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ISSO NÃO É COISA DE DEUS: A DEMONIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-

BRASILEIRAS NO IMAGINÁRIO POPULAR DO SÉCULO XIX.

Felipe Toledo Lopes da Silva

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar a forma como as religiões de matrize africana são demonizadas a partir
do imaginário popular. Busca ainda compreender quais fatores são inerentemente responsáveis para que termos
pejorativos sejam utilizados para conceituar essas doutrinas. As religiões afro-brasileiras são ainda na
contemporaneidade demonizadas de forma que seus adeptos precisam por diversas vezes ocultarem seus
vínculos com estas religiões, embora possuam adeptos de diversas naturalidades, cultura, etnias e classes sociais,
sendo significativamente heterogenia, ainda assim, ao longo da pesquisa será possível encontrar situações em
que seus praticantes foram atacados, perseguidos e até agredidos. Seus agressores estavam amparados nas leis
vigentes da época, que coibia as práticas de algumas religiões, especialmente as de matriz africana. A
fundamentação da escrita deste trabalho trará conceitos como, Sincretismo Religioso, Imaginário e
Representação. Para contemplar essa missão será utilizado a produção de Flávio Giarola (2018), O “demônio
negro”: o negro como maligno nas representações religiosas e raciais da imprensa de São João del-Rei (1971 –
1889), que aborda as associações negativas que foram adicionadas as pessoas negras na cidade mineira. Para
uma compreensão mais clara acerca do contexto histórico do sincretismo será mencionado o artigo de Josenilda
Ribeiro, da faculdade Federal de Recife no Pernambuco. Concluindo tem-se a contribuição da produção de Livio
Sansone, que é diretor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, além de outros
teóricos tão importantes quanto.

Palavras chave: Religiões Afro-brasileiras. Sincretismo. Imaginário. Representação


ABSTRACT

This study aims to analyze the way in which African-based religions are demonized from the popular
imagination. It also seeks to understand which factors are inherently responsible for pejorative terms being used
to conceptualize these doctrines. Afro-Brazilian religions are still demonized in contemporary times, so that their
adherents often need to hide their ties to these religions, although they have adepts of different origins, culture,
ethnicities and social classes, being significantly heterogeneous, even so, throughout the research it will be
possible to find situations in which its practitioners were attacked, persecuted and even assaulted. Their
aggressors were supported by the laws in force at the time, which prohibited the practices of some religions,
especially those of African origin. The foundation of the writing of this work will bring concepts such as
Religious Syncretism, Imaginary and Representation. To contemplate this mission, the production of Flávio
Giarola (2018), The “black devil”: the black as evil in the religious and racial representations of the São João
del-Rei press (1971 – 1889), which addresses the negative associations that black people in the mining town
were added. For a clearer understanding of the historical context of syncretism, the article by Josenilda Ribeiro,
from the Federal College of Recife in Pernambuco, will be mentioned. In conclusion, there is the contribution of
the production of Livio Sansone, who is director of the Center for Afro-Asiatic Studies at the Cândido Mendes
University, in addition to other theorists as important as.

Keywords: Afro-Brazilian Religions. Syncretism. Imaginary. Representation.


SUMÁRIO

Introdução 9
1-RELIGIÃO NO BRASIL: História e historiografia 12
1.1- Na Manta do Sincretismo Religioso: A influência do Sincretismo Na
Manutenção dos estereótipos 16
1.2- Criminalização das Religiões de matriz africana: Repressão policial aos
praticantes de Candomblé e Umbanda 20
1.3- Candomblé e Umbanda: A Popularização das religiões afro no Brasil. 24
2- ISSO NÃO É COISA DE DEUS: A Demonização Das religiões Afro-brasileiras No
Imaginário Popular Amparadas Pela Constituição do século XIX. 31
2.1- Projeto mal sucedido: A Figura Do Negro E Sua Associação Ao Diabo --------34
CONSIDERAÇÕES FINAIS ----------------------------------------------------------------------- 36
Referencial Teórico------------------------------------------------------------------------------------ 38
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INTRODUÇÃO

Abordar sobre as religiões de matriz africana, é mergulhar em um mundo que


costuma aguçar o imaginário de uma sociedade que possui conceitos pré-estabelecidos,
baseados na maioria das vezes em experiencias das quais elas nunca viveram, no entanto,
estão sempre dispostas a opinar. Para cada pergunta relacionada ao que diz respeito a África
e/ou africanos alguém tem sempre um comentário a fazer e nem sempre se policia de estar ou
não balizado pelo conhecimento cientifico, o que costuma ser um enorme problema já que
narrativas sobre as religiões de matriz africanas são disseminadas de forma desenfreada
causando enormes constrangimentos e transtornos para os adeptos de tais religiões. Esta
pesquisa se propôs a apresentar as diversas narrativas sobre as religiões de matriz africana e
como discursos negativos foram proliferados e mantidos por séculos.
Ainda na contemporaneidade é possível presenciar discursos de ódio contra adeptos
de religiões afro-brasileiras, chegando muitas vezes a casos de denúncias de agressões e
ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda. Nos noticiários é comum casos como estes em
pleno século XXI. Esta pesquisa traz referências de casos que foram amparos pela
Constituição brasileira do século XIX além de mencionar acontecimentos já na
contemporaneidade. Para iniciar a pesquisa é levantado no capítulo 2. RELIGIÃO NO
BRASIL: História e historiografia, o contexto histórico da chegada dos negros africanos em
território nacional, que foram tragos para a execução do trabalho escravo no país, sendo estes
tratados como coisas e tidos como objeto de posse do colonizador. O capítulo discute ainda a
concepção religiosa instaurada no Brasil através da igreja católica, além da tentativa da igreja
de manter controle sobre os negros escravizados impedindo-os de exercer sua fé já praticada
em seu país de origem, sendo desconsiderada completamente no Brasil.
Em contrapartida no subtópico 2.1- Na Manta do Sincretismo Religioso: A influência
do Sincretismo Na Manutenção dos estereótipos, será apresentado o conceito de Sincretismo
Religioso contextualizado por Murilo Cisalpino (1994), o tópico aborda ainda as
multifacetada do sincretismo, uma vez que este se apresenta de diferentes formas e conceitos
podendo muitas vezes posicionar-se como indissociável das religiões afro-brasileiras já que
estas utilizam os santos católicos como um dos meios para manter viva sua fé e tradição, no
entanto ás discussões sobre esse assunto são latentes uma vez que a conclusão não é unanime,
como será exposto na pesquisa. Aislan Melo (2008) aborda esses impasses apresentando os
argumentos de alguns teóricos. É possível compreender como o sincretismo foi utilizado para
5

manter os cultos dos orixás, no entanto não se pode ignorar os motivos que levaram os
adeptos a utilizarem este caminho e o preço que tiveram que pagar a longo prazo.
Já os séculos XIX e XX foram de longas batalhas, fruto também das raízes
conservadoras e intolerantes do regime escravocrata que mesmo rescindidas se fazem
presentes e afeta diretamente a vida dos povos recém libertos, embora ex-escravos no papel,
ainda viviam sobre constante ameaças e repressões autorizadas pela Constituição brasileira do
século XIX. A abolição não significou para os escravizados a liberdade uma vez que estes
continuaram vivenciando atos de violência além de permanecerem impedidos de exercer sua
fé e seus cultos, e para ilustrar essas informações no item, 2.2- Criminalização das Religiões
de matriz africana: Repressão policial aos praticantes de Candomblé e Umbanda, será
abordado de forma clara como o Estado deu continuidade aos apelos de controle e violência
aos praticantes das religiões afro-brasileiras e quais as consequências desses embates.
Porém, embora as autoridades utilizassem do uso da violência, coerção e da lei
para coibir a expansão das religiões de matriz africana a resistência por parte dos seus
praticantes foi fortalecida de tal forma que estas continuaram sendo proliferadas ultrapassando
barreiras continentais. A Umbanda assim como o Candomblé são religiões praticadas em
diversas partes do país e apesar de possuírem algumas especificidades que podem variar de
região para região, estas alcançaram e vem alcançando espaços ao longo da história que
parecia inimaginável, já que como dito anteriormente o Estado proibia e penalizava quem
fosse pego praticando qualquer ato que fosse suspeito ou simbolizasse referência com as
religiões afro-brasileiras.
Prosseguindo na pesquisa, no ponto 2.3. Candomblé e Umbanda: A Popularização
das religiões afro no Brasil, é abordado a expansão das religiões afro pelos estados brasileiros
e como a pluralidade chega nas regiões, fruto das adaptações feitas por cada território, Kalina
Silva (2009), enriquece a pesquisa sobre os conceitos apresentados sobre Candomblé e
Umbanda e como estas religiões são muitas vezes confundidas embora possuam grandes
distinções, mais adiante no mesmo tópico, será exposto a importância de órgãos como
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para a conservação e
preservação das religiões africanas, além dos terreiros mais antigos de imensurável
significado para seus praticantes.
Mais adiante, observando a forma preconceituosa com que as religiões são
expostas e tratadas, esta pesquisa se balizou por esse cenário, para expor de forma mais
concisa o que estava por trás desses atos, no intuito de compreender quais fatores
influenciavam para a manutenção de estereótipos. Neste caso é fundamental buscar
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compreender como os discursos são construídos e como as narrativas são estabelecidas e


amplificadas. Afinal, esses discursos não podem ser naturalizados tão pouco esquecidos, para
isso é preciso entender o contexto histórico para que atos de violência e intolerância não se
sustentem, o capítulo 3- ISSO NÃO É COISA DE DEUS: A Demonização Das religiões
Afro-brasileiras No Imaginário Popular Amparadas Pela Constituição do século XIX, aborda
a maneira como os adeptos das religiões afro-brasileiras foram tratados no século XIX e XX
amparados pela justiça brasileira da época.
Conceitos importantes como Imaginário e representação de Sandra Pesavento (1995)
são utilizados para compreender os sentidos e o peso dos julgamentos sobre essas religiões.
Outro aspecto pertinente deste tópico é o denominado Museu da Policia Civil do Rio de
Janeiro, também conhecido como Museu da Magia Negra de 1938, trará uma importante
análise para estudar esse contexto histórico tão espinhoso, afinal a pesquisa parte da premissa
de que esses discursos foram construídos com propósitos fundamentados, para enaltecer uma
religião em detrimento das religiões das camadas populares, consequentemente as religiões de
matriz africana seriam diretamente afetadas.
Concluindo a pesquisa o subtópico 3.1- Projeto mal sucedido: A Figura Do Negro E
Sua Associação Ao Diabo, inspirado na produção de Flavio Giarola (2018), trata a maneira
como o negro teve sua imagem vinculado a termos pejorativos, e associações ao demônio, a
imagem do povo negro estava diretamente ligado a perspectivas negativas, havia dúvidas
sobre sua índole, seu caráter e seu intelecto. Cenário fértil para questionamento de suas
práticas principalmente religiosas, a associação dos ritos africanos ao diabo foi bastante
recorrente, ainda na contemporaneidade inúmeros são os termos utilizados para conceituar
algo ruim e frequentemente as referências estão embasadas em terminologias tradicionais e
conservadoras do período escravocrata. Pode-se dizer que uma longa jornada foi percorrida,
muitas vitórias conquistadas, mas a guerra ainda não acabou, a luta é constante e infindável,
os praticantes das religiões afro-brasileiras lutam por respeito, o objetivo é poder praticar sua
religião sem que seja demonizada, e que não corram o risco de represálias.
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1-RELIGIÃO NO BRASIL: História e historiografia

Falar sobre religião no Brasil não é uma tarefa simples, a começar pela dificuldade
de definir também o que é religião e como ela se configura para cada indivíduo e/ou grupo
que comungam seu entendimento, como parâmetro para norteamento da vida ou visão de
mundo. Dito isso, a priori inicia-se pelo conceito básico de religião segundo José Pereira
Coutinho (2012),

Etimologicamente a palavra religião deriva do latim, podendo significar religar, reler


ou reeleger. Em todas está presente a ligação da humanidade com a divindade.
Aparece então a primeira característica da religião: a ligação do homem com algo
superior ou transcendente, o seu objeto.” (COUTINHO, 2012 p.176).

Neste conceito religião está relacionado com ligação ou mediação entre o sujeito, que
neste caso representa o homem e aquilo que não se pode tocar ou ver de forma material, mas
sentir metaforicamente e/ou metafisicamente, baseado na crença da existência de algo
superior e invisível ao olho nu. Embora este conceito acima pareça contundente e claro, as
definições acerca da religião são inúmeras onde algumas se complementam ou distinguem-se,
é imprescindível se atentar para o poder que a religião pode operar influenciando diretamente
na vida das pessoas, muitas vezes de forma mais sutil como em algumas de suas doutrinas por
exemplo, segundo Sanchis (2018)

A religião maneja categorias que atingem a subjetividade do fiel neste mundo,


impulsionam sua ação, orientam e qualificam o seu comportamento externo e suas
atitudes profundas (dependência, oração, louvor, sacramento, magia, pecado ou
simplesmente erro, o sentido, afinal, do comportamento): um motivo para viver e
um modelo para a vida. (SANCHIS, 2018 p,19,).

Que a religião é uma categoria que representa poder e influência não é novidade, no
entanto, é importante estar alerta sobre como o seu entrelaço com a cultura 1
onde ela se
potencializa e pode direcionar sua influência e/ou interferência no cotidiano dos indivíduos ou
grupos, estejam estes diretamente ligados a ela ou não. Sobre isso Coutinho (2012) reforça.

O contexto cultural influencia sobremaneira a definição de religião. Nas sociedades


ocidentais, onde se associa a religião à relação com algo transcendente, ela é sistema
1
Sanchis (2018) “na perspectiva histórica fundante da Antropologia-, é algo que todos os grupos de homens e
mulheres têm, porque é exatamente isso que faz que eles sejam “gente”. Ser gente é ser homem. Mas de certa
maneira. E essa maneira particular de encarnar a humanidade constitui, para cada grupo humano, a sua
“cultura”. (SANCHIS, 2018 p.13)
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mediador entre o homem e entidades superiores. O Ocidente, altamente marcado


pela cultura judaico-cristã, releva o Deus único e transcendente. Nas sociedades
orientais, budistas e hinduístas, a transcendência não está presente, mas antes o
panteísmo, um deus em tudo. Assim, a religião não é ligação a algo superior e
transcendente, mas à própria natureza, a todos os seres vivos. (COUTINHO, 2012
p.176).

São baseadas nestas influências que esta pesquisa, inicialmente se aprofundará para
só então entender como a religião foi um importante fator não só de manutenção do controle
sobre os indivíduos colonizados no período escravocrata, como ainda na contemporaneidade,
ela é um dos fatores responsáveis pela manutenção de estereótipos sobre algumas religiões em
especial as afro-brasileiras. O processo de construção do Brasil como se sabe bem, se deu a
partir da chegada dos colonizadores portugueses as terras até então habitada por nativos, que
com suas práticas de caça e pesca viveram por longos séculos em harmonia com a natureza,
usufruindo de todos os benefícios que uma terra não explorada por colonos poderia oferecer.
Como colonizadores, exploradores e desbravadores vindos do ocidente com práticas
de navegação brevemente estabelecidas os portugueses enxergaram nas terras brasileiras com
o pau-brasil, matéria prima abundante no período colonial, possibilidades de exploração,
porém seus maiores obstáculos seria não conhecer as terras, obstáculos estes inexistente para
os nativos que conheciam o território como a palma de sua mão, já que viviam aqui por
décadas. Na tentativa de negociar com os indígenas meios de escambo para que estes
trabalhassem na extração da madeira, um dos primeiros ciclos econômicos do Brasil, os
portugueses trocavam objetos de pouco valor material com os indígenas, em troca da mão de
obra, tática que funcionou por algum tempo, mas que não pôde ser sustentada, uma vez que os
indígenas, guerreiros livres por natureza, não estavam dispostos a trabalhar por longas horas,
como os portugueses desejavam que os fizessem.
Com a demanda pelo pau-brasil em alta e o objetivo de lucros cada vez mais
presente, os portugueses continuaram avançando no processo de exploração de territórios,
causando devastação e conflitos com os indígenas que obviamente continuaram resistindo,
uma vez que os colonizadores objetivavam tomar suas terras e fazer dos vencidos e
sobreviventes seus prisioneiros de guerra, estes seriam mais tarde utilizados como escravos.
Embora houvesse resistência indígena, quanto à tomada de territórios e sua morte
propriamente dita, os portugueses não recuaram, ao contrário, mantiveram-se incisivos
dizimando vários aldeamentos. Nessa relação colonizador e indígena os jesuítas que atuavam
diretamente no processo de catequização dos colonizados, pratica recorrente por parte da
coroa portuguesa, que visava proliferar a fé cristã por todo território dominado, tiveram um
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importante papel na mediação entre esses dois povos tão distintos entre si. Sobre esse ponto
Josenilda Ribeiro (2012) explicita que

A função dos jesuítas era a conversão e educação dos índios brasileiros, até então
considerados povos bárbaros pelos portugueses. Uma vez convertidos e educados, os
índios poderiam receber ordens mais facilmente e servir como melhor mão-de-obra.
Além disso, os padres terminavam por proteger os índios contra os maus tratos dos
colonizadores. (RIBEIRO, 2012 p. 10)

Com a catequização em andamento, os indígenas não deveriam ser tratados como


coisas, pois agora possuíam alma, já que o processo de catequização segundo os jesuítas
assim o fazia, transformando o indivíduo que antes era bárbaro em civilizado a partir da fé e
devoção, os indígenas eram conduzidos ao processo de civilização em detrimento as suas
práticas culturais, tendo que se submeter as culturas dos grupos religiosos predominantes,
priorizando os costumes e crenças do colonizador. No artigo publicado pela Multirio (2019 a)
é possível compreender como funcionava esta operação, e quais os impactos teriam os
indígenas a longo prazo, com o flagelo de sua cultura.

Do ponto de vista dos jesuítas, a destruição da cultura indígena simbolizava o


sucesso dos aldeamentos e da política metropolitana inspirada por eles. Os religiosos
argumentavam que as aldeias não só protegiam os nativos da escravidão e
facilitavam sua conversão, mas também forneciam uma força militar auxiliar para
ser usada contra tribos hostis, intrusos estrangeiros e escravos bêbados. Entretanto,
os efeitos dessa política eram tão agressivos e aniquiladores da identidade nativa
que, não raro, os índios preferiam trabalhar com os colonos, apesar de serem
atividades mais rigorosas, pois estes pouco se envolviam com seus valores,
deixando-os mais livres. (MULTIRIO, 2019 a)

Após o ciclo de extração do pau-brasil, a implementação dos engenhos nas


plantações da cana de açúcar, foi um dos grandes meios econômicos no Brasil. O que
contribuiu para a crescente necessidade de mão de obra, em paralelo a esse cenário estava as
fugas dos indígenas e sua resistência aos trabalhos forçados, dos quais os colonizadores os
queriam manter. Com isso e atrelado a outros fatores, a mão de obra indígena foi
paulatinamente substituída pela africana, negros vindos da África retirados a força de sua
cultura, sua língua, sua família e suas terras, com o objetivo único de servir o colonizador,
deixando de ser indivíduo para tornar-se escravo, em um território para ele desconhecido, e
agora tido como morada obrigatória, sobretudo hostil.
Um segundo argumento que consta no artigo citado anteriormente sobre o processo
de escravização africana, para a exploração desta mão de obra se explica no fato de que
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A necessidade de uma melhor organização da produção açucareira, que assumia um


papel cada vez mais importante na economia colonial. Para conseguir dar conta
dessa expansão e demanda externa, tornou-se necessária uma mão-de-obra cada vez
mais especializada, como a dos africanos, que já lidavam com essa atividade nas
propriedades dos portugueses, na Ilha da Madeira, litoral da África. (MULTIRIO,
2019,a)

Nesse cenário a mão de obra africana seria predominante e extremamente importante


para a manutenção dos lucros e a produção em larga escala, sendo o negro escravizado, a
força motriz por décadas, e principal fonte de riqueza dos colonizadores. Africanos, indígenas
e portugueses agora dividem o mesmo território embora que em proporções desiguais, onde
indígenas que antes viviam livres, sobrevivendo da caça e da pesca agora estão sobre o
domínio português, o africano, que no processo diaspórico é retirado do seu território para
trabalhar na mão de obra reduzido a condição de escravo, e na outra ponta está o colonizador
português, que compreende-se como desbravador impondo sua cultura, seus costumes, sua
religião em terras que antes não lhes pertencia, mas que foi inicialmente descrito na história
como “descobridor”.
A religião do colono foi priorizada em detrimento às existentes em cada povo
retirado de seu território, povo este que não teve escolha, lhe restando poucas alternativas para
sobreviver a regimes cada vez mais distantes de sua realidade. Não é preciso ir muito a fundo
para descobrir o quão descontentes e insatisfeitos estiveram indígenas e africanos, sobretudo
pontuar que esta convivência não se deu de forma pacífica, a resistência era iminente e o
colonizador não parecia disposta a ceder.
Nos próximos capítulos serão discutidos como se deu o choque cultural e religioso
entre estes povos tão distintos, e como ocorreram as adaptações e objeções. O sincretismo
religioso é um dos pontos chave inicialmente, para que indígenas e africanos pudessem
manter vivo seus cultos ainda que de forma sincrética, sendo uma ferramenta importante,
bastante utilizada inclusive na contemporaneidade, onde é possível perceber de forma muito
presente em boa parte das religiões afro-brasileiras, com adaptações de ritos e cultos do
catolicismo para a sobrevivência e manutenção de suas crenças. No entanto como será
exposto, o sincretismo também possui multifacetadas uma vez que possibilita a manutenção
dos cultos de forma sincrética e ao mesmo tempo dificulta as delimitações da procedência das
religiões, queixa existente para alguns grupos religiosos que reivindicam o desligamento
parcial e/ou integral do sincretismo na busca de uma religião independente do processo
sincrético2.
2
Quanto a esta discursão, as conclusões não são unânimes uma vez que alguns líderes religiosos compreendem a
existência de religiões como a Umbanda, interligada ao processo sincrético e muitas vezes indissociáveis. Para
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1.1- Na Manta do Sincretismo Religioso: A influência do Sincretismo Na Manutenção


dos estereótipos

Intrínsecos aos negros africanos e indissociáveis a sua chegada ao Brasil, cita-se a


cultura, os costumes, as crenças e a língua, aspectos característicos da construção de
identidade desses indivíduos, que em médio prazo foram alterados de forma abrupta,
modificando suas vidas, deixando marcas profundas, em seu corpo, mais principalmente em
sua alma, esta última de imensurável valor religioso e pessoal, não apenas para eles mas
também para a Igreja Católica3, que com as missões jesuíticas buscaram catequizar os negros
assim como foi com os indígenas, como mencionado anteriormente. Ainda assim, isso não foi,
suficiente para extinguir por completo tais características como dito incialmente,
indissociáveis a identidade humana.
Com isso, chega-se em um ponto crucial para esse capítulo, compreender como fica
então a religião, ou as religiões e os cultos de cada uma delas, já que conforme mencionado,
cada nação possui suas particularidades no que diz respeito a maneira como cada uma
cultuava seus deuses. Cenário diaspórico em que os negros africanos estavam sendo
submetidos, retrato desse período tenebroso de construção do Brasil, que muitos varrem para
debaixo do tapete ou até mesmo optam por negarem a existência. Negando ou não, no período
escravocrata o negro foi visto na sociedade como um ser asqueroso, como um objeto sujeito
de posse para o “homem branco”, os argumentos utilizados estavam pautados principalmente
por conta da cor da pele, por ser negro, “Podia ser vendido, alugado, emprestado, submetido,
enfim, a todos os atos decorrentes do direito de propriedade” (SERRA, 2006 p. 19,).
É aí que entra em cena o desenrolar desta narrativa, pois com a proibição por lei 4 da
prática de outras religiões que não a católica seria inviável e arriscada burlar as regras, mas
ainda assim, eles ousaram arriscar, com um panteão de deuses e crenças os africanos e afro-
brasileiros encontram soluções únicas de continuarem cultuando seus deuses e fortalecendo
sua fé, debaixo dos olhos dos colonizadores de forma silenciosa, mas efetiva. Todas os

maiores esclarecimentos: MELO, Aislan Vieira de. Reafricanização e dessincretização do candomblé:


Movimentos de um mesmo processo. Revista Antropológicas, [S.l.], v. 19, n. 2, p. 157- 182 set. 2008.
Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/view/23674 > . Acesso em 27
de novembro de 2021.
3
Obviamente que com intenções e sentidos distintos, já que a igreja possuía interesse de manter controle sobre
os grupos, nessa lógica, de poder minoritário.
4
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar
sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar
a credulidade publica. (BRASIL, 1890).
12

aspectos que compõem a identidade africana dos negros escravos mencionados antes, dos
mais relevantes para esta pesquisa está o religioso, pois ao contrário do que o catolicismo
prega, a África na sua heterogeneidade cultural e religiosa em suas comunidades e grupos
possuem percepções acerca da religião totalmente diferentes das existentes no Brasil colonial,
como por exemplo o sistema religioso politeísta que se baseia na crença de mais de um deus,
pratica comum existente nas comunidades do continente africano, entendida como
inadmissível pela Igreja Católica que é monoteísta, ou seja acredita em um único deus.
Nesse ponto é desconsiderado o fato de que o continente africano sendo diverso
possui uma ótica sobre a religião diferente da aplicada pelo colonizador. Com isso, tais
aspectos não desaparecem, pelo contrário transformam-se, metamorfoseiam em um processo
particular e único compreendido posteriormente como sincretismo religioso, que se resume
basicamente na “Associação de imagens, valores e ritos entre duas ou mais correntes
religiosas” (CISALPINO, 1994 p. 77), fazendo emergir outras religiões, como o Candomblé,
a Umbanda, o Espiritismo dentre outras, que juntas descentralizam o catolicismo, ainda que
de forma paulatina.
É evidente que a adoção a estas religiões não se deram de maneira pacífica tão
pouco sem as represálias de Portugal, que para manter seu poder não mediu esforços no
combate, do seu ponto de vista a esta blasfêmia, que como diz o teórico Manoel Neto
(2003),“qualquer tentativa de criação de novo segmento religioso ou manifestação de culto de
forma distinta dos rituais sacralizados pelos procedimentos católicos era considerada bruxaria
ou heresia, e, portanto, duramente castigada” (NETO, 2003 p.111). Este método foi
fundamental para que os negros escravizados, pudessem permanecer cultuando seus deuses,
mas com o modelo sincrético nos santos católicos. Esta seria uma maneira de manter suas
crenças sem ser pego pela Igreja Católica.
Como dito nesta pesquisa o sincretismo religioso foi e continua sendo utilizado nas
práticas das religiões de matriz africana, também foi reforçado que embora não haja uma
unanimidade, existem os que buscam a desassociação das religiões africanas, com o método
sincrético, objetivando sua autonomia que segundo eles, independe da fusão do sincretismo
para sua existência, o teórico Melo (2008) aponta que
O argumento utilizado era o de que a religião dos orixás prescindia do catolicismo
para sobreviver; deveriam-se desvincular os orixás dos santos católicos; afirmava-se
que o candomblé era anterior à época da escravidão, sendo constituído, pois, a partir
do repertório trazido pelos africanos de sua terra natal (MELO, 2008 p. 164).
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A dessincretização representa dentro deste cenário, libertação já que por décadas os


praticantes de religião africana cultuavam seus orixás sobre as sombras dos santos católicos,
como uma forma particular de manter viva sua fé, seus cultos e ritos, romper com o
catolicismo seria quebrar as amarras impostas pelo colonizador, significaria também se
posicionar por igual enquanto religião independente, fora dos limites estabelecidos no regime
escravocrata, quanto a isso Melo (2008) afirma

Preconiza-se, sobretudo, o fim da escravidão, pois a concepção de que o sincretismo


com o catolicismo remetia à condição da escravidão percebia o sincretismo como
imposição; nesse sentido, romper com o catolicismo representava se libertar das
amarras da escravidão. Da mesma forma, reivindicar o status de religião para o
candomblé significava dizer que os africanos, pelo fato de possuírem uma religião,
estão no mesmo patamar de igualdade que os europeus (MELO, 2008 p. 165).

O sincretismo se apresenta em diversos momentos como uma via de mão dupla, em


um contexto de muitos conflitos, sociais, políticos, econômicos, e culturais, se por um lado a
igreja católica se manteve no controle dos costumes da sociedade por décadas, por outro
candomblecistas, umbandistas e espiritas reivindicam por autonomia, enquanto religião
independente, na citação acima fica claro os anseios desses religiosos. No entanto até mesmo
no campo acadêmico há divergências sobre o conceito e atuação do sincretismo nas religiões,
Ferretti em seu artigo Sincretismo e resistência cultural (1998) aponta o sincretismo como
código mediador de duplicidade de sentidos de grande relevância
O sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso. Isto não
implica em desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os demais
elementos de uma cultura, a religião constitui uma síntese integradora englobando
conteúdos de diversas origens. Tal fato não diminui, mas engrandece o domínio da
religião, como ponto de encontro e de convergência de tradições distintas
(FERRETTI, 1998, p. 183 apud SILVEIRA, 2014 p.22).

É quase impossível abordar sincretismo religioso no Brasil sem mencionar um dos


percussores desse discurso sobre religiões afro-brasileiras, antropólogo e médico brasileiro,
Nina Rodrigues

Foi o primeiro pesquisador que se dispôs a compreender cientificamente as formas


de religiosidade dos negros africanos e brasileiros na década de 1930. Inseridos na
perspectiva evolucionista corrente da época, Rodrigues compreendia as formas de
mistura entre catolicismo e as religiões trazidas pelos escravos como ‘ilusão da
catequese’ (SILVEIRA, 2014 p.36).

Esse discurso evolucionista, com o qual Nina Rodrigues se baseou, foi o mesmo que
outros teóricos por décadas, mantiveram suas narrativas e influenciaram substancialmente no
modo como negros brasileiros e afro-brasileiros foram percebidos na sociedade. Um discurso
14

que “justificava a existência do sincretismo pelo argumento cientifico da inabilidade cognitiva


do negro africano e mestiço” (SILVEIRA, 2014 p.37). Marca difícil que permeou por séculos
e mesmo na contemporaneidade, negros são surpreendidos negativamente com atos
intolerantes e racistas.
Não se pode negar que, apesar de conflituosa a contribuição de Nina Rodrigues
oportunizou que um tema tão importante, fosse discutido e difundido no Brasil, em um
cenário de oscilações políticas e culturais no país, através do contexto religioso das produções
do antropólogo, foi possível estudar como se organizavam dentro dos espaços compreendidos
como terreiros, onde os adeptos das religiões em questão, praticavam seus ritos e cultos. Esses
espaços são de extrema importância para a manutenção de suas práticas e difusão do
conhecimento religioso, que é transmitido através da oralidade, mas também do corpo, com a
dança e o cântico.
A prática da oralidade foi uma característica marcante dentro da cultura africana,
pois seria a maneira mais efetiva de transmissão dos saberes já que o domínio da escrita era
restrito. Inicialmente a falta da escrita foi um argumento esdrúxulo para justificar a falta de
civilidade, e negação de cultura, de um povo imbuído em belezas e contribuições culturais,
mas que para as sociedades ocidentais um povo sem escrita é também um povo sem história,
reduzindo os saberes das sociedades africanas a termos pejorativos5. Estes foram alguns dos
efeitos em que o sincretismo com seus múltiplos sentidos, norteou as discursões sobre religião
no Brasil.
No tópico posterior será discutido como as religiões de matriz africana foram
criminalizadas, fazendo com que seus praticantes sofressem duras repressões policiais e até
destruição dos terreiros de Candomblé e Umbanda. A partir dessa abordagem, é possível
compreender, como o racismo e a intolerância religiosa eram não só justificados nos códigos
da lei, como defendidos principalmente pela parcela conservadora e mantenedora das
religiões cristãs em detrimento das afro-brasileiras.

1.2- Criminalização das Religiões de matriz africana: Repressão policial aos praticantes
de Candomblé e Umbanda

5
Á ideia de fetichismo, animismo e demais termos pejorativos utilizados pelo etnocentrismo para definir as
‘sociedades da falta’ – sem Estado, sem religião, sem ciência etc (MELO, 2008 p. 165).
15

A maneira mais eficaz de deslegitimar uma fala ou discurso é apresentar oposições


que causem no interlocutor sentimento de repulsa ou medo. Provocar sentimentos que o
conduzam em seu subconsciente a suspeitar de tudo o que foi dito, levando o interlocutor a
criar dúvidas sobre a veracidade do discurso. Como mencionado por diversas vezes nesta
pesquisa a Igreja Católica, com uso de sua doutrina religiosa se manteve no poder por
décadas, influenciando direta e indiretamente na vida da sociedade ocidental. Suas influencias
permearam e permeiam até mesmo na contemporaneidade, fruto da difusão do poder que
concentrava sobre si, opondo-se duramente a quaisquer doutrinas religiosas que ameaçasse
desestabilizar seu reinado, personificando assim, sobre tais religiões todo o escopo de
negatividade possível, demonizando-as e estereotipando-as como malignas. Nesse contexto
Júlio Braga (1995) aponta para uma questão pertinente

É obvio que a ilegalidade não decorria da celebração de uma religião diferente, isto é,
não cristã. Todavia, era preciso justificar a perseguição aos candomblés e, para fazê-
lo, ele teria que ser identificado ou confundido com prática de feitiçaria e falsa
medicina para que pudesse ser submetido ao rigor das leis vigentes (BRAGA, 1995, p.
149)

Ainda no século XIX na constituição de 1890 os Artigos 157 já mencionado nesta


pesquisa e 1586 eram incisivos ao penalizar quem fosse pego na prática de curandeirismo,
sobre a suspeita de crimes contra a saúde pública, uma maneira que funcionava também para
punir adeptos de religiões afro-brasileiras, já que o curandeirismo é um dos métodos
existentes em algumas destas religiões. Além da prisão as pessoas enquadradas nos códigos
citados acima, poderiam ter apreendidos seus pertences e objetos sagrados de uso efetivo na
prática de seus cultos, Júlio Braga (1995), apresenta em seu livro vários casos de repressão
policial, um deles é do curandeiro e pai-de-santo Nelson José do Nascimento ocorrido na
cidade de Salvador- BA, que foi acusado de “Prática de Feitiçaria e Falsa Medicina”
(BRAGA, 1995 p. 126). Segue o enunciado da denúncia:

O Promotor Público junto a este Juízo, no uso das atribuições que a lei lhe confere,
vem perante V. Excia, denunciar Nelson José do Nascimento, maior natural deste
Estado, Auxiliar de Comércio, residente à Avenida Cedon, n.3, pelo fato delituoso
que passa a relatar

Do inquérito policial que a presente acompanha verifica-se que o denunciado,


conhecido como curandeiro e pai-de-santo, praticava, na sua residência, (...) além da
magia negra e mais sortilégios, a falsa medicina, inculcando aos seus clientes a cura
6
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob
qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio
do denominado curandeiro (BRASIL, 1890).
16

de moléstias curáveis e incuráveis afim de fascinara credibilidade pública. E como,


assim procedendo, haja o denunciado cometido o crime previsto no artigo 157 da
Consolidação das Leis Penais.7

Como é possível observar no corpo da denúncia os alvos são adeptos das religiões de
matriz africana, tendo a polícia respaldo legal para atuar na repressão contra os religiosos.
Enquadrados em práticas de “feitiçaria e falsa medicina” essas pessoas eram levadas a
julgamento e corriam sérios riscos de serem presas. Braga (1995) reforça que

As denominadas práticas fetichistas e falsa medicina foram quase sempre, para


efeito de estabelecimento de penalidades, arroladas conjuntamente, o que facilitava
o desempenho da justiça quando dos atos jurídicos de condenação de quem as
praticava (BRAGA, 1995 p. 148)

Na aplicação das leis vigentes, seria pouco provável que saíssem ilesos os
capturados. Nathália Oliveira (2015), em sua dissertação, apresenta alguns casos de processos
localizados no Arquivo Nacional, de adeptos de religiões afro-brasileiros sendo presos e
enquadrados nos códigos penais, sob alegação de crimes contra Saúde Pública, um deles é o
caso de Carmem Barros, presa em flagrante em 22 de abril de 1937 também inculcada no
artigo 1578

Carmem era branca, natural do Rio de Grande do Sul, tinha 44 anos, viúva e ao ser
perguntada sobre sua profissão afirmou ser telepata. A “mysticadora” presa em
flagrante quando na rua Barão do bom Retiro às 11 horas e 40 minutos do dia acima
citado, estava consultando Olga Ferreira e se comprometendo em fazer um
“trabalho” para que seu companheiro “tornasse a viver com ela”. Tudo mediante o
pagamento da importância de duzentos e sessenta mil réis. A acusada, no entanto,
declara que, mesmo sendo telepata, não faz trabalhos para ninguém (Oliveira, 2015
p.149)

Um outro caso descrito também por Nathália Oliveira (2015), chama a atenção e
mais a frente será entendido o porquê.
Em 25 de outubro de 1938 no Distrito Federal, na Primeira Delegacia Auxiliar,
foram registrados os autos de apresentação e apreensão, e de prisão em flagrante de
João Alfredo. João foi preso em flagrante sob a acusação de ter infringido os artigos
157 e 158 do Código Penal de 1890. Como visto, anteriormente, esses artigos
referem-se, respectivamente, a prática do espiritismo, da magia e de seus sortilégios
e o exercício do curandeirismo, (...) O investigador apresentou ao delegado os
seguintes objetos apreendidos no flagrante: “um calção de côr azul; uma capa de cor
vermelha e amarela bordada; uma mala de côr vermelha com franjas douradas; um
cinto de côr azul e fivela dourada; uma faixa vermelha com franja dourada; um
colete composto de duas partes em côr prateada; uma blusa de côr prateada; uma

7
Denúncia contra o pai-de-santo Nelson José do Nascimento, citado em BRAGA, 1995, p.127. [grifos meus]
8
Denúncia contra Carmem Barros, citado em OLIVEIRA, 2015, p.149
17

toalha de cor branca bordade; um gorro de côr branca e verde, tendo bordado o
seguinte: ‘Jesus, Maria e José’ (OLIVEIRA, 2015 p. 150)9.

A autora Nathália Oliveira (2015) aponta este caso e conduz a uma reflexão
pertinente, propondo atenção para a naturalidade das repressões direcionadas aos praticantes
das religiões afro-brasileiras de forma indiscriminada.

Não há dúvida de que João Alfredo se tratava de um praticante das religiões afro-
brasileiras. Interessante destacar que, a princípio, os investigadores não fazem
nenhuma menção sobre a natureza das práticas religiosas de João Alfredo, (...) como
os agentes policiais tinham certeza de que João praticava a magia, o Espiritismo e o
curandeirismo? (OLIVEIRA, 2015 p. 150)10

Estes casos destacados acima, provocam reflexões sobre as duras penas que tiveram
os adeptos das religiões afro-brasileiras que lidar, uma vez que as perseguições, apreensões, e
prisões dos mesmos e de seus pertences foram apenas algumas das incontáveis táticas e
obstáculos que estes tiveram que superar, para continuarem mantendo seus ritos e sua fé. O
mais surpreendente é que aqui está se falando, de apenas um século atrás, em plena década de
30 período como dito anteriormente de mudanças políticas, econômicas e sociais, período
também de reconfiguração do negro na sociedade brasileira. Ainda assim, este momento
representa efervescência para a população preta e tudo o que pertence a sua identidade, social
e cultural.
As repressões contra os praticantes das religiões afro-brasileiras foram bastante
recorrentes como elucida esta pesquisa, a autora Nathália Oliveira (2015) aponta dois
momentos de maior intensificação das investidas policias
Entre 1890 e 1910 (quando da criação do Juízo do Feito da Saúde Pública) e nos
primeiros anos da década de 1930 (quando da criação da Seção de Tóxicos,
Entorpecentes e Mystificações). Durante o Estado Novo (1937 - 1945), foi
encontrado apenas um processo onde o réu foi inculcado no artigo 157 e, no entanto,
a descrição deixava claro que se tratava de um praticante das religiões afro-
brasileiras (OLIVEIRA, 2015 p. 158)

Embora seja observado mudanças significativas sobre religião no Brasil, muito ainda
precisa ser feito para que a liberdade religiosa seja vivenciada em seu sentido pleno. Ainda é
recorrente nos noticiários ataques aos terreiros de Candomblé e Umbanda, o desrespeito
infringe a Lei n° 7716 de 198911. A maioria dos dados e estudos indicam que as religiões afro-

9
Denúncia contra João Alfredo, citado em OLIVEIRA, 2015, p.150. [grifos meus]
10
Ibid., [grifos meus]

11
Art. 1° Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional. (BRASIL, 1988)
18

brasileiras são as que mais sofrem com a intolerância religiosa no Brasil, a exemplo disso
consta em dados expostos no artigo publicado pela página da Aleteia, que. “Dependendo da
fonte consultada a probabilidade, no Brasil, de um fiel de uma dessas religiões ser vítima de
violência por suas convicções e práticas é algo entre 130 a 210 vezes maior do que para a
população em geral” (RIBEIRO, 2020 a)
Reforçando o quadro negativo de intolerância religiosa há o caso emblemático
ocorrido em agosto de 2019, na cidade de Duque de Caxias no Rio de Janeiro, onde um grupo
criminoso evangélico autointitulado “Bandidos de Cristo”, “ordenou o fechamento de 15
barracões onde funcionava terreiros de candomblé e umbanda” (AGEN AFRO, 2019 a).
Segundo a denúncia os citados intimidaram os pais de santo e ameaçaram destruir os terreiros
caso não fossem atendidos conforme a ordem inicial. Este caso teve repercussão nacional e
expôs uma situação infelizmente corriqueira para os adeptos das religiões de matriz afro-
brasileiras, que por décadas vem sofrendo este tipo de abuso, antes institucionalizado quando
cometido pela Polícia Civil, no contexto histórico anterior, com repressões e prisões.
No cenário atual, mesmo com as lei que visam proteger estes religiosos, muitos são
os casos em que criminosos saem impunes por falta de denúncias (esta ausência pode ser
ocasionada pelo receio dos pais e mães de santo de sofrerem represálias dos criminosos) ou
pela dificuldade de localizar tais criminosos.
Como observado, os casos de repressão e intolerância religiosa fez parte desde
tempos remotos da construção do Brasil. O rompimento com as religiões ocidentais já
estabelecidas no país, contribuiu substancialmente para o agravante das repressões, o ataque
ao “desconhecido” as denominações pejorativas aos cultos e ritos das religiões de matriz
africanas, atrelado ao preconceito racial, fomentou e propiciou o cenário de intolerância
religiosa no país. As tentativas de superação é um ponto que não pode ser desconsiderado. Foi
enfatizado nesta pesquisa que mesmo com as leis de proteção às expressões religiosas, não foi
o suficiente para conter os ataques, como observado até mesmo na contemporaneidade, os
espaços das religiões afro-brasileiras são em sua maioria alvo dos ataques vândalos e
criminosos de pessoas que não toleram a democracia das práticas religiosas.
Ainda há muito a ser feito no que diz respeito as desconstruções dos estereótipos
originados do preconceito racial e religioso. É preciso ampliar a visão e desprender-se dos
pré-conceitos estabelecidos no que tange as religiões afro-brasileiras, tendo ciência que cada
religião possui seus dogmas, seus ritos, seus cultos, seus emblemas e doutrinas, que não cabe
julgamentos baseados em ideias rasas e concepções vagas e preconceituosas sobre as religiões
de um modo geral. Que o processo democrático só se estabelece quando a ignorância abre
19

espaço para o respeito. É imprescindível pontuar que religião não tem cor, raça ou classe
social, não surpreende ver em cultos de umbanda, candomblé e espiritismo pessoas de todas
as classes sociais.
A difusão dessas religiões e suas migrações para centros urbanos se deram também
pela demanda dos adeptos, e pela tentativa dos pais e mães de santo em proliferar suas
religiões pelas cidades, em busca de respeito e reconhecimento que de certa forma foi algo
negado por décadas ao longo de toda a história. O capítulo seguinte abordará com mais
detalhes o processo de alocação nos centros urbanos das religiões de matriz africana, e como
esse movimento contribuiu de forma significativa para sua expansão.

1.3- Candomblé e Umbanda: A Popularização das religiões afro no Brasil.

Frequentemente nas pesquisas acerca do candomblé encontra-se o termo sendo


utilizado para conceituar todas as religiões afro-brasileiras, isso acontece também pela
dificuldade de definição e distinção da religião, além de sua estreita proximidade com outras
religiões afro-brasileiras. No entanto é importante destacar a fala de Silva (2009), no livro
Dicionário De Conceitos Históricos

Candomblé é a religião que cultua os orixás, divindades do povo iorubá, que chegou
ao Brasil como escravo, vindo principalmente da região onde hoje se situa a Nigéria.
A religião dos orixás logo se misturou com o culto aos vodus, do povo fon do
Daomé, também escravizado, dando origem ao Candomblé chamado ketu-jeje ou
jeje-nagô. Mas também a religião dos inkices, de origem banto, recebe o nome de
Candomblé, é o Candomblé de Angola. (SILVA, 2009 p. 39)

Sua estreita relação com as demais religiões de matriz africana, propicia de certa
medida para que haja a generalização do termo como dito anteriormente. Silva (2009)
também lembra que

Ao contrário da crença comum, o Candomblé não é uma religião africana, mas sim
um conjunto de cultos e religiões nascidos no Brasil a partir de estruturas religiosas
africanas. Mesmo os cultos mais puristas do Candomblé, ou seja, os que ainda
mantêm a língua iorubá original, como é o caso de vários terreiros baianos,
nasceram mesmo na América. (SILVA, 2009 p. 39)

Esse pluralismo cultural e religioso pode ser averiguado a partir da compreensão


sobre como se deu as relações entre povos de diferentes, línguas, costumes, culturas e hábitos.
O enorme conflito de interesses entre povos tão distintos e a narrativa de heróis
conquistadores não tinha base sólida para se sustentar diante das devastações que resultou na
20

dizimação de povos, culturas e costumes. O historiador Tzvetan Todorov (1996) afirma que
“o encontro entre Velho e Novo Mundo, que a descoberta de Colombo tornou possível, é de
um tipo muito particular: é uma guerra, uma conquista” (TODOROV, 1996 p. 51). Nos
capítulos anteriores foi possível perceber quais foram os resultados dessa narrativa e as ainda
vivenciadas consequências dos conflitos ocasionados.
Durante o regime escravocrata os negros vindos da África foram encaminhados para
diferentes regiões no Brasil, nesse processo diaspórico cada um levava em suas bagagens seus
aspectos indissociáveis de sua identidade, como cultura, hábito, religião e língua. Embora
cada sujeito acometido pelas imposições do colonizador tenha sofrido com a tentativa de
aniquilamento de tais identidades, nota-se com as atuais configurações, a resistência,
permanência e manutenção das identidades africanas e afro-brasileiras. O Candomblé, assim
como as demais religiões de matriz afro, difundiram-se por vários estados brasileiros e tem se
configurado de diferentes maneiras, fruto dos envios de africanos vindos de diferentes regiões
do continente Africano para os estados, sobre essas movimentações Silva (2009) reporta

Também na África ocidental, próximo aos territórios iorubás, existiam na Idade


Moderna o reino dos fons no Daomé e o império Axanti. Esses povos, e mais os
mahins, agonis e vários outros, eram chamados de adjeje pelos iorubás, ou seja,
estrangeiros. E no Brasil foram todos generalizados como jejes. O Candomblé jeje-
nagô, ou seja, a mistura dos cultos iorubá e fon, é o predominante no Brasil. Outro
povo que teve grande importância no Brasil escravista foi o banto, que deu origem à
religião dos inkices. Os inkices são divindades muitas vezes associadas aos orixás,
mas que possuem, no entanto, suas particularidades, e seu culto não constitui
simplesmente uma variante da religião dos orixás. Traficados sobretudo para o
Recife e Rio de Janeiro, enquanto os fons e iorubás foram preferencialmente para a
Bahia e o Maranhão, os povos de língua banto vinham dos grandes Estados
expansionistas onde hoje está o Congo e Angola, então reinos do Congo e Ndongo.
(SILVA, 2009 p. 39)

Por esta razão é notável que a atuação dos ritos de Candomblé possua semelhanças e
diferenças de estado para estado assim como das distinções existentes no Brasil se
comparados com os aplicados na África. Embora o Candomblé e as demais religiões de matriz
africana sofreram graves repressões policiais, como mencionado no tópico anterior, a
Constituição de 1988 incluiu no seu texto parâmetros que enquadrasse a proteção aos
patrimônios materiais e imateriais das culturas populares brasileiras, David Oliveira (2016)
expõem que

A fim de afastar o ranço autoritário e eurocêntrico dos Estados anteriores, a


Constituição de 1988 buscou proteger os bens dos mais diversos grupos sociais e/ou
étnicos nacionais, reafirmando a pluralidade cultural brasileira. Essa proteção, mais
plural, implica perceber a nação, elemento de coesão social, não mais como um
21

grande, único e unívoco sentido – como uma grande narrativa. Em verdade, a nação,
para podermos continuar nos referindo a um elemento de identidade estatal, deve ser
plural, aglutinando as mais diferentes expressões, sendo uma, por ser a soma de
todas as diferenças, de toda a pluralidade nacional (OLIVEIRA, 2016 p.90)

Fomentando as ações de proteção aos patrimônios nacionais, o Instituto Do


Patrimônio Histórico E Artístico Nacional- IPHAN12 torna em 1984 o Terreiro Casa Branca
do Engenho Velho, na Bahia, o primeiro terreiro de candomblé a ser reconhecido de forma
oficial como patrimônio histórico e etnográfico do Brasil. Uma ação que beneficia outros
terreiros como Casa das Minas Jejê, em São Luís (MA), Ilê Axé Opô Afonjá, Gantois,
Alaketu e Bate- folha, na Bahia em Salvador. Os tombamentos são importantes pois
propiciam além da proteção aos espaços sagrados para os religiosos, a manutenção das
tradições, sua preservação além de conceder valorização e reconhecimento público, social,
cultural e político, fundamentando sumária importância da população negra para a sociedade,
que tivera ao longo dos séculos negada sua imensurável contribuição no processo de
construção das identidades da sociedade brasileira.
O tombamento torna-se uma ferramenta importante nesse cenário de politização, e
inclusão das religiões afro-brasileiras e dos membros culturais e étnicos que lhes compõem.
Nessa narrativa existe um ponto de profundo debate sobre a legitimidade do Candomblé e
suas raízes ancestrais africanas. Aislan Melo (2008), expõe alguns discursos e
descontentamentos por parte de consagrados líderes religiosos, sobre isso

Influenciados pelo processo de afirmação do negro da sociedade brasileira e


impulsionados pelo movimento de dessincretização, nas duas últimas décadas do
século XX, sacerdotes-chefes de algumas casas de candomblé de São Paulo
iniciaram uma reflexão sobre a religião que praticavam e iniciaram o movimento de
Reafricanização da religião, sob o argumento de que não receberam um bom
ensinamento de suas mães- de- santo que, por sua vez, já não teriam tido um bom
ensinamento das mães-de-santo que as iniciaram(MELO, 2008 p. 171)

Os descontentamentos se fundamentam nas diferentes visões sobre a ancestralidade e


as reivindicações por uma frenética busca de proximidade com África. Melo (2008), traz
ainda a percepção de quem está diretamente ligado aos cultos

Segundo o ogã Gilberto de Exu, o movimento de reafricanização é posterior à


efervescência em busca da nação de candomblé que demonstra a preocupação com
relação à etnicidade da religião e à genealogia-de-santo em São Paulo. A ideia de
nação de candomblé teria chegado a São Paulo em meados dos anos 70 com Olga do

12
IPHAN. Terreiros do Brasil: guardiões de tradição milenar, 2015. Disponível em <
http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/3221>. Acesso em: 15 nov. 2021.
22

Alaketo, que enfatizava sua genealogia-de-santo e colocava em xeque a autoridade


espiritual de muitos pais e mães-de-santo paulistas (MELO, 2008 p. 173)

Nesse contexto é coerente dizer que as inconformidades por parte dos líderes
religiosos é presente e salienta a existência de disputas internas entre terreiros e
religiosidades. O fato é que do combate às práticas litúrgicas a tombamento de terreiros, o
Candomblé foi se moldando e resistindo até os dias atuais, reconfigurando-se e
restabelecendo-se diante de tantos ataques. Ainda não é possível dizer, mesmo na
contemporaneidade que Candomblé é uma prática religiosa abraçada pela sociedade, uma vez
que repetidos casos e denúncias de intolerâncias aos seus adeptos e terreiros são noticiados.
Casos estes que deixam claro que a sociedade brasileira tida como civilizada, ainda
não conseguiu superar as veias conservadoras das religiões ocidentais, e sua concepção de
bem e mau ancoradas na visão limitada de julgar o próximo sob seus próprios parâmetros,
desconsiderando por completo as especificidades e distinções de cada religião.
Desconsiderando que a coletividade social e cívica é composta pelas pluralidades, sendo,
portanto, inadmissível, equiparar conceitos e pré-conceitos sobre qualquer religião.
Enquanto os representantes do Candomblé reivindicam sua ancestralidade e estreita
relação com África, a Umbanda se apresenta inicialmente com uma postura de oposição e
contraposição do Candomblé, trazendo em seu repertório a imagem de religião “pura” 13 e
distinta do Candomblé, Elizabeth Gama (2013) elucida que “a Umbanda como religião
civilizada e perfeitamente inserida no modo de vida urbano. Assim, a legitimidade no novo
culto nasceu a partir do esforço de distanciar-se das macumbas cariocas não organizadas em
termos de códigos doutrinários formal”. A Umbanda busca nesse cenário de distanciamento
do Candomblé não só maneiras de distinção, mas mecanismos que propiciem sua legitimação
frente a sociedade, conquistando adeptos, conseguindo ainda a aceitação de um público
elitista, um desses mecanismos seria o de apresentar a religião em um contexto evolucionista
onde parte de uma origem bárbara para um processo de evolução de civilidade, seguindo um
parâmetro próximo da doutrina Kardecista. Gama (2013) apresenta esse cenário claramente
A grande dificuldade para que a religião se legitimasse era o fato de a Umbanda
possuir um passado afro-indígena no seio de uma sociedade predominantemente
católica. Compreende-se, portanto, o esforço dos umbandistas em disseminar uma
série de teorias que os afastassem das teias do Candomblé e da macumba(...)Assim,
na lógica daquele momento histórico, o caminho à legitimidade passava pela
construção de uma identidade que ao mesmo tempo estivesse mais próxima do
caráter “científico” da religião kardecista e o mais distante possível das práticas
religiosas de matriz africana. Portanto, quando a nova religião foi apresentada como
13
Sobre isso aprofundar leitura no artigo de JENSEN. Tina Gudrun. Discursos sobre as religiões afro-
brasileiras: Da desafricanização para a Reafricanização. São Paulo, v. 1, n. 1, p.1-21, jan. 2001. Disponível
em: https://www.pucsp.br/rever/rv1_2001/t_jensen.htm . Acesso em 19 dez.2021
23

brasileira, os intelectuais queriam dizer à sociedade que a Umbanda não era apenas
uma religião de origem afro-indígena, mas o resultado da evolução cultural do povo
brasileiro. A estratégia era aproximá-la de uma representação mestiça da
nacionalidade, tão apreciada pelos ideólogos do Estado varguista. Os umbandistas
não negavam a herança afro-indígena nas práticas rituais, mas justificavam-na numa
perspectiva evolucionista, própria do discurso kardecista. Isto é, “valorizavam o
índio e o negro como importantes elementos formadores da nacionalidade, mas sob
a ótica da evolução constante, capaz de ‘aprimorar’ o que de ‘selvagem’ e ‘bárbaro’
prendia-os a um passado distante da civilização (GAMA,2013, p.7 apud
OLIVEIRA, 2007 p.8).14

Essa postura de distanciamento propiciou o fortalecimento da Umbanda e sua


expansão frente as elites. Já que seu caráter cientifico a distinguia do Candomblé, tornando-a
tolerável em comparação com esta última. No entanto ainda há dificuldades para delimitar e
até mesmo distinguir por excelência a Umbanda das demais religiões, nessa tentativa observe
a fala de Rubens Saraceni (2014)

A Umbanda tem na sua base de formação os cultos afros, os cultos nativos, a


doutrina espírita kardecista, a religião católica e um pouco da religião oriental
(budismo e hinduísmo) e também da magia, pois é uma religião magística por
excelência, o que a distingue e a honra, porque dentro dos seus templos a magia
negativa é combatida e anulada pelos espíritos que neles se manifestam
incorporando nos seus médiuns. (SARACENI, 2014 p. 22)

Observe que há uma dificuldade para distinguir a Umbanda das demais religiões,
principalmente por sua semelhança e relação com estas. As delimitações são difíceis de serem
estabelecidas porque o próprio processo de nascimento da Umbanda se dá a partir de sua
proximidade com tais doutrinas. Para compreender melhor o motivo que leva muitas pessoas
a confundirem a Umbanda com outras doutrinas religiosas é importante conhecer sua história,
Rubens Saraceni (2014) conta que
A Umbanda é uma religião nova, com cerca de um século de existência. Ela é
sincrética e absorveu conceitos de um século e preceitos cristãos, indígenas e afros,
pois estas três culturas religiosas estão na sua base teológica e são visíveis ao bom
observador. Uma data é o marco inicial da Umbanda: a manifestação do Senhor das
Sete Encruzilhadas no médium Zélio Fernandino de Morais ocorrida no ano de
1908, diferenciando-a do espiritismo e dos cultos de nação Candomblé de então.
(SARACENI, 2014 p. 27)

Sendo a Umbanda uma religião sincrética é visível suas raízes africanas, indígenas e
cristã. No entanto, a partir da citação acima pode-se dizer que esta possui autonomia,
doutrinas e crenças próprias. Apesar de todo preconceito enfrentado pelas religiões afro, estas
possuem adeptos de todas as classes sociais, políticas e étnicas. Porém um pouco mais forte

14
OLIVEIRA citado por Elizabeth Gama 2013, p. 07. [grifos meus]
24

que o Candomblé a Umbanda é uma doutrina religiosa cuja a presença da classe média se
apresenta de forma mais clara, é o que diz esta passagem

Os especialistas tem visto Umbanda como uma religião criada pela classe média e
ao mesmo tempo como a religião que une a classe média branca e a classe baixa de
cor. Por ter sido interpretada e distanciada de outras tradições Afro-brasileiras por
meio da desafricanização, embranquecimento e abrasileiramento, a Umbanda se
ajusta à ideologia dominante da “democracia racial” (ORTIZ, 1991 p.191, apud
JENSEN, 2001 p.07)

Nesse cenário, a Umbanda que ao mesmo tempo em que nasce no seio das classes
subalternizadas reluta pela desassociação, não negando por completo suas raízes, mas se
apresenta como doutrina de práticas e seitas evolutivas. Parte do princípio de africanização,
pois seus adeptos são também negros e ex-escravos, africanos e afro-brasileiros, mas traz
explicito em seu discurso que em seu processo de evolução suas práticas alcançam as classes
tidas como civilizadas, daí a proximidade com a doutrina kardecista já mencionada nesta
pesquisa. Jensen (2001) aponta que “(...)a ideologia da democracia brasileira era, e é,
manifestada como uma hegemonia branca. Este estado de coisas revela-se como primeira
tentativa de legitimar a Umbanda como religião.” (JENSEN, 2001 p. 8). Isso traduz muito
sobre que ótica estava a Umbanda e os motivos pelos quais sua legitimação torna-se tão
confusa em diversos momentos.
As religiões de matriz africana passaram por intervenções constantes da Igreja e do
Estado, que se uniram com o objetivo principal de conter e reprimir quaisquer tentativas de
adesão e difusão destas religiões, amparadas nos discursos que torna a imagem das doutrinas
afro, personificações do demônio, tendo em vista o contexto histórico em que estavam
inseridos a sociedade, sérvia das doutrinas cristã, não é difícil compreender as razões pelas
quais os líderes religiosos da Umbanda, buscavam distanciar-se do Candomblé, que em um
outro momento poderia ter seus adeptos punidos por crimes previstos na Constituição de
1890.
A história é constituída por mudanças e também repetições, que se comparam se
cruzam e se distanciam, o século XX foi um período marcado por mudanças nos seus mais
variados âmbitos, políticos, sociais, culturais e porque não dizer religiosos? Nesse período foi
possível observar um afrouxamento nas proibições às práticas das religiões afro-brasileiras,
sendo notável sua presença

A nacionalização da Umbanda começou em 1964, quando ela foi incluída no censo


estatístico e as festas da Umbanda entraram oficialmente nos calendários nacional e
25

locais e nos guias turísticos. Simultaneamente uma enorme quantidade de literatura


da Umbanda começou a circular (JENSEN, 2001 p. 13).

Ainda não é correto dizer que as religiões de matriz africanas são celebradas sem que
haja intervenções ou ataques contra suas práticas e ritos, os motivos já foram elucidados
durante toda a pesquisa, como nos casos de denúncias contra a intolerância religiosa, no
entanto é possível dizer que houve e deverá continuar havendo progressos para que uma
doutrina religiosa não seja denominada como inferior ou subjugada como demoníaca por sua
ligação com as raízes africanas, ou afro-brasileiras.
No capitulo posterior que intitula esta pesquisa, será exposto a maneira como a
religiões de matriz africana foram demonizadas e como a Constituição do século XIX afetou a
vida dos adeptos desta doutrina religiosa. Também será exposto casos do Museu da Policia
Civil do Rio de Janeiro que acomodava itens capturados durante as operações de combate
contra os praticantes dos cultos afro.

2- ISSO NÃO É COISA DE DEUS: A Demonização Das religiões Afro-brasileiras No


Imaginário Popular Amparadas Pela Constituição do século XIX.

Durante toda a pesquisa foi possível observar sobre como as religiões de matriz
africana foram recepcionadas na sociedade brasileira. Sobre quais critérios éticos e religiosos
a sociedade se ancorou para formular pré-conceitos sobre estas religiões. Uma sociedade
estruturada por bases movediças portanto instáveis, de profundas raízes escravistas, regida
pela fé hegemonicamente branca do cristianismo, que condenava tudo o que se opusesse às
suas doutrinas, sendo inadmissível outra religião que não a católica. Na legislação o “Artigo.
157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para
despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis,
enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica.” (BRASIL, 1890), este era sem dúvida,
um dos cenários mais desafiadores que a população negra poderia se deparar.
Foi exposto ao longo desta pesquisa, que os negros escravizados vindos da África
vieram de vários países e eram divididos em grupos que denominavam de nações, cada nação
possuindo suas crenças, culturas, hábitos e religião, sendo neste último aspecto, comum o
culto politeísta, tendo este conjunto de nações um panteão de deuses com os quais seus
adeptos não se desvinculariam por completo, nem mesmo com o processo diaspórico da vinda
dos africanos para o Brasil. Feito essa recapitulação do contexto estudado na pesquisa, você
entenderá sobre como a sociedade chegou ao ponto de não só reprimir, mais julgar e
26

demonizar as religiões de matriz africana e como estas posturas se mantiveram amparadas por
longos séculos nos códigos penais da Constituição Brasileira de 1890.
Será feito uma abordagem conceitual sobre a noção de representação. Entende-se por
representação a tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de
abstração (PESAVENTO, 1995). Com isso surge o outro termo importante para a pesquisa, os
estudos sobre o imaginário por sua relação de proximidade com o conceito anterior. O
imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento, se
manifesta por imagens e discursos que pretendem dá uma definição da realidade. Esses
parâmetros serão uteis para entender como o conceito de imaginário é empregado na pesquisa.
Pesavento (1995) vai trazer em sua narrativa as relações de poder que são subsidiadas pela
sustentação do imaginário coletivo

A rigor, todas as sociedades, ao longo de sua história, produziram suas próprias


representações globais: trata-se da elaboração de um sistema de ideias-imagens de
representação coletiva mediante o qual elas se atribuem uma identidade,
estabelecem suas divisões, legitimam seu poder e concebem modelos para a conduta
de seus membros. Seriam, pois, representações coletivas da realidade, e não reflexos
da mesma. (PESAVENTO, 1995 p.16)

Durante anos adeptos do Candomblé assim como da Umbanda, foram duramente


reprimidos, e a constituição amparava a repressão como exposto no capítulo anterior. Quando
partidos da reflexão sobre o conceito que traz Sandra Pesavento(1995) acerca do imaginário, é
possível entender como esse parâmetro invalidou a legitimidade religiosa dessas doutrinas,
não pode ser desconsiderado o fato da sociedade está inserida em um cenário de recém
libertação de escravos e que estas religiões são majoritariamente oriundas de nações negras,
embora na contemporaneidade o cenário seja mais diverso, ainda assim, são religiões oriundas
do povo de cor e de classes tidas como subalternas, daí a justificativa para o preconceito sobre
as doutrinas religiosas africanas e afro-brasileiras e notadamente sobre a população negra, que
nela se insere.
Um exemplo claro e efetivo sobre como o estado permitia e legitimava a violência e
silenciamento dos adeptos das religiões africanas é o denominado Museu da Policia Civil do
Rio de Janeiro, também chamado Museu da Magia Negra de 1938, era utilizado para manter
os objetos aprisionados pela Polícia, no acervo também denominado de Coleção Magia
Negra, estavam todo e qualquer item que fosse relacionado ao “baixo espiritismo”, tido como
perigoso e/ou maléfico.
27

Existem pesquisas que abordam de forma critica a maneira como os objetos eram
arquivados e as más condições de conservação com que eram alocados e ainda as
denominações que recebiam, tendo a maior parte dos itens designações inferiores se
comparados com itens que possuíam valores religiosos e sentimental de outras religiões.
“Enquanto os bens e acervos de ‘arte-sacra’ católica são inseridos nos livros de Tombo
Histórico e de Belas-Artes, os bens e acervos de religião e magia populares são classificados
como ‘etnográficos’ ”(CORRÊA, 2005 p.410).
A discursão que Alexandre Corrêa(2005) chama atenção em sua dissertação está
pautada na concepção de Etnografia e como as representações religiosas possuíam pesos e
prestígios diferentes, embora o significado e valor fosse importantes para seus adeptos em
igual proporção, a distinção se vazia valer no entendimento dos dirigentes dos acervos sobre
qual item possuía prestigio e valor religioso, fosse a classificação de itens católicos como
“arte-sacra” em detrimento dos de religião popular como “etnográficos”. Corrêa traz ainda
que o caráter preconceituoso não se limita apenas a estas claras distinções e que muito
mistério envolvia a coleção de ‘Magia Negra’, chamada ainda de “bizarros, primitivos e
grotescos” (CORRÊA, 2005 p. 409).
Paira sobre este acervo muitas polêmicas que vão desde ás precariedades na
preservação das peças, o desrespeito na classificação dos itens, em especial os de cultura
popular, o questionamento sobre quais critérios os itens foram até pouco tempo atrás mantidos
sobre a tutela da policia Civil do Rio de Janeiro, inclusive em recente protestos, líderes e
ativistas religiosos cobraram parecer das autoridades e exigiram a desapropriação dos itens
pela Policia Civil15, para que fossem realocados e recebessem a reparação e valor devido, essa
luta durou alguns anos e até o seu desfecho pouco se sabia sobre quais condições se
encontravam os objetos, já que em 2010 a polícia fechou as portas do museu para que
passasse por reparos e obras no prédio, impedindo com isso, o acesso as peças.
Apenas em 202016, depois de quase 100 anos, esses objetos foram liberados e
entregues para líderes das religiões africanas, um marco histórico que não pode ser esquecido,
uma reparação histórica, mas que ainda precisa ser discutida, afinal os motivos que
sustentaram o poder das autoridades sobre as peças é pertinente, uma vez que fala-se tanto em

15
Para mais informações acessar notícias sobre a campanha Liberte Nosso Sagrado encabeçada em 2017.
Disponível em: < https://olhardeumcipo.blogspot.com/2017/08/campanha-reivindica-patrimonio-sagrado.html>.
Acesso em 07 de janeiro de 2022.
16
SANCHES, Mônica. Museu da República no Rio recebe peças históricas de religiões afro-brasileiras
apreendidas pela polícia há mais de 100 anos. G1, 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2020/09/21/museu-da-republica-no-rio-recebe-pecas-historicas-de-religioes-afro-brasileiras-
apreendidas-pela-policia-ha-mais-de-100-anos.ghtml >. Acesso em: 28, dezembro 2021.
28

Estado laico, a polícia ter sobre seu domínio objetos de representação religiosa especialmente
das de matriz africana não é algo aleatório, possui significados importantes.
Essa postura das autoridades policiais de manterem tutela sobre peças tão
importantes para os adeptos de religiões populares foi simbólico e representativo, uma vez
que demonstrou a manutenção de poder sobre uma população, que por anos luta por
reconhecimento enquanto religião e participação na construção da história do país e
principalmente por respeito, respeito pela sua história, respeito por sua religião, respeito por
seus orixás, suas crenças e seu valor religioso, cultural, espiritual e não apenas etnográfico
como classificados no acervo.
A demonização das religiões de matriz africana, mantida pelo imaginário popular,
também parte dessa premissa de muitos se basearem nas narrativas do Estado e suas
corporações, o caso do museu abre margem para essa postura, alicerçados na Constituição
Federal de 1890, um povo que encontra no Estado combustível, para manter seu discurso de
inferiorização de uma população que ainda não pôde estabelecer, nem mesmo vivenciar de
forma livre suas crenças e identidade, uma população que precisa rotineiramente validar quem
é, ao mesmo tempo que luta por um lugar que a força tornou-se sua casa.
Casa esta construída da planta, às produções açucareiras, de suor e sangue preto, e
ainda tendo negado e repelido sua existência e contribuição, varrendo sua parte da história
para debaixo do tapete, postas como caóticas demais para serem narradas. Embora as ações do
museu acima citado, pareçam absurdas e imbatíveis, estas somam a outras tantas situações
que conduzem a reflexão sobre como uma sociedade imbuída de preconceito e intolerância,
pode tornar-se uma ameaça eminente. No próximo tópico será apresentado a forma como o
negro é coisificado no imaginário popular e quais os fatores contribuíram para isso.

2.1- Projeto mal sucedido: A Figura Do Negro E Sua Associação Ao Diabo

A sobrecarga do imaginário, conceito de Sandra Pesavento (1995) já apresentado


nesta pesquisa, auxilia no processo de análise do artigo produzido por Flavio Giarola (2018)
intitulado O “demônio negro”: o negro como maligno nas representações religiosas e raciais
da imprensa de São João del-Rei (1971 – 1889), retrata muito bem o que esta pesquisa se
propôs a fazer, mostrar como são criadas as narrativas sobre a população negra baseadas em
29

achismos e propagadas de forma preconceituosa, coisificando o povo preto e personificando


sua imagem em discursos dualistas entre o bem e o mau , o que seria de Deus e o que seria do
demônio, partindo da premissa de que o homem branco fosse fruto da criação divina feito a
imagem e semelhança de Deus, enquanto o povo negro seria um projeto mal sucedido de
Satanás, veja o que diz David Brookshaw (1983):

Algumas apresentavam a suposição de que todas as raças haviam nascido negras,


mas uma tinha sido recompensada com brancura e beleza por causa de sua
inteligência superior, enquanto que outra permaneceu negra e feia por causa de sua
estupidez. Em outras, a raça branca aparece como criação original de Deus, feita a
sua perfeição, enquanto que a negra era a tentativa frustrada de imitação feita pelo
demônio. (BROOKSHAW, 1983 p.15, apud GIAROLA, 2018 p.417)

A distinção entre brancos e negros sendo definida por parâmetros religiosos,


claramente preconceituosos, foi demonstrado anteriormente nesta pesquisa, em que houve um
discurso médico para argumentar a suposta inferioridade biológico entre negros e brancos,
esta narrativa permeou por longos anos durante o século XIX. O período pós-abolição
representava para muitos defensores da escravatura o sinal de alerta, seria o medo dos
senhores de engenho de represálias por parte dos negros, em resposta as torturas e maus tratos
que sofreram, enquanto estiveram sobre posse dos primeiros, um dos argumentos principais
para tentar impedir o processo de abolição.
É evidente que diante das atrocidades que causaram, sentir medo pela libertação dos
negros seria só um dos sinais de alerta que estes poderiam ter. Mas não era só isso, não ter
controle sobre aqueles que outrora estiveram presos e escravizados sobre o domínio de
brancos, que sem escrúpulo algum, se postulavam como superiores e discursavam sobre sua
suposta superioridade racial, demonizar a imagem do negro seria a ferramenta chave para
tornar o pós-abolição, um campo minado onde negros libertos representavam perigo
eminente, seja racial, social, seja religioso.
Flávio Giarola (2018), também afirma em seu artigo que nas décadas de 1870 e 1880
na cidade de São João del-Rei, algumas narrativas tradicionais da época, foram mantidas
caracterizando o negro como um sujeito ruim, além de associar suas práticas religiosas como
malignas.

Assim havia na cidade, por um lado, um ponto de vista baseado em concepções


místicas e religiosas que aproximavam os negros ao demônio e caracterizavam suas
práticas culturais como malignas e, por outro, a concepção baseada na ideia de raça,
usada para apontá-los como sendo naturalmente maus. A conjunção destas imagens
fez com que os “homens de cor” fossem vistos como facilmente suscetíveis a atos
30

violentos, o que era refletido nos discursos da imprensa da cidade sobre o perigo da
abolição imediata e da “ameaça negra”. (GIAROLA, 2018 p. 414)

Não é preciso dizer quais as consequências dessas construções e quais os efeitos


delas inclusive na contemporaneidade, as minutas do racismo e a forma como ele se apresenta
ora de maneira sutil ora de forma escancarada, seja em um comentário extremamente
desagradável e intolerante sobre as vestimentas de um adepto de religião africana, seja no
desrespeito a aplicação da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de
História da África e da Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas de ensino fundamental e
médio.
A lei veio em um momento tardio, mas ainda assim possibilitou o espaço para que
fosse debatido as diversas formas de racismos e de reparação social não só para o povo preto,
mas para a sociedade que acreditava no mito da democracia racial que visava uma equidade
entre negros e brancos que claramente só se concretiza nos discursos daqueles que defendem
por exemplo a mestiçagem como ponte de clareamento da população negra. Não se pode é
claro, acreditar que a lei conseguiu reparar o que 300 anos de escravidão, deixou de marca na
sociedade, mas o passo inicial foi dado, significando que é possível movimentar as pautas
sociais no que diz respeito as causas raciais, mas ainda há um longo e espinhoso caminho a se
percorrer.
Embora Giarola (2018) traga o exemplo de São João del-Rei este foi apenas um dos
casos existentes, o Brasil é um país de raízes conservadoras e o caso da cidade mineira é o
reflexo de inúmeros casos no país afora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É contraditório falar sobre liberdade e democracia ao mesmo tempo que se


estabelece sanções sobre grupos sociais específicos. Propiciar que uma religião seja exaltada
em detrimento de outra que não só é coibida como demonizada não se parece em nada com
democracia. Esta pesquisa trouxe isso claro em cada parágrafo escrito. A religião é sem
dúvida um dos elos que ligando o plano espiritual com o material, aproxima ou repele pessoas
de diferentes etnias, classes sociais e nacionalidades, no contexto das religiões de matriz
31

africana envolve diretamente o contato com a ancestralidade e suas raízes, impedir que seus
adeptos pratiquem seus cultos ou coibir o uso de itens que materializem sua religiosidade é
também uma forma de cercear a base dessa religião.
Foi possível observar com esta pesquisa, a construção das narrativas que afetaram
diretamente as religiões de matriz africana, as bases que sustentaram esses discursos e como
isso reflete ainda na contemporaneidade sobre os adeptos do Candomblé e da Umbanda por
exemplo. Onde incialmente tais religiões foram tidas como baixo espiritismo termo já
mencionado anteriormente, julgamento enfatizado com maior frequência sobre o Candomblé,
por este, em comparação com a Umbanda, aproximar-se mais dos cultos africanos
tradicionais, além do fato da Umbanda inicialmente, marcar sua identidade trazendo
semelhança maior com as narrativas kardecistas, e opondo-se diretamente às práticas do
Candomblé. Duas religiões cuja o fator principal é ser de raízes afro-brasileiras, fator este
determinante para que tais religiões fossem demonizadas e proibidas por lei na Constituição
do século XIX.
O Estado atuou diretamente nas coerções e esta atuação pode ser entendida como
fator fundamental para que atos violentos fossem cometidos contra adeptos das religiões afro-
brasileiras e consequentemente, porque não dizer, contra a população negra já que apesar das
religiões de matriz africana terem adeptos de todas as classes sociais, estas são originárias das
práticas tidas como populares ou seja, são nascentes de classes sociais denominadas como
subalternas.
A população negra foi afetada fortemente dentro desse cenário, já que ainda estava
passando pelo processo de abolição, que embora já tivesse se consolidado no Brasi,l ainda se
fazia presente as raízes conservadoras e as marcas deixadas pela história da escravatura, o
preconceito contra população negra estava latente, o artigo de Flávio Giarola (2018) pontua
isso quando aponta que a imagem do negro estava diretamente associada a adjetivos
negativos, como se ser negro, fosse também sinônimo de ser uma pessoa ruim ou de índole
duvidosa, a própria prática da religião africana estava associada a figura do negro como algo
inferior portanto ruim, maléfico. Essas menções não desapareceram no tempo, a exemplo está
o termo magia negra17, que ainda na contemporaneidade é utilizado para representar e
distinguir as religiões africanas das demais.
17
Para mais informações sobre a definição do termo e suas características aprofundar leitura na Tese de
Doutorado de OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. “Adeptos Da Mandinga”: Candomblés, Curandeiros E
Repressão Policial Na Princesa Do Sertão (Feira De Santana-Ba, 1938-1970). Tese (Doutorado em Estudos
Étnicos e Africanos) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, p.215. 2010. Disponível em: <
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/8604>. Acesso em 01 de fevereiro 2022.
32

A pesquisa buscou compreender como essas narrativas preconceituosas foram


levantadas e como esses discursos fizeram parte do imaginário popular ainda na
contemporaneidade, já que parte dessas falas são presentes e ainda latentes na sociedade
brasileira. Ainda é possível encontrar nos noticiários vítimas de crimes contra a violação dos
direitos da prática da religião africana, líderes religiosos que tiveram seus terreiros invadidos
e depredados, que foram agredidos verbalmente e fisicamente.
É possível e recorrente ocorrerem outras violações simbólicas, mas que afetam
drasticamente a vida das pessoas, seja por preconceito as indumentárias seja por preconceito e
intolerância a prática religiosa, normalmente pelo desconhecimento sobre a religião ou
simplesmente por conceitos cristalizados e amparados em discursos e pesquisas superficiais.
O questionamento que fica sobre essa análise e que leva ao ponto de partida da
pesquisa é : até que ponto o ser humano que se diz civilizado que se distingue dos demais
seres pela sua capacidade de raciocinar, será capaz de agir de forma intolerante, porque se
julga em determinado momento, superior frente ao seu semelhante, por praticar uma doutrina
religiosa e achar que pode a partir disso, determinar o que é ou não religião, ou o que pertence
ou não a deus, e então utilizar desse argumento, para demonizar quem pensa diferente ou age
diferente dele mesmo, achando-se no direito de apedrejar e destruir o espaço do outro? Esse
ser humano racional que busca distinguir-se dos demais seres, age como fera e opõem-se ao
diálogo e ao respeito.
Com isso conclui-se que o caminho de uma civilização que se propõem a viver em
democracia, e que visa o progresso, precisa antes de mais nada restabelecer o diálogo e o
respeito como pontes mediadoras de conflitos. O Brasil, um país plural, rico em cultura, um
Brasil com seus brasis, cheio de cores, ritos, costumes e diversidade, campo propício para que
a democracia seja vivenciada em sua amplitude cultural, religiosa e social, nesse cenário não
há espaço para intolerâncias. Exercer suas espiritualidades sem ser alvo de julgamentos e
sanções é o que se espera de um país minimamente democrático.
RERENCIAL TEÓRICO

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