosseguimos na negociação, pois, caso contrário, sentiremos
nossos direitos feridos (fls. 280-281).

Para referendar sua posição, citam casos da Compesa e da Celpe, cujas obras e
usufruto de parcelas de lotes dentro da área indígena ensejaram pagamento de indenizações.
No primeiro caso, segundo Termo de Ajuste em anexo entre Funai e Compesa, de 1981, o
pagamento era referente às culturas e benfeitorias, assim como pelas terras. A Compesa
também se comprometeu a construir um reservatório elevado de 75m3, “para uso exclusivo do
referido grupo indígena no aldeamento e no Ouricuri”, e a fornecer diária e gratuitamente “um
volume d'água total de 75m3”. Este Termo ainda estabelece que as indenizações citadas

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seriam efetuadas de acordo com documento anexo, mas este não foi juntado aos autos.
Segundo os índios, contudo, o pagamento foi feito diretamente aos proprietários dos lotes
afetados, sem a intermediação ou reversão de qualquer valor ou parcela à comunidade.
Quanto ao caso da Celpe, foram encaminhados dois “recibos de indenização de
benfeitorias”, datados de 2002, nos quais é apresentado um cálculo financeiro dos danos
causados pela instalação das linhas de transmissão de energia elétrica da concessionária nas
benfeitorias existentes nas propriedades de dois indígenas, com a comprovação do

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recebimento dos valores correspondentes. O pagamento aqui, pelo que consta nos recibos, foi
estritamente individual e em espécie, sem a participação do órgão indigenista, tampouco de
representantes da comunidade.
Em reunião em dezembro daquele ano, o pajé declara que concorda com a
indenização individual aos 17 proprietários, que a parte da comunidade refere-se à área do
Ouricuri e Fazenda Peró, “sendo que a primeira ficaria sob administração do pajé e cacique,
enquanto a segunda sob administração do pajé; que o conselho de famílias atualmente
existente na comunidade é integrado pelas lideranças, cacique e pajé; que nenhum dos
proprietários compõe o referido conselho; que há por volta de 10 lideranças” (fls. 289-290).
Representantes do cacique, por sua vez, disseram que concordam com a proposta do pajé.
Sobre a proposta, o Procurador da República declara que há que se “aferir a
legitimidade da decisão. Por isso, propõe que a proposta seja analisada junto ao conselho de
família, conforme já foi oficiado à Funai para providenciar a deliberação”. Diz também que
uma parte da indenização dos 17 lotes deveria ser revertida à comunidade como um todo, que
também seria prejudicada.
Um dos proprietários, citando outros casos de indenização individual que são
aceitos na comunidade, diz que qualquer proposta que não seja a já encaminhada provocará
tumulto. Eduardo corrobora estas declarações, dizendo que não aceita dividir parte da
indenização dos proprietários com a comunidade.
Por fim, ficou agendada uma audiência pública na comunidade com a
participação do MPF e da Funai, “para registrar a deliberação interna junto ao conselho de
famílias da tribo Fulni-ô acerca da proposta de pagamento individualizado (…) entre os 17
indígenas proprietários, (...) que será franqueada a participação de todos da comunidade”.
Embora esta proposta de deliberação no conselho de famílias tenha sido aceita
num primeiro momento (o pajé chegou a enviar a relação dos participantes do conselho), foi

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rapidamente abandonada. De acordo com representantes dos proprietários, em reunião
realizada na PRM-Garanhuns, “não são realizadas sessões” ordinárias do Conselho de
Família, o que inviabilizaria a ideia. Em seu lugar, foi proposta uma votação pelos indígenas
Fulni-ô de quesitos relacionados ao tema, que seriam elaborados pelo MPF em conjunto com
a Funai. Os votos seriam secretos, e a eleição seria organizada por uma comissão da Funai.

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Tal ideia, no entanto, tampouco prosperou. Pouco depois os proprietários se
manifestaram novamente, ainda em janeiro de 2007, declarando que
nada impede que recebamos diretamente da Chesf, uma vez que outras
etnias já receberam diretamente das empresas (…) ficou determinado que a
comunidade e os proprietários dos lotes não aceitam a eleição proposta pela
Procuradoria, na pessoa do dr. Fábio Luiz de Oliveira Bezerra. Pois, nunca
houve eleição na nossa comunidade para escolher como iríamos viver (sic;

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fl. 301-2).

Citando a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT, declaram que


“temos direitos aos lotes, que somos proprietários e desde então não podemos abrir mãos dos
nossos direitos”.
Com o cancelamento, uma nova reunião entre as partes – incluindo a Chesf –
foi realizada na sede da PRM-Garanhuns, com o fim de dar seguimento às tratativas.
Confirmou-se então o valor de 3 milhões de reais e os termos do acordo, com a Chesf se
comprometendo também a implantar um Plano de Gestão Ambiental no corredor das linhas de
transmissão, conforme já havia apontado no relatório do GT Chesf/Fulni-ô. Por fim, o
Procurador da República estimulou
“os presentes a entrarem em acordo quanto à indenização e sua destinação,
beneficiando-se de imediato a toda a comunidade: a) o valor proposto
para indenização pela restrição do uso da terra (R$ 531.090,00) e para os
demais danos (R$ 2.468.910,00) é bastante razoável, e está justificado pela
metodologia empregada; b) a indenização pelos demais danos (R$
2.468.910,00) tem feição nitidamente coletiva, o que impreterivelmente
deverá ser revertido para a coletividade” (grifos meus).

Em resposta, os representantes indígenas da reunião “comprometeram-se a se


reunir com os demais 'proprietários' e comunidade, na qual apresentarão proposta de
destinação da indenização, considerando os elementos acima apontados pelo MPF”.
Vê-se aqui que, ao contrário do que havia sido acordado entre os indígenas, em
reunião realizada em 2/6/06 (fls. 144-5), a proposta do Procurador da República é que apenas
o valor correspondente à restrição do uso da terra considerado na alternativa provável do
relatório apresentado pela Chesf deveria ser pago diretamente aos proprietários, enquanto o
restante (mais de dois milhões de reais) teria feição “nitidamente coletiva”.
Para se posicionar quanto às proposições apresentadas, os Fulni-ô se reúnem
dias depois – segundo a ata, proprietários, lideranças e comunidade –, onde se debate a
possibilidade de que os recursos sejam pagos através de uma associação – embora tal tópico

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não conste nas atas de reuniões anteriores sobre o tema, ou em qualquer manifestação das
partes. Também não se menciona a proposição de que a maior parte do montante seja
revertido em favor da comunidade. Pelo contrário: embora boa parte dos presentes (em
especial os proprietários) tenha mostrado insatisfação com a possibilidade de receberem
através de uma associação, e não diretamente e individualmente, como desejavam, procuram
justificá-la declarando que “foi a melhor forma encontrada para receber”, e que “os
proprietários iam ter preferência em apresentar seus projetos”. Ao fim, todos concordam e

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assinam a ata.
Comunicação posterior informa que foi escolhida a composição do conselho
comunitário, “entre a comunidade e todas as lideranças (...) para participar junto à associação
do processo de análise e aprovação dos projetos, a serem implantados na aldeia Fulni-ô”.
Encaminham uma lista com cinco nomes.
Pouco depois, é fundada a Associação Pajé Julião Pereira Júnior, presidida por
Eduardo, cuja ata de fundação é juntada aos autos.
O Termo de Ajustamento de Conduta é, enfim, assinado pelas partes, e juntado
às fls. 345-353. Entre os itens do acordo, vale chamar a atenção para alguns deles no presente
parecer. No item 2.2, consta que a indenização “refere-se a todos os danos, passados e futuros,
materiais e imateriais, causados à comunidade indígena Fulni-ô pela implantação e
funcionamento das linhas de transmissão”. Já no trecho que versa sobre a utilização dos
recursos financeiros, dois itens são especiais importantes para o presente caso: no 4.1, consta
que os recursos financeiros “deverão ser utilizados em benefício exclusivo da comunidade
indígena Fulni-ô, em projetos e ações que beneficiem a comunidade, indivíduos e
famílias, preferencialmente para sua auto-sustentação econômica e de maneira coletiva”
(grifos meus); já no 4.2, consta que “é vedado o repasse dos recursos financeiros diretamente
aos índios, a titulo individual ou por família, sem projeto devidamente aprovado nos termos
das cláusulas e itens seguintes, bem como é vedada a sua utilização para pagamento dos
custos da Associação”.
Quanto ao caminho que os projetos devem percorrer para serem aprovados e
executados, o TAC define que devem ser propostos pela Associação e encaminhados ao
conselho comunitário, que deve aprová-lo, rejeitá-lo ou sugerir mudanças, “segundo critérios
relacionados aos usos, costumes e tradições indígenas”. Com sua aprovação, deve ser então
encaminhado a uma comissão composta por três servidores da Funai, que deve se manifestar
sobre sua viabilidade técnica. Com sua aprovação, o projeto deve ser então executado.

34
O TAC ainda estabelece o seguinte nos respectivos itens:
5.1 – a utilização dos recursos financeiros está sujeita à fiscalização por parte da Funai, do
MPF e a PFE-Funai.

5.2 – a comissão da Funai deverá acompanhar e fiscalizar a execução de cada projeto, bem
como a aplicação dos recursos.

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5.3 – a comissão elaborará um relatório trimestral para cada projeto, descrevendo a execução e
andamento, “o que deverá ser instruído com fotos, cópias de documentos, planilhas”, etc.

5.4 e 5.5 – a associação encaminhará à comissão extrato bancário, que serão autenticadas
pelos seus membros da comissão.

5.6 e 5.7 – a comissão encaminhará ao MPF e à PFE cópias de cada projeto, e cópias dos

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relatórios a que aludem o item 5.3, bem como cópias do extrato e documentos do item 5.4.
Com o que foi apresentado, percebe-se que o processo de negociação foi longo,
complexo, repleto de percalços e de dúvidas e questionamentos.
Destaco aqui alguns dos pontos:
a) o processo foi iniciado e levado adiante fundamentalmente pela ação dos
proprietários, e em especial de Eduardo, que foi quem primeiro se manifestou a respeito de
uma possível indenização, ainda em 2003. Mesmo depois contando com o apoio do restante
dos proprietários, ele se manteve à frente do processo, como principal interlocutor nas
reuniões e manifestando-se em diversas ocasiões.
b) quanto às duas maiores lideranças na comunidade – o cacique e o pajé –
percebe-se que o último passa a ter uma presença mais ativa principalmente depois que a
possibilidade do pagamento de uma indenização já se mostrava mais concreta. Participou de
algumas reuniões externas e assinou alguns dos documentos apresentados. Já o cacique parece
ter mantido uma postura mais distante ou mais cautelosa: embora assine as atas de algumas
reuniões ocorridas na comunidade (inclusive aquela que aprovou a proposta de pagamento da
indenização com a maior parcela (pouco mais de 2 milhões) destinada aos proprietários, de
acordo com a área de cada um), não participa de reuniões externas – indicando por vezes
alguém para representá-lo – e raramente encaminha qualquer manifestação por escrito.
Quando o faz, como quando foi instado a isso, ainda no início do processo, não se
compromete e diz apenas que “há interesse de tratar de forma pacífica todas as questões
relacionadas à presença da Chesf em nossa área”. Também é preciso citar o indigenista que
esteve brevemente na Terra Indígena, que teria declarado, segundo relatório da Chesf, que
existiriam “dois grupos divergentes na comunidade indígena Fulni-ô: um grupo liderado pelo
cacique que aceita uma solução coletiva para o problema e o outro grupo, liderado pelo pajé,
que defende a solução individual, com o valor da indenização sendo pago totalmente aos
proprietários dos lotes atingidos”.
c) embora não haja manifestações registradas de indígenas contrários à forma
proposta de divisão da indenização, há indícios de que uma parcela da comunidade discordava
dela. Com efeito, o Procurador Federal Cláudio Henrique declara, em seu ofício, que há
“disparidade de soluções por parte dos índios Fulni-ô, ora entendendo alguns que todo o
dinheiro deveria ser aplicado de forma comunitária, com a exclusão de pagamentos

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individuais, ora pleiteando outros que deveria ser a grande parte partilhada entre os detentores
dos lotes prejudicado”, sem contudo indicar que parcela seria essa e qual sua
representatividade. Parece-me que o fato dessa discordância não ter sido formalizada tem dois
motivos possíveis: um, que apesar de discordarem, não cabia a eles opinar, já que haveria um
reconhecimento tácito da legitimidade dos lotes individuais pelos órgãos públicos, por conta
de outras negociações que envolveram a Terra Indígena Fulni-ô, além do fato desta
negociação ser levada a cabo com o acompanhamento de órgãos públicos – se estes estavam

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dando seu aval para que ela prosseguisse nesses moldes, não haveria espaço para alternativas.
A isso somar-se-ia uma sensação de que “é assim que as coisas funcionam aqui”. Outro
motivo possível é o receio de contestar publicamente esse formato, e, desse modo, entrar em
rota de colisão com os proprietários, o que poderia gerar conflitos graves dentro da
comunidade. De todo modo, o período de negociação é marcado por uma ausência quase
absoluta de vozes dissonantes.
d) há, desde o início, preocupações de todas as partes com relação à
possibilidade jurídica e com a legitimidade e consequências socioculturais do pagamento de
indenização da forma pleiteada – isto é, de acordo com o tamanho da área diretamente
afetada, o que reverteria em um repasse bem mais significativo a apenas 17 proprietários. Há
diversas recomendações e sugestões de que seja priorizado o pagamento a projeto e ações que
revertam em um benefício coletivo, mas condicionando esta decisão à consulta da
legitimidade da decisão pela comunidade. Diante das dificuldades impostas (a consulta a um
conselho de famílias e uma votação pela comunidade prontamente descartadas), da ausência
de propostas alternativas que contassem com o apoio da comunidade e da cobrança dos
proprietários para que seus “direitos” fossem respeitados, especialmente tendo em mãos a
manifestação do Procurador-Geral da Funai, que de certo modo “autorizou” o pagamento
dessa forma, a negociação seguiu sem uma consulta formal a outras instâncias comunitárias
(salvo pajé e cacique, que já haviam se manifestado favoráveis) e contando exclusivamente
com esta proposta. Não obstante, na última reunião promovida pelo MPF sobre o assunto,
pouco antes da assinatura do TAC, o Procurador da República destacou que “a indenização
pelos demais danos (R$ 2.468.910,00) tem feição nitidamente coletiva, o que
impreterivelmente deverá ser revertido para a coletividade”, declaração que não conta com
registros de contestação pela comunidade; mais ainda, no próprio TAC, como destacamos,
consta que os recursos “deverão ser utilizados em benefício exclusivo da comunidade
indígena Fulni-ô, em projetos e ações que beneficiem a comunidade, indivíduos e famílias,
preferencialmente para sua auto-sustentação econômica e de maneira coletiva”. A princípio,

36
portanto, parece que há aqui uma contradição não-resolvida relativa à forma de distribuição e
aplicação do valor total. De acordo com os informantes, entretanto, o fato de o TAC
mencionar “indivíduos e famílias” como beneficiários dos projetos e ações foi o que garantiu
que eles concordassem com a redação final.
A assinatura do TAC assinado, portanto, encerrou enfim as negociações, e

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iniciou-se então uma nova etapa: a elaboração e execução dos projetos financiados pela
indenização a ser paga pela Chesf. Os problemas, contudo, não terminaram: seguiram-se
tempos em que acusações, denúncias e conflitos envolvendo suposta malversação dos
recursos, desvio de finalidade dos projetos e apropriação provada dos recursos destinados à
comunidade foram frequentes, além de muitas dificuldades e problemas envolvendo a
execução dos projetos e ao caminho previsto para sua apresentação e execução.

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2.2. Os projetos e os problemas

Segundo os informantes, os primeiros projetos a serem encaminhados para a


Funai eram todos em benefício dos proprietários. Foram, em sua maioria, projetos para
criação de gado, principalmente leiteiro, além de compra de insumos e materiais agrícolas,
como plantação de palma e construção ou reformas de cercas e cancelas nos respectivos
terrenos. Também houve projetos para compra de máquina forrageira, construção ou reforma
de casas ou compra de material de construção, entre outros.
Tão logo começaram a ser executados, contudo, começaram a surgir os
problemas. Em especial, Eduardo e a Associação que preside começaram a ser alvo de
denúncias de falta de transparência quanto aos recursos recebidos, e de obstruir o acesso de
outros indígenas aos documentos relativos aos projetos e à prestação de contas.
Eduardo, por sua vez, reclama que a Funai não “recebe” os novos projetos,
supostamente por conta de problemas com as prestações de contas dos projetos anteriores, que
já haviam sido pagos. À fl. 363 há uma carta dele à Comissão Técnica da Funai, pela qual
encaminha a prestação de contas de alguns projetos, “para averiguarem se existe fraude pela
associação, como desconfiam a Funai e o Procurador da Funai”. Embora não saibamos se a
Funai e o Procurador Federal Especializado realmente tinham essa suspeita, o fato é que
desconfianças com relação a Eduardo perdurariam até os dias de hoje – pelo menos por uma
parcela da comunidade. A Funai, por sua vez, afirma que novos projetos serão analisados
depois de recebidas e verificadas as prestações de contas dos anteriores. Eduardo reclama de
atraso do órgão indigenista, e diz que não estão cumprindo o prazo previsto.
Vemos, assim, que enquanto tem desentendimentos com a Funai em relação aos
prazos de análise e à prestação de contas dos projetos, Eduardo também está sendo alvo de
ataques. Em diversas ocasiões, diz estar sendo pressionado por “grupinhos” que desejam para
que seja liberado o dinheiro fora dos termos do TAC, que estariam atrapalhando “quem
procura fazer o bem na comunidade”. Em uma convocação geral para uma reunião em que
esclareceria “como está indo o recurso adquirido pela indenização da Chesf”, Eduardo declara
que está fazendo isso para “vocês não ficarem nas calçadas, formando grupinho para dizerem
que eu estou roubando recursos que tanto batalhei para chegar à comunidade Fulni-ô para não

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vir de um em um me pressionando, fazendo chantagem para ser beneficiado pensado que eu
estou com medo de dar explicação à comunidade”. Não fica claro em momento algum quem
faz parte desses grupos aos quais eles está se referindo, tampouco quantos são e quais são suas
reivindicações exatas.
De todo modo, uma voz se levanta desde o início contra Eduardo, como consta
nos autos: é a de Marco Antônio Albuquerque dos Santos, filho do cacique e servidor da
Funai. Além de ter sido responsável pelas primeiras representações contra Eduardo, também

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trouxe a esta PRM indígenas que alegavam ter sido alvo de ações injustas por parte de
proprietários ou autoritarismo e fraude de Eduardo – tornando-se, assim, uma espécie de
porta-voz dos descontentes. Entre suas denúncias registradas, declara que “nada do TAC (…)
foi cumprido pela Associação nem pela Funai”, e que “por conta da falta de transparência na
gestão dos recursos e das fprtes suspeitas de desvios das verbas que beneficiaram um número
ínfimo de pessoas, solicita a intervenção desta procuradoria para que seja iniciada auditoria e
investigações”.
Provavelmente por conta das denúncias e outras dificuldades do processo, é
realizada em outubro daquele mesmo ano uma grande reunião na comunidade indígena Fulni-
ô, da qual participam a Administradora Regional da Funai, o Procurador da República,
Eduardo e vários membros da comunidade. Segundo o Termo de Audiência à fl. 404, “os
membros da comunidade expuseram as causas da divergência, em síntese, má utilização da
verba repassada pela Chesf (…) o sr. Eduardo não conseguiu se explicar, tampouco, provar
que a reclamação não procedia, inclusive, não portava consigo nenhuma extrato bancário”. O
MPF solicitou então uma auditoria inicial “para averiguar a veracidade das reclamações, onde,
de imediato, a representante da Funai, sra. Estela Parnes, providenciou uma equipe de técnicos
que iniciará os trabalhos nesse dia, com previsão de conclusão para 15 (quinze) dias corridos”
O PR requereu que “todos os projetos fossem paralisados até a análise do relatório final da
auditoria, cujo pedido foi prontamente atendido pela Funai”.
Não se sabe se os projetos foram de fato paralisados, já que não há registro
algum sobre essa paralisação nos autos. Mas a Funai, de fato, designou técnicos que fizeram
um levantamento sobre o andamento e a execução dos projetos já aprovados até aquela data (e
não exatamente uma “auditoria”, como indicado nos autos), apresentando um relatório final.
Foram 20 projetos analisados, numerados de 1 a 20. Tal relatório foi juntado aos autos apenas
em fevereiro de 2008 (anexo IV do IC).
Antes de comentar o conteúdo do relatório, vale dizer que esta mesma reunião

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produziu outras duas atas: a da Funai, que foi anexada ao relatório, e uma outra com mais de
trezentas assinaturas, onde consta ao fim do texto a inscrição “o povo Fulni-ô”. Essas duas
atas trazem mais elementos, não registrados no Termo de Audiência, que revelam o nível de
tensão e as reivindicações do grupo que fazia oposição a Eduardo. Elas registram que diante
das “inúmeras denúncias de mau (sic) aplicação dos recursos da Associação” por vários

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indígenas, e diante da ausência de respostas e argumentos plausíveis, além de uma suposta
“agressividade”, “falta de consideração” e “respeito” de Eduardo com a comunidade (fls. 427-
428), solicitam, além de uma auditoria e paralisação de qualquer movimentação financeira dos
recursos, que Eduardo e a Associação que preside estão proibidos de representar e falar em
nome da comunidade diante de qualquer órgão, público ou privado, e a Associação deve ser
banida de todas as ações relacionadas ao TAC; também pedem, entre outros itens, que “todos
os recursos sejam destinados em prol de toda a nossa Comunidade de maneira geral, sem

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quaisquer tipos de distinção”. Marco Antônio é citado diretamente na ata da Funai, não se
sabe se por ser uma espécie de representante de um grupo de insatisfeito, ou por ter se
manifestado sobre o assunto.
Voltemos agora ao relatório da Funai: os técnicos da Funai consultaram os
projetos um a um, e verificaram in loco se foram de fato executados como previsto, com fotos
e análise dos itens adquiridos. Também juntam termos de declarações nos quais diversos
indivíduos confirmam a prestação de serviços previstos nos projetos. Em conclusão, os
técnicos apontam que a maior parte dos projetos foi executada como previsto, embora alguns
projetos ainda não estivessem concluídos, enquanto outros aguardavam a entrega dos
materiais devidos. Alguns projetos tiveram algumas pequenas alterações (como a aquisição de
um tipo de gado diferente do previsto, e a realização de uma reforma quando se previa uma
construção), o que os descaracterizou. No caso de outros dois projetos, o gado foi todo
vendido para quitar débitos, para realizar obras e outros fins. Os técnicos ressaltam por fim,
que é necessária a manutenção do projeto original, já que sua descaracterização afasta-os de
sua meta.
Nos meses seguintes, se intensifica a troca de acusações e o conflito
principalmente entre Eduardo e Marco Antônio, embora outros nomes sejam citados e haja
manifestações de outros indígenas que se opõem a Eduardo e sua associação. Eduardo acusa
Marco de “estar prejudicando meu trabalho perante a comunidade indígena Fulni-ô, fazendo
cabeça de revolução com algumas pessoas” e de “pressionar para ser beneficiado igual aos
outros que tem terra mais do que ele na área das linhas de transmissão”. Também declara que
ele e sua família teriam se beneficiado sozinhos de inúmeros projetos que seriam destinados à
comunidade, e que alguns recursos teriam desaparecido. Diz que querem tirar ele da
presidência “para fazerem o que eles sempre fazem”, e afirma que não vai sair, até provarem
que ele roubou. Diz também que vai fazer representações contra vários indígenas que o teriam
feito acusações.
Marco Antônio, por sua vez, diz que os recursos pagos pela Chesf continuam
sendo movimentados na conta da associação, mesmo após a reunião que determinou que os
projetos fossem paralisados. Maximiano, João Siqueira e Raonny (o primeiro, genro do
cacique, e o terceiro seu neto) repetem tal afirmação, denunciam fraude na fundação da
associação, dizem que a falta de transparência permanece, e que Eduardo não respeitou a

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decisão da comunidade, como apresentada na ata da reunião do dia 17 de outubro.
Em nova carta, Eduardo reitera algumas das acusações contra Marco Antônio e
também acusa o próprio cacique de apropriação indevida de bens e recursos que chegariam
para a comunidade, além de dizer que estava sendo ameaçado e que Marco usa a influência do
pai e do seu cargo para pressionar.
Embora o conflito tenha se concentrado em torno destas duas figuras,

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claramente há vários outros indígenas que apóiam ou apoiaram uma ou outra posição, ainda
que seja difícil dimensionar hoje o tamanho desse apoio e o posicionamento geral da
comunidade. O que parece claro aqui é, que, independente quem teve participação direta ao
lado de cada um dos dois, cada qual representa idéias conflitantes sobre qual o uso devido dos
recursos oriundos da indenização. Enquanto Eduardo representa a perspectiva da distribuição
de acordo com a área afetada – reconhecendo, assim, a propriedade individual dos lotes como
valor primordial e inescapável – usando para justificar sua posição o reconhecimento da
autonomia da comunidade para gerir os recursos de suas próprias maneiras e as decisões de
reuniões comunitárias anteriores sobre o assunto, Marco Antônio representa a perspectiva de
que o território, embora dividido em lotes, é algo a que os Fulni-ô têm direito enquanto
coletividade, e os benefícios decorrentes devem ser revertidos para favorecer a todos. Para
justificar sua posição, usa os termos do TAC, que é explícito ao falar que os projetos e ações
devem ocorrer “em benefício exclusivo da comunidade”.
Nota-se, também, que apesar dos indícios já antes da assinatura do TAC, esse
ponto de vista só se concretizou e pôde ser expresso quando um grupo o defendeu
publicamente, aparentemente capitaneado por Marco Antônio. Eduardo e outros proprietários
afirmam que o que ele queria na verdade é ter acesso ao dinheiro, já que só passou a participar
e pleitear a coletivização quando a longa negociação – que envolveu viagens, cobranças,
dedicação – já havia chegado ao fim e rendido frutos.
Também é preciso ressaltar que vários dos que estiveram à frente das
contestações da atuação de Eduardo à frente da Associação têm ligação direta com o cacique –
genro, neto, filho, e outra filha dele foram citados. Já ressaltei anteriormente a postura do
cacique durante a negociação: embora tenha concordado com a forma de pagamento proposta
pelos proprietários, não esteve presente em reuniões externas, e pouco se manifestou através
de documentos ou cartas. Parece ter se mantido a certa distância do assunto ao longo do
processo. Podemos especular que a atuação mais contundente dos seus parentes próximos
refletiu sua própria posição, que ou não quis declarar explicitamente, ou não pôde assumir por

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conta das circunstâncias.
Outro elemento que faz parte dessa história, cuja atuação não está registrada
nos autos, deve ser também mencionado: o conselho comunitário Fulni-ô. Em meu trabalho
de campo, pude entrevistar dois dos seus representantes. Em seus depoimentos, eles
descrevem sua participação na dinâmica de apresentação, aprovação, encaminhamento e

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execução dos projetos oriundos dos recursos da Chesf. Dizem que foram convidados para
formar o conselho apenas quando a negociação estava encerrada e os recursos garantidos.
Declaram que inicialmente não estava claro qual seria o papel do Conselho. Tinham como
referência apenas o Conselho Local de Saúde Indígena, no qual um desse conselheiros já
trabalhava. Este é um conselho que tem o fim de discutir problemas, possíveis soluções e
encaminhamentos a serem feitos ao conselho distrital de saúde indígena do DSEI-Pernambuco
(Distrito Sanitário Especial Indígena de Pernambuco). Quando alguns de seus membros

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perguntaram se “teriam prejuízo”, tiveram a resposta negativa. Também segundo eles, não foi
prometido, inicialmente, nenhum repasse financeiro a eles. Quanto aos critérios utilizados
para a escolha dos membros do conselho, indicam que isso tem a ver com seu papel de
lideranças, mas não há clareza sobre quantas são, como são escolhidas e quem cada uma
dessas lideranças representa.
De todo modo, segundo estes dois, suas expectativas de ajudar a comunidade
foram logo frustradas. Dizem que eram procurados às pressas, por vezes à noite, nas vésperas
das viagens dos representantes da Associação a Recife, quando eram levados os projetos à
Funai. Segundo eles, o conselho não se reunia para deliberar sobre os projetos; em verdade,
suas assinaturas eram buscadas de uma a uma, em suas casas. Ambos declararam nunca ter
lido um projeto sequer para qualquer tipo de avaliação.
Segundo tais representantes, a repetição dessa dinâmica, com o tempo, os fez
questionar o objetivo do cargo que ocupavam. Não deveriam contribuir de alguma maneira?
Quando fizeram uma proposta de um projeto comunitário, escutaram a resposta de que não
deveriam propor projetos ou opinar sobre os recursos, já que teriam sido convidados para
“serem beneficiados sem ninguém falar”. Quando perguntei que tipo de benefício seria esse,
disseram que eram benefícios financeiros. De acordo com estes dois conselheiros, o conselho
“não era valorizado”, e eles desconheciam inicialmente que o conselho tinha a prerrogativa,
de acordo com co TAC, de sugerir mudanças e desaprovar os projetos.
Contudo, com o tempo, percebendo que teriam voz, estes membros do
conselho passaram a acompanhar os representantes da Associação nas viagens a Recife, para
estarem a par de todas as etapas da dinâmica dos projetos. Um deles diz que Eduardo tinha
nessas ocasiões conversas particulares com a então administradora da Funai em Recife, Estela
Parnes, antes de receber os conselheiros – para eles, levantando suspeitas de algum tipo de
“combinação” prévia entre os dois.
Nesse ponto, os autos e a narrativa dos conselheiros convergem: apesar das
denúncias e acusações, os projetos relativos aos recursos destinados aos proprietários,
segundo a área de cada um, são todos propostos, aprovados e pagos.
Convém aqui fazer algumas ressalvas: não consta, nos autos, nenhum registro
dos relatórios trimestrais para cada projeto que deveriam ser elaborados pela Comissão da
Funai, descrevendo sua execução e andamento, além ser instruídos “com fotos, cópias de

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documentos, planilhas”, etc., segundo o item 5.3 do TAC, e enviados ao MPF até 10 dias
depois de elaboradas (item 5.7). Há apenas o já citado relatório sobre os projetos realizados
até então (do nº 1 ao nº 20), cuja elaboração deveu-se por conta de reunião realizada em
função das denúncias contra Eduardo, e não como cumprimento dos termos do TAC. Depois
desse, não há registro de nenhum acompanhamento por parte da Funai do andamento e
execução dos projetos.

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Outra ressalva que deve ser feita é a de que foram enviados ao MPF os projetos
até o nº 66, com o parecer favorável do conselho, como determina o item 5.6 do TAC.
Contudo, identificamos dois problemas aqui: embora os projetos 21 a 66 tenham sido
recebidos e tenham sido extraídas cópias dos originais, elas não foram juntadas aos autos.
Consta apenas à fl. 674-675 que tais cópias foram “acauteladas à maneira dos originais”, sem
indicação de onde estariam. Não se sabe onde estão as cópias atualmente.
Outro problema correlato é que se sabe que outros projetos foram realizados
depois do nº 66, mas não se sabe quantos, e nem consta nos autos o envio de cópias desses
projetos subsequentes ao MPF. Eduardo apresentou-me recentemente cópias de alguns
projetos, entre os quais o de maior numeração é o nº 73. Mas não há informação confiável de
quantos projetos foram realizados no total, muito menos se foram prestadas contas desses
projetos.
Retomando a narrativa: aprovados e executados os projetos para os
proprietários, chegava a hora de propor e executar os projetos para a comunidade. Percebemos
que, nessa seara, embora tenha havido propostas assim desde o início, nunca houve consenso
sobre todas elas – talvez porque não se sabia a quantia exata que seria destinada à
comunidade, ou porque não se sabia qual seria o custo final de cada propostas, ou por haver
divergências na comunidade. O fato é que, se num primeiro momento foram propostos
R$995.195,00 para a comunidade, somando os valores relativos às áreas da Fazenda Peró (no
total, R$447.246,00) e à área do Ouricuri (R$547.949,00), em uma reunião ocorrida em
janeiro de 2008, em Águas Belas, com a participação de Estela Parnes, Eduardo, chefe do
Posto Indígena e cacique e pajé Fulni-ô (fl. 490), para decidir como seria aplicado o montante
dos recursos destinado à comunidade Fulni-ô, a proposta já havia mudado. De acordo com os
informantes, já havia sido definido que, do dinheiro destinado à comunidade, metade seria
gerido pelo cacique e a outra metade pelo pajé. A parcela do pajé seria destinada
preferencialmente para benfeitorias na área do Ouricuri, enquanto a do cacique tinha como
objetivo maior promover melhorias no espaço da aldeia urbana. Na reunião aqui referida, já

42
estabeleceu-se, em primeiro lugar, que dos recursos destinados “ao Ouricuri/comunidade”
uma parcela total de R$30 mil seria utilizada para liberação do lote para construção da escola
indígena. Depois, faz-se referência a um montante de R$523.100,00, sem que se especifique
se desse valor já foi descontada essa parcela ou não. De todo modo, desse valor seria abatido
mais uma quantia para construção do galpão do Ouricuri, e outra para “material de uso do

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Ouricuri”. O restante seria dividido meio a meio entre as duas maiores lideranças, sendo que o
pajé utilizaria sua metade para “despesas exclusivas do Ouricuri”, enquanto o cacique propõe
para sua metade alguns projetos comunitários, quais sejam: “1. Hospital; 2. reforma e
construção de casas; 3. saneamento básico e calçamento da aldeia; 4. tirar o box do meio da
aldeia; 5. ginásio de esportes.”
Conforme alguns informantes indígenas, o pajé teria assumido uma disposição
maior de ter controle direto sobre sua metade do que o cacique, que teria mantido a postura

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algo distante, sem agir ativamente para ter poder sobre a cota sob sua responsabilidade. De
fato, vários dos últimos projetos apresentados estão em nome do pajé, e supostamente seriam
aqueles referentes aos recursos destinados à comunidade.
Segundo os informantes, esses recursos (não discrimino aqui as partes sob
responsabilidade de cada um) foram sendo rapidamente consumidos. Com eles, segundo
relatado, pagou-se pelo terreno para construção de uma nova unidade escolar, como já referido
(embora este lote supostamente fizesse parte do patrimônio da aldeia), pagou-se para retirar
um box que havia no meio da aldeia urbana (como estava nos planos do cacique), comprou-se
carne para distribuição às famílias durante o Ouricuri, foram compradas e distribuídas cestas
básicas e material de construção, e financiadas reformas e construção de novas casas. Também
foi destinado aos conselheiros, e dois deles confirmam, 25 mil reais, oriundos dos recursos da
comunidade, em projetos de criação de gado.
Conforme os conselheiros, ainda utilizou-se da parcela da comunidade para
pagar por um erro na medição das terras dos proprietários: haviam pagado uma parcela a um
deles, e posteriormente verificou-se que o trecho de terra pertencia a outro. Como o valor já
havia pago e executado uma vez, recorreram ao montante da comunidade para pagar a parte
devida ao proprietário correto – ou seja, pagou-se duas vezes pela mesma área.
Vendo que o dinheiro estava perto de acabar, os conselheiros dizem que
pensaram em propor um projeto de compra de um caminhão tipo caçamba, para fazer
transporte de materiais e recolhimento de lixo dentro do Ouricuri e da aldeia. Ela seriam,
contam, para uso de toda a comunidade. O projeto foi apresentado, mas Eduardo
supostamente teriam apresentado um documento ao conselho, pelo qual o conselho reconhecia
a doação da caçamba para a associação. Estes membros do conselho, contudo, teriam se
recusado a assinar.
Eduardo conta uma história diferente: segundo ele, ficou acordado, desde o
início do processo (e conforme ele próprio declara à fl. 524), que ele receberia o valor de 5%
do total dos recursos pagos pela Chesf para, segundo o próprio, “administração do ACIPJPJ,
estes foram distribuídos com pessoas influentes da comunidade, através de projetos de
bovinocultura e com outras pessoas que contribuíram com o processo e também com o
trabalho para a associação”. Em outras ocasiões, também declarou que parte desse dinheiro
seria para uso pessoal. A caçamba, segundo ele, foi registrada em nome da Associação apenas

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para fins burocráticos, já que ela teria sido adquirida para si, como parte da parcela que lhe
cabia. Em carta enviada em maio de 2008 (fl. 545) Eduardo ainda mencionaria a caçamba,
dizendo que “repasso também a caçamba para a Funai, para que não venha a acontecer o que
já aconteceu com outros veículos destinados a comunidade”. Justo ou não, cabe lembrar,
contudo, que no seu item 9.2 o TAC declara que “é vedado aos dirigentes da Associação o
recebimento de comissão ou outro benefício dos fornecedores e contratados”.
O último e polêmico projeto apresentado para benefício comunitário, que seria

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o maior e mais duradouro deles, foi o projeto de construção da quadra poliesportiva. Este já
constava na lista de propostas apresentadas na reunião entre cacique, pajé e Funai, e seria a
última chance de executar um projeto com os recursos disponíveis. Segundo Eduardo,
contudo, em diálogo com o prefeito do município, este se dispôs, em um acordo informal, a
investir na obra, o que possibilitou aumentar o projeto, fazendo uma quadra maior do que a
originalmente prevista. Entretanto, o prefeito terminou por não honrar o acordo, e o projeto
terminaria inacabado, como ainda está até hoje.
Assim, percebe-se que boa parte do dinheiro da parcela reservada à
comunidade destinou-se a fins assistencialistas ou a suprir necessidades imediatas. A única
obra concluída e que pode-se dizer que beneficiou a comunidade coletivamente foi a
“compra” do terreno onde foi construída a escola – e ainda assim controversa, pois
supostamente esse terreno faz parte do patrimônio da aldeia. Tal situação gerou uma
percepção generalizada de que houve apropriação indevida ou desvio dos recursos destinados
à comunidade, percepção que ainda perdura.
Para esclarecer se houve, de fato, mau uso dos recursos pagos pela Chesf, o
Procurador da República na PRM-Garanhuns solicita, às fls. 566-567 dos autos, que técnicos
da Procuradoria Regional da República da 5a Região analisem e apresentem estudo minucioso
dos gastos, a partir da documentação disponível, e destaquem, em especial: “a) a possível
discrepância da prestação de contas em cotejo com a movimentação bancária; b) se os
documentos apresentados pelo mesmo indígena são satisfatórios para provar a utilização dos
recursos nos fins que ele sustenta ter efetuado”.
Em resposta, são apresentados dois Pareceres Técnicos, nº 18 e nº 20 – o
primeiro analisando os 20 primeiros projetos encaminhados, e o segundo os projetos 21 a 66,
respectivamente às fls.611-631 e às fls. 585-606.
Ambos chegam a conclusões muito parecidas – lembrando que baseiam-se
apenas na documentação acostada aos autos e nos projetos encaminhados. O primeiro parecer

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chama atenção para a cláusula do TAC que estabelece que “os recursos da indenização
devem ser utilizados em benefício exclusivo da comunidade indígena Fulni-ô, em projetos
e ações que beneficiem a comunidade, indivíduos e famílias, preferencialmente para sua
auto-sustentação econômica e de maneira coletiva” (grifos no original). Cita também a
reunião em que foi definido um rateio na aplicação da indenização, sendo pouco mais de 500

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mil por restrição ao uso da terra, que seria destinado aos proprietários, e quase 2,5 milhões
pelos demais danos, “cuja aplicação é caráter coletivo”. E conclui:
houve concentração maior de recursos para 41,6% das famílias beneficiadas (…)
esses parâmetros revelam a desigualdade na distribuição ou alocação dos recursos
(…) constata-se que não houve eficácia na alocação dos recursos, pois o sr. Eduardo
João dos Santos Neto investiu 36,73% dos recursos disponíveis para beneficiar
11,73% das famílias existentes na comunidade indígena

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O segundo faz declarações semelhantes: nota a distribuição desproporcional de
recursos, a aplicação de 38% dos recursos para beneficiar 23% das famílias, de 11,13% dos
recursos em projetos de natureza assistencial, além do fato que ¾ da indenização foi aplicada
na aquisição de bovinos, para apenas 1/3 das famílias, restando apenas 8% do total para ser
aplicado em projeto de natureza econômica, que alcance cerca de 2/3 das famílias excluídas. E
conclui: “diante desse quadro, constata-se que a indenização não foi utilizada para benefício
geral da comunidade, de forma justa ou equânime, pois a aplicação dos recursos, a cargo do
presidente da associação comunitária indígena, inviabilizou a auto-sustentação econômica das
famílias indígenas de maneira coletiva” (fl. 590).
Não obstante, ambos afirmam que, de acordo com a documentação analisada,
confrontando-se a movimentação bancária com as prestações de conta apresentadas, verificou-
se que há correspondência entre as despesas pagas e os valores dos cheques debitados, e que a
documentação atesta a regularidade dos pagamentos.
Alguns pontos que precisam ser notados: a) os pareceres não responderam
diretamente à pergunta sobre se a documentação apresentada é suficiente para comprovar a
utilização dos recursos nos fins alegados; b) não foram analisados todos os projetos, já que o
MPF não chegou a recebê-los em sua integralidade; c) não houve análises ou estudos in loco
pelos peritos ou pela Funai, a partir do projeto nº 21, o que faz com que seja impossível
atestar se os projetos foram realmente executados como descritos; d) vários indígenas alegam
que muitos dos projetos não eram executados, mas seu valor correspondente pagos
diretamente em dinheiro ao beneficiário.
É preciso elaborar melhor este último ponto. Embora a Funai tenha verificado a
execução dos 20 primeiros projetos, os demais foi alvo de qualquer tipo de levantamento,
estudo ou acompanhamento presencial. Eduardo, por sua vez, diz que cumpriu sua parte:
pagava os cheques aos fornecedores, e daí em diante não tinha mais responsabilidade. O fato é
que essa narrativa, de projetos que só existem no papel, é bastante comum entre os Fulni-ô:
dizem que vários outros, como os da Compesa (pagos pela Funai à Associação criada para
gerir estes recursos), nunca chegaram a ser executados, já que seriam emitidas notas frias, de
serviços não prestados e itens não vendidos, e o fornecedor receberia uma parcela em troca.
Ainda dizem que tais projetos são quase sempre de compra de itens de consumo rápido ou

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bens que se podem desfazer facilmente, o que os tornam difíceis de serem verificados
posteriormente, justamente para fugir de qualquer fiscalização.
Foi possível entender, portanto, os vários problemas que surgiram na etapa
posterior à assinatura do TAC, que provocaram desentendimentos, atritos e acusações que
produzem efeitos ainda hoje, dez anos depois.
Percebo que ao menos parte desses problemas podem ser atribuídos a um

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conjunto de equívocos cometidos pelas partes envolvidas, além de omissões e expectativas
não cumpridas. Alguns deles são:
a) parece não ter havido clareza, na conclusão da negociação, sobre qual forma
de distribuição dos recursos havia, afinal, prevalecido: de um lado, os indígenas Fulni-ô que
estavam à frente da negociação sempre pleitearam a divisão dos recursos de acordo com a área
atingida, o que levaria a um montante significativamente maior aos proprietários. A Funai
reforçaria este entendimento ao encaminhar, logo no início do processo de negociação,
documento que discriminava a área de influência das linhas de transmissão discriminadas por
propriedade. Em reunião posterior, com a presença da Funai local, Funai-Recife, membros da
comunidade, proprietários, cacique e pajé, concordou-se com os valores a serem destinados a
cada um, seguindo o mesmo critério. Por fim, em seu relatório que contrapôs o cálculo de
valoração econômica da Chesf pelos danos causados na área indígena, o técnico da Funai
apresentou um quadro com os valores proporcionais à área de cada lote. Um representante do
cacique e o pajé também se manifestaram favoráveis a tal modelo em reunião posterior. O
Procurador da República que atuava durante a assinatura do TAC, por outro lado, entendeu
que a maior parte do montante – cerca de R$2,5 milhões – tinha caráter nitidamente coletivo,
e como tal deveria ser revertido em favor da comunidade. Tal entendimento constou no TAC,
em especial quando afirma, no item 4.1, que os recursos devem ser utilizados
“preferencialmente para sua auto-sustentação econômica e de maneira coletiva”. A
divergência entre a expectativa criada pelos indígenas, e em especial os proprietários, e o que
ficou enfim estabelecido no TAC, pode ter sido responsável por insuflar uma indisposição
entre um grupo que desejava a aplicação literal dos termos do acordo, com projetos em
benefício da comunidade, e outro, que esperava a distribuição estritamente de acordo com as
áreas afetadas. Quando boa parte da comunidade viu que a Associação, presidida por um
proprietário, acabou distribuindo a maior parte dos recursos a estes, e viu sua parcela ser
aplicada em projetos que não tiveram resultado duradouro, a frustração foi grande, instigando
desconfianças e a troca de acusações.

46
b) o modelo proposto, de que os projetos deveriam ser propostos pela
associação, julgados por um conselho local, para então ser encaminhados a uma comissão da
Funai, claramente foi fracassado – e me refiro aqui tanto a esta dinâmica quanto aos efeitos
dos projetos. Logo de início é preciso notar que a elaboração de projetos necessita de um
assessoramento técnico, pessoas com expertise que podem avaliar quais podem trazer os

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efeitos desejados (neste caso, segundo o TAC, a auto-sustentação econômica) de acordo com
as características, potencialidades, especificidades e necessidades locais. Tal elaboração
necessita também de intensa participação dos envolvidos, e de algum acompanhamento e
orientações ao longo de sua execução.
No caso em tela, porém, vimos que alguma avaliação técnica só ocorria com o
projeto já pronto, pela comissão da Funai. Ainda assim, mesmo que sua atribuição fosse
avaliar a viabilidade técnica e financeira dos projetos, não há notícias de que algum projeto

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tenha sido alterado ou rejeitado em função destas avaliações; tudo ocorreu como se fossem
todos aprovados via de regra. O mesmo ocorreu com o conselho comunitário: como vimos,
todos os projetos eram aprovados, sem deliberações ou qualquer tipo de avaliação.
Não à toa, a imensa maioria dos projetos foi para criação de gado, além da
compra de insumos agrícolas. Tais projetos sofrem ainda hoje críticas dos próprios indígenas
que foram seus beneficiários, declarando que não possuíam os meios para criar gado –
agravado pela estiagem que com frequência assola a região, afetando a disponibilidade de
pasto, por exemplo – e nem o hábito de bovinocultura. Assim, aos poucos o gado adquirido
foi sendo vendido ou morreu com a falta de alimento, restando hoje poucos indígenas que se
sustentam com os frutos desses projetos.
Muitos outros projetos eram de assistência imediata, como construção e
reforma de casas e compra de alimentos. Embora não se possa negar a importância que
tiveram para as famílias que se beneficiaram, estiveram bem distantes de cumprir a meta de
garantir a auto-sustentação econômica, atendendo mais a necessidades momentâneas que não
produzem efeitos em longo prazo.
Como já notamos, a quadra poliesportiva não foi concluída, e, além da
construção da nova escola, os demais não tiveram maiores impactos na comunidade Fulni-ô,
que se viu desassistida.
Tais problemas poderiam ser mitigados ou talvez não existissem se tais projetos
se originassem de uma avaliação técnica e em conjunto com a comunidade, e contando com
acompanhamento ao longo de sua execução, para que pudessem ser propostos ajustes e
melhorias nos projetos seguintes. Sem qualquer tipo de assistência, a maior parte dos projetos
foi fadada ao fracasso.
c) Acredito ter havido um problema para que todas as partes ficassem cientes
de suas obrigações a partir da assinatura do TAC. Membros do conselho comunitário
declararam que não sabiam exatamente qual seria sua função, além de não ter mecanismos ou
conhecimento para avaliá-los ou sugerir mudanças, e assim não chegaram a avaliar de fato
projeto algum. Também não houve encaminhamento pela Funai dos relatórios trimestrais que
descrevessem a execução e andamento dos projetos – e nem foi cobrada por isso. A Funai
também não encaminhou a totalidade dos projetos ao MPF, e não há informações sobre o

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destino final dos recursos pagos. A Associação também parece ter tido muitas dúvidas e
problemas na proposição dos projetos e prestação de contas, sem saber ao certo para quem e
como tinha que encaminhar os projetos (se para a Funai ou o MPF), porque novos projetos
não estavam sendo deliberados e quais falhas ou omissões constavam nas prestações. Parece
ter havido uma desinformação geral, enquanto boa parte da comunidade indígena não estava a
par dos acontecimentos.
d) Por fim, parece-me que a fiscalização foi falha, sem a apresentação dos já

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citados relatórios trimestrais da Funai, além da ausência de um acompanhamento próximo dos
projetos, como foi determinado pelo item 5.2 do TAC. Não há também um balanço final, com
a devida prestação de contas dos projetos na íntegra e a devida análise. Tudo isso estimulou
uma percepção bastante disseminada na comunidade, mais de dez anos depois da assinatura
do TAC, de que houve apropriação indevida dos recursos pagos pela Chesf por alguns dos
beneficiários.

2.3 Renovação do TAC: a situação atual

Apresentado todo o processo de negociação entre os Fulni-ô e a Chesf, além da


execução dos recursos através de projetos e seus efeitos, passo agora à descrição da presente
situação, centrada na atuação de membros da comunidade Fulni-ô na renovação do TAC.
Apresento as circunstâncias e os principais fatos recentes, assim como os grupos e indivíduos
envolvidos, suas intenções, argumentos e posições.
No primeiro semestre de 2015, Eduardo, assim como os demais proprietários,
procuraram esta PRM-Garanhuns, declarando que, devido à proximidade do fim da vigência
do TAC anterior – 31 de dezembro daquele ano – queriam que fossem iniciadas as tratativas
para sua renovação, com indicação de algumas mudanças com relação ao anterior.
No mesmo período, contudo, foi juntada uma carta ao Procedimento
Administrativo 1.26.005.000007/2015-12 (fls. 62-63), que não tem assinaturas, mas ao fim da
qual consta “comunidade indígena Fulni-ô”. Nela são reproduzidas algumas das mesmas
denúncias já veiculadas anteriormente: questiona-se as
disparidades e proporcionalidades destinadas na comunidade indígena

48
Fulni-ô na sua maioria e à um grupo privilegiado de 17 pessoas que
recebem a maior parte dos recursos de indenizações, como se tratasse
de uma propriedade particular, sendo a terra indígena uma área
coletiva a que todos os índios tem direitos hereditários.
Também dizem que nada foi feito em benefício da comunidade, e pedem ajuda

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do MPF para investigar o que declaram ser desvios desses recursos.
Em julho de 2016, um grupo de indígenas também encaminha às 23 a Vara
Federal de Garanhuns um documento intitulado “Manifesto de membros jovens da
comunidade indígena Fulni-ô”, no qual, em texto similar, narram o seu descontentamento com
o processo de negociação da Chesf com a comunidade Fulni-ô, requerendo a intervenção do
Juiz Federal, declarando que um grupo que se autodenomina “proprietários da faixa de terra”

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reivindica o direto sobre os recursos financeiros, “ignorando firmemente o direito coletivo, da
comunidade, previsto na legislação em vigor” (anexo 2).
Vê-se assim que, mesmo transcorrido alguns anos, as mesmas questões se
perpetuaram.
Depois de algumas tentativas frustradas de reunião pelos proprietários,
chegamos a janeiro de 2016, em que o TAC anterior já perdeu sua vigência. Começa então um
período mais intenso de negociação, em que tanto proprietários quanto pajé, cacique,
coordenador da CTL e novos atores começam a se pronunciar com mais frequência.
Há então uma manifestação do atual pajé, Gildiere, na qual diz que não quer
receber dinheiro, mas quer aplicar, de acordo com o plano que apresenta, a parcela que lhe
couber. Afirma também que a indenização é dividida em três partes: proprietários (com quase
20 famílias), Fazenda Peró (com mais de 170 famílias), e comunidade. Reafirma que os Fulni-
ô têm sua organização interna e seus próprios costumes, e que “quem não respeita não dá para
viver em nossa comunidade”.
Sugere também um plano de aplicação para os recursos da comunidade, no qual
consta: uma barragem com encanação de ferro; uma creche; continuação do ginásio de
esportes; e outros, “se der”. E lembra ainda que a Chesf “recebeu índios sem representação”
na comunidade.
Em Termo de Declarações às fls. 119-122, os proprietários reiteram esta última
afirmação do pajé, ao dizerem que os representantes da comunidade são somente cacique e
pajé. Acrescentam ainda que o coordenador da CTL de Águas Belas representa apenas a
Funai, e não a comunidade. Ainda assim, alguns representantes do coordenador, em reunião
com a Chesf, teriam apresentado documento assinado por ele, em que se apresenta como
representante legítimo para esta negociação, e no qual dizia que os proprietários não teriam
direito a indenização. Por fim, os proprietários dizem que essas pessoas também teriam
ameaçado atear fogo nas torres. A partir daí, a Chesf declarou que só continuaria a discutir o
tema com a presença do MPF.
Solicitam então ao MPF a convocação de reunião com todas as partes citadas,
além de apresentar declarações assinadas por cacique e pajé, em que reconhecem a
propriedade dos lotes por onde passam as linhas da Chesf – sem mencionar, contudo, a
indenização.

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Pouco depois, os mesmos proprietários afirmam que um indígena chamado
José Araújo (conhecido como Dedo) teria feito ameaças de atear fogo às torres da Chesf, e
negam qualquer tipo de relação com ele, além de temer que tais ameaças impeçam a
continuidade das negociações.
Essas declarações revelam que, ao contrário da primeira negociação, cujo pleito
apresentado pelos proprietários não contou com oposição clara e manifesta por nenhum grupo

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da comunidade, esta já se iniciava com dois grupos Fulni-ô com ideias opostas. Os
proprietários mencionam o coordenador local da Funai como alguém que os teria contestado,
e que não falava em nome da Funai. O coordenador então não era Marco Antônio, filho do
cacique, já citado anteriormente como o representante mais destacado de setores da
comunidade contrários a Eduardo e à Associação, que passou a se manifestar publicamente
quando os recursos começaram a ser pagos.
De fato, Marco Antônio parece ter, ao menos em um primeiro momento,
assumido novamente o papel de porta-voz (ou mobilizador) de indígenas descontentes com o
formato anterior de pagamento e execução dos recursos oriundos da indenização da Chesf.
Talvez aproveitando-se da posição estratégica de poder que o cargo lhe concedeu, ele esteve
entre os indígenas que se reuniram com a Chesf neste início de 2016.
Também está registrada nos autos a ata de uma reunião entre Marco Antônio e
um “grupo de indígenas” com o então coordenador regional da Funai em Paulo Afonso/BA,
Carlos Roberto, para tratar da indenização da Chesf. Dizendo representar toda a comunidade,
eles dizem que “vieram buscar uma forma de contemplar com a indenização todos os
moradores da comunidade, e não apenas a um grupo que se d2wiz proprietário das terras por
onde passam as torres de energia”.
Na sequência, à fl. 158, chega um ofício a esta Procuradoria, no qual indígenas
Fulni-ô, declarando representar mais de 450 famílias, afirmam que não querem que a
Associação Pajé Julião Pereira Júnior os represente diante da Chesf, Funai e MPF, que “80%
da comunidade não foi contemplada” anteriormente, e que querem que agora toda a
comunidade receba “valores iguais em projetos comunitários como por exemplo: bolsa
família, levamos até nosso cacique e o mesmo nos disse que se era para o bem da comunidade
indígena Fulni-ô estaria de acordo”.
A Chesf também se expressa sobre esse quadro, atestando a existência de
demandas divergentes e confirmando as informações trazidas pelos indígenas. Em e-mail

50
enviado em fevereiro, às fls. 164-164v diz que foi procurada por “grupos representativos da
comunidade Fulni-ô, com vistas a negociação de nova indenização”. Mas declara que “há
dissenso entre dois grupos: os auto-intitulados proprietários, e os representantes da
comunidade, que dizem que foram prejudicados na distribuição dos recursos na ocasião
anterior”.

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Afirma ainda que “há indícios que os recursos foram repassados diretamente
aos índios, ao contrário do que se previa no TAC”, e que isso “gerou conflitos internos que
estão dificultando a negociação”. Ademais, cacique e pajé estariam em campos opostos, um se
alinhando aos interesses dos “representantes da comunidade”, enquanto o outro se alinharia
aos dos proprietários. Por fim, declara que “a participação do MPF é imprescindível em uma
reunião que deseja marcar em Garanhuns com os grupos interessados”.

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A fim de compreender melhor este quadro descrito acima, já no contexto de
uma nova negociação com a Chesf – alguns anos depois que a primeira experiência foi
finalizada, e seus efeitos em curto e médio prazo foram sentidos –, cabe discorrer um pouco
mais sobre quem são, o que intencionam, o que argumentam e o que propõem os diversos
grupos, indivíduos e lideranças da comunidade que têm se manifestado ao longo desse
processo. Para fazê-lo esquematicamente, divido a apresentação a seguir em tópicos.

a) os auto-intitulados “representantes das seiscentas famílias”

Na falta de um nome melhor, utilizo aqui a denominação que os próprios


assumiram para si recentemente – para tornar a leitura mais fluida, utilizo a expressão sem
aspas, embora seja empregada somente pelos próprios.
Aparentemente começaram a se mobilizar em reação à movimentação dos
proprietários para a renovação do TAC, ainda em 2015, nos meses anteriores ao fim de sua
vigência. Essa movimentação coincidiu com a gestão de Marco Antônio como coordenador da
CTL-Águas Belas, para o qual foi nomeado em junho de 20159.
Não há como negar que, ao menos desde o início do pagamento da indenização
da Chesf, em 2007, vários indígenas se mostraram insatisfeitos com o modelo de repasse e
distribuição de recursos proposto, e se manifestaram através das reuniões e de envio de
ofícios. Alguns fatores podem ter insuflado uma insatisfação ainda maior de parte dos Fulni-ô
quanto a este modelo, além de provavelmente convencer pessoas que foram indiferentes ou
que tinham opinião favorável a ele anteriormente a se engajar numa reação nesse novo
momento – como, por exemplo, o tempo transcorrido, a percepção cada vez mais clara de que

9 Página 40 da Seção 2 do Diário Oficial da União (DOU) de 12 de Junho de 2015, acessado através do
endereço https://www.jusbrasil.com.br/diarios/93784124/dou-secao-2-12-06-2015-pg-40, em 10/7/2017.
houve pouquíssimos benefícios coletivos, somados às suspeitas e acusações que sempre
rondaram os pagamentos desses recursos, além de outros conflitos e divergências que podem
ter surgido no período.
De toda maneira, Marco Antônio teve presença ativa no coro dos descontentes
nas duas ocasiões. Desta vez, talvez se valendo de sua posição como coordenador da Funai

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local (além de ser, como já notamos, filho do cacique), o que lhe conferia certo poder, e
sabendo do sentimento de insatisfação de boa parte da comunidade, ele esteve à frente do
início da mobilização em oposição aos proprietários. Reuniu-se, acompanhado de um grupo
de indígenas (não nomeados nos autos), com a Chesf e a Coordenação Regional da Funai em
Paulo Afonso, ocasiões em que teriam afirmado que representam “toda” ou boa parte da
comunidade, e que desejavam uma outra forma de pagamento dos recursos.

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Além dessas iniciativas de Marco Antônio, um grupo de indígenas começa a se
manifestar no mesmo sentido, enviando ofícios, abaixo-assinados e encaminhamento
reivindicações bastante similares. Não fica claro se sua atuação é coordenada com a de Marco
Antônio, ou se são independentes. Embora seja um grupo pequeno, com menos de dez
indígenas, eles declaram, num ofício já citado, representar “mais de 450 famílias”, e fazem
sugestões de projetos comunitários.
Esse pequeno grupo começa a se tornar bastante ativo na busca de atendimento
às suas reivindicações, realizando diversas representações nesta PRM e participando de várias
reuniões sobre o tema ocorridas daí em diante.
Mais importante, eles encaminham, em abril de 2016, quando a nova
negociação já começava a se desenhar, uma proposta de valor de pagamento à comunidade,
“como uma recompensa e não como indenização”. Anexa à proposta, há várias páginas em
cujo cabeçalho há um “termo de exigência”, no qual reclamam o “direito de participação das
devidas negociações para que não haja mais injustiça no sentido de cada família ser
contemplada dentro do seu direito dentro do processo indenizatório” (fls. 240-249). Em todas
elas, há uma relação de várias assinaturas – por volta de seiscentas, segundo eles. Desse
documento originou-se o nome “representantes das seiscentas famílias”, que passou a ser
utilizados por eles posteriormente.
Antes de comentar mais a fundo esse documento, que foi alvo de controvérsias,
volta a falar de Marco Antônio brevemente. Depois das duas reuniões supracitadas, há nos
autos apenas o registro da participação dele em reunião ocorrida em abril nesta unidade
ministerial, quando trouxe uma manifestação por escrito de seu pai. Naquele mesmo mês, ele
seria exonerado do seu cargo10. Segundo ele próprio conta, sua saída se deveu a pressões
exercidas por determinados membros da comunidade indígena, por motivos que considera

10 Página 34 da Seção 2 do Diário Oficial da União (DOU) de 28 de Abril de 2016, acessado através do
endereço https://www.jusbrasil.com.br/diarios/114200851/dou-secao-2-28-04-2016-pg-34, em 10/7/17.

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injustos. Depois disso, afirma, preferiu se afastar das negociações.
Com o tempo, o grupo que se apresenta como representante das seiscentas
famílias passou a ter uma participação cada vez maior na negociação, marcando presença em
reuniões e representando contra os proprietários – o que pode ser consequência do vazio
deixado pelo afastamento de Marco Antônio, embora esse possa ter continuado a agir nos

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bastidores, como afirmam os proprietários.
Esses afirmam também que houve fraude e má-fé na coleta das assinaturas do
documento supracitado, declarando que ali constariam nomes de crianças e assinaturas falsas.
Também dizem – o que foi confirmado por outros indígenas – que para obter tais assinaturas
fizeram várias promessas falsas ou que não tinham como garantir seu cumprimento, como a
distribuição de cartões para o pagamento de valores mensais às famílias indígenas que

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estiverem em sua posse – uma espécie de bolsa família. De fato, no documento citado à
página 49, supostamente enviado pela “comunidade Fulni-ô”, há a reivindicação que a
comunidade receba “valores iguais em projetos comunitários como por exemplo: bolsa
família (…)”. Não se sabe como foi a coleta de assinaturas nem os argumentos utilizados para
convencer os membros da comunidade a aderir ao abaixo-assinado, tampouco se eles tinham
conhecimento do contexto em que tal documento estava sendo produzido e das negociações
em curso. Mas não é difícil imaginar que não era necessário grande esforço para que muitos
apoiassem essa iniciativa, independente do grau de informação que tinham, dadas as
desigualdades já apontadas e o quadro de estiagem que vigorava há anos na região – afinal, se
as promessas fossem cumpridas, garantiriam uma renda mensal por algum tempo. De toda
maneira, grande parte das famílias indígenas podem de fato apoiar estas reivindicações não
apenas pelo ganho financeiro que poderiam ter, mas acreditar que é o mais justo a se fazer, e
por se sentirem representadas por eles.
Tenho chamado tais indígenas de “grupo”, mas é preciso notar que eles não são
um grupo propriamente organizado, com hierarquia, cargos estabelecidos ou formas
sistematizadas de tomar decisão – quanto menos algum tipo de organização formal. Segundo
os próprios, são indivíduos que resolveram tomar a frente, assumindo a responsabilidade de
falar em nome de boa parte da comunidade para que os benefícios conquistados a partir do
acordo com a Chesf sejam para usufruto majoritariamente coletivo, corrigindo o que veem
como injustiça e apropriação indevida pelos proprietários na negociação anterior. Não foram
identificados traços ou características específicas que justifiquem porquê estes indivíduos em
específico tenham buscado assumir esse papel.
Ainda assim, é possível organizar suas posições e propostas em alguns pontos
gerais, que listo a seguir:
1 – há unanimidade entre eles de que o pagamento dos recursos da Chesf no
primeiro TAC, em primeiro lugar, deveria ter sido distribuído de forma que a comunidade
fosse contemplada com uma maior parcela ou a totalidade dos recursos, discordando do
modelo executado – que, de toda maneira distanciava-se também do estabelecido nos itens do
acordo;
2 – também são unânimes ao dizer que a maior parte dos recursos foi paga em
dinheiro, e não em projetos, novamente contrariando o que foi estabelecido;
3 – afirmam que boa parte dos recursos, em especial o que deveria ter sido

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destinado à comunidade, foi indevidamente subtraído pela Associação, por vezes levantando
suspeitas também sobre a Funai;
4 – declaram que a área do Ouricuri afetada pelas torres é muito maior do que a
considerada nos estudos apresentados. Duas causas possíveis para o equívoco são aventadas
por eles: a primeira, uma falha na contabilização de torres e linhas de transmissão presentes na
área indígena como um todo e especificamente na área do Ouricuri; a segunda é a alegada

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apropriação, por proprietários dos lotes vizinhos aos lotes do Ouricuri, de terras pertencentes a
esta reserva, de caráter coletivo. Eles teriam, ao longo do tempo, gradativamente avançado
sobre esta área, mudando suas cercas de lugar, até que grandes trechos que antes pertenciam
ao Ouricuri estivessem em sua posse. Eu me estenderei um pouco sobre essa alegação na parte
final do presente parecer.
5 – por fim, alegam que a área da Fazenda Peró, contígua à Terra Indígena e
adquirida pela Funai em 2000, após retomada promovida por um grupo Fulni-ô, deveria ser
incluída na parcela da indenização destinada à comunidade, já que teria destinada para seu
usufruto pelo órgão indigenista (trato desse ponto com mais detalhes no próximo item).
Os proprietários, naturalmente, rebatem e contestam todos estes pontos. Eles
declaram que a divisão dos recursos foi feita de acordo com a organização social e territorial
específica dos Fulni-ô, pela qual a Terra Indígena está dividida em lotes (em sua maioria
privados, exceto as áreas do Ouricuri e do Patrimônio da Aldeia), e que qualquer benefício ou
recurso referentes a tais lotes devem ser encaminhado aos seus proprietários legítimos.
Mencionam sempre, como exemplos, o pagamento de benefícios de outras fontes (como
Compesa e Celpe) e dos chãos de casa nos mesmos moldes, com o recebimento exclusivo
pelos proprietários. Dizem que os projetos foram executados como deveriam. Eduardo sempre
nega veementemente que tenha recebido ou repassado qualquer valor em dinheiro, dizendo
que cumpriu com o estabelecido, e entregou os cheques em mãos a todos os fornecedores –
eximindo, naturalmente, de qualquer responsabilidade sobre os cheques depois que foram
entregues aos destinatários. Quanto à acusação de erro de cálculo da área da reserva do
Ouricuri atingida pelas torres, reafirmam que os estudos apresentados pela Funai estão
corretos. Já uma possível anexação gradual de áreas da reserva pelos proprietários vizinhos é
negada com convicção por estes. Afirmam que os limites dos lotes estão pacificados e
reconhecidos há tempos.
Dizem também que eles estariam atrapalhando as negociações, e os culpam

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pela demora em se chegar a uma solução. Seu objetivo seria, na realidade, ter controle sobre
os recursos. Acrescentam que alguns deles já receberam recursos para executar projetos
comunitários, que foram malsucedidos e julgados irregulares. Citam em especial o caso de
Elídio, que, segundo documentos apresentados, recebeu recursos do Programa Estadual de
Apoio ao Produtor Rural – PRORURAL, objetivando “reformar e equipar um prédio para

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instalar um laboratório fitoterápico e implantar uma horta com irrigação”. De fato, nos
mesmos documentos apresentados consta a decisão do Tribunal de Contas do Estado de
Pernambuco de julgar irregular a prestação de contas relativa ao projeto (anexos 3 e 4).
Cabe ainda tecer algumas palavras sobre a relação destes com as duas maiores
lideranças indígenas Fulni-ô, o cacique e o pajé. Esse último se concentra principalmente em
um ponto, no que é referendado pelos proprietários: reafirma que as os dois são as únicas
lideranças indígenas que têm legitimidade para falar em nome da comunidade, o que implica

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em dizer que tais representantes, na realidade, não podem legitimamente representá-la nem
falar em seu nome. Diz que podem falar apenas por si próprios, mas nunca pelos Fulni-ô.
Inclusive, pajé e proprietários acreditam que o fato de terem sido recebidos no MPF e terem
participado das reuniões de negociação do acordo com a Chesf fez com que eles sentissem
que têm uma voz e um poder que não teriam, já que “não seriam nada”. Embora entendam que
não se possa negar atendimento a eles, pensam que tal tratamento conferiu a eles um status
que não deveriam possuir.
Em resposta, por vezes membros desse grupo sugeriram que o cargo de pajé
talvez não fosse tão importante quanto o do cacique, e que este se imporia àquele, como se
coubesse a ele a palavra final. Contudo, não há guarida para tal afirmação na literatura sobre
os Fulni-ô, que descreve os dois cargos como hierarquicamente equivalentes (Ferreira, 2000:
48-49 e Schroder, 2003: 17-18). Provavelmente isso se deve ao fato de que eles encontram um
melhor diálogo com o cacique e sua família, especialmente com Marco Antônio, que esteve
presente em parte do tempo em que estive com eles durante minha visita à Terra Indígena.
O cacique, entretanto, a bem da verdade, não fez declarações a mim ou se
manifestou formalmente apoiando ou rejeitando explicitando este grupo ou suas demandas,
embora suas ideias sobre o assunto se aproximem de algumas aqui apresentadas (demonstro
isso mais adiante no texto).
Por fim, é preciso dizer que, apesar de concordarem entre si nos pontos listados
acima, quando se entra em detalhes o dissenso aparece no grupo. Dois em especial se
mostraram objeto de posições divergentes, e se sobrepõem: o tamanho da área do Ouricuri e o
destino dos recursos a serem pagos pela Chesf.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que, ainda que pleiteiem uma parcela maior
do pagamento à comunidade, alguns membros desse grupo dizem que “reconhecem os
direitos” dos proprietários. Com isso, aparentemente reconhecem que eles são de fato
proprietários de áreas atingidas, e devem ser compensados por isso. Mas aí vem aparece a
divergência: eles devem ser compensados com quanto? Qual critério deve ser utilizado para
definir quanto destinar a cada parte? Para um deles, o problema está unicamente no tamanho
da reserva do Ouricuri considerada, que estaria subdimensionada. Se for levado em conta o
seu real tamanho, o pagamento poderia ser de acordo com a área atingida de cada lote, o que
possivelmente ainda ensejaria um valor considerável para os proprietários. Para outro,

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contudo, não é possível aceitar que a comunidade receba menos de 50% do valor total, já que
recebeu perto de nada no pagamento anterior. O pagamento dessa vez, portanto, não seria
apenas referente à área, mas uma espécie de compensação pela ausência de benefícios à
comunidade na ocasião anterior. Um terceiro, por sua vez, alega que, se não for totalmente
coletivo, é preferível que estes recursos nem sejam pagos, já que estão sendo objeto de
discórdia e conflito na comunidade. Essas opiniões foram manifestas em mais de uma ocasião
ao longo desse período, o que parece demonstrar que não houve sucesso em uma unificação

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da opinião destes indígenas.

b) Fazenda Peró

Embora tenha citado a Fazenda Peró ao longo do texto, não me alonguei em


explicar sua situação, preferindo classificá-la, num primeiro momento, como similar à dos
proprietários. Contudo, embora estes estejam “do mesmo lado” nesta negociação e
representados pelos mesmos advogados daqueles, há aqui várias particularidades que
precisam ser compreendidas neste caso. Para isso, é preciso retomar os aspectos principais da
história de sua retomada e “aquisição”.
Ao longo dos anos 1990 os Fulni-ô viveram um processo faccional, quando se
formou e fortaleceu entre eles um chamado “grupo” – um conjunto de indígenas que decidiu
se contrapor ao cacique e pajé, apresentando demandas próprias à Funai, ao poder público de
forma geral e a diversas instituições. A este processo se deu o nome de faccionalismo Fulni-ô,
que vigorou desde o início da década até ao menos o ano 2000. Aqueles que fizeram parte
desse “grupo” dizem que o objetivo não era destituir o cacique ou o pajé, nem retirá-los de
suas funções religiosas e rituais. De fato, o Ouricuri, mais importante evento da vida
comunitária Fulni-ô, manteve-se indiviso e coeso. O que pretendiam era ter acesso direto às
instituições, podendo estabelecer relações, demandas e falar em nome de uma parcela da
comunidade sem que fosse preciso passar pelas lideranças tradicionais, que eram consideradas
pouco eficientes e pouco mobilizadoras para obter benefícios para a comunidade. Segundo
declaram, por exigência da Funai em tratar com um cacique, nomearam um cacique
administrativo – o adjetivo parece marcar uma diferença com relação ao cacique
“tradicional”. Tal grupo conseguiu levar adiante algumas de suas demandas, fundou uma
associação para poder receber recursos e chegou a conseguir a nomeação de um dos seus para
a chefia do Posto Indígena.

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Em paralelo a isso, segundo contam, os Fulni-ô já vinham se incomodando há
algum tempo com uma propriedade vizinha à Terra Indígena, próxima à reserva do Ouricuri,
chamada Fazenda Peró, de 206 hectares. À época, a propriedade pertencia a José Rufino. Dois
motivos os perturbavam em especial: o maior deles era a proximidade com a aldeia do
Ouricuri (segundo levantamento realizado por servidores da Funai, “o limite da Fazenda com

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a Terra Indígena fica a 1.200m do Ouricuri”, sem indicar se está é a distância até a aldeia do
Ouricuri ou até o limite dos lotes da reserva (apud Secundino e Souza, 1999: 11)), e a
possibilidade de quem estivesse por lá ver ou ouvir o que se passava durante o Ouricuri. A
visão era possível porque em certo ponto da fazenda há uma elevação, próxima ao limite com
a Terra Indígena, de onde se avista, com alguma distância, as casas da aldeia. A visão era
especialmente clara quando havia algum tipo de desmatamento na fazenda, e durante o
período de seca.

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Esse grupo, segundo conta um de seus líderes no relatório antropológico
realizado pela Funai, já havia levado ao órgão indigenista sua demanda de desapropriação ou
cessão da fazenda a eles em 1995 (idem: 11). Mas foi apenas em 1998, segundo manifestação
de representantes da comunidade enviada à 6a CCR (anexo 5), que aconteceu a retomada da
Fazenda Peró pelo povo Fulni-ô. “Retomada” é uma estratégia política coletiva empreendida
com frequência por vários grupos indígenas do Nordeste ao longo das últimas décadas. Ela
consiste em uma ação em que, diante da morosidade do poder público em demarcar e garantir
o acesso às suas terras tradicionais das quais foram alijadas, expulsas ou tiveram o acesso
restringido, tais comunidades ocupam fazendas, sítios e outras áreas que compõem o território
pleiteado para tentar pressionar a aceleração da tramitação do processo.
No caso da Fazenda Peró, um episódio foi o estopim da ação. Na fazenda há
um açude, em que os indígenas por vezes iam pescar ou tomar banho, em especial durante o
período do ritual. Também por vezes indígenas atravessavam o terreno para acessar outras
áreas, para caça ou coleta. No entanto, o proprietário não permitia e chegava a perseguir quem
adentrasse sua propriedade, e expulsava quem era flagrado. Pouco antes do início da
retomada, alguns jovens estariam pescando no açude, e foram expulsos a tiros. Os Fulni-ô
estavam em período ritual, e aqueles vinculados ao grupo decidiram, em uma noite, partir para
retomar a fazenda.
Os números variam de acordo com os informantes, mas entre 120 e 180
pessoas, todas vinculadas ao grupo, participaram ativamente da retomada, acampando e se
fixando na fazenda, enquanto pressionavam a Funai a regularizar a aquisição da Fazenda. Esse
grupo que participou da retomada era liderado por 12 homens (conhecidos como “os doze”),
escolhidos entre os próprios participantes, que estiveram à frente do processo por todo o
tempo. Nesse período, contam, a maior parte desse participantes sofreram ameaças, e não
saíam da Fazenda, com receio de que o proprietário aproveitasse a ausência temporária para
tomá-la de volta. Foram por volta de dois anos nessa situação, enquanto os doze faziam
viagens a Recife e a Brasília, cobrando uma posição da Funai e pressionando para o
atendimento do seu pleito, até que em 2000 a Funai enfim pagou indenização pelas
benfeitorias, e o proprietário, por sua vez,
por reconhecer que a referida propriedade está localizada em região de
ocupação tradicional indígena, dentro, portanto, dos limites tradicionais da

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Terra Indígena Fulni-ô, por consequência, reconhece também, a nulidade e a
extinção dos efeitos jurídicos do mencionado ato de aquisição da
propriedade e seu registro imobiliário respectivo (“Escritura Pública de
Declaração de Reconhecimento de Terra Indígena, de seu domínio pela
União e de sua posse e usufruto indígenas (...)” – anexo 6).

Além dos participantes ativos, os informantes contam que haviam alguns


indígenas “visitantes”, que apoiavam a ação, faziam visitas frequentes à fazenda e até

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auxiliavam quem estava acampado por lá, mas não permaneciam por lá.
Ao longo desse processo, como declaram os informantes e o relatório
antropológico da Funai, as chamadas “lideranças tradicionais”, o cacique e o pajé, mantiveram
uma certa distância da questão. Quando perguntei a um informante, um dos doze, se os dois se
opuseram à retomada e aquisição da fazenda, me respondeu que “não. Até porque nós eramos
divididos na época. E eu entre esses 12. [Mas] eles não se posicionaram. Nem disseram que
tava bom nem que tava ruim. Não se envolveram”. Já no relatório consta que eles perceberam
“a necessidade de incorporação da terra para resguardar o lugar sagrado”, mas temiam “o
futuro desdobramento que terá esta terra nas mãos do grupo que a ocupou, inclusive, deixando
claro que, uma vez conseguida a fazenda, esta não deve ser incorporada à Terra Indígena
Fulni-ô, pois pertence à Associação Fowclassa [fundada pelo “grupo”]” (idem: 15). O pajé
atual também cita esse mesmo entendimento por parte dos dois – que a terra deveria ser
destinada àqueles que atuaram na retomada, mesmo que o “documento” saísse em nome da
comunidade – como de fato saiu.
Com a cessão da área à União, segundo a escritura, os doze, junto com os
demais participantes da retomada, passaram a organizar a ocupação do território – o que teria
ocorrido em reunião realizada com a presença da Funai, mas cuja ata não conseguiram
localizar. Nesta reunião, ficou decidido que, dos 206 hectares da fazenda, seria cedido a cada
um dos doze 5 hectares, enquanto o restante seria distribuído entre os demais. Embora não
soubessem informar com exatidão o número dos contemplados com terra, afirmam que cada
um recebeu 1,8 hectares de terra. Daí podemos deduzir que, excluindo os 60ha distribuídos
aos doze, sobraram 146ha. Se cada um recebeu 1,8ha, foram 80 indígenas beneficiados.
Na época, muitos dos indígenas, considerando pequena a área recebida,
negociaram suas áreas com os demais. Contudo, segundo contam alguns deles, poucos
delimitaram e ocuparam de fato as terras às quais tinham direito, então seus terrenos, ficando
apenas reconhecido o direito ao qual faziam jus.

58
Quando foi paga a indenização da Chesf, anos depois, inicialmente a parcela
referente área impactada da Fazenda Peró foi registrada como sendo de responsabilidade da
comunidade, e que seriam, como tal, objeto de deliberação de seus dois representantes
máximos, cacique e pajé. Este entendimento consta, por exemplo, na ata da reunião ocorrida
na comunidade indígena, com ampla participação dos envolvidos, em que se acordou como

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seria a distribuição dos recursos. Entre as decisões tomadas, consta a de que
os recursos na ordem de R$995.195,00 (…) correspondente à área do
Ouricuri e Peró, deverá ser creditado em favor da AER-Recife, após
pagamento será discutido a forma de aplicação na comunidade, conforme
gerenciamento das lideranças e comunidade” (grifos meus) (citar fls.).
Também foi registrada em manifestação do chefe do Posto Indígena, que diz
que os lotes na área do Ouricuri e “ as duas áreas com 16,1418 há e 5,6797

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há, localizados na área denominada “Fazenda Peró”, esta ainda não
loteada, pertence a Comunidade Fulni-ô, sendo de total responsabilidade
dos seus representantes legais – o Cacique JOÃO FRANCISCO DOS
SANTOS FILHO e o Pajé CLÁUDIO PEREIRA JÚNIOR (grifos
originais; fl. 149 do IC 1.26.000.000716/2004-87).

Não obstante, segundo conta um dos doze, posteriormente, em reunião com o


cacique, este teria reconhecido que foram eles quem conseguiram a fazenda, e por isso “deu o
direito”, isto é, concordou que eles poderiam pleitear sua parcela dos recursos à parte daquela
da comunidade, sem o aval do cacique e do pajé. Não há, entretanto, registro disso nos autos.
Quanto ao montante destinado à fazenda, teria ficado acordado que seria
destinado R$3 mil para cada um dos participantes, e valores maiores, variados, para cada um
dos doze. Há apenas um registro específico sobre os projetos realizados na Fazenda Peró, que
é a ata de uma reunião ocorrida entre Funai, Eduardo, líderes da Fazenda Peró e componentes
do GT Chesf (anexo 7), que delibera sobre os quem seria contemplado pelos projetos e qual
seu valor, “de acordo com a participação no movimento da Fazenda Peró”.
Vê-se, portanto, que aqui acabou prevalecendo um entendimento dos direitos
sobre a terra bastante distinto daqueles que vigoram na área coletiva (no presente caso, a
reserva do Ouricuri) e a área “particular” (os lotes dos proprietários) da Terra Indígena. No
primeiro caso, entende-se que é uma terra plenamente coletiva, cuja gestão e responsabilidade
cabe unicamente ao cacique e pajé, seus representantes, para benefício de todos. No segundo –
ao menos na visão dos proprietários –, vê-se como uma terra cujo regime de posse é similar a
uma unidade agrária comum (mesmo pertencendo a uma Terra Indígena), cuja
responsabilidade, gestão, exploração e rendimentos cabem unicamente ao seu proprietário
atual. Embora tenha havido controvérsias sobre o assunto, eles constantemente declaram que
quem vende ou repassa suas terras para outros indígenas abrem mão também de seus direitos,
caso algum benefício venha a ser pago por ela – como no caso em tela.
A área da Fazenda Peró, por sua vez, é regida, segundo seus líderes, pelo
entendimento que tem direito legítimo sobre ela (e, consequentemente, aos benefícios
relacionados a ela) apenas quem participou diretamente da retomada, em 1998, e do processo
para sua aquisição.
Nesse sentido, citam, por exemplo, que quando a indenização da Chesf foi

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paga, alguns dos ex-participantes do movimento haviam falecido. Ainda assim, parentes
próximos – viúvas e filhos –, ainda que não tenham participado da retomada nem possuam ou
explorem terras na fazenda, receberam sua parte. Do mesmo modo, aqueles que haviam
transacionado suas terras também receberam seu quinhão. Por outro lado, os que atualmente
possuem, ocupam ou exploram a terra, mas não participaram da retomada, não têm direito a
receber – mesmo que a terra que possuem, ocupem ou explorem seja debaixo das linhas de
transmissão. Isso, contudo, não é ponto pacífico. Alguns dos atuais proprietários, como

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veremos adiante (fui procurado por um deles, que participou do movimento, e outro que não)
possuem terras atingidas pelas linhas de transmissão, e pleiteiam uma parcela da indenização
proporcional à sua área, como ocorre nos lotes da Terra Indígena.
Afirmei anteriormente que os representantes da Fazenda Peró estão “do mesmo
lado” que os proprietários por alguns motivos. O principal deles é que o pleito deles é que a
indenização seja paga seguindo o mesmo modelo anterior, qual seja, o pagamento
proporcional à área atingida – na Fazenda Peró, de acordo com a área total da fazenda, e não
com a área de cada um de seus ocupantes. Também são defendidos pelos mesmos advogados.
Há algumas outras similitudes: um dos doze, bastante ativo na negociação, é pai do pajé (que
também se manifestou defendendo o pagamento proporcional), e sua esposa, ao menos na
negociação passada, era dona de um dos lotes atingidos.
Os representantes das seiscentas famílias, como já afirmei, assim como outros
membros da comunidade com quem conversei, defendem, por sua vez, que os recursos
referentes à fazenda sejam voltados para a comunidade como um todo. Este argumento se
baseia, em especial, no argumento de que a fazenda foi adquirida pela Funai para usufruto da
comunidade, e não de apenas um grupo.
Na realidade, como vimos, a fazenda não foi de fato adquirida, mas teve seu
título de propriedade anulado, como reconheceu o proprietário em escritura pública, pelo fato
de que “a referida propriedade está localizada em região de ocupação tradicional indígena,
dentro, portanto, dos limites tradicionais da Terra Indígena Fulni-ô”. Ele recebeu apenas
indenização pelas benfeitorias. É curioso notar que tal procedimento, de anulação de títulos de
propriedade, é o procedimento adotado ao longo do processo de demarcação da Terra
Indígena, quando se conhece seus limites exatos. No caso Fulni-ô, não havia então nem
processo de demarcação em curso, o que só ocorreria a partir de 2002. Assim, à primeira vista,
parece-me que a Funai se precipitou ao presumir que a área estaria dentro dos limites do
território tradicional, quando não havia ainda estudos que corroborassem tal conclusão. O

60
próprio parecer antropológico encomendado então pela Funai questiona, no final: “como
encaminhar administrativamente a regularização da fazenda Peró se não foi formalizado um
estudo que identifique a área em que se encontra como tradicional ou não?”. A Funai,
contudo, aparentemente ignorou as ponderações do relatório – que, aliás, condenou a atuação
da Funai em todo esse processo, negociando com o fazendeiro antes mesmo que o estudo

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fosse concluído.
Como foi baseada nos mesmos procedimentos da demarcação de Terra
Indígena, essa anulação da propriedade privada da área, portanto, registra o reconhecimento
do “domínio exclusivo da citada terra como pertencente à União”, e que “a posse direta e o
domínio exclusivo das riquezas naturais e de todas as suas utilidades em favor da
Comunidade Indígena Funi-ô (sic)”. Embora tenha sido solicitado à Funai cópia da
documentação e do processo envolvendo a aquisição da Fazenda Peró (fls. 597-598), até a

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presente data não recebemos resposta. Assim, com fundamento apenas na documentação
disponível nos autos, tenderíamos a dar razão, numa primeira leitura, àqueles que defendem
que a Fazenda Peró pertence à comunidade como um todo, e não apenas àqueles que a
ocuparam em 1998, já que as Terras Indígenas, na legislação vigente, são destinadas ao
usufruto coletivo, e não privado, seja de indígenas ou não-indígenas.
Por outro lado, como sempre lembram indígenas que sustentam a posição
contrária, de que a área da Fazenda Peró deve ser dividida entre as famílias que participaram
do movimento de retomada, há na Carta Magna o reconhecimento da organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231, caput) das comunidades indígenas, assim
como na Convenção 169 da OIT determina-se, no art. 17, I, que “Deverão ser respeitadas as
modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre os membros dos povos
interessados estabelecidas por esses povos”. Contudo, devemos ter cuidado com a
compreensão destas determinações legais.
Quando se fala em respeitar a organização social e as modalidades de
transmissão da terra, além do respeito à autonomia destes povos, se quer garantir que não
sejam impostos modelos estranhos ou externos às comunidades indígenas, e que, para
compreendê-las, se parta de sua perspectiva específica e suas próprias formas de pensar o
mundo e de se organizar. Isso é, as decisões e posições adotadas por membros e grupos de
determinada comunidade devem ser vistas num contexto mais amplo, em que seja
considerado o que a comunidade vê como legítimo e considera condizente com sus “usos,
costumes e tradições”. Deve-se considerar então a história da comunidade, seus mecanismos
próprios e legítimos de tomada de decisões e a percepção coletiva, orientada pela sua
experiência enquanto coletividade. Ademais, há que se considerar possíveis interesses e
perspectivas divergentes, além de levar em conta as transformações possíveis dos “usos,
costumes e tradições” a que estão sujeitas todas as comunidades. Não se trata, portanto, de
considerar legítima qualquer decisão ou ação perpetrada por qualquer membro ou grupo de
uma comunidade indígena, mas de localizá-las social e historicamente, e perceber a(s)
perspectiva(s) existente(s) sobre o assunto.
O caso da Fazenda Peró, como vimos, se distancia do modo de ocupação do
restante da Terra Indígena; ao contrário dela, foi fruto de uma retomada, e os indígenas que
participaram mais ativamente desse movimento, ligados a um grupo que então havia se

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formado em contraposição à organização tradicional decidiu, por conta própria (e
independente da posição das lideranças), dividir as terras entre si, assim como os recursos
vinculados à sua posse. Caso sem precedentes entre os Fulni-ô, a distribuição da terra para
aquelas famílias parece não ter provocado maiores reações no início – até porque a
comunidade ainda estava dividida, e as lideranças chegaram a declarar que desejavam que
aquela terra fosse considerada à parte do restante, sem ser anexada à Terra Indígena.

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Não obstante, pelo que consta nos documentos acessados, a área não foi
formalizada como um local à parte, mas como inserida nos limites tradicionais da Terra
Indígena Fulni-ô, ainda não demarcada.
Ao longo da negociação, por um momento ela foi referida como pertencente à
comunidade. Durante o pagamento, contudo, seus recursos foram repassados à parte, e geridos
pelos seus líderes – os doze.
O que podemos inferir é que esta área apresentou uma nova situação fundiária
aos indígenas, diferente da que estavam habituados: uma área não loteada, sem definições
prévias de como deveria ser ocupada. Os participantes da retomada entenderam, e ainda
defendem, a ideia de que o justo é que seja destinada àqueles que enfrentaram ameaças e se
sacrificaram para que fosse adquirida. Distribuir parte dessas terras a quem não participou do
movimento de forma alguma soa como uma afronta. Isso é o que justifica, para eles, que
sejam sempre estes os contemplados em qualquer assunto relativo àquelas terras.
Para alguns outros, em uma interpretação da forma como essa área foi “cedida”
– a partir do órgão indigenista e dos documentos que a formalizam –, ela deveria ser destinada
para o benefício da coletividade. O tempo transcorrido da retomada até hoje (quase vinte
anos), sem que tenha havido mudanças ou alguma oposição organizada à forma com que as
terras da fazenda foram organizadas, de alguma maneira favorece que a situação permaneça
como sempre esteve desde o início.
Contudo, como expus acima, há elementos que subsidiam a posição oposta. O
fato de ser uma situação nova na história Fulni-ô, e a falta de uma demarcação de suas terras,
que disciplinariam mais claramente seu uso, também alimentam esses posicionamentos
contrários.
Por fim, há que se tecer algumas palavras sobre um documento elaborado pela
Funai sobre o assunto, encaminhado por um dos advogados que está acompanhando o caso
(anexo 8). Trata-se de uma informação técnica elaborada pela Coordenação-Geral de

62
Identificação e Delimitação. Nela, diz-se que a Terra Indígena Fulni-ô denominada
“Comunidade Indígena Peró”, ocupada pela comunidade de mesmo nome, foi adquirida com o
intuito de “garantir a vida e a reprodução física e cultural das famílias do povo Fulni-ô que
ocuparam a partir de 1998 (…). A comunidade Peró ocupa uma área de cerca de 206 hectares
(…) ela tem sido dirigida pelas cerca de 90 famílias que ocupavam a área no período de sua

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aquisição e designação como reserva indígena”. Diz, por fim, que “em relação ao usufruto, ao
trânsito e as relações entre as duas Terras Indígenas vizinhas, com diferentes modelos de
criação, elas não deve ser regidas pela Funai, mas a partir do diálogo e entendimento das
populações das duas Terras, segundo sua organização social, usos, costumes e tradições”.
Parece-me que esta informação técnica está equivocada ou se confunde em
vários pontos. Em primeiro lugar, ela trata da Fazenda Peró como se fosse uma Terra Indígena
à parte, intitulada “Comunidade Indígena Peró”. Embora não cite a fonte dessa informação,

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nos documentos a que tive acesso não há menção à sua formalização como uma Terra
Indígena independente, quanto menos com esse nome. Como já afirmamos mais de uma vez, a
escritura pública diz que a área está dentro dos limites tradicionais da Terra Indígena Fulni-ô
(embora não houvesse estudos do órgão que atestassem quais seriam eles). Em segundo lugar,
a área é designada como reserva indígena. Também já declarei que esta categoria se aplica a
terras adquiridas de acordo com a legislação civil – o que também não é o caso, já que se
trataria de território tradicional indígena, segundo a mesma escritura.
Mais do que isso, o autor dá a entender que há duas comunidades distintas,
cada qual se regendo com usos, costumes e tradições diferentes, sendo que uma delas seria a
“comunidade indígena Peró”. Não há, na bibliografia ou nos relatos de nenhum indígena,
referência alguma a uma comunidade com tal nome, nem existe o entendimento de que seriam
duas Terras Indígenas com duas populações distintas. A quase totalidade dos
proprietários/beneficiários da Fazenda Peró reside, participa das atividades e estabelece suas
relações dentro da Terra Indígena Fulni-ô, assim como reconhecem o cacique e o pajé como
lideranças, e se classificam como pertencendo exclusivamente à comunidade Fulni-ô, como
todos os outros. Muitos deles também têm propriedades nos lotes da Terra Indígena.
Duas afirmações são parcialmente verdadeiras: diz-se ali que a área “tem sido
dirigida pelas cerca de 90 famílias que ocupavam a área no período de sua aquisição e
designação como reserva indígena”. Na realidade, quem dirige de fato são os doze líderes, e
não as 90 famílias que foram beneficiadas com glebas de terra. E, por último, embora seja
verdade que o usufruto da área não deve ser regido pela Funai, acredito que a organização
social, usos, costumes e tradições que devem ser levados em conta são aqueles dos Fulni-ô, já
que são uma comunidade só, vivendo no mesmo território tradicional, embora atualmente
conte, em seu interior, com diferentes regimes de ocupação da terra.
c) proprietários

A posição dos proprietários nesta negociação é basicamente a mesma que a


apresentada já no início da negociação anterior: querem receber os valores proporcionais à
área de cada um, segundo os cálculos já realizados pela Funai nas tratativas anteriores. Assim

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como solicitaram na ocasião anterior, querem receber os recursos diretamente da Chesf, sem
intermediação da Funai ou aprovação prévia, e, também como pleiteado originalmente,
querem receber em dinheiro, e não via projetos, preferencialmente em depósitos bancários
individuais – embora tenham considerado a hipótese de receber também via associação (a já
existente, que precisaria ser regulamentada, ou então numa nova, a ser criada), com um
porém: querem que o pagamento da parte que lhes cabe seja feito em separado da parcela

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destinada à comunidade.
Enquanto da outra vez abriram mão do recebimento direto dos recursos para
aceitar o pagamento via projetos (o que só fizeram para que o acordo pudesse ser fechado,
depois de um longo período de negociação), dessa vez pleiteiam que seja feito de outra forma.
Isso porque, como já citado neste parecer, acreditam que os projetos implementados no âmbito
do TAC anterior foram todos fracassados. Citam também vários projetos, muitos deles
comunitários, que se tentou viabilizar ou foram propostos, mas não chegaram a apresentar
resultados concretos. Eles se dizem desiludidos com projetos como têm sido feitos, e acham
que muitos terminam por ser fonte de recursos para alguns poucos que se apropriam deles de
maneiras escusas, além de não serem eficazes.
O pleito de separar do pagamento da parte dos proprietários daquela da
comunidade tem como causa principal ter sido essa última a maior fonte de problemas e
conflitos na ocasião anterior, em que a mesma associação foi responsável pela gestão da
totalidade dos recursos, com a proposição de projetos, pagamentos e prestação de contas.
Assim, têm insistido nesse ponto, chegando a propor que a negociação de cada parcela siga
independente.
No entanto, temos que lembrar que, na ocasião anterior não foi apenas o valor
proporcional à área do Ouricuri a fonte de conflitos, já que desde o início dos pagamentos se
reclamava que os recursos deveriam beneficiar toda a comunidade, como já previa o TAC e
como havia sido recomendado pelo Procurador da República em reunião – fato notado
também nos pareceres contábeis realizados sobre os recursos pagos.
Os proprietários também dizem que entre os Fulni-ô o “individualismo” e o
reconhecimento da propriedade individual é regra, e que ações coletivas, assim como os
projetos comunitários, estão fadados ao fracasso. Embora esse pensamento aparente ser
dominante, há algum tempo podemos dizer que não é unânime, como veremos adiante. Eles
ainda acrescentam que sua parte da indenização não beneficia somente a eles, mas às suas

64
famílias mais amplas e a agregados, como irmãos, pais, filhos, cunhados, sobrinhos, entre
outros. Com isso, querem dizer que não seriam tão poucos os beneficiários da indenização
paga (os atuais 19 proprietários), mas um número razoavelmente maior. Há que se concordar
com esse argumento. Mesmo assim, a grande maioria da comunidade ainda estaria fora do seu
círculo imediato de relações.

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Por fim, há que se lembrar que, assim como na primeira negociação, são os
proprietários os mais ativos e presentes na negociação, tendo nomeado três advogados para
acompanhar o caso, além de realizar constantes ligações e viagens a fim de obter novas
informações e cobrar encaminhamentos sobre o assunto – o que deixa claro que eles são os
maiores interessados.

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d) o pajé

O atual pajé, Gildiere Ribeiro Pereira (conhecido como Edmar), assumiu o


posto há cerca de sete anos, após o falecimento do anterior, Cláudio Pereira Júnior, seu tio-
avô. Assim, ressalta que não acompanhou a negociação anterior, e não pode responder por
eventuais problemas que podem ter ocorrido, como as suspeitas frequentemente levantadas de
desvio de recursos.
Não obstante, ele lembra que, embora os pareceres contábeis solicitados pelo
MPF não tenham identificado indícios de mal uso dos recursos da indenização, “aqui na
comunidade, eu como comunidade, eu vou dizer que ninguém viu nada, com relação à parte
da comunidade”. Por conta disso, declara que dessa vez tem que ser diferente, pois é ele, em
conjunto com o cacique, quem se responsabilizará pela parcela que cabe à comunidade.
Por isso, diz, o preocupa muito a formação desse grupo que afirma representar
seiscentas famílias. Isso por vários motivos: em primeiro lugar, entende que eles estão
colocando em xeque a organização sociopolítica estabelecida Fulni-ô, na qual apenas cacique
e pajé têm o poder de representar o povo. Afinal, como ele diz, “desde quando existiu o povo
Fulni-ô, existiu essa organização”. Para reforçar o seu ponto, relembra o período em que havia
o chamado “grupo”, que dividiu a comunidade ao montar uma estrutura de poder paralela à
tradicional. Segundo ele, “aquela época foi um inferno, a verdade é essa, eu vou lhe resumir
logo o que foi o inferno”. Foi um período marcante e traumático para a comunidade, não
muito distante, e o temor de que situações como a aqui tratada possam provocar uma nova
cisão ainda é muito presente nos discursos.
Outro motivo de preocupação é que, se as seiscentas famílias de fato se
sentirem representadas pelos indígenas que estão à frente do grupo, isso pode abrir um
precedente para que outros pequenos grupos surjam, dizendo representar cada qual um grupo
de famílias indígenas. Isso poderia, segundo diz, esvaziar gradativamente o poder e a atuação
do cacique e pajé, que se veriam assim limitados.
Também contesta, assim como os proprietários, a forma com que esse grupo
coletou as assinaturas do abaixo-assinado. Além das promessas de cesta básica, ouviu dizer
que algumas famílias assinaram porque acreditaram que ele próprio e o cacique teriam pedido
para que assinassem. Ademais, atesta, como os demais, que verificou nomes de crianças ali.

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Assim, contesta se esse grupo realmente representa quem declara representar.
Também acusa, como os proprietários, alguns membros desse grupo de terem
sido responsáveis, como proponentes ou gestores, por projetos comunitários dos quais não se
sabe o resultado – deixando uma suspeita no ar de que teriam se apropriado dos recursos ou de
seus benefícios.
Não obstante, entende que a preocupação de muitas pessoas com esse acordo

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com a Chesf se deve à insatisfação com os resultados do anterior. Sobre isso, lembra que não
pode se responsabilizar, já que não estava presente, mas que dessa vez vai ter que “tomar as
rédeas, pra que não aconteça o que aconteceu no passado”. Ressalta, porém, que sua
responsabilidade é somente no que concerne a parcela da comunidade.
Sobre a divisão dos recursos, como já havia se manifestado anteriormente,
reitera que acredita que deve ser feita em proporção ao tamanho de cada área – isto é,
reproduzindo o modelo anterior. Segundo ele, como também afirmam os proprietários,
modificar esse formato poderia “mexer em muitas outras coisas com relação à organização”,
isso é, podendo provocar efeitos também sobre o arrendamento e o chão de casa, sistemas
praticados há décadas, e as indenizações pagas por outras empresas e instituições como a
Celpe e a Compesa, além de outros pleitos que já foram encaminhados em relação a outras
obras e empreendimentos. Seguir por esse caminho significaria, afirma, desfazer uma
organização, e assim seria “arriscado ter até um desmantelo aqui na aldeia”. Por isso, diz, o
preocupa muito a posição que será manifestada nesse parecer antropológico e o
encaminhamento que será dado à negociação pelo MPF.
Quando o pergunto sobre as acusações de que parcelas da área do Ouricuri
foram ocupados ou apropriadas pelos proprietários de lotes vizinhos, diz que não sabe de
nada, mas que rumores sobre isso são bastante frequentes – e não somente de pessoas
vinculadas a esse grupo. Segundo tais rumores, esses proprietários vão afastando a cerca
gradativamente. Questiono então se acredita que um estudo que busque marcar os limites dos
lotes vizinhos aos do Ouricuri poderia ser benéfico, ao que ele responde positivamente, pois
acredita que assim “não teria erro, e ficaria tudo esclarecido”.
Com relação à melhor maneira de aplicar o valor da indenização que cabe à
comunidade, o pajé acredita que seja através de projetos comunitários, já que prefere não ser
responsável por gerir os recursos diretamente, mantendo-se exclusivamente como proponente
dos projetos, representando a comunidade.

66
Por fim, uma última observação: uma acusação frequente daqueles que querem
que o recurso seja distribuído igualmente a toda a comunidade é a de que o pajé é muito novo
e influenciado pela opinião de seu pai, um dos líderes da Fazenda Peró. Por isso, dizem, ele
assume uma postura favorável aos proprietários e à fazenda. O perfil do pajé, um pouco mais
contido e reservado, favorece essa interpretação. Para que ele se sentisse mais à vontade de

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expressar sua opinião, e para afastara qualquer suspeita de pressão ou influência causada pela
presença de outrem, ouvi o pajé sozinho, em sua casa.

e) o cacique

Antes de mais nada, é preciso dizer que João Francisco dos Santos Filho, mais

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conhecido como João de Pontes, cacique há mais de duas décadas dos Fulni-ô, está hoje com
92 anos. Sua saúde está debilitada, e já há algum tempo ele não tem condições de participar de
reuniões (principalmente as externas), se deslocar com frequência, acompanhar de perto todas
as negociações, demandas, mobilizações e ações relativas à comunidade, ficando um pouco
mais recolhido.
Não obstante, na entrevista que realizei com ele pude constatar que está lúcido
e a par de boa parte dos acontecimentos recentes. Ainda assim, talvez por conta da idade, seu
tom de voz é baixo e a dicção nem sempre muito clara. Portanto, com o agravante da
entrevista ter sido feita sem a presença de outras pessoas – como no caso do pajé, para que
não houvesse suspeição de que estava sendo influenciado ou pressionado pela presença alheia
– em vários trechos não foi possível compreender plenamente aquilo que dizia, sem alguém
que pudesse ajudar a esclarecer. De todo modo, foi possível compreender o suficiente para
reproduzir sua posição no presente caso.
É preciso dizer que o cacique parece sempre manter uma postura de maior
distância em situações delicadas e conflituosas, além de evitar tomar partido. Quase sempre
assume uma postura mais pró-comunidade do que em prol de ganhos individuais, mas
também parece não comprar brigas e evita fazer acusações. Vimos que, na negociação
anterior, ao contrário do pajé, ele não quis administrar e ter acesso direto ao dinheiro, antes
indicando os projetos que gostaria que fossem realizados, e que foram então executados pela
associação.
Assim, na entrevista, ele lamenta os conflitos em torno dessa indenização, e
que isso não deveria ter chegado ao Ministério Público Federal. Dizendo que reconhece o
direito dos proprietários, indica que a comunidade não foi beneficiada anteriormente, e
entende que o recurso da Chesf vem em nome da comunidade, e que “quando vem alguma
coisa em nome da comunidade é pra ser dividido entre todos”. Afirma que “no meio dessa
comunidade tem muito carente”, e conclama as pessoas a olharem para seus irmãos e ajudá-
los: “esse meu irmão é mais pobre do que eu, o que puder ajudar eu ajudo”. Declara que
“queria que existisse união pra tudo quanto viesse pra aldeia a comunidade tomar parte, e todo
mundo ficasse satisfeito”. E diz: “eu não quero o que não é meu. O que é da comunidade, é da
comunidade”.
Diz ser a favor que a Funai seja responsável pela gestão desse recurso, e que ela

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entregue “a cada um seu direito”. E cita o documento que enviou à “justiça”, no qual teria dito
que “a justiça resolvesse” a questão, e que apoiaria a decisão que fosse tomada.
Cabe explicar melhor essa passagem. Aqui o cacique se refere à sua
manifestação juntada à fl 231 dos autos, entregue por seu filho, Marco Antônio, em uma das
primeiras reuniões sobre o assunto nesse Parquet federal. O seu ponto principal é o suposto
pedido do cacique para que a questão seja judicializada.

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Conversando com Marco Antônio, o que foi confirmado pela filha do cacique,
contudo, estes esclareceram que a expressão utilizada pelo cacique na ocasião foi “deixar a
justiça resolver”; traduzida no documento redigido por Marco Antônio como “judicializar”.
Contudo, é bastante comum que os indígenas se refiram aos diversos órgãos do sistema
jurídico simplesmente como “justiça”, sem distinguir claramente Ministério Público, Vara de
Justiça, juízes e procuradores – o que, aliás, é bastante compreensível. Nesse contexto, “deixar
a justiça resolver” não significa necessariamente “judicializar”, isto é, ingressar com uma ação
judicial, mas sim deixar a decisão nas mãos dos órgãos ou instâncias competentes para
acompanhar ou tomar posição no que concerne comunidades indígenas.
As declarações do cacique sobre esse ponto durante a entrevista não deixam
dúvidas: ao se manifestar sobre o convite à reunião pelo MPF, refere-se repetidamente ao
órgão como “justiça”. Em certa altura, perguntei a ele se, quando falava sobre justiça, incluía
aí também o Ministério Público. Sua resposta: “não é o Ministério Público que está
resolvendo? Então... seguir pra evitar essa conversa toda. Se está na mão do Ministério
Público, eles resolvam de acordo com... como achar que devem”.
Esse ponto é importante porque tal manifestação foi usada em algumas
ocasiões para indicar que o cacique não estava mais aberto a dialogar em busca de um acordo,
preferido deixar a decisão final a cargo de uma decisão judicial. Vemos, contudo, que isso não
é necessariamente verdade: entendo que o que ele quis dizer foi que, diante dos conflitos e do
impasse em torno da questão, entendia que a solução deveria vir de instâncias externas que
tenham essa competência, como o MPF.
De todo modo, quando instado a apresentar uma proposta de divisão dos
recursos, já tem uma resposta pronta: sugere que, dos R$3,5 milhões do acordo, dois milhões
de reais fossem destinados à comunidade, e o restante, um milhão e meio, aos proprietários –
ressaltando, assim, que reconhece seus direitos.
Pergunto também sobre sua posição a respeito da Fazenda Peró. De início,

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declara que a “Funai errou” nessa questão, sem que fique exatamente claro a quê se referia.
Em seguida, contudo, diz que “essas coisas não gosto de me envolver”, indicando que prefere
não se posicionar a esse respeito.
Questiono também sobre as histórias de que partes do Ouricuri foram
apropriadas pelos proprietários vizinhos, e cito em especial o lote onde fica a barragem do

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Cariri, próxima à reserva. Ele diz que esse lote tem proprietário, mas que “antigamente aquilo
era reserva”, sem dar maiores detalhes. Também confirma a história de que, originalmente,
eram nove lotes destinados ao Ouricuri, e que hoje seriam doze (na realidade, treze, somado
ao da entrada). Afirma que alguns lotes vizinhos à reserva foram trocados por lotes em outros
locais, o que confirma as informações de outros indígenas, embora não tenha indicado quais e
quando isso ocorreu.

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Uma última informação relevante a respeito do cacique: proprietários em
especial, mas também pessoas ligadas à Fazenda Peró e outros membros da comunidade
declaram com frequência que muitas vezes membros da família do cacique, como seus filhos,
neto e genro, influenciam sua opinião, direcionam suas ações ou até falam em seu lugar,
tornando difícil saber ao certo qual a sua opinião pessoal sobre determinados assuntos.
Afirmam que raramente deixam ele se manifestar por conta própria, e sempre se aproximam
quando um diálogo privado é proposto. Justamente por isso procurei garantir que minha
entrevista acontecesse sem mais ninguém no ambiente. Isso foi possível por boa parte da
entrevista, quando aproximou-se um familiar apenas nos minutos finais, permanecendo, de
todo modo, em silêncio.

f) Coordenador Técnico Local da Funai

Embora o coordenador não ocupe exatamente um cargo de liderança dentro da


comunidade – trata-se, afinal, de um cargo administrativo num órgão público – nem tenha
uma pauta própria de demandas no caso em tela, é inegável que, por ser um membro da
comunidade (como tem sido a maior parte dos coordenadores locais há mais de uma década) e
ocupar um espaço de poder e influência acaba dando um certo peso às suas posições.
O atual coordenador se manifestou sobre a questão através de ofício
encaminhado em janeiro de 2017, às fls. 442-3. Nele, conta a origem dos lotes na Terra
Indígena, ressaltando que o governo estadual desfigurou a forma coletiva ao criá-los. Declara
que este sistema perdura há bastante tempo, e que estaria institucionalizada a hereditariedade
da posse dos lotes, cabendo ao seu detentor gerenciar da forma conveniente. Conclui,
portanto, que “alguma mudança nessa organização peculiar, pode trazer consequências
trágicas para a comunidade”. Afirma que “esta CTL reconhece a plena autonomia dos índios
para gerenciar seus lotes (…) duas negociações já foram concretizadas com a Chesf, e já
existem negociações concretizadas com a Celpe e Compesa, nas áreas afetadas dos
indígenas”. Cita, por fim, a Convenção 169, no artigo que versa sobre o respeito às
modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra dos povos.
Sua manifestação, portanto, vai no mesmo sentido daquelas do pajé e
proprietários, ao citar que a divisão em lotes (e o reconhecimento da autonomia dos índios em

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gerenciá-los) são parte da organização social Fulni-ô, lembrar outras negociações de
pagamento de indenizações feitas exclusivamente aos proprietários dos lotes diretamente
afetados, e declarar temer o risco de “consequências trágicas” para a comunidade caso haja
mudanças nessa organização.
Passo, agora, aos quesitos encaminhados pelo Procurador da República.

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3. RESPOSTAS AOS QUESITOS

a) quais os possíveis impactos (territoriais, políticos, socioculturais e


similares) causados no grupo indígena Fulni-ô em razão da existência das torres e das
linhas de transmissão da Chesf em sua Terra Indígena, situada no município de Águas
Belas/PE?
Como indiquei ao longo do texto, a instalação das cinco linhas de transmissão
da Chesf e de suas torres se deu entre 1952 e 1979 – isto é, a última foi instalada há quase 40
anos. O tempo transcorrido fez com que os Fulni-ô se habituassem, de certo modo, com a
presença das linhas e torres em seu território – o que não significa que seus impactos diretos e
indiretos, de ordens diversas, tenham sido suspensos ou atenuados ao longo desse período.
Os impactos mais evidentes e passíveis de mensuração são aqueles relativos ao
território. Os primeiros e mais imediatos efeitos das obras para passagem das linhas de
transmissão foi a destruição das benfeitorias existentes na sua faixa de servidão – neste caso,
principalmente lavouras de culturas diversas, mas também algumas casas, cercas e afins.
Segundo as escrituras públicas de constituição amigável de servidão dos eletrodutos, de 1957
e 1976, foram pagas então indenizações para compensar tal destruição. A primeira escritura
cita o valor correspondente pago ao SPI (não há menção ao repasse dos recursos aos índios),
enquanto a segunda declara que “quaisquer estragos de benfeitorias” serão indenizados. Sabe-
se que desta feita os valores foram pagos diretamente aos índios, já que várias cópias dos
recibos que atestam o seu pagamento foram apresentadas, e registram ainda que as
benfeitorias foram objeto de avaliação (anexo 9).
Além do pagamento de indenizações, ambas as escrituras públicas registram
várias regras que passariam a limitar o usufruto e exploração das terras dali em diante, além
de fazê-los abrir mão de alguns aspectos de seu controle sobre o próprio território. Entre estas

70
estavam a permissão irrestrita para que funcionários da companhia entrem na Terra Indígena,
sem autorização prévia, para fazer qualquer manutenção, construção ou inspeção necessária,
assim como podar ou cortar as árvores que fossem consideradas prejudiciais para o
funcionamento das referidas linhas e impedir plantações que ultrapassem três metros de altura
na faixa de servidão, como também construções de qualquer tipo.

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Tais acordos foram realizados em um período pré-Constituição Federal de
1988, que inaugurou uma nova política indigenista no país. Esse fato, somado à ausência de
informações a respeito de estudos de impacto ou algum tipo de diálogo com a comunidade
Fulni-ô a respeito das obras, faz co que seja fácil imaginar que não houve então preocupação
alguma sobre os possíveis efeitos que a execução das obras e a permanência das linhas de
transmissão pudesse ter sobre a comunidade e seu território, quanto menos tentativas de
mitigá-los ou compensá-los de alguma maneira – exceto, como já vimos, com o pagamento de

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indenização pelas benfeitorias. Embora tais pagamentos sejam justos e necessários, ele só leva
em conta as perdas materiais imediatas, quando sabe-se que há muito mais em jogo.
Quanto aos impactos desconsiderados estão, por exemplo, aqueles produzidos
pelas obras em seu território. Empreendimentos dessa dimensão envolvem, por exemplo, o
deslocamento de grande quantidade de mão-de-obra para trabalhar diretamente, e a presença
dessa população temporária na região mobiliza um mercado local, fazendo circular mais
dinheiro e podendo criar empregos indiretos, o que pode atrair outras pessoas à região. O
aumento da população, ainda que temporário, pode produzir vários efeitos, como uma maior
especulação imobiliária e um aumento dos preços dos serviços locais – o que pode produzir
efeitos como a expulsão de populações mais pobres de algumas regiões, sem renda para arcar
com os custos de vida mais altos (a chamada gentrificação). Pode também sobrecarregar os
serviços públicos oferecidos localmente, como o abastecimento de água, a escoação do esgoto
e o fornecimento de energia – o que, novamente, costuma produzir impactos maiores sobre a
população mais pobre e marginalizada. Por fim, como a maior parte da mão-de-obra
contratada para obras como essa é masculina, com frequência registra-se em situações como
essa o aumento de casos de violência e exploração sexual, gravidez precoce e prostituição.
Estes e outros efeitos nefastos que a instalação das linhas pode ter tido na
região e, especificamente, na Terra Indígena Fulni-ô, são difíceis de serem resgatados e
reconstituídos em sua completude por conta do tempo transcorrido. Não obstante, deve-se
manter em mente que sua inacessibilidade apara um observador atual não significa que não
ocorreram, podendo ter tido efeitos significativos em períodos passados.
Ainda quanto ao território, deve-se falar dos efeitos diretos sentidos pelos
índios ainda hoje. Embora o texto das escrituras e do TAC não os proíbam de fazer plantações
na faixa, eles limitam tais culturas a três metros. Na prática, porém, essa limitação, de acordo
com os índios, é ainda mais restritiva. Isso porque, de acordo com eles, o manuseio da terra
com enxadas, foices e outros instrumentos de metal e madeira podem provocar choques
elétricos a quem os utiliza, em especial em períodos chuvosos ou com alta umidade do ar.
Embora tais choques não sejam graves (não foi narrado nenhum incidente sério), eles
inviabilizam que se plante o que quer que seja na área das linhas. O mesmo ocorreria ao se
tentar construir ou fazer manutenção de cercados. Um segundo fator limitador é que,
periodicamente, a Chesf “passaria máquina” na faixa de servidão, em especial para impedir o

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crescimento de árvores e arbustos, que poderia aumentar o risco de choques elétricos. Essas
máquinas também impediriam o usufruto integral da área, ao submeter as lavouras ao risco de
serem derrubadas.
Já quanto aos choques elétricos, o temor de sua ocorrência aumenta quando há
um longo período sem corte de árvores e arbustos pela Chesf. O usufruto da barragem do
Cariri nesses períodos, que está na faixa de servidão das linhas e é fonte de lazer e de pesca
quando está cheia, eleva ainda mais esse temor.

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Há também que se observar a existência das linhas de transmissão da Chesf na
Terra Indígena Fulni-ô no contexto mais amplo de sua situação fundiária. Vimos, na primeira
parte deste parecer, que ao longo de sua história os Fulni-ô vêm passando por um processo
contínuo de redução, esbulho, apropriação e pressão sobre seu território, por parte tanto do
Estado em suas várias instâncias e manifestações quanto de setores da sociedade local e
regional com grande poder político e econômico. Embora tenham logrado preservar uma
parcela de seu território original, com pontuais apoios e ações por parte de alguns agentes
externos, vê-se claramente que por boa parte de sua história recente eles resistiram a todo tipo
de violência, contra si e suas terras. Dentre as ações de maior impacto sobre seu território
estão, como já indicamos, a divisão em lotes, o arrendamento de terras, a “doação à Santa” a
ao município, com o crescimento da cidade de Águas Belas em seu interior. Também estão
entre estas ações os empreendimentos que atravessam suas terras, que muitas vezes ignoraram
suas especificidades e os impactos coletivos, que ultrapassam as perdas materiais – não
levando em conta que estes são sujeitos de direitos coletivos, entidades socioculturalmente
diferenciadas que devem ser tratadas como tais. A desconsideração dessas características faz
com que eles (e sociedades indígenas em geral) vejam seu território lapidado e seu usufruto
limitado sem que sejam ouvidos e levados a sério. É importante, portanto, notar que as linhas
de transmissão da Chesf são uma dentre várias outras ações que incidem e impactam o
território Fulni-ô ao longo de sua história e ainda hoje.
Citados os impactos diretos e mais visíveis sobre o território, passo àqueles de
outras ordens. O mais notável deles é sobre a área do Ouricuri. Nesse caso, os efeitos não são
necessariamente por conta da perda material ou de manutenção de uso da área – até havia,
tempos atrás, plantio de algumas culturas em glebas de terra mais distantes do local onde é
realizado o ritual, geralmente próximas dos limites da área reservada. De acordo com alguns
informantes, esse plantio era realizado com a permissão do cacique e do pajé, e não havia
impedimento para quem quisesse utilizar tais áreas. Contudo, a degradação dessas áreas, em

72
especial por conta das máquinas da Chesf, além da falta de chuva e de interesse de exploração,
teria diminuído sua utilização. Ademais, já há algum tempo há uma orientação de que seja
preservada a mata de todos os lotes pertencentes ao Ouricuri, tanto porque a caatinga fechada
é importante para a realização do ritual, quanto para protegê-lo do olhar e dos ouvidos de
pessoas estranhas à comunidade.

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É em boa parte por conta da importância atribuída pelos Fulni-ô aos cuidados
para manutenção do segredo de todos os aspectos ligados ao seu ritual que há uma certa
preocupação com a presença das linhas de transmissão da Chesf ali. Mesmo que os lotes do
Ouricuri impactados pelas linhas estejam a uma certa distância do local do ritual, sua
existência exige o desmatamento da faixa de servidão – deixando a área mais “desprotegida”
ao olhar dos intrusos – e a sua manutenção periódica por funcionários da Chesf, expondo seu
ritual à presença próxima de pessoas de fora.

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Foi por causa dessa preocupação que consta no TAC de 2007 a obrigação da
Chesf de não sobrevoar a área do Ouricuri com aviões ou helicópteros nos meses do ritual (de
setembro a novembro), mantendo-se, contudo, o acesso via terrestre – ou seja, não impediram
de todo a presença de estranhos e o desmatamento, mas diminuíram seu impacto direto.
Talvez tenham aceitado este ponto por ser uma exigência da qual a Chesf não abriria mão, e
julgaram que consentir com ele lhes permitiria manter as outras demandas. Ainda assim,
foram registradas reclamações, por exemplo, do sobrevoo da Chesf na área em períodos
diversos do ano, em que são realizados outros eventos rituais na mesma aldeia do Ouricuri.
Por fim, devemos citar que outro impacto relevante, embora indireto, que as
linhas de transmissão tiveram na Terra Indígena foi justamente as negociações e o pagamento
de indenização que sua existência ensejou aos Fulni-ô. Não se contesta aqui o pagamento em
si, ou a obrigatoriedade da Chesf de fazê-lo, mas a forma com que as negociações foram
conduzidas e que o pagamento foi feito, além dos efeitos que produziu.
Embora vários dos problemas relacionados a todo o processo já tenham sido
descritos ao longo do texto, reproduzo aqui os principais deles:
1 – como nota em seus relatórios o servidor da Funai responsável pelo cálculo
do valor da indenização que deveria ser paga, ele se restringiu a fazer uma avaliação do
impacto ambiental, sendo necessária uma avaliação antropológica sobre os danos e impactos
sociais, culturais e políticos e causados pela existência das linhas de transmissão, o que nunca
chegou a ser feito pelo órgão indigenista. Não houve, portanto, nenhuma perícia
antropológica, com estudos e levantamento de dados in loco, além daquela realizada pela
empresa contratada pela Chesf – e que, de todo modo, apresenta dados questionáveis ou
equivocados. Deve-se questionar, ainda, se tal avaliação deveria ser feita por uma empresa
contratada pela parte que pagaria a indenização, já que aspectos subjetivos ligados a danos e
impactos dessa natureza podem dar margem a variações consideráveis nessas avaliações, de
acordo com as os métodos e intenções de seus autores.
2 – o dissenso entre Funai e Chesf sobre o modelo de cálculo dos valores
relativos aos impactos ambientais não foi solucionado através de uma terceira avaliação, como
seria mais prudente, tempo sido superado apenas quando a Chesf, ao longo da negociação,
elevou ligeiramente o valor original que pretendia pagar, de acordo com os cálculos
apresentados, deixando claro que aquele era o seu limite. Mesmo ultrapassado, este ainda

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ficou consideravelmente mais próximo ao que a companhia se dispunha a pagar do que aquele
avaliado pelo órgão indigenista.
3 – a falta de avaliação prévia dos projetos, assistência técnica para sua
elaboração e acompanhamento de sua execução fizeram com que eles se tornassem, ao fim,
fracassados, sem cumprir o objetivo estabelecido pelo TAC. Ademais, a falta de clareza sobre
a destinação dos recursos pagos pela Chesf fez com que inúmeras acusações, suspeitas,
conflitos e desconfianças brotassem na comunidade, que ainda se fazem sentir e que têm

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influência direta na negociação atual.

b) em que medida o acordo proposto entre as partes, nos termos da minuta


do Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta contida nos autos e segundo as
reuniões ocorridas nesta Procuradoria da República, pode mitigar ou compensar
satisfatoriamente os Fulni-ô por tais possíveis impactos?
Em linhas gerais, a minuta do TAC contida nos autos (fls. 379-383) reproduz os
termos do TAC anterior, assinado em 2007. Mas há uma importante diferença: ao escolher
excluir qualquer menção à forma de pagamento dos recursos, a minuta excluiu igualmente as
cláusulas que tratavam da utilização dos recursos financeiros pela comunidade, da fiscalização
e prestação de contas e das obrigações da Associação indígena que foi então responsável por
apresentar os projetos, gerir os recursos e prestar contas.
A supressão de qualquer definição da forma de pagamento provavelmente se
deu por dois motivos: em primeiro lugar, por conta da série de denúncias, acusações e
problemas relativos à gestão e prestação de contas dos recursos da indenização anterior,
somados ao baixo rendimento e benefícios coletivos produzidos pelos seus projetos
executados; em segundo lugar, a existência de um grupo de indígenas que passou a contestar o
pagamento no formato anterior – os representantes das seiscentas famílias.
Nesse novo TAC há apenas, no item 2.3 da cláusula segunda, a declaração de
que o valor da indenização será pago “à Comunidade Indígena Fulni-ô na forma definida em
documento a ser elaborado pelas instâncias próprias da população tradicional Fulni-ô, com a
expressa concordância do Cacique e do Pajé, bem como o visto da Funai e do Ministério
Público Federal”.
Evitar tratar desse assunto no TAC certamente tem vantagens: em lugar de
resolver a questão em uma tacada só, divide-a em duas partes, garantindo primeiro que os

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recursos sejam pagos, para depois então definir como aplicá-los. Em teoria, isso garantiria que
se chegasse mais rápido a um acordo para a assinatura do TAC, deixando o tema mais
delicado para um segundo momento, numa discussão que prescindiria da Chesf, que já teria
cumprido sua obrigação de fazer o pagamento.
Na prática, contudo, os obstáculos para um acordo surgiram da mesma

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maneira, ao menos para os indígenas. Mesmo que o TAC evitasse tratar da forma de
pagamento, essa permaneceu sendo a maior preocupação tanto dos proprietários e do pajé
quanto dos representantes das seiscentas famílias, que continuaram na expectativa de uma
definição, ainda no âmbito dessa rodada de negociação, preferencialmente no próprio texto do
TAC: afinal, o pagamento será feito nos mesmos moldes do anterior ou não? Se houver
mudança, qual será ela? O único item que trata do assunto na atual minuta, o já citado 2.3,
virou alvo de controvérsia: do lado dos proprietários, desejam que fosse incluída no texto uma

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menção direta a eles, de modo que garantissem que tivessem participação no recebimento dos
recursos; do lado dos representantes das seiscentas famílias, desejam que haja citação
expressa que a concordância do cacique e do pajé tem que ser referendada pela comunidade
como um todo, não podendo consistir em decisões monocráticas. Os proprietários, aliás,
chegaram a sugerir um texto alternativo, depois abandonado.
Além da disputa e controvérsia suscitada pelo texto desse item, há outra
questão derivada da falta de definição da forma de pagamento no texto do TAC. Ao repassar à
comunidade indígena a responsabilidade exclusiva de apresentar a proposta da forma de
pagamento da indenização, supõe-se que ela tem os meios, os instrumentos, o conhecimento e
a possibilidade concreta de fazê-lo, ao mesmo tempo em que exime as outras partes de
participar dessa proposta.
Acredito que há alguns problemas nessa suposição. Primeiramente, parte de
uma premissa a meu ver equivocada, ao interpretar autonomia e autogestão das comunidades
indígenas como equivalentes a uma desobrigação de órgãos e instituições que trabalham com
elas de se envolver em tais decisões. Entendo que tais conceitos garantem que as comunidades
devem ter voz, participação direta e informação devida de tudo o que lhes concerne, assim
como garantem que assuntos que lhes dizem respeito possam ser resolvidos de acordo com
suas próprias formas de organização e de resolução de conflitos. Contudo, não raro tais
comunidades se deparam com situações novas, para as quais não há previsão nem precedente
para agir ou decidir dentro de suas normas, regras e organização social. Nessas situações,
muitas vezes falta experiência, acúmulo de informações ou meios de lidar com elas. Por vezes
as situações não são novas, mas os efeitos das decisões são desconhecidos ou não
considerado. Também não é incomum que elas provoquem conflitos e disputas, em especial
aquelas que envolvem bens escassos e/ou especialmente valorizados. Por fim, com muita
frequência tais comunidades não são devidamente comunicadas e informadas, em linguagem
acessível e de forma ampla, sobre o quê tem que decidir, o que isso envolve e quais serão as
ações derivadas dessa decisão.
Também é preciso lembrar que as lideranças tradicionais dessas comunidades
têm uma gama pré-definida de atribuições e responsabilidades, e um campo de atuação
determinado pelo seu cargo. Estes podem ser os mais variados, a depender da comunidade e
do momento histórico, e podem haver diversas formas de escolher, indicar ou se estabelecer

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tais lideranças. Por vezes isso acontece levando-se em conta seus conhecimentos rituais, sua
articulação política ou capacidade de mobilização, ou critérios diversos e até desconhecidos,
vedados a estranhos – como é o caso dos Fulni-ô. De todo modo, elas agem orientadas pela
estrutura social onde estão inseridas, e de acordo com as expectativas coletivas depositadas
sobre os detentores destes cargos, cujo cumprimento que lhes dá legitimidade. Embora as
mudanças históricas e a personalidade dos ocupantes possam influenciar essa atuação, ainda
existirá uma estrutura social na e pela qual exercem suas atribuições, e ainda existirão as

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expectativas criadas sobre elas. Muitas vezes agentes externos acreditam ou esperam que elas
podem atuar, exercer seu poder ou cumprir um papel que não possuem, para o qual não foram
escolhidas ou estabelecidas, ou que não se espera que elas possuam. Muitas vezes elas
também não têm os meios, as informações, formação ou conhecimento para tomar certas
decisões ou fazer certas avaliações. Há que se compreender, então, qual o lugar que ocupam,
quais são suas responsabilidades nessa posição e o quê se espera delas.
Há algum tempo, vários projetos e ações executados no Brasil, a princípio com
a intenção de beneficiar as próprias comunidades indígenas, têm passado a instâncias da
própria comunidade a responsabilidade de executar, gerir e prestar contas dos recursos
recebidos. Embora haja casos bem-sucedidos, é frequente o surgimento de conflitos,
acusações, denúncias e/ou disputas como consequência dessa transferência de
responsabilidade. Quase sempre isso tem entre suas causas a dificuldade de realizar tais ações,
já que fogem às suas atribuições “tradicionais”.
Tudo isso para dizer que delegar a tarefa de definir a forma de pagamento da
indenização da Chesf apenas à comunidade Fulni-ô parece-me equivocada e inócua – até
porque os próprios indígenas esperam que esta definição parta de fora (MPF ou Funai, por
exemplo). Uma decisão assim deve ser tomada com base em informações, modelos e
alternativas que funcionaram alhures, para então identificar seus possíveis efeitos e avaliar sua
viabilidade. Para tanto, a comunidade deveria contar com a assessoria, acompanhamento ou
participação direta da Funai e de outros órgãos, que se reuniriam e dialogariam com a
comunidade para que estes possam decidir autonomamente, mas com base em informações e
experiências concretas, e não às cegas. Creio que, se deixarem de atuar em casos como esses,
pode haver consequências desastrosas que a comunidade não consiga controlar ou prever.
Assim, o texto do item 2.3 do TAC e o método de formulação da proposta de pagamento
devem ser bem pensadas e elaboradas antes que sejam definidas as obrigações de cada parte.
Além disso, há várias passagens no TAC que reproduzem o texto do anterior,

76
mas das quais não há informações que tenham sido cumpridas ou executadas de fato. A
garantia de seu cumprimento e execução é fundamental para que os índios não sejam
prejudicados.
Quanto às obrigações da Chesf, não há nenhuma informação sobre o
cumprimento dos itens g (que estabelece que a Chesf deve “apresentar à Funai a relação dos

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empregados que ingressarão na Terra Indígena Fulni-ô para efetuar a manutenção das linhas
de transmissão”), do item i (que constitui como obrigação da Chesf “orientar regularmente os
índios Fulni-ô, por meio de palestras e cursos, acerca de questões ligadas à segurança, saúde e
preservação ligadas às linhas de transmissão de energia elétrica”) e do item j (que implanta um
Plano de Gestão Ambiental no corredor das cinco linhas de transmissão, detalhando seus
programas).

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Já quanto às atribuições da Funai, não há notícias sobre o cumprimento dos
itens b (que a obriga a “prestar aos indígenas as informações referentes aos empregados da
Chesf responsáveis pela manutenção das linhas de transmissão”), do item d (“convocar os
indígenas a participar dos cursos e palestras promovidas pela CHESF, citados no item 'i' da
cláusula quarta; e dos projetos referidos no item 'j' da cláusula quarta”) e do item e (“dar
conhecimento aos membros da Comunidade Indígena Fulni-ô do inteiro teor deste
compromisso”).
Entendo que se se deseja compensar ou mitigar satisfatoriamente os impactos
da presença das linhas de transmissão e torres da Chesf na Terra Indígena, em especial aqueles
de ordem ambiental, todos estes itens devem ser devidamente cumpridos, criando meios de
acompanhar e fiscalizar esse cumprimento e sua efetividade, sob risco de prejudicar
duplamente a comunidade.
Por fim, algumas palavras sobre o valor total da indenização e a vigência do
TAC. Quanto ao primeiro, é difícil dizer se é justo ou não. A Chesf dividiu o valor total da
indenização anterior pelo número de anos abarcados por ela, chegando a um valor anual.
Multiplicou então esse número pelo quantidade de anos abrangidos pelo TAC atual, e chegou
a um valor total, que consistiu em sua primeira proposta. Depois de algumas rodadas de novas
propostas e contrapropostas, chegou-se a esse montante final de 3 milhões de reais, que foi
acordado por todos os presentes na reunião.
A base do valor atual, portanto, foi aquele estabelecido nas negociações do
TAC anterior. Vimos como foi controversa sua definição, com Funai e Chesf divergindo
amplamente sobre a forma e o modelo de cálculo desse valor, chegando a resultados bem
divergentes. No final, prevaleceu o método da Chesf, com um acréscimo posterior, fruto da
negociação. Essa prevalência não se deu exatamente porque ele se provou o mais correto e
apropriado, mas porque a Chesf não reconheceu a legitimidade e a aplicabilidade dos métodos
da Funai – e com o acréscimo, todos chegaram num acordo, e essa discussão se encerrou.
Assim, para saber se ele valor atualmente acordado é justo, precisaríamos reabrir o debate
sobre a validade do método de cálculo empregado e os resultados apresentados pela empresa
contratada pela Chesf na ocasião. Ademais, é preciso lembrar que, com relação ao impacto
cultural, não houve tentativa de quantificá-lo, apenas assumindo que estaria incluído no
cenário otimista dentre as alternativas consideradas pela Chesf. Não houve perícia nem
avaliação por uma terceira parte dos estudos da empresa contratada.

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De todo modo, pode-se argumentar que, novamente, representantes de todas as
partes da comunidade Fulni-ô estavam presentes na reunião e concordaram com a proposta, e
deve-se respeitar a sua autonomia de tomar estas decisões. Embora seja verdade, é possível
questionar, em primeiro lugar: que possibilidades foram apresentadas então aos Fulni-ô?
Havia alternativas, foram feitos novos estudos, a Funai se manifestou sobre o valor final? Ou
seja, entre uma proposta concreta ou nenhuma, eles preferiram a primeira opção. Em segundo
lugar, retomo o assunto já tratado anteriormente: quais instrumentos, meios, informações os

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Fulni-ô dispunham para avaliar se tais valores eram pertinentes ou não? Não é porque a
comunidade é autônoma que deve tomar tais decisões às cegas, sem orientação alguma.
Dito isso, reabrir a essa altura a discussão sobre o valor total, embora alguns
indígenas desejem revê-lo, pode ser bastante problemático, já que atrasará ainda mais uma
solução para a questão, que pode reacender ou incitar conflitos dentro da comunidade.
Quanto à vigência, os Fulni-ô já se mostraram insatisfeitos, acreditando ser um
valor baixo pelo tempo ao qual corresponde, mas, do mesmo modo, se viram numa situação
de aceitar aquilo que lhes era oferecido ou restar sem nada – e aceitaram, por fim.
Concluindo, é difícil avaliar se o acordo proposto nos termos da minuta do
TAC pode mitigar ou compensar satisfatoriamente os Fulni-ô. Quanto à mitigação, deve-se
garantir que todas as obrigações contidas nele sejam de fato respeitadas, com o cumprimento
integral dos seus itens e cláusulas. Deve haver algum acompanhamento próximo que verifique
se cada um deles está sendo respeitado. Uma presença mais efetiva da Funai, como órgão com
quadro técnico e responsável por acompanhar e avaliar políticas e projetos que envolvam as
comunidades indígenas seria bastante benéfica. Mas a Chesf também tem outras obrigações
além de pagar a indenização, e isso também pode ter efeitos positivos na comunidade, se bem
aplicado. Com relação ao valor, ponto mais importante do acordo, entendo que, como disse,
deveria ter havido outras formas de avaliá-lo, em especial buscando se espelhar em casos
similares para definir a aplicabilidade do método empregado pela empresa contratada pela
Chesf anteriormente. Mesmo o pagamento pelos danos imateriais, difíceis de se quantificar,
poderia ser avaliado em comparação. Seria assim possível saber com mais precisão se o
pagamento é satisfatório ou não. No entanto, creio que o período para se debater essa questão
já se esgotou, ainda mais considerando que já houve acordo por parte dos Fulni-ô quanto a
isso, mesmo que haja descontentamento por parte de alguns. Resta apenas avaliar como será
definida a forma de pagamento dessa feita, tendo em vista o fracasso do pagamento via
projetos, no âmbito do TAC anterior – mas lembrando que deixar a comunidade tomar essa

78
decisão por conta própria, sem informação, suporte ou alternativas, pode também terminar
fracassado.

c) quais as sugestões de modalidades de partilha dos valores decorrentes


do acordo são encontradas no seio da comunidade Fulni-ô?

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Como já expus anteriormente, há atualmente alguns modelos ou formas de
partilha dos valores da indenização da Chesf sendo pleiteados por diferentes membros ou
grupos da comunidade Fulni-ô. Podemos dividir tais propostas, grosso modo, em duas
categorias: uma, a que pretende manter, em linhas gerais, o mesmo formato acordado antes da
assinatura do primeiro TAC, com a distribuição de acordo com a área afetada de cada lote pela
faixa de servidão das linhas de transmissão; e outra, a que pretende modificar tal modelo, em

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favor de um que reverta uma parcela maior à comunidade do que aquela paga na ocasião
anterior.
São apoiadores da proposta do pagamento proporcional à área afetada por cada
lote os proprietários, aqueles vinculados à Fazenda Peró e o pajé. Em favor de sua posição,
eles argumentam que a divisão da Terra Indígena em lotes individuais, assim como seu
usufruto e os benefícios decorrentes de sua posse, fazem parte de sua “organização social”,
isto é, a maneira como as terras, seu uso e suas transações funcionam e são legitimamente
reconhecidas há bastante tempo. Os registros de cada lote no Posto Indígena, com os nomes
de seus proprietários e de suas transações, são vistos como uma espécie de reconhecimento
oficial ou chancela desse sistema. Citam com frequência outras transações (como o chão de
casa e o arrendamento) ou pagamentos de indenizações realizados na Terra Indígena (como
aqueles da Compesa e da Celpe) que ensejam igualmente o pagamento de valores
exclusivamente aos proprietários dos lotes atingidos ou negociados, sem que seja revertida
parcela alguma à comunidade. Em todos esses casos, dizem, é amplamente reconhecida a
legitimidade do proprietário em realizar tais transações ou receber a parte relativa a seu lote,
sem intervenção de terceiros, e a ausência de contestações desses pagamentos pela
comunidade seria prova disso. Dizem ainda que, se esse padrão estabelecido for rompido, há o
sério risco de por em xeque estas outras transações legítimas, e a situação criada poderia
resvalar em divisões e conflitos graves dentro da comunidade – um “desmantelo”, como disse
o pajé.
Os direitos dos proprietários a receber a parcela proporcional dos recursos ao
tamanho de seus lotes foi reconhecida inclusive por cacique e pajé na negociação passada,
como consta na ata de reunião às fls 144-145 do PA 1.26.000.000716/2004-87, na qual os
membros da comunidade entram em acordo quanto à partilha dos recursos, estabelecendo os
valores devidos a cada um.
Como diferença em relação à negociação anterior, como já declarei, os
proprietários pedem apenas que os pagamentos sejam individuais e em dinheiro, não em
projetos, destinados a cada um deles, mesmo que através de uma associação. Pedem apenas,
expressamente, que a parcela devida à comunidade seja paga à parte, sem vínculo direto com
a sua.
Já o pajé pede que a parcela que cabe à comunidade (à qual ele e o cacique,

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como representantes da comunidade, teriam direito de determinar ou orientar seu uso) seja
paga preferencialmente através de projetos, pois prefere evitar que seja diretamente
responsável pelos recursos.
Na outra categoria, que deseja modificar o modelo anterior, revertendo uma
parte maior à comunidade do que aquela anteriormente paga, estão incluídos os representantes
das seiscentas famílias e o cacique. Em comum, todos eles entendem que a comunidade

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deveria ser a beneficiária prioritária dos recursos. Mas divergem quanto ao critério que deve
ser aplicado para a divisão.
No primeiro grupo, não há nem unanimidade interna, como já notei acima.
Também apontei que eles não constituem um grupo organizado, com hierarquia, lideranças ou
processos estabelecidos de tomadas de decisão, mas antes parecem representar uma parcela
significativa da comunidade descontente com a negociação anterior, na qual a divisão dos
recursos foi vista como desproporcional e injusta, somada à percepção de que a comunidade
não foi beneficiada em momento algum, e à suspeita de que os recursos que deveriam ter sido
revertidos a ela não chegaram ao seu destino. Esse pensamento é reforçado pela sensação mais
geral de que um pequeno número de indígenas detém o controle sobre cargos estratégicos,
empregos e recursos dos projetos de fontes variadas destinados à comunidade – cujos
resultados, dizem, são raramente vistos, e em que há pouca transparência, como notou
Schroder. Tudo isso favorece um movimento (não organizado) por uma distribuição mais
democrática e igualitária de recursos (financeiros ou não) e bens disponíveis para a
comunidade.
Assim, ainda que mobilizados por esse pensamento, não há entre eles uma
proposta fechada e definitiva sobre os recursos. Há quem defenda que a totalidade seja
destinada à comunidade, declarando que todos devem ser beneficiados igualmente; há quem
reconheça o direito dos proprietários, mas diz que a comunidade não deve aceitar receber
menos da metade; e, por fim, há quem declare que, definidos os limites reais dos lotes do
Ouricuri (que seriam maiores do que o estabelecido anteriormente), o pagamento pode ser
feito de acordo com o tamanho da área afetada por cada um. O sentimento geral, de todo
modo, é que os recursos não devem se restringir a uma parcela tão pequena da comunidade e
devem ser democratizados, além de compensar a ausência de benefícios concretos da ocasião
anterior.
O cacique, por sua vez, propõe os valores fixos, sem especificar os critérios
considerados para chegar a eles: dois milhões de reais para a comunidade, e um milhão e meio

80
para os proprietários – reconhece assim, em suas palavras, o “direitos dos proprietários”, mas
considera que os recursos foram destinados à comunidade, e que “quando vem alguma coisa
em nome da comunidade é pra ser dividido entre todos”. Criticando a falta de união entre os
Fulni-ô, pede que os índios olhem “para seu irmão” para defender a idéia de que a maior parte
dos benefícios seja coletiva. Contudo, por fim, recomenda que se não se chegar a um

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consenso, que “a justiça resolva” - considerando aqui o Ministério Público Federal como parte
da ideia de “justiça” aqui veiculada, como já apontei.

d) considerando a resposta do quesito anterior, quais os potenciais efeitos


para a comunidade indígena considerando cada um dos modelos de partilha defendidos
pelos integrantes do grupo Fulni-ô?

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Embora seja impossível prever ao certo os efeitos que cada modelo pode ter
para a comunidade indígena, podemos imaginar alguns quadros prováveis a partir das
informações disponíveis.
Antes de traçar tais quadros, contudo, é preciso retomar o tema da divisão da
Terra Indígena em lotes individuais, que possibilitou o arrendamento de suas terras (incluindo
a modalidade chão de casa) e outras transações realizadas sobre elas, sempre em benefício dos
seus proprietários – não obstante o caráter tradicional, indissociável de sua história, que
possui toda a Terra Indígena.
Apontei na primeira parte desse parecer que vários autores notaram os efeitos
nefastos desse sistema, em especial a concentração de terra e de renda, que se retroalimentam,
gerando uma grande desigualdade social dentro da comunidade Fulni-ô, num grau
substancialmente mais elevado que na maior parte das comunidades indígenas em contextos
similares. Também notam ele produziu uma grande quantidade de indígenas Fulni-ô sem-
terra, situação sem equivalentes em outras comunidades indígenas no estado. Chamam a
atenção ainda, como o faz Schroder (2003: 88), para “uma ocupação de fato da maioria da
terra indígena por não-indígenas, não por meio de invasões, mas por práticas estabelecidas
em décadas que contribuíram para cimentar as dependências econômicas dos Fulni-ô da
sociedade regional” (grifos no original).
Muitos Fulni-ô reconhecem esses efeitos, e essa desigualdade indubitavelmente
alimenta as disputas internas, inclusive sobre os recursos que podem ser revertidos para os
Fulni-ô. Ferreira (2000: 47) nota que a expansão de Águas Belas, com o crescimento dos
chãos de casa, tem gerado conflitos diversos, sem que se verifique “ações eficazes que podem
condicionar algum tipo de 'controle' por parte das instâncias oficiais”.
Ainda assim, os mesmos autores (e os próprios Fulni-ô) também reconhecem
que essa forma de organização fundiária e de exploração de suas terras, embora tenham sido
criadas (ou, melhor dizendo, impostas) pela ação e pressão do Estado, e não como
manifestação de uma concepção própria de uso e propriedade de suas terras, ocorre na
comunidade Fulni-ô há mais de cento e cinquenta anos 11, e foi institucionalizado pelo Decreto
637, de 1928 – isso sem contar com a “doação a Santa”, em 1832, que abriu caminho para que
a Igreja Católica arrendasse as áreas “doadas”. Essa longevidade teria estabelecido e
pacificado a legitimidade desse sistema – embora isso não equivalha a dizer que os Fulni-ô

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sempre concordaram com ele, como atesta o documento citado na nota de rodapé 6.
Importante dizer também que, embora existentes, não há garantia de que os foros eram
efetivamente pagos antes da presença do SPI na área, quanto menos que chegassem aos
indígenas, principalmente depois da Lei de Terras de 1850.
Analisando o tema em seu parecer sobre o chão de casa entre os Fulni-ô, Jorge
Bruno Souza, a partir de uma ideia de “prática tradicional” como “aquela cuja existência é
reconhecida pelo grupo como parte do seu modo de vida, consolidada pela sua continuidade

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histórica, e que esteja de acordo com seus valores culturais” (p. 13-14), entende que qualquer
modalidade de arrendamento não é uma “prática tradicional” indígena, mas “antes, trata-se de
uma prática estranha ao modo de vida que os Fulni-ô consideram como próprio de sua
cultura” (2017: 14). Segundo ele, os Fulni-ô justificariam esta prática, portanto, não pela
tradição, mas pelo seu papel como meio de subsistência das famílias, em especial diante das
dificuldades de outras fontes (como a agricultura, caça, pesca e artesanato) de prover essa
subsistência.
Não obstante, ele declara:
Embora não se trate de uma “prática tradicional”, o “chão de casa”, assim
como o arrendamento de lotes, é percebido pelos Fulni-ô como uma
prática legítima, ainda que nos últimos anos tenham surgido discussões
e reflexões sobre seus impactos na comunidade, principalmente quanto ao
aumento da desigualdade e a escassez de terras para as famílias indígenas.
A legitimidade dessas práticas decorre, como referido acima, da sua
instituição por órgãos do Estado, mas também pela sua continuidade
histórica, tornando-as parte do cotidiano da comunidade Fulni-ô, que a
assimilou (p. 15; grifos meus).

Peter Schroder, por sua vez, também nota que “foi imposto aos Fulni-ô um
modelo de terra indígena totalmente estranho à sua territorialidade [referindo-se à demarcação
de 1878, com a divisão em lotes]” (2003: 52). Ele também cita Coutinho Jr. e Melo, que em
seu artigo (2000) declaram que “a conveniência ou necessidade da permanência do
arrendamento como instituição socioeconômica aparenta ser uma unanimidade entre os Fulni-

11 Dantas (2010: 100, apud Souza, 2017) registra a existência de um abaixo-assinado dos Fulni-ô ao Diretor
Geral das Aldeias da província de Pernambuco, de 1860, em que manifestam insatisfação com o fato do diretor
parcial da aldeia por esse não respeitar o acordo no qual apenas parte das terras seria aforada (isto é, arrendando
uma parte maior).

82
ô, seja qual for a facção a que pertençam” (2000: 62) – lembrando que sua análise baseiam-se
somente em informações disponíveis na literatura, já que estes autores não realizaram trabalho
de campo. Schroder, contudo, contesta essa conclusão, já que, ao menos durante seu período
entre os Fulni-ô, constatou que “surgiram diversas vozes que criticam a prática dos
arrendamentos em termos gerais, propondo alternativas econômicas para uma terra

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indígena ampliada” (88; grifos meus).
Marco Paulo Schettino, em seu parecer, também declara (novamente, lembro
que baseando-se apenas em informações obtidas através da bibliografia) a respeito da divisão
da Terra Indígena em lotes:
pode-se afirmar que ela foi incorporada como uso pelo grupo a partir de uma
imposição decorrente do contato interétnico, chegando, portanto, a se

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constituir em costume entre os Fulni-ô. É preciso perguntar pelo grau de
legitimidade que esse uso tem hoje entre os Fulni-ô, se é aceito como
razoável e juto, ou se ainda é objeto de muitas controvérsias internas (fl.
266).

Temos, portanto, um aparente dilema: a divisão da terra em lotes e seu


arrendamento constituiriam um sistema estranho à territorialidade Fulni-ô, que foi introduzido
e imposto por agentes externos. Ao longo do tempo, tal sistema teria provocado uma grande
desigualdade na comunidade, que parece se intensificar nos últimos anos, além de ter
agravado ou permitido a formação de conflitos internos e externos. Por outro lado, esse
sistema teria sido incorporado por completo pela comunidade, e sua profundidade histórica,
assim como sua “presunção de legalidade”, derivada do fato de que as transações e registros
dos lotes sempre foram feitos com o acompanhamento, atuação direta ou conhecimento de
agentes estatais, além da aparente concordância ou conhecimento inconteste por parte das
lideranças, parece ter conferido legitimidade a este sistema. Não obstante, como registram
alguns autores, há hoje algumas vozes que questionam a prática dos arrendamentos.
Como esse dilema se relaciona ao presente caso? Embora a maior parte do
debate reproduzido aqui faça referência ao arrendamento, tanto ele quanto o pagamento
individualizado da indenização da Chesf aos proprietários dos lotes afetados baseiam-se no
mesmo princípio de reconhecimento do aspecto privado dos lotes quanto à sua exploração,
usufruto e negociação – ainda que com certos interditos. Em outras palavras, se o pagamento
da renda (ou chão de casa) relativa aos lotes é feito exclusivamente aos proprietários, de
acordo com o tamanho da área arrendada, se presume que, por analogia, deve ser feito o
mesmo com relação ao pagamento de indenizações e demais benefícios, igualmente de acordo
com a área afetada. Se, pelo contrário, se contesta o pagamento individual da indenização,
também faria sentido contestar o recebimento individual da renda relativa aos lotes. Ou seja, o
que está em discussão é a extensão da percepção da terra enquanto um item/bem privado, ao
mesmo tempo em que o conjunto dos lotes está ligado à coletividade Fulni-ô como parte de
seu território, sua história e sua identidade cultural.
Não há respostas prontas para essas tensões e dilemas, até porque não há casos
similares ao dos Fulni-ô nos quais poderíamos nos espelhar. Podemos apenas fazer um
exercício de especular quais os cenários possíveis diante das alternativas disponíveis. Assim,

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cito novamente as opiniões dos autores que se manifestaram sobre o assunto – geralmente
tratando sobre arrendamento, mas cujas conjecturas cabem no presente caso. Schroder, na
conclusão de seu relatório, embora note que o loteamento da terra indígena “produziu graves
distorções sociais e econômicas dentro da Terra Indígena Fulni-ô” e que “os arrendamentos
(…) assumiram dimensões cada vez maiores que exigem soluções limitativas imediatas”
(2003: 109), afirma ao final que, quanto à demarcação,

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recomenda-se não alterar, por parte do órgão indigenista, o sistema de lotes
traçados dentro dos limites da terra indígena atual, mas, na hipótese de
qualquer ampliação da terra indígena, mantê-lo apenas dentro dos limites do
quadrado. Qualquer intervenção abrupta nesse sistema estabelecido há
mais de cem anos pode provocar impactos sociais e econômicos
imprevisíveis para os Fulni-ô, muito acostumados a ele. No entanto, é
recomendável o próprio órgão indigenista estimular debates entre os
Fulni-ô sobre um futuro sem lotes e arrendamentos para buscar
alternativas viáveis e socialmente mais justas a essa prática e
eventualmente abolir o sistema (idem: 110; grifos meus).

Souza, por sua vez, ao imaginar os efeitos que uma possível interdição do
arrendamento poderia provocar na Terra Indígena, declara que
é possível que a simples vedação do arrendamento tenha impacto na
qualidade de vida de segmento da população Fulni-ô, que tem no
arrendamento sua principal fonte de renda.
É também possível que essa medida venha a instigar conflitos tanto internos
quanto externos, visto que as atuais lideranças serão chamadas tanto pelos
“proprietários” quanto pelos que desejam mudanças na estrutura fundiária
da terra indígena a se posicionar, abrindo caminho para a reemergência das
disputas faccionais, sempre muito presentes no contexto Fulni-ô (...).

A vedação do arrendamento e do “chão de casa” pode também


estimular e agravar conflitos envolvendo a distribuição de recursos
oriundos de indenizações pelo uso da terra, como no caso das linhas de
transmissão da CHESF, da CELPE, do uso da água, e outras, visto que
os “proprietários” que arrendam terras sentem-se no mesmo direito
daqueles que tem seus lotes afetados por obras ou equipamentos
públicos e são indenizados por isso (2017: 36-7; grifos meus).

Aplico tais considerações ao presente caso para responder diretamente à

84
pergunta: quais os possíveis efeitos para os Fulni-ô de cada modelo de divisão dos recursos da
Chesf proposto pelos integrantes da comunidade?
Como já afirmei, entendo que tanto o arrendamento quanto o pagamento de
indenizações individuais estão assentados em um mesmo princípio atualmente vigente na
Terra Indígena Fulni-ô: o de que a terra, enquanto meio de produção e possuidora de valor

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econômico, é vista como espaço privado, e, portanto, é privado também qualquer rendimento
ou benefício que lhe diz respeito. Tal princípio se concretiza no reconhecimento dos lotes
privados e de suas transações. Mesmo levando-se em conta que esse sistema foi imposto ao
Fulni-ô, e que produz efeitos negativos que têm se intensificado no período recente – e ainda
que se reconheça que os arrendamentos deveriam ser limitados ou controlados, como
sugeriram alguns –, é inegável esse princípio ainda norteia a concepção da terra entre os
Fulni-ô.

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Assim, entendo que qualquer modelo de partilha de indenizações, oriundas de
qualquer fonte, que rompa bruscamente com esse sistema, mesmo que isso pareça justo e
democrático, pode de fato ter graves efeitos na comunidade, podendo de fato estimular cisões
e conflitos, além de abrir caminho para contestações quanto a arrendamentos, chãos de casa, e
outras indenizações relativas à Terra Indígena. Pode haver também, como afirmou Souza,
grande pressão sobre as lideranças para que se posicionem, além de potencialmente provocar
conflitos também com o município de Águas Belas e outros não-indígenas caso a discussão
atinja os chãos de casa, entre outros efeitos imprevisíveis.
Não quero dizer com isso que tal sistema é imutável, e que os Fulni-ô estão
condenados a viver sob esse regime indefinidamente. Mas qualquer mudança com relação a
uma questão tão sensível como essa deveria ser precedida de amplos debates, diálogos e de
aprovação coletiva, e deveria ser feita gradualmente e com o acompanhamento próximo de
instituições que atuem com a comunidade indígena. Ademais, qualquer alteração nesse
sistema deve valer para toda a estrutura fundiária Fulni-ô, incluindo todas as negociações
feitas sobre a terra. Passar a tratar de outro modo exclusivamente uma delas pode soar
arbitrário e injusto. Preferencialmente, essa mudança deveria ser iniciada a partir da
regularização da Terra Indígena Fulni-ô, como sugerido por Schroder, que se constituiria então
um marco a partir do qual cessariam as dúvidas sobre o estatuto jurídico da Terra Indígena, e o
futuro do arrendamento e dos lotes poderia ser alvo de discussão, em especial tendo em mente
sua vedação pela legislação corrente.
Por outro lado, mudanças como essa podem se iniciar a partir de um
movimento interno, e não só a partir de uma articulação institucional. É difícil dizer se o
surgimento dos “representantes das seiscentas famílias” é um indício do início de esgotamento
do modelo atual, que já se mostrou causador ou agravador de profundos impactos sociais na
comunidade, podendo vir a se tornar insustentável. De todo modo, parece-me que há uma
percepção já bastante difundida que questiona principalmente os efeitos desse sistema
fundiário, como a concentração de renda e de terras em poucas famílias ou pessoas. Desse
modo, não se pode descartar que uma divisão dos recursos da Chesf que, novamente, distribua
um montante maior aos proprietários possa provocar reações intensas por parte daqueles que
sentirem que, mais uma vez, a comunidade está sendo preterida e injustiçada – e podem mais
ainda, acusar as instituições envolvidas na assinatura do TAC de referendarem essa injustiça.

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Alguns dos representantes dessas famílias já declararam que não aceitarão de modo algum que
a comunidade seja prejudicada dessa vez.
Ainda assim, reitero que mudanças como essa devem ser feitas com cautela,
segurança e devem ter efeitos amplos. Modificar um aspecto já tão arraigado (mesmo
considerando seus vários aspectos negativos) da organização fundiária Fulni-ô dessa maneira,
e apenas com respeito à indenização da Chesf, parece abrir um precedente complicado e um
tanto arbitrário.

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Dentre os modelos propostos pelo grupo das “seiscentas famílias”, contudo, há
aquele que propõe que, uma vez revistos os limites da área do Ouricuri, supostamente maiores
do que os originalmente considerados, os pagamentos poderiam ser feitos proporcionalmente
à área dos lotes. Essa proposta é a única dentre as “pró-comunidade” que não entra em choque
direto com o sistema atual, sendo, assim, a mais provável de ser acordada entre as partes. A
proposta de revisão da área da reserva do Ouricuri parte do princípio de que eles não foram
respeitados da primeira vez. Entro em mais detalhes sobre isso em outro quesito.
Por fim, cabe dizer que, independente de como as coisas funcionam e das
mudanças possíveis, a autonomia da comunidade deve sempre prevalecer sobre qualquer
sistema. Com isso quero dizer que os Fulni-ô podem adotar o modelo que desejarem,
conquanto sejam respeitadas suas próprias e legítimas instâncias decisórias e sua organização
sociopolítica, e garantindo que estejam bem informados sobre seus efeitos e sua aplicação.
Isso nos leva ao próximo quesito.

e) qual o posicionamento da comunidade Fulni-ô, de acordo com suas


instâncias decisórias e representativas próprias, com relação ao acordo proposto,
explicitando os motivos e implicações de possíveis divergências ou abstenções?;
Antes de tratar do posicionamento das instâncias decisórias e representativas
Fulni-ô, é preciso indicar quais são essas instâncias exatamente.
Algumas publicações sobre os Fulni-ô fazem menção à existência de um
conselho de famílias na comunidade, que deliberaria sobre assuntos diversos. Schettino, por
exemplo, baseando-se nestas citações, sugeriu que o acordo de divisão proposto nas
negociações do primeiro TAC fosse levado a esse conselho para se aferir sua legitimidade.
Embora o pajé Fulni-ô tenha chegado a enviar a lista dos conselheiros a esta
unidade ministerial, pouco depois os proprietários disseram que este conselho não se reúne

86
periodicamente, e que a deliberação da proposta ficaria prejudicada (fls. 295-297 do PA
1.26.000.000716/2004-87).
Na realidade, de acordo com as informações coletadas em campo e as consultas
bibliográficas, o que existe não é exatamente um órgão colegiado que delibera periodicamente
sobre questões diversas e comunica suas decisões, como se poderia esperar. Ferreira (2000:

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47-48) declara que eles são como conselheiros do cacique, “líderes políticos (…) que tem
como principal função auxiliar o cacique em suas decisões”. Se Ferreira relaciona suas
funções ao cargo de cacique, Schroder, por sua vez, diz apenas que há “um número não
revelado de conselheiros”, e que “tampouco se revela aos não-indígenas quem integra o
conselho”.
Em meu trabalho de campo, percebi que há uma resistência ou reserva sobre

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esse assunto. Por vezes algumas dessas lideranças são apontadas, mas quando se pergunta por
mais detalhes, tergiversam. Assim, sabe-se pouco sobre elas, como, por exemplo, como são
escolhidas ou quais são e como exercem suas funções. Não há nem mesmo clareza se são de
fato conselheiros do cacique, como declarou Ferreira, ou se não possuem vínculo direto com
ele. O que se sabe é que são respeitadas e ocupam um lugar de relevância na comunidade.
Essa espécie de reserva ou segredo que cerca o assunto faz com que seja difícil
saber se seria possível submeter essa questão para uma manifestação dos conselheiros. Como
os próprios Fulni-ô jamais propuseram que algo do tipo seja feito, é provável que isso não
esteja entre suas funções, talvez porque, como concordam os autores aqui citados, cacique e
pajé sejam as maiores autoridades dentre os Fulni-ô – segundo Schroder, “os representantes
oficiais nos contatos políticos com a sociedade envolvente” (p. 18) – e caberia assim
exclusivamente a eles esse tipo de decisão. Schroder ainda acrescenta que não há distinção
hoje entre os papéis político e religioso que cada qual pode ter exercido em separado no
passado, e a isso adiciono a observação que não há indicativos de preponderância de um sobre
o outro.
Sendo assim, a fim de responder apropriadamente a esse quesito, caberia
considerar fundamentalmente as manifestações do cacique e do pajé, como instâncias
decisórias e representativas máximas entre os Fulni-ô.
Já vimos acima quais as posições do pajé e do cacique sobre o assunto – em
resumo, o primeiro defende que se mantenha a divisão dos recursos como feita na ocasião
anterior, enquanto o segundo defende que dessa feita um montante maior seja destinado à
comunidade. Diante desse aparente impasse, teço a seguir algumas considerações sobre a
situação.
Não parece haver aqui uma disputa pessoal ou política entre ambos. Na
realidade, aparentemente não houve diálogo entre os dois desde o início dessa negociação,
cada qual se manifestando independentemente. Segundo alguns informantes ligados aos
proprietários, o cacique seria frequentemente “blindado” pela sua família, principalmente seus
filhos, que impediria que ele fosse acessado diretamente, dificultando qualquer diálogo ou
acordo. Narram até uma situação em que o pajé procurou o cacique no espaço do Ouricuri, ao
que logo foram cercados pela família deste. De fato, o cacique está sempre acompanhado por
alguém de sua família, mas isso se deveria à sua saúde frágil (embora esteja lúcido), que exige

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acompanhamento constante. De todo modo, surpreende constatar que, até minha entrevista
com ele, não havia clareza, para os Fulni-ô e para sua própria família, segundo declararam,
quanto à sua posição sobre o assunto, já que até então sua única manifestação foi o ofício que
registrou o seu pedido pela “judicialização” do caso, assunto já abordado aqui.
Embora surpreenda que até aquele momento não tivesse tornada pública sua
proposta, essa postura do cacique parece condizer com seu perfil. Vimos que na primeira
negociação ele preferiu manter-se com relativa distância das tratativas, evitando assumir uma

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posição quando consultado no início, participando de poucas reuniões (e apenas aquelas
circunscritas à comunidade) e sem se manifestar diretamente à Funai ou ao MPF, ao longo do
processo, e, já na execução dos projetos, preferiu não administrar nem ser responsável por
projeto algum, mesmo aqueles relativos à parcela da comunidade. Essa postura, vimos,
distancia-se da assumida pelo então pajé, que marcou presença e se manifestou de forma mais
enfática ao longo do processo, e quis assumir responsabilidade direta, pelos projetos que
diziam respeito ao Ouricuri, propondo e gerindo os recursos, conforme divisão feita com o
cacique sobre o valor destinado à comunidade.
O que chama a atenção aqui, por outro lado, foi a mudança de postura do
cacique, que na ocasião anterior esteve presente (assim como o pajé) na reunião que definiu
que os recursos seriam divididos de forma proporcional à área afetada (fl. 141-142), assinando
a ata e sem registro algum de objeções de sua parte. Ambos também assinam as declarações
que reconhecem as propriedades dos lotes afetados pelas linhas de transmissão (fls. 158-206),
constando a área afetada (segundo levantamento da Funai), nome completo dos proprietários e
localização, embora não conste ali menção alguma ao pagamento da indenização. Embora ele
não tenha explicitado na entrevista, podemos supor que ele tenha se frustrado com a maneira
com que os recursos foram gastos anteriormente, que reverteram em poucos benefícios para a
comunidade.
O pajé, por sua vez, tem uma postura mais parecida com aquela do anterior, de
quem é sobrinho-neto. Embora não tenha tomado a frente da negociação, foi ativo e presente,
participando de algumas das reuniões ocorridas nesta Procuradoria, enviando algumas
manifestações por escrito e participando de reuniões internas na comunidade. Nessas ocasiões,
sempre deixou clara sua posição de que a divisão dos recursos deveria seguir o mesmo
modelo anteriormente aplicado, isto é, de acordo com a área impactada.
Outros indígenas o acusam de não falar por si, mas respondendo a orientações
ou determinações do pai, que foi listado como esposo de uma proprietária na negociação

88
passada, e é um dos líderes da Fazenda Peró. Seu perfil um pouco mais reservado parece ter
estimulado essa interpretação. Contudo, na entrevista individual que realizei com ele, essa
mesma posição foi mantida.
Divergências como essas são bastante prejudiciais a um acordo, já que criam
incertezas e paralisam o prosseguimento da negociação, diante da insegurança e do risco de se

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deslegitimar uma liderança ao adotar o modelo proposto pela outra. Entendo que isso ocorreu
neste caso principalmente pelas atuais circunstâncias envolvendo as duas maiores lideranças
Fulni-ô, que dificultaram um diálogo e um discurso único de ambas: de um lado, o cacique
idoso, com a saúde frágil e sem condições de acompanhar de perto os desdobramentos das
tratativas (e, provavelmente, pouco disposto a isso, como anteriormente); de outro, um pajé
jovem, com pouca experiência, filho de uma liderança conhecida e cuja presença levanta
suspeitas sobre a independência da posição do pajé. Talvez essa situação tenha criado uma

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espécie de vácuo de poder dentro da comunidade Fulni-ô, que os “representantes das
seiscentas famílias”, além de proprietários, tentaram preencher de alguma maneira.
O mais recomendável nesse caso seria que eles, como representantes máximos
da comunidade, se reunissem e chegassem a uma proposta única. Entendo que, independente
da posição das demais partes envolvida, qualquer decisão tomada não pode prescindir de
maneira alguma da anuência dos dois, sob o risco de minar a autoridade de um ou de ambos,
desrespeitando a organização social tradicional Fulni-ô e submetendo-os a uma instância
externa – a não ser, é claro, se a sua ação for de encontro à própria organização social para
favorecer a si mesmos ou a um pequeno grupo, o que não parece ser o caso. Para evitar que
grupos internos se alimentem dessa divergência para ganhar tempo ou espaço, o ideal é que
esse consenso fosse construído o quanto antes. Mesmo que os proprietários declarem que já
procuraram o cacique inúmeras vezes, sem que tenham obtido resposta alguma, entendo que
caberia ao MPF no máximo intermediar esse diálogo (principalmente com o pajé), mas jamais
pressioná-lo ou induzi-lo a tomar posição para que se dê solução para o impasse.

f) há erros, divergências ou questionamentos relativos aos limites dos lotes


individuais e coletivos e ao tamanho da área afetada, que poderiam repercutir na forma
de pagamento do valor total?;
Esse é um dos pontos centrais do discurso daqueles que representariam as
seiscentas famílias. Segundo eles, como já citei, os proprietários dos lotes vizinhos da reserva
do Ouricuri teriam avançado gradativamente sobre a área coletiva, afastando aos poucos as
cercas que marcam os limites dos lotes para aumentar suas próprias áreas. Se tal fato procede,
na realidade a área coletiva seria maior do que aquela inicialmente considerada, o que
reverteria, assim, em uma parcela maior da indenização da Chesf para a comunidade.
Questionado sobre o assunto, o pajé confirmou que sempre ouviu esses rumores, mas que não
tem conhecimento nenhum sobre o assunto para desmentir ou confirmar.
Os atuais proprietários, como é de se esperar, negam qualquer ação do tipo.
Embora os representantes das seiscentas famílias não tenham mencionado nomes, três
proprietários se manifestaram voluntariamente sobre o assunto, sem que eu os houvesse
questionado, declarando que eram seus os lotes alvos de contestação, e defendendo-se das
acusações. Alguns deles, aliás, adquiriram glebas de terra há pouco tempo, enquanto outros as

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possuem há anos. Segundo eles, estes lotes sempre mantiveram os mesmos limites, durante o
todo período em que estão sob sua posse e nos períodos anteriores, fato amplamente
reconhecido pelos proprietários dos lotes vizinhos, sem registro de contestação alguma por
parte deles ou da comunidade.
Para tentar averiguar se há elementos que possibilitam que se confirme ou
rejeite a narrativa sobre a apropriação, em primeiro lugar, visitei alguns dos lotes vizinhos aos
do Ouricuri em duas ocasiões, primeiramente acompanhado pelos proprietários, e uma

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segunda vez, acompanhado pelos representantes das seiscentas famílias e outros indígenas.
Em momento posterior, levantei dados bibliográficos que pudessem informar melhor sobre a
propriedade e os limites desses lotes. Uma das mais importantes fontes já produzidas sobre o
tema das propriedades dos lotes Fulni-ô é o levantamento da cadeia dominial realizada pelo
antropólogo da Funai Ivson Ferreira, em 1996, incluído como anexo ao relatório produzido
por solicitação da Funai, no qual levantou dados sobre todos os lotes da Terra Indígena Fulni-
ô a partir dos livros de registros de lotes encontrados, entre 1956 e fins dos anos 1980.
Contudo, apesar das várias tentativas – como contato com o próprio autor –, não logrei acesso
a nenhuma cópia desse levantamento, que seria fundamental para sanar tais dúvidas.
Não obstante, em contato com o atual coordenador da CTL de Águas Belas,
consegui realizar cópias de alguns desses livros, que foram localizados por ele. É importante
notar que vários deles não estão em posse da Funai, e não se sabe ao certo sua localização,
estando em boa parte mal conservados e sem nenhum tipo de organização, o que dificulta sua
consulta e deixa lacunas no levantamento dessas informações. O pouco tempo disponível para
compilar esses dados também compromete a apresentação de um quadro mais completo da
situação. De todo modo, foi possível obter dados importantes para a questão aqui tratada.
Antes de passar às informações obtidas em campo e na análise documental, é
preciso falar da única ocasião em que foram identificados os lotes e o tamanho da área de cada
um deles que é afetada pela faixa de servidão das linhas de transmissão da Chesf. Isso foi
realizado em outubro de 2004, quando, por solicitação do então administrador regional da
Funai, dois técnicos agrícolas do órgão indigenista realizaram “levantamento e mapeamento
das torres de transmissão da Chesf”. O trabalho envolveu a indicação do número de torres por
lote, a relação dos proprietários e dos lotes numerados, e o tamanho da área de servidão das
linhas relativas a cada propriedade, além de um levantamento planimétrico (ou um mapa)
delas.
Embora não haja motivos concretos para levantar suspeitas sobre as

90
informações encaminhadas pela Funai, podemos identificar algumas omissões e lacunas sobre
aspectos importantes, que lançam dúvidas e deixam espaço para questionamentos, fazendo
com que as contestações como aquelas aqui tratadas não possam ser respondidas de imediato.
Entre elas, estão as seguintes:
1 – não há esclarecimentos sobre o método utilizado para produzir os mapas

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nem localizar as linhas de transmissão e as torres;
2 – não declaram como foram identificados os limites dos lotes: foram
utilizados dados da Funai? Quais? Houve medição in loco, ou os dados sobre a localização
das torres e das linhas foram apenas sobrepostos aos mapas dos lotes já existentes? Se houve
medição, dados pré-existentes foram considerados como referência, ou alguém informou seus
limites? Quem? Se foram levados em conta indicações dos próprios proprietários, tais

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informações foram confirmadas por terceiros?
3 – não há dados de como procederam no caso de haver mais de uma
propriedade dentro do mesmo lote: levaram em conta as declarações dos próprios
proprietários? Estas foram confirmadas por terceiros?
4 – sobre o tamanho da área do Ouricuri: houve confirmação dos limites ou
acompanhamento por parte das lideranças Fulni-ô?
Quanto à pesquisa documental, a Funai produziu em 1995 um mapa da Terra
Indígena Fulni-ô, no qual estão indicados os lotes reservados ao Ouricuri. Já reproduzi um
recorte desse mapa, onde constam os lotes do Ouricuri, à página 18 desse parecer.
Os números dos lotes e seu total (13 lotes, como já indicado em outras
publicações) foram confirmados por e-mail recente enviado a mim por Ferreira, que afirma
que, de acordo com seu levantamento realizado em 1995-1996, “os índios afirmaram serem
estes no entorno do local [do ritual], aqueles necessários para preservar o contexto do ritual.
São os seguintes os lotes registrados: 332; 352-353-354-355; 373-374-375-376; 391-392-393-
394, totalizando portanto, 13 lotes.”
Há contudo que se fazer uma ressalva: no mapa reproduzido acima, o traçado
das linhas de transmissão da Chesf não está correto. Como se sabe, é incontroverso que as
linhas de transmissão atingem lotes da área do Ouricuri, mesmo que se conteste o tamanho da
área atingida. Contudo, aqui as linhas seguem uma linha reta abaixo dos lotes do Ouricuri, o
que denuncia o erro. O restante das informações, porém, parecem ser exatas.
No levantamento realizado pela Funai em outubro de 2004, contudo, (fl. 81),
estão todos os lotes indicados acima, exceto os de nº 332, 352, 373, 391 (os três mais à
esquerda no mapa). Segundo tal informação, portanto, seriam nove os lotes do Ouricuri, e não
treza. Como as informações obtidas em campo e em outras publicações confirmam que
originalmente eram mesmo apenas nove, e os outros quatro foram incorporados
posteriormente, podemos concluir que o levantamento da Funai está apenas desatualizado. De
fato, os índios indicam que os lotes incorporados foram mesmo os excluídos pela Funai aqui.
Outra informação documental a que tive acesso foi a reprodução da “Planta da
Extincta Aldeia de Ipanema”, feita pela Comissão de Medição de Terras Públicas, em 1877.
Como descrevi na primeira parte, essa comissão teve como objetivo justamente demarcar e
lotear as terras do então recém-extinto aldeamento do Ipanema. Nessa planta estão os lotes da

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Terra Indígena Fulni-ô com o mesmo formato e numeração de hoje – copiado e juntado aos
autos de forma fracionada, o que dificulta sua visualização integral (fls. 215-236). De todo
modo, essa planta, trazida como anexo à carta s/nº de indígenas Fulni-ô (fl. 214), conta com
anotações à mão em cada um dos lotes, que informam o nome do sítio em que cada um está
localizado. Isso porque os Fulni-ô identificam as áreas de seu território não só por lotes, mas
por sítios, que se sobrepõem àqueles, unidades com nomes próprios e que podem abarcar
alguns ou vários lotes ou trechos do território. É delicado utilizar as informações dessas

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anotações porque não se sabe quando foram feitas e quem fez esses registros, nem sua fonte.
Contudo, chama a atenção aqui que identifica-se como pertencentes à reserva do Ouricuri
justamente os lotes listados acima, exceto o 373 (“S. L. do Alto”), o 353 (“S. Não
Identificado”) e o 332 (“S. Não Identificado”) – todos eles também listados pela Funai em
2004. Apenas o 391, que o órgão indigenista também deixou de incluir como pertencente à
reserva, já se encontra aqui como parte da área coletiva. Novamente, tais registros
provavelmente apenas comprovam o que dizem os Fulni-ô, que foram justamente tais lotes
aqueles incorporados posteriormente à área coletiva. No período das anotações, que é
impossível precisar, é provável que isso ainda não houvesse acontecido, ou que ainda não
estivesse oficializado.
Por fim, me refiro aos dados obtidos pelos Livros de Registros de Lotes que
foram fornecidos pelo coordenador da CTL-Águas Belas. Já declarei que nem todos os livros
estão em posse da Funai, muitos estão malconservados e não há organização alguma, o que
dificultou essa consulta. Como agravante, as cópias que obtive, referentes aos lotes do
Ouricuri e dos adjacentes, muitas vezes não reproduziram as páginas originais por inteiro (em
geral, cada página do livro diz respeito a um lote), deixando de fora informações importantes
como o número do lote do qual se tratava ali.
Ainda assim, foi possível obter algumas informações relevantes para o caso
atual.
Tive acesso às cópias de um livro que abrange os anos de 1967, 1968 e 1969,
além dos livros que correspondem, cada um, aos anos de 1971, 1972, 1977, 1982, 1983, 1987
e 1988, e cópia do anexo ao relatório de 1996, de Ivson Ferreira, em que descreve a situação
de cada lote na época de seu estudo. Resumo as informações neles obtidas nos seguintes
pontos:

92
1 – lotes que foram incorporados posteriormente:
Lote nº 332: de fato, nos livros de 1971 e 1972 há registro de arrendamento
nesse lote, o que indica que não era reservado então para o Ouricuri. Não há registros nos
demais. Em 1995, Ferreira, registra que, segundo os índios, embora proprietários já tivessem
sido registrados em livros anteriores, àquela data ele pertenceria à reserva do Ouricuri.

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Lote nº 352: registros de proprietários em 1971, 1977, e 1983. Em 1987 e 1988
há registro também de arrendatários. Não obtive cópia referente a esse lote do levantamento
de Ferreira.
Lote nº 373: não obtive informações sobre este lote nos livros antigos. No
estudo de Ferreira, há apenas a informação de que faz parte daqueles reservados ao Ouricuri –
com a mesma observação quanto ao registro de proprietários em livros anteriores.

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Lote nº 391: nos livros de 1982 e 1983, sem registro de proprietários ou
arrendatários. Em 1995, consta apenas pertencer aos do Ouricuri, com a mesma observação
dos anteriores.

2 – demais lotes do Ouricuri – os nove originais:


Há registros no livro de 1971 de que pertencem à reserva do Ouricuri os lotes
376, 375, 394 e 392. Todos estes, contudo, também estão registrados em nomes de
proprietários. Alguns dos livros dos anos seguintes também possuem registro desses nomes
nesses mesmos lotes, sem citar que fariam parte da reserva do Ouricuri. Nenhum desses nove
lotes, contudo, possuem registros de arrendatários nos livros. Em muitos dos livros não há
registro algum sobre tais lotes.

3 – lotes vizinhos que supostamente também fariam parte da área coletiva,


conforme relatos de alguns indígenas:
Como já afirmei, segundo alguns indígenas, algumas áreas atualmente
consideradas como parte dos lotes privados na realidade pertenceriam à reserva do Ouricuri, e
teriam sido apropriadas indevidamente. Para averiguar tais declarações, verifiquei os registros
de alguns deles, em especial aqueles indicados expressamente como áreas coletivas pelos
representantes das seiscentas famílias. Destes, os lotes 356, 377, 395 e 407 (respectivamente,
nos livros de 1967-68-69, 1971, 1972 e 1977; 1972; 1972 e 1977; 1967-68-69, 1982 e 1983)
contam com registros de proprietários e arrendatários, e nenhum registro como parte da
reserva do Ouricuri. Já os lotes 405, 406 e 408 não contam com registros de arrendatários ou
como reserva do Ouricuri, mas possuem de proprietários.
Assim, se confirma a narrativa dos próprios Fulni-ô de que há registro de
alguns lotes do Ouricuri (em especial os nove originais) em nome de proprietários em alguns
dos livros antigos. Não obstante, todos eram sabedores de que esses lotes deveriam ser
reservados à reserva do ritual – de fato, quatro dos nove também incluem essa informação. É
relevante observar que nenhum livro registra a presença de arrendatários em nenhum desses

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nove lotes, e isso parece confirmar que nunca houve usufruto privado dessas terras – isto é,
que de fato sempre foram reservados para a comunidade, para a prática do seu ritual.
Quanto aos lotes que teriam sido incorporados posteriormente, o registro de
arrendatários nos lotes 332 e 352 em alguns dos livros antigos comprovam que nem sempre
teriam sido parte da área coletiva. Contudo, em 1995 já eram reconhecidos como parte dela,
segundo Ferreira.

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Por último, com relação aos lotes vizinhos àqueles reconhecidos como parte da
área do Ouricuri, não há informações nos livros que corroborem a tese de que foram parte da
área coletiva e teriam sido “privatizados” com o tempo. Não há registros de que já foram parte
da reserva, e a presença de arrendatários pressupõe que sempre foram privados, já que não há
relatos ou registros de arrendamento dentro da reserva do Ouricuri em nenhum momento da
história recente Fulni-ô.
De todo modo, ressalto que as lacunas e omissões nos registros documentais
obtidos, além da falta de acesso ao levantamento da cadeia dominial dos lotes Fulni-ô,
realizado por Ivson Ferreira, dificultam que se avance com maior segurança para algum tipo
de conclusão sobre o assunto.
Já quanto ao trabalho de campo, declarei acima que fiz duas visitas a alguns
dos lotes vizinhos do Ouricuri, uma primeira com os proprietários, e outra com representantes
das seiscentas famílias. Os proprietários mostraram-me especialmente os limites dos lotes
privados com os lotes coletivos, além dos limites da Terra Indígena. Vários destes estão
marcados por cercas. Todavia, quiseram me mostrar, principalmente, os chamados marcos,
que são grandes pedras que teriam sido instaladas em data incerta, nas pontas de cada lote –
isto é, na interseção entre quatro deles. Junto aos marcos, foram colocadas as “testemunhas”,
isto é, quatro pedras menores que indicam a direção das linhas que fazem a divisa entre cada
lote. Tais marcos e suas testemunhas seriam a maior prova de que os lotes se mantêm dentro
dos limites originais, sem avanço algum sobre a área coletiva.
Foram-me mostrados sete pontos onde estariam alguns destes marcos, sendo
que dois deles não estão mais em seus locais – segundo os indígenas, teriam sido arrancados
para a construção de cercas. Dos sete, seis indicam pontos de interseção entre lotes do
Ouricuri e lotes particulares, e o último entre lotes particulares e os limites da Terra Indígena.
Reproduzo a seguir o mapa anterior dos lotes, mas agora com a indicação da localização dos
marcos visitados, numerados de acordo com a ordem de visitação, com as fotos de cada um
(ou do local onde estariam) na sequência:

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Figura 3 – mapa dos lotes do Ouricuri, com a indicação dos marcos visitados.
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Foto 1 – local do marco 1. Ele teria sido arrancado para construção da cerca.

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Foto 2 – a pedra na base da cerca seria o marco 2.

Foto 3 – marco 3. Aqui se vê claramente, no centro, a pedra indicando o marco, e as quatro


testemunhas, indicando a direção das linhas que limitam os quatro lotes. Nesse caso, em sentido horário a partir
da pedra no topo, são indicados os limites dos lotes 393 e 394, 394 e 408, 408 e 407, e 407 e 393.
Foto 4 – marco 4.

Foto 5 – marco 5, com as testemunhas.

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cerca.
Foto 6 – marco 6. Segundo os indígenas, este também teria sido arrancado para a construção da
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Foto 7 – marco 7, já no limites da Terra Indígena, com três testemunhas, não visíveis na foto.
Aqui são três, em lugar de quatro, porque indicam apenas a divisa entre dois lotes e os limites da Terra Indígena,
e não entre quatro lotes.

100
Além de indicar a localização dos marcos, os proprietários trouxeram para a
visita alguns indígenas mais velhos que nos acompanharam, confirmando a identificação dos
nove lotes originais do Ouricuri, a propriedade particular dos lotes vizinhos, e declarando que
os limites entre eles, assim como os marcos divisórios, correspondem àqueles que sempre
foram reconhecidos.

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Com os representantes das seiscentas famílias percorri as mesmas áreas,
também acompanhado de indígenas mais velhos. Segundo sua narrativa, vários dos lotes
circunvizinhos seriam parte da área coletiva. Estariam incluídos aí ao menos os lotes onde
está a barragem do Cariri e além, somados aos lotes que estão atrás da área do Ouricuri, já na
fronteira da Terra Indígena – aqueles com área menor que 30 hectares, chamados muitas vezes
de “sobras” pelos indígenas, por serem menores que os lotes “completos”.

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Entretanto, não souberam indicar ou citar os limites precisos dessa área coletiva
– disseram apenas que chegaria até o lote de Eduardo (nº 378), ou seja, incluiria ao menos um
lote a mais da área da Terra Indígena atingida pelas torres (o lote nº 377). Também não
apresentaram documentos ou registros que comprovassem suas declarações. A ausência de
registros ou documentos, por si só, não é suficiente para descartar a sua hipótese, já que se
sabe, em primeiro lugar, que muitas vezes estes possuem lacunas, omissões e até erros, e que
nem sempre são fonte segura de informação; em segundo lugar, a definição dessa área coletiva
pode ter sido feita informalmente, como um acordo interno da comunidade, sem passar pelo
órgão indigenista, e portanto não ter sido registrada. Como não temos mais dados sobre algum
ato ou decisão que tenha reservado essa área para o Ouricuri, é difícil confirmar tais
declarações, ainda que não se possa refutá-la em definitivo.
Ainda assim, é preciso dizer que, além dos relatos de alguns indígenas mais
velhos presentes na ocasião, não há, até aqui, outros elementos que corroborem essa versão de
uma área coletiva mais extensa. Aparentemente, cacique e pajé reconhecem os lotes e a área
reservada no tamanho e na localização defendidos atualmente pelos proprietários. Todos os
estudos e levantamentos da Funai a que tive acesso, incluindo o de Ivson Ferreira, além dos
registros nos livros de lotes antigos, vão no mesmo sentido.
Ainda é possível, por outro lado, colocar duas questões em dúvida: uma, se os
marcos e as divisões indicadas a mim in loco realmente correspondem às áreas dos lotes
indicadas no mapa, já que não há informações que comprovem essa correspondência – ou
seja, se na prática os limites estão de acordo com o previsto na documentação da Funai. Uma
segunda questão, derivada, é se a área de cada lote afetada pelas linhas de transmissão,
segundo levantaram os técnicos da Funai, foi calculada respeitando a divisão dos lotes como
reconhecida e prevista originalmente. Como nesse levantamento não há indicação nenhuma
das fontes ou dos métodos utilizados para informar os limites dos lotes e das propriedades,
como já indiquei (por exemplo, se foram considerados apenas relatos orais, e de quem), não
há garantia de que os cálculos estão de fato corretos.
O que poderia sanar tais dúvidas, e também esclarecer como se deu a formação
e definição da reserva do Ouricuri e de seus limites, é um novo parecer multidisciplinar que
seja feito com esse objetivo exclusivo, colhendo relatos orais, dados bibliográficos e
documentais sobre o assunto, além de mapear e historiar em detalhes os lotes e propriedades
vizinhos, as áreas dentro da faixa de servidão das linhas, cruzando os dados obtidos e

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verificando a correspondência entre os mapas disponibilizados e o reconhecimento de fato
pelos indígenas. Embora tenha tratado do tema aqui em termos gerais, uma abordagem mais
específica e aprofundada ultrapassa os objetivos e o alcance do presente parecer, limitado
também pelo tempo e ausência de informações.
Em suma, mesmo que os dados obtidos não permitam que se chegue a
conclusões definitivas, há diversos elementos que apóiam a tese de que a reserva do Ouricuri
se restringe aos lotes constantes no mapa aqui reproduzido, que corresponderia, em teoria, à

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área apontada a mim pelos proprietários, levando em conta os marcos exibidos por eles. Uma
possível redefinição desses limites teria impacto direto sobre a forma de pagamento da
indenização da Chesf, caso o tamanho da área afetada seja o critério utilizado para dividir os
recursos.

g) se, segundo os Fulni-ô, a particularidade da área conhecida como


Fazenda Peró – adquirida pela Funai em 2000, contígua à atual Terra Indígena e que
não passou pela divisão de lotes nos moldes do território já reconhecido –, tem algum
efeito sobre a compensação prevista no acordo proposto, considerando o possível
impacto produzido na fazenda pelas torres e linhas supracitadas?;
Como já descrevi acima, a Fazenda Peró deve ser vista à parte do restante da
Terra Indígena. Alvo de retomada em 1998 e com suas benfeitorias indenizadas em 2000, não
faz parte da área loteada e ocupada até então pelos indígenas. Não obstante, o título de
propriedade da fazenda foi anulado por conta do reconhecimento da área como tradicional
indígena, como consta na escritura pública supracitada, e foi então registrada em nome da
União, em favor da comunidade indígena Fulni-ô. Ou seja, embora a Funai não tenha baseado
este ato em estudos que demonstrassem a tradicionalidade da ocupação da área, não deixa de
ser um reconhecimento (ao menos formal) de seu aspecto tradicional, sem o qual não seria
possível considerar nulos os títulos de propriedade. Os estudos de Peter Schroder – ainda que
seu relatório seja preliminar – também indicam a área como parte do território tradicional
Fulni-ô. Como se sabe, um território tradicional está vinculado a uma comunidade, e é com
esse objetivo que ele é demarcado, mesmo que seu regime de ocupação e divisão das terras
seja definido internamente.
Por outro lado, a forma e o contexto em que ocorreu a retomada – quando a
comunidade estava passando por um período de cisão interna, tendo sido integralmente
executada pelo “grupo” dissidente – dão argumentos aos que defendem que a área pertence

102
apenas àqueles que participaram ativamente do movimento, e se arriscaram para obtê-la. Na
época, segundo textos sobre o assunto, cacique e pajé Fulni-ô, mesmo que concordassem com
aquilo que os motivou – a proteção do Ouricuri – chegaram a sugerir que essa área não fosse
incorporada à Terra Indígena, mas destinada exclusivamente a esse grupo. De todo modo,
quando enfim regularizada, distribuiu-se o direito a uma gleba de terra da fazenda, do mesmo

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tamanho padrão, para todos os participantes do movimento, e de tamanho maior para seus
líderes, como já vimos.
Quanto aos impactos diretos produzidos pelas torres e linhas de transmissão da
Chesf, estes são basicamente os mesmos daqueles produzidos no restante do território
indígena, com uma importante diferença: como a ocupação dessa área só aconteceu em 1998,
não deveriam ser considerados aqueles impactos anteriores a essa data (ou seja, desde a
instalação das torres que atravessam a área), já que, para os indígenas, eles só passariam a

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produzir efeitos a partir de então. Considerando esse ponto, é bastante razoável contestar a
divisão dos recursos feita anteriormente, já que o valor total da indenização foi dividido
apenas em proporção à área, e não levando em conta o tempo reduzido, em relação ao
restante, que a Fazenda Peró, já em posse dos indígenas, esteve impactada pela presença das
torres.
A particularidade da Fazenda Peró não afetou apenas a divisão de suas terras,
mas também a divisão dos recursos pagos em 2007. Enquanto na Terra Indígena, segundo os
proprietários, apenas teriam direito a pleitear uma parcela da indenização quem possui
atualmente terras na faixa de servidão das linhas de transmissão, aqui, como já disse, todos os
que participaram da retomada – independente se ainda têm ou não terras sob sua posse na área
da fazenda, e do tamanho dessas terras – têm direito à mesma parcela de indenização, com
exceção dos doze, que receberiam uma montante maior.
Ou seja, aqui, para ter acesso aos benefícios vinculados à terra, não importaria
tanto a restrição de seu uso provocado pela presença das linhas e das torres, mas sim o direito
daqueles que lutaram por ela. É tratada, então, como se fosse uma área destinada à
coletividade dos participantes do movimento.
Alguns indígenas, contudo, reagiram recentemente a este modelo, contestando
a distribuição desses recursos (alguns dos quais teriam participado da retomada sem receber
sua devida parcela), declarando que a área pertenceria, na realidade, à comunidade, já que foi
“adquirida” para esse fim pela Funai. Surge então uma questão importante: afinal, é legítimo
que a divisão seja feita nesses termos, já que em teoria ao menos parte da indenização se
prestaria a compensar impactos diretos ao território?
É uma pergunta delicada, e há argumentos disponíveis para defender pontos de
vista conflitantes. Isso se deve principalmente ao fato de que a Terra Indígena Fulni-ô como
existe hoje, como já afirmei várias vezes ao longo desse parecer, possui especificidades
construídas ao longo de sua história. Estas características são aplicáveis somente à área
reconhecida e loteada segundo a demarcação de 1878. Quando surgem novas áreas, como a
Fazenda Peró, surgem a um só tempo novas situações, que exigem novas respostas. Em outras
palavras, não havia então um padrão estabelecido entre os Fulni-ô que poderia a ser seguido
nesse caso. Pelo contrário, pela primeira vez em mais de um século estavam em sua posse
uma área não dividida em lotes, e sobre a qual o órgão indigenista não efetuou registro de

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posses nem transferências ou transações. Desde sua “aquisição”, aliás, a Funai parece não ter
intervindo na área em nenhuma ocasião.
Por isso, foram adotadas as providências que foram julgadas justas e
apropriadas por aqueles que estavam à frente da retomada, tomadas à medida que as situações
surgiam. Como os Fulni-ô estavam divididos no período, mesmo que a comunidade como um
todo se beneficiasse da expulsão dos brancos da fazenda, o movimento foi visto como algo
que dizia respeito apenas ao “grupo”, e não à comunidade. Quando tiveram sucesso em sua

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empreitada, o recebimento de glebas de terra foi uma espécie de compensação, de prêmio a ser
dividido entre aqueles que participaram dela ativamente. Boa parte das terras, contudo, não
chegaram a ser cercadas ou delimitadas. Não obstante, a conexão desses participantes com
essas terras seria mantida para o recebimento da indenização da Chesf. Segundo eles,
portanto, o direito à indenização é derivado do direito às terras como compensação de sua
participação no movimento, mesmo que posteriormente essas terras tenham sido
transacionadas. Assim, a participação no movimento é o que dá legitimidade, segundo eles, ao
direito à indenização (por igual), e não a posse de fato das terras. Quando pergunto a alguns
dos doze sobre a possibilidade de compartilhar a indenização com o restante da comunidade,
estes reagem fortemente, declarando que iniciaram o movimento por conta própria, sem apoio
de cacique e pajé, se arriscaram sozinhos e tiveram sucesso sozinhos, e não abrem mão desse
direito. Também não abrem mão de partilhar o valor em partes iguais para todos os
participantes (novamente, com um valor maior para os líderes).
Por outro lado, nos próprios autos há registros de que, ao menos no início da
negociação, o recursos relativos à Fazenda Peró foram considerados como parte da parcela
destinada à comunidade. Essa rubrica consta no levantamento feito pela Funai em outubro de
2004 (fl. 52: “Fazenda Peró (Comunidade)”), e esse entendimento também está na ata de
reunião entre proprietários, cacique, pajé e Funai (que somam os valores das áreas do Ouricuri
e Peró, fls. 144-5) e na declaração do chefe do Posto Indígena (“as duas áreas (...) localizadas
na área denominada 'Fazenda Peró' (…) pertence a Comunidade Fulni-ô”, fl. 149).
É possível que isso seja derivado justamente da interpretação da “aquisição” da
fazenda pela Funai. Disse antes que a escritura registra que o usufruto e a posse da área passa
a ser da “Comunidade Indígena Funi-ô (sic)”. O envolvimento da Funai nesse processo, por si
só, já é um fator que favorece o entendimento de que a área foi “adquirida em nome da
comunidade” – afinal, os Fulni-ô sabem que a Funai atua (ou deveria atuar) em nome de
todos, e as terras demarcadas ou adquiridas, em geral, são para usufruto ou alocação de um

104
povo enquanto coletividade – resguardadas suas formas próprias de transmissão de
propriedade e organização territorial. Talvez por isso alguns dos vinculados à Fazenda Peró
ressaltem que a ideia original era que a área fosse registrada em nome de uma Associação
criada por eles, o que não teria sido possível por conta de inadimplências ou irregularidades
em seu registro. Sabe-se, contudo, que qualquer área indígena demarcada é de propriedade da

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União, e não de pessoas físicas ou jurídicas – ou seja, a não que eles adquirissem a área
segundo uma noção civil da propriedade (em cujo caso provavelmente não haveria
envolvimento da Funai), esse registro não seria possível. De todo modo, foi reconhecida a
tradicionalidade da área na escritura, e não houve compra, mas anulação dos títulos de
propriedade.
Assim, alguns indígenas atestam ou se perguntam se a área não deveria ser
coletiva, ou ao menos os recursos relativos a elas, já que formalmente foi adquirida com esse

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fim.
A falta de estudos definitivos sobre o território Fulni-ô a ser demarcado, com a
indicação de seus limites exatos, e a indefinição jurídica de sua situação fundiária, além da
não anexação da fazenda à Terra Indígena deixa várias dúvidas sobre sua situação – somadas
ao fato que de, como disse, é uma área relativamente nova, diferente do restante das terras.
Aparentemente, desde a retomada, cacique e pajé optaram por se manter a certa
distância dos assuntos relativos à fazenda, já que sua “aquisição” foi feita como resultado da
mobilização do um grupo que não estava, por assim dizer, sob sua liderança política. O
silêncio sobre o assunto pode ser lido como um reconhecimento tácito de que os participantes
e especialmente os líderes da retomada poderiam decidir como bem entendessem como
ocupar essa nova terra. A opinião deles, expressa do relatório de Fialho e Secundino, de 1999,
de que essa deveria ser considerada como uma terra “à parte” corrobora essa visão. Na
negociação passada com a Chesf, um dos doze teria falado sobre a questão com o cacique, que
ao fim decidiu que não queria opinar sobre a fazenda, e teria autorizado que recebessem os
recursos em separado daqueles destinados à comunidade. Os questionamentos recentes,
contudo, podem mudar esse entendimento – embora, por hora, soem mais como perguntas do
que reivindicações propriamente ditas.
Portanto, a maneira como é definida e entendida a posse da área e a forma
considerada legítima de distribuição dos recursos relativos a ela têm efeitos diretos sobre o
pagamento da indenização, já que poderiam modificar ou manter o formato posto em prática
na negociação anterior.

h) outras questões que sejam consideradas pertinentes.


Descrevo aqui alguns casos particulares que me foram narrados durante o
trabalho de campo, alguns dos quais já possuem registro nos autos.
Três indígenas me procuraram então, cada qual apresentando uma ou mais
situações envolvendo terras impactadas pelas torres, dizendo-se prejudicados de alguma
maneira.
Um deles foi Vicente Pereira da Cunha, que já prestou declarações duas vezes a
esta Procuradoria, que foram reduzidas a termo e juntadas aos autos (anexo 10, fls. 273-278).

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Ele apresenta três questões distintas envolvendo terras suas.
A primeira é relativa ao lote 379. Segundo ele, metade do lote pertenceria a
dois herdeiros, José Caroba Neto e sua irmã, Irailda Feitosa Ribeiro (por vezes também
registrada como Railda Pereira da Silva, anexos 11, 12 e 13), cada qual com 7,5 hectares.
Contudo, não teriam sido delimitados, no terreno, as glebas de cada um, ficando apenas
registrado formalmente o direito de usufruto ou posse de uma área no tamanho indicado. Em

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2009, contudo, já depois do pagamento da indenização anterior da Chesf, Vicente adquiriu as
terras de Irailda, cuja transação foi registrada em Termo de Doação (anexo 14). Um trecho do
lote, contudo, é atingido pelas linhas de transmissão da Chesf, e José Caroba, por conta
própria, interpretou que esse trecho pertenceria a ele mesmo, enquanto a Vicente caberia o
outro, não impactado pelas linhas. Esse último argumenta que nunca houve a delimitação das
áreas de cada um, e que, portanto, José Caroba não poderia receber a parcela integral da
indenização referente a este lote antes de uma definição. Afirma que já tentou resolver o
problema através das lideranças e da CTL, sem sucesso.
Uma segunda situação é referente ao lote 382. Segundo Vicente, sua mãe, Itaci
Ferreira da Cunha, teria adquirido, em 1985, 3 hectares deste lote, pertencente anteriormente a
Manoel Pereira da Cunha, então já falecido – a parcela da herança do lote à qual Glinaura
Pereira dos Santos, filha de Manoel que fez a transação, teria direito (anexo 15, 16, 17 e 18).
Contudo, hoje em dia os herdeiros de Manoel não concordariam em repassar a ele os
benefícios aos quais faria jus, como único herdeiro da mãe – ou seja, a devida parte da
indenização da Chesf referente ao lote (segundo ele, dos 10 mil reais que deveria receber, foi
pago apenas 6 mil) e o valor dos arrendamentos da terra.
A terceira é referente à gleba de terra que adquiriu na Fazenda Peró, de Pedro
Francisco Ribeiro, em 2013 (anexos 19 e 20). Pedro foi um dos participantes da retomada, que
recebeu terras na área como compensação. As terras de Pedro adquiridas por Vicente são
atravessadas pelas linhas de transmissão da Chesf. Assim, Vicente declara que teria direito a
uma parcela da indenização proporcional à área de suas terras, como ocorre na área loteada –
o que, como vimos, foge do critério empregado pelos líderes da Fazenda Peró para partilha da
indenização relativa à área, desvinculada da posse e do tamanho da terra.
Outro indígena que relatou seu caso foi José Ribeiro Filho – igualmente, já
havia feito termo de declarações nesta unidade ministerial, também juntado aos autos (fls.
298-303). Ele afirma que ele e mais três (incluindo Vicente) são os únicos proprietários da
Fazenda Peró cujas áreas são atingidas diretamente pelas linhas e torres da Chesf (anexo 21).

106
No entanto, outros proprietários, cujas terras estão distantes das linhas e torres, estariam à
frente da negociação. Portanto, assim como Vicente, interpreta que deveria receber uma
parcela proporcional ao tamanho de sua terra, seguindo o mesmo critério aplicado no restante
da Terra Indígena, modificando o modelo anterior. Também encaminhou na ocasião relação de
outros indígenas “representantes da Fazenda Peró” que não teriam participado da indenização

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anterior (anexo 22).
O último indígena que relatou seu caso foi Manoel Ribeiro de Sá. Esse, na
realidade, já é um caso antigo, reeditado por conta da nova indenização: nas negociações do
TAC anterior, Manoel já havia encaminhado seu pleito. Em suma, ele reivindica parte da
indenização relativa ao lote 378, relativa aos danos passados. Tal lote lhe pertencia até 2003,
quando o vendeu a Eduardo – justamente o ano em que este deu início à sua reivindicação por
indenização pelas linhas de transmissão da Chesf no território Fulni-ô. Como o TAC de 2007

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afirma que a indenização refere-se aos danos passados, presentes e futuros até 2015, Manoel
entendeu que caberia a ele a parte proporcional ao tempo em que foi proprietário desse lote.
Eduardo, por sua vez, sempre declarou que, entre os Fulni-ô, sempre ficou entendido que
vender um lote ou parte dele implica também em abrir mão de todos os benefícios derivados –
e isso caberia neste caso. É importante registrar que este caso parece ser o único de ex-
proprietário de lote que reivindicou uma parcela da indenização. A Funai, inclusive, já se
manifestou anteriormente, dizendo que nesse caso deve-se “reconhecer plenamente a
autonomia da comunidade indígena Fulni-ô”. Manoel, contudo, renova seu pleito através do
anexo 23.
Noto, ainda, que também foi encaminhada e juntada aos autos uma relação dos
indígenas que também teriam participado da retomada da Fazenda Peró, mas que não teriam
recebido parcela nenhuma da indenização paga em 2007, pedindo que agora sejam
contemplados (fl. 294-295) – esta é uma relação diferente daquela citada logo acima,
encaminhada por José Ribeiro Filho. Na primeira, consta um dos indígenas que se apresenta
como um dos representantes das seiscentas famílias, Elídio de Freitas. Enquanto os líderes da
Fazenda Peró dizem hoje que ele era apenas um visitante, um apoiador da ação, mas não um
participante direto, seu nome consta em uma “carta aberta s/n” assinada por 51 representantes
da Fazenda Peró, às fls. 170-172.
Outro indígena também fez a mesma solicitação, sobre quem já havia sido
juntado aos autos do Procedimento Administrativo 1.26.000.000716/2004-87 uma declaração
de um dos doze líderes, reconhecendo sua participação no movimento (fl. 574; anexo 24), e
declarando “não ter conhecimento de que o mesmo tenha sido contemplado com quaisquer
benefícios oriundos dos recursos financeiros, destinados ao beneficiamento de todos os
participantes do referido movimento (sic)”. Entendo que tais casos devem ser esclarecidos e
encaminhados antes que o pagamento seja realizado, para evitar dúvidas, troca de acusações e
denúncias futuras.
Duas observações finais: a primeira, de que foram juntados aos autos desse
mesmo Procedimento Administrativo alguns Termos de Declarações referentes a
reivindicações dos Fulni-ô referentes às linhas de transmissão da Celpe (Companhia
Energética de Pernambuco), e não da Chesf – que não apresentam nenhuma relação com o
objeto do presente auto (por exemplo, fls. 702-704 e 714-716).

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A segunda: registro novamente a solicitação dos advogados dos proprietários e
representantes da Fazenda Peró para que conste nos termos do TAC que seus honorários
advocatícios sejam pagos diretamente a eles, e que seus nomes sejam incluídos expressamente
no texto. Encaminham instrumentos procuratórios de todos os indígenas que os constituíram
como seus representantes (fls. 402-441).
É o parecer.

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Garanhuns, 2 de agosto de 2017.

OTÁVIO ROCHA DE SIQUEIRA


Analista do MPU/Perícia/Antropologia
Matrícula 21.890

108
RELAÇÃO DE ANEXOS

ANEXO 1 – Mapa da Terra Indígena Fulni-ô, feito pela Funai em 1995.


ANEXO 2 – Manifesto de membros jovens da comunidade indígena Fulni-ô.

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ANEXO 3 – Processo 0202972-8, do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, com
julgamento da prestação de contas de repasse realizado à comunidade Fulni-ô, em nome de
Elídio de Freitas, presidente do Grupo Jovem da Tribo Fulni-ô.
ANEXO 4 – Detalhes do processo 0000100-06.2004.8.17.0150, da Justiça Estadual de
Pernambuco, sobre o repasse de verbas indicado no anexo anterior.
ANEXO 5 – Manifestação dos representantes da Fazenda Peró à Funai, em 1998.

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ANEXO 6 – Escritura Pública de Declaração de Reconhecimento de Terra Indígena, relativa à
Fazenda Peró
ANEXO 7 – Ata de reunião a respeito dos recursos da indenização da Chesf concernentes à
Fazenda Peró
ANEXO 8 – Informação Técnica nº 9/2017/CGID/DPT-FUNAI
ANEXO 9 – Recibo de pagamento realizado pela Chesf como de indenização pelas
benfeitorias destruídas e ficha de avaliação, 1973
ANEXO 10 – Termo de Declarações Vicente Pereira da Cunha
ANEXOS 11, 12 E 13 – Documentos relativos à posse do lote 379
ANEXO 14 – Termo de Doação do lote 379
ANEXO 15 A 18 – Documentos relativos ao lote 382
ANEXOS 19 E 20 – Documentos relativos à área da Fazenda Peró pertencente a Vicente
Pereira da Cunha
ANEXO 21 – Documentos relativos à área de José Ribeiro Filho na Fazenda Peró
ANEXO 22 – Relação de indígenas que declaram ter participado da retomada da Fazenda
Peró, mas não receberam indenização sua parcela da indenização
ANEXO 23 – Documentos relativos ao pleito de Manoel Ribeiro de Sá, sobre o lote 378
ANEXO 24 – Declaração de Elói Lúcio Sobrinho a respeito de Clodomiro de Matos, sobre
sua participação na retomada da Fazenda Peró
BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Áurea Fabiana A. de. & DOPPLER, Werner. Distribuição da terra, renda

Assinado com certificado digital por OTAVIO ROCHA DE SIQUEIRA, em 03/08/2017 16:22. Para verificar a autenticidade acesse
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identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. 1. ed. Recife: Editora Universitária da
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CAMPOS, Carla Siqueira. Aspectos da organização econômica nas relações de pressão e


estratégias de sobrevivência. In: SCHRÖDER, P. . Cultura, identidade e território no Nordeste

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indígena: os Fulni-ô. 1. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. v. 1. 262p .

COUTINHO, Walter. J. & MELO, Juliana G. Reflexões sobre a questão fundiária Fulni-ô. In:
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FERREIRA, Ivson. Relatório: grupo indígena Fulni-ô. Relatório para a Funai. Recife, 1996.

FERREIRA, Ivson J. “Ruptura e Conflito: a Prática Indigenista e a Questão da Terra entre os


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FOTI, Miguel. Resistência e segredo: relato de uma experiêca de um antropólogo com os


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PINTO, Estêvão. Etnologia Brasileira (Fulni-ô – Os Últimos Tapuias).Coleção Brasiliana, Vol.


5. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1956.

SCHRÖDER, P. Identificação e delimitação da Terra Indígena Fulni-ô -PE : Relatório


Preliminar Circunstanciado (Relatório de pesquisa). Funai/UNESCO, 2003.

SECUNDINO, Marcondes de Araujo & PAIVA e SOUZA, Vânia Fialho de. História

110
Acontecida, História Vivida: considerações sobre a incorporação da fazenda Peró à Terra
Indígena Fulni-ô. 2000 (Relatório para a Funai).

SIQUEIRA, Otávio Rocha de. Parecer Técnico 1/2015. Parecer elaborado no âmbito do
Inquérito Civil n. 1.00.000.014458/2013-13.

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SOUZA, Jorge Bruno. Parecer Técnico nº 252/2017 – SEAP. Parecer elaborado no âmbito do
Procedimento Administrativo nº 1.26.005.000031/2014-62.

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MINISTÉRIO PÚBLJCO FEDERAL
Procuradoria da República no Município de Garanhuns
Av. ldelfonso Lopes, 174, Heliópolis - 55296-230 - Garanhuns - PE
Pabx (87) 3761-1266

TERMO DE DECLARAÇÕES
Aos 6 dias do mês de junho de 2016, compareceu nesta Procuradoria da República no
Município de Garanhuns o indígena Fulni-ô Vicente Pereira da Cunha, RG nº 2.804.827 FUNAI,
CPF nº 892.051.704-53, tel: (87) 99915-5553, residente e domiciliado na Aldeia Indígena Fulni-ô,
em Águas Belas/PE, para noticiar os seguintes fatos:
QUE, como consta nos anexos 1, 2 e 3, adquiriu em 2007 duas glebas de terra nas quais
passam as torres de alta tensão da CHESF, uma no lote 379, e outra na Fazenda Peró, medindo
respectivamente 7,5 hectares e 25,5 hectares;
QUE, no caso da Fazenda Peró, procurou recentemente o proprietário anterior da área
que adquiriu, para tratar do recebimento de sua parcela da indenização da CHESF, já que as torres
atravessam as suas terras, ao que recebeu a resposta que não tinha direito a nada;
QUE as 180 famílias que participaram da retomada da Fazenda Peró em 1996, embora
em grande parte já tenham vendido as suas terras e saído do local, receberam suas parcelas da
indenização paga em 2007 pela CHESF;
QUE, durante a negociação para aquisição destas terras, nunca conversaram sobre o
pagamento da indenização pela CHESF;
QUE, quanto à sua parcela do lote 379, por onde também passam as torres da CHESF,
também procurou os outros herdeiros proprietários do restante do lote, ao que responderam que o
declarante nunca receberia nada;
QUE já procurou o coordenador técnico local da Funai, assim como cacique e pajé, para
tratar do assunto, e que nada foi resolvido;
QUE como já declarou a esta Procuradoria, através do Termo constante à fl. 116, quanto
ao lote 382, que pertencia a seu pai, e que possui 10 herdeiros (um deles sendo sua mãe, que
adquiriu as terras de um dos filhos), não foi paga a parcela devida da indenização anterior da
CHESF (dos 1O mil que deveriam ter sido pagos a cada um, foi pago apenas 6 mil), assim como não
é pago o valor do arrendamento destas terras.
Assim, solicita a intervenção deste Parquet Federal para que suas reivindicações
referentes às três situações acima descritas sejam levadas em conta na ocasião de pagamento de uma
nova indenização pela CHESF.
MINJSTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da República no Município de Garanhuns
Av. Idelfonso Lopes, 174, Heliópolis - 55296-230 - Garanhuns - PE
Pabx (87) 3761-1266

foi na o ºJ.dade acrescentado, no que foi encerrada essa representação, sendo


J
,_ j·
·
por mun, , Otávio Rocha de Siqueira, Analista do
MPU/Perícia/Antropologia, PRM-Garanhuns/PE, mat. nº 21.890, assinada, e pelos declarantes.

Lt :f.Q,\i.u d4. e�
Vicente Pereira da Cunha

Documentos anexos:

- Relatório de injustiça do povo Fulni-ô;


- Termo de doação de área na Fazenda Peró;
-Termo de doação de área do lote 379.
;Ré-f; fl t11 ..;,5 (.·, !:J � fl.4) l OA· �'12� n. MI>... .
N9 DO LOTE - 379
�'.)�'}()O rc:.fVY\V Oí:- 00���
0 1 Yº'-11 ·:Y?E;
LOCALIZAÇÃO - Sítio Cariri

EXTENSÃO 30 ha
••
PROPRIETfi.rUO/OCUPANTE {J.9 88) - · l\di 1 ton Zeferino dos San tos 15 ha
José Caroba Neto e
Railda Pereira da Silva 15 ha

OCUPANTE ATUAL - José Caroba Neto


Railda Pereira da Silva
Adilton Zeferino élos San tos

ARRENDATÃRIOS - 1988 - 01
1995 - Sem informação

085 - Conforme re�istro no livro de 1983, foram transferidos 30 ha


deste lote para Antonio Pereira ela Silva, e deste para seus
filhos José Caroba Neto e Railda Pereira da Silva.

,.1 �;"'"
"nlropólogo 1/1'
Po,, 641 , o. 105.8

José Frederico da Silva


AI cntu'
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A ntonio Ferreira de Matos

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Lucio �obrinho

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•·.a.a-.&.�•·-· .a-..,a'"a."-' .._.,,_ .. ,......_ . , •_ ., ...__,1,a.

TERMO DE POSSE

O Chefe do Posto Indígena Fulni-ô, no uso de suas


atribuições, conferida pela portaria Presidencial nº- 795/99, e tendo em vista o
que consta nos Livros de Registros do Posto Indígena Fulni-ô,

DETERMINA:

A partir desta a índia Fulni-ô, Irailda Feitoza toma


Posse de 7,5 hectare de terra, parte do Lote 3 79
na localidade denominada, "Sítio Felix de Barros",
herança do sue Genitor Antonio Pereira da Silva ainda.
Em vida.
E, para Constar, assino o presente Termo de Posse em 02
(duas) vias de Igual teor e forma para que produza os seus devidos efeitos.

PIN FULNI-Ô/ÁGUA BELAS, 04 de Dezembro de 2005 .

.,
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Fundação Nacional do Índio - FUNAI
Posto Indígena Fulni-ô

Declaro para os devidos fins que, conforme o que consta nos


livros de Registros de Terras deste Posto Indígena.Fulni-ô o Registro de 7,S
(sete e meia) ha. de terra do Lote nº 379, localidade denominada,"Sítio Félix
de Barro" existente com o nome de Railda Pereira da Silva {Termo de Posse
data de 04.12.2005) corrigi-se pelo nome de: IRAILDA FEITOSA
RIBEIRO, proprietária do Lote supra citado a qual usufrui e explora
atividades agrícolas para melhoria dos seus meios de subsídios nas Terras
Indígena Fulni-ô.

de junho de 2009

QUERQUESANTOSBARROS
• HEFE DO POSTO INDÍGENA FULNl-Õ
TERMO DE DOAÇÃO

Eu, lrailda Feitosa Ribeiro, brasileira, casada, índia fulni-ô,


resolvo doar de livre e espontânea vontade, para o índio, Vi�nte Pereira da Cunb� 7,5
(sete hectares e meia) parte terra no lote - 379 - Localizada no Sitio Félix de Barro,
nesta Reserva Indfgea Fulni-a, parte esta que lhe pertence conforme consta no Tenno de
Posse datado de 04 de Dezembro de 2005 e Declaração datada de 16.06.2009, podendo o
referenciado usufruir do referido terreno a partir desta data.
Por ser verdade assino o presente tenno em 02 (duas) vias de igual
teor e forma, com o visto do Chefe do Posto, e das testemunhas abaixo assinados, para que
produza os efeitos.

Posto Indfgena Fulni-ô I Águas Belas-PE, 11 de Agosto de 2009

J/\.(GQptO( :6.t �A.


lrailda Feitosa Ribeiro
f(, �
Proprietária I Doadora
D E C L A R A � Ã O

Eu, GLINAUP.A PEREIRA :OOS SAMTOS, Declaro para os devidos fins, e/


faços saber a quem possa interesar, e quem desi;a venna tomar conhecimento, que/
apartir desta data, :passo a termo de doação a dona ITACÍ FERREIRA DA CUNHA.1 par­
te de todos " bens móveis e imóveis, e outras economias em dinheiro, das quais/
faço jÚS como filha herdeira do falecido meu pa.i, V!AIK·EL PE.::i.EIRA .DA CUNTIA.
Por a expressao da verdade, firmo a prr.:.3ente declaração em uma //
única via de um só teor, dando provas nos termos que serão assinados por mim.
a

SArn PARAIBA, 18 DE OUTUBRO DE 1.985.

TEST.EMú1.UIAS :

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� 1
2- --.Jt�l.z.9:-�:rL.1 aA�}./.s../:..i ---....JP�j,"'io&J.C
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-· '-",,.f_...;;di;..;;;..;;�
HOSANA RODRI�S DA SILVA - Doméstica da doadora.
N9 DO LOTE - 382

LOCALIZAÇÃO - Sítio �élix de Barros

EXTENSÃO - 30 ha

PROPRIETÃRIO/OCUPANTE (198R) - Sem reqis tro


I
·O�UPANTE ATUAL - José Pereira da Cunha

ARRENDATÃRIOS - 1988 - 03
1995 - Sim

OBS - Foi informado que está ocupado por José Pereira da Cunha.mais
hercl.ei ros.

\
,-
\
'"º" '�"""
Antropólo go t,')!.
Por, t-0 1 o. .XIS.B

osiFrederico da Silva

.1

Manoel M. de Souza
,., ll,,o,lddo /3a,IH,,a
,.,, (e.,r,•lo r�•:• �116clo
CACIQUE fULNl-0 Vice Ceelqu. Fulnl·O
- PF Ãau• Bela, • PE
IGUAS 8ELA5

Antonio Ferreira de Matos

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f,•.

Eloi
Declaracão J,

Nós, Valdemir Guilherme dos Santos, �olteiro, residet1te à Rua: Antônio


Augusto Meireles nº 273 Sapé - PB, CPF de nº 048.843.024-00 e RG de nº
210.532 /SSP/PB, Valdemar Guilherme dos Santos, residente à Rua Comendador
Renato Ribeiro Coutinho nº 1153 Sapé-PB, CPF de nº 218.499.274-72 e RG de
nº 536.400 SSP/PB, Valderez Guilherme dos Santos, casado, residente à Rua:
José Claudino nº 14 Sapé-Centro, portador do CPF de nº 586.561.464-91 e RG
de nº 613.307 SSP/PB.
Declaramos de Comum acordo, com nossos falecidos pais, Sr. Manoel
Guilherme dos Santos e sya. Glinaura Pereira dos Santos, que dentro dos trâmites
legais das leis brasileiras, que passe ao pode da sya. Itaci Ferreira da Cunha,
índia da tribo Fulni-ô, residente no município de Águas BeJas -PE. Por serem
heranças deixadas pele também falecido pai, Manoel Pereira da Cunha e que
essas heranças situa-se na área indígena dos Fu lni-os de Águas Belas - PE.
Por Expressão da verdade, firmamos a Jresente declarnção, dando provas
dos termos dos quais serão assinados por nós, a todos a quem possa interessar e

,
desta venha tomar conhecimento, a partir d�.ta data.

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Valdemir Guilherme dos San tos
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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Funda<:ão Nacional do lndio- FUNAI
Posto Indígena Fulni-ô

DECLARAÇÃO

Declaro, que ITACI FERREIRA DE SÁ, brasileira, agricultora, índia <,,,


Etnia Ful11i-ó, residente na Aldeia Indígena Fulni-ô, neste município é proprietária de 3,0 (Trh)
hectares de terra parte do Lote nº 382, na localidade denominada, "Sítio Félix de Barros", gleba df:
terra esta adqwida através de Declarações feita em data de 18/10/1985, por GLINAURA PERE:E1\
DOS SANTOS, filha do falecido, MANOEL PEREIRA DA CUNHA (proprietário do Lote 382), quando
D. GLINAURA repassou os seus direitos da part·lha dos bens corno herdeira para D. ITA( 1
corforme concordado e assinados pelos seu marido e seus filhos (Cópias de Declarações anexo).

COiví OBSERVAÇÃO QUE:

O Quantitativo de Herdeiros é num total de 10 (dez) filhos, ficando D. ITACI com os 3 (trê!)
hectares de terra. 1,.i. J1
E, para firmar, assino a presente declaração em 03 (três} vias de igual teor para uri1 só
efeito

Posto Indígena Fulni-ô/Águas Belas-PE, 10 de agosto de 2007


TERMO DE DOAÇÃO

Eu, PEDRO FRANCISCO RIBEIRO, fndio da Tribo Fulni-0, portador do


RG.: 3851874 e CPF: 576948184-68, de livre e espontânea vontade, resolvo doar
para o índio VICENTE PEREIRA DA CUNHA, 25,5 (vinte e cinco e meia) hectares
de terra, de seu usufruto, localizado na fazenda Peró, Nesta Reserva Indígena
Federal Fulni-õ, podendo o referido beneficiado usufruir deste referido terreno a
partir da assinatura deste documento.

Por ser verdade, assino o presente termo em 02 (duas) vias de igual


teor e forma, em presença do Sr. Chefe Substituto da Coordenação Técnica e das
testemunhas abaixo assinadas, para que produza os efeitos legais.

Águas Belas, 30 de janeiro de 2013.

�FRANCISCO RIBEIRO
��
ÍNDIO(a) FULNI-Ô/DOADOR(a)
RG.: 3851874
CPF: 576948184-68

TESTEMUNHAS:

'

Visto do Coordenador Téc.


'
ÁREA DO PERÓ PERTENCENTE AOS INDÍGENAS EURÍDES LÚCIO, ADAULTO LÚCIO, NUNES
FEITOZA, NEUNHO FEITOZA E PEDRO RIBEIRO, (VICENTE PEREIRA DA CUNHA PROPRIETÁRIO
ATUAL, DE 25,5 HECTARES DA ÁREA QUE CORRESPONDIA AO PROPRIETÁRIO PEDRO
RIBEIRO).

347m
TOTAL DA ÁREA MEDIDA EM M2

= 381.522,5 M1

= 38.152,25 HECT.

768m

455 m

ÁREA MEDIDA EM:

= 241.40S,5 M2 395
436m
= 24.140,5'5 HECT.

707m

DIAGNÓSTICO DA ÁREA MEDIDA EM M 2 (SOMA DAS DUAS ÁREAS).


= 381.522,5 M2 + 241.405,5 M2, TOTAL= 622.928 P�2•
DIAGNÓSTICO DA ÁREA MEDIDA EM HECTARES (SI >MA DAS DUAS ÁREAS).
= 38.152,25 H + 24.140,55 H, TOTAL= 62.292,8 HE :TARES.
// '
I

TERMO DE DOAÇÃO

Eu, JCSÉ RIBEIRO HLHO, lndio da Tribo Fulni-ô, portador do RG.:


3966089 SSP/PE e CPF: 9745424304-72, de livre e espontânea vontade resolvo
doar para, JOSÉ RIBEIRO DA SILVA NETO, 08 (oito) hectares de terra, localizado
no Sitio Peró, de meu usufruto. Podendo o referido beneficiado, poderá usufruir da
referida terra a partir da data de assinatura deste documento.

Por ser verdade, assino o presente termo em 02 (duas) vias de igual


téor e forma, em presença do Sr. Chefe da Coordenação Técnica e das
testemunhas abaixo assinadas, para que produza os efeitos legais.

Águas Belas, 23 de dezembro de 2014.

JOSÉ RIBEIRO FILHO


RG.: 396608H SSP/PE
CPF: 97454�4304-72
ÍNDIO FlJLN -Ó/DOADOR

TESTEMUNHAS: 1/v:
01) ,,C(LJ
r

02)---f'Mt/!B �:mo�
,'

RELATORIO DE IDENTIFICAÇÃO DE PROPRIEDADE INDÍGENA UTILIZADA


PELA REDE DE TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA DA CHESF.

No dia 24 de Maio de 2015 os técnicos lsnar Gomes Pontes (Técnico em


Agropecuária), e Jorge Ferreira Pontes, também Técnico em Agropecuária e
funcionário público federal, lotado no Posto Indígena Funi-ô, no aldeamento
lndigena Fulni-õ, fizeram levantamento de identificação e medição de uma área de
propriedade do indígena José Ribeiro da Silva Neto, que fica dentro da área
indígena denominada de Peró, para saber a localidade e a quantidade em hectares,
que está sendo utilizada pela CHESF. Os trabalhos de campo foram feitos pelo
técnico lsnar Gomes Pontes e acompanhado pelo técnico e funcionário da FUNAI o
sr. Jorge Ferreira Pontes, e ainda os indígenas José Ribeiro da Silva Neto e Ari
Veríssimo, foi utilizado um aparelho de GPS para se fazer a medição desta área em
questão, ficou ainda constatado que o proprietário tem em sua posse 09 hectares de
terra no total e que a CHESF só utiliza pouco mais de 03 hectares como mostra o
esboço a seguir.

Figura da área:

8m

30m

57m 386 m

OBS: Com todos os cálculos feitos da área medida ficou constatado que a mesma
contém no seu total 30.567 m2 de área, o que corresponde a 3.056,7 hectares de
terra. Sendo utilizada pela CHESF, toda a área.

Águas Belas - PE, 25 de Maio de 2015.

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.��r� Ferreira Pontes
Técnico responsável Técnico acompanhante FUNAI
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


Procuradoria da República no Município de Garanhuns
Av. ldelfonso Lopes, 174, Heliópolis - 55296-230� Garanhuns- PE
Pabx (87) 3761-1266 ... '

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,
;

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TERMO DE DECLARAÇÕES
;,

Aos 6. dias do mês• de junho de 2016, compareceu nesta Procuradoria da República no


,. ... 1

Mup.icípio 'de Garaqhuns o indígena Fulni-ô ·José Ribeiro da Silva Neto, RG nº 3966089 SSP-PE,
CPF nº ,9.7454r24�04-72 . tel: (87�5=5553, ·�esidente e dotniciliadd na Aldeia Indígena Fulni-ô,
1 · ! ., '
em Águas Belas/PE, para noticiar os.seguintes fatos: '·
. 1
QUE. ele e seu pai participaram· da retomada da Fazenda Peró, mas apenas seu pai
1:
recebeu a indenização paga pela CHESF em 20Q7;
' QUE &eu pai d�ou recentemente. suas terras a elê, conforme. Temip de Doação anexo
'
,� . '
(anexo 1);
. .
QUE; hoje apenas quatro:. ocupantes da Fazenda Peró têm suas terras diretamente
afetadas pJlas linhas de transm1ssão tla CHI;:SF,. estando o 1ecl��te entre e,l�s;
1 ', '
1

· Q�E, não obstãnte,: outr�s ocupantes cujas terras não são afetadas pelas linhas de
1
transmissão da.CHESF, como o �ai .do pajé, Cildo, estão à frente das negociações da indenização
quanto à Fazenda Peró;
QUE� em conversa com o advogado dr. Dimas,• que representa as famílias da Fazenda
l !

Peró, este teria dito' .ao declarante que fizesse uma lista das faln:ílias ligadas·�. ele, dentre as 180 que
participaram da retomada, para eventual participação em novo pagamento de indenização pela
CHfSF;
'' l
! 1
QUE, no entanto, posteriormente bimas teria dito que não teria ·nenhum poder de 1

decisão no caso, e que, se o declwante.'desejasse, deveria conversar .com Cildo;


Assim, solicita a intervenção deste· P.arquet Federal
J
.
para que ele e as demais famílias
1 • •

'

.
1
listadas no .do7umeµto anexo recebam
. as devidas parcelas da in,denização a ser paga pela CHESF.
· Nada m foi na· portunidad� acrescentado, no. que foi ncerrada essa representação,
1
sendo por mim, �......,..='---lo�--'.._,���"".::.._---' Otávio Rocha de Siqueira, Analista do
1
MPU/Perícia/Antropologia, PRM-Garanhuns/PE, mat. nº,21.890, assinada, e pelos declarantes.

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,MINISTÉRIO P.ÚBLICO FEDERAL


Pro,cur�doria da Repúblic� no Municipiq .dT Garanhuns
Av. ldelfonso Lopes, 174, Heliópolis - 55296-230:.... Garanhuns - PE
' Pabx (87) 3761-1266 ' 1;

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Documentos anexos:
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-Termo de!doação;'
- Lista dfüi,f�lií1fi ligadas ao de�larFte que pleiteiam parcew d.a indenizaç�? :?A CHESF quanto à
Fazenda Peró. · ·· · ' ' •. ..·l . ' l,' · , . 1 1
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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Fundação Nacional do Índio
Coordenação Técnica local

DECLARAÇÃO

Declaro para os devidos fins e comprovação que, JOSÉ RIBEIRO DA


SILVA NETO, indio Fulni-ô, portador(a) do CPF: 862445154-04 e RG: 5245839
SDSIPE, Residente na Aldeia lndigena Fulni-ô, sn - Águas Belas/PE, é usufrutuário
de 08 (oito) hectares de terra, na localidade denominada Sitio Peró, Águas Belas,
Nesta Área Indígena Federal Fulni-ô.
Por ser expressão da verdade assino a presente declaração para que
produza um só efeito legal.
·. '

Coordenação Técnica Fu7as Belas - PE, 03 de dezembro de 2015.

1/
1 /

/
/ (
AO MINISTÉRIO PÚBLICO DE GARANHUNS/PE
COORDENAÇÃO DE PAULO AFONSO/BA
�:: ......
:., ,
., l'
FUNAI
Aollm�
Sr. Dr. Otávio
MD. PROCURADOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Senhor Procurador,

Conforme entendimento com V.Sa., e atendendo as necessidades que se fazem


diante das minhas exposições, encaminho em anexo os documentos a seguir: Oficio
192/PGFIPFFAJNAJ-RECIFE/2006 de 27.08.2006, CARTA SINº Águas Belas de 10.09.2007 do Sr.
MANOEL RIBEIRO DE SÁ para MPFIGARANHUNS e abaixo assinado dos indígenas que concordam
com o pleito em questão. Dessa forma, o requerente MANOEL RIBEIRO DE SÁ, apela para o bom
entendimento desse conceituado MINISTÉRIO PÚBUCO FEDERAL, tendo em vista as
documentações apresentadas e argumentos serem favoráveis ao requerente sem prejuízo de terceiros.
E que esse procurador, de boa e justa razão após analisar o pleito deste indígena fulni-ô, se pronuncie
e determine as providências cabíveis do que espera o requerente a seu favor. Sendo ainda as
documentações já apresentadas e em trâmite no âmbito desse Ministério Público Federal, sem
nenhuma resposta.
Portanto, diante do exposto acima, fico no aguardo de um pronunciamento
favorável ao pleito.
Cordialmente,

Águas Belas, 11 de maio de 2017

MANOdL RIBEIRO SÁ
Ifdio Fulni-ô
Eu, MANOEL RIBEIRO DE SÁ, CPF nº 135730124-34, lndio da Etnia
Fulni-ô, venho através deste abaixo assinado, comprovar junto a quem possa e
interessa, Ministério Público Federal, CHESF e FUNAI em resposta ao Oficio nº
192/PGF/PFE/FUNAI/Recife/2006, aqui assinado por Lideranças e lndigenas da
Etnia Fulni-0. O qual concordamos por de direito e bom senso:
� .....
.. -- -

ADYOCACJA.Gl!ltAL DA UNIÃO-AGU
PROCURADORIA-GERAL FEDERAL..PGF
Pnx.uradorta Fedenll EepeoialJucla - FUNAI
Av. JoAo de a.no., n• 668 - Boa "-ta - Reclfe/PE - T.W.X (81) 3221.6117

OFÍCIO N.º 192/PGF/PFE/FUNAIIRECIFE/2006 Recife, 27 de setembro de 2006

Ao Senhor
1'1ANOEL BARROS SOBRINHO
Administrador Executivo Regional
Fundação Nacional do Índio - FUNAI
Administração Executiva Regional de Recife

Senhor Administrador,

Em resposta ao despacho de V. S.º exarado no verso de


solicitação do indígena Manoel Ribeiro de Sá , da etnia Fulni-ô, tenho a informar que
por orientação do Procurador-Geral da Fu_nai, e>,..1eriorizado por meio do MEMO N.º
..:;23/POF/PFE-FUNAI/06, 19 de agosto de 200q, devem a Funai e a sua
Procuradoria reconhecer plenamento a autonomia da comunidade indígena Fulni-ô
quanto à aplicação dos recursos provenientes da indenização a ser paga pela CHESF.

Dessa forma, não pode a administração interferir no aspecto


?ertinente à divis�-1 interna da indenização em tela, devendo ser sugerido ao citado
mdígena que envide seus esforços junto à comunidade, de acordo com a sua
organização social, haja vista que esta é que terá a última palavra quanto a tal aspecto.

- -
l>,,,n - -P
·- _. ·•
-· _ - a,-1
Carta S/Nº Águas Belas, 10/09/07.
Ao
Ministério Público Federal
Caruaru / Garanhuns.

Ilmº Senhor Procurador,

Dirijo-me a esse conceituoso ministério objetivando solicitar a notificação da


ASSOCIAÇÃO PAJÉ JULIÃO PEREIRA JUNIOR - "ACIPJPJ". - CNPJ. Nº
08.645.361/0001-05.
Eu MANOEL RIBEIRO DE SÁ, venho através desta, assim recorrer a esse
ministério as providencias necessárias, quanto a inclusão meu nome na relação a ser
beneficiada no pagamento indenizatório feito pela CHESF, conforme "TERMO, DE
AJUSTAMENTO E CONDUTA" (TAC), porém na qualidade de.Ex. proprietário estou
reivindicando a parte retroativa, conforme diz no TAC, que referida indenização está
sendo paga os tempos passados e futuro, onde o proprietário atual é o Sr. Eduardo João
dos Santos Neto, e anteriormente pertencia ao indígena Manoel·Ribeiro de Sá, da Gleba
(terra) lote nº. 378 somente do ano 2003 para cá,veio pertencer a Eduardo João dos
Santos Neto, lembro a Vossa Senhoria que as terras Fulni-ô são divididas em lote entre
famílias , assim foi deste proprietário os tempos em que a CHESF deixo de pagar, a
minha reivindicação e do conhecimento, do Pajé, Cacique, procuradoria FUNAI
conselho indígen�, Administrador FUNAI, Presidente FUNAI, e Procuradoria Federal
Especializada FUNAI BRASIL� todos me deratn o direito da inclusão fim receber tal
indenização, até , mesmo o Sr. �duardo, proprietário atual o mesmo chegou a me
prometer o valor até R$ 50.000,00 ( cinqüenta mil reais) como gratificação por eu ter
doado os 30 hectares de terra para ele, conforme testemunhas no momento faço dar
conhecimento a Vossa Senhora, que o Sr. Eduardo Presidente Associação acima citada,
e proprietário do Lote 378. Após de mim propor referido valor acima veio, com outra
versão que não me daria nada, só no caso que a justiça obrigasse assim recorro fim
possa ser compreendido e atendido por essa justiça, assim só rej.vindico e período que
ele não era proprietário .
Segue anexo copia TAC e tabela dos valores pagos aos proprietários, conforme
orientação da Associação, assim contrariando acordo TAC.
· Em tempo me coloco a disposição para maiores e melhores esclarecimentos,
porém tem várias coisas que o Ministério Público não tem conhec4n.ento.
Certo de poder contar com a valiosa atenção e compreensão de Vossa Senhoria
com espírito de bom homem público.

Cordialmente,

dio Fulni-ô.
Eu, MANOEL RIBEIRO DE SÁ, CPF nº 135730124-34, indio da Etnia
Fulni-õ, venho através deste abaixo assinado, comprovar junto a quem possa e
interessa, Mlniat8rlo Público Federal, CHESF e FUNAI em resposta ao Oficio nº
1921PGF/PFEIFUNAURecifel2006, aqui assinado por lideranças e lndigenas da
Etnia Fulni-õ. O qual concordamos por de direito e bom senso:
Eu, MANOEL RIBEIRO DE SÁ, CPF nº 135730124-34, indio da Etnia
Fulni-ô, venho através deste abaixo assinado, comprovar junto a quem possa e
interessa, Ministério Público Federal, CHESF e FUNAI em resposta ao Oficio nº
192/PGF/PFE/FUNAI/Recife/2006, aqui assinado por lideranças e lndfgenas da
Etnia Fulni-ô. O qual concordamos por de direito e bom senso:

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Eu, MANOEL RIBEIRO DE SÁ, CPF nº 135730124-34, indio da Etnia
Fulni-ô, venho através deste abaixo assinado, comprovar junto a quem possa e
interessa, Ministério Público Federal, CHESF e FUNAI em resposta ao Oficio nº
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ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO-AGU
PROCURADORIA-GERAL FEDERAL-PGF
Procuradoria Federal Espeçlallzada- FUNAJ
Av• .João de Barros, nº 668- Boa Vista - Reclfe/PE -Telefax (81) 3221.5117

DESPACHO N.º 018/PGFIPFE/FUNAI/RECIFE/2007

PA o.º 070/PFE/FUNAI/RECIFE/2005

1. Trata-se de notícia formulada pelo indígena Manoel


Ribeiro de Sá, no sentido de que o Sr. Eduardo João dos Santos Neto, presidente
da Associação Comunitária Indígena Pajé Julião· Pereira Junior, teria feito
utilização indevida dos recursos financeiros repassados pela Chesf em beneficio
próprio.

2. Instado a se manifestar, o Sr. Eduardo, mediante


declarações prestadas nesta procuradoria, afirmou serem inverídicas as
denúncias contra si formuladas, juntando extratos de conta corrente onde estão
depositados referidos recursos financeiros.

3. Considerando que o Sr. Manoel Ribeiro de Sá não


apresentou nenhuma prova das irregularidades apontadas, bem como o Sr.
Eduardo apresentou os extratos bancários que comprovam que não houve a
utilização até o presente momento dos recursos pagos pela Chesf, arquive-se o
presente processo, até que eventualmente surjam novas provas das
irregularidades.
--
L_ _
\,, ... ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO - AGU
PROCURADORIA-GERAL FEDERAL-PGF

4. Intime-se o Sr. Manoel Ribeiro de . Sá do presente


despacho.

Procurador Federal

L
Aldeamento Indigena Fulni-ô

Águas Belas, 17 de julho de 2008

Declaração

Declaro para fins de comprovação junto ao Ministério


Público Federal, que o índio Fulni-ô Clodomiro de Matos
participou do movimento organizado em nossa comunidade, que
teve como objetivo: a ocupação da fazenda Peró.
Declaro ainda, não ter conhecimento de que o mesmo tenha
sido contemplado com quaisquer beneficios oriundos dos recursos
financeiros, destinados ao beneficiamento de. todos os
participantes do referido movimento, previsto no termo de
ajustamento de conduta - TAC, firmado entre a CHESF e a
comunidade Fulni-ô.
Por ser verdade o exposto;assino a presente declaração em
03 (três) vias de igual teor, }'.ita que produza um só efeito legal.

Elói Lúc · Sobrinho


Índio Fulni-ô

RG. Nº 2962156 SSP/PE.


CPF Nº 680126784-34

a de Oliveira Lllm
/vson FeitosAd

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Junte-se aos autos. Técnico mmistrativc
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Sérgio Rodflgo P. de Castro Pinto


Procurador da República ·--
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Nesta CONCLUSÃO
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mJ" l da Repúbica
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. ·. o presente. ?E para oonstar, lavro
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Gnnhuns, 22.JJ21..J.JlL

M�.ª S�lma de Oliveira Souza


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1 o Administrativo
M at 1479�-;)

JUNTADA
Nesta data. juntei aos presentes autos o (a)
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